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A aura da ironia

Como presente de Natal aos leitores do Todoprosa, publico esta semana, em três
partes, o trecho de um longo e brilhante ensaio de David Foster Wallace sobre as
relações entre a televisão e a nova ficção americana que traduzi para a revista
“Serrote” – e que teve apenas um pequeno naco aproveitado. O ensaio integral, E
unibus pluram, encontra-se na coletânea A supposedly fun thing I’ll never do again,
ainda não lançada no Brasil. O presente trecho foi batizado pelo próprio DFW de “A
aura da ironia” e contém seu argumento central: o de que a ironia da ficção pós-
moderna foi apropriada e esvaziada pela TV. Certos nomes de atrações televisivas à
parte, o texto parece-me não ter envelhecido substancialmente desde os anos 90,
quando o ensaio foi escrito. Espero que o aperitivo sirva de estímulo a quem quiser
correr atrás do livro em inglês (disponível aqui) ou a editoras que se disponham a
lançar a obra no Brasil.

É fato amplamente reconhecido que a televisão, com sua bateria de estatísticos e


pesquisadores de aros de tartaruga, sai-se terrivelmente bem na tarefa de discernir
padrões no fluxo das ideologias populares, absorvendo-os, processando-os e em seguida
reapresentando-os como estímulos para assistir e comprar. Anúncios dirigidos aos filhos
do pós-guerra que prosperaram nos anos 1980, por exemplo, ficaram famosos por usar
versões processadas de melodias da cultura rock dos anos 60 e 70, tanto para evocar o
desejo que acompanha a nostalgia quanto para atrelar o consumo de produtos àquela
que, para os yuppies, foi uma época perdida de convicção genuína. Vans esportivas da
Ford são anunciadas como “Esta é a aurora da era de Aerostar”; a Ford recentemente
envolveu-se com Bette Midler num litígio sobre a apropriação indébita de seus velhos
vocais em Do you wanna dance; as passas de argila animada da California Raising
Board dançam ao som de Heard through the grapevine, etc. Se a reutilização cínica das
canções e dos ideais que elas costumavam simbolizar parece de mau gosto, não se pode
dizer que os músicos pop sejam eles próprios epítomes do não-comercialismo, e de todo
modo ninguém jamais disse que vender era bonito. Os efeitos de qualquer caso isolado
de absorção e trivialização de símbolos culturais pela TV parecem razoavelmente
inócuos. A reciclagem de tendências culturais como um todo – e das ideologias que as
informam – é outra história.

A cultura popular americana é exatamente igual à cultura americana séria num aspecto:
sua tensão central sempre se deu entre a nobreza do individualismo e o calor do
sentimento comunitário. Em seus primeiros vinte anos, parecia que a televisão buscava
apelar sobretudo para o lado grupal dessa equação. Comunidades e laços eram exaltados
na infância da TV, embora a própria TV, e especialmente sua publicidade, tenham desde
o início se dirigido ao espectador solitário, João Bobão, de forma isolada. (Os anúncios
televisivos sempre apelam a indivíduos, não a grupos, um fato que parece curioso à luz
do tamanho sem precedentes do público telespectador – mas só até ouvirmos
vendedores talentosos explicarem que as pessoas estão sempre mais vulneráveis,
portanto assustadas, logo passíveis de persuasão, quando são abordadas sozinhas.)

Os comerciais clássicos da televisão eram todos sobre o Grupo. Tomavam a


vulnerabilidade de João Bobão – sentado lá, olhando para uma peça de mobília, solitário
– e a capitalizavam, relacionando a compra de determinado produto com a inclusão de
João B. em alguma comunidade atraente. É por isso que aqueles que têm mais de 21
anos nos lembramos de tantos velhos anúncios intercambiáveis estrelados por turmas de
gente bonita em algum contexto festivo, todos se divertindo muito mais do que qualquer
pessoa tem o direito de se divertir, e todos unidos como Grupo Feliz pelo fato conspícuo
de que tinham nas mãos certa garrafa de refrigerante ou marca de salgadinho – o apelo
altissonante, aqui, é que aquele importante produto pode ajudar João Bobão a se
integrar: “Somos a Geração Pepsi…”.

Mas desde os anos 80, pelo menos, o lado Individualista da grande conversa americana
tem predominado na publicidade televisiva. Não estou bem certo de por que ou como
isso ocorreu. É provável que haja grandes correlações a serem traçadas – com o Vietnã,
a cultura jovem, Watergate, a recessão e a ascensão da Nova Direita – mas o que
importa é que grande parte dos mais eficazes comerciais de TV dirige-se agora ao
espectador solitário de modo dramaticamente distinto. Os produtos são frequentemente
louvados como capazes de ajudar o telespectador a “expressar seu eu”, afirmar sua
individualidade, “destacar-se da multidão”. O primeiro exemplo dessa tendência que eu
vi foi o de um perfume do início dos anos 80, ardorosamente anunciado como capaz de
reagir à “química corporal única” de cada mulher para criar “sua própria fragrância
individual”. O comercial mostrava uma fila indiana de modelos lânguidas que, amuadas
e sem expressão, aguardavam o momento de, uma a uma, terem seus pulsos borrifados,
cada modelo aspirando então seu pulso individual úmido com uma espécie de revelação
bioquímica e se afastando do borrifador numa direção que uma tomada de cima
revelava ser diferente das demais. (Podemos ignorar as óbvias conotações sexuais, o
borrifamento e tal; algumas táticas nunca mudam.) Ou pense naquela série recente de
anúncios de Cherry 7-Up, rodada num preto e branco excessivamente sombrio, em que
os únicos personagens que têm cor e se destacam do ambiente são as pessoas rosadas
que se tornam rosadas no exato instante em que se embebem do bom e velho Cherry 7-
Up. Exemplos de comerciais do gênero “destaque-se” são hoje praticamente
onipresentes.

A não ser pelo fato de serem mais tolinhos (produtos alegadamente capazes de
distinguir os indivíduos da multidão são vendidos para imensas multidões de
indivíduos), esses anúncios não são, na verdade, mais complicados ou sutis do que os
velhos comerciais do tipo Entre-para-o-Grupo-Feliz que hoje parecem tão antiquados.
Contudo, a relação do gênero Seja-Diferente-da-Manada com sua massa de
espectadores solitários é mais complexa e mais engenhosa. Os melhores comerciais da
atualidade ainda são centrados no Grupo, mas agora o apresentam como uma coisa
temível, algo que pode engoli-lo, anulá-lo, impedi-lo de “ser notado”. Mas notado por
quem? As multidões ainda têm importância vital nas teses sobre identidade dos
comerciais individualistas, mas hoje a multidão de um determinado anúncio, longe de
ser mais atraente, segura e vivaz do que o indivíduo, funciona como uma massa de
olhos idênticos e sem personalidade. A multidão é hoje, paradoxalmente, tanto (1) a
“manada” em contraste com a qual a identidade distintiva do telespectador deve ser
definida quanto (2) o grupo de testemunhas cujo olhar, e só ele, pode lhe conferir tal
identidade distintiva. O isolamento do espectador solitário diante de sua mobília é
implicitamente aplaudido – é melhor e mais real, insinuam esses anúncios solipsistas,
seguir em voo solo – e ao mesmo tempo tem implicações ameaçadoras, confusas, pois
no fim das contas João Bobão não é um idiota que, sentado ali, ignore ser culpado,
como espectador, dos dois graves pecados que o anúncio condena: ser um observador
passivo (da TV) e fazer parte de uma grande manada (de telespectadores e compradores
de produtos Seja-Diferente-da-Multidão). Tudo muito estranho.
Na superfície, os comerciais Seja-Diferente ainda apresentam o recado “compre isto”
em estado relativamente puro, mas a mensagem profunda da televisão no que diz
respeito a esses anúncios parece ser a de que o estatuto ontológico de João Bobão como
mais um na massa reativa de espectadores é, em algum nível primordial, periclitante e
contingente, e que a verdadeira realização do ser consistiria em última análise na
transformação de João numa daquelas imagens que são objetos da audiência de massa.
Ou seja, o verdadeiro discurso da televisão nesses comerciais é o de que é melhor estar
dentro da TV do que do lado de fora, assistindo.

Isso quer dizer que a nobreza solitária do Seja-Único não se limita a vender produtos.
Ela é capaz de garantir de forma brilhante – mesmo em comerciais que a TV cobra para
veicular – que no fim das contas seja a própria TV, e não qualquer produto ou serviço
específico, que João Bobão tomará como árbitro definitivo do valor humano. Um
oráculo que deve ser consultado sem parar. O estudioso de publicidade Mark C. Miller
formula isso de forma sucinta: “A televisão foi além da celebração explícita das
mercadorias para promover o reforço implícito da postura de espectador que exige de
nós”. Anúncios solipsísticos são uma das formas pelas quais a TV acaba por apontar
para si mesma, mantendo ao mesmo tempo alienada e dependente a relação do
espectador com sua mobília.

No entanto, talvez a relação do espectador contemporâneo com a televisão


contemporânea seja menos um paradigma de infantilismo e vício do que da familiar
postura dos Estados Unidos diante de toda tecnologia, que equiparamos a liberdade e
poder e, ao mesmo tempo, a escravidão e caos. Porque, assim como ocorre com a
televisão, podemos adorar pessoalmente a tecnologia, odiá-la, tême-la ou todas as
alternativas acima, mas ainda é a ela que recorremos sem cessar em busca de soluções
para os problemas que a própria tecnologia parece causar – vejam-se p. ex. os
catalisadores contra a poluição do ar, a “Guerra nas Estrelas” contra os mísseis
nucleares, os transplantes contra diversos tipos de decadência física.

Assim como a tecnologia, a Gestalt da televisão também se expande para absorver todos
os problemas a ela associados. As pseudocomunidades de telenovelas do horário nobre
como Knots Landing e thirtysomething são confortáveis para o espectador por serem
produtos do mesmo meio cuja ambivalência a respeito do Grupo contribui para erodir o
sentido de inserção comunitária das pessoas. A edição sincopada, as frases de efeito dos
entrevistados e o tratamento sumário de questões intrincadas são a forma como o
noticiário televisivo acomoda uma Audiência cujo arco de atenção e apetite pela
complexidade encolheram um pouco, naturalmente, após anos de doses maciças de
assistência. Etc.

Mas a TV tem seus próprios problemas provocados pela tecnologia. O advento do


consumidor de TV a cabo, frequentemente dono de pacotes de mais de quarenta canais,
é uma ameaça tanto para as redes quanto para suas afiliadas locais. Isso é mais
verdadeiro ainda quando o espectador está armado com uma engenhoca de controle
remoto: João B. ainda consome suas seis horas totais de televisão por dia, mas o tempo
que suas retinas dedicam a cada opção encolhe, pois ele cobre remotamente um espectro
muito mais amplo. Pior ainda, o gravador de vídeo, com suas temíveis funções de
avanço e zap, ameaça a própria viabilidade dos comerciais. A solução inteiramente
sensata dos publicitários? Torne os anúncios tão atraentes quanto os programas. Ou pelo
menos tente evitar que João B. desgoste tanto dos comerciais que sinta vontade de
mover seu dedão e conferir dois minutos e meio de Hazel no Superstation enquanto a
NBC vende um protetor labial. Faça anúncios mais bonitos, mais animados e cheios de
suficiente informação visual rapidamente justaposta para que a atenção de João não
chegue a se perder, mesmo que ele corte o volume. Como diz eufemisticamente um
executivo publicitário: “Os comerciais estão ficando mais parecidos com os filmes de
entretenimento”.

Existe uma forma inversa, claro, de tornar os comerciais parecidos com os programas.
Faça os programas se assemelharem a comerciais. Dessa forma os anúncios parecem
menos interrupções do que marcadores de ritmo, metrônomos, comentários sobre a
teoria da atração principal. Invente um Miami Vice, em que há bem pouca trama para
irritar e distrair, mas uma ênfase sem precedente na aparência, no visual, na atitude,
num certo “estilo”. Faça videoclipes com a mesma levada anfetamínica e as mesmas
associações arquetípicas oníricas dos comerciais – ajuda bastante o fato de videoclipes
serem basicamente longos anúncios musicais, de qualquer forma. Ou inaugure um
híbrido de informação e publicidade bancado pelo patrocinador que finja ser, de forma
despretensiosa, um noticiário leve, como Amazing Discoveries ou aquelas reportagens
sobre queda de cabelo apresentadas por Robert Vaughn que assombram as horas mortas
da TV. Apague – exatamente como fez a literatura pós-moderna – as linhas divisórias
entre gêneros, interesses, arte comercial e comercial artístico.

No entanto, a televisão e seus patrocinadores tinham uma preocupação de longo prazo


ainda maior: suas delicadas relações diplomáticas com o psiquismo do espectador
individual. Como a televisão precisa girar em torno das contradições básicas do ser e do
assistir, da fuga da vida cotidiana, o espectador medianamente inteligente não tem como
ficar lá muito feliz com sua vida cotidiana e seus altos teores de assistência. Talvez João
Bobão seja até bem feliz quando está assistindo, mas é difícil imaginar que se sinta
terrivelmente feliz por assistir tanto. Com certeza, lá no fundo, João fica desconfortável
por fazer parte da maior multidão da história da humanidade, vendo imagens que
sugerem que o sentido da vida consiste em se destacar visivelmente da multidão. O
ciclo de culpa/complacência/conforto da TV dá conta dessa preocupação num certo
nível. Mas não haveria um jeito mais profundo de manter João Bobão firme no meio da
multidão de espectadores, associando de alguma forma sua própria assistência à
superação dessa multidão de espectadores? Mas isso seria absurdo. É aí que entra a
ironia.

Eu já afirmei – por enquanto de maneira um tanto vaga – que o que torna a televisão tão
resistente às críticas da nova Ficção da Imagem é o fato de que ela cooptou as formas
distintivas da própria literatura cínica, irreverente, irônica e absurdista do pós-Segunda
Guerra que os novos Imagistas usam como pedras de toque. Ocorre que a reciclagem,
pela TV, do cool pós-moderno evoluiu como uma solução inspirada para o problema de
manter-João-ao-mesmo-tempo-alienado-da-e-integrado-à-multidão-de-um-milhão-de-
olhos. A solução implicou uma gradual mudança de expressão, do excesso de candura
para uma espécie de irreverência de menino mau, na Grande Face que a TV nos exibe.
Isso por sua vez refletiu uma transformação mais ampla na percepção americana sobre
como a arte deve funcionar, uma transição da arte como representação criativa de
valores reais para a arte como rejeição criativa de valores fajutos. E essa transformação
mais ampla, por seu lado, caminhou em paralelo ao desenvolvimento da estética pós-
moderna e a certas mudanças graves e profundas no modo como os americanos optaram
por encarar conceitos como autoridade, sinceridade e paixão em termos de nosso desejo
de satisfação. Não apenas a sinceridade e a paixão estão hoje “fora de moda” no que diz
respeito à TV, mas a própria ideia de prazer foi minada. Como diz Mark C. Miller, a
televisão atual “já não solicita nossa absorção enlevada ou concordância fervorosa, mas
– como os comerciais que a financiam – na verdade nos congratula pelo próprio tédio e
pelo próprio descrédito que nos inspira”.

Deride and Conquer (Ridicularize e Conquiste), de Miller, de 1986 – de longe o melhor


ensaio já publicado sobre a publicidade das grandes redes – detalha vividamente um
exemplo de como funciona o tipo de apelo que a TV contemporânea exerce sobre o
espectador solitário. Refere-se a um anúncio de 1985-86 que ganhou o prêmio Clio e
ainda vai ao ar de vez em quando. Trata-se daquele comercial da Pepsi em que um carro
de som especial da Pepsi estaciona junto a uma praia lotada sob o sol escaldante e,
dentro dele, um rapaz de ar maroto liga um luxuoso sistema de som antes de abrir uma
Pepsi e virá-la num copo perto do microfone. Quando o denso som efervescente do
líquido gasoso se espalha no ar ressequido da praia, as cabeças voltam-se na direção da
van como se fossem puxadas por cordinhas, enquanto os ruídos do rapaz que bebe, seus
goles e aaahs de frescor, são transmitidos pelos alto-falantes. A tomada final revela que
o carro de som é também um caminhão de venda, ao redor do qual a bela população da
praia está agora inteiramente reduzida a uma massa ululante, todo mundo pulando e
implorando para ser servido primeiro, enquanto o ponto de vista da câmera recua para
uma tomada de cima da multidão e o slogan é enunciado em tom neutro: “Pepsi: a
escolha de uma nova geração”. Sem dúvida, um esplêndido comercial. Mas será preciso
dizer – como faz o ensaio de Miller com certa medida de detalhismo – que o slogan
final é uma gozação? Há tanta “escolha” envolvida nesse comercial quanto no canil de
Pavlov. O uso da palavra “escolha” é uma tirada de humor negro. Na verdade, toda a
peça de trinta segundos é gozadora, irônica, autodepreciativa. Como argumenta Miller,
não é uma escolha que o anúncio está vendendo a João Bobão, “mas a completa
negação das escolhas. Na verdade, o próprio produto é, no fim das contas, incidental no
discurso vendedor. O comercial não exalta a Pepsi em si, mas a recomenda ao sugerir
que muita gente foi convencida fraudulentamente a comprá-la. Em outras palavras, a
mensagem central desse anúncio de sucesso é que a Pepsi foi anunciada com sucesso.”

Há coisas importantes a se compreender aqui. Em primeiro lugar, esse comercial é


profundamente informado pelo medo do controle remoto, do zapping e do desdém do
telespectador. Anúncio publicitário sobre anúncios publicitários, ele usa a
autorreferência como forma de parecer descolado demais para que o odeiem. Protege-se
do desprezo que os iniciados televisivos de hoje devotam tanto aos comerciais de venda
direta com locução acelerada que Dan Aykroyd parodiou à exaustão no Saturday Night
Live quanto aos anúncios quixotescos que associam o consumo de refrigerante com
romance, beleza e inclusão comunitária, anúncios que o espectador antenado de hoje
considera antiquados e “manipuladores”. Em contraste com um despudorado “compre
isto”, o comercial da Pepsi vende a paródia. O anúncio é inteiramente escancarado a
respeito daquilo que leva os anúncios televisivos a serem desprezados, i.e., lançar mão
de apelos primais enganadores para vender lixo açucarado a pessoas cuja identidade não
vai além do consumo de massa. O comercial consegue simultaneamente rir de si
mesmo, da Pepsi, da publicidade, dos publicitários e da grande multidão americana de
consumidores. Na verdade, é untuoso na bajulação de apenas uma pessoa: o espectador
solitário, João B., que mesmo tendo um cérebro mediano não pode deixar de discernir a
contradição irônica entre a “escolha” do slogan (som) e a orgia pavloviana ao redor da
van (imagem). O comercial convida João a “ver através” da manipulação que a horda
praiana engoliu furiosamente. Demanda cumplicidade entre sua própria ironia
espirituosa e o reconhecimento cínico dessa ironia pelo veterano espectador João, que
não é homem de se deixar enganar tão facilmente. Convida João a compartilhar de uma
piadinha interna às custas da Audiência. Parabeniza João Bobão, em outras palavras,
por transcender a própria multidão que o define. Multidões inteiras de Joões
corresponderam: o anúncio impulsionou o crescimento da participação de mercado da
Pepsi por três trimestres consecutivos.

A campanha da Pepsi não é um caso isolado. A Isuzu Inc. descobriu um bom filão no
fim dos anos 80 com a série de comerciais “Joe Isuzu”, estrelada por um vendedor
melífluo de aparência satânica que mentia deslavadamente sobre o estofado de pele de
lhama do Isuzu ou sua capacidade de rodar com água da bica no tanque de gasolina.
Embora os comerciais nunca dissessem quase nada sobre por que os Isuzus são de fato
bons carros, as vendas e os prêmios se acumularam. Eram bem-sucedidas paródias dos
melífluos e satânicos anúncios de automóveis. Convidavam os espectadores a
parabenizar os anúncios da Isuzu por serem irônicos, parabenizar-se a si mesmos por
entender a piada e parabenizar a Isuzu Inc. por ser suficientemente “destemida” e
“irreverente” para reconhecer que a publicidade de carros é ridícula e que a Audiência é
idiota de acreditar neles. Os anúncios instavam o espectador solitário a dirigir um Isuzu
como uma espécie de manifesto anti-publicidade. Associavam com êxito a compra de
um Isuzu ao destemor, à irreverência e à capacidade de desmascarar fraudes. Hoje, para
qualquer lado que se olhe, é possível encontrar comerciais de TV bem-sucedidos que
zombam das convenções da publicidade televisiva, dos anúncios de Settlemeyer para o
Federal Express e o Wendy’s, com seus personagens publicitários mofados de fala
burlescamente acelerada, àquelas peças espertinhas de Doritos à base de colagens de
locutores comerciais e clipes ironicamente cafonas de Beaver e Mr. Ed.

Além disso, pode-se ver essa tática de zombar das pretensões à virtude da autoridade e
da sinceridade exibidas por aqueles velhos comerciais – desse modo (1) blindando
contra a zombaria o autor da zombaria e (2) felicitando o decodificador da zombaria por
se destacar da massa que ainda acredita nessas pretensões fora de moda – empregada
com grande êxito em muitas das atrações televisivas que os comerciais financiam.
Programa após programa, há anos, tem sido uma de duas coisas: uma suposta
celebração pós-moderna de alusões e poses, imagética e vazia, ou, o que é ainda mais
comum, uma guerra discursiva desigual entre algum ineficaz porta-voz da autoridade
oca e seus filhos precoces, sua esposa mordaz ou seus colegas sarcásticos. Compare-se
o tratamento televisivo dado a figuras de autoridade nos programas pré-irônicos –
Erskine de The FBI, Kirk de Jornada nas Estrelas, Beaver de Ward, Shirley da Família
Dó-Ré-Mi, McGarrett de Havaí 5-0 – ao retrato que a TV faz de Al Bundy em
Married… with Children, do Sr. Owens em Mr. Belvedere, de Homer nos Simpsons, de
Daniels e Hunter em Hill Street Blues, de Jason Seaver em Growing Pains, do Dr. Craig
em St. Elsewhere.

O sitcom moderno, em particular, baseia quase inteiramente seu humor e seu tom no
ataque feroz – inspirado em M*A*S*H – a algum porta-voz caricatural de valores
hipócritas, pré-descolados, empreendido por insurgentes de língua afiada. Do mesmo
modo que Hawkeye foi atacado ferozmente por Frank e depois por Charles, Herb é
atacado ferozmente por Jennifer e Carlson por J. Fever em WKRP, o Sr. Keaton por
Alex em Family Ties, o chefe pela equipe de secretárias em Nine to Five, Seaver por
toda a família em Pains, Bundy por todo o planeta em Married… (sitcom que é a
paródia definitiva do gênero sitcom). Na verdade, pode-se dizer que os únicos
personagens de autoridade que retêm alguma credibilidade nos programas pós-80 (além
daqueles como o Furillo de Hill Street e o Westphal de Elsewhere, acossados de forma
tão incansável por pressões e todo tipo de sordidez que o simples fato de se aguentarem
semana após semana os torna heroicos) são aqueles que, sendo bastiões de valores,
conseguem comunicar alguma medida de auto-ironia, rindo de si mesmos antes que
algum Grupo impiedoso lhes pule em cima – como Huxtable em Cosby, Belvedere em
Belvedere, o agente especial Cooper em Twin Peaks, Gary Shandling da Fox TV (cujo
show tem uma música-tema que diz: “Esta é a música-tema do show do Gary”) e o
verdadeiro Anjo da Morte dos anos 80, o irônico Sr. D. Letterman.

A institucionalização do cinismo diante da autoridade trabalha a favor da televisão em


diversos níveis. Em primeiro lugar, na medida em que consegue ridicularizar
convenções antiquadas e varrê-las do mapa, a TV é capaz de criar um vácuo de
autoridade – e adivinhe o que o preenche depois disso. A verdadeira autoridade num
mundo que agora vemos como construído, e não mais retratado, passa a ser o meio que
constrói nossa visão de mundo. Em segundo lugar, na medida em que consegue se
referir apenas a si mesma e expor os padrões convencionais como ocos, a TV fica
invulnerável aos críticos que atacam seu conteúdo como superficial, grosseiro ou ruim,
uma vez que tais julgamentos remetem a padrões convencionais e extratelevisivos de
profundidade, gosto e qualidade. Além disso, o tom de ironia autorreferencial da TV
significa que ninguém pode acusá-la de tentar impor nada a ninguém. Como aponta o
ensaísta Lewis Hyde, a autodepreciação é sempre “sinceridade com um motivo”.

Ademais, para voltar ao argumento original, quando a televisão consegue atrair João
Bobão para dentro dela pela porta das piadas cifradas e da ironia, alivia aquela dolorosa
tensão entre a necessidade que João sente de transcender a multidão e sua condição
inescapável de membro da Audiência. Na medida em que a TV é capaz de congratular
João por “enxergar através” da pretensão e da hipocrisia dos valores antiquados,
consegue induzir nele precisamente o sentimento de superioridade astuta em que o
viciou, mantendo-o dependente de uma assistência televisiva que detém a exclusividade
na indução de tal sentimento.

Na medida em que consegue adestrar os espectadores para rir dos intermináveis foras
que os personagens dão uns nos outros, para encarar o ridículo como modelo de
interação social e forma de arte definitiva, a televisão reforça sua própria e estranha
ontologia da aparência: para o telespectador bem condicionado, a perspectiva mais
ameaçadora passa a ser abrir o flanco ao escárnio dos outros pelo uso de expressões que
traiam valores, emoção ou vulnerabilidade. Os outros viram juízes; o crime é a
ingenuidade. O espectador treinado fica então ainda mais alérgico às pessoas. Mais
solitário. O exaustivo treinamento de João nas angústias da impressão que pode
provocar nos outros, de como será visto por olhos vigilantes, torna ainda mais
assustadores os encontros humanos genuínos. Mas a ironia televisiva tem a solução para
isso: assistir mais TV começa a ser quase como uma pesquisa obrigatória, aulas sobre as
expressões faciais vazias, entediadas, já-vi-de-tudo-neste-mundo que João precisa
decorar para usar amanhã em sua viagem penosa no metrô fortemente iluminado, onde
multidões de pessoas de expressão vazia e entediada têm pouco a fazer além de olhar
umas para as outras.
O que a institucionalização televisiva da ironia descolada tem a ver com a ficção
produzida nos Estados Unidos? Bem, em primeiro lugar, a literatura americana de
ficção sempre tematizou a cultura do país e as pessoas que o habitam. Em termos
culturais, será que devo gastar muito do seu tempo apontando o grau de influência dos
valores televisivos sobre a atmosfera contemporânea de entediada melancolia,
materialismo autodepreciativo, indiferença apática e ilusão de que o cinismo e a
ingenuidade são mutuamente excludentes? Seremos capazes de negar as conexões entre,
de um lado, um meio de comunicação de poder consensual sem precedentes que sugere
não haver diferença real entre imagem e substância e, do outro, a ascensão de
presidentes Teflon, a consolidação de mercados nacionais para o bronzeamento artificial
e a lipoaspiração, a popularidade de um estilo “Vogue” cinicamente sintetizado na
ordem “faça pose”? Acaso diremos, sobre a arte contemporânea, que o desdém
televisivo por retrovalores “hipócritas” como originalidade, profundidade e integridade
não tem nada a ver com aqueles estilos de “apropriação” e recombinação em arte e
arquitetura nos quais o “passado vira pastiche”, ou com as solmizações repetitivas de
um Glass ou um Reich, ou com a catatonia contrafeita de um batalhão de sonhadores de
Raymond Carver?

Na verdade, a postura de tédio anestesiado e sem expressão – aquilo que um amigo meu
chama de cara-de-garota-que-está-dançando-com-você-mas-obviamente-preferia-estar-
dançando-com-outra-pessoa” – que se tornou a versão da minha geração para o cool tem
tudo a ver com a TV. “Televisão”, afinal, significa literalmente o ato de “ver longe”; e
nossas seis horas diárias não só nos ajudam a sentir proximidade e envolvimento
pessoal com os Jogos Pan-Americanos ou a Operação Escudo do Deserto como,
inversamente, nos adestra para lidar com aquilo que é realmente pessoal e próximo da
mesma forma que lidamos com o distante e o exótico, como se estivesse separado de
nós pela física, por uma chapa de vidro, válido apenas como performance, aguardando
nossa resenha cool. A indiferença é na verdade, para os jovens americanos, apenas a
versão anos 90 da frugalidade: cortejados muitas deliciosas horas por dia em troca de
nada além de nossa atenção, consideramos tal atenção nossa principal mercadoria, nosso
capital social, e relutamos em gastá-la. Da mesma forma, considere-se que, nos anos 90,
a neutralidade apática e a postura cínica tornaram-se formas claras de transmitir a
atitude televisiva de “destacar-se e transcender” – neutralidade e apatia transcendem o
sentimentalismo, enquanto o cinismo anuncia que o sujeito sabe como as coisas são e,
se um dia foi ingênuo, isso deve ter ocorrido pela última vez ali em torno dos quatro
anos de idade.

Mesmo que você não considere a cultura jovem dos anos 1990 tão desoladora assim,
nós certamente podemos concordar num ponto: o de que a ética pop da cultura,
conforme definida pela TV, aplicou um estupendo golpe mortal na estética pós-moderna
que queria originalmente cooptar e redimir o pop. A televisão virou do avesso a velha
dinâmica de referência e redenção: hoje é ela que pega elementos do pós-moderno – a
metalinguagem, o absurdo, a fadiga sarcástica, a iconoclastia e a rebelião – e os
remodela para fins de assistência e consumo. Isso vem ocorrendo há algum tempo. Já
em 1984, um crítico do capitalismo como Frederic Jameson alertava que “o que
começou como um espírito de vanguarda foi ganhando corpo e virou cultura de massa”.

Mas o pós-modernismo não “ganhou corpo” na televisão de um momento para o outro


em 1984. Tampouco foram de mão única os vetores de influência entre o pós-moderno e
o televisivo. A principal conexão entre a televisão e a ficção contemporânea é histórica.
Ambas têm raízes comuns. A ficção pós-moderna – escrita quase exclusivamente por
jovens brancos do sexo masculino e de alto nível educacional – evoluiu claramente
como expressão intelectual da “cultura jovem rebelde” dos anos 60 e 70. E como toda a
Gestalt da rebelião jovem americana foi possibilitada por um veículo nacional que
apagou as fronteiras de comunicação entre regiões e substituiu uma sociedade dividida
em localidades e etnias por aquilo que os críticos do rock batizaram de “consciência
nacional estratificada por geração”, o fenômeno da TV teve tanto a ver com a ironia
rebelde do pós-modernismo quanto com as passeatas de protesto dos Peaceniks.

Na verdade, ao oferecer a escritores jovens de alto nível educacional uma visão


abrangente do quão hipócrita era a imagem que os Estados Unidos tinham de si mesmos
por volta de 1960, a televisão dos primórdios ajudou a legitimar o absurdismo e a ironia
não apenas como recursos literários, mas como respostas sensatas a um mundo ridículo.
Pois a ironia – a exploração do descompasso entre o que é dito e o que se quer dizer,
entre o que as coisas parecem ser e o que elas realmente são – é o velho e respeitável
modo pelo qual os artistas tentam expor e detonar a hipocrisia. E a televisão de 1960,
com seus faroestes de pistoleiros solitários, seus sitcoms paternalistas e seus policiais
durões, celebrava o que àquela altura era uma auto-imagem americana profundamente
hipócrita. Miller descreve bem como os sitcoms dos anos 1960, a exemplo dos faroestes
que os precederam,

negavam a progressiva impotência dos homens de classe média com imagens de força
paternal e individualismo viril. No entanto, no momento em que esses sitcoms foram
produzidos, o mundo dos pequenos negócios [cujas virtudes eram, à la Hugh Beaumont,
“contenção, probidade e capacidade de julgamento”] havia sido… superado por aquilo
que C. Wright Mills chamou de “demiurgo gerencial”, e as virtudes personificadas
por… Papai estavam na verdade ultrapassadas.

Em outras palavras, a TV americana dos primeiros tempos fazia uma apologia hipócrita
de valores cuja realidade tornara-se atenuada num período dominado por grandes
corporações, entrincheiramento burocrático, aventureirismo além-fronteiras, conflito
racial, bombardeios secretos, assassinatos, escutas telefônicas etc. Não se trata de
nenhum acidente que a ficção pós-moderna tenha ajustado sua mira irônica sobre o
banal, o ingênuo, o sentimental, o simplista e o conservador, pois essas eram
precisamente as características que a TV dos anos 60 parecia celebrar como
distintamente americanas.

A ironia rebelde da melhor ficção pós-moderna não era apenas plausível como arte;
parecia ter plena utilidade social em sua capacidade de fazer o que os críticos da
contracultura definiram como uma “negação crítica que deixasse evidente para todos
que o mundo não é o que parece ser”. A sombria paródia dos hospícios feita por Kesey
sugeria que os árbitros de nossa sanidade eram frequentemente mais malucos que seus
pacientes; Pynchon reorientou nossa visão da paranoia, promovendo-a de desvio
psicológico marginal a fibra principal no tecido corporativo-burocrático; DeLillo expôs
a imagem, o signo, a informação e a tecnologia como agentes do caos espiritual e não da
ordem social. As doentias investigações de Burroughs sobre o torpor americano
detonavam a hipocrisia; a denúncia de Gaddis do papel deformador do capital abstrato
detonava a hipocrisia; as repulsivas farsas políticas de Coover detonavam a hipocrisia.
A ironia da arte e da cultura do pós-guerra começou da mesma maneira que a rebelião
jovem. Era algo difícil, doloroso, mas produtivo – o soturno diagnóstico de uma doença
longamente negada. As premissas por trás daquela primeira ironia pós-moderna, por
outro lado, ainda eram francamente idealistas: supunha-se que a etiologia e o
diagnóstico apontassem para a cura, que a exposição do cativeiro conduziria à liberdade.

Então como foi que a ironia, a irreverência e a rebeldia se tornaram debilitantes, em vez
de libertadoras, na cultura sobre a qual a vanguarda de hoje tenta escrever? Uma pista
pode ser encontrada no fato de que a ironia ainda está aí, maior do que nunca, depois de
trinta anos como modo dominante de expressão dos artistas antenados. Não é um
recurso retórico que envelheça bem. Como diz Hyde (de quem eu obviamente gosto), “a
ironia tem uso apenas emergencial. Estendida no tempo, é a voz do prisioneiro que
passou a gostar de sua cela”. Isso se deve ao fato de que a ironia, embora prazerosa, tem
uma função quase exclusivamente negativa. É crítica e destrutiva, boa para limpar o
terreno. Com certeza era assim que nossos pais pós-modernos a viam. Mas é
particularmente inútil quando se trata de construir alguma coisa para por no lugar das
hipocrisias que expõe. Eis por que Hyde parece acertar ao dizer que a ironia renitente é
cansativa. Eu acho perversamente divertido ouvir o discurso de ironistas talentosos em
festinhas, mas sempre saio com a sensação de ter sido submetido a várias intervenções
cirúrgicas radicais. Sem falar em atravessar o país de carro ao lado de um ironista
talentoso, ou ler um romance de trezentas páginas em que não há nada além de
sarcasmo espertinho, experiências que nos deixam não apenas vazios mas, de alguma
forma… oprimidos.

Pense, por um momento, nos rebeldes do Terceiro Mundo e seus golpes de Estado.
Rebeldes do Terceiro Mundo são ótimos na tarefa de denunciar e por abaixo regimes
hipócritas e corruptos, mas parecem consideravelmente piores no trabalho mundano e
não-negativo de estabelecer em seguida uma alternativa superior de governo. Rebeldes
vitoriosos, na verdade, parecem se sair melhor quando usam seus talentos de força e
cinismo para evitar que outros se rebelem contra eles – em outras palavras, tornam-se
apenas tiranos mais competentes.

E não resta dúvida: a ironia nos tiraniza. A razão pela qual nossa difusa ironia cultural é
ao mesmo tempo tão poderosa e tão frustrante é que é impossível saber com clareza o
que quer um ironista. Toda a ironia americana se baseia num argumento implícito: “Na
verdade eu não quero dizer o que estou dizendo”. Mas então o que a ironia como norma
cultural quer dizer? Que é impossível querer dizer o que se diz? Que talvez seja mesmo
uma pena ser impossível, mas acorde para a vida e pare de sonhar? Acredito que no fim
das contas a ironia de hoje está provavelmente dizendo o seguinte: “Que coisa
absolutamente banal você me perguntar o que eu quero dizer”. Qualquer um que tenha a
petulância herética de perguntar a um ironista o que ele na verdade defende acaba por
parecer histérico ou careta. Eis o caráter opressivo da ironia institucionalizada, do
rebelde bem-sucedido demais: a capacidade de interditar a questão sem se reportar a seu
conteúdo é, quando exercida, tirania. Trata-se da nova junta de governo, usando a
própria arma que devastou seu inimigo para se encastelar.

É por isso que o uso do cinismo entediado feito por nossos amigos viciados em TV
como tentativa de parecerem superiores à TV é tão patético. É por isso também que o
cidadão que escreve ficção em nossa cultura televisiva está tão, mas tão ferrado. O que
fazer quando a rebeldia pós-moderna vira uma instituição cultural pop? Aí está, é claro,
a segunda resposta à questão de por que a ironia de vanguarda e a rebeldia perderam
potência e se tornaram malignas. Elas foram absorvidas, esvaziadas e reaproveitadas
pelo mesmo sistema televisivo que originalmente buscavam combater.

Não que a televisão seja culpada de alguma maldade aqui. Apenas de ter feito sucesso
tão desmedido. É isso, afinal, que a TV faz: identifica, suga e então reapresenta o que
imagina que a cultura americana quer ver e ouvir sobre si mesma. Ninguém e todo
mundo tem culpa pelo fato de a televisão ter começado a coletar exemplos de rebeldia e
cinismo como imago populi dos filhos antenados do pós-Segunda Guerra. Mas foi um
colheita macabra: as formas de nossa melhor arte rebelde tornaram-se meros gestos,
bordões, não apenas estéreis mas perversamente escravizantes. Como poderia a própria
ideia de rebelião contra a cultura corporativa conservar algum sentido quando a
Chrysler Inc. anuncia caminhões invocando “A rebelião Dodge”? Como ser um
iconoclasta genuíno quando o Burger King vende anéis de cebola com o slogan “Às
vezes você precisa quebrar as regras”? Como um autor de Ficção da Imagem pode ter
esperança de aguçar o senso crítico das pessoas para a cultura televisiva por meio de
paródias da TV como um empreendimento comercial voltado para os próprios
interesses, quando as paródias da Pepsi, da Subaru e da FedEx sobre comerciais
voltados para os próprios interesses rendem tanto dinheiro? É quase uma lição de
história: estou começando a entender exatamente por que os americanos da virada do
século 20 temiam o anarquismo e os anarquistas acima de tudo. Se a anarquia chega a
vencer, se a falta de regras vira a regra, o protesto e a mudança se tornam não só
impossíveis, mas incoerentes. Seria como votar em Stalin: um voto para acabar com
todos os votos.

Eis, assim, o quebra-cabeça diante do escritor americano que respira nossa atmosfera
cultural e, ao mesmo tempo, vê-se como herdeiro do que quer que houvesse de bacana e
valioso na literatura de vanguarda: como se rebelar contra a estética televisiva da
rebelião, como fazer os leitores acordarem para o fato de que nossa cultura televisiva se
transformou num fenômeno cínico, narcisista e essencialmente vazio, quando a
televisão celebra com regularidade precisamente essas características em si e em seus
espectadores? São as mesmas perguntas que o pobre popologista idiota de DeLillo já se
fazia em 1985 [em “Ruído Branco”] sobre a América, o mais fotografado dos celeiros:

“Como era o celeiro antes de ser fotografado?”, disse ele. “Qual era sua aparência, em
que aspectos ele diferia dos outros celeiros, em que pontos era semelhante aos outros
celeiros? Não podemos responder essas perguntas porque lemos as placas, vimos as
pessoas tirando fotografias. Não conseguimos nos colocar fora da aura. Somos parte da
aura. Estamos aqui, somos agora.”

Ele pareceu imensamente satisfeito com isso.

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