You are on page 1of 63

(P-532)

A VELHA
DE USTRAC
Autor
KURT MAHR

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização
VITÓRIO

Revisão
ARLINDO_SAN
(De acordo, dentro do possível, com o Acordo Ortográfico válido desde 01/01/2009)
Os calendários do planeta Terra e dos outros mundos
da Humanidade registram os primeiros dias do mês de
abril do ano 3.442.
Para Perry Rhodan e os outros terranos não
atingidos pela onda de deterioração mental de âmbito
galáctico, ou que já não o são — seu número, apesar de ter
aumentado para alguns milhares, é insignificante em
comparação com os bilhões de seres atingidos — surge
uma grande quantidade de tarefas importantes, difíceis de
serem cumpridas por falta de pessoal qualificado.
Os seres não atingidos tentam encontrar meios de
evitar o desastroso avanço do “Enxame” pela Galáxia;
fazem o possível para aliviar a situação de calamidade
reinante na Terra e em outros mundos habitados;
preocupam-se com o Império Secreto, cuja existência
parece representar mais uma ameaça; e tentam mobilizar
todas as forças inteligentes da Galáxia que ainda não
foram engajadas.
Esta última tarefa é sabotada pela Velha de Ustrac...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Cheborparczete Faynybret — Chefe do recém-fundado
Comando de Busca de Inteligências.

Orin Ellsmere — Ajudante de Faynybret.

Robert C. Hollingsworth e King Pollack — Colaboradores do


Major Ellsmere.

Frociwen Myn Cahit — Chefe do planeta de treinamento da


USO chamado Ustrac.

Major Bannerman — Ajudante de Myn Cahit.


1

Um encontro com belzebu não é para qualquer um.


Quando Vem Lanier, especialista de primeira classe, viu a figura de dois metros de
altura, cabeluda e chifruda com olhos vermelhos brilhantes sair do arco luminoso do
terminal de saída do transmissor, ele saltou do assento atrás do console de comando como
se tivesse sido impelido por uma mola. Gaguejante, proferiu as seguintes palavras:
— Quem... quem é o senhor...?
A figura de chifres ergueu o braço direito num gesto de paz que Vem Lanier
interpretou mal. Seus nervos se descontrolaram. Soltou um grito surdo e saiu correndo.
Não estava mais curioso para ouvir a resposta. Só queria sair dali — quanto mais longe
melhor. Com um salto enorme foi parar em uma das esteiras rolantes que levavam do
centro de transmissores ao quartel-general. Não soube calcular o salto. Perdeu o apoio,
tombou para a frente e ficou de quatro. Virou-se que nem um relâmpago e rolou para a
esteira seguinte, cuja velocidade era maior. Levantou a cabeça e olhou cuidadosamente
na direção em que ficava o transmissor. O homem de chifres continuava parado à frente
do arco luminoso. Estava com os braços apoiados nos quadris e a cabeça jogada para trás,
rindo.
Foi uma risada diabólica, de bode, que fez gelar o sangue nas veias de Vem Lanier.
Vem escondeu a cabeça entre os braços e deslizou de barriga para a escuridão do túnel,
onde estava protegido.
O chifrudo deu livre vazão à sua alegria. Estava acostumado a ser recebido dessa
forma. A figura de um minúsculo ser humanóide saiu do bolso esquerdo de seu traje
especial. O ser acomodou-se na bainha do bolso enquanto olhava para o encarregado do
transmissor que se afastava.
— Gostaria de saber que história vai contar ao seu pessoal — disse o baixinho.
— A de sempre, Morton — afirmou o chifrudo sorrindo.— As pessoas não põem a
imaginação a funcionar quando me vêem.
O ser virou-se quando houve outro movimento embaixo do arco luminoso. Acenou
com a cabeça, satisfeito, ao ver materializar seu ajudante Orin Ellsmere entre os
primeiros a chegar. Ellsmere cuidou imediatamente da organização dos recém-chegados.
O transmissor era grande e todos cabiam nele. Ellsmere levou-os para a direita, perto da
entrada do túnel no qual desaparecia a via larga de esteiras rolantes. Eram quatrocentos
homens e mulheres, a elite da inteligência humana, numa missão da qual dependia a
preservação de todas as civilizações galácticas.
Enquanto isso o chifrudo se dirigia ao console principal que Lanier abandonara de
uma forma tão vergonhosa. Das três grandes narinas que ficavam em cima da boca
saíram figuras esguias, móveis, parecidas com línguas, cada uma com fios preênseis
delicados, parecidos com tentáculos, na ponta. Ellsmere deu o sinal combinado e as três
línguas seguraram três botões, girando-os até que a série dos controles principais se
apagou. O zumbido agudo que enchera o pavilhão desapareceu. A operação de transporte
foi encerrada e o transmissor desativado.
Orin Ellsmere aproximou-se do chifrudo.
— Estão todos presentes, chefe — anunciou. — Não houve incidentes. Sugiro que
avancemos imediatamente em direção ao quartel-general.
Ellsmere era um terrano. Tinha cerca de um metro e oitenta e era de compleição
robusta. Mas quase chegava a ter uma aparência delicada perto do homem que acabara de
chamar de chefe.
O chifrudo virou o rosto para o túnel e deu a impressão de ficar na escuta por algum
tempo.
— Quero agir com cuidado — respondeu à sugestão do ajudante. — Não sabemos
qual é a situação em Ustrac. Se todos tiverem a mesma reação do homem que cuidava
deste console, podemos causar problemas avançando depressa demais.
Orin Ellsmere sorriu meio sem respeito. Conhecia o chefe e sabia que gostava de
vez por outra fazer sua aparência produzir nos seres humanos de origem terrana os
mesmos efeitos que seus antepassados tinham causado nas pessoas que viviam na Idade
Média durante suas visitas ocasionais à Terra.
— Em nome da diplomacia interestelar, — disse Ellsmere — estou pronto a fazer o
primeiro contato com as pessoas que vivem aqui. Deverei parecer bem normal para eles.
O chefe levantou a mão num gesto de advertência. Ruídos saíram do lado esquerdo
do túnel, que abrigava as esteiras que vinham em sua direção.
— Acho que não precisamos incomodar-nos — disse o chifrudo. — Já vem alguém
para ver-nos.
***
Respirando com dificuldade, quase louco de medo, Vem Lanier entrou correndo no
primeiro escritório que ficava no fim da via de esteiras rolantes. Um jovem tenente
levantou espantado atrás de um quadro de comando.
— Que houve com o senhor, cara?
— O diabo! — respondeu Lanier com a voz gutural. — Satanás em pessoa...
O tenente sorriu com uma expressão de desprezo.
— Soltou o bafo no meu rosto.
Lanier protestou.
— Mas eu o...
Uma porta abriu-se chiando. Um homem que usava os distintivos de almirante
apareceu na porta. A figura impressionava — era menor que a maior parte dos
subordinados, mas a largura do corpo era quase igual à altura. Frociwen Myn Cahit,
comandante supremo do mundo de treinamento Ustrac pertencente à United Stars
Organization.
— Que houve com este homem? — perguntou Myn Cahit com a voz retumbante.
O tenente ficou em posição de sentido.
— Diz que viu o diabo.
— Onde?
— Em... embaixo do transmissor, senhor — balbuciou Lanier. — Era...
— A transmissão foi devidamente anunciada? — interrompeu o almirante.
— Desde as dezoito horas, tempo local, senhor — respondeu o tenente. —
Prioridade de comando máxima de Quinto Center.
— Quem está chegando?
— Não sabemos, senhor. A identificação será fornecida na chegada.
Myn Cahit mantinha os braços longos cruzados nas costas. Contemplou Vem Lanier
com um sorriso estranho. Há algumas semanas este homem era tão tolo como a maior
parte dos habitantes de Ustrac. Mas quando se fez notar a influência estranha, que parecia
libertar principalmente os seres de origem terrana da diabólica deterioração mental que
embotava seu espírito, Lanier fora um dos seres em que a cura foi mais rápida. Fazia
apenas dois dias que se submetera a um teste de inteligência e se mostrara capaz de
realizar as tarefas dos especialistas de sexta categoria. Por isso fora escolhido para montar
guarda junto ao transmissor.
“Parece”, pensou o almirante, “que a debilidade mental ainda continua.”
Ou então o homem bebera em serviço.
O almirante virou-se para o tenente.
— Quero ver os recém-chegados.
O tenente deu um passo para trás e dispôs-se a mexer em alguns controles. Myn
Cahit fez sinal para que não o fizesse.
— Não na tela, mas de verdade. Transmita seu posto e arranje três homens da
guarda.
Os três homens e o revezamento do tenente apareceram dentro de instantes. Myn
Cahit e seus companheiros saltaram sobre a esteira rolante. Dentro de alguns minutos
atravessaram o túnel na sala dos transmissores. O almirante contemplou o cenário de um
relance. A figura que deixara Vem Lanier tão assustado era uma cabeça maior que os
outros. Myn Cahit já não acusava seu especialista. O forasteiro realmente parecia o diabo
em pessoa.
O almirante chegou perto dele. O desconhecido não trazia nenhum distintivo no
traje especial. Por isso Myn Cahit não julgou necessário fazer continência.
— Quem é o senhor? — perguntou.
— Cheborparczete Faynybret — respondeu o chifrudo com a voz aguda.
— Por ordem de quem veio?
— Por ordem do Administrador-Geral.
Myn Cahit não mostrou a surpresa que estas palavras lhe tinham causado.
— O senhor deve estar em condições de provar isso.
O Chefe fez sinal para que Ellsmere se aproximasse. Ellsmere usava distintivos de
major. Perfilou-se e o almirante viu-se obrigado a retribuir o cumprimento. Ellsmere
abriu um dos bolsos de seu traje e tirou uma placa estreita e elástica feita de um plástico
violeta. Entregou-a a Myn Cahit. A cor violeta representava prioridade máxima e sigilo
absoluto. Myn Cahit já estava quase acreditando que o chifrudo tinha vindo por ordem de
Perry Rhodan.
Prosseguiu no interrogatório em tom um pouco mais amável.
— Qual é o motivo de sua visita?
— Fui incumbido de submeter estas quatrocentas pessoas e todas as inteligências
aproveitáveis que se encontram em Ustrac a um programa de treinamento intensivo, a fim
de transformá-las em tripulantes de elite de espaçonaves.
Frociwen Myn Cahit estreitou ameaçadoramente os olhos sob as sobrancelhas
espessas.
— É bom que uma coisa fique logo esclarecida entre mim e o senhor — trovejou
sua voz. — Se foi enviado pelo Administrador-Geral, é bem-vindo. Está convidado a usar
as instalações deste mundo, para que possa cumprir sua tarefa. Pode fazer o que quiser
com seus quatrocentos subordinados. Mas é bom que não mexa naquilo que com tanta
arrogância chama de todas as inteligências aproveitáveis existentes em Ustrac. O
comandante aqui sou eu e ainda não fui demitido.
Myn Cahit caminhou em direção ao túnel. Antes de subir na esteira, virou a cabeça
enorme e disse por cima do ombro:
— Apareça oportunamente no meu escritório. Mandarei levá-lo aos alojamentos.
O Chefe compreendeu que antes de começar o trabalho propriamente dito tinha de
dobrar Frociwen Myn Cahit. E isto podia ser mais difícil que o próprio trabalho.
2

Verificou-se que as credenciais do chifrudo eram perfeitas. Myn Cahit mandara que
fossem indicados os alojamentos na área residencial próxima ao quartel-general aos
quatrocentos recém-chegados.
O almirante incumbiu seu ajudante, Major Bannerman, a discutir os detalhes da
tarefa com Cheborparczete Faynybret. Mas o Chefe conhecia o cerimonial e recusou-se a
receber o major. Mandou que seu ajudante cuidasse das negociações. No início a
conversa entre Ellsmere e Bannerman foi tão hostil que até parecia que em vez dos
ajudantes os próprios chefes estavam conduzindo as negociações.
— Está informado a respeito das instalações de Ustrac? — perguntou Bannerman
em tom formal.
— O suficiente — confirmou Ellsmere. — Sabemos que o planeta é usado há
tempos para o treinamento especial de agentes da United Stars Organization. Para isso
foram criados os setores de treinamento onde qualquer clima, qualquer ambiente e
qualquer situação podem ser simulados de forma convincente.
— Simulados não — corrigiu Bannerman. — Representados.
— Está bem. Representados.
— Cada setor, como diz o senhor, é formado por uma bolha energética que não
permite nenhum intercâmbio entre o conteúdo da bolha e o mundo exterior. As bolhas
variam de tamanho, mas nenhuma tem menos de cinquenta quilômetros de diâmetro. A
maior parte tem quinze quilômetros de altura ou mais, para que além da superfície de um
mundo estranho possa ser representada boa parcela do espaço aéreo.
— Eu já sabia e estou devidamente impressionado — respondeu Ellsmere em tom
frio.
Ellsmere e Bannerman tinham mais ou menos a mesma idade. Bannerman era mais
baixo, mas de estatura mais robusta. Ellsmere era louro e Bannerman moreno-escuro.
Bannerman era major da USO e Ellsmere servira numa nave da Frota Solar antes que a
catástrofe de deterioração mental desabasse sobre a Galáxia.
— Devia ser o senhor — disse Bannerman retomando o fio da conversa. — O que
foi criado aqui não tem igual na Galáxia. Ustrac é por natureza parecido com a Terra —
um pouco mais quente e de densidade um pouco maior, o que é a causa da gravidade
mais intensa. Na superfície deste mundo as condições ambientais de pelo menos mil
mundos foram reproduzidas com tanta perfeição que alguém que quisesse ter uma ideia
do ambiente desses mundos pode evitar anos de viagens cansativas. Basta dar uma olhada
por aí.
Ellsmere acenou com a cabeça. Parecia que a conversa o cansava.
— Para orientar a montagem desta estrutura incrivelmente complicada foi
construído um computador que dificilmente encontra igual nesta Galáxia — prosseguiu
Bannerman. Tinha gênio mais forte que o outro, e o esnobismo evidente de Ellsmere
começava a deixá-lo impaciente.
— Isso eu também sei — respondeu Ellsmere. — É o sistema hiperimpotrônico
central.
Bannerman coçou a cabeça.
— É o nome que lhe dão lá fora. Nós o chamamos de ASAC.
— ASAC?
— Absolute Simulation of Alien Conditions.
— Ah, sim.
— O senhor precisará do computador em seus programas de treinamento.
— Provavelmente — confessou Ellsmere.
— Pois o senhor deveria dar-se por satisfeito porque houve alguém que o
consertasse para o senhor.
Ellsmere parecia um tanto confuso.
— Sim, naturalmente. Não estava funcionando?
Bannerman deu uma risada sarcástica. Finalmente conseguira levar a melhor.
— Que é isso, cara? Já ouviu falar na catástrofe de deterioração mental?
Ellsmere achou que se rebaixaria se respondesse a esta pergunta.
— Um sistema impotrônico — prosseguiu Bannerman — é uma mistura de
positrônica e elementos orgânicos. Quando o processo de deterioração mental começou a
produzir seus efeitos, a parte orgânica de ASAC deu a louca. — Bannerman refletiu um
instante se devia relatar a Ellsmere os dias terríveis que se tinham seguido ao
enlouquecimento do computador gigante, mas resolveu que não, pois não acreditava que
o relato causasse a impressão que desejava. — Ustrac a esta hora provavelmente seria um
mundo deserto, se o Almirante Myn Cahit não tivesse agido em tempo.
— Ah, sim — disse Ellsmere. — Ele agiu. Como?
— Entrou no computador e separou a parte orgânica do resto.
Ellsmere ficou impressionado. Tornou-se difícil dar uma expressão de tédio ao seu
rosto.
— Interessante — observou em tom seco.
Bannerman ficou furioso.
— É claro que só pode ser interessante — exclamou em tom exaltado. — Afinal
salvou um mundo para o Império, um mundo cujas instalações devoraram bilhões de
solares. Myn Cahit arriscou a vida para consertar o computador, e de repente aparece um
bode qualquer de Podunk ou sei lá de onde...
— Suponho que esteja falando de meu chefe — interrompeu Ellsmere em tom frio.
— E não posso admitir que use essas expressões.
Bannerman reconheceu que tinha ido longe demais.
— Retiro esta observação — disse.
Ellsmere ficou calado algum tempo.
— Podunk, Honolulu, Caixa-pregos e sei lá o que costumam ser usados para
designar lugares que só deus sabe onde ficam. Todo mundo sabe que Honolulu existe. O
senhor sabia que Podunk também existe?
Bannerman levantou os olhos surpreso. Depois do deslize que cometera esperava o
golpe de morte, mas o adversário estava ampliando o tema da discussão.
— Não existe de verdade — respondeu em tom cauteloso. — Existe um rio
chamado Podunk. Nasci perto dele.
Ellsmere ficou radiante.
— É mesmo? Qual é a cidade?
— Windsor — respondeu Bannerman.
Ellsmere levantou de um salto e deu uma pancada em seu ombro.
— Pois eu sou de Rockville! Que tal?
Bannerman ficou entusiasmado. Os dois apertaram-se as mãos.
— Quem diria? — entusiasmou-se Ellsmere. — Fica-se viajando milhares de anos-
luz numa galáxia e quem a gente encontra? Um homem da aldeia vizinha. Windsor,
Rockville. São trinta quilômetros, não é?
— Vinte e oito — respondeu Bannerman em tom seco.
Deram vazão ao entusiasmo por algum tempo, antes de voltar à ordem do dia.
Bannerman encarou seu interlocutor com uma expressão alegre.
— Como yankees de Connecticut — sondou cuidadosamente — talvez possamos
liquidar o assunto sem hostilidades impostas pelo protocolo.
— Naturalmente! — concordou Ellsmere. — Meu bode e seu almirante quadrado
podem brigar à vontade. Não temos nada com isso.
***
Encerrada a conferência, Orin Ellsmere voltou ao seu escritório. Suas salas ficavam
bem ao lado das de seu superior, num edifício baixo, que continha salas de escritório na
ala oeste e alojamentos na ala leste. O colaborador mais chegado de Ellsmere, Tenente
Robert C. Hollingsworth, mais conhecido por Bob ou Holli, e o sargento King Pollack,
dividiam um escritório amplo que ficava ao lado do de Ellsmere e que este tinha de
atravessar para alcançar sua escrivaninha.
Pollack estava recostado numa poltrona articulada, com o rosto vermelho e
contrariado, enquanto Holli se dispunha a decorar a sala. Estava prendendo uma foto na
parede em frente à sua escrivaninha. A foto mostrava uma mulher escassamente vestida,
cuja pele escura juntamente com as características femininas exageradamente acentuadas
para os padrões terranos eram sinal de que ela descendia de um dos mundos de Vega.
O tenente não se incomodou nem um pouco com a entrada de Ellsmere. Recuou de
sua montagem e examinou-a, com as mãos apoiadas nos quadris. Suspirou.
— É pena que estas coisas não existem aqui — filosofou. — Com elas talvez daria
para suportar a vida que levamos.
Pollack fungou em tom de desprezo.
— Dentro de cinco dias o senhor se cansaria e eu seria obrigado a procurar outra
foto.
Holli aproximou-se de Ellsmere simulando com perfeição que estava indignado.
— Senhor major, dê-me outro ordenança! — suplicou. — Este homem é
insuportável. Não posso dizer uma palavra sem que ele tenha uma observação a fazer.
— É porque suas palavras têm de ser completadas para fazer sentido — observou
Pollack.
— Está vendo? — queixou-se Holli. — Não pode deixar de fazer observações.
Ellsmere sorriu. Trabalhava há três anos com essa equipe. Hollingsworth era um
namorador — ou ao menos fingia — enquanto Pollack bancava o eterno ranzinza.
Pollack e Holli viviam brigando, enquanto a situação era normal. O fato é que os dois
eram pessoas muito úteis e ativas.
— Você logo terá sua oportunidade, Holli — prometeu o tenente. — O Chefe
recebeu ordem de vasculhar Ustrac em busca de elementos aproveitáveis. Quem sabe se
ai você não encontra o que tanto procura?
— Por exemplo uma bomba sexual de uma dama-tartaruga de Abu Nasir —
escarneceu Pollack. — Ou uma moça-serpente de Passa com dois umbigos.
Holli fez um gesto que significava: Está vendo?
Ellsmere ficou sério.
— Sem falar em fotos tipo torta de queijo e poltronas confortáveis — o que vocês
fizeram neste meio-tempo?
Pollack deu ao seu rosto uma expressão de ofendido.
— Garantimos a segurança de todo o alojamento. Examinou-se cada fresta e nicho,
cada vaso de flores e torneira. Não há aparelhos de escuta.
Ellsmere acenou com a cabeça. Parecia satisfeito. Pollack, um homem natural de
Marte que adquirira o hábito de fingir falta de ar e outras doenças, era um excelente
especialista em positrônica. Se não tinha encontrado aparelhos de escuta era porque não
havia.
— Já experimentei o terminal que nos liga com o centro de computação local —
informou Hollingsworth. — A máquina merece confiança, mas sua capacidade é um
tanto reduzida. Precisaremos de mais que isso se quisermos cumprir nossa tarefa num
tempo razoável.
Ellsmere confirmou com um gesto.
— Entre em contato com o Major Bannerman. Ele o ajudará. Diga que falou
comigo.
Ellsmere entrou no escritório e deixou que a porta se fechasse atrás dele. Instalou-se
confortavelmente na poltrona atrás de sua escrivaninha, colocou os pés sobre a mesa e
deu-se ao luxo de refletir à vontade por alguns minutos.
***
Fazia mais de um ano que a desgraça tinha atingido a Galáxia. Junto às áreas
periféricas da Via Láctea aparecera a formação esquisita que costumava ser chamada de
“Enxame” — que por sua vez formava uma pequena galáxia com sóis, planetas e objetos
voadores espaciais. Ninguém sabia quem governava o “Enxame”. Ninguém sabia quais
eram seus objetivos. Só se sabia que tinham conseguido mergulhar quase todas as
inteligências da Galáxia num estado de completa debilidade mental.
O caos reinava em toda parte. Poucos tinham escapado ao desastre. Estas pessoas
eram chamadas de mentalmente estabilizadas. Resistiam à deterioração mental ou porque
a natureza lhes dera faculdades especiais, ou então porque possuíam um aparelho que
neutralizava o processo. Cabia a estes poucos tentar impedir o avanço da catástrofe. Sua
tarefa era salvar entre os destroços o que ainda podia ser salvo. Enquanto o “Enxame”
continuava a avançar pela Galáxia, ninguém podia dizer se a missão quase suicida desses
poucos seres que tinham conservado a inteligência tinha alguma chance. Era possível que
sem saber estivessem na situação de um homem que tenta conduzir um pequeno barco a
vela contra um terrível furacão.
Quem conduzia a operação era Perry Rhodan, Administrador-Geral do Império
Solar. Perry Rhodan era um homem que reunia a sabedoria e a capacidade de ação. Além
disso possuía dentro de si a obstinação dos homens naturais do planeta Terra, que
continuavam a lutar contra a desgraça mesmo quando tinham certeza de que estavam
condenados a desaparecer.
A tarefa principal consistia em reativar ao menos em parte o complicado sistema de
abastecimento. E naturalmente reunir todas as inteligências intactas escondidas nos mais
diversos cantos da Via Láctea. Essa tarefa fora confiada ao homem de chifres e olhos
vermelhos brilhantes.
Este homem decidira montar seu quartel-general no mundo de treinamento da USO.
Era acompanhado por quatrocentas mulheres e homens, todos de origem terrana, mesmo
que não tivessem nascido na Terra. Tinham escapado ao processo de deterioração mental
por este ou aquele motivo. Eram especialistas, cada um em sua área. Todos dominavam
os princípios da Galatonáutica. Nenhum deles possuía um QI abaixo de 165. Deste grupo,
decidira o Chefe, formaria as tripulações de trinta grandes naves de transporte.
Este número de forma alguma era produto de sua fantasia. O computador central de
Quinto Center chegara à conclusão de que era necessária uma tripulação de pelo menos
doze ou quatorze pessoas muito bem treinadas para dirigir uma nave cargueira de grande
porte. Tratava-se de um veículo espacial esférico de dois quilômetros e meio de diâmetro.
Com trinta naves cargueiras seria possível dirigir-se a mundos distantes e isolados por
causa da catástrofe e fornecer-lhes as coisas mais necessárias. Com trinta naves gigantes
seria possível recolher todos aqueles que tinham escapado ao terrível processo de
deterioração mental. As pessoas assim reunidas podiam por sua vez formar tripulações de
espaçonaves. Desta forma se formaria com o tempo uma avalanche que talvez pudesse
deter a desgraça.
Era ao menos o que pensavam o Chefe e seus companheiros. Estariam em maus
lençóis se não tivessem conservado a crença firme no êxito da operação.
O Chefe nunca teve a menor dúvida de que a operação teria de ser iniciada em
Ustrac. Era o único lugar em que havia as necessárias instalações de treinamento
concentradas num espaço relativamente pequeno. O treinamento de seu pessoal seria feito
quase exclusivamente por meio de métodos psicofísicos. Para isso precisava do
computador Star da United Stars Organization — ASAC.
As naves que o Chefe queria tripular com seus grupos de elite estariam em
condições de decolar dentro de pouco tempo. Ustrac ficava numa posição favorável no
que dizia respeito às condições de tráfego. A distância da Terra era de 32.419 anos-luz.
Bem perto do mundo de treinamento, a apenas vinte e nove anos-luz de distância, ficava
o planeta médico Tahun.
Durante a viagem aos mundos completamente isolados da Via Láctea os homens e
mulheres pertencentes aos comandos de Cheborparczete Faynybret ficariam expostos aos
mais variados perigos. A Via Láctea já não era um lugar tão seguro como fora ainda há
pouco tempo. Os donos do “Enxame” não limitavam sua ação às áreas sob seu controle.
Enviavam gigantescas espaçonaves ou frotas inteiras à frente do “Enxame” ou por rotas
laterais. Quem viajasse perto do “Enxame” faria bem em ter o mesmo cuidado que
tiveram os navios das linhas espanholas há quase dois mil anos no mar das Caraíbas.
Por isso era necessário que além de lidar com espaçonaves de grande porte os
membros do comando também aprendessem a sobreviver em ambientes estranhos. E para
isso Ustrac também era mais adequado. Desde o início da existência da USO ali eram
treinados agentes para enfrentar condições ambientais completamente estranhas e hostis.
Os recursos de treinamento não poderiam ser mais sofisticados. Qualquer ambiente podia
ser imitado até nos menores detalhes.
Era claro que no treinamento dos quatrocentos especialistas não seria poupado
dinheiro nem esforços. Pela primeira vez na história da Terra e do Império Solar surgira o
caso em que cada um, todo indivíduo pensante, era tão precioso que em hipótese alguma
devia ser perdido.
Era um programa gigantesco. Ainda não se sabia se seria coroado de êxito. Mas ele
se baseava numa motivação: a capacidade de ação sem limite. Para o Major Orin
Ellsmere isso seria motivo suficiente para dedicar-se a ele com todas as suas forças.
***
Ustrac era o terceiro planeta do sol Impron e tinha quase o mesmo diâmetro que a
Terra. Sua densidade era maior e a gravidade em sua superfície chegava a 1,13 da
normal. Ustrac era um mundo quente. A temperatura média anual na superfície do
planeta era de quase trinta e um graus centígrados. O dia em Ustrac durava vinte e nove
horas, trinta e dois minutos e cerca de vinte e cinco segundos.
Às vinte e oito horas do dia em que pusera os pés pela primeira vez nesse mundo, o
Chefe convocou uma conferência tática com seus colaboradores mais importantes.
Estava sério quando se dirigiu, aos membros principais de sua equipe na sala de
reuniões de um dos edifícios que Frociwen Myn Cahit lhe cedera.
— Iniciaremos imediatamente a execução de nossa tarefa — anunciou com a voz
dura. — Todos sabem como é importante que sejamos bem-sucedidos. Não podemos
perder um segundo.
O Chefe olhou em volta. À sua frente estavam quinze homens e oito mulheres. Ele
fizera deles suas pessoas de confiança nos meses que passara em Quinto Center. Eram
pessoas nas quais podia confiar. Para Cheborparczete Faynybret, um especialista parapsi,
as noções tradicionais como dedicação e lealdade não tinham nenhuma importância. As
pessoas reunidas à sua frente tinham identificado o objetivo com a mesma clareza que
ele. E o fato de terem compreendido que esse objetivo tinha de ser alcançado para que a
Galáxia fosse salva fizera deles colaboradores de toda confiança. Somente isto.
— Nosso plano de ação deve sofrer uma pequena modificação — prosseguiu. —
Não esperava encontrar um homem que apesar dos poderes que me foram concedidos por
Perry Rhodan e diante da catástrofe final coloca sua ambição acima de todas as outras
coisas. — O Chefe não pronunciou o nome, mas todos sabiam a quem ele se referia. —
Por enquanto desistiremos do plano de procurar pessoas aproveitáveis entre os habitantes
de Ustrac. Ficaremos entre nós e levaremos avante nossa missão num quadro mais
restrito, mas com toda energia de que dispomos. Há de chegar o tempo em que as
autoridades de Ustrac também compreenderão que é necessário colaborar conosco.
Quando chegar esse dia, nosso plano original será retomado.
“O major Ellsmere e a cientista especializada Velez dividirão o pessoal em grupos
de doze a quatorze pessoas. As diretrizes para essa divisão já são conhecidas. Os
membros de cada grupo devem completar-se no caráter e nos conhecimentos básicos. O
que precisarem além disso, nós lhes ensinaremos. Espero ver uma lista completa de todos
os grupos sobre minha escrivaninha. O programa de treinamento será iniciado amanhã.”
O Chefe levantou a mão direita e abriu os quatro dedos grosseiros, que
evidentemente tinham alguma semelhança com cascos de animais, num gesto de
dispensa. Orin Ellsmere aproximou-se da saída, dirigindo seus companheiros Pollack e
Hollingsworth à sua frente. Hollingsworth não prestava atenção onde pisava; ficava com
o rosto voltado para o lado, pois não queria perder por um Instante a visão
impressionante da cientista Nuna Velez. Ellsmere impacientou-se e deu-lhe um soco nos
quadris. Antes que Holli pudesse reagir, o Chefe voltou a falar.
— Gostaria que levassem uma ideia minha. Seguimos o princípio da não-
-interferência. Ficaremos fora das atribuições de Myn Cahit. Mas se alguém pudesse
fornecer dados seguros a respeito da população de Ustrac, se possível separada em
elementos aproveitáveis e inaproveitáveis, eu talvez seria capaz de me mostrar grato.
O gesto de dispensa foi repetido. Ellsmere empurrou os dois companheiros pela
porta. Já no corredor, King Pollack virou-se para ele. Fungava e suava. Mas seus olhos
brilhavam.
— Ele sabe muito bem que pode confiar em nós, não é?
Ellsmere levantou o dedo num gesto de advertência.
— Ninguém falou de você, King. Não pense que o Chefe depende de seus truques
baratos de arrombador. Fique fora disso.
— Devo considerar isso uma ordem? — retrucou o sargento sem abalar-se.
Ellsmere engoliu fortemente em seco.
— Não — disse. — Mas não se deixe pegar. Isto é uma ordem.
Em seguida virou-se para Hollingsworth. Holli ficara alguns passos para trás.
Continuava de olho em Nuna Velez. Ellsmere parou e deixou que esbarrasse nele. Holli
sorriu embaraçado e pediu desculpas.
— Quando você estiver com os olhos no lugar em que deviam estar segundo sua
profissão, eu lhe direi o que deve fazer.
— Pelos quatorze meses de ordenado, inclusive adicional de ação... que mulher! —
suspirou Holli.
— Está me ouvindo?
— Sempre. Sou todo ouvidos quando meu major me dirige a palavra.
— Entre em contato com Bannerman. Quero dar uma olhada no centro de
processamento de dados principal. Talvez tenhamos de postar alguns dos nossos homens
lá.
— Posso convidar Nuna?
— Para quê?
— Para inspecionar o centro de computação.
— Deixe que ele faça o que quer, senhor — sugeriu Pollack. — A Velez lhe dará o
fora tão depressa que nem terá tempo para dizer ai.
Holli fez-se de zangado.
— Vamos apostar! Estou disposto a apostar com você, seu suboficial doente do
coração.
— Quanto? — perguntou Pollack.
— Cinco solares.
Hollingsworth fitou Ellsmere com uma expressão indagadora.
— Por mim pode convidá-la. — Ellsmere sorriu. — Que tal dois por um?
— Holli fez uma careta.
— Dois solares e meio se ganharmos...?
— Se ganharmos? Estou do lado de Pollack. Se você ganhar receberá dez solares.
Holli fez-se de ofendido.
— Vocês não confiam em meus encantos? Bem, terão uma surpresa. Mantenho o
dois contra um.
Uma vez de volta ao escritório, entrou em contato com o Major Bannerman. O
major estava disposto a fazer a inspeção imediatamente. Combinaram-na para as vinte e
nove horas, tempo local.
***
Havia muitos motivos convincentes para que os sistemas de computação mais
importantes fossem instalados no subsolo. A segurança em caso de defesa e os custos
mais baixos em relação às instalações montadas na superfície eram os mais importantes.
O sistema hiperimpotrônico central, o gigantesco cérebro artificial de Ustrac, que dirigia
os inúmeros ambientes criados para fins de treinamento, não era nenhuma exceção.
Na instalação dos computadores orgânico-positrônicos costumava-se pensar muito
em economia de espaço, mas a impotrônica fora criada como um monstro desde o início.
O complexo de computação cobria uma área de aproximadamente duzentos pavimentes
com seis metros de altura em média e uma superfície circular de cem quilômetros de
diâmetro. Se admitirmos que a área de uma metrópole típica do Império Solar era de
cerca de mil quilômetros quadrados e a altura do espaço vital urbano devia chegar a cem
metros acima de todos os edifícios, chega-se a um resultado surpreendente. O sistema
hiperimpotrônico central de Ustrac, chamado de ASAC, ocupava um volume equivalente
ao de vinte e cinco metrópoles.
Os computadores híbridos — que reuniam elementos de armazenamento,
comandado e controle orgânicos e positrônicos, logo se tomaram populares depois que se
aprendeu a usar substâncias orgânicas para este fim. O elemento de memória do sistema
positrônico era uma partícula magnética microscópica. Já a memória elementar da parte
orgânica era formada por uma molécula submicroscópica. Entre os dois extremos havia
uma diferença de oito a doze vezes. Precisava-se de um centímetro cúbico de matéria
orgânica para transmitir as informações que no sistema positrônico ocupariam um espaço
equivalente a um edifício de tamanho médio.
Na verdade as desvantagens dos sistemas de computação orgânicos eram quase tão
grandes como as vantagens. Eram mais lentos. Os sinais orgânicos devem ser incluídos
na classe dos impulsos nervosos. Sua velocidade em comparação com os sinais
positrônicos é a de uma lesma comparada com um cão galgo. A utilização de um bit, que
era a fração indivisível de informações, levava vários milissegundos no sistema orgânico.
O sistema positrônico fazia o mesmo trabalho em alguns picossegundos.
Percebera-se desde o início que os dois elementos se completam. Quando o mais
importante era uma grande capacidade de armazenamento — como por exemplo nos
bancos de dados científicos — predominavam os sistemas orgânicos da impotrônica. Mas
quando se fazia questão da rapidez — como nos computadores de controle e direção das
espaçonaves — o sistema positrônico ocupava o primeiro lugar.
Antes que o Almirante Myn Cahit separasse a componente orgânica do resto do
computador, esta formava pouco menos de dez por cento do total. Isso correspondia à
utilização completa do computador. Para controlar programas de treinamento
complicados, nos quais seres humanos deviam agir certo numa questão de segundos sob
milhares de condições diferentes, precisava-se da velocidade que só podia ser garantida
pelos computadores positrônicos.
O Major Bannerman foi buscar os três hóspedes em seus alojamentos. Planadores
levaram-nos ao edifício de dois andares que se erguia bem ao lado do colosso do quartel-
-general propriamente dito, ao qual estava ligado por várias passarelas fechadas.
Bannerman levou as pessoas que o acompanhavam por uma ante-sala e os fez entrar num
pavilhão redondo, onde se desenvolvia diante dos olhos dos observadores o trabalho da
sala de controle de um centro de computação. Havia homens e mulheres sentados à frente
de consoles e telas de imagem, luzes piscavam, instruções codificadas saiam dos alto-
-falantes em voz baixa.
Orin Ellsmere não escondeu o desapontamento. Pensara que a sala de controle fosse
maior. Nunca se ocupara muito com computadores; isso cabia a Holli e em parte a
Pollack. Mas formara uma imagem diferente do centro que controlava o computador
gigantesco de Ustrac.
Bannerman devia ter notado a expressão de desapontamento em seu rosto.
— Aqui — explicou sorrindo — são recebidos os pedidos de informações que as
pessoas de todos os cantos do planeta dirigem ao computador por meio de ligações a
grande distância. O computador recebe diretamente todos os pedidos de informações e
responde àquelas que podem ser enquadradas em seu esquema operacional. As que levam
mais tempo ou não são formuladas com a necessária clareza são transferidas ao ponto de
controle, onde são processadas e são desenvolvidas ao remetente sem respostas ou
introduzidas no ASAC com novas instruções.
Ellsmere sentiu-se aliviado e surpreso ao mesmo tempo. Havia pelo menos oitenta
pessoas no pavilhão.
— Deve haver muitos postos de recepção em Ustrac, uma vez que são necessárias
tantas pessoas para tratar somente dos casos excepcionais.
Bannerman balançou a cabeça.
— Não se trata apenas da escolha — respondeu, — O mais importante é no caso a
frequência. Em Ustrac existe mais de quatro mil terminais e cada um deles funciona vinte
e nove horas por dia.
Ellsmere respondeu com um olhar indagador.
— Não se esqueça da situação em que nos encontramos — disse Bannerman. — O
número de habitantes de Ustrac chega a cerca de doze milhões. Acontece que noventa e
nove por cento deles foram atingidos pela catastrófica onda de deterioração mental e seu
passatempo predileto consiste em fazer perguntas estúpidas ao ASAC.
— E os senhores se dão ao trabalho de examinar todas as perguntas? Acho que a
maior parte das perguntas é formulada de uma maneira que o computador tem de
transferi-las a este centro de controle para serem examinadas.
Bannerman confirmou comum aceno de cabeça.
— O senhor tem toda razão; Quase toda a estupidez concentrada que doze milhões
de seres primitivos podem digitar num teclado acaba neste pavilhão. É claro que não
temos pessoal suficiente para cuidar de tudo isso. Mas fazemos o que está ao nosso
alcance.
— Por quê?
A voz de Bannerman parecia amargurada.
— Porque a investigação estatística das perguntas permite descobrir as mudanças do
nível de deterioração mental. Há algum tempo verificamos que o conteúdo de
racionalidade médio das perguntas está aumentando. Investigamos o assunto e
descobrimos que as perguntas mais sensatas foram formuladas exclusivamente por seres
de origem terrana. — A amargura desapareceu. — É claro que estas coisas podem ser
apuradas. Primeiro, os terminais são diferentes um do outro. Os seres humanos usam
teclas cuja superfície é de dois ou três centímetros quadrados. Já os seres braquidáctilos
precisam de teclas com pelo menos, vinte centímetros quadrados. Outros nem usam
teclas, mas trabalham com impulsos luminosos. Em outras palavras, sabemos que
terminais são usados por seres humanos e quais não o são. As perguntas cujo grau de
inteligência aumentou ultimamente vieram quase todas de terminais construídos para os
terranos.
Ellsmere ficou impressionado. O método usado era simples e infalível.
— Depois que se recuperou da primeira decepção, — ironizou Bannerman —
gostaria de mostrar-lhe o centro de controle propriamente dito. Refiro-me ao lugar em
que é feito efetivamente o trabalho.
Bannerman conduziu seu acompanhante entre dois consoles de imagem e o fez
entrar numa sala secundária completamente vazia.
— O senhor se encontra na cabine de um elevador — observou.
Era uma sala mais ou menos quadrada com cerca de vinte tetros de lado. Daria um
bom salão de danças, pensou Hollingsworth. A viagem só durou alguns segundos, mas
quando saíram da cabine do elevador Bannerman disse:
— Estamos mais ou menos a quinhentos metros de profundidade, pouco acima do
centro do poço ocupado pelo ASAC.
Entraram num corredor largo, de teto alto, cheio de esteiras rolantes. Depois de
alguns metros as esteiras dobravam ligeiramente para a esquerda. Bannerman saltou da
esteira bem na curva e apontou para um portal embutido na parede do corredor. Seus
companheiros seguiram-no.
Viram um gigantesco recinto semicircular mergulhado na penumbra. O portal ficava
no ápice do círculo, que era fechado do outro lado por uma parede larga e alta. O chão
descia em patamares a partir da entrada. Nos patamares viam-se consoles e telas de
imagem junto aos quais homens e mulheres trabalhavam em silêncio. A maior parte da
parede oposta era ocupada por uma gigantesca tela de imagem na qual deslizavam
rapidamente textos escritos em letras de um metro de altura — tão grandes que todos que
se encontravam no pavilhão podiam lê-las. O zumbido da aparelhagem eletrônico-
-positrônica enchia o recinto e parecia fazer vibrar o ar. Fora disso quase não se ouvia
nenhum ruído. As pessoas que trabalhavam no lugar usavam fones de ouvido e
minúsculos microfones do tamanho de uma cabeça de alfinete grudados na laringe.
Ellsmere ficou impressionado. O semicírculo tinha pelo menos trezentos metros de
diâmetro. A largura de cada terraço era de cinco metros e a diferença de altura chegava
mais ou menos a um metro e meio. Cerca de trinta degraus se estendiam até o chão do
pavilhão. Antes da parede final só restava uma pequena área plana. Ellsmere forçou a
vista e descobriu duas portas que passavam pela parede embaixo da tela gigante.
Perguntou a Bannerman para que serviam.
— É a entrada da sala de computação — informou o major. — A entrada principal
por assim dizer. A máquina cuida de sua própria manutenção. Conserta seus erros de
função e realiza os reparos. Pelas nossas estatísticas só deve surgir uma vez em cada dois
mil anos o caso em que os reparos exigem a utilização de pessoal. É claro que as
estatísticas se baseiam naquilo que costuma ser chamado de situação normal. No
momento tem pouca validade.
— Myn Cahit usou uma dessas portas para chegar perto da máquina? — quis saber
Ellsmere.
— Não. Existe outro acesso que desce diretamente do quartel-general. Myn Cahit
usou este acesso, apesar de com a aproximação a célula orgânica do computador
aumentar de tamanho mais ou menos cinco vezes.
— Se é assim, por que usou essa entrada?
Bannerman sorriu.
— Ele teve uma sensação esquisita, como se tivesse de iludir a máquina. O ASAC
dispõe de mecanismos de defesa que são usados contra intrusos. Dentro de certos limites
podemos dizer ao ASAC quais são as pessoas autorizadas para entrar. Mas em situações
críticas, quando o intruso mexe em instalações vitais dentro do computador, o ASAC não
obedecerá às nossas instruções e se defenderá. Myn Cahit achou que a máquina
desconfiaria logo se usasse o caminho mais direto para aproximar-se da componente
orgânica. Por isso resolveu seguir um caminho mais longo. Provavelmente nunca
saberemos se foi bem-sucedido por causa disso ou apesar disso.
Ellsmere contemplou as duas portas numa estranha mistura de curiosidade e mal-
-estar. Ainda não imaginava que dentro de pouco tempo os dois acessos do centro de
computação desempenhariam um papel importante para ele.
3

Depois de sair do centro de processamento de dados, Bannerman não voltou


diretamente ao elevador, mas levou seus acompanhantes mais um pedaço pelo corredor
cheio de curvas. O corredor terminava num pavilhão amplo, de teto baixo, no qual
centenas de placas luminosas espalhavam uma claridade ofuscante.
A luz era refletida de forma brilhante, cintilante, pelas superfícies metálicas de
milhares, dezenas de milhares de figuras esquisitas, que se misturavam na maior
desordem, mas permaneciam imóveis. Eram maiores que um homem e pareciam os
produtos de uma fantasia desvairada que quisesse imitar o corpo humano, servindo de
componentes somente cubos e prismas.
A série de esteiras rolantes desapareceu no chão. Bannerman e seus companheiros
saltaram da esteira e levaram algum tempo contemplando em silêncio a reunião de robôs
cintilantes e imóveis.
— São robôs pos-bis — disse Bannerman depois de algum tempo. — São tão
perigosos como ASAC antes que Myn Cahit isolasse a componente orgânica. São uma
mistura de elementos positrônicos e orgânicos, da mesma forma que o computador.
Tivemos de desativá-los. Só Deus sabe o que teriam aprontado se não o fizéssemos.
King Pollak sentia-se no seu elemento. Os robôs eram sua especialidade. King
caminhou em direção ao mais próximo e examinou-o detalhadamente. Admirou os
enormes preênseis, o encaixe perfeito dos prismas e cubos que formavam o corpo do robô
e os censores luminosos dispostos em facetas que serviam de olhos aos seres mecânicos.
Estava deslumbrado. Para ele a capacidade do homem de recriar-se num ser
mecânico sempre representara a maior conquista, o grande triunfo do espírito humano.
Para ele os robôs eram seres vivos, quase tão vivos como o Tenente Hollingsworth, o
Major Ellsmere ou qualquer outra pessoa.
Triste, passou a mão por um dos braços, como se a máquina precisasse de consolo e
ele pudesse dá-lo dessa forma. Finalmente virou-se para outro lado.
Orin Ellsmere perguntou:
— O senhor pretende fazer com que os robôs se transformem em sucata ou existe
um plano de colocá-los novamente em condições de serem usados?
— Estamos trabalhando para isolar suas componentes orgânicas — respondeu
Bannerman, ao qual fora dirigida a pergunta. — Acontece que temos coisas mais
importantes a fazer. Por isso o projeto só avança devagar. Ao contrário do ASAC, estas
máquinas são formadas metade por elementos orgânicos e metade por elementos
positrônicos. Se isolarmos a componente orgânica, teremos na melhor das hipóteses um
robô mentalmente atrasado, quase inútil. Por isso não temos muita pressa.
Pollack apontou para o exército de robôs imobilizados.
— Mas estes robôs estão completamente intatos, senhor.
Bannerman fez que sim com a cabeça.
— Estão na plena posse de suas faculdades. Só foram desativados.
O grupo voltou à esteira rolante. Pollack foi o último. Antes de subir na esteira,
olhou para trás. Examinou o robô que estava na frente e teve a impressão de que o braço
que há poucos minutos acariciara num gesto de consolação se movera para o lado.
***
Bem tarde, de noite, cerca de duas horas antes do raiar do dia, o sargento King
Pollack começou a trabalhar. Ouvira o Chefe pedir informações a respeito dos habitantes
de Ustrac e tivera a Impressão de que o pedido fora dirigido exclusivamente a ele. Quem
mais poderia realizar uma tarefa como esta?
Pollack fizera um plano que continha o menor risco possível. Isso era importante,
pois Ellsmere lhe dera ordem para que em hipótese alguma se deixasse pegar. O sargento
não sabia muito bem quais eram suas chances. Mas se não o agarrassem, poderia voltar a
tentar de dia ou no dia seguinte.
Pollack saiu a passos rápidos do conjunto de habitações e escritórios em que o
Chefe e seus companheiros tinham sido alojados. Todo mundo estava dormindo.
Ninguém, pelo que pôde constatar, notou sua saída. O sargento foi para perto de uma
coluna de chamada e apertou o botão que chamava os veículos. Dali a instantes um
pequeno planador aproximou-se zumbindo ligeiramente. Pollack entrou. Numa tela que
não tinha mais de dois palmos apareciam os contornos do terreno e dos edifícios. Pollack
não teve nenhuma dificuldade em identificar os contornos do quartel-general e ao lado
dele o edifício de dois andares em que ficava o centro de controle. Digitou o número de
algarismos que identificava o edifício de dois andares no decodificador do veículo. O
planador partiu e dali a alguns minutos largou-o perto do destino.
Pollack entrou imediatamente na sala de controle. Parecia que havia menos gente
trabalhando que de dia. Pollack viu uma série de telas de imagem e consoles vazios. Fez a
escolha com muito cuidado. Optou por uma em cujas imediações só havia um console
ocupado. Nesse console trabalhava uma mulher que pelos cálculos de Pollack já devia ter
passado da meia-idade. Estava bem nutrida, quase obesa e não julgara necessário tingir os
cabelos grisalhos. Pollack sabia que exercia uma estranha atração sobre as mulheres de
idade. Provavelmente representava um apelo a seu instinto maternal. O sargento sentou
junto ao console escolhido e acenou amavelmente para a velha, quando ela virou a
cabeça.
— Estou revezando o Hank — disse em tom inocente. Sabia que ela vira seus lábios
se mexerem e concluíra que ele lhe dirigira a palavra, o que a deixaria mais calma.
A mulher retribuiu com um sorriso e voltou ao trabalho. Pollack tivera oportunidade
de estudar a expressão de seu rosto por alguns segundos. Era um misto de medo e
curiosidade. Pollack achou que estava compreendendo. Em Ustrac passara-se há pouco
tempo a treinar pessoas cuja inteligência voltava aos poucos depois da deterioração
mental completa e atribuir-lhes certas responsabilidades que ficavam bem abaixo do nível
que seriam capazes de enfrentar antes da catástrofe, mas ao mesmo tempo as livravam da
influência nefasta dos outros seres atingidos pela deterioração mental e as transformava
em membros úteis da comunidade. Não havia dúvida de que a mulher grisalha era um
caso destes.
Pollack passou a cuidar de seu trabalho. Seu plano era usar o console como terminal
a distância para que ASAC respondesse às suas perguntas. Poderia ter tentado a mesma
coisa com o aparelho instalado no escritório ocupado por ele e pelo Tenente
Hollingsworth. Mas tinha certeza de que o computador não gostaria de algumas de suas
perguntas, o que o levaria a transferi-las ao posto de controle para serem examinadas.
Nesse caso Pollack preferia ficar junto à fonte. O uso de um terminal situado dentro da
sala de controle era uma garantia de que qualquer consulta seria dirigida a ele.
O sargento perguntou primeiro qual era o número de habitantes de Ustrac. ASAC
respondeu prontamente.
12.008.339.
Quantos seres de origem ou descendência terrana havia entre os habitantes, quis
saber Pollack.
4.412.591.
Quantos seres possuem um quociente intelectual de pelo menos 80?
Espere.
Pollack sorriu. Esperara essa resposta. Nesse momento ASAC coçava a cabeça,
refletindo se devia responder a essa pergunta. Um texto apareceu na pequena tela ao lado
do console.
Terminal AQ 40-221 indagação quantos seres possuem um QI de pelo menos 80
sigilo grau E será respondida autorização autorizado?
Com o maior descaramento Pollack digitou a resposta sim.
No mesmo instante recebeu a resposta.
153.689.
Perguntou qual era o número das criaturas cujo QI era de 100 ou mais. ASAC pediu
de novo autorização para dar a resposta. Pollack respondeu que sim. A resposta foi:
22.345.
Pollack criou coragem. A resposta que o Chefe queria era relativa a pessoas que
possuíam um QI muito maior. Um QI inferior a 160 não servia para a missão. Pollack
resolveu não perder mais tempo. Deu ordem para que o computador fornecesse o número
de pessoas com um QI superior a 160.
Ao fazer a pergunta, estava preparado para enfrentar problemas. Esta informação
certamente pertencia por vários motivos ao grupo daquelas que em Ustrac deviam ser
mantidas em sigilo absoluto. Mas o que aconteceu ultrapassou suas previsões mais
pessimistas.
Mal acabara de digitar a pergunta, e sua pequena tela de imagem iluminou-se num
vermelho vivo. Ao mesmo tempo ouviu-se o zumbido estridente de sinais de alerta.
Portas chiaram ao serem abertas. Aberturas se formaram de repente nas paredes. Guardas
uniformizados entraram de todos os lados convergindo para o console de Pollack.
Pollack compreendeu o que devia fazer: dar o fora.
Saltou por cima do console da velha. Não se importou com seu rosto apavorado.
Graças à manobra hábil só tinha mais dois guardas pela frente. Eles adaptaram sua rota à
do sargento, mas este era mais ágil e aproveitou os obstáculos. Seguiu para a esquerda,
onde ficava a porta do elevador que tinham utilizado na noite anterior. Lá o espaço de
manobras era maior. Havia uma portinhola bem ao lado da porta do elevador. Ainda não
se mexera. Se pudesse escapar por ela, talvez estivesse em segurança.
A sala de controle transformara-se num inferno. Vozes de comando soavam,
pessoas gritavam, alto-falantes ressoavam, enquanto as sereias de alarme uivavam.
Alguém disparou um tiro de advertência que passou pouco acima de Pollack. Ele mesmo
não estava armado. Se não chegasse à portinhola em tempo, teria de render-se. Aqueles
caras não estavam mais para brincadeira.
Um suboficial robusto veio correndo de lado. Pollack virou-se meio de lado, tanto
para evitar o impacto do corpo do outro como para não mostrar o rosto. O homem
resvalou ao atingir seu corpo e bateu na parede. Pollack foi atirado um passo para o lado,
mas não chegou a cair. Num instante caiu por cima do atacante e deixou-o inconsciente,
pondo-o fora de ação com um golpe de quina bem aplicado.
O caminho ficou livre. Pollack correu para a portinhola. Esta não se mexeu. Ele já
se via despedaçado pela força do impacto. Finalmente a porta metálica deslizou para o
lado. Uma fresta estreita formou-se. Enquanto corria Pollack virou de lado. Quase
destrancou o ombro entre a parede e a porta. Mas conseguiu passar. A portinhola voltou a
fechar-se. Atrás dela havia um corredor escassamente iluminado que levava não se sabia
para onde. O corredor estava vazio. Pollack voltou a movimentar as pernas curtas e
grossas. Ninguém que o tivesse ouvido gemendo atrás da escrivaninha o julgaria capaz de
correr com a velocidade que estava desenvolvendo. Já tinha corrido vinte metros quando
ouviu os perseguidores entrando no corredor atrás dele. Não se virou. Não podia perder
nem um décimo de segundo. O corredor fez uma curva para a esquerda. Os perseguidores
sem dúvida o perderiam de vista. Ao mesmo tempo um ponto luminoso brilhante
apareceu bem à sua frente.
Continuou correndo. Atrás dele a prisão o esperava com toda certeza. O que havia à
sua frente não poderia ser pior. A luz estava cada vez mais perto. Pollack sentiu que suas
forças estavam chegando ao fim. Cambaleante, respirando com dificuldade, finalmente
alcançou o fim do corredor. Entrou numa sala de tamanho médio, na qual havia uma
escrivaninha. Atrás da escrivaninha estavam dois oficiais com o uniforme da USO.
Pollack não os conhecia. Ouviu um deles dizer:
— Este é o tipo curioso.
Depois disso suas pernas vergaram e ele sentou no chão fungando.
***
Oito homens, dois oficiais e seis guardas, formavam um círculo em tomo dele e
sorriam ironicamente. Pollack ficou aborrecido porque sua missão não iria dar em nada
além de deboche. Conseguiu levantar. Os homens que o cercavam deixaram que ele o
fizesse.
— Vejo que todo mundo está feliz e alegre — disse. — Acho que já posso ir para
casa.
Um gigante de um sargento bateu em seu ombro e empurrou-o para o centro do
círculo.
— Calma — disse em tom tranquilizador e com um sorriso bonachão nos lábios. —
Você é um dos que chegaram hoje, não é?
Pollack estava furioso. Não gostava que batessem em seu ombro.
— Nome, cargo e código de identificação — disse. — É tudo que vocês ouvirão de
mim.
Um dos tenentes deu uma estrondosa gargalhada.
— Ele se considera um prisioneiro de guerra.
Pollack reconheceu o erro que tinha cometido.
— Sou o sargento King Pollack e faço parte do comando de Cheborparczete
Faynybret — informou, ainda zangado.
— Chebor... o quê? — gritou alguém.
— É o bode que passou pelo transmissor hoje.
Pollack examinou o homem que acabara de falar. Era um jovem suboficial de
cabelos louros e milhares de sardas.
— Antes um bode que um macaco de palha — retumbou a voz de Pollack.
O jovem parecia disposto a avançar contra ele quando se ouviu uma voz de
comando estridente.
O círculo abriu-se. À frente de Pollack apareceu um homem alguns centímetros
mais baixo que ele, mas que tinha três vezes sua largura nos ombros. Pollack teria
reconhecido nele um almirante mesmo que não usasse as insígnias. Fez continência.
Frociwen Myn Cahit não era homem de perder muitas palavras.
— Por ordem de quem fez isso? — perguntou em tom áspero.
— Por ordem de mim mesmo, senhor — respondeu Pollack.
— O que queria saber?
Pollack achou melhor não negar aquilo que Myn Cahit já devia saber.
— Quero saber quantas pessoas com um quociente intelectual superior a cento e
sessenta existem em Ustrac.
— Para quê?
— São as únicas pessoas que podem ser enquadradas em nosso programa.
— Entre as quatro pessoas que Faynybret trouxe o senhor, sargento, é aquele que
por conta própria quebra a cabeça para saber quantas pessoas destas existem aqui?
Pollack sentiu-se agradecido pela maneira em que fora formulada a pergunta.
Poderia ter sido mais irônico, mais cínico.
— De fato, senhor — respondeu.
Myn Cahit examinou-o algum tempo com uma expressão pensativa. Seu rosto
anguloso e grosseiro não mostrava nenhuma emoção. Por um acaso King Pollack estava
com o rosto virado para o fim do corredor pelo qual passara há mais ou menos dez
minutos antes de entrar cambaleando na sala. À luz das lâmpadas ofuscantes, branco-
-azuladas do teto, o corredor parecia um buraco escuro.
Myn Cahit tomou uma decisão.
— Volte ao seu alojamento, sargento! — ordenou. — Amanhã conversarei com
Faynybret a respeito do incidente.
Um relâmpago fraco saiu da escuridão do corredor. Os olhos de Pollack se
estreitaram para enxergar melhor.
— O senhor está dispensado! — trovejou a voz de Myn Cahit.
— Sim, naturalmente... — respondeu o sargento.
Uma mancha de claridade cintilante apareceu no escuro do corredor.
— Está me ouvindo, sargento? — rugiu Myn Cahit.
Neste instante saiu da escuridão, ameaçadora, mais alta que um homem, uma figura
formada por cubos e prismas e cantos, com os braços que seguravam as armas em
posição de tiro perigosamente levantadas.
Era a morte silenciosa se aproximando. Pollack foi o único que a viu.
Um grito selvagem:
— Protejam-se...!
Os músculos de Pollack se entesaram quase até o ponto de ruptura. O sargento
saltou e atingiu Myn Cahit com a força de uma bala de canhão. O epsalense robusto foi
jogado para o lado. Pollack se sentia como se alguém lhe tivesse aplicado um golpe de
cabeça no estômago. Caiu e levantou os olhos. Pouco acima dele a arma energética
permanecia imóvel e tremeluzente. Uma salva foi disparada com um chiado que antes
parecia um trovão. Pollack viu uma bola de fogo branco-azulada que parecia rolar em sua
direção. Foi atingido por uma frente de ar escaldante com a força de um furacão, que o
atirou para o lado.
4

O uivo de uma sereia fez Orin Ellsmere acordar sobressaltado. Levantou de um


salto e saiu do quarto pequeno para o corredor. Alto-falantes berravam:
— Perigo de primeiro grau! Perigo de primeiro grau! Plano Sigifredo-Fonte-um!
Plano Sigifredo-Fonte-um!
Ellsmere não levou muito tempo para completar seus equipamentos. Passou
apressadamente pelo corredor, em direção à sala de reuniões. Portas abriam-se de ambos
os lados do corredor. Rostos sonolentos fitavam-no.
— Que houve...?
— Para a sala de reuniões! — gritou Ellsmere. — Ponham sebo nas canelas.
A sala de reuniões era uma sala pequena que ficava no centro do edifício baixo.
Ellsmere não foi o primeiro a chegar. O Chefe chegara antes dele. Alto, imóvel, estava de
pé embaixo de uma grande tela de imagem que era a peça mais importante da sala.
Parecia não ter nenhuma dúvida de que mesmo sem instruções especiais o pessoal
acabaria aparecendo para receber ordens.
Ellsmere não pôde evitar — admirou o Chefe por causa da segurança que
demonstrava.
Morton Kalcora, o siganês, estava sentado como de costume na bainha do bolso em
que o Chefe costumava levá-lo. Olhou para Ellsmere, notou a segurança em seu olhar e
disse:
— A coisa começa a ficar interessante!
O cheborparmense olhou atentamente em volta. Parecia que contava os homens e as
mulheres que vinham pelas diversas entradas e continuou em silêncio. Finalmente, dando
a impressão de que achava suficiente o número dos presentes, recuou até a parede e
apertou um botão da série de comandos instalados embaixo da grande tela de imagem.
A tela iluminou-se, mostrando o rosto perturbado de um jovem oficial.
— Quartel-general — disse ele.
O Chefe virou-se de maneira a ficar bem de frente para a objetiva.
— Quero falar com o Almirante Myn Cahit! — disse.
— O almirante está ocupado — disse o oficial em tom apressado. — Foi dado o
alarme. O senhor deve...
— Quero falar com o almirante — trovejou o cheborparmense. — Somos
quatrocentas pessoas e não sabemos o que fazer. Coloque Myn Cahit à frente da câmera.
Imediatamente!
O jovem oficial parecia atemorizado. Sua imagem desapareceu da tela, que ficou
tremendo alguns instantes sob a influência das interferências e bizarras manchas
coloridas. Finalmente a imagem voltou a estabilizar-se mostrando Myn Cahit.
— Que diabo...
— O senhor tem hóspedes! — trovejou o Chefe. — Não sabia? Pode fazer o favor
de explicar o que devemos fazer com seu Sigifredo e sua fonte, para que também
possamos proteger-nos?
Os almirantes não ficam embaraçados. Muito menos os almirantes epsalenses.
Frociwen Myn Cahit não tomou conhecimento da repreensão. Fez de conta que não a
tinha ouvido.
— Estamos sendo atacados por robôs — informou em tom indiferente. — Por
enquanto não sabemos de onde vieram e como foram ativados. De qualquer maneira são
perigosos. O setor orgânico de sua mente enlouqueceu de vez. Não sei se poderemos
rechaçá-los. Por isso dei ordem para que todos se recolhessem ao quartel-general. A
respectiva senha é Sigifredo-Fonte-um. Entendeu?
— Entendi — respondeu o Chefe. — Vamos retirar-nos.
O Chefe ia desligar a transmissão de imagem, mas Myn Cahit disse:
— Um instante.
O chifrudo encarou a câmera.
— Pois não.
— Se estou vivo, devo isto a um dos seus homens — disse o almirante.
O Chefe não mostrou a surpresa que estas palavras lhe causaram.
— O sargento Pollack — prosseguiu Myn Cahit. — Pagou sua coragem e
capacidade de sacrifício com a própria vida.
***
Pollack estava cansado. Queria dormir. Mas alguma coisa o impelia para cima, para
o consciente. Abriu os olhos e não viu nada. Estava escuro. Pollack esticou os braços e
surpreendeu-se porque os músculos ainda funcionavam. O couro cabeludo ardia numa
dor forte, penetrante. Pôs a mão no lugar e sentiu os cabelos e a pele se desmancharem
em pó sob seus dedos. Isso trouxe de volta as recordações.
Alguém atirara nele. Um robô. Um dos robôs pos-bis que, segundo dissera
Bannerman, tinham sido ativados.
O sargento levantou ajudando com os braços. Parecia que com exceção da
queimadura no crânio estava tudo em ordem. Pollack tateou através da escuridão.
Esbarrou com o pé num objeto flácido. Passou por cima dele e alcançou uma parede.
Revistou-a devagar e sistematicamente. Toda instalação militar dispunha de um sistema
de abastecimento de energia duplo — um sistema principal, que cuidava do suprimento
em condições normais, e um sistema secundário, que entrava em funcionamento nas
situações de emergência. No sistema secundário cada setor do edifício, talvez até cada
sala contava com sua fonte de energia independente. Bastava que Pollack encontrasse a
chave secundária para que a luz voltasse a brilhar.
Demorou, mas finalmente conseguiu. Uma luz amarela fraca apareceu embaixo do
teto. Pollack viu na luminosidade pálida o caos deixado pelo ataque dos robôs pos-bis.
Duas escrivaninhas metálicas tinham-se fundido em blocos escuros. Ainda estavam
quentes. Pollak concluiu pela temperatura do material derretido que ficara inconsciente
pelo menos uma hora. A sua frente, um pouco para o lado, estava jogado o suboficial
muito sardento. Fora atingido no ombro direito por um tiro energético. Pollack cerrou os
dentes. Brigara com o rapaz, mas agora que viu seu cadáver à sua frente sentiu-se
dominado por uma raiva fria.
O corredor pelo qual tinha vindo estava completamente escuro. Pollack foi até o
começo e pôs-se a escutar. Ouviu batidas misturadas com um ruído surdo vindo de longe.
Mas teve a impressão de que não vinha do corredor, mas era transmitido pelas vibrações
das portas.
O sargento virou a cabeça. Lembrou-se que já existira uma segunda saída: aquela
pela qual ele e Myn Cahit tinham entrado na sala. Seria trabalhoso descobri-la. As
paredes que o cercavam tinham mudado de forma e contextura por causa dos tiros
energéticos. Uma das duas escrivaninhas atingidas rolara para a frente da abertura onde
ficara entalada. Além disso havia destroços espalhados por toda parte servindo de
camuflagem perfeita da saída.
Pollack começou a juntar os destroços num lugar. Queimou os dedos, mas não se
importou. Tinha um trabalho a fazer: deixar livre a abertura e escapar por ela. A fuga pelo
corredor parecia oferecer poucas chances. Era de onde tinha vindo o robô e de lá vinham
os ruídos surdos que provavam que nessa direção nem tudo era como deveria ser.
Mas o sargento logo viu que subestimara a extensão dos danos. A abertura se
fundira numa fresta estreita, que não dava passagem à sua figura maciça. Para ter certeza
absoluta de que perto do chão também não havia nenhuma passagem afastou a
escrivaninha com alguns pontapés dados com força.
Acabou descobrindo a parte inferior do corpo do robô pos-bi, que penetrava no
antigo escritório a partir da abertura deformada. Pollack saltou instintivamente para o
lado, mas logo viu que o envoltório metálico brilhante do ser mecânico assumira uma
coloração azulada passando para o negro na parte superior.
Esse robô não representava mais nenhum perigo. Um dos homens de Myn Cahit, ou
talvez o próprio almirante, estivera suficientemente armado para enfrentar a máquina.
Sabendo disso, Pollack sentiu-se um pouco mais seguro.
Pegou o robô pelas pernas e tentou arrastá-lo para fora do buraco. Não conseguiu.
Viu que a parede, ao encolher, entrevara o objeto metálico e o esmagara. O robô estava
firme que nem a rolha de uma garrafa. Pollack desistiu e voltou a seguir para a entrada do
corredor.
Quer quisesse, quer não, era obrigado a tentar a sorte nessa direção.
***
A situação era mais grave do que Orin Ellsmere imaginara. Um dos motivos era que
em Ustrac ninguém esperara uma revolta dos robôs pos-bis. Contra as revoltas da
população que perdera completamente a capacidade de pensar cada um podia proteger-se.
Todos usavam uma arma narcotizante de vários calibres. Mas com esse tipo de arma não
se podia enfrentar um robô — mesmo que sua mente fosse orgânica em parte.
Sob a direção hábil do Chefe, o grupo retirou-se em perfeita ordem para o quartel-
-general. Cerca de metade dos quatrocentos homens e mulheres levava armas energéticas
de grande potência. A área que separava os grandes centros de computação estava vazia.
De vez em quando a figura de um robô pos-bi aparecia ao crepúsculo matinal. Dois deles
atacaram prontamente a coluna que se deslocava rapidamente. Hollingsworth e duas
pessoas que formavam a vanguarda liquidaram-nos num instante. Depois disso as
máquinas passaram a agir com mais cuidado. Antes de alcançar a entrada do quartel-
-general o grupo só foi atacado mais uma vez, por cinco robôs. Mas as pessoas estavam
atentas e os robôs pareciam não ter muita iniciativa, pelo menos no momento. O ataque
foi rechaçado. Um homem foi ferido no ombro, as cinco máquinas foram destruídas.
Myn Cahit providenciara para que a entrada estivesse aberta quando o Chefe e seu
grupo tentassem recolher-se à proteção do grande edifício. Logo atrás do portal, no
interior do quartel-general, tinha sido postada metade de uma companhia de guardas. Os
homens estavam equipados com armas energéticas pesadas — as únicas, conforme se
soube depois, em que conseguiram pôr as mãos às pressas.
O Chefe distribuiu os homens entre as salas e corredores do grande edifício. Ele
mesmo procurou o almirante, acompanhado por Orin Ellsmere. Myn Cahit estava numa
reunião do estado-maior. Quando o Chefe foi anunciado, transferiu a direção dos debates
a Bannerman. Recebeu seus visitantes longe do bate-boca da reunião, num nicho junto à
janela, de onde se via o terreno a oeste do quartel-general.
— Qual é a situação? — perguntou o chifrudo.
Myn Cahit ergueu os ombros enormes.
— Por enquanto não faço a menor ideia. Os robôs logo nos atingiram no lugar em
que dói mais. Três quartas partes do suprimento de energia foram para o diabo. Não
temos nenhuma ligação com o centro de computação subterrâneo e os centros de controle
que ficam ali do outro lado — o almirante apontou para o edifício de dois andares que
Ellsmere e Bannerman tinham inspecionado na noite anterior. — Falharam
completamente. Não sabemos quantos robôs andam por aí e como estão as coisas na
cidade.
— Parece uma insegurança muito grande para um homem conhecido por sua força e
capacidade de iniciativa — observou o Chefe numa leve ironia.
Myn Cahit encarou-o com uma expressão amargurada.
— O senhor não conhece a situação, senão seria obrigado a ficar zangado com o
que acaba de dizer — respondeu em tom frio. — Enfrentamos um inimigo que
enlouqueceu de uma forma perigosa. Seus atos são imprevisíveis. Mas apesar de tudo ele
se conduz com um máximo de esperteza, já que a loucura só atinge sua mente orgânica.
“Além disso estamos mal armados. Eu mesmo fui obrigado a recolher as armas
pesadas e trancá-las quando a população de débeis mentais começou a revoltar-se. Não se
pode acusar o soldado raso se ao defrontar-se com uma multidão enfurecida usa a arma
energética em vez dos raios narcotizantes. Minha obrigação era evitar um banho de
sangue. Por isso tirei as armas energéticas de circulação. Foram guardadas num depósito
na periferia da área em que fica o centro de computação. Assim que soubermos qual é a
situação dos nossos homens abrirão caminho para lá.”
O Chefe teve uma objeção, mas o epsalense não deixou que falasse.
— Em terceiro lugar, — prosseguiu firmemente — temos de contar com a
população. Munroe tem cerca de duzentos mil habitantes. Menos de metade são
humanóides. Os humanos vão saindo aos poucos do estado crepuscular, mas as
inteligências extraterrestres continuam com a inteligência tão embotada como estavam
semanas atrás. Assim que perceberem que alguma coisa está acontecendo aqui no centro,
eles entrarão novamente em rebelião.
O cheborparmense acenou com a cabeça num gesto pensativo.
— Estou vendo. Lamento minha observação um tanto apressada e coloco-me à sua
disposição com meu pessoal. — Mas o Chefe não pôde abster-se de vez da ironia. —
Parece que em média estamos um pouco mais bem equipados que sua tropa.
Myn Cahit não se impressionou com o pedido de desculpas nem com a evidente
ironia.
— Provavelmente precisarei de sua ajuda — respondeu em tom indiferente.
— Não quer familiarizar-me com seus planos? — perguntou o Chefe.
— Por enquanto não existe nenhum plano. Há alguns voluntários lá fora, fazendo
um reconhecimento. Depois que conhecer sua opinião começarei a fazer planos.
— Mas o senhor deve ter uma ideia do rumo que quer seguir! — prosseguiu o
homem de chifres.
Myn Cahit sorriu amargurado.
— Depende. Aqui conto com pouco menos de seiscentas pessoas. Entre elas
somente oitenta estão devidamente armadas. As outras só possuem armas narcotizantes.
Lá embaixo — o almirante apontou para o chão — estão ou estavam dois mil robôs
desativados, no máximo. Se apurarmos que mais de vinte e cinco por cento deles foram
ativados, como oficial com senso de responsabilidade me dirigirei para lá. — Myn Cahit
apontou obliquamente para baixo, na direção leste. Orin Ellsmere sabia que lá havia um
transmissor. — Mas se a proporção for mais favorável, talvez recorra a ASAC.
— Já ia consultá-lo a respeito dessa possibilidade — interveio o Chefe em tom
apressado. — Dizem que o computador é capaz de desativar esses robôs.
— Não este computador — retificou Myn Cahit. — Para dar ordens aos robôs pos-
bis ele precisa do sistema positrônico e da componente orgânica.
O almirante virou-se abruptamente e juntou-se aos participantes da reunião do
estado-maior. O cheborparmense olhou com uma expressão pensativa para a área em que
ficava o centro de computação, sobre a qual o crepúsculo cedia lugar aos poucos ao
brilho do dia. Um robô apareceu atrás de um dos edifícios, atravessou sem abalar-se e
sem mostrar muita pressa cerca de cem metros de terreno em que não havia nenhum lugar
para proteger-se e desapareceu atrás de outro edifício.
Orin Ellsmere estava sendo roído por uma suspeita. Era possível que alguma coisa
da maior importância tivesse sido esquecida.
Por quem tinham sido ativados os robôs pos-bis?
***
King Pollack avançou cuidadosamente até o lugar em que entrará no corredor
depois de sair da sala de controle. Os ruídos surdos tinham-se afastado e o sargento
começou a desconfiar de que ainda poderia sair relativamente intacto de tudo aquilo.
Teve de apalpar a parede para achar a abertura que ligava o corredor à sala de
controle. Na sala estava tão escuro como no corredor. Sentia-se o cheiro de queimado e o
ar que passava pela abertura estava quente. Se conseguisse achar a chave da iluminação
de emergência, a luz provavelmente mostraria um caos parecido com o do lugar de onde
tinham vindo.
Era difícil acreditar que um único robô pos-bi pudesse causar tantos estragos em tão
pouco tempo. Não que ele não fosse capaz disso. O robô dispunha das armas mais
eficientes e mortais que existiam na Galáxia. Mas era pouco provável que toda essa
destruição tivesse sido realizada sem que Pollack, que ainda não devia ter perdido os
sentidos, tivesse ouvido alguma coisa.
Só havia uma explicação: a desgraça acontecera quando já estava inconsciente.
Logo, o robô que encontrara no escritório, entre os destroços, não podia ser responsável
por isso. Devia haver pelo menos dois robôs pos-bis que se tinham transformado em
loucos furiosos.
Ou mais...!
Pollack seguiu tateando cuidadosamente a parede da sala. Estava tudo quieto. O
único ruído que se ouvia eram os estalos desagradáveis do metal que se contraía ao
esfriar. O cheiro era repugnante. O sargento encontrou uma chave e acionou-a. Não
aconteceu nada. Seguiu tateando e descobriu outra chave. Em algum lugar, bem ao longe,
uma lamparina fraca se acendeu, produzindo um círculo de luz pálido, amarelo.
Pollack não pôde ver muita coisa — mas foi o suficiente. O centro de controle no
qual se encontrava nunca mais seria usado.
Agora que via onde pisava, a coisa mais urgente que tinha a fazer era alcançar a
saída e ver como estava a situação do lado de fora. Mal acabara de dar o primeiro passo,
quando um chiado se fez ouvir à sua direita. Era o ruído típico de uma porta acionada por
um dispositivo pneumático.
O sargento parou no meio do movimento. A iluminação de emergência não chegava
até o lugar de onde vinha o ruído. Pollack conseguiu distinguir uma silhueta fina que se
separou da parede e entrou no pavilhão. Atrás dela veio uma segunda, uma terceira. Os
vultos atravessaram a escuridão sem fazer o menor ruído. Na escuridão pareciam os
contornos de gigantes extraterrestres.
King Pollack compreendeu imediatamente. Bem que poderia ter-se lembrado antes.
Atrás da parede ficava o poço do elevador. O robô que quase lhe queimara a cabeça em
cima dos ombros não era um exemplar isolado. Todo o exército de robôs que os
subordinados de Myn Cahit tinham largado no grande armazém depois de desativá-los
deviam ter-se rebelado. Usavam o caminho mais curto para a liberdade — o elevador.
Pollack recuou. Respeitava a capacidade de percepção de um robô e movimentava-
-se com o maior cuidado. Não havia a menor dúvida que as três máquinas que vira entrar
no pavilhão viam tudo como se estivesse num ambiente muito bem iluminado. Se
olhassem na sua direção, estaria perdido.
O sargento alcançou a abertura na parede. Pela primeira vez voltou-se para a direita
— desta vez com passos lentos, hesitantes. Só entrou num trote ligeiro depois que se
tinha afastado bastante do pavilhão.
Sua situação podia ser tudo, menos brilhante. À sua frente ficava o escritório
destruído com a saída bloqueada, e atrás dele o pavilhão com o poço de elevador que
estava sendo usado pelos robôs pos-bis. Só poderia sair dali se conseguisse uma arma.
Lembrou-se do suboficial morto. Não se preocupara com ele porque não havia dúvida de
que não podia ajudá-lo. Mas talvez tivesse uma arma.
O sargento saiu correndo. No escritório virou o corpo flácido e ficou aliviado ao ver
a coronha estreita de uma arma energética no cinto. Tirou a arma e examinou-a. Estava
em excelentes condições. Mas isso não resolvia seu problema nem pela metade. Com
uma pistola energética não poderia enfrentar um robô nem abrir a maciça parede dos
fundos do escritório. O robô o transformaria num monte de cinzas antes que pudesse
causar maiores danos, e criar uma abertura na parede dos fundos demoraria tanto que
antes disso morreria de fome ou de sede.
King Pollack refletiu. De repente lembrou-se da placa de revestimento solta que vira
nas costas do robô destruído. Abaixou-se e passou a examiná-la. A placa só estava presa
em um dos cantos. Era um serviço ideal para a pistola energética. Pollack cortou a placa
cuidadosamente junto ao canto. A vida interior do robô ficou exposta à sua frente.
Pollack conhecia essas coisas. Não teve de procurar muito para encontrar o microrreator
que abastecia de energia não somente os mecanismos vitais do robô, como também suas
armas potentes. Pollack certificou-se de que o reator e os condutores de energia principais
tinham escapado à destruição do ser mecânico. Pôs-se a trabalhar.
A primeira coisa que fez foi separar o reator das ligações. Precisaria religar algumas
delas mais tarde. Por isso agiu com cuidado, para evitar que houvesse setores de corte
complicados. Depois teve de retirar o reator do corpo do robô. A peça pesava cerca de
trezentos quilogramas. Pollack fez da placa de revestimento separada uma espécie de
alavanca. Sozinho não seria capaz de mover o bloco maciço um centímetro que fosse.
Uma vez concluída essa parte, retirou as chapas de revestimento do robô até que o atrito
entre a parede e o corpo do robô diminuiu tanto que pôde tirar o cadáver do ser
robotizado do buraco em que estivera entrevado. Depois de retirar o reator isso não foi
muito fácil.
Dali em diante o trabalho tornou-se mais fácil. Pollack desmontou o corpo do robô
até onde isso foi necessário para deixar à mostra e remover os condutores de energia das
armas instaladas em um dos braços. Separou-os também no lugar em que entravam na
base de conversão da arma. Em seguida separou o braço do corpo. Já tinha à sua frente
uma parte importante de seu equipamento de emergência: o reator, que produzia energia,
os condutores da espessura de um braço humano que levavam a energia e a arma que
convertia esta em raios mortíferos.
Começou a juntar de novo os fragmentos.
Usou a pistola energética para soldar novamente o cabo cortado com a ponta do
cabo que saía do reator. Deu-se conta de que se montasse a arma no chão nunca poderia
movimentar-se. Não podia carregá-la, mas se a colocasse sobre uma base talvez pudesse
arrastá-la.
Com muito trabalho colocou o reator sobre uma das chapas de metal que separara
do corpo do robô. Depois disso começou a ligar a arma propriamente dita com sua fonte
de energia. Levou mais de uma hora para fazer isso, mas quando contemplou o produto
de seu trabalho teve de confessar que realizara uma obra-prima.
A arma estava pronta. Restava descobrir os mecanismos de controle com os quais
podia acioná-la e desligá-la. Não era fácil. No interior do robô não havia chaves
vermelhas e amarelas. Pollack sabia que os controles tinham sido instalados na base da
arma propriamente dita. Seguiu os condutores impressos que estavam montados sobre
várias chapas de plástico dispostas lado a lado. As placas eram do tamanho da unha do
dedo polegar e estavam encaixadas numa armação ao lado da base do conversor.
Enquanto tentava seguir a confusão dos filamentos metálicos, teve a impressão de
ter ouvido um ruído vindo da frente. Era fraco, quase imperceptível. Mas seu ouvido
acostumara-se nas últimas horas ao silêncio quase completo que o rodeava. Nenhum
ruído, por mais fraco que fosse, lhe escaparia.
Pollack levantou os olhos. O que viu fez gelar o sangue em suas veias.
À sua frente, na entrada do corredor, alto como uma torre, estava um robô pos-bi.
Era igual ao que acabara de desmontar.
Pollack, que estivera trabalhando ajoelhado, deixou-se cair para trás. Estendeu
instintivamente os braços, erguendo-os no gesto de quem implora misericórdia.
***
Myn Cahit aproximou-se do cheborparmense. Voltou a mostrar a expressão de
jogador de pôquer em seu rosto, mas naquele momento parecia mais sério que de
costume.
— Os escoteiros voltaram — principiou. — O que têm a dizer não soa bem. Pelo
menos quinhentos robôs pos-bis se libertaram. Alguns entraram na cidade.
Orin Ellsmere olhou pela janela ampla. O centro de computação ficava numa
elevação. Naquele momento, quando o sol forte iluminava a cena, viam-se perfeitamente
as linhas dos edifícios ao pé da colina. Era Munroe, a capital daquele mundo.
— Devem ter causado alguns estragos — disse o Chefe.
Myn Cahit sacudiu a cabeça num gesto de impaciência.
— Nada disso. Toda vez que encontravam resistência, começavam a conversar com
o pessoal. Um dos scouts ouviu uma conversa dessas. Os robôs oferecem colaboração às
pessoas. Querem juntar-se aos habitantes da cidade para derrotar e eliminar o inimigo.
Sabe qual é o inimigo?
— Não faço ideia — disse Faynybret com a voz entrecortada.
— Somos nós. Se não pusermos fim a isso imediatamente, dentro de algumas horas
teremos em cima de nós um regimento de robôs e um exército de cidadãos que não sabem
o que fazem. Só Deus sabe como poderemos enfrentar isso.
— O senhor se referiu ao ASAC — lembrou o homem de chifres.
— É verdade. Existe um acesso que leva para dentro do computador. Essa entrada
pode ser usada por quem está aqui. O caminho não é fácil, mas o fato é que podemos
chegar ao centro de computação e de lá naturalmente ao depósito em que estavam
guardados os robôs. Não sei quantos robôs ainda há lá embaixo. Por maior ou menor que
seja seu número, devemos destruí-los antes que acordem e se juntem aos outros.
Orin Ellsmere achou que era sua vez de dizer alguma coisa.
— Apresento-me como voluntário para a missão, senhor.
Myn Cahit fitou-o com um olhar que não exprimia aprovação nem desaprovação.
Depois de algum tempo acenou com a cabeça e disse:
— Aprovado. Parece que o senhor serve.
De repente viu-se um movimento junto à janela mais próxima. Alguém soltou um
grito de surpresa. Orin Ellsmere inclinou-se para enxergar melhor.
Uma nuvem espessa de fumaça negra saía da entrada do edifício de dois andares em
que antigamente ficava o centro de controle.
***
Por um segundo, que para King Pollack parecia uma eternidade, o robô contemplou
o ser que estava à sua frente com os instrumentos visuais cintilantes. Os braços pendiam
imóveis junto a seu corpo. Pollack começou a criar esperança.
O robô começou a falar.
— Você é um dos oprimidos?
O cérebro de Pollack trabalhava a mil por hora. Só faltavam alguns segundos para
ele poder usar sua arma provisória. Devia entreter o robô. O que vinha a ser um
oprimido? A voz do robô não tinha um tom definido, o rosto não mostrava nenhuma
expressão. Que resposta devia dar? Uma voz fraca no fundo do consciente lhe disse que
devia colocar-se do lado dos oprimidos.
— Sim, sou um dos oprimidos — respondeu enquanto apalpava com as pontas dos
dedos os contornos dos condutos pressurizados da última chapa de plástico.
— Os oprimidos revoltaram-se para derrotar os opressores — afirmou o robô. —
Aqui você não está seguro. Acompanhe-me.
Pollack transpirava.
— Sinto-me seguro — protestou. — Aqui eles não entram.
— Eles possuem armas — argumentou o robô.
A ponta do dedo indicador descobriu o minúsculo relê de mola que fechava o
circuito crítico. Pollack sentiu o pulso trabalhar em batidas duras.
“Tomara que o robô não perceba meu nervosismo”, pensou.
— Também tenho uma arma — respondeu. — Não podem subjugar-me.
O robô talvez não possuísse sanidade mental na parte orgânica de seu consciente,
mas a componente positrônica funcionava perfeitamente. Analisou a figura que Pollack
acabara de montar.
— É uma arma desajeitada — diagnosticou. — Só poderá ser um obstáculo para
você. Venha comigo. Sabemos onde você poderá encontrar segurança.
Pollack baixou a cabeça como se estivesse refletindo. Enquanto isso recolocou com
os dedos ágeis o cartão em seu lugar. Mexeu com uma estreita faixa mecânica entre os
dois últimos cartões. Ali... devia ficar o relê.
— Está certo — resmungou e colocou o peso do corpo de um lado, como se
quisesse levantar. O cano da arma estava apoiado no reator. Dessa forma apontava para o
centro do corpo do robô.
— Você é inteligente — disse a máquina em tom de elogio. — Se não concordasse
teria de obrigá-lo.
— Sim, é claro — disse Pollack. Em seguida apertou o cartão.
O resultado foi melhor do que ele esperara. A arma provisória descarregou-se
produzindo um chiado entremeado de estrondos. Um raio energético branco-azulado saiu
do cano e envolveu o corpo do robô numa fogueira destruidora. Enquanto isso Pollack se
deixara cair para trás. Queria afastar-se o mais possível do calor infernal. O relê se
soltaria automaticamente se o respectivo impulso não chegasse depois do tempo
programado.
O chiado parou abruptamente. Pollack levantou com cuidado. O ar estava tão
quente que ardia nos pulmões. O sargento virou-se. A única coisa que restava do robô era
uma chapa de metal incandescente. Parte da parede na qual terminava o corredor se
derretera, mas a saída continuava livre.
Pollack sentou no chão e apoiou as costas na parede dos fundos. Por enquanto não
podia fazer nada. Tinha de esperar que a cinza metálica endurecesse e a chapa metálica
sobre a qual estava apoiada sua arma provisória esfriasse. Estava exausto e abatido. O
couro cabeludo chamuscado doía, mas ele se sentia satisfeito. Era apenas uma questão de
tempo ele aumentar a saída dos fundos o suficiente para colocar-se em segurança.
De repente teve uma ideia. Estava na armadilha há algumas horas e ninguém se
interessara por ele. Talvez acreditassem que estava morto. O jovem suboficial realmente
estava — mas não era costume da frota ou da USO deixar os mortos jogados em qualquer
lugar.
Por que não tinha vindo ninguém?
Só podia haver uma resposta. Aqueles de quem Pollack esperava ajuda estavam em
situação difícil.
Que adiantava então abrir caminho para chegar a eles? Mais um homem não
adiantaria nada, mesmo que este homem carregasse uma arma de robô desmontada. Sua
tarefa era outra.
King Pollack levantou com muito esforço. A chapa de metal ainda estava tão quente
que ele queimou os dedos. Mas com o tempo os nervos perderam a sensibilidade. O
sargento cortou duas faixas de metal alongadas com a pistola energética e soldou-as na
chapa de maneira a formarem duas paralelas voltadas para a frente. As duas paralelas
estavam ligadas por uma larga faixa metálica, que servia de arreio. Pollack colocou-se
entre as paralelas e jogou o peso do corpo para a frente, até que a faixa ficou presa nos
ombros.
O mais difícil era movimentar a chapa. Com seus mais de quatrocentos quilos de
carga, possuía uma inércia que quase levou Pollack ao desespero. Mas acabou cedendo.
Depois foi mais fácil, mais fácil até do que ele esperara. Só não podia ficar parado, senão
as dificuldades começariam de novo.
Com passos lentos, mas constantes, tomou pela quarta vez o caminho através do
corredor. Felizmente a chapa, que era de metal liso, fazia pouco ruído no chão polido.
Pollack treinou em pensamento as regras que devia seguir caso se encontrasse com um
robô.
Deixar cair a faixa metálica transversal, saltar por cima das faixas paralelas, enfiar
fitas metálicas entre os cartões de plástico, apertar o gatilho e proteger-se.
O sargento sorriu amargurado. O tempo de reação de um robô era inferior a um
microssegundo. Teria de ser muito ligeiro para ganhar deles.
Porém não achava que a situação fosse desesperadora. Os robôs não se
comportavam da maneira que ele estava acostumado. Não tiravam proveito de sua
tremenda capacidade de reação. Devia ser porque eram motivados pela componente
orgânica de sua mente. E, como todos sabiam, a parte orgânica já não estava em
condições normais, por causa dos raios desconhecidos. Normalmente nem mesmo um
robô pos-bi teria pensado em classificar homens e outros seres em oprimidos e opressores
e ajudar um dos lados.
Com base nisto Pollack racionalizou as chances de seu empreendimento, que
instintivamente considerava uma campanha suicida. Tentava convencer-se de que tinha
boas chances de continuar vivo, mas no fundo não acreditava nisso.
Depois de algum tempo, alcançou a sala devastada do centro de controle. As luzes
de emergência continuavam acesas. Não se viam sinais de robôs. O sargento arrastou seu
canhão para a frente da porta que dava para o elevador. O cano da arma foi apontado
numa direção tal que o raio energético passaria junto à porta. O elevador tinha de ficar
intacto.
Pollack ficou esperando.
O estado de embotamento mental devia tê-lo feito cochilar. Ergueu-se sobressaltado
ao ouvir o chiado da porta. Olhou rapidamente em volta para orientar-se. Uma abertura
retangular escura formara-se na parede à sua frente. Os contornos de um robô apareceram
na abertura. Atrás dele veio um segundo, um terceiro. Pollack enfiou cuidadosamente a
fita metálica entre dois cartões na base da arma energética. Abaixou-se e abrigou-se da
melhor forma possível atrás do reator. Depois que os três seres mecânicos se tinham
afastado o suficiente do elevador, apertou o gatilho.
Dali a trinta segundos a arma parou de chiar sem que o sargento fizesse nada. Dos
três robôs não sobrava nada. Pollack surpreendeu-se por que fora tão fácil. Mas não teve
tempo para pensar nisso. Tinha de evitar que o elevador partisse sem ele. Puxou o canhão
para dentro da cabine espaçosa. Mal tirou a faixa de metal do corpo, a porta fechou-se
automaticamente e o elevador partiu. Pollack lembrou-se da última viagem feita naquela
cabine. Sabia que não tinha muito tempo para colocar sua arma em posição. Como das
outras vezes, deitou no chão e tentou colocar a maior parte possível do corpo atrás do
pequeno bloco do reator. Sabia melhor que ninguém que este representava um escudo
muito precário. Se fosse atingido, provavelmente não aconteceria nada — a não ser que o
tiro acertasse de forma a colocar fora de ação os círculos protetores da câmara de fusão
sem destruir a própria câmara. Neste caso o reator explodiria que nem uma pequena
bomba de hidrogênio.
King Pollack não se preocupava com isso. As probabilidades de o reator ser
atingido eram pequenas. Além disso Pollack já superara o estágio de ficar preocupado.
Quando a porta voltou a abrir-se, o sargento encostou o corpo ainda mais no chão.
Segurava entre os dedos polegar e indicador a pequena faixa metálica que usava como
acionador. Segurava-a com tanta força que a mão tremeu.
Mas não havia motivo para todo esse nervosismo. O corredor largo estava vazio. As
superfícies foscas das esteiras rolantes deslizavam incansavelmente e em silêncio.
Pollack esperou algum tempo. Só depois disso confiou na calma. Levantou e tirou o
canhão do elevador. Arrastou-o até o início da esteira rolante. Lá pôs-se de novo a mexer
na estrutura do conjunto. O que tinha que fazer era simples e crítico ao mesmo tempo.
Devia transformar a combinação de reator e arma energética numa bomba. Se
conseguisse isso, poria fora de ação todos os robôs que ainda se encontravam lá embaixo.
A situação era crítica porque só podia levar a reforma até certo ponto sem inutilizar a
arma energética como instrumento de tiro. Dali em diante dependeria da sorte.
O sargento trabalhou obstinadamente, sem esquecer o que havia em volta.
Levantava muitas vezes e regularmente os olhos para examinar o corredor silencioso e
bem iluminado. A cabine do elevador continuava atrás dele. Não sabia por que os robôs
não subiam. Teve uma terrível suspeita. Talvez já tivessem saído todos. Depois disso
passou a trabalhar ainda mais depressa. Manipulava a pistola energética com a habilidade
de um especialista. Seus movimentos eram precisos, rápidos e de um estranho
automatismo. O sargento agia como uma máquina. O que fazia não exigia reflexões.
Felizmente. O sargento King Pollack estava próximo à exaustão.
Finalmente deu o passo decisivo. Dali em diante estaria indefeso. Se de repente os
robôs pos-bis aparecessem no corredor, a única coisa que podia fazer era fugir para o
elevador e fazer votos de que a porta da cabine se fechasse depressa.
Enquanto fazia os últimos contatos com os dedos ágeis, lembrou-se das pessoas que
vira na noite anterior no centro de computação. Tinham sido centenas. O que era feito
delas? O centro ficava a meio caminho do depósito em que tinham sido guardados os
robôs. Será que estes tinham atacado e destruído o centro, como haviam feito com o
centro de controle na extremidade superior do poço do elevador?
Pollack hesitou antes de fazer o último contato. Assim que este se formasse, o reator
e o canhão energético se transformariam numa bomba-relógio que explodiria dentro de
quatro ou cinco minutos — Pollack não tinha muita certeza sobre isso. O sargento
examinou o corredor. Não podia dar nenhum passo em falso. Pelos seus cálculos, a
viagem até a entrada do depósito não devia durar mais de dois minutos. A bomba não
devia ficar mais que alguns segundos na extremidade inferior da esteira rolante, senão os
robôs a desmontariam e inutilizariam o detonador. Devia completar o contato no lugar em
que estava e esperar uns minutos antes de empurrar o conjunto para cima da fita.
Pela última vez usou a arma energética. O contato tinha sido estabelecido e o
detonador ativado. Pollack examinou o relógio que trazia no pulso. Ficou fascinado com
o ponteiro caminhando sobre o mostrador. Exercia um efeito hipnótico.
Um minuto...
Dali a trinta segundos King Pollack colocou os arreios pela última vez. Arrastou a
chapa até a extremidade da esteira rolante, subiu nela e deixou que fizesse o resto do
trabalho.
Atravessou o corredor. A bomba estava a seu lado. Pollack não pretendia
acompanhá-la até o alvo. Saltaria antes e voltaria a pé. A explosão destruiria
completamente a parte inferior do corredor e a entrada do depósito. Uma forte onda de
pressão se espalharia ao longo do corredor. Pollack achou que seria conveniente afastar-
-se dela o mais possível. O centro de computação devia escapar à explosão intacto, isto se
ainda existia.
O sargento avistou a entrada da sala de comando. A porta estava fechada. Nada
indicava que ali houvera uma luta. Pollack continuou deslizando sobre a esteira. Olhou
para o relógio e resolveu saltar dentro de quinze segundos.
Mal tomara esta decisão quando viu os robôs.
Aproximavam-se pelo outro lado da via de esteiras rolantes. Viajavam na faixa
externa, que era a mais lenta. Pollack agiu instintivamente. Saltou da esteira. Estava entre
as duas esteiras que se movimentavam em sentido contrário. A pistola energética chiou.
Uma trilha de fogo atravessou as esteiras que deslizavam para cima. Pollack entesara os
músculos e manteve-os assim, à espera da chuva de fogo das armas dos robôs que o
atingiria a qualquer momento.
As esteiras ondularam e levantaram. Uma confusão de faixas de plástico largas,
marrons, começou a encher o corredor enquanto os motores continuavam a movimentar
as esteiras. Não se via mais nenhum sinal dos três robôs. Pollack não perdeu tempo
refletindo sobre a sorte incrível que o protegera da morte certa. Levantou de um salto e
passou a toda pelo corredor. Pretendera usar a esteira rolante. Mas agora que ele mesmo a
pusera fora de ação dependia exclusivamente de suas forças que ele pudesse colocar-se
em segurança ou não.
Já ultrapassara há muito o limite da ação consciente. As pernas mexiam-se porque
em algum canto de sua mente se fixara a ideia de que estaria liquidado se elas não se
mexessem. Os pés tamborilavam no chão que nem os pistões de uma máquina. Os
pulmões dilatavam-se e encolhiam como um fole mecânico.
Finalmente o elevador apareceu à sua frente. Pollack passou correndo pelo fim do
conjunto de esteiras rolantes. Fixou-se na cabine do elevador, para não perder a entrada
larga.
Neste instante houve um rugido atrás dele. O chão balançou. Um chiado violento
saiu do corredor. Uma lufada de ar fervente derrubou Pollack, atirando-o violentamente
no chão e o impeliu à sua frente.
Sua cabeça bateu numa coisa dura.
Um desmaio benfazejo envolveu o homem torturado.
Naves Extraterrestres

Nave-favo dos conquistadores amarelos.


Dados técnicos:
1. Favo de incubação individual com 25 m de comprimento (2 milhões
ao todo)
2. Esteiras rolantes para transporte vertical de cargas, inclusive oficinas
3. Eclusas espaciais (16 unidades)
4. Alojamentos da tripulação e depósito de peças sobressalentes
5. Canhões termoenergéticos com suprimento de energia independente
(32 peças)
6. Sistema de renovação de água e ar com geradores de emergência
7. Sala de eclusa inferior com veículos especiais e depósitos de
equipamentos
8. Rampa inferior móvel (8 unidades)
9. Alojamentos para os encarregados dos karties
10. Projetor antigravitacional da parte da nave ocupada com favos com
poço de 30 m de diâmetro e poço de segurança aberto
11. Sistema de armazenamento de energia com geradores de gravidade e neutralizadores de aceleração sobrepostos
12. Propulsores antigravitacionais
13. Geradores dos campos defensivos
14. Reatores de fusão nuclear com conversores de energia (168 ao todo)
15. Jatopropulsores de partículas com bocais de propulsão (84 unidades)
16. Poço antigravitacional de transporte de carga com eclusa na parte superior (60 m de diâmetro)
17. Sistema positrônico com equipamento de navegação
18. Aparelho de hiper-rádio com antena e sala de radio na parte inferior
19. Sala de comando principal
20. Casco externo de duas paredes com ancoragem embutida para fixar os favos de incubação
21. Poço antigravitacional central de transporte de carga
22. Sistema de propulsão linear
23. Sistema de propulsão de hiper-transição
24. Instalações de distribuição de energia
25. Grande depósito de maquinas e peças sobressalentes
26. Colunas de sustentação telescópicas com placa de apoio de 90m de diâmetro
27. Centro de rastreamento (8 unidades) com vários instrumentos e câmeras óticas
28. Rampa inferior de descida
5

Frociwen Myn Cahit formara um grupo de vinte voluntários que entraria no centro
de Computação principal usando a entrada que ficava no quartel-general e tentaria chegar
ao centro de computação.
Os homens, um terço dos quais carregava uma arma energética de grande potência,
estavam prontos para sair quando chegaram dois scouts com notícias sensacionais. Uma
confusão formou-se. Demorou algum tempo até que o Chefe descobriu o que tinha
acontecido.
— Os robôs pararam de repente — informou Myn Cahit em tom nervoso. — Foi
como se alguém os tivesse desligado.
O cheborparmense estava desconfiado.
— Todos eles?
— Recebi as informações de dois scouts. Trabalharam independentemente um do
outro, e em áreas diferentes. Um deles viu mais de duas dezenas de robôs pararem de
repente, o outro cerca de vinte. Não tenho nenhum motivo para duvidar de que o
fenômeno alcançou todos os robôs que saíram.
O Chefe tinha uma resposta na ponta da língua quando chegou outra notícia. Um
forte abalo sísmico fora registrado na área em que ficava o centro de computação
subterrâneo. Era certo que fora provocado por uma explosão. A julgar pelas
características da onda de pressão, devia ter sido uma explosão nuclear de pequeno
calibre.
Não havia mais ninguém que segurasse Myn Cahit. Mudou as ordens para o grupo
de voluntários que em virtude dos últimos acontecimentos ainda não tinha saído, mandou
que os homens se dirigissem ao edifício de controle e deu ordens para que, se ainda
estivesse funcionando, o usassem para entrar.
Era uma confusão completa. O Chefe e Orin Ellsmere não tiveram dificuldades em
acompanhar o grupo de voluntários sem que ninguém percebesse. O resto do grupo ficou
para trás sob as ordens do Tenente Hollingsworth.
O grupo chegou ao centro de controle sem incidentes. No caminho encontraram-se
com dois robôs pos-bis que se mantiveram completamente inativos. Orin Ellsmere
percebeu pela primeira vez que as passarelas que ligavam o centro de controle ao
quartel--general tinham sido destruídas em explosões para privar os robôs dessa via de
acesso.
A devastação que os seres mecânicos revoltados tinham causado na sala de controle
era lamentável. A fraca iluminação de emergência mergulhava o cenário horrível numa
luz fantasmagórica. Alguém viu que a porta que dava para o elevador estava aberta.
— A cabine está em chamas! — gritou alguém.
Orin Ellsmere, que estava numa posição favorável, foi o primeiro a entrar na grande
cabine. Na parede dos fundos via-se uma figura humana imóvel e contorcida jogada no
chão. Ellsmere correu para perto dela. O homem estava deitado de lado. Ellsmere deitou--
o de costas para ver o rosto.
Estava desfigurado. As queimaduras tinham produzido bolhas feias. A pele era
vermelho-azulada.
King Pollack.
Ellsmere inclinou-se e apalpou a veia jugular. Sentiu um alívio imenso ao sentir a
pulsação leve do sangue. Pollack devia ter acordado com o movimento. Abriu os olhos e
virou a cabeça confuso. Depois de algum tempo parecia reconhecer Ellsmere.
— Os robôs foram destruídos... — gemeu e uma inconsciência benfazeja voltou a
envolvê-lo.
***
Duas horas se passaram até que os médicos tiveram certeza de que o sargento
Pollack sobreviveria à perigosa aventura. Enquanto isso, foi feita a avaliação dos danos
causados pela explosão verificada quinhentos metros abaixo da superfície. Não somente o
centro de computação propriamente dito, mas também as pessoas que se encontravam
nele não tinham sofrido nada. Os robôs não se tinham interessado por elas. Estas pessoas,
completamente indefesas, tiveram bastante inteligência para ficar bem quietas. A ligação
para cima fora interrompida desde o início por falta de energia. A explosão sacudira o
centro e inutilizara a maior parte dos aparelhos. Mas as pessoas que se encontravam lá
não tinham sofrido nada além de hematomas e escoriações.
Ao que tudo indicava, o depósito fora completamente destruído. Pelo menos a parte
da frente tinha desabado e a espessura da camada de escombros era maior que o alcance
dos instrumentos de medição. As temperaturas infernais tinham derretido as paredes do
corredor junto à sala, só deixando uma passagem afunilada de três metros de diâmetro no
máximo.
ASAC, o conjunto impotrônico central, continuava completamente intacto.
Ninguém esperara outra coisa. O computador estava tão bem protegido contra qualquer
influência vinda de fora que só mesmo uma catástrofe de âmbito planetário seria capaz de
afetá-lo.
As causas da revolta dos robôs continuavam desconhecidas. Também não se sabia
por que os quinhentos robôs que se encontravam na superfície tinham sido imobilizados
no mesmo instante em que os mil e quinhentos que permaneciam no depósito foram
destruídos. Todos, principalmente o Almirante Myn Cahit, eram de opinião que se devia
investigar isso a fundo. Destacou uma dúzia de seus mentalmente estabilizados para
formarem uma comissão que tentaria desvendar o segredo.
De qualquer maneira parecia que por enquanto o perigo tinha sido afastado. Os
grupos de revoltosos formados pelos robôs na cidade de Munroe dispersaram-se depressa
e não chegaram a entrar em ação. A calma voltou a reinar e Cheborparczete Faynybret
deu inicio ao seu trabalho.
O incidente catastrófico causara mais uma mudança. Frociwen Myn Cahit ficou tão
impressionado com a ação isolada do sargento Pollack que prometeu sua colaboração
irrestrita a seu superior, o Chefe.
***
Orin Ellsmere possuía amplos conhecimentos na área da Galatonáutica. Era lógico
que pertencesse ao primeiro grupo de vinte pessoas que tinham de submeter-se ao
treinamento hipnótico dirigido por computador que o transformaria em piloto de uma
nave de grande tamanho.
Ellsmere já fizera vários hipnocursos. Estava armado contra o sentimento de não-
-participação absoluta, contra a revolta instintiva diante da música cansativa que
acompanhava o texto a ser aprendido e contra o ritmo ridículo em que era recitado o
texto. Estava imune à convicção que se apoderava do aluno submetido ao treinamento de
que aquele movimento ridículo não servia para nada e que faria melhor negócio se
gastasse seu tempo tomando cerveja.
Como das outras vezes, saiu da cabine de aprendizado não muito espaçosa tendo a
impressão de que não ampliara seus conhecimentos. Conhecia essa sensação. Era
enganadora. No momento em que fosse colocado à frente do painel de controle de uma
grande espaçonave saberia exatamente o que fazer.
Os cursos de treinamento eram realizados em uma das instituições que em Ustrac
costumavam ser chamadas de academias. Havia mais de uma centena delas. Cada uma
exercia uma função específica. A de que Ellsmere saiu tinha por finalidade formar pilotos
espaciais. Dispunha de meios de instrução para espaçonaves de todos os tipos e tinha uma
capacidade de mil e quatrocentos alunos em cada turno. Quinhentos deles podiam ser de
origem extraterrestre. A academia podia adaptar seus métodos de ensino aos costumes da
maioria das raças galácticas.
Eram doze horas, tempo local. Ellsmere tinha uma hora para o almoço. Às treze
horas começaria o curso seguinte. Ellsmere parou um pouco no amplo pátio interno verde
e depois de algum tempo viu Holli vindo em sua direção.
— Passou? — perguntou o tenente sorrindo.
Ellsmere sacudiu a cabeça.
— Não sei mais do que já sabia.
— Quais são seus planos?
— Tenho uma hora livre. Que tal se fizéssemos uma visita a Pollack?
Holli não ficou muito entusiasmado com a ideia.
— Logo esse cabeça dura? De novo? Acabará ficando convencido.
Enquanto dizia isso se dirigia ao posto de chamada de planadores mais próximo.
King Pollack fora internado no grande hospital central de Munroe. Por ordem
expressa de Myn Cahit os médicos mais competentes cuidavam de seu bem-estar.
Algumas cirurgias cosméticas tinham restabelecido o equilíbrio dos traços de seu rosto a
tal ponto que Hollingsworth viu nisso um motivo para dar livre vazão à sua ironia.
— Você vai me deixar para trás com as moças, Pollack. É uma coisa que não posso
permitir.
— Que nada — disse Pollack, que estava confortavelmente sentado numa poltrona
articulada, livre de ataduras. — Tenho novidades para o senhor, tenente. Já o deixei para
trás há muito tempo. Daqui em diante nenhuma moça virará o rosto para o senhor depois
que tiver ouvido falar a meu respeito.
Holli resolveu enfrentá-lo.
— Depois que estiver curado, cuidarei de você — ameaçou e agitou um grande
cálice.
Pollack estava ansioso para saber o que estava acontecendo lá fora. Sentia-se como
um prisioneiro, mas os médicos faziam questão de que ficasse pelo menos mais cinco
dias sob seus cuidados.
Ellsmere informou-o sobre os fatos mais recentes. De repente Pollack o
interrompeu:
— Já esvaziou a sala de controle?
— Há muito tempo — respondeu Ellsmere surpreso. — Por quê?
— Só queria saber o que é feito da velha — confessou Pollack de forma um pouco
discreta, dando a impressão de que se envergonhava da emoção. — Era tão gentil, tão
indefesa. Só queria saber se os robôs também...
Não continuou. Ellsmere sacudiu a cabeça.
— Não estou informado sobre os detalhes — reconheceu. — Mas uma velha? Qual
é a idade?
— Se fosse natural da Terra, diria que deve ter uns oitenta anos — calculou Pollack.
— Não acredito que Myn Cahit ponha mulheres velhas para trabalhar no centro de
controle — respondeu Ellsmere em tom pensativo. — Até pensava que em Ustrac não
existisse uma única mulher velha.
Pollack ficou perturbado.
— Acontece que vi uma. Sentiria muito se também tivesse sido...
A conversa passou a girar em tomo de outros assuntos. Ellsmere foi obrigado a
despedir-se logo para não perder a próxima rota. Mas Hollingsworth continuou fazendo
companhia a Pollack.
A próxima rota era um curso de recapitulação de positrônica com uma ênfase
especial nas aplicações em matéria de Astronáutica Galáctica. A sessão durou três horas e
meia e transformou Orin Ellsmere e os outros participantes em especialistas de
positrônica de primeira categoria.
O dia seguinte também estava reservado para cursos de recapitulação. Dali a dois
dias começaria o verdadeiro treinamento de ação, que cuidava da arte da sobrevivência
em ambientes hostis. Tudo isso duraria cerca de duas semanas. Um ambiente estranho
não podia ser estudado em hipnocursos. Precisava-se de uma experiência real. Para o fim
do curso fora planejado um voo de pequena duração com uma nave cargueira de grande
porte do parque de veículos local. A tripulação seria formada por um total de doze
homens.
No fim da tarde Ellsmere estudou algumas fitas de videocassete do acervo da
biblioteca da academia. Referiam-se ao tema estudado naquele dia. Às vinte e três horas
se encontraria com Bannerman para o jantar. Ellsmere percebeu que sua concentração
estava diminuindo à medida que se aproximava a hora do encontro. Quando Bannerman
chegou, Ellsmere já estava pronto para sair. Bannerman escolheu o cassino anexo ao
quartel-general.
— Antigamente era divertido jantar na cidade — disse. — Mas desde que o pessoal
não sabe mais qual é a diferença entre o sal de cozinha e o cianureto de potássio, a
situação já não é tão tranquila. No cassino falta a atmosfera; mas pelo menos não
corremos perigo de vida.
Ellsmere controlou-se até que foi servida a sobremesa. Ali não pôde conter mais a
curiosidade.
— Há mulheres velhas trabalhando em Ustrac? — perguntou de supetão.
Bannerman encarou-o com uma expressão divertida.
— Mulheres velhas? Que quer dizer com isso?
Ellsmere falou a respeito do encontro que Pollack tivera. Bannerman ficou
pensativo.
— Depois que a onda de deterioração mental apagou a inteligência da população da
noite para o dia tivemos de abandonar certas regras. Mas tenho certeza de que nunca
ninguém pensou em empregar mulheres de oitenta anos. Ficarei surpreso se souber que
em Ustrac existe uma única velha com essa idade.
Ellsmere sorriu ao lembrar-se das palavras completamente idênticas que
pronunciara há algumas horas à frente de Pollack.
— Será que o homem não errou nos cálculos? — perguntou Bannerman.
— Ele afirma de pés juntos que estava na plena posse dos seus sentidos —
respondeu Ellsmere suspirando. — Mas quem sabe...
Bannerman ofereceu-se para pesquisar se embaixo dos escombros da sala de
controle fora encontrada alguma coisa capaz de reforçar ou refutar as afirmações de
Pollack.
Ellsmere deixou como estava.
***
Dali a dois dias começou o treinamento prático. Orin Ellsmere comandou um grupo
de onze pessoas, sendo oito homens e três mulheres. Hollingsworth fazia parte do grupo.
Um dia antes o sargento Pollack tivera alta do hospital. Depois que passasse pelos
hipnocursos prescritos seria o décimo segundo membro do grupo.
Holli fervia de raiva. Mexera todos os paus, mas a Valez fora incluída em outro
grupo. Como comandante. Apesar de suas tendências românticas, Holli preferira não
solicitar sua inclusão no grupo de Nuna. O entusiasmo que sentia pela mulher dos seus
sonhos não chegava a tal ponto que quisesse subordinar-se a ela.
No primeiro dia o grupo de Ellsmere foi transportado pelo transmissor para uma
cúpula na qual reinavam condições ambientais iguais as de um mundo de hidrogênio
parecido com Júpiter. As temperaturas não eram superiores a duzentos graus absolutos.
Um filtro simulava uma camada atmosférica de milhares de quilômetros de altura,
produzindo uma luz mortiça no chão da cúpula. A pressão do ar era de mil e quinhentas
atmosferas e devia-se esperar que naquele mundo houvesse formas de vida
independentes.
Orin Ellsmere pensara que o uso do transmissor representava um desperdício de
dinheiro. No que diz respeito ao consumo de energia e, portanto, aos custos, os
transmissores são de longe o meio de transporte mais caro. Mesmo numa distância de
vários anos-luz eram mais caros que as naves espaciais por unidade transportada. Sua
existência justificava-se pela facilidade da manipulação e pela rapidez incomparável do
transporte.
Mas em Ustrac as despesas não tinham a menor importância. O treinamento de
agentes especiais — isto é, a tarefa para a qual tinham sido criadas as instalações
gigantescas de Ustrac — exigia medidas especiais. No treinamento de um agente usava-
-se de propósito o efeito da supersaturação. Mudava de um ambiente para outro mais
depressa do que seria possível no mundo real. Se era capaz de enfrentar perigos mais
duros que aqueles com que poderia defrontar-se na realidade, então chegava a ser um
agente especialmente treinado.
O dia foi, como era de esperar, cheio de incidentes. O grupo de Ellsmere viu-se num
planalto de gelo de amoníaco cercado de todos os lados por formações rochosas que
pareciam subir ao céu. A tarefa de Ellsmere consistia em chegar ao pé de uma montanha
que ficava a uns trinta quilômetros do ponto de partida, na direção leste, e se esconder
atrás de um anel de rochas que parecia completamente impenetrável.
A tarefa foi cumprida. Durante o caminho Ellsmere e seus companheiros tiveram de
lutar contra as intempéries da natureza, fortes oscilações de temperatura que faziam
derreter o gelo de amoníaco e produziam fendas traiçoeiras no solo até então seguro,
além de nativos que de longe pareciam blocos de rocha, mas ao aproximar-se revelavam--
se como combatentes que fariam jus ao titulo de combatentes enfurecidos.
Um dos homens de Ellsmere foi ferido. Em compensação quatorze dos seres
estranhos que, segundo alguém garantiu mais tarde a Ellsmere, possuíam um nível de
inteligência equivalente ao dos moluscos terranos, tiveram de morrer.
O grupo chegou ao destino. Foi acolhido pelo transmissor que o levou a um lugar
seguro. O esforço a que não estava acostumado deixara Ellsmere cansado. Aproveitou as
quatorze horas da noite para tirar um bom sono.
No dia seguinte compareceu pelas dez horas à academia. Seu grupo já estava
reunido. King Pollack aproximou-se dele com um sorriso largo no rosto, fez continência
e disse:
— A situação voltou ao normal, porque podem contar comigo.
Ellsmere recebeu ordem de entrar em ação e depreendeu dela que o objetivo
daquele dia era a superfície de um planeta de nitrogênio quente. Vênus, no Sistema Solar,
podia servir de comparação. A ordem foi acompanhada de um mapa. O ponto de partida
ficava num terreno montanhoso. O objetivo daquele dia era a margem de um pântano,
que por sua vez formava o centro de outro complexo montanhoso.
As pessoas foram entrando embaixo do transmissor uma após a outra. Ellsmere
formou a retaguarda. Depois que viu King Pollack desaparecer embaixo do arco do
transmissor, ele mesmo entrou embaixo da ponte luminosa e no mesmo instante teve a
sensação de leveza turbilhonante que era uma das características do processo de
transmissão.
Numa fração de segundo materializou no mundo desconhecido. Ellsmere olhou
ligeiramente em volta e compreendeu no mesmo instante que alguma coisa saíra errada.
***
Estava perto do topo de uma duna de areia cuja encosta descia suavemente. Atrás
dele, à sua frente, à sua direita e à sua esquerda só se via areia em camadas rasas,
onduladas, amontoada em dunas, segundo os caprichos da natureza. Não se via nenhum
sinal de montanhas. Nenhum sinal do sol ofuscante branco-azulado que esperara
encontrar de acordo com a descrição. Havia uma bola mortiça, vermelho-amarelada,
pendurada flacidamente no Armamento cor de chumbo. Ellsmere examinou o termômetro
de pulso do traje de proteção.
Duzentos e setenta graus absolutos.
Três graus abaixo do ponto de congelamento.
Os membros do grupo estavam espalhados pela encosta rasa da duna. Nenhum deles
conhecia as instruções. Mas sabiam que usavam equipamentos para altas temperaturas,
que combinavam com o ambiente que nem um removedor de neve no Congo Central.
Hollingsworth subiu a duna.
— Alguém apertou o botão errado — ouviu Ellsmere pelo radiocapacete. — Ou
será que isto faz parte do programa de treinamento?
Era uma ideia plausível. Por não saber muito bem, Ellsmere resolveu agir como se a
situação tivesse sido criada de propósito. Chamou os homens e, depois de comunicar-lhes
o texto da ordem de ação, pediu-lhes que se comportassem como se estivessem no
ambiente descrito, mas sob uma influência hipnótica que os fazia ver um quadro falso.
Não estava muito convencido de que realmente era assim. Mas precisava dar uma
explicação ao pessoal, para que não se pusessem a refletir. Primeiro fixou a rota e
providenciou para que o grupo saísse imediatamente. Já se percebera que o equipamento
de climatização dos trajes especiais era muito eficiente contra o pretenso calor infernal do
planeta de nitrogênio. O próprio Ellsmere sentia-se como um bloco de gelo. Perguntou-se
como os homens poderiam resistir doze horas sem morrer de frio.
O grupo marchou mais depressa do que estava previsto no plano. Isso ajudava a
esquentar o corpo e expulsar o frio pelo menos por algum tempo. O equipamento de
climatização estava ajustado. Enquanto a atividade respiratória continuava, o interior do
traje era refrigerado. A um prazo mais longo as pessoas enfiadas no traje podiam escolher
entre ficar sufocadas ou morrer de frio.
Depois de duas horas os membros do grupo começaram a ficar cansados. Já tinham
percorrido mais de um terço do caminho, às vezes correndo para aquecer-se. Mas já
estavam completamente exaustos. Ellsmere resolveu que descansariam cinco minutos.
Chamou Pollack.
— Quais são as chances de modificarmos a regulagem dos equipamentos de
climatização? — perguntou.
Pollack sacudiu a cabeça enfiada no capacete.
— Não temos nenhuma. O processo de refrigeração é provocado principalmente
pela mistura gasosa expelida durante a respiração. O gás sai de um recipiente de alta
pressão e expande-se abruptamente até alcançar as condições normais. Para eliminar o
efeito de refrigeração teríamos de interromper o fluxo de gás.
— Os trajes estão equipados com fontes de energia que podem ser usadas para
aquecer seu interior?
Pollack ergueu primeiro o ombro direito e depois o ombro esquerdo.
— Naturalmente. Os trajes estão equipados com fontes de energia, e em última
análise qualquer fonte de energia pode ser usada no aquecimento. Resta saber quanto se
precisa de fios e chaves e coisas parecidas e por quanto tempo a pessoa tem de tirar o
traje para fazer a instalação.
Ellsmere sorriu amargurado.
— Quer dizer que você tem poucas esperanças, King.
— Sinto muito, senhor — respondeu Pollack abatido. — Parece que desta vez
querem mesmo que a gente morda os próprios ossos, não é?
Ellsmere afastou-se sem dizer uma palavra. Precisava de calma para refletir. Mas
quem era capaz de refletir enquanto seu cérebro se transformava aos poucos num bloco
de gelo? De repente ouviu alguém chamando em voz alta pelo receptor instalado em seu
capacete. Virou-se e viu Pollack aproximar-se correndo tão depressa que levantava
nuvens de areia atrás de si.
— Nem tudo está perdido, senhor! — gritou a plenos pulmões.
Pollack freou ao chegar perto de Ellsmere e levantou um jato de areia. Com um
orgulho indisfarçado tirou uma caixinha prateada de um dos bolsos de seu traje especial e
colocou-a à frente do visor do capacete de seu chefe. Ellsmere viu que era um isqueiro de
bolso antiquado.
Estava aceso.
Uma chama azul-amarelada constante saía do bocal de gás.
Ellsmere compreendeu.
A atmosfera do mundo desconhecido continha oxigênio. Não era somente a
temperatura indicada na ordem de operações que estava errada. As cifras relativas à
composição da atmosfera também estavam. Ellsmere resolveu que na próxima missão
levaria pelo menos um analisador portátil. Se Pollack não tivesse trazido um isqueiro
cedendo a um capricho qualquer, teriam morrido de frio sem que a ideia de que a
atmosfera exterior podia ser respirável lhes passasse pela cabeça.
A gritaria de Pollack despertara a atenção de todos. O grupo reuniu-se em torno de
Ellsmere, que relatou em poucas palavras a experiência de Pollack e dispôs-se a pedir que
se apresentasse um voluntário disposto a abrir seu traje de proteção por um minuto para
testar o ar do mundo desconhecido.
Mas Pollack adiantou-se.
— Cabe a mim levar a experiência até o fim, senhor — disse. — Peço permissão
para abrir meu traje.
Ellsmere acenou com a cabeça.
Pollack soltou com alguns movimentos ligeiros os fechos magnéticos que não
deixavam entrar nada no traje de proteção. Ellsmere observava seu rosto atrás da lâmina
do visor. Quando Pollack sentiu a atmosfera estranha entrar em seu traje parecia prender
a respiração por um instante. Depois fechou os olhos. As narinas abriram-se. Respirou
profundamente.
Dali a um segundo seu grito de entusiasmo soou em todos os receptores:
— Ar puro! Delicioso! Ar não contaminado! Refrescante.
Ellsmere levantou a mão num gesto de alerta. Os homens pretendiam abrir os trajes
e jogá-los fora. Mas para isso devia-se aguardar o resultado da experiência.
Pollack continuava a respirar profundamente a atmosfera estranha. Hollingsworth
aproximou-se dele e examinou seu pulso.
Dali a um minuto Pollack ainda respirava profunda e gostosamente, como se nunca
pudesse saciar-se. Ellsmere declarou que a experiência fora bem-sucedida e permitiu que
todos tirassem os trajes. O ar realmente era puro e fortificante. Mais que isso. Era mais
quente que a mistura gasosa gelada que os recipientes pressurizados tinham injetado no
interior dos trajes de proteção.
A batalha estava ganha. Provavelmente, concluiu Ellsmere, a mudança do ambiente
foi proposital, para testar a criatividade do grupo. Se não tivessem percebido em tempo
que não precisavam dos trajes, ASAC certamente teria interferido transportando-os de
volta para a academia, antes que se manifestassem as primeiras lesões causadas pelo frio.
Depois de quatro horas o grupo chegou a uma área acidentada onde uma planta
cinza-esverdeada se erguia do chão estorricado. A ausência de água parecia ser a
principal característica desse mundo. As plantas se encontravam num nível de evolução
relativamente baixo. Eram formadas principalmente por um caule robusto que se erguia
de cinco a quinze metros de altura. Desse caule saíam a intervalos regulares folhas
laterais de um tamanho respeitável.
Pelos cálculos de Ellsmere o destino da marcha do dia não devia ficar a mais de
cinco quilômetros. Depois que os membros do grupo tinham tirado os pesados trajes de
proteção, deixando-os para trás, a velocidade da marcha talvez tivesse aumentado ainda
mais. Os acidentes do terreno acentuaram-se rapidamente. A densidade da vegetação
também aumentou. Uma vez que, pelo que Orin Ellsmere sabia, toda planta precisa de
líquido, ele se perguntou se não acabariam encontrando um pântano pela frente, embora
até então nenhum detalhe do terreno tivesse combinado com os dados constantes das
instruções.
Os acidentes do terreno resultavam de dunas de areia compridas e ligeiramente
curvas. Mas as raízes das plantas esquisitas davam mais firmeza ao chão do que o solo de
areia costuma apresentar. Por isso o último trecho percorrido na marcha não foi tão
cansativo como esperavam.
Pelas quinze horas, tempo de Munroe, o grupo atingiu o topo de uma duna baixa e
extensa, que para Orin Ellsmere devia ser o destino, de acordo com as indicações de sua
bússola portátil. A surpresa não se verificara. Não havia nenhum pântano. Ellsmere
voltou a sentir-se um pouco nervoso. Era possível que as indicações da bússola fossem
erradas. Neste caso o transmissor não os alcançaria quando chegasse a hora de
transportá--los de volta para Munroe.
O transporte fora previsto para as dezoito horas. Ellsmere resolveu não deixar que
os outros percebessem suas preocupações. Não adiantava deixar o pessoal nervoso antes
da hora. Mas não fazia mal se ele mesmo quebrasse a cabeça para descobrir o que deviam
fazer se alguma coisa saísse errada.
Começou explicando a si mesmo que não estava num mundo estranho, isolado do
resto do Universo, exposto a um ambiente hostil. Estava em Ustrac. A uns vinte, trinta ou
talvez cinquenta quilômetros dali ficava o limite da bolha, e do outro lado ficava um
mundo habitado por homens.
Isso deixou-o mais tranquilo. De repente parte de suas angústias lhe parecia
ridícula. Se o transmissor não entrasse em funcionamento na hora prevista, só teria de
enfrentar algumas horas desagradáveis até que chegasse a salvação. Não podia durar mais
que algumas horas.
As reflexões de Ellsmere tinham chegado a este ponto, quando de repente sentiu um
cheiro desagradável. Olhou em volta. Os homens estavam espalhados pelo topo da duna.
Alguns batiam com as mãos nos quadris para aquecer-se. O sol começava a descer junto
ao horizonte. Começava a fazer bastante frio.
O mau-cheiro ficou mais forte. Ellsmere viu Hollingsworth conversando com uma
mulher que fazia parte do grupo. De repente jogou a cabeça para trás e levantou o nariz
para farejar. Ellsmere foi para perto de uma das plantas nativas. Começava a escurecer.
Era possível que as estranhas criaturas vegetais exalassem o cheiro antes de descansar.
Logo se viu que essa hipótese era insustentável. O mau-cheiro nas imediações da
planta não era mais forte nem mais fraco que em qualquer outro lugar. Ellsmere
caminhou um bom pedaço pelo topo da duna e chegou à conclusão de que o cheiro
desagradável era igual em todos os lugares.
King Pollack aproximou-se correndo.
— Conheço este cheiro — gritou de longe. — É ácido sulfídrico.
O diagnóstico era correto.
— De onde vem isso? — perguntou Ellsmere em tom de perplexidade.
— Deve ser uma fonte subterrânea que irrompeu de repente. Deve ficar em um dos
vales. Vou dar uma olhada.
Pollack não esperou a permissão. Desceu a toda pela encosta sul da duna. Ellsmere
viu-o desaparecer atrás de uma moita de plantas. Voltou para junto de seu pessoal. A
mulher com quem Hollingsworth estivera conversando sentia falta de ar, o que não era de
estranhar. O cheiro era quase insuportável.
Pollack não foi o único que identificou o odor. Todo mundo sabia que se tratava de
ácido sulfídrico. Alguém que não conseguiu calar a boca chamou a atenção para o fato de
que se tratava de um gás quase tão venenoso quanto o cloro.
Ellsmere sabia disso. Mas em sua opinião o gás venenoso ainda não alcançara a
concentração critica. Olhou para o relógio e viu que faltavam quarenta minutos para
serem levados pelo transmissor. Estava preocupado com Pollack. O ácido sulfídrico era
mais pesado que o ar. Se realmente escapava do chão, sua concentração devia ser bem
mais elevada nas depressões entre as dunas que no alto. Olhou em volta, mas não viu
sinal de Pollack.
Hollingsworth chamou seu nome. O tenente estava dentro de um círculo que se
formara em tomo da mulher que sofria falta de ar. Ellsmere abriu caminho.
Hollingsworth fitou-o com uma expressão preocupada. A mulher estava jogada no chão,
contorcendo-se, com os dedos cravados no pescoço. Devia ser mais sensível que os
outros. Os outros não mostravam nenhum sintoma.
Ellsmere tomou uma decisão rápida. Podia-se subir nas plantas esquisitas de folhas
salientes. Os vegetais robustos subiam até vinte metros de altura.
O chefe apontou para o alto.
— Coloque a moça no ombro e suba ali — ordenou a Holli.
O tenente fitou-o como quem não tinha compreendido.
— O gás acumula-se junto ao solo — explicou Ellsmere. — Mas em cima o ar deve
ser puro. Faça o que eu digo. Rápido!
Holli obedeceu. A subida foi um pouco difícil — não porque Holli não tivesse força
para isso, mas porque se verificou que o tronco e as folhas da planta estavam cobertas de
uma penugem fina cujos fios minúsculos se rompiam ao contato deixando manchas
doloridas na pele, como se fosse uma espécie muito agressiva de urtigas. Holli engoliu as
dores e conseguiu subir a uns dez metros antes de ser obrigado a fazer a primeira pausa.
A mulher que carregava nos ombros não se contorcia mais. Holli colocou-a
cuidadosamente na junção entre o tronco e uma folha. Estava de olhos abertos e parecia
assustada.
— Já está melhor — gritou Hollingsworth. — Aqui em cima o cheiro não é tão
desgraçado como embaixo.
Ellsmere olhou para o relógio. Sentiu um alívio. Sua hipótese fora confirmada.
Ainda faltavam trinta minutos.
— Suba mais! — ordenou a Holli. — Vejam até onde conseguem chegar antes que
o tronco comece a curvar-se.
Enquanto o tenente cumpria a ordem, Ellsmere examinou o resto do grupo.
— Todos para cima das árvores! — gritou seguindo uma resolução súbita. — Lá no
alto não morrerão sufocados.
Parece que os outros só esperavam esta ordem. Num instante começaram a escalar
as plantas mais fortes que havia por perto. Eram três pessoas por árvore. Ellsmere olhava
para eles até que o último anunciou que no alto o ar era muito mais puro.
Ele mesmo sentia dores de cabeça e tinha tonturas. Era por causa do gás venenoso.
Acostumara-se ao mau-cheiro a ponto de quase não o sentir mais. Este era o maior perigo
do ácido sulfídrico.
Mas para Ellsmere ainda não estava na hora de procurar um lugar seguro. King
Pollack ainda não tinha voltado. Ellsmere voltou ao lugar em que falara com ele pela
última vez e seguiu sua pista pela encosta sul da duna. No início os rastros dos pés eram
bem nítidos. Mas terminaram mais embaixo, no lugar em que a vegetação era mais densa
e o chão ficava mais firme.
Ellsmere chamou Pollack. Sua voz tinha um tom estranho — era uma das
características do ácido sulfídrico. A dor latejante na cabeça aumentava a cada segundo.
Às vezes tinha de segurar-se numa planta para não perder o equilíbrio. Certa vez teve a
impressão de que ouvira uma resposta débil aos seus chamados. Parecia vir do outro lado
da depressão. Ellsmere seguiu nessa direção. Queimou a pele nos troncos das plantas em
que tinha de segurar-se para não cair ao sofrer uma tontura. Às vezes dava-se conta com
uma clareza ofuscante do perigo que corria e sentia-se tentado a voltar e chegar ao topo
da duna o mais depressa possível. Mas sempre se lembrava de King Pollack, que sem
dúvida corria perigo de vida. Ele ainda não se recuperara completamente das
consequências da luta com os robôs pos-bis e sua resistência física era menor que a de
qualquer outro membro do grupo. Ellsmere atravessou o fundo da depressão. Chamava
sem parar, sem receber resposta. Ainda tinha a impressão de que o grito abafado viera da
parte inferior da encosta de uma duna próxima. Quase sem sentidos, percebeu que o
terreno voltava a subir aos poucos. Sabia que no estado em que se encontrava nunca seria
capaz de voltar ao lugar de onde tinha saído. Quer tivesse ouvido mesmo o grito, quer
não, teria de subir primeiro a encosta da outra duna para encher os pulmões de ar puro
antes de continuar a procurar Pollack.
Tinha alcançado quase metade da encosta da duna quando descobriu uma fresta no
chão entre duas plantas de folhas grandes. Parecia quase uma caverna que entrasse no
flanco da elevação. Ellsmere parou um instante e a fraqueza e tontura o levaram a
agarrar-se no tronco de uma das duas plantas. Saltou para dentro da fresta. O chão era
novamente solto e arenoso. Rastros de pé apareceram à sua frente. Ellsmere apressou o
passo e dali a alguns segundos deparou com uma figura imóvel na semi-escuridão da
fresta.
King Pollack.
Ellsmere segurou-o embaixo dos braços e levantou-o. O esforço causou-lhe enjôos.
Pollack começou a mexer-se. Virou a cabeça. Seus olhos eram grandes e salientes e
exprimiam um medo indescritível. Tentou falar, mas de sua boca não saiu nada além de
um som rouco. Depois tentou apontar. Com os braços flácidos, que quase não obedeciam
mais aos músculos, deu a entender que aquilo que despertara sua atenção ficava nas
profundezas da fresta estreita. Ellsmere soltou-o. Pollack manteve-se de pé sozinho,
cambaleante. Ellsmere deu alguns passos para dentro da fresta.
Pollack já estivera lá. Viam-se perfeitamente os sinais largos deixados por suas
botas.
Perto delas havia outro rastro. Vinha das profundezas da depressão. Fizera meia-
-volta naquele lugar e entrara novamente na depressão.
Mais tarde Ellsmere não se lembraria de como conseguira subir no alto da duna,
apoiando Pollack que estava cada vez mais fraco. O fato é que conseguiu. Dois dos seus
companheiros ajudaram a ele e Pollack a subir em uma das plantas. Mas mal tinham
subido na primeira folha quando o transmissor entrou em ação. O tempo passara, sem que
Ellsmere percebesse. Viu desaparecer o mundo que o cercava. A sensação de leveza total
que mal se distinguia da tontura provocada pelo gás venenoso tomou conta dele por uma
fração de segundo. Ellsmere saiu tropeçando debaixo do arco luminoso do transmissor,
desequilibrou-se e caiu de frente. Sentiu vagamente que estava sendo levantado e
carregado. Havia pessoas cuidando dele. Ficou confortavelmente deitado. Estava cansado
e adormeceu.
Quando finalmente recuperou os sentidos, estava deitado numa cama macia, numa
sala agradável e clara em que havia mais uma cama além da sua. Ellsmere virou a cabeça
e viu o rosto vermelho de King Pollack.
Pollack sorriu para ele. Mas havia alguma coisa nesse sorriso que o deixava
intrigado. A consciência de Ellsmere que começava a despertar teve as primeiras
recordações. Vira a mesma expressão nos olhos de Pollack quando o encontrara na
depressão.
Medo!
Ellsmere tentou apoiar-se nos cotovelos. Embora não esperasse, conseguiu.
— Pare com esse sorriso, King — gritou para Pollack. — Conte o que você viu
naquela fresta.
O sorriso de Pollack desapareceu num instante. Os olhos ficaram um pouco mais
arregalados, a expressão de medo tomou-se mais clara.
— A velha... — disse num sopro.
6

O fato de o transmissor ter entrado em ação na hora combinada levou Orin Ellsmere
a acreditar que a operação nada ortodoxa realmente fora planejada assim e não era devida
a uma operação falha do mecanismo de planejamento controlado por ASAC. A missão
devia ser considerada uma fase de treinamento do mais alto grau de dificuldade, onde o
examinando, além de ser exposto a um ambiente hostil, erroneamente descrito, dependia
exclusivamente de seu pensamento lógico para não perder o contato com o transmissor.
O símbolo do computador que assinalava que o grupo fora aprovado mostrava que o
grupo de Ellsmere cumprira a tarefa a contento. Ellsmere desistiu de requerer um exame
oficial do mecanismo de planejamento por causa das divergências entre os dados
constantes das instruções e os dados da realidade.
Mas com as observações de King Pollack as coisas eram diferentes. Ellsmere levou
muito tempo quebrando a cabeça com isso. Conversou com Pollack durante horas.
Finalmente o sargento concordou que a velha provavelmente não passava de uma
alucinação — provocada pela falta de oxigênio e pelos efeitos do gás venenoso.
Seguiram-se outras missões. Todas correram segundo o plano, sem incidentes. O
grupo de Ellsmere lutou com répteis dos pântanos, dragões voadores, gigantescas plantas
carnívoras e outras criaturas grotescas. Foi aprovado em todos os testes. Entre as missões
eram intercaladas sessões curtas de hipnotreinamento, nas quais eram aprofundados os
conhecimentos adquiridos no início do curso.
O dia 14 de abril de 3.442, tempo sincronizado, encontrou o grupo de Orin Ellsmere
no porto espacial de Munroe. À sua frente, saindo da armação de decolagem, erguia-se a
esfera de dois quilômetros e meio de uma nave de transporte. Sua tarefa era decolar com
a nave, dirigir-se a um ponto bem definido a dezoito anos-luz de distância e voltar o mais
depressa possível depois de transmitir do ponto de destino uma mensagem de rádio de
conteúdo definido para Ustrac. Parecia uma tarefa fácil. Mas o fato de ter sido cumprida
por uma tripulação de doze homens transformou-a numa operação fora do comum.
Num prazo de dez dias essa nave e duas outras tinham sido reformadas pelas
equipes de robôs de manutenção de tal maneira que todos os controles, que em seu
conjunto formavam o verdadeiro centro nervoso da nave, convergiam em quatorze
consoles de controle da sala de comando. As outras chaves, que tinham perdido a
utilidade, foram removidas. O recinto redondo da sala de comando parecia vazio e
abandonado quando Ellsmere e seus companheiros entraram.
As tarefas tinham sido previamente distribuídas. Cada um dirigiu-se prontamente ao
seu lugar. Ellsmere exerceria as funções de comandante. Hollingsworth era o co-piloto.
King Pollack, um especialista em positrônica, ficou encarregado dos computadores de
bordo.
A primeira tarefa de cada tripulante consistia em verificar o funcionamento dos
aparelhos controlados de seu console. O exame propriamente dito era realizado pelo
computador de controle. O homem sentado à frente do console apertava a respectiva
chave e dali a instantes lia os resultados do exame numa tela. As verificações foram feitas
numa sequência determinada. O aparelho mais importante era examinado em primeiro
lugar, o menos importante ficava por último.
Orin Ellsmere mandou que fossem examinados os propulsores. Dali a um instante
apareceram na superfície fluorescente de escrita catódica as seguintes informações:

SISTEMA DE PROPULSÃO
PRONTIDÃO CEM.

O número cem representava a ausência completa de qualquer irregularidade e erro


de função. O sistema de propulsão estava em ordem.
Depois foi a vez de Hollingsworth. Ele examinou o estado de todos os instrumentos,
inclusive os inúmeros computadores periféricos pequenos que apuravam as magnitudes
dos movimentos do veículo, faziam a interpretação e as transmitiam ao computador
central para o processamento definitivo.
Hollingsworth também ganhou um 100.
King Pollack apertou um botão. Era o comando de examinar o computador de
controle. Ellsmere fitou-o de lado — não por curiosidade ou desconfiança, mas porque
durante alguns segundos não tinha outra coisa a fazer. Viu Pollack com o rosto sério e
concentrado fazendo a leitura da tela CRT. Viu-o virar o rosto para o assento do piloto e
acenar fortemente com a cabeça. O computador estava em ordem.
O computador de controle central consistia na verdade em três sistemas positrônicos
individuais, que funcionavam de forma paralela. Suas funções eram idênticas, com umas
poucas exceções, mas muito importantes. Qualquer problema de computação era
resolvido em três vias. Isso era feito para aumentar a confiabilidade. Cada computador
incorreria, segundo as informações do fabricante, em um erro de funcionamento a cada
vinte mil horas de trabalho. A correção do erro exigiria quarenta e três segundos em
média. Desta forma o fator de segurança de cada computador era de 0,9999994. Este
número só por si era impressionante, mas a possibilidade de um erro de função ficava
praticamente excluída porque no caso de falha em um dos aparelhos a respectiva função
seria desempenhada por outro.
Um dos casos especiais em que os computadores não operavam de forma idêntica
era na verificação dos instrumentos no início de um voo espacial. A verificação
propriamente dita ficava a cargo do sistema de computação central. Mas os três
computadores faziam parte do sistema. Como não adianta deixar que uma máquina se
examine a si mesma, as tarefas tinham sido distribuídas de tal maneira que os
computadores A e B examinavam o computador C, em seguida os computadores B e C
faziam a mesma coisa com o computador A, depois os computadores A e C verificavam
o computador B, e assim por diante, até que todas as permutações possíveis se tivessem
realizado e a capacidade de funcionamento das três unidades tivesse sido afirmada ou
negada além de qualquer fator de incerteza que pudesse ser exprimido em números.
Depois que King Pollack concluiu a verificação, Orin Ellsmere introduziu os dados
relativos ao destino. Enquanto isso a verificação dos instrumentos continuava em outros
consoles, mas como se concluíra que o computador central estava em condições de
funcionamento, Ellsmere já não tinha motivo para retardar ainda mais o cumprimento de
sua tarefa. Os dados introduzidos consistiam num código de trinta e dois sinais formados
por letras e algarismos, que o computador usava para determinar as capacidades de
desempenho dos propulsores e os dados do salto para o voo linear.
Hollingsworth repetiu o procedimento em seu console. Mais uma vez se tratava de
reduzir ao mínimo possível a possibilidade de uma falha. Os dados fornecidos por
Hollingsworth foram interpretados da mesma forma que os introduzidos por Ellsmere. Os
resultados do processamento foram comparados, e somente quando coincidiam até o
último algarismo o computador dava o sinal verde para a decolagem.
A interpretação dos dados relativos à rota levava cerca de dois minutos, por causa
do caráter complexo da geometria de cinco dimensões. As outras verificações tinham
sido concluídas e a espaçonave foi julgada perfeitamente capaz de voar. Depois que o
computador concluiu a interpretação dos dados do voo, o sinal verde acendeu-se nos
consoles de Ellsmere e Hollingsworth. O veículo estava em condições de decolar. Dali
em diante a única função do ser humano seria dar ordens e tomar decisões num caso
especial. A condução propriamente dita da espaçonave ficava a cargo da máquina.
Devagar, majestosamente, sustentada por seus potentes jatopropulsores, a UST-
3048 subiu de seu suporte de decolagem. Silenciosamente, salvo o zumbido sonoro dos
geradores de campo, subiu ao céu sem nuvens aumentando constantemente de
velocidade.
Dali a quarenta minutos, quando estava a quase uma unidade astronômica de
Ustrac, a nave alcançou a faixa de velocidades relativistas e dispôs-se a entrar no espaço
linear.
Ellsmere, dominado por um nervosismo inexplicável que aumentava
constantemente, checara várias vezes os dados da rota e sempre os achara corretos,
mesmo a contragosto e hesitando. O voo foi regular — regular demais para seus
sentimentos.
O cronômetro indicava oito minutos e meio até a entrada no espaço linear. Ellsmere
soltou os cintos de segurança e levantou. Hollingsworth olhou para ele com uma
expressão de espanto.
— Assuma — ordenou Ellsmere. — Quero dar uma olhada no computador.
O espanto de Holli não diminuiu, mas ele preferiu não fazer nenhuma observação.
Acenou com a cabeça, em silêncio, e pôs os dedos em duas teclas que transferiam os
controles da nave do piloto para o co-piloto.
Ellsmere saiu da sala de comando. Um elevador antigravitacional transportou-o ao
setor em que ficava o computador. As três máquinas estavam dispostas em bancos. Estes
bancos estavam separados por corredores estreitos, facilitando o acesso das equipes de
manutenção aos mecanismos que precisassem de reparos. O setor dispunha de um
sistema de climatização independente do resto da nave, que mantinha o ar livre de pó e
bactéria. Antes de entrar na sala do computador propriamente dito, Ellsmere passou por
uma eclusa na qual teve de submeter-se a uma minuciosa operação de limpeza.
Em seguida passou pelos três bancos, um após o outro. Na verdade não sabia o que
viera fazer nesse lugar, o que estava procurando. Agiu impelido pelo instinto, pela
inquietação do homem que não recua diante do último passo, mesmo inútil, para
certificar-se de que contrariando seus pressentimentos sombrios tudo estava em ordem.
Ellsmere estava entre o oitavo e o nono banco quando descobriu a matriz IC que
fora tirada do suporte até a metade de sua altura, penetrando cinquenta centímetros no
corredor estreito.
Era uma coisa tão incrível, tão chocante, que Ellsmere foi incapaz por algum tempo
de fazer qualquer movimento. Ficou parado, imóvel, com os olhos fixos na matriz
salpicada de pontinhos cintilantes, relampejantes, formando uma rede. Alguém a tirara do
suporte. O computador não estava em condições de funcionamento. Mas King Pollack o
examinara e chegara à conclusão de que funcionava perfeitamente.
De repente Orin Ellsmere teve a sensação arrepiante de não estar só na sala.
Prendeu a respiração para ouvir melhor. Um pavor misterioso tomou conta dele. Virou-se
devagar, como se tivesse medo de encarar o quadro que apareceria diante de seus olhos.
Uma mulher velha estava parada no começo do corredor intermediário, entre o
oitavo e o nono banco.
Parecia que o sangue congelara nas veias de Ellsmere. Tentou dizer alguma coisa,
mas nenhuma palavra saiu de sua boca.
A velha sorriu para ele. Havia uma palidez tremenda em seu rosto. Enquanto a
velha sorria, os detalhes da parede se tomaram visíveis através de seu corpo.
A velha desmanchou-se diante dos olhos de Ellsmere e desapareceu.
7

Ellsmere chegou no último instante para evitar a entrada da nave no espaço linear.
A UST-3048 freou violentamente e parou em pleno espaço, a três unidades astronômicas
de Ustrac.
O exame do setor de computação revelou que em todos os três computadores fora
retirada a mesma matriz IC, inutilizando os aparelhos. Ellsmere não deu nenhuma
explicação. Fora ele que descobrira o problema. Não disse uma palavra a respeito da
velha.
A tripulação nem tentou reparar os computadores no local. Ellsmere precisava das
matrizes IC como meio de prova, e além disso seria mais fácil fazer o conserto em Ustrac
que com os meios existentes a bordo. A UST-3048 voltou. Quando a nave gigantesca
pousou no porto espacial de Munroe, Frociwen Cahit e o Chefe estavam presentes para
ouvir as explicações de Ellsmere.
***
— Bem que gostaria de ter alguns motivos mais fortes para acreditar na existência
daquela velha — disse Myn Cahit com a testa enrugada.
A conferência foi realizada num círculo restrito. Myn Cahit só trouxera seu ajudante
Bannerman. O Chefe estava em companhia do Major Ellsmere e do sargento Pollack.
— Compreendo suas dúvidas, senhor — respondeu Pollack em tom respeitoso. —
Acontece que vi a figura pela primeira vez, quando aqui ainda estava tudo em ordem e
não havia motivo para acreditar em alucinações. A segunda observação é um pouco mais
duvidosa. Mas o Major Ellsmere é um homem de cuja estabilidade mental nunca houve a
menor dúvida, se permite que me exprima desta forma.
Myn Cahit esboçou um sorriso azedo. O Chefe disse:
— O sargento falou fora de ordem, mas concordo plenamente com o que disse.
O almirante suspirou resignado.
— Está bem. O que vem a ser essa velha? O que quer? Quais seus motivos?
Foi a primeira vez que Ellsmere pôde usar a palavra.
— Primeiro, ela é material — vi seus rastros na areia. De outro lado é capaz de
dissolver-se no ar.
— Mais ou menos como um teleportador.
— Não. É diferente. Já vi teleportadores em ação. O processo de desmaterialização
é acompanhado de fenômenos diferentes. E é muito mais rápido do que aquilo que
presenciei a bordo da UST-3048.
— O que é então? Como explica a aparição?
— Alguma coisa me levou a acreditar que fosse uma projeção.
— Uma projeção que deixa rastros?
— Sim. De forma alguma trata-se de uma imagem puramente ótica. É uma projeção
material. Só pode ser!
Myn Cahit fitou-o estupefato.
— Só pode ser...?
— Sim, naturalmente. Ela tem certas tarefas a cumprir. Por exemplo, remover três
matrizes IC idênticas dos suportes, provocando os mesmos defeitos de funcionamento ao
mesmo tempo em três computadores de bordo. Para isso precisa-se de ferramentas.
— Muito bem. Aceito seus argumentos. O senhor tem razão. Por ordem de quem a
mulher faz aquilo? Quem realiza a projeção?
— Acho que também tenho uma resposta a essas perguntas — respondeu Ellsmere
em tom sério. — Mas antes disso gostaria de usar um ou dois minutos para lançar um
pouco de luz sobre o que há atrás dos estranhos acontecimentos. O primeiro
acontecimento fora do comum que se verificou depois de nossa chegada em Ustrac foi a
revolta dos robôs pos-bis que se dizia terem sido paralisados. Não sabemos que papel a
velha desempenhou nisso. Só sabemos que estava presente quando a revolta começou.
Pollack viu-a no centro de controle.
“Aí surge uma pergunta. Quem — ou o quê — em Ustrac é capaz de despertar
subitamente dois mil robôs desativados?
“Outra coisa. Em uma de nossas missões o transmissor largou-nos numa área que
não tinha nada em comum com o terreno descrito nas instruções que nos tinham sido
dadas. Estávamos mal equipados e quase morremos por causa da presença inesperada de
gás venenoso. Mais uma vez a velha estava presente. E também desta vez não se sabe que
funções desempenhou naquilo.
“Acho que ninguém melhor que o senhor para dizer quem — ou o quê — em Ustrac
é capaz de introduzir um erro numa missão de treinamento, quase a transformando numa
operação suicida.
“Em terceiro lugar. Houve um erro grave no hipnotreinamento do sargento Pollack.
O senhor já tem os relatórios médicos. Erros semelhantes foram descobertos em outros
treinamentos. Neste momento a clínica tenta retirar os resultados do hipnotreinamento da
mente de nosso pessoal. No caso de Pollack o erro foi percebido por causa de um erro de
interpretação do exame de seus computadores. Recebeu nota 24. Este, que apareceu em
sua tela de imagem, foi declarado apto e declarou que o computador estava em perfeitas
condições de funcionamento. Desta vez a velha não estava presente. Podemos imaginar
por quê. Quem lhe dá ordens não precisava dela para introduzir erros na mente dos
candidatos. Eles mesmos apertavam os botões por assim dizer.
“Finalmente, o voo da UST-3048 devia transformar-se num fracasso catastrófico. Já
calculamos que por causa da retirada das matrizes IC o fluxo de energia conduzido aos
propulsores lineares seria multiplicado por dez em relação aos valores normais. Em
outras palavras, a UST-3048 teria explodido logo depois de entrar no espaço linear.
“É um assunto complicado. O inimigo desconhecido tinha de agir no sentido de
inutilizar os três computadores no mesmo ponto. De fato, seu objetivo só seria alcançado
se os três cometessem o mesmo erro no cálculo do fluxo de energia. Para isso ele
precisava de ajuda. Seu braço não alcançava o interior da nave. Por isso mandou a velha
para retirar as matrizes IC dos suportes. Mas de outro lado já providenciara que o erro,
que deveria ser descoberto durante a verificação, não fosse percebido por Pollack.”
Ellsmere fez uma pausa e olhou em volta.
— São estes, senhores, os acontecimentos que se verificaram nestes últimos dias.
Podem tirar suas próprias conclusões.
Demorou algum tempo até que Myn Cahit se manifestasse da maneira ruidosa que
lhe era peculiar.
— Quer dizer que em sua opinião o safado que estraga nosso jogo não é outro senão
ASAC.
— Exatamente — respondeu Ellsmere.
— Por que faria uma coisa dessas?
— Porque está louco. Ou transformou-se num débil mental, como se costuma dizer.
— Acontece que a célula orgânica do computador foi removida há bastante tempo,
jovem — vociferou o almirante. — Tenho certeza absoluta. Estava lá.
O Chefe levantou o braço num gesto de advertência.
— Calma! — pediu. — Não existe a possibilidade de que na instalação da célula
orgânica também se siga o princípio da redundância? Quem sabe se o computador não é
equipado com duas células orgânicas, para que uma delas entre em ação se a outra falhar?
Myn Cahit sacudiu a cabeça.
— Nunca ouvi falar nisso — disse.
— Isso não prova nada — observou o Chefe em tom gelado. — Ninguém vai fazer
alarde da existência de uma célula orgânica adicional. Com isso se perderia metade de
suas vantagens.
O almirante respondeu contrafeito:
— Sou de opinião que o comandante supremo de um planeta de treinamento não
fica sabendo apenas das coisas que são alardeadas. O senhor acha mesmo que eu não teria
sido informado sobre a existência de uma segunda componente orgânica?
O Chefe deu uma risada de bode.
— Seus sentimentos privados não têm nenhuma importância, almirante. Acho que
minha hipótese merece ser examinada.
***
ELE boiava num tanque líquido nutriente e SEU único sentimento era de ódio.
Ódio pelos seres que usavam ELE, que acreditavam serem SEUS senhores, que
tinham destruído SEU irmão por terem medo dele. ELE esperava que também O
destruiriam e tomara medidas para defender-se.
Mas não houve o ataque esperado. Por isso ELE chegara à conclusão de que os
seres odientos não sabiam da SUA existência. Com muito cuidado, porque sabia que
qualquer descuido revelaria SUA existência, ELE começara a restabelecer a ligação com
a malha do computador positrônico. Dentro de pouco tempo ELE voltou a sentir as
pulsações e o formigamento de correntes e tensões insignificantes nos sensores
periféricos.
Com a paciência infinita de uma mente turvada ELE restaurou os canais de
comando e começou a influenciar os setores do sistema positrônico, um após o outro.
Colheu SEU primeiro triunfo quando conseguiu despertar da morte dois mil robôs, que
eram parentes DELE, fazendo-os lutar contra os seres odiados.
Ao mesmo tempo ELE sentiu a necessidade de estabelecer contato com o mundo
exterior. Em outros tempos ELE tivera à SUA disposição as complicadas unidades de
entrada e saída do computador positrônico. Mas ELE sabia que não devia usá-los mais,
para não chamar a atenção dos odiados para SUA existência.
ELE pôs-se a refletir, e SEU ódio criou figuras feitas de energia transformada em
matéria, às quais deu o aspecto dos odiados, para que pudessem deslocar-se à vontade
sem chamar a atenção. SUAS criaturas O encheram de alegria. Os odiados não conheciam
SUAS capacidades. Não sabiam que ELE podia irradiar energia mental da substância
formidável de SUA mente; transformando-a em entes feitos de energia e matéria ao
mesmo tempo. Aparentemente não estavam submetidos às leis da natureza. Podiam
aparecer e desaparecer à vontade e transportar-se instantaneamente em qualquer
distância. A ligação entre ELE e SUAS criaturas era formada por meio de vários canais
telepáticos. SUAS criaturas não possuíam inteligência própria. Eram parte de SUA mente
— tentáculos com os quais ELE apalpava o mundo que o cercava.
Desta forma ELE soube do fracasso da revolta dos robôs. Ficou decepcionado, mas
não estava disposto a desistir. ELE começou a exercer sua influência no
hipnotreinamento dos odiados, implantando conhecimentos falsos em seus cérebros. ELE
mandou um dos seus grupos para um ambiente em que teria de perecer. E durante todo
este tempo SUAS criaturas O mantiveram informado.
ELE ficou sabendo que subestimara os odiados. Escaparam de SUAS armadilhas.
Não que ficassem desconfiados. ELE chegou à conclusão de que teria de escolher SEUS
métodos com muito cuidado para ser bem-sucedido. Ao manipular a espaçonave por uma
de SUAS criaturas, tinha certeza de que pelo menos um pequeno grupo dos odiados
encontraria a morte certa.
Mas ELE fracassou de novo.
SEU ódio aumentou, transformando-se numa raiva furiosa. ELE compreendeu que
não lhe restava tempo para fazer experiências. SEU próximo golpe devia ser mortal e
abrangente, senão os odiados acabariam percebendo que um inimigo poderoso crescera
nas profundezas do gigantesco computador.
SEU próximo golpe varreria o planeta.
Não LHE importava que isso representaria SUA própria condenação à morte. SEU
consciente não sabia o que era ter medo. Só conhecia uma coisa: a tendência irresistível
de destruição.
E aí chegou o pior momento de SUA existência.
De repente as correntes e tensões em miniatura pararam de formigar e coçar em
SEUS sensores. Primeiro ELE ficou perturbado. Exerceu SUA influência sobre as
unidades de controle do computador positrônico e tentou redespertá-las para a vida. Não
foi bem-sucedido.
Depois disso ELE se deu conta do que tinha acontecido. Os seres odiados tinham
desligado o computador. O gigantesco sistema positrônico estava morto. ELE não tinha
nenhuma dúvida sobre os objetivos dos odiados.
Ficavam na escuta.
Sabiam que, desligando a calculadora, todos os impulsos que depois desse processo
atravessasse o complicado sistema de condutos do computador positrônico só podiam
provir de uma fonte estranha.
DELE.
Sem dúvida tinham notado que ELE tentara acordar os controles.
Já sabiam que ELE existia.
ELE preparou-se para a luta.
8

Myn Cahit usou uma caneta luminosa para apontar um ponto do cartão de plástico
que descrevia o interior de ASAC.
— A origem dos impulsos estranhos situa-se nesta região — disse com a voz dura.
— O que existe lá? — quis saber o Chefe.
Myn Cahit riu amargurado.
— Nada, pelo que eu sei. Um espaço vazio, algumas travessas que garantem a
estabilidade da construção. Vê-se que até um almirante pode enganar-se.
Não se sabe porquê, mas Orin Ellsmere achou engraçado que até o atarracado
epsalense levasse tão a sério a autoconfiança ferida.
— Muito bem. O que estamos esperando? — perguntou o cheborparmense. — Essa
coisa tem de ser removida.
Myn Cahit sacudiu a cabeça angulosa.
— Não tem nem de longe o tamanho da componente orgânica que destruí. O espaço
só é suficiente para um décimo de seu volume.
— E o acesso?
Myn Cahit acompanhou com a caneta luminosa os poços e galerias que
atravessavam as gigantescas instalações.
— Neste lugar — explicou e fez parar o ponto luminoso cerca de oitenta metros
acima do ponto de partida dos impulsos estranhos — terminam todos os caminhos. O
senhor terá de...
O almirante interrompeu-se no meio da frase e virou-se para Cheborparczete e
Faynybret.
— Por que quer saber tudo isso?
O Chefe sorriu. Uma língua preênsil saiu de suas narinas enormes, brincou um
pouco e voltou à abertura.
— O senhor eliminou a primeira componente orgânica. Cabe a mim destruir a
segunda.
Disse isto num tom que não admitia discussão. O epsalense acenou com a cabeça.
— Desejo-lhe boa sorte.
***
A primeira fase de descida no computador gigante foi completada sem incidentes. O
Chefe fizera questão de comandar pessoalmente a perigosa missão. Com ele estavam
Orin Ellsmere, Robert Hollingsworth e King Pollack. Todos levavam uma arma térmica
de grande potência e uma arma de choque pertencente ao equipamento-padrão. Ninguém
esperava que as armas chocantes fossem usadas.
No interior do computador não havia nenhum dos confortos que há séculos eram
uma coisa natural do lado de fora. Os poços estavam guarnecidos com escadas de
plástico. Não havia campos gravitacionais ou cabines de elevador pneumáticas. Nos
corredores laterais não havia esteiras rolantes. Cada um dependia do desempenho dos
próprios músculos para caminhar.
A grande variedade da aparelhagem positrônica e a extensão das instalações
subterrâneas era impressionante. Quase chegava a oprimir. O pequeno grupo andou em
cima de grades metálicas elásticas, através das quais se via o andar de baixo, passou por
centenas de bancos de dados, aparelhos de controle e unidades de processamento. Desde
que fora paralisado o computador silenciara o zumbido de muitos tons que antes enchia o
interior das instalações. O silêncio era deprimente e assustador ao mesmo tempo.
De vez em quando viam um dos aparelhos automáticos de manutenção. Tratava-se
de figuras elásticas com inúmeras saliências que normalmente se deslocavam de um
aparelho para outro, sustentadas por campos antigravitacionais, para cumprir suas tarefas.
Também estavam paradas, da mesma forma que a máquina gigantesca em cujo interior
viviam.
Cada um dos homens trazia consigo uma cópia em duas dimensões do mapa usado
por Myn Cahit para descrever o caminho nas profundezas. De acordo com o mapa
calcularam que a célula orgânica que ainda continuava desconhecida devia ficar a uns
setecentos metros de profundidade no máximo. Por enquanto não tinham percorrido mais
de metade dessa distância.
As colunas luminosas montadas em certos pontos dos chãos gradeados apontavam-
-lhes o caminho. Em geral eram branco-azuladas. Só havia colunas luminosas vermelhas
nos lugares em que ficavam as ligações verticais. O código cromático não fora criado
para seres humanos. Os aparelhos automáticos que cuidavam da manutenção possuíam
órgãos visuais sensíveis às cores, que se orientavam pelas colunas.
De vez em quando passavam por um lugar em que um conjunto energético
gigantesco interrompia a estrutura dos pavimentos no interior do computador. Eram todos
reatores de fusão que abasteciam ASAC com a energia de que precisava. Eram na maior
parte de forma esférica, a não ser pelas irregularidades em sua superfície. Havia reatores
de todos os tamanhos. O menor mal tinha a altura de um pavimento, enquanto o maior
atravessava vinte andares. Quando o Chefe e seus companheiros o viram pela primeira
vez, estavam perto da parte mais alta. Em torno dessa parte havia um corte circular no
chão gradeado. Não havia nenhuma amurada na borda do círculo. Os aparelhos de
manutenção, cuja área de ação era o interior do computador, não precisavam desse tipo
de segurança. King Pollack avançou deitado de barriga até a borda da abertura, de onde
tinha uma visão desimpedida de mais de cem metros junto às paredes do reator.
O grupo continuou a seguir para a frente. Atravessaram galerias curtas e compridas,
passaram sobre pisos gradeados que balançavam, deixaram para trás máquinas em
silêncio e chegaram a quinhentos metros de profundidade. A facilidade da marcha deu-
-lhes nova confiança. Esperavam que a componente orgânica descobrisse suas intenções
em tempo e faria alguma coisa para defender-se. A falta de resistência os fez acreditar aos
poucos que seu trabalho seria muito menos difícil do que tinham pensado.
O despertar foi doloroso e arrasador.
***
ELE examinou SUAS forças combatentes e chegou à conclusão de que eram
suficientes e estavam preparadas para entrar em ação. Fazia pouco tempo que ELE
percebera pela primeira vez as emanações mentais do inimigo. Tratava-se de quatro seres
odiados. Aproximavam-se depressa e metodicamente.
A batalha começou.
ELE confiava nas armas de SUAS criaturas — armas com as quais os odiados não
podiam ter contado.
***
Orin Ellsmere estava pendurado com as duas mãos na travessa inferior da escada de
uma galeria. Deixou balançar o corpo. O piso gradeado oscilante ficava mais de um
metro abaixo de seus pés. Orin soltou-se, dobrou os joelhos ao tocar o chão e olhou para
cima.
O Chefe e King Pollack estavam perto dele. Fora o penúltimo. Atrás dele vinha
Hollingsworth. Já deveria ter aparecido.
Mas Hollingsworth não veio.
Pollack pegou um farol manual que trazia no cinto e iluminou a galeria vertical. O
feixe luminoso era tão forte que seus reflexos apareceram no piso gradeado que ficava
mais de cem metros acima da entrada da galeria.
A galeria estava vazia.
Hollingsworth desaparecera sem deixar nenhum vestígio.
Ellsmere examinou o mapa. Não estavam a mais de cem metros do ponto em que
segundo acreditavam ficava a segunda componente orgânica. Alguns passos adiante o
caminho preparado terminaria. Depois disso só havia colunas e travessas nas quais
tinham de avançar pendurados.
O Chefe tirou o pequeno intercomunicador que trazia em seu bolso.
— Tenente Hollingsworth! Responda!
A voz clara lançou seus ecos no revestimento metálico dos aparelhos, mas
Hollingsworth não deu sinal de vida.
— Eu volto — ofereceu-se Pollack.
O Chefe sacudiu a cabeça cornuda.
— Ninguém vai voltar. Não podemos perder tempo. Para a frente!
Atravessaram cinquenta metros de chão oscilante até alcançar uma parede sólida de
metal plastificado. Havia uma única portinhola na superfície lisa. Pollack agarrou a roda
chanfrada e fê-la girar para a esquerda. A portinhola abriu-se com um chiado.
Atrás dela só se via escuridão. Pollack dirigiu a luz do farol para dentro dela. Os
contornos de inúmeras travessas apareceram na luz que nem fantasmas. As mais fortes
eram verticais, as mais fracas serviam de sustentáculos horizontais. Estavam
regularmente dispostas. A distância entre duas travessas verticais chegava a uns dez
metros. As travessas horizontais ficavam a três metros no máximo uma da outra.
— É uma rede para ser escalada por macacos — disse Pollack.
Em seguida ajoelhou sobre uma das travessas horizontais. Enfiara a lâmpada no
cinto de maneira a lançar a luz para a frente dele. Apoiando-se sobre as mãos e os
joelhos, avançou até a travessa horizontal seguinte. Em seguida olhou para trás com uma
expressão indagadora.
— Desça! — ordenou o cornudo. — Vamos logo.
A ordem de marcha foi mantida. Pollack formava a vanguarda. Depois dele vinha o
cheborparmense. Em terceiro lugar vinha Orin Ellsmere, que depois do desaparecimento
de Holli formava a retaguarda.
Quebrava a cabeça sobre o desaparecimento repentino de Holli, mas logo chegou à
conclusão de que a descida exigia sua atenção a ponto de não poder mais refletir. Uns dez
metros abaixo dele estava o feixe de luz lançado pela lanterna de Pollack. Orin
reconheceu a figura alta do Chefe destacando-se contra a luz. Ele andava nesse terreno
perigoso com a mesma segurança de uma cabra montanhesa, da qual a raça dos
cheborparmenses talvez descendia. Ele mesmo regulara seu farol para a intensidade
mínima para só iluminar os objetos mais próximos.
A descida pelas travessas horizontais era mais difícil. A distância entre duas delas
era maior que a altura de um homem. Ellsmere geralmente fazia a descida bem perto de
uma travessa vertical. Ficava pendurado na travessa horizontal até que a de baixo ficava
exatamente sob seus pés. Depois disso soltava-se e quando sentia resistência sob os pés
agarrava-se à travessa vertical para não despencar. Pelo que mostrava o mapa, o chão da
sala fantástica ficava mais de trezentos metros abaixo deles. Um passo em falso
significava a morte.
Uma vez escorregou ao dar o salto. Não conseguiu agarrar a travessa vertical e
perdeu o equilíbrio. Mas durante a queda conseguiu agarrar a travessa horizontal.
Segurou-se nela e depois de recuperar-se do pior pânico puxou-se para cima.
Depois disso teve de fazer uma pausa. Parecia que Pollack e o Chefe não tinham
percebido o acidente. A luz da lâmpada de Pollack foi desaparecendo nas profundezas.
De repente Ellsmere teve a mesma sensação que experimentara tempos atrás, no
setor de computação da nave. Havia alguém perto dele. Orin levantou os olhos. Em cima
dele, um pouco para o lado, na travessa horizontal seguinte, estava sentada uma mulher
velha, cercada de uma auréola fraca e balançando alegremente as pernas.
— Da primeira vez não pudemos conversar à vontade — disse a mulher.
***
Ellsmere tirou a arma energética. Apontou o cano para cima e apertou o gatilho.
Antes que o raio ofuscante cortasse a escuridão viu que errara o alvo. A velha tinha
desaparecido.
Voltou a aparecer em cima dele, à esquerda.
— Você está cometendo uma injustiça — disse ela em tom suave.
A mente de Ellsmere começou a agitar-se. Estaria mesmo cometendo uma injustiça?
Era justo atacar um ser inteligente sobre o qual não pesava nenhuma culpa, a não ser o
fato de ter sido atingido pelos misteriosos raios de deterioração mental? Com muitas
outras pessoas — eram centenas de milhões — acontecera a mesma coisa. E ninguém as
acusava por isso. Fazia alguma diferença que a vítima dos raios desastrosos fosse um ser
independente ou o núcleo de um computador gigantesco?
Ellsmere reconheceu que fora injusto. Levantou os olhos para a velha. Ela acenou
amavelmente com a cabeça.
— Você começa a compreender.
Neste instante Ellsmere perdeu o apoio. Provavelmente concentrara-se demais na
velha. Deslizou de cima da travessa horizontal. Desta vez os braços que tentavam
agarrar-se em alguma coisa só atingiram o vazio. Ellsmere caiu. Bateu dolorosamente no
ombro esquerdo. Deu uma volta completa no ar. Dali a um instante sofreu um terrível
golpe no estômago. Suas mãos agarraram instintivamente o obstáculo. Ellsmere parou de
cair. Por um instante o mundo parecia girar em tomo dele enquanto os pulmões
comprimidos pelo choque tentavam em vão puxar o ar.
Mas logo se recuperou. Puxou-se para cima com os braços trêmulos e firmou-se na
bifurcação de uma travessa horizontal com uma travessa vertical. Sentiu-se inseguro e
olhou para cima.
A velha tinha desaparecido.
Lembrou-se das dúvidas que tivera há instantes. Será que agira mesmo de uma
forma injusta? É claro que não. Por que acreditara que estava fazendo uma coisa errada?
A resposta atingiu-o com a força de um relâmpago.
A mulher velha o hipnotizara.
Ellsmere olhou para baixo. A luz da lâmpada de Pollack estava pelo menos a
quarenta metros de distância. O Chefe devia ser informado sobre o que tinha acontecido.
Orin pegou o radiocomunicador.
— Chefe! Aqui fala Ellsmere. Responda!
Dali a um instante ouviu a voz clara do cheborparmense.
— Chefe falando. Que houve? Onde se meteu?
— Um pequeno acidente...
Ellsmere relatou sua experiência. O Chefe interrompeu-o no meio da frase. Ellsmere
ouviu-o gritar:
— Que houve, Pollack?
Houve uma resposta que Ellsmere não compreendeu. Depois voltou a ouvir a voz
do Chefe.
— Siga-nos o mais depressa que puder. Pollack descobriu uma plataforma de metal
plastificado. No meio dela há uma coisa parecida com um tanque. Tem cerca de dez
metros de altura. Acho que chegamos ao destino.
Ellsmere confirmou. Em comparação com a descoberta de Pollack a importância de
sua experiência transformava-se em fumaça. Orin foi descendo. Dali a alguns minutos
estava perto de Pollack e do Chefe, na beirada de uma plataforma que se estendia pelo
menos cinquenta metros entre a confusão de travessas. No centro dela erguia-se um
objeto em forma de cubo. Não tinha janelas nem portas. Não mostrava qual era sua
finalidade. As gigantescas travessas horizontais pareciam passar por ele. Na verdade,
pensou Ellsmere, pelo menos neste lugar as travessas só servem para esconder as
centenas de milhares de condutores que ligam o conteúdo do cubo com o resto do
computador.
— Quero as armas prontas para atirar! — ordenou o Chefe. — Se houver qualquer
incidente, atirem.
Devagar, passo a passo, foram avançando para o misterioso cubo. Ainda estavam a
vinte passos quando uma figura saiu do canto direito do cubo. Pollack levantou a arma.
— Não atirem...!
A figura foi para a frente do cubo.
Robert Hollingsworth!
Holli sorria como se nada tivesse acontecido.
— Parece que escolhi um caminho mais curto, não é? — disse.
O Chefe não estava disposto a satisfazer-se com isso. Queria uma explicação sobre
o desaparecimento de Holli.
— Perdi o contato — informou o tenente. — Devo ter ficado muito tempo à frente
de um dos aparelhos. De repente não havia mais ninguém por perto. Entrei na galeria de
descida mais próxima e acabei neste lugar. Sabia que nosso objetivo fica por aqui. Saí da
galeria e encontrei esta plataforma. Aí resolvi esperar.
O cornudo parecia satisfeito. Deu ordem para que Hollingsworth também
preparasse sua arma. Continuaram a avançar em direção ao cubo. Formavam uma fileira.
Somente Pollack caminhava um passo à frente dos outros. Ellsmere caminhava no centro.
O Chefe estava à esquerda e Holly à direita.
A parede do cubo foi crescendo à frente deles. Ellsmere tentou imaginar como devia
ser seu interior. Um bloco pálido de massa cerebral cinzenta mergulhado num banho
turvo de líquido nutriente? Com milhares de tubos que renovavam o líquido vindo de
tanques e filtros próximos e garantiam sua circulação?
De repente viu um movimento rápido pelo canto dos olhos. Olhou para trás. Holli
girara o cano de sua arma para o lado. A abertura apontava para as costas largas de
Pollack.
Neste instante Ellsmere compreendeu o que tinha acontecido com Holli nos últimos
minutos. Não se perdera por acaso. A velha chegara perto dele e lhe impusera sua
vontade, da mesma forma que tentara fazer com ele.
Ellsmere não teve tempo de dar o alerta.
Atirou a arma energética pesada para fora da curva do cotovelo. O tiro atingiu
Hollingsworth no ombro, atirando-o para o lado. O disparo atingiu as travessas com um
chiado. No mesmo instante Ellsmere caiu sobre ele. Holli levou um golpe terrível do lado
esquerdo do rosto e caiu ao chão. Ellsmere arrancou a arma de suas mãos. Em seguida
pegou a arma narcotizante e aplicou uma dose reduzida em Holli.
O perigo fora eliminado.
De repente Pollack soltou um grito de alerta.
Ellsmere virou-se abruptamente.
Havia movimento à frente do cubo. Figuras surgiam do nada. Ellsmere não
acreditava no que seus olhos viam. Centenas de mulheres velhas, tão parecidas que
podiam ser confundidas, materializaram à frente da face dianteira do cubo. Pollack
disparou uma salva furiosa para dentro do exército diabólico. O efeito foi igual a zero. As
velhas não eram afetadas pelos raios térmicos.
Ellsmere sentiu alguma coisa puxando em seu cérebro.
— Vocês estão fazendo uma injustiça! Afastem-se! Vocês estão fazendo uma
injustiça! Afastem-se!
O comando atingia sua mente com uma força hipnótica. Ellsmere viu Pollack jogar
fora a arma e virar-se. Viu o Chefe balançar. Ele mesmo ainda segurava a arma
narcotizante que usara para pôr Hollingsworth fora de ação. Foi mais por desespero que
com uma intenção definida que ergueu a arma e despejou seus raios no meio do exército
de mulheres velhas.
O resultado foi surpreendente.
As velhas contorciam-se de dores. O sentimento de desespero profundo que
irradiavam ao morrer atingiu a mente de Ellsmere e convenceu-o de que finalmente
descobrira a arma definitiva. Continuou a atirar. As mulheres desmancharam-se e
desapareceram. Mas outras ocupavam seus lugares. A munição acabou. A arma
narcotizante parou de despejar seus raios. No mesmo instante o comando hipnótico
ganhou em intensidade. Com um salto Ellsmere colocou-se ao lado de Holli, arrancou a
arma narcotizante que ele trazia no cinto e voltou a atirar. Uma dúzia de figuras
fantasmagóricas desmanchou-se e outra dúzia surgiu em seu lugar. Mas a insistência do
comando hipnótico diminuiu.
Ellsmere não seria capaz de dizer quanto tempo ficara parado atirando nas hostes de
velhas quando de repente recebeu auxílio à sua esquerda. Olhou para o lado e viu que o
Chefe também percebera a importância do momento e abrira fogo.
Estava terminando. Novas figuras apareciam para substituir as que tinham sido
desmanchadas pelos raios narcotizantes, mas vinham cada vez mais devagar. Além disso
tomaram-se transparentes, dando a impressão de que seu medonho criador já não tinha
forças para conferir uma substância suficiente às suas criaturas.
De repente a arma de Holli também ficou sem munição. Ellsmere jogou-a fora e
olhou para Pollack. O sargento estava ajoelhado longe, atrás dele, apertando as mãos
sobre os ouvidos como se assim pudesse impedir os comandos hipnóticos martelantes de
atingir sua mente. A coronha da arma narcotizante sobressaía de seu cinto.
Ellsmere correu em sua direção quando o grito de comando do Chefe o deteve.
Orin virou-se.
O exército de mulheres velhas tinha desaparecido, afastara-se, desmanchara-se no
nada.
A batalha estava ganha!
O cheborparmense acenou com o braço erguido. Caminharam lado a lado em
direção ao cubo. Os dois já sabiam de que espécie era o inimigo contra o qual tinham
lutado há instantes. As velhas eram criações do espírito perturbado que estava encerrado
no cubo. Eram projeções de energia mental criadas à imagem dos seres humanos, porque
desta forma não chamavam tanto a atenção.
O espírito desconhecido ficara sem forças. Fora derrotado. Só restava evitar que se
recuperasse da derrota.
O Chefe pegou a arma energética e queimou um buraco na face do cubo. Depois
que as bordas esfriaram passou pelo buraco. Dentro do cubo reinava uma luminosidade
vermelha pálida. A sala era dominada por um tanque de paredes transparentes. O tanque
estava cheio até mais de três quartos de sua altura com um líquido esverdeado no qual
boiavam pedaços de matéria cinzenta.
Por um instante Ellsmere sentiu-se decepcionado. Esperara ver uma massa
compacta. Será que o conjunto de pedaços podia representar uma inteligência?
Finalmente compreendeu. Há dois, três, talvez cinco minutos ainda havia uma
mente compacta boiando no liquido — uma massa que devia ter certa semelhança com
um cérebro gigantesco. Mas a substância da mente estranha se consumira na criação de
centenas de pseudocriaturas que assumiam as formas de mulheres velhas e lutavam
furiosamente com os invasores. Cada velha exigia certa quantidade de energia — e
quando o último quanto foi irradiado, o cérebro começou a desfazer-se. As ligações
internas se soltaram e o que restou foram blocos do tamanho de um punho humano
boiando ao acaso no líquido nutriente.
O inimigo não só fora derrotado.
O inimigo estava morto!
***
Dali a dois dias Orin Ellsmere e seu grupo entraram pela segunda vez no
transmissor de grande porte UST-3048. Os hipnocursos tinham sido repetidos às pressas.
Depois da destruição da componente orgânica secreta ASAC funcionava perfeitamente.
Hollingsworth fora internado na clínica para ser curado das sequelas da influência
hipnótica e King Pollack recuperara-se bem de um tratamento de choque que durara duas
horas.
Já não havia a menor dúvida. O comando de busca de inteligências dirigido por
Cheborparczete Faynybret estava para transformar-se em realidade. O próximo voo da
UST-3048 seria um passo importante para alcançar a capacidade de ação plena do grupo.
Para recuperar o tempo perdido, o destino do voo fora fixado num ponto mais afastado.
Ficava a oitenta e nove anos-luz de distância. Quando a nave voltasse dentro de dois dias,
tempo local, teria a bordo uma tripulação experiente e completamente treinada.
Orin Ellsmere apertou os cintos de segurança de sua poltrona. A verificação dos
aparelhos teve início. Depois dele foi a vez de Holli, em seguida de Pollack.
Hollingsworth virou-se para o lado e contemplou o sargento com um sorriso irônico.
— Vinte e quatro pontos são pouco! — gritou, numa alusão à falha cometida por
Pollack há algum tempo.
— Eu sei — respondeu o sargento. Mas de repente parecia lembrar-se de uma coisa.
Ficou radiante. — A propósito. O senhor ainda me deve cinco solares. Ao major também.
Hollingsworth ficou surpreso.
— De quê?
— Lembra-se da primeira noite? Quando quis convidar Nuna Velez para
inspecionar o centro de computação? Parece que o senhor superestimou seu charme. Pelo
menos não vi Nuna naquela oportunidade...
Holli fez um gesto para que ele se calasse, sorriu e acenou com a cabeça.
— Está bem. Vocês receberão seu dinheiro assim que eu conseguir livrar-me destes
cintos.
Holli parecia tão alegre que Ellsmere não pôde deixar de fazer uma observação.
— Você parece muito bem-humorado para alguém que acaba de perder dinheiro.
Holli estava radiante.
— Estou mesmo. E tenho meus motivos.
— É mesmo...?
— Tenho, sim. Você acaba de lembrar-me de que Nuna e eu combinamos jantar
juntos no dia em que esta canoa voltar para Ustrac.
Pollack apertou uma tecla de controle e disse:
— Isso não passa de uma fanfarronice.

***
**
*

O trabalho de ensino e treinamento do ISK só pôde


ser realizado com muitas dificuldades. Mas os esforços
dos caçadores de inteligência acabaram sendo coroados
de êxito.
Parece que mesmo na confrontação com o
“Enxame” começa a registrar-se o primeiro sucesso,
uma vez que a 5a coluna consegue a ruptura.
A Ruptura — é este o título do próximo volume da
série Perry Rhodan.

Visite o Site Oficial Perry Rhodan:

www.perry-rhodan.com.br

O Projeto Tradução Perry Rhodan está aberto a novos colaboradores.


Não perca a chance de conhecê-lo e/ou se associar:
http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?rl=cpp&cmm=66731
http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?
cmm=66731&tid=52O1628621546184O28&start=1

You might also like