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Um museu que não é

Elena Filipovic Pode-se dizer que o ateliê de Marcel Duchamp é o


princípio e o fim de tudo. Seu primeiro estúdio nova-
Berlim, Alemanha
Abril, 2008 iorquino é talvez mais conhecido por uma série de
fotografias, pequenas e granuladas, algumas fora de foco.
Elas foram feitas em algum momento entre 1916 e 1918 por
um certo Henri-Pierre Roché, um bom amigo de Duchamp.
Roché era escritor e claramente não era um fotógrafo
profissional. Trata-se da mesma pessoa que escreveria o
romance Jules e Jim, comprovadamente um livro muito
melhor do que essas imagens do ateliê do artista francês
em Nova York. Entretanto, a qualidade estética das imagens
não foi realmente um problema. Duchamp era apegado às
tais fotos diminutas. O artista as guardou e, anos mais tarde,
retornou às fotografias, trabalhando com elas, para depois
tornar a deixá-las de lado como se fossem a roupa suja dos
retratos ou ainda pistas para uma história de detetive.
Entre elas, não há uma única fotografia em que o
ateliê do artista (que neste caso, também era sua casa)
apareça arrumado. As gavetas de Duchamp estão abertas,
seus sapatos e travesseiros espalhados no chão e a poeira se
acumula pelos cantos. O supostamente frio conceitualista,
o sujeito que se depilava por inteiro porque não gostava
da aparência descuidada de pêlos no corpo (e pedia a suas
parceiras fizessem o mesmo), o artista que industrialmente
produziu ready-made, vive em um chiqueiro.1 Esse não é o
primeiro e não será o último dos paradoxos duchampianos.
Apesar disso, o senso de cuidado doméstico de Duchamp e
a poeira que ele gerava em seu apartamento são menos a
minha questão do que a maneira como o artista arrumava
seus objetos. A pesar de ele conseguir viver na bagunça,
tudo tinha o seu lugar. As pequenas fotografias revelam
que um lustroso urinol de porcelana está à vista e não no
banheiro (embora certamente houvesse outro lá) ou mesmo
enfiado em um canto qualquer. O objeto está pendurado

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Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, escaneada ou distribuida de forma impressa ou eletrônica sem autorização. ©2008FundacionProa
E lena Filipovic

sobre a entrada. A desordem do quarto poderia indicar e a função legitimadora delas são de preocupação de
desleixo, exceto pelo fato de que, simplesmente, o urinol Duchamp naquele momento preciso. A famosa submissão
não poderia ter chegado por acidente ao lugar em que está. de um urinol aos “não-jurados”5 da Society of Independent
A pá de neve de Duchamp não está casualmente apoiada Artists Exhibition [Exposição da Sociedade dos artistas
contra a parede esperando para ser usada, está suspensa no independentes], e a recusa de sua exibição pelo comitê
teto. Além disso, seu cabideiro foi colocado inconveniente e artístico deram-se em 1917, provavelmente o mesmo ano
ridiculamente no meio do quarto, pregado no chão. Objetos das fotos no ateliê. Duchamp assinou a Fountain [Fonte] com
selecionados em posições específicas. o pseudônimo R. Mutt e assim a maioria dos presentes não
Lembremo-nos de que essas fotos são de algum instante suspeitou que ele estava por trás daquilo tudo, embora
em torno de 1917, anos depois de Duchamp começar a trazer qualquer pessoa mais atenta a seu ateliê pudesse ter
objetos do dia-a-dia para seu ateliê. Antes disso, ele teve adivinhado a verdade facilmente. Entretanto, quase todo
um outro ateliê, em Paris, que sua irmã foi limpar quando mundo ficou sem saber de nada por um bom tempo.
o artista se mudou para Nova York. Desavisada, durante “Conforme meus princípios, eu não vou expor
a faxina jogou os primeiros ready-made no lixo, que ela nada”, Duchamp escreveu, inequivocamente em 1918, ao
inocentemente pensou ser o lugar deles.2 Alguns anos se seu amigo e mais vibrante colecionador, Walter Arensberg.6
passaram e Duchamp estava morando em uma nova cidade. O assunto em questão era se Duchamp mostraria ou não
Nesse ponto, seus objetos utilitários já possuíam um nome qualquer uma de suas obras, na exposição cubista que estava
categórico, um gênero: “ready-made.” Obviamente, Duchamp tentando organizar em Buenos Aires, durante sua curta
alegou que ele tinha começado a ocupar-se deles como permanência na cidade. A mostra nunca se materializou.
um “passatempo”. Contudo, ainda antes de 1916 ele tinha Além disso, dirigindo-se a seu amigo colecionador que estava
decidido dar títulos a cada um. Tinha começado a assiná-los e distante, Duchamp acrescentou que Arensberg não deveria
submetê-los a mostras públicas (mesmo quando essa tentativa emprestar nenhum de seus trabalhos para outras exposições
não deu certo).3 Em síntese, ele os tratou como obras de arte, que estavam sendo montadas em Nova York naquela
embora de um tipo muito particular. ocasião. Mais tarde, em outra carta de 1925 a outro patrono,
Outra indicação de que Duchamp considerava os Jacques Doucet, Duchamp falaria novamente do desgosto
ready-made mais do que meros objetos vem justamente por exposições, dizendo: “Todas as exposições de pintura
dessas fotografias. As imagens mostram que esses objetos ou escultura me fazem mal. Prefiro não me envolver
cotidianos não são − não podem ser − úteis. Eles foram com elas.”7 Tais comentários esclarecem o envolvimento
organizados cuidadosamente, expostos − de fato exibidos ; seu do artista com o que Dreier ironicamente batizou de
utilitarismo foi sabotado de maneira que se tornaram alvos “associação” para o primeiro “museu de arte moderna”,
de contemplação e até mesmo de riso, mas decididamente a Societé Anonyme, Inc., sobre o qual Duchamp duramente
não de alguma utilidade. De certo modo, o ateliê foi o escreveu para sua benfeitora norte-americana, em 1929:
primeiro espaço de “exposição” dos ready-made. Ora, o “Eu não quero voltar para a América, nem começar nada
estúdio não era uma instituição, nem mesmo precisamente nesta história de museu de ‘arte’.”8
um espaço público. Era, porém, um local freqüentado, no Quase desde o início, Duchamp manteve uma posição
qual os objetos eram mostrados e poderiam ser entendidos inconstante entre o interesse e a antipatia por instituições
como artefatos que significavam algo. É a isso que Helen de avaliação artística e exposições: salão, galeria, museu.
Molesworth se refere, corretamente, como “o principal Claro que havia sua história antiga de participação e
lugar de recepção” dos ready-made.4 Esse local de exibição/ rejeição em salões, sem contar que ele serviu como
recepção era um lugar de proclamação, em que era membro e presidente do comitê organizador da primeira
declarado: isto não é (apenas) um urinol (esta é a história exposição da Society of Independent Artists [Sociedade dos
narrada por aquelas pequenas fotografias). Artistas Independentes], em Nova York, em 1917 (o mesmo
Não se deve confundir o ateliê com uma instituição de comitê que rejeitou a Fountain). Naquela ocasião, sugeriu
arte, mas menciono esta última porque tais instituições que a montagem das obras fosse feita por sorteio, seguindo

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Um museu que não é

ordem alfabética, começando pela primeira letra tirada de Beaux-Arts [galeria Belas-Artes], em Paris. Duchamp tinha
um chapéu. Ele também teve um papel fundamental na contribuído anteriormente com trabalhos para coletivas
Societé Anonyme, Inc., com Katherine Dreier e Man Ray, surrealistas, mas o artista, conhecido por sua indiferença,
em 1920, e depois uma explícita incumbência curatorial, nunca pertenceu oficialmente a esse movimento nem a
na individual de Constantin Brancusi na galeria Brummer, qualquer outro. Apesar disso, ele concorda em assumir a
de Nova York, em 1933. Exposições e questões inerentes função de designer da exposição, o que o conduz à primeira
à exibição pública de arte estavam longe de não ser um de uma série de colaborações como curador-designer. Suas
problema para Duchamp. contribuições reinventam radicalmente o conceito de espaço
Talvez não surpreendentemente, galerias comerciais de exposição e transformam a maneira pela qual as mostras
e museus se tornariam, com uma crescente insistência poderiam ser vistas.9
ao longo dos anos, importantes espaços de intervenção As intervenções de Duchamp são bastante simples, mas
e crítica para Duchamp. Se a inscrição de um urinol revolucionárias. Na sua posição oficialmente designada de
invertido à candidatura a uma exposição em 1917 ou o générateur-arbitre [gerador-árbitro], o artista transforma o
rabisco de um bigode em uma reprodução da Monalisa interior, elegantemente mobiliado com decoração do século
em 1919 − trabalho que chamou de L.H.O.O.Q. − pareciam XVIII, em uma “gruta”, cobrindo todos os ornamentos, o
mirar nos pressupostos epistemológicos da arte, no final teto e os bancos de luz com o que declara serem “1200”
dos anos 1930 o artista decididamente voltou sua atenção sacos de carvão suspensos. Ele instala um braseiro de ferro
para o contexto arquitetônico, os sistemas classificatórios, no centro da galeria principal e dispõe as obras de arte em
os protocolos institucionais e a doxa [opinião] legitimadora portas giratórias tiradas de loja de departamento. O teto é
do museu-galeria. Essa “virada” poderia acrescentar ondulado, as paredes estão enegrecidas e pó de carvão cai
outra camada à história do pintor esmorecido, enxadrista constantemente sobre as elegantes roupas dos convidados.10
obsessivo, frenético anotador, “oculista de precisão”, Os sacos de carvão são provavelmente o que mais
travesti ocasional e outrora bibliotecário que “abandonou” o orgulha. Em sua inversão de interior a exterior, para
a produção artística em 1923, passando o resto da década cima e para baixo, esses 1200 sacos (teriam sido mesmo
de 1920 a inventar aparelhos ópticos e que, ao longo da tantos? Por que um número tão grande?) dão início
década de 1930, parecia estar “de férias”, “excursionando” ao desarranjo arquitetônico da galeria que inspira os
por seu passado, por meio de vários exercícios de repetição, demais artistas. Os resultados das colaborações são bem
reprodução e coleção. Num momento em que os espaços conhecidos: uma falsa paisagem urbana na entrada
reconhecidos de exposições de arte proclamavam-se (uma rua parisiense fictícia com dezesseis manequins
racionais, objetivos e científicos, e num período em que fileirados, artisticamente “vestidos”); uma poça d’água
era inegável que as narrativas históricas que mantinham e quatro camas no saguão principal; folhas mortas e
os museus também mantinham nações beligerantes, a sujeira pelo chão; uma ambientação sonora composta
virada de Duchamp em direção à idiossincrática montagem por insanos prantos de um manicômio e por uma marcha
de mostras de arte e o desenvolvimento de um “museu militar alemã; uma simulação de histeria coreografada;
portátil” feito por ele, provocou uma revisão nas armaduras o táxi chuvoso com caracóis vivos de Salvador Dalí
arquitetônica, temporal e discursiva da arte e de suas fora da galeria; e uma quase escuridão por toda a
instituições, passando para o para o primeiro plano de sua parte. Talvez mais definidamente que as exposições
prática, de onde não saiu tão cedo. Dadá ou surrealistas que a precederam, essa mostra
confronta-se com o espaço convencional e a experiência
A arte de fazer exposições de uma exposição de arte, construindo uma elaborada
No final de 1937, Paul Éluard e o líder surrealista André resposta para ambos em uma escala arquitetônica.
Breton convidam Duchamp a idealizar projetos para a Um elemento do projeto da exposição não chegou a
Exposition Internationale du Surréalisme [Exposição internacional ser executado, mas ele é igualmente significativo para o
do surrealismo], que teria lugar na badalada Galerie nosso entendimento do evento. Como recorda Marcel Jean,

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E lena Filipovic

“Duchamp tinha pensado em instalar ‘olhos mágicos’, imigrantes, enfrentou para entrar nos EUA, a exposição
sensores elétricos que permitiriam que luzes fossem aconteceu na mansão Whitelaw Reid, em 1942, sendo um
automaticamente ativadas toda a vez que um observador evento beneficente para as Sociedades de Amparo à França.
ultrapassasse um raio invisível localizado à frente de uma Para a ocasião, Duchamp inventou uma solução simples
pintura.”11 O desejo de Duchamp revelou-se impraticável. e econômica para se opor aos adornos dourados, ao teto
Contudo, Man Ray adaptou a idéia na noite da abertura. O com pinturas italianas, aos candelabros de cristal e outros
artista norte-americano apagou as luzes e, logo na entrada, detalhes arquitetônicos suntuosos. O artista adquiriu cerca
distribuiu lanternas aos visitantes, para que pudessem de 25 mil metros de barbante para a instalação e contou
ver as obras “à mostra”. A solução manteve muitos com a ajuda de vários amigos para erguer uma teia de fios
aspectos da intenção original de Duchamp: os visitantes enroscados (no fim, usando só uma pequena fração da
aproximavam-se da arte, inclinando-se para frente, a fim compra supercautelosa13 que tinha feito).14 O emaranhado
de enfocá-las com as suas lâmpadas portáteis − um ato bem de barbante atravessava as galerias, anteriormente
distinto das noções de “distância apropriada”, observação dedicadas a desenhos, preenchendo toda a exposição, que
desincorporada, e da claridade “esclarecedora” de museus contava com pinturas erguidas em biombos removíveis − a
ou galerias tradicionais. Até mesmo em sua forma adaptada, mostra compunha-se, em sua grande maioria, de pinturas.
nota-se a preocupação do artista no desenvolvimento A malha entrelaçada não cortou completamente a
da percepção e o contínuo ataque à autonomia visual, visão das obras (o que foi frustrante, pois não ocorreu a
questão que tanto instigava Duchamp − de seus esforços eliminação do olhar que Duchamp desejava). Entretanto,
para desafiar a arte retiniana a seus experimentos de as linhas amarradas atravessando o espaço e os interstícios
“óptica de precisão” com aparelhos ópticos motorizados e de tantas coisas “à mostra” constituíram uma barreira
Rotoreliefs [Rotorrelevos] giratórios. Nos recém-organizados efetiva entre o observador e as obras de arte. Como na
museus modernos e espaços de exposição, tão em voga na exposição de 1938, o que foi mostrado em 1942 era na
Paris dos anos 1930, o posicionamento do observador foi verdade a reavaliação do olhar em um espaço expositivo
configurado para garantir uma distância segura, um olhar típico e a reconsideração do significado do corpo nessa
desinteressado e o esquecimento do corpo. Duchamp, por experiência, assim como na da própria “arte”. Muitos
outro lado, parecia querer deixar explícito que a condição artistas participantes da coletiva ficaram desapontados
que possibilita a observação é a aproximação do corpo − com o fato de o público não poder ver os trabalhos
que a visão é decididamente corporal. Para Duchamp, o adequadamente. Mas esse era justamente o propósito. E
questionamento da autonomia visual seguiu de mãos dadas não foi a única investida aos sentidos praticada por First
com a reconsideração do local que investiu tanto em manter Papers: No dia da abertura, 14 de outubro de 1942, Carrol
essa mesma autonomia, o espaço de exposição cartesiano. Janis, de onze anos de idade, compareceu à exposição, como
Talvez seja no contexto de seus projetos expositivos que combinado, levando vários amigos. Os meninos causaram
se compreenda melhor os complexos exercícios visuais de uma verdadeira cena, correndo ao redor e jogando bola.
Duchamp e sua ênfase no corpo. Sua constante preocupação Para as perguntas e reclamações dos visitantes, as crianças
com a visualidade questionava não só o quê e como vemos, respondiam como tinham sido instruídas: Marcel Duchamp
mas o que e como as instituições de arte nos fazem ver.12 havia pedido para irem brincar lá.
Os experimentos espaciais e expositivos de Duchamp
prosseguiram quando, depois do êxodo de muitos Museus portáteis
surrealistas que fugiram da Europa durante a Segunda O papel de Duchamp como prestidigitador de
Guerra Mundial, Breton chamou novamente Duchamp para exposição, em 1938 e 1942, teve efeitos efêmeros.
montar a primeira mostra surrealista internacional nos Contudo, algumas das mesmas preocupações encontraram
Estados Unidos. Intitulada First Papers of Surrealism [Primeiros outra forma de manifestação e se multiplicaram
documentos do surrealismo], referindo-se ao longo processo permanentemente no projeto duchampiano, que o artista
de requerimento de vistos que a maioria dos artistas, como chamou de De ou par Marcel Duchamp ou Rrose Sélavy [De ou

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por Marcel Duchamp ou Rrose Sélavy], mais conhecido teria utilizado tal procedimento mesmo que fosse provado
como Boîte-en-valise [Caixa-valise]. Cronologicamente, que as fotos coloridas eram suficientemente exatas. Afinal de
ambos os projetos sobrepuseram-se, com o trabalho contas, o artista evitou outros processos comuns e eficientes,
nos álbuns tendo sido iniciado alguns anos antes da incluindo a litografia (que usou em Rotoreliefs), preferindo a
exposição surrealista de 1938 e continuando pelos anos associação um pouco anacrônica de impressão por colotipia
seguintes. Formalmente, as desorientações caóticas que com coloração por pochoir (ele empregou amplamente este
caracterizaram a Exposition de 1938 e a teia que obstruía o método nas reproduções contidas na Caixa-valise).
olhar em First Papers, em 1942, não poderiam ter diferido Anos de muito trabalho se passaram. A mera
mais do ar despretensioso e do arranjo aparentemente reprodução mecânica é condenada. Como Ecke Bonk
ordenado das valises cheias de fac-símiles das obras de deixa claro, falar das “reproduções” da Caixa, ou mesmo
Duchamp. Mas havia uma continuidade ali: as contribuições dos “itens” − o termo genérico usado por Duchamp −,
de Duchamp para as mostras surrealistas questionavam os dificilmente conduz ao grau de elaboração do trabalho
dignos e invioláveis espaços das instituições de arte com manual envolvido. O processo era rigoroso, diligente e
uma invasão que expôs e transformou as noções normativas freqüentemente exigia mais trabalho do que os originais.16
de exposição e a experiência estética adequada. Assim, Não deve restar dúvida de que tanto esse método
suas retrospectivas em forma de caixas deu segmento à reprodutivo como seu resultado ambivalente − algo entre o
reflexão sobre a natureza da arte e do espaço expositivo. feito à mão e o reproduzido mecanicamente − são cruciais
Isso evidenciou, à sua maneira, os termos e as condições da para a subversiva operação da Boîte-en-valise.
sobrecarregada autoridade da instituição de arte. Duchamp selecionou um total de 69 trabalhos para
Em seguida à publicação, em 1934, dos fac-símiles serem reproduzidos. Fiel à magnitude da edição a que
encaixotados dos esboços e anotações que registravam o visava, o artista fez até 350 cópias de cada item. Trabalhou
desenvolvimento conceitual de O grande Vidro, Duchamp com determinação e seus primeiros modelos ficaram
concebeu outro projeto – no caso, de arquivos em sua prontos no período da migração para os Estados Unidos,
essência. Ele quis documentar o trabalho artístico de sua por causa da Segunda Guerra Mundial. A produção seguiu
vida inteira, criar um “álbum” (um “livro”, como descreveu lentamente, porém com determinação, com aparições
em cartas diversas vezes) de “aproximadamente todas esporádicas de mais itens nas décadas subseqüentes.
as coisas produzidas [por ele].”15 Ao final de 1935, havia Embora tenha planejado uma edição de trezentas cópias
sido iniciada uma silenciosa tarefa administrativa que padronizadas do projeto, Duchamp também criou cerca de
seria a pedra angular do projeto: Duchamp fez uma lista vinte modelos de luxo (quase todos acomodados em uma
de todas as suas obras e seus respectivos proprietários; valise de couro marrom). Estas se distinguiam da versão
solicitou fotografias em preto-e-branco da seleção de padrão, pois cada exemplar continha uma obra de arte
pinturas, trabalhos em vidro, objetos e outras produções “original” assinada. Esses modelos de luxo, destinados aos
inclassificáveis; fez viagens intercontinentais para examinar amigos e a determinados benfeitores, foram os primeiros
e registrar títulos, datas, dimensões e a paleta de cor exata de um grupo a ser construído. Eles simbolizavam a
de seus trabalhos em coleções públicas e privadas; além concentração das questões sobre a aura artística, autoria,
disso, comprou de volta ou pediu emprestado outras peças e autenticidade do projeto por inteiro. Eles, como modelos
que exigiam anotações mais detalhadas. Para a maioria “originais”, e o processo reprodutivo que produzem
das reproduções que seriam incluídas na Caixa, Duchamp comprovam claramente a rejeição de Duchamp tanto dos
optou por um método complexo de intenso labor, chamado valores românticos como do progresso iluminista − sua
técnica pochoir [molde vazado ou estêncil]. Ele desistiu da mudança para uma forma de criação não se vale nem do
representação dos trabalhos em fotografias coloridas, em mito do artista como um gênio perturbado e inspirado
parte, ao que parece, porque essa tecnologia, por estar ainda (afinal, ele estava “copiando”), nem da produção puramente
em desenvolvimento, não era suficientemente confiável para industrial de objetos prontos, ready-made (as “cópias” nem
refletir as cores originais. Porém, supõe-se que Duchamp não de longe eram simples, automatizadas, ou completamente

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mecânicas). Assim, em todos os compartimentos da reproduções de celulóide numa caixa. De fato, antes de
Caixa-valise, a aura singular da obra de arte é laboriosamente 1937, Duchamp tinha feito algumas cópias em tamanho
revelada e apagada, erguida e destruída, de maneira que, no reduzido de suas pinturas e trabalhos em vidro, mas
fim, Duchamp oferece um conflitante conjunto de itens que também tinha reproduzido vários objetos tridimensionais
timidamente descrevem as fronteiras entre o ofício manual para o álbum, inclusive Porta-garrafas e Why not sneeze Rrose
e a reprodução mecânica, entre o original e a réplica, entre Sélavy como fotografias bidimensionais. Contudo, logo
a obra de arte datada e a interpretação contemporânea e após seu trabalho na Exposition Internationale du Surréalisme,
entre o objeto dotado de aura e a cópia serial.17 em janeiro de 1938, Duchamp fez um objeto minúsculo
Se o próprio conceito de obra de arte e de sua que, pode-se dizer, assinalou uma concepção redefinida do
autenticidade está em jogo em Caixa-valise, assim também “álbum” em seu projeto.
estão as instituições que julgam, classificam, apresentam e Nos primeiros meses de 1938, Duchamp replicou os
historiam as obras de arte como tais. A condição da Caixa- contornos de sua obra Fountain, na verdade uma peça de
valise como estojo de apresentação e local de exposição encanamento comprada numa loja. Mais de vinte anos
confunde as fronteiras entre conteúdo e contexto, entre depois de seu desafiante ato de “seleção”, o artista voltava
o recipiente e aquilo que ele recebe. A Caixa internaliza ao objeto para sua inclusão no projeto retrospectivo de sua
(e fazendo assim expande a operação do ready-made) o produção. Em vez de comprar um urinol novo e o fotografar,
status do objeto de arte de forma geral, reconhecendo que ele, da mesma maneira como havia feito dois anos antes
a artisticidade dos objetos é determinada por critérios de para representar, no caso, o original perdido do Porta-
classificação, administração, apresentação e musealidade. garrafas, ou ao invés de optar por usar uma das pequenas
Pode-se até mesmo dizer que Duchamp entendeu que seu fotografias de Roché que mostra o urinol original em seu
projeto retrospectivo somente havia sido iniciado somente ateliê de Nova York, como ele faria alguns anos depois para
quando este não poderia mais ser o “livro” que ele planejara representar Trébuchet [Armadilha], Duchamp refez o urinol,
anteriormente, mas, em vez disso, poderia ser visto como o transformando a memória do design industrial curvilíneo
“museu”que ele finalmente enxergava neles. da Fountain em uma rústica miniatura de arame e papel
Esta idéia ajuda elucidar o motivo pelo qual, no extenso machê.19 De acordo com a descrição de Roché em seu diário,
processo que se prolonga de 1935 (com seu trabalho inicial o resultado foi “uma pequena obra-prima de escultura
nas reproduções) até 1942 (quando as primeiras poucas humorística, da cor de um camarão cozido, com buraquinhos
edições de luxo foram terminadas), Duchamp várias vezes absurdos, mas mesmo assim feitos com o maior cuidado.”20
datou o “início” da Caixa-valise, em 1938.18 O artista nunca Antes do verão de 1938, o artista levou o objeto,
explicou a razão para ter atribuído essa data e tampouco sua falta de lógica e tudo mais a um ceramista (um dos
ninguém o pressionou a dizer o porquê. Mas se sabemos que muitos artesãos que contrataria para o lento e complicado
1938 é muito tarde para designar o início do compêndio, projeto de fundição e moldagem) para fazer uma forma e
em termos tanto conceituais quanto práticos, o ano parece, modelos de porcelana a serem colocados juntamente às
no entanto, indicar o início da concepção do álbum como reproduções bidimensionais de suas obras. A modelagem
um espaço tridimensional. do minúsculo objeto logo instituiu um ato escultórico
O formato encaixotado que Duchamp tinha usado nunca antes presente no mictório-recipiente-tornado-
anteriormente (em menor escala em 1914 e depois, Fountain de Duchamp. Na verdade, este ato de esculpir
em 1934, para a Caixa verde) continha recortes e papel reverteu as essenciais questões sobre autoria, técnica,
fotográfico, as caixas guardavam conteúdos soltos e aura e toque artístico propostas pelo seu ready-made
desordenados − entretanto, apesar disso, extraordinários, “original”, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, serviu
por renovar a noção de “literatura” e de formato de livro  − também para pôr mais à prova ainda essas mesmas noções.
que nunca ultrapassaram duas dimensões. Se Duchamp Ocorreria também a reprodução de dois outros objetos
tivesse prosseguido dessa maneira, teria terminado tridimensionais em tamanho reduzido Air de Paris [Ar de
com uma simples coleção de folhas de papel soltas e Paris] e Traveler’s Folding item [Item dobrável de viagem]. Mas

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Um museu que não é

a construção em papel machê do urinol atesta algo muito Na realidade, a tarefa do agrupamento retrospectivo
importante e digno de nota: Duchamp não poderia mais de objetos, a caixa protetora, as etiquetas padronizadas
estar pensando na retrospectiva de suas obras, o compêndio e outras diversas maneiras de enquadramento sugerem
de sua produção, como qualquer coisa parecida com um precisamente um esforço para invocar uma certa
“livro” ou uma simples “caixa” como as outras. O raciocínio musealidade. Além disso, não se poderia ignorar o caráter
é simples: a introdução de um objeto tridimensional no altamente ambivalente da Caixa-valise como um museu, de
projeto significa a necessidade de um espaço tridimensional Duchamp como um “preservador”, das descontinuidades
para guardá-lo. Então, mesmo se Duchamp ainda não das narrativas que conta, e da fragilidade da estrutura que
tivesse determinado a exata natureza do recipiente para oferece. Pode-se perguntar, então: que tipo de museu, que
as reproduções dos seus trabalhos, fazendo o pequeno tipo de arquitetura e que tipo de história o chamado museu
modelo escultural do urinol − e assim retornando ao tema de Duchamp na verdade apresenta?
da institucionalização que a Fountain indiscutivelmente Entre “de ou por”, Marcel e Rrose Sélavy, singular e
traz à tona −, ele parece ter decidido que o recipiente para plural, precisão artesanal e reprodutibilidade serial, original
suas réplicas deveria empregar aspectos arquitetônicos de e cópia, situam-se múltiplas ambigüidades, instabilidades e
algum tipo, o que rapidamente o tornaria uma configuração indefinições que dificilmente são por acaso. A valise cheia
expositiva. Com um simples ato, definitivamente Duchamp de coisinhas de Duchamp cumpre sua tarefa precisamente
incluiu oficialmente a Fountain, o ready-made que poucos em sua indefinição como obra “de arte” por seus próprios
sequer souberam ser de sua autoria, na compilação de suas méritos e, mais profundamente, em seu jogo de entrando e
obras. Nada melhor para permitir que finalmente essa obra saindo entre o invocar e o refutar uma museabilidade.
entrasse no museu e na história (fazendo-os estremecer). Com Caixa-valise, Duchamp continua a tarefa iniciada
Descrevendo a Caixa-valise para James Johnson Sweeney, na Caixa de 1914, voltando suas questões sobre fotografia
Duchamp disse: em novas direções. A Caixa-valise faz, em grande parte, um
uso neutro da fotografia, utilizando na maioria das vezes
Em vez de pintar algo novo, meu objetivo era reproduzir as a linguagem fotográfica antiartisticamente (reprodução).
pinturas e objetos a meu gosto e juntá-los no menor espaço Além disso, a “documentação” anônima de Duchamp é
possível. Eu não sabia como seguir com isso. Primeiro freqüentemente dúbia, uma vez que aceita e recusa sua
pensei num livro, mas não gostava tanto da idéia. Então função como prova ou portadora da verdade. Além do mais,
me ocorreu que poderia ser uma caixa, na qual todos os dado que algumas das fotos “representam” obras de arte
meus trabalhos seriam colecionados e montados como em que no período da produção da Caixa não existiam mais,
um pequeno museu. Por assim dizer, um museu portátil.21 a linguagem fotográfica − e a desconfiança que Duchamp
incorporou a ela − torna-se a ferramenta perfeita e um
O historiador da arte Benjamim Buchloh ressalta de que emblema para a falta de base sólida própria da cópia.
maneira o trabalho é fiel a essa descrição: Para Duchamp, reprodutibilidade nunca foi uma
questão de prática publicitária ou divulgação, muito menos
Todas as funções de um museu, a instituição social que um banal processo mecânico. Nem era a simples cópia de
transforma a primária linguagem da arte na secundária algo. Era, sim, um deslocamento, uma alteração perceptiva
linguagem da cultura, são minuciosamente contidas na e temporal. Numa análise superficial, o envolvimento de
caixa de Duchamp: a valorização do objeto; a extração de um Duchamp com a fotografia sugere que ele a considerava
contexto e uma função; a preservação, evitando a decadência; um passatempo e não a levava a sério. Porém, em quase
e a disseminação dos seus significados abstratos... [Com isso, todas ocasiões ele usa a fotografia (feita por ele ou por
Duchamp] também muda o papel do artista, de criador para seu cúmplice de conspiração, Man Ray) para elucidar
colecionador e preservador, preocupado com localização literalmente sua dimensão dissimuladora. Da paisagem
e transporte, avaliação e institucionalização, exposição e árida sugerida pela camada de poeira cobrindo O grande
conservação da obra de arte.22 vidro que aparece na fotografia realizada em conjunto

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E lena Filipovic

pelos dois artistas, Élevage du poussière [Criação de poeira], veracidade de objetos ou eventos (uma direta transcrição do
1920, aos brilhantes e numerosos retratos brilhosos feitos real) inscreveu por muito tempo o registro fotográfico num
por Man Ray, mostrando Duchamp travestido de Rrose regime de verdade. Como os trabalhos de Duchamp atacam
Sélavy ou Belle Haleine, a fotografia é a recorrente morada a verdade, ele rompe as pressuposições tanto da realidade
da contradição, da confusão e do engano visual: o que da fotografia quanto do real na fotografia. No âmbito da
você vê não é o que você vê. Particularmente, as reproduções representação, a cópia de Trébuchet na Caixa reitera o que
fotográficas da Caixa-valise não oferecem credibilidade: a sua participação entre as outras réplicas produz através
imagem do Porta-garrafas mostra sombras falsas, as de um de sua organização: “o museu portátil” nos mostra a
porta-chapéus e de uma roda de bicicleta, nem mesmo ficção da representação nos assim chamados sistemas de
escondem o fato de que foram retocadas, e a modelada- verdade. Como nas anotações cuidadosamente simuladas
e-fotográfica reprodução de Why not sneeze? encontra-se, da Caixa verde, as reproduções da Caixa-valise reconhecem,
resoluta, entre a segunda e terceira dimensões. Diferenças voltando-se para elas mesmas, a incapacidade − de fato, a
dissolvidas entre o real e o ilusório, entre o índice e o impossibilidade − de a visualidade cumprir sua promessa
referente reconstituído, esses “itens” então resistem em de certeza ou autenticidade. Não é nenhuma coincidência
estabelecer os limites, propriedades e funções dos trabalhos que a fotografia tenha posição de destaque no museu
nos quais eram baseados. de Duchamp. A falha na operação ilusória nas imagens
Em 1940, Duchamp voltou atenção para uma das fotográficas da Caixa-valise acorrenta a fotografia à crítica
fotografias de seu ateliê em Nova York. O artista ampliou aos museus, expondo e derrubando a maneira pela qual o
a imagem e cobriu completamente o objeto que era museu e a história tipicamente constroem e apresentam
claramente assunto dessa reprodução: o cabideiro de suas “evidências”.
parede pregado ao chão e intitulado Trébuchet.23 Depois de Se o ready-made tinha mostrado que a obra de arte
pulverizar giz por fora da imagem do objeto, Duchamp e o produto de consumo poderiam fundir-se quase sem
fez uma linha contornando o cabideiro, em que refazia o distinção, a produção de 320 cópias de seu próprio
detalhe fotográfico que tinha coberto de branco. Após um “museu”, na opinião do próprio Duchamp indica que
longo e cuidadoso processo de coloração à mão, colagem, não havia nenhuma outra instituição mais esforçada
e repetidas impressões, ele transformou o novo Trébuchet, em negar isso que o museu moderno. Para Duchamp,
desenhado, num elemento do “registro” fotográfico. Além a transformação de arte em mercadoria tem uma ótica
disso, Duchamp aplicou variações desse procedimento completamente diferente do que tiveram, por exemplo,
à pá de neve suspensa, ao porta-chapéus e à roda de os programas do art nouveau ou até mesmo da Bauhaus,
bicicleta. O resultado foi um novo gênero imagético − nem nos quais estética e utilitarismo caminhavam juntos. A
totalmente fotográfico, nem totalmente documental, nem abordagem de Duchamp é um gesto sem pretensão de
totalmente qualquer outra coisa − introdutor de um deslize heroísmo: não há nenhuma reivindicação de levar a arte
perceptivo que raramente enganava alguém ao trair, como para as massas (não importa qual brincadeira Apollinaire
faziam, sua falta de verossimilhança e sua declaradamente tenha feito a respeito do amigo),24 nem nenhum esforço
desconfortável incongruência. foi empregado para fazer algo que mantivesse uma fração
Por que Duchamp passaria por tanta complicação? Por de funcionalidade, tampouco nada foi feito no sentido de
que redesenhou de maneira tão meticulosa um elemento trazer beleza para o cotidiano.
que era claramente visível na fotografia? Se a fotografia foi Se existe algo absolutamente desfuncionalizador sobre
por tanto tempo entendida como a emulação da pintura, a usurpação de um urinol de verdade para reivindicar
o pai do ready-made efetivamente inverte a relação, que ele é uma obra de arte, há algo ainda mesmo mais
adicionando ao acervo de seu museu um elemento traçado descarado e imprudentemente ludibrioso na redução de
à mão que faz a mediação entre categorias e meios físicos, seu tamanho, deixando-o parecido com um brinquedinho,
entre o fazer artístico e a evidência documental. O status e no seu encaixotamento com outros itens pequenos (a
privilegiado da fotografia como o registro que garantia a capa de máquina de escrever, o pente, o porta-garrafas...)

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Um museu que não é

que no final das contas não servem como nada além de empírica dos arquivos e museus − e de sua variedade de
suportes para as coisas “reais” e outrora utilitárias às quais sistemas classificatórios − a fim de afrouxar nosso apego ao
eles se referem. Assim, na medida em que o ready-made conhecimento e perguntar: o quanto é realmente possível
parecia expor as tensões entre o produto de consumo e o saber sobre as idéias ou objetos diante de nós?
objeto de arte, entre a produção em série e o colecionável, Em última análise, Duchamp vai ao encontro do desejo
entre aquilo que é comum e o que merece ser exposto, do museu por precisão com ironia e aproximações; do
a Caixa insere essa ambivalência mais enfaticamente desejo de totalidade com uma história fragmentária; do
nos componentes específicos da museologia, como a desejo de uma cobertura enciclopédica com “à peu près”
arquitetura institucional, as técnicas de montagem, as [aproximadamente]; do desejo por sistemas e ordem com
seqüências cronológicas, as legendas explicativas, entre uma taxonomia volátil; do desejo pelo original com um
outros. Além disso, as multiplicações em série das caixas conjunto de cópias; do desejo por uma história linear
duchampianas sugerem que museu e indústria e museu e com pausas, atrasos e uma lógica desalinhada. Onde
mercadoria possuem algo profundamente em comum. O estruturas monumentais, primazia visual, taxonomia e
arquivo do artista é perfeitamente encaixotado como um óbvias cronologias constituem os dados fundamentais do
produto, numa embalagem (os mais preciosos exemplares museu, Duchamp orquestra a desestabilização do espaço
eram valises com fechaduras e alças) cuja compra é feita museológico e a reorganização da lógica de exposição.
facilmente por um “boleto de assinatura” e cuja inscrição Ele constrói quase-retrospectivas com reproduções em
descritiva (“Esta caixa contém 69 itens”) não só atenua a estruturas vacilantes. Com a Caixa-valise o artista cria um
diferença entre objeto de arte e produto de luxo, como museu sem paredes, sem um local seguro, sem obras de
também reivindica para o artista os papéis de produtor, arte “autênticas”, isto é, um museu com a mais tênue
distribuidor, curador, arquiteto, vendedor e historiador. retenção da museabilidade. Mas ele não recupera nem
Havia algo decididamente inadequado no sistema destrói a instituição museológica com seu projeto. Mais
curatorial-arquivístico da Caixa-valise. As informações precisamente, Duchamp sujeita suas idéias, regras e dados
nas legendas, textos de paredes, o título de exposição, a operacionais a uma série de perguntas e tensões. Nisto se
organização geral: Duchamp compreendia bem que esses debruça o centro das múltiplas autonarrativas do artista:
aparatos determinam como e o que vemos. Ele jogou o através da combinação entre uma aparente ordem e
jogo do museu, mas a seu modo. A seleção de trabalhos falta de método, entre o original e sua reprodução, entre
não segue nenhuma lógica perceptível de cronologia, o museológico e o comercial, entre o que tem aura e o
material ou tema; a seleção é injustificada (por que esses ordinário, a Caixa-valise apresenta um modelo ambíguo do
69 itens em particular?); a escala das miniaturizações é artista como produtor, e um modelo ainda mais conflitante
variável. Sim, as legendas seguiam um mesmo formato e a do museu como sustentáculo da verdade.
informação classificatória que acompanhava cada peça era “Pode alguém fazer uma obra que não é ‘de arte’?”,
igualmente padronizada: título, técnica, tamanho, lugar e Duchamp escreveu em garranchos para si mesmo, numa
data de produção, a coleção a que pertenciam ou localização. dia em 1913.25 Então, silenciosamente, décadas depois,
Mas nas mãos de Duchamp esse aspecto vital da narrativa ele apontou para um outro, não dissociado, conjunto
legitimadora do museu é desdobrado numa paródia das de questões: pode alguém fazer um museu que guarda
técnicas curatoriais e põe em dúvida a validez dos sistemas trabalhos que não são (trabalhos) de arte? Um museu pode
de classificação. As informações nas legendas do museu de ser uma obra de arte? Pode alguém fazer mais de trezentos
Duchamp referem-se às obras “originais” (que ainda existiam trabalhos que são museus? Seria um museu uma caixa cheia
ou não), cujas medidas, datas, locais etc. são nitidamente de trabalhos que são obras de arte? Se não há paredes, seria
conflitantes com as dimensões reduzidas ou com a isso um museu? Alguém pode fazer um museu que não é?
posterior reprodução das amostras em oferta na Caixa-valise. Um museu que não é. Com sua estrutura experimental,
Conhecimento é instável, informação contraditória, lógica suas dimensões lilliputianas e sua hesitante moldura, a
desafiada. Duchamp manobra a natureza aparentemente Caixa-valise desobedece a estabilidade e o enraizamento tão

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E lena Filipovic

característicos do museu. Ela atua contra a impenetrável museus e as galerias que mais apóiam o estímulo retiniano
fachada e os espaços transcendentais do museu como desincorporado.27 O tátil e variável modo de olhar exigido
templo moderno de trabalhos heróicos (e o que poderia ser pela Caixa-valise (obscuras, desorientadoras, emaranhadas
menos heróico que uma fina, feita de plástico, miniversão ou instigantes foram as instalações para as exposições
de O grande vidro?). A instabilidade da pequena montagem da surrealistas) rompe bruscamente a relação cartesiana
exposição feita por Duchamp vem, pelo menos em parte, do entre corpo e visão, observador e objeto revelando padrões
arranjo de seu formato − uma instável, ilimitada estrutura institucionais que condicionam assuntos, organizam o olhar
com molduras dobráveis, painéis corrediços, partes móveis, e dirigem a atenção. Avaliar a Caixa-valise, é reconhecer a
e uma interminável reconfiguração do espaço expositivo − maneira com que segundo a qual ela ataca e redireciona
nada parecido com a estática, sólida e estável arquitetura o puramente visual e a maneira que insiste no libidinoso
e terra firme do museu. Para expor os “trabalhos”, faz-se e corpóreo, ambos como matéria e ponto de acesso do
necessário desembalar as molduras; para vê-los por inteiro é museu. Em sua abolição da montagem estrutural simbólica
preciso manusear as peças e reorganizar a exposição. do museu, a Caixa carrega o embrião do projeto que
Muito da arquitetura museológica está precisamente a preocuparia Duchamp até o fim de sua vida.
serviço da administração visual central ao funcionamento
da máquina-museu. Uma das funções definidoras do museu, Uma real exposição de museu
como o historiador Donald Preziosi apresentou, é a tarefa Duchamp passou os últimos vinte anos de sua vida
de “situar todos os objetos dentro do espaço expositivo, construindo secretamente uma elaborada “pintura
de modo a evocarem e obterem uma postura própria viva” erótica intitulada Étant donnés: 1. La chute d’eau / 2.
e distância para o olhar. Obras de arte são espaçadas, Le gaz d’éclairage, [Sendo dados: 1. A cascata / 2. O gás de
organizadas e compostas para permitir a tomada de iluminação] que só ficou conhecida (até mesmo pela família
posturas apropriadas: posições para o objeto.”26 Como e por muitos amigos próximos) depois de sua morte,
que reagindo a essa suprema instituição visual, o museu quando a obra entrou para a coleção do Museu de Arte da
portátil de Duchamp não pode ser visto fora da operação Filadélfia. Étant donnés... é indiscutivelmente uma das obras
performativa incitada no seu “visitante”. A miniaturização de arte mais inusitadas e enigmáticas do século XX. Sua
de cada um dos trabalhos fundamenta o olhar como exposição em um museu é central a sua própria função.
uma experiência corporal − por meio do manuseio de A experiência de apreciar essa obra começa antes
objetos; do fechar e abrir dos compartimentos tampados; mesmo de seu encontro, inicia-se no espaço externo ao
do atrito dos dedos ao desdobrar as pastas pretas com as trabalho, na seqüência de galerias e quadros que precedem
reproduções; do movimento deslizante dos trabalhos em a instalação e no acesso ao espaço branco e pequeno do
“vidro”; e do tentador convite para segurar o urinol, a lado da galeria principal, preenchida com a produção
ampola de vidro e a capa de máquina de escrever, todos de Duchamp pertencente à coleção de Walter e Louise
menores que a palma da mão. Em resumo, Duchamp inclui Arensberg (e de O grande vidro, que esteve anteriormente
o corpo do observador no olhar do museu. A mobilidade na coleção de Katherine Dreier). Depois disso o visitante
e o manuseio implícitos na Caixa são ainda mais enfáticos entra num quarto branco com uma desgastada porta tipo
(e problemáticos) quando esta é inserida num museu espanhola ao fundo, dotada de orifícios para os olhos,
de hoje, no qual se torna, assim como o resto das peças, olhos mágicos, que revelam (para os que ousam olhar) uma
imobilizada, protegida e intocável. A convocação para parede de tijolos quebrada atrás da qual se pode ver um
o toque da Caixa-valise revela assim um conjunto de diorama em um tamanho quase real de um corpo feminino
substanciais preocupações que expõem o ocular-centrismo nu feito com pele de porco. Ela segura uma lamparina e
dos espaços para mostras públicas. está deitada sobre uma camada de ramos e folhas mortas.
Se, como os historiadores indicam, a intenção do artista Isso tudo contrasta com um fundo pacífico e foto-realista
em suas primeiras experimentações ópticas é “corporificar com céu, montanhas, cachoeiras, nuvens e luz. A vasta
o visual”, seria possível dizer que, para Duchamp, são os extensão do fundo é um mural parcialmente pintado à mão,

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Um museu que não é

com efeitos de luz dando a idéia de uma falsa cascata (nada também com um catálogo, elaborado por Duchamp,
do sublime de Caspar David Friedrich, o pintor romãntico trazendo na capa um seio feminino em relevo, e o aviso:
alemão do século xix) e o nu − um corpo mal-feito, “Favor tocar”. Além disso, na Exposition International
estranho e pouco natural − rejeita qualquer reivindicação du Surréalisme de 1959, deu-se a experimentação
de virtuosidade. Esse é o desdobramento do mais familiar duchampiana sobre o tema: “Eros”: um interior de paredes
gênero intrínseco do museu, a paisagem idílica e o nu aveludadas, ondulado, “vivo” e vaginal. Podem ainda
reclinado, mas com uma mistura de hiper-realismo e ser mencionadas outras formas de reconfiguração dos
estranheza, explicitação pornográfica e uma inadequação espaços convencionais de exposição e dos meios pelos
absolutamente letárgica. Duchamp preserva o observador quais o público experimenta o olhar, caracteres centrais do
de ser seduzido pelo exato quadro que a tradição pictórica objetivo de uma exposição.
parece estar nos convidando a ver. Ao mesmo tempo, para O desenvolvimento de Étant donnés... também sobrepôs
fazer isso, ele posiciona a fotografia para sua enganadora uma menos espetacular, mas sem dúvida importante tarefa:
finalidade uma última vez, e em larga escala: de fato, o que no final da década de 1940, Walter e Louise Arensberg
você vê não é o que você vê. encarregaram Duchamp de liderar as negociações para
Na primeira vez que a instalação veio a público, encontrar um museu em potencial, ao qual o casal confiaria
esse retorno de Duchamp, crítico ferrenho do estímulo sua coleção de arte (que incluía o mais significativo acervo
retiniano da expressão pictórica, para algo aparentemente de trabalhos de Duchamp). O artista teve encontros com
figurativo e concreto (material em vez de conceitual) foi representantes de vários museus até se decidir pelo Museu
considerado desconcertante − e repudiado como uma grave de Arte da Filadélfia para abrigar a grande coleção. Cartas e
anomalia − por muitos especialistas e amigos próximos esboços enviados aos Arensbergs, na Califórnia, atestam o
do artista. E ainda, mais do que ser ou uma incongruência íntimo envolvimento de Duchamp em todo o processo para
em sua produção ou um certo retorno à ordem, a instalação ajudá-los na escolha. Em 1951, Duchamp desenhou vários
deve ser compreendida como a perfeita culminação das esboços com as proporções e layout de várias possíveis
obstinadas preocupações de uma vida inteira, tal como o galerias do museu.28 Com medidas precisas e desenhos
mordaz comentário sobre a visualidade e as instituições que em escala, os planos incluíam as famosas galerias em que
implicitamente a sustentam. estão as obras de Duchamp e a pequena sala adjacente,
Construída no período que vai de 1946 a 1966, a também medida e marcada, na qual, informação secreta
instalação seguiu o passo da longa produção da Caixa-valise para qualquer um naquele momento, Étant donnés... seria
e sobrepôs a colaboração de Duchamp em diversos projetos montada mais de uma década depois. O local era escondido,
de montagem de exposição. Em retrospecto, o papel de sim, mas era impressionante como Duchamp conhecia bem
Duchamp como designer de mostras artísticas parece, esse espaço, tendo dele uma precisão arquitetônica. Não há
particularmente, servir como base de teste para o que como evitar a especulação de que, em seus últimos anos de
ele estava, silenciosamente, buscando. Houve a vitrine da vida, Duchamp trabalhou em Étant donnés... tendo exatamente
[livraria] Gotham Book Mart, em 1945, em que apresentou aquele espaço em mente. Com a coleção dos Arensberg no
um manequim feminino vestido apenas com um pequeno museu, em 1954, Duchamp supervisionou a montagem de
avental, que trazia uma torneira fixada na perna, uma cada peça − um curador como qualquer outro, pode-se dizer.
espécie de “noiva” atrás do vidro jorrando água corrente e Nos anos seguintes, Duchamp inventou um dispositivo
materializando diferentes elementos de O grande vidro em intrincado para acompanhar e fazer parte da constituição
um quadro vivo e tridimensional. Em seguida, na Exposition de Étant donnés... em sua morada no museu. Nenhum
International du Surréalisme [Exposição internacional de detalhe é desprezável, toda a experiência do trabalho é
surrealismo] de 1947, em Paris, Duchamp planejou paredes completamente circunscrita pelo fato que a obra está num
onduladas e uma sala gotejando água. Também, incluiu museu de arte. Logo, a pergunta, raramente lançada entre
uma instalação na forma de um olho mágico enigmático, os críticos, é: como interpretar exatamente o esforço que
intitulada Le Rayon Vert [O raio verde]. A mostra contou foi afiançar seu lugar? Devemos pensar que parte da “obra”

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E lena Filipovic

chamada Étant donnés... é a teia de aspectos invisíveis, legais museu a fim de assegurar a mais “aproximada” remontagem
e administrativos que mimetizam a própria estrutura do do trabalho em seu novo local, conta essa mesma história.
museu em complexas maneiras: o segredo da venda do Um estranho álbum artesanal com dúzias de páginas
trabalho, nos anos 1960, ao amigo de confiança William manuscritas, com instruções numeradas, e mais de cem
Copley e sua Cassandra Foundation, que iria oficialmente ter colagens com fotografias recortadas, oferece evidências
posse da obra após a morte de Duchamp; os arranjos para a consideráveis para interpretar o projeto de Duchamp. Na
doação do trabalho da Cassandra Foundation para o Museu última página de imagens do álbum, Duchamp prende,
de Arte da Filadélfia imediatamente depois do falecimento com clipes, uma série de fotografias nas quais a câmera
do artista (essa generosa transferência aumentaria, no final, está no lugar do observador imaginário. Ele enquadrou e
as chances de a provocante instalação ser aceita no museu reenquadrou a cena do corpo feminino inclinado mais ou
que abrigava a maioria de seus trabalhos); a elaboração de menos coberto pelos tijolos. Adicionava mais tijolos, um
um rico manual de instruções para o reagrupamento dos aqui, outro lá, primeiro cercando-os e depois os adicionando
elementos da instalação em sua morada final; e as proibições à construção atual. O artista estava experimentando,
de como e quando fotografar o trabalho. Assim, em 1969, imaginando como o conjunto pareceria para o observador.
desde sua sepultura, Duchamp fez a curadoria de sua Contudo, se o manual auxilia o museu em seu trabalho de
última exposição. O lançamento póstumo de sua derradeira reconstrução, por que incluir todos esses cliques − ângulos
instalação ocorreu certo dia, num quarto escuro e pequeno errados junto à correta visão final, que, em resumo, são
do Museu de Arte da Filadélfia, ao lado das salas em que detalhes inúteis para a remontagem da instalação? O que
tinha montado tantas obras. parece ser o assunto dessas imagens finais não é tanto as
Depois de quinze anos da abertura ao público, não se informações que as fotos trazem sobre a instalação em si,
pode simplesmente “ver” Étant donnés.... A obra não existe mas o fato de as fotos levarem essas informações para o
supostamente como uma imagem. Étant donnés... não é ela museu e, com elas, a estima duchampiana pela importância
mesma senão vista pessoal e especificamente no contexto absoluta em manter o controle minucioso do que o
museológico − dois aspectos do trabalho que se perderiam observador veria e como a obra executaria essa ação.
em qualquer tipo de reprodução fotográfica. Duchamp sabia Olhando para o manual, vemos o que está por trás da
que a instalação não duraria para sempre. Por isso deixou cena, a arquitetura frágil que Duchamp construiu para ser
instruções bem específicas no manual e fez na estrutura administrada e mantida pelo museu, mas não acessível ao
uma abertura que permite o posicionamento ideal para o olhar. O manual revela: Duchamp emendou, costurando
registro fotográfico, no caso da necessidade (inevitável?) à mão, um objeto bizarramente funcional com materiais
de reprodução. Uma vez reproduzido, ele quis que isso que estivessem à mão, uma incrível estrutura está presa
representasse da maneira mais acurada possivel o que o com fita adesiva, com nuvens feitas de algodão, oscilantes
observador realmente vê. Mas era importante para ele que o fios elétricos atados com cintas, uma máquina caseira
trabalho não fosse reproduzido tão cedo.29 Duchamp tomou de luz-queda d’água feita como uma caixa de biscoitos
consideráveis medidas (tais como revestir de veludo preto a Peek Freans. Em resumo, nada que lembrasse os ângulos
parte de trás e os lados da porta espanhola e cobrir todas as perfeitos, o ambiente puro e a estabilidade do museu. Ele
laterais da estrutura da porta da frente à parede de tijolos desenhou a instalação inteira para eles, com a precisão
quebrados) para assegurar que o observador não pudesse de um arquiteto. Rígido, calculou todas as linhas da sua
ver o interior de nenhum outro jeito que não fosse pelo estranha e frágil arquitetura, em que tudo é deselegante e
par de buracos reservados aos olhos. O que está em risco é desajeitado. Que maldade fazer o museu se prestar a isto,
a particular experiência de Étant donnés... − uma experiência andar nas pontas dos pés ao redor dos arames suspensos
intraduzível em formato bidimensional, que a deixa fora e tijolos farelentos, ou se aborrecer com um pedaço de
de seu contexto arquitetônico e institucional, e que não fita que certamente descolaria. Afinal de contas, onde é o
permite uma certa ação por parte do observador. começo e o fim dessa obra de arte? Ele deixou esse legado
O manual de instruções que Duchamp deixou para o para que o museu pudesse ruminá-lo.

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Um museu que não é

Na percepção, assim como na arquitetura, soleiras um posfácio de tipos. Duchamp levou mais de vinte anos
demarcam pontos de transição, a passagem na direção construindo sua obra de arte. A pergunta que poderia ser
ou para longe do perceptível, para dentro ou para fora feita justamente é: como ele fez isso em segredo? Como ele
de um espaço. A arquitetura, pode-se dizer, constrói fez para ninguém saber sobre a instalação e seu trabalho
e é construída pela soleira, um limite necessário que articula nela? Afinal de contas, esconder um trabalho durante
interioridade contra exterioridade. Por conta disso, não vinte anos da família e dos amigos não é uma tarefa fácil.
pode haver arquitetura sem interioridade (o que faz da A resposta é que ele montou um disfarce, outra exposição
construção um monumento) e igualmente não pode de tipos. Para isso ele alugou um segundo estúdio. No que
haver arquitetura sem exterioridade. Considerado nesses era propriamente um ateliê, ele estava construindo o nu
termos, Étant donnés... segue uma lógica decididamente desengonçado e a casa de tijolos. No outro, sentava-se para
antiarquitetônica, oferecendo uma elaborada estrutura de receber amigos, convidados, admiradores, companheiros
bastidores cuja “fachada” visível é uma porta externa, gasta de xadrez. Concedeu entrevistas nesse lugar. Disse-lhes
pelas intempéries, porém colocada dentro do museu. Esse que não estava fazendo nada, que não fazia mais arte. É
portal deveria logicamente levar o olhar para fora do local claro que isso não era totalmente verdadeiro. Mesmo que
de exposição, mas em vez disso leva-o para além de uma ninguém soubesse do projeto secreto, havia todo tipo de
soleira de tijolo quebrado, abrindo caminho para um idílio objeto sendo “lançado” naqueles anos; havia todos aqueles
ilusionista, ostensivamente exterior, mas tão inverossímil livros, a vitrine de loja, os projetos de exposição − o que já
como tal que é claramente interior.30 Mas interior a quê, é alguma coisa − e muitos desses, na realidade, apontam
exatamente? Sendo efetivamente uma estrutura de soleiras, para idéias desenvolvidas em Étant donnés.... Sem contar a
Étant donnés... explora os limites da arquitetura, os limites série de objetos eróticos feitos diretamente sobre moldes ou
do museu, localizando-se precisamente no lugar em que partes integrantes da própria instalação secreta, cada forma
se esfacela a oposição arquitetonicamente definida entre enigmática servindo como uma chave para passar para um
interior e exterior. mundo interior por uma porta ainda invisível.
Étant donnés... poderia ter começado com uma pergunta Ainda que qualquer pessoa viesse ao ateliê “público” de
que ao mesmo tempo é uma contradição: como abrir um Duchamp não veria nenhum sinal de produção ou atividade
buraco no museu, um buraco que também é uma moldura artística. Note-se que também isto era uma exposição de
para o olhar e ainda é arquitetura? Étant donnés..., tão tipos, já que Duchamp poderia simplesmente ter aberto
anunciada pelas prévias instalações de Duchamp (das quais mão do estúdio por completo e recebido visitas em casa. No
seu ateliê foi o primeiro espaço de exposição) e pela Caixa- entanto, Duchamp quis ter um estúdio aberto ao público do
valise (que apesar de miniatura, também é uma exposição), lado do ateliê secreto. Neste primeiro ele poderia mostrar
definiu, por esses trabalhos, um projeto de toda uma vida − literalmente expor − que não estava fazendo nada.
em oposição à estabilidade da arquitetura − um projeto Enganou a todos. Quando ele morreu, quase ninguém sabia
para pressionar a racionalidade, o espaço legitimador sobre sua obra de arte secreta − nem os amigos próximos,
do museu; um projeto para visualizar a promessa e os nem os entrevistadores, nem mesmo Arturo Schwarz, que
limites do estético em face às instituições de arte. Sem estava com The Complete Works of Marcel Duchamp [Obras
sombra de dúvida, Duchamp não estava interessado em completas de Marcel Duchamp] no prelo.
erradicar o museu. Em vez disso, através de seus múltiplos Esta parece ter sido a última lição de Duchamp e
gestos, Duchamp evocou e infringiu o museu, a estrutura também o que ele andou dizendo por toda a sua vida: Preste
arquetípica da modernidade, para que comecemos a ver o atenção. O modo como as coisas são expostas importa.
jeito pelo qual o museu nos faz ver.

Pós-escrito
Eu deveria terminar aqui. Étant donnés... foi um fim,
em muitos sentidos da palavra, assim sendo este será

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Notas

1. Para a relação do ateliê de 8. Carta de Duchamp para Dreier, 11 densidade ideológica, institucional, 17. Para a discussão sobre a maneira
Duchamp com seus ready-made, de setembro de 1929. Reimpresso psicológica e as dimensões como esse interesse atravessou
ver Helen Molesworth, “Work em: Naumann e Obalk (eds.), psicoeróticas, aspectos em grande toda a produção de Duchamp veja:
Avoidance: The Everyday Life of Affectionately Marcel, p. 170. parte ignorados pelos artista Francis Naumann, Marcel Duchamp:
Marcel Duchamp’s Readymades”, contemporâneos de Duchamp. Na The Art of Making Art in the Age
Art Journal, no 57 (1998): pp. 50-61. 9. A Exposition surréaliste sua substancial pesquisa sobre of Mechanical Reproduction (New
d’objets [Exposição surrealista os jogos ópticos de Duchamp, York: Harry N. Abrams, 1999).
2. Marcel Duchamp, em carta de objetos], de 1936, ocorreu em Rosalind Krauss, estendendo a
para Suzanne Duchamp, 15 de Paris, no apartamento-galeria do análise de Jean-François Lyotard, 18. Na primeira monografia sobre
Janeiro de 1916. Reimpresso em negociante de artefatos africanos enfatiza as maneiras pelas quais as o artista, Duchamp e Robert Lebel
Francis Naumann & Hector Obalk Charles Rattan. Esse evento foi experiências visuais e as ilusões de listam dois lugares e duas datas
(eds.), Affectionately Marcel: um importante precedente para a óptica operam para “corporificar para a Caixa-valise: cf. Lebel, Sur
The Selected Correspondence of forma concebida pelo movimento o visual”, oferecendo-se como Marcel Duchamp (Paris: Trianon,
Marcel Duchamp (London: Thames surrealista concebeu para apresentar medidores para as noções de 1959), item no. 173. Igualmente,
and Hudson, 2000), p. 43. uma mostra artística. Porém, boa forma e pureza ótica, tão na entrevista com Pierre Cabanne,
foi só em 1938, na Exposition central para a estética modernista. Duchamp data Caixa-valise “de
3. Duchamp tentou expô-los internationale du surréalisme, que Ver: Krauss, “The Im/pulse To 1938 a 1941”. Cabanne, Dialogues
de maneira mais pública: ele esse cuidado do movimento ficou See”, in: Vision and Visuality, with Marcel Duchamp, 79 [Edição
dependurou dois ready-made explícito, com a primeira verdadeira Hal Foster (ed.)., (Seattle: Bay brasileira: Marcel Duchamp:
na área de guardar casacos da reconfiguração do espaço e da Press, 1988), pp. 51-75; e “The engenheiro do tempo perdido, p.
Galeria Bourgeois, em 1916. Mas arquitetura por um viés surrealista. Blink of an Eye”, reproduzido 136]. Essas datas são repetidas no
eles foram totalmente ignorados. As preocupações ideológicas neste volume. Ver também: catálogo da primeira retrospectiva
Então, um ano depois, ele surrealistas influenciaram o Lyotard, Les transformateurs americana de Duchamp, em
submeteu sem sucesso a obra teor das montagens, em que os Duchamp (Paris: Galilée, 1977). Pasadena, 1963 (intitulada De ou
Fountain à Society of Independent artistas do movimento estavam par Marcel Duchamp ou Rrose
Artists Exhibition [Exposição dos envolvidos. Logo, o tratamento 13. Referência irônica à condição Sélavy, mesmo nome da obra
artistas independentes], em que dessas exposições aqui é por imposta pela patrocinadora da duchampiana que, em parte, serviu
permaneceu completamente definição parcial, com principal exposição, Elsa Schiaparelli: gastar de modelo para a exposição),
escondido atrás de uma divisória, ênfase no papel de Duchamp. o mínimo de dinheiro. (N. T.) a partir de então, estas datas
e subseqüentemente perdido. tornaram-se padrão na maioria
10. Entre eles encontram-se as três 14. Duchamp fala sobre a dos estudos sobre Duchamp.
4. Molesworth, “Work melhores descrições completas montagem da exposição, sobre a
Avoidance”, p. 50. do evento por seus participantes: compra dos barbantes e do fato de 19. Para a reprodução na Caixa-
Georges Hugnet, “L’Exposition que a primeira teia queimou-se valise, Duchamp incluiu fotografias
5. A exposição, que contou com internationale du surréalisme”, por estar muito perto das lâmpadas de Man Ray do segundo secador
mais de 2125 obras de 1200 artistas, Preuves 91 (setembro de 1958) , pp. na entrevista com Harriet, Sidney de garrafas comprado em loja
tinha como premissa fundamental 38-47; Marcel Jean & Arpad Mezei, e Carroll Janis, 1953. Transcrição, (1936), que foi subseqüentemente
ser uma mostra democrática e por Histoire de la peinture surréaliste Museu de Arte da Filadélfia, perdido, como tinha sido o primeiro
isso não restringir a participação de (Paris: Seuil, 1959), pp. 280-89; e arquivos de Duchamp; ver também: (e de outros tantos ready-made).
artistas com um processo seletivo. Man Ray, Autoportrait, trad. Anne Pierre Cabanne, Dialogues with Na verdade, durante a preparação
Qualquer um, artista profissional Guérin (Paris: Éditions Robert Marcel Duchamp (London: Thames da Caixa-valise Duchamp teve em
ou amador, que pagasse a taxa Laffort, 1964), pp. 205-6 e 243-44. and Hudson, 1971), p. 86 [Edição mãos ambos: a famosa foto de
de inscrição poderia mandar sua brasileira: Marcel Duchamp: Steiglitz e a fotografia do urinol
obra para o comitê organizador (do 11. Jean e Mezei, Histoire, engenheiro do tempo perdido (São encostado na porta de seu ateliê.
qual Duchamp fazia parte), com a pp. 281-82. Paulo: Perspectiva, 2001), p. 147].
certeza de que ela seria exibida sem 20. H.P. Roché, das cartas e
julgamento de sua qualidade (N.T.). 12. Enquanto alguém como Robert 15. Duchamp, carta para Katherine documentos inéditos guardados
Delaunay fundamentou sua Dreier, 5 de março de 1935. no arquivo Roché da Coleção
6. Carta de Duchamp para Walter pesquisa sobre cor dentro da precisa Reimpresso em: Naumann & Carlton Lake, no Centro de
Arensberg, 8 de novembro de 1918. investigação das leis científicas de Obalk, Affectionately Marcel, 197. Pesquisa Harry Ransom, da
Reimpresso em: Naumann e Obalk Hermann von Helmholz ou os textos Universidade do Texas, Austin.
(eds.), Affectionately Marcel, p. 64. de Michel-Eugène Chevreul e seu 16. Nenhuma compreensão do Citado em: Bonk, Caixa, p. 204.
“Law of the Simultaneous Contrast compêndio de Duchamp é completa
7. Carta de Duchamp para Jacques of Colors”, as explorações sensoriais sem recorrer ao preciso e valioso 21. “A Conversation with Marcel
Doucet, 19 de outubro de 1925. de Duchamp − mesmo quando mais estudo de Ecke Bonk. Ver: Bonk, Duchamp”, entrevista filmada com
Reimpresso em: Naumann & Obalk aparentavam (debochadamente) The Box in the Valise (London: James Johnson Sweeney, conduzida
(eds.), Affectionately Marcel, p. 152. momentos científicos − eram muito Thames and Hudson, 1989). nas salas Arensberg, no Museu de
mais sobre voltar o olhar para a Arte da Filadélfia, em 1955. Citado

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Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, escaneada ou distribuida de forma impressa ou eletrônica sem autorização. ©2008FundacionProa
Um museu que não é

in: Dawn Ades, Marcel Duchamp’s finalidade de guardar a mesma...


Travelling Box (London: Arts Council Por um período de quinze anos
of Great Britain, 1982), p. 3. desta data, o Museu não permitirá
que qualquer cópia ou reprodução
22. Benjamim Buchloh, “The seja feita de Étant donnés..., através
Museum Fictions of Marcel de fotografia ou outro meio, com
Broodthaers”, in: A. A. a única exceção de fotos da porta
Bronson & Peggy Gale, (eds.), atrás do dito objeto de arte que está
Museums by Artists (Toronto: sendo instalado”. Ver: “Agreement
Art Metropole, 1983), p. 45. between the Cassandra Foundation
and the Philadelphia Museum
23. No original Trebuchet, do of Art”, localizado no Museu da
verbo francês “trébucher” que Filadélfia e reproduzido in: Mason
significa “tropeçar”. (N.T.) Klein, The Phenomenology of
the Self: Marcel Duchamp’s Étant
24. No livro Les Peintres cubistes, donnés (PhD diss., City University
de 1913, em que Guillaume of New York , 1994), appendix.
Apollinaire apresenta ensaios sobre
pintores cubistas, encontra-se 30. Craig Adcock já disse que
uma curiosa análise da pequena Étant donnés... “não tem exterior.
produção artística do então Tem apenas um interior, do qual se
jovem Duchamp: o poeta e crítico olha para outro interior”. Adcock,
de arte francês comenta que Definitively Unfinished Marcel
Duchamp, com seu Nu descendant Duchamp, Thierry de Duve (ed.),
un escalier, irá “reconciliar a (Cambridge: MIT Press, 1991), p. 342.
arte com o povo”. Citado in:
Calvin Tompkins, Duchamp:uma
biografia, (São Paulo: Cosac
Naify, 2005, p. 141). (N. T.)

25. Das anotações reunidas


em: À l’infinitif (A Caixa
branca); reimpressas em:
Duchamp du signe, p. 105.

26. Donald Preziosi discute o


estímulo óptico do museu em:
“Brain of the Earth’s Body,”
in: Paul Duro, (ed.), Rhetoric
of the Frame, p. 107.

27. Krauss, “Im/pulse”, p. 60.

28. Para a discussão de Duchamp


e sua relação com os Arensbergs,
veja: Naomi Sawelson-Gorse’s,
“Hollywood Conversations:
Duchamp and the Arensbergs,”
in: West Coast Duchamp, Bonnie
Clearwater (ed.), (Miami Beach:
Grassfield Press, 1991), pp. 25-45.

29. O acordo entre a Cassandra


Foundation e o Museu estipula
que “dentro ou adjacente à
coleção do Museu dos trabalhos
de Marcel Duchamp, em um
acordo especialmente destinado à

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