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Um Círculo De Sal
Sentada no chão, tendo à sua volta apenas um círculo feito de sal grosso,
Thammires forçava o rosto contra as palmas das mãos, em desespero. E,
diga-se de passagem, seu desespero era plenamente justificado pelos
acontecimentos daquela noite.
Olhou a sua volta pela milésima vez: o pequeno porão, que os donos da casa
haviam convertido em despensa, iluminado pela luz de uma velha lâmpada
de sessenta watts, não apresentava mais nenhuma saída além da porta que a
levaria de volta para o andar térreo da casa. E, naquela casa, ela nunca mais
iria pôr os pés. Aliás, se tivesse seguido seu pressentimento inicial, não
estaria ali agora. Não estaria naquela situação, agora. E Jared ainda estaria
vivo.
A lembrança de Jared trouxe lágrimas novamente aos seus olhos, mas ela
forçou-se a não chorar. Haveria tempo para isso mais tarde. Chorar agora
seria um luxo que ela não podia sustentar. Precisava estar focada em sua
sobrevivência.
Continuou observando o porão. Não havia janelas. Isso era bom. Não podiam
entrar. Mas isso também era péssimo. Ela não podia sair. Mas também, sair
iria resolver alguma coisa? Sua última tentativa de deixar a casa havia sido
desastrosa. Ela estava encharcada. Enrolou-se em alguns panos de chão que
encontrou no porão. Tinha que evitar a hipotermia a todo custo. Fosse devido
ao frio ou ao cansaço, não podia dormir, tinha que estar atenta.
Sem ter muito mais a fazer, começou a rememorar os fatos, buscando algum
detalhe que a ajudasse a sair daquela enrascada.
Oh, Jared, meu amado Jared, por que os homens sempre têm de bancar os
imbecis?
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Naquele ano, Thammires estava determinada a fazer algo diferente nas férias
de julho. Estava maluca para conhecer a Serra Gaúcha. Ouvia Jared falar da
neve caindo em sua cidade natal e ficava morrendo de curiosidade de saber
como era. As previsões meteorológicas indicavam que ia ser o inverno mais
frio nos últimos vinte anos. Isso significava neve. Talvez não tanto quanto na
cidade natal do Jared, mas o suficiente para ela matar a sua curiosidade. E
neve lembrava frio, que lembrava lareira, que lembrava romance e lembrava
que finalmente ela e Jared iam ter um pouco de privacidade e poderiam
namorar à vontade.
- Estou ... estou... foi só uma tontura passageira. Acho que eu devia ter
caprichado mais no café da manhã. – Thammires bem que tentou disfarçar
com um sorrisinho amarelo, mas a mãe não engoliu aquela conversa. Se não
Para Thammires, nem precisava falar nada, porque ela estava pouco ligando
para quartos fechados e velhos pertences. Ela queria lareira, chocolate
quente, fazer amor bem gostoso e dormir de colherinha.
- Bom dia, amor! – ele fez a inevitável cara de idiota, tão adequada à
situação.
- Bom dia? Como meu dia pode ser bom, se o homem que diz que me ama
está aqui, tentando arrombar uma porta, ao invés de estar acordando ao meu
lado?
- Você devia se ocupar em aprender a abrir o fecho do meu sutiã, onde você
sempre se atrapalha, ao invés de abrir portas que não lhe pertencem.
O convite velado naquele comentário foi mais forte que a curiosidade. Ele se
levantou e foi em direção a ela.
- Bom, então vamos começar meu treinamento agora. O que você acha?
- Agora você vai ter de se contentar em abrir meu roupão, porque eu não
estou usando nada embaixo dele...
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Mas Jared era persistente. E, mal caíra aquela noite, o clipe retorcido venceu
a resistência da velha fechadura. Com um estalo, a porta abriu.
Ao abrir, Jared percebeu que tinha em mãos uma pequena relíquia, de valor
inestimável. Era o diário de Herr Gunther onde, em uma letra caprichada e em
uma escrita muito meticulosa, ele desvendava interessantes segredos.
Sentindo-se agora finalmente justificado por ter escolhido alemão como
segunda língua de seu curso de letras, Jared começou a ler o diário.
Pelos relatos que fazia em seu diário, as pesquisas de Herr Grover haviam
sido um sucesso fantástico, por um lado – e um retumbante fracasso, de
outro.
Jared ficou intrigado. Será que as notas do velho Grover ainda estavam por
ali? Deviam estar...
O grito de censura de Thammi quase fez Jared cuspir o coração pela boca.
Droga! Ficara lendo o diário do velho e esquecera a passagem do tempo.
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Ao abrir o papel, viu que nele haviam vários símbolos desconhecidos e cinco
palavras.
- E o que é?
- Não sei que língua é esta, mas tem uma nota de rodapé, aqui. Parece que é
um guia de pronúncia das tais palavras.
- Jared, não pronuncia essas coisas, não. Por favor, amor! Vamos trancar de
volta este quarto e deixar essa história prá lá, por favor! – Ao chegar ao final
da frase, Thammires já estava em prantos.
- Ei, ei! Calma! Tá bom, meu amor! Vamos deixar isso prá lá, a história acaba
aqui.
Ao olhar em volta, Thammires deu graças a Deus por estar no Rio Grande do
Sul, um estado tão afeiçoado ao churrasco. Nas prateleiras, entre vários
outros itens que se encontram em uma despensa, uma grande quantidade de
sacos de sal grosso aguardavam pelo próximo churrasco.
Ainda ofegante pelo esforço, apanhou o celular no bolso, apesar de saber que
estava fora da área de cobertura. Queria saber as horas. Eram apenas nove
da noite. O nascer do sol ainda estava distante. Mortalmente distante.
O passar das horas foi aumentando seu desespero. Não poderia ficar ali para
sempre. Tinha de tentar fugir. Por volta das duas horas da manhã, o silêncio
do outro lado da porta e o medo de ficar encurralada ali para sempre a
fizeram arriscar uma tentativa de fuga.
Ao abrir a porta do porão, a primeira coisa que fez foi atirar um punhado de
sal antes de sair. Não houve reação nenhuma.
Estranhamente, a casa voltara a seu estado normal. A sala, que deveria estar
revirada pela força do vendaval, estava novamente arrumada, como se nada
tivesse acontecido.
Ao chegar a escada, Thammires viu que o corpo de Jared não estava mais
onde havia sido abandonado. Não havia sequer sinais de sangue nas
paredes ou no piso. Aquilo ficava cada vez mais estranho...
Mas Thammires confiava em si mesma e sabia o que havia visto. Sabia que
não estava louca e não ia se deixar enganar.Iria tratar de alcançar o carro que
haviam alugado. Estava estacionado perto da porta de entrada, não seria
difícil. A chave estava no para-sol. Era chegar até ele e deixar o pesadelo
para trás.
Lá fora, a noite fria mas estrelada fora substituída por uma chuva torrencial.
Até alcançar o carro, Thammires já estava encharcada. Tiritando de frio,
entrou no carro e abaixou o para-sol, procurando pelas chaves.
- É isto que você está procurando, meu amor? - pelo retrovisor, ela viu Jared
segurando as chaves.
Não havia tempo sequer para gritar. Por puro reflexo, ela abriu a porta e se
jogou para fora do carro, correndo em louca disparada. Jared, ou o que quer
que fosse aquilo atrás dela, também começou a correr.
- Ahhhhhhhh, maldita vadia humana! Ousas me causar dor? Vais sentir a dor
que te causarei! Rasgarei tua alma em pedaços!
Durante toda a noite, ouviu a voz de Jared implorando socorro, pedindo para
que ela abrisse a porta do porão. Ignorá-lo durante tanto tempo foi o maior
suplício que sofreu em toda a sua vida.
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