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1. Introdução.
Prima facie, cumpre ressaltar que se trata de um tema que não é de interesse apenas para
os que militam na área jurídica, mas também daqueles que são afeitos ao mercado
imobiliário (corretores, agentes) e da população em geral.
Consoante se extrai do título, o presente texto tem como objetivo discorrer sobre a
possibilidade, ou não, do cancelamento da cláusula de inalienabilidade sem a necessidade
de sub-rogação, conforme determina o parágrafo único do art. 1911 do novel Código Civil.
Destaque-se, para logo, que não desconhece o autor do presente trabalho o quão
polêmica é a questão contida neste despretensioso artigo, tendo em vista que muitos são
os que entendem não ser possível, no ordenamento jurídico brasileiro, a autorização para
o cancelamento da cláusula de inalienabilidade aqui tratada [01].
Com o escopo de garantir o bom entendimento da matéria abordada, faz-se mister uma
ligeira abordagem de alguns institutos e conceitos jurídicos que darão suporte ao tema
proposto.
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Impende destacar, por necessário, que não há, no entanto um direito real. Na verdade, o
que ocorre é um cerceamento ao direito da propriedade, que perde o poder de dispor.
Vale registrar que essa cláusula, quando imposta à imóveis, deve ser averbada no registro
de imóveis, consoante preceituam os arts. 128 [03],167, II-11 [04] e 247 [05], todos da Lei
6.015/63 (Lei de Registros Públicos).
Conclui-se, portanto, que a inalienabilidade cria um ônus real sobre a coisa paralisando
temporariamente a possibilidade de transferência do bem a qual recai sobre o titular do
domínio.
3. Dos Efeitos da inalienabilidade.
Cumpre enfatizar, a respeito desse aspecto do tema, que o art. 1.911 do novel Código Civil
dispõe que a cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica
sua impenhorabilidade [07] e incomunicabilidade [08].
Na verdade, tal entendimento mesmo antes de ser tratado expressamente no Código Civil
de 2002, já estava mais do que cristalizado em nossos tribunais, através da Súmula n.º 49
[09]
do Supremo Tribunal Federal.
A resposta é bastante previsível, qual seja: para garantir a segurança e futuro dos
donatários ou dos testamentários, como por exemplo no caso de o herdeiro ser um pródigo
(CC, art. 4, IV c/c CC 1782), ou de o mesmo ser acometido de uma incapacidade por
doença mental, o que tornaria provável, nessas hipóteses, que ele dilapidasse a herança.
Seguindo a linha de raciocínio acima exposta, ensina o eminente Sílvio de Salvo Venosa:
"A imposição de cláusula proibitiva de alienar pelo testador pode vir imbuída de excelentes
intenções: receava ele que o herdeiro viesse a dilapidar os bens, dificultando sua própria
subsistência ou de sua família; tentava evitar que o sucessor ficasse, por exemplo, privado de um
bem para moradia ou trabalho. Como geralmente a cláusula vem acompanhada da restrição da
incomunicabilidade, procurava o testador evitar que um casamento desastroso diminuísse o
patrimônio do herdeiro. São sem duvidas razões elevadas que, a priori, só viriam em benefício do
herdeiro [13]".
Impende observar, neste ponto, que se porventura, o herdeiro necessário vier a falecer, os
bens os bens clausulados por ele recebidos passarão aos seus sucessores livres e
desembaraçados [14].
"Contudo, não bastassem os entraves que o titular de um bem com essa cláusula tem que enfrentar,
como sua aposição podia ser imotivada pelo sistema de 1916, poderia o testador valer-se dela como
forma de dificultar a utilização da herança, quiçá como meio de vingança ou retaliação, uma vez que
não podia privar os herdeiros necessários a legítima (...) há inconveniência na inalienabilidade
porque impede a circulação de bens e obstrui, em síntese, a própria economia da sociedade; é um
[15]
elemento de insegurança nas relações jurídicas, tantas são as questões que se levantam" .
"A inalienabilidade está em oposição com uma lei fundamental da economia política, a que exige a
livre circulação dos bens, lei esta que interessa em mais alto grau a riqueza pública, e portanto, toda
condição que derroga esta lei é contrária ao interesse geral, e assim ilícita. A cláusula de não alienar
estipulada atende ao interesse privado; ora, o interesse dos indivíduos deve ser subordinado ao
interesse geral, sob pena de não haver mais vida comum possível. Mesmo que seja a
inalienabilidade temporária, e não vitalícia, o interesse geral não pode ser ofendido durante certo
tempo" [16].
Tais ríspidas críticas levantadas pela doutrina fizeram com que o legislador do novel
Código Civil de 2002 [17], restringisse o alcance e a possibilidade de imposição dessa
cláusula, consoante se pode perceber pela redação do art. 1.848:
"Art. 1848 - Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador
estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens
da legítima". (grifou-se).
Em outras palavras, o Código Bevilacqua, em seu art. 1.723, admitia a imposição dos
gravames independentemente de justificativa, ao passo que o novo Código, em seu art.
1.848, inovou a respeito da matéria, condicionando a imposição destes gravames à
existência de justa causa.
A propósito do mencionado dispositivo legal, assinalam Nelson Nery Junior e Rosa Maria
de Andrade Nery que:
"O CC estabelece a possibilidade de o bem da legítima ser gravado pelo testador com cláusula de
inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, excepcionalmente: apenas incide quando
existe justa causa. Em outras palavras, o que determina a validade da cláusula não é mais a
vontade indiscriminada do testador, mas a existência de justa causa para a restrição imposta
voluntariamente pelo testador. Pode ser considerada justa causa a prodigalidade, ou incapacidade
por doença mental, que diminuindo o discernimento do herdeiro, torna provável que esse dilapide a
herança" [18].
Nesse rumo de idéias, não sobejam dúvidas de que pelo sistema do Código Civil de 2002
será ineficaz a imposição pura e simples dessas cláusulas, sem sua motivação declarada
no testamento.
Para responder a esta pergunta passemos a analisar os dispositivos legais que tratam
sobre o tema:
"Art. 1.676 (antigo Código Civil). A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos
bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por
necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos
respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena
de nulidade".
"Art. 1.911 (Código Civil de 2002). A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de
liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.
Acaso se faça uma interpretação puramente gramatical dos dispositivos suso transcritos,
chegar-se-á a conclusão de não ser possível pleitear, diante do ordenamento jurídico
brasileiro, a autorização para o cancelamento da cláusula de inalienabilidade que, por
alguma razão (seja através de testamento ou de doação), grave o imóvel.
Ocorre porém, que as normas acima transcritas devem ser avaliadas com temperamento,
uma vez que a proibição de alienação do bem, em determinados casos, pode ser contrária
à finalidade para a qual foi criada.
Até porque, o próprio Clóvis Bevilaqua, invocando Francisco Morato, admitiu que tal
cláusula não pode ser encarada de forma absoluta, devendo antes ser consultado o
interesse maior do clausulado, de modo a não impedir a legítima disponibilidade do
patrimônio, pela prudente análise das circunstâncias demonstradas em juízo [20].
"A inalienabilidade não pode ser perpetua. Há de ter uma duração limitada. O código Civil somente a
permite temporária ou vitalícia. Os vínculos perpétuos, ou cuja duração se estenda além da vida de
uma pessoa são condenados.
A inalienabilidade imobiliza os bens, impede a circulação normal das riquezas, é, portanto, anti-
economica, do ponto de vista social. Por considerações especiais, para defender a inexperiência
dos indivíduos, para assegurar o bem estar da família, para impedir a delapidação dos pródigos, o
direito consente em que seja, temporariamente, entravada a circulação de determinados bens.
Retirá-los em absoluto e para sempre, do comércio seria sacrificar a prosperidade de todos ao
interesse de alguns, empobrecer a sociedade, para assegurar o bem estar de um indivíduo, ou uma
série de indivíduos" [21].
Ademais, a exegese da lei não pode prescindir de uma análise socialmente justa e dos fins
para os quais a norma foi criada (art. 5º, LICC), sopesado o fato deste dispositivo, como
preceito de elevada importância, funcionar como instrumento para amenizar dispositivos
extremamente restritivos e cuja incidência, em determinados casos, pudessem permitir o
cometimento de injustiça para com a parte.
Daí por que é assente que o rigorismo imposto no art. 1676 do Código Civil de 1916 (atual
art. 1911) deve ser atenuado, de modo a que os direitos do proprietário - destacadamente
a livre disposição e adminis-tração de seus bens - restem também preservados, por meio
da observação das peculiaridades de cada caso concreto.
Assim, a vedação prevista pelo legislador deve ser mitigada pelo bom senso, de modo a
se permitir que o gravame seja transferido para outros bens (parágrafo único do art. 1911
do Código Civil de 2002 [22]) ou, até mesmo, em caráter excepcional, excluído, quando
evidente que tal medida seja a única a atender necessidade comprovada e premente do
donatário ou testamentário.
Nesse rumo de idéias, a indisponibilidade dos bens prevista no art. 1676 do Código Civil
de 1916 (art. 1911 do novel Código Civil) não pode ser vista hoje como uma proibição
absoluta, pois existe o interesse social e até público na circulação dos bens, tendo em
mira, inclusive, os preceitos constitucionais que asseguram o direito de propriedade e,
mais do que isso, de que a propriedade deve ter uma finalidade social (art. 5º inc. XXII e
XXIII, da nossa Carta Política de 1988).
Até porque, como é de curial sabença não pode a autonomia da vontade privada
prevalecer ilimitadamente sobre o interesse social.
Lapidares, sob tais aspectos, os seguintes arestos abaixo transcritos, que sedimentam o
acima exposto:
A regra restritiva a propriedade encartada no art. 1.676 do Código Civil deve ser interpretada com
temperamento, pois a sua finalidade foi a de preservar o patrimônio a que se dirige, para
assegurar a entidade familiar, sobretudo aos posteros, uma base econômica e financeira
segura e duradoura.
Todavia, não pode ser tão austeramente aplicada a ponto de se prestar a ser fator de
lesividade de legítimos interesses, sobretudo quando o seu abrandamento decorre de real
conveniência ou manifesta vantagem para quem ela visa proteger associado ao intuito de
resguardar outros princípios que o sistema da legislação civil encerra, como se da no caso
em exame, pelas peculiaridades que lhe cercam.
(REsp 10020/SP, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 09.09.1996,
DJ 14.10.1996 p. 39009). (grifou-se).
II. Caso que se amolda aos pressupostos acima, porquanto a pretensão de liberar da cláusula
restritiva se destina a obter financiamento através de cédula rural hipotecária que grava apenas 20%
da gleba e está vinculada ao desenvolvimento de atividade agropecuária.
III. "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial" (Súmula n. 7-STJ).
(REsp 303424/GO, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em
02.09.2004, DJ 13.12.2004 p. 363). (grifou-se).
Deve-se ainda ser levando em consideração que a ação autônoma que objetiva a extinção
da cláusula de inalienabilidade é de jurisdição voluntária, motivo pelo qual se aplica à
mesma o art. 1.109 do Código de Processo Civil [23], o qual faculta ao magistrado adotar
em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna, não lhe sendo
obrigado observar critério de legalidade estrita.
Cumpre por fim ressaltar, consoante já esposado alhures, que não é difícil encontrar
jurisprudência contrária à possibilidade de cancelamento da cláusula de inalienabilidade,
somente se admitindo o deslocamento de tal gravame para outro bem [24].
7. Considerações finais.
Entendemos que o artigo 1.676 do Código Civil/1916 (atual art. 1911) preceitua uma
imposição que deve ser aplicada segundo as particularidades de cada caso, sob pena de
um rigor excessivo e injustificável, tornando-se a letra fria da lei uma medida a atentar
contra os interesses da própria sociedade, pois existe o interesse social e até público na
circulação dos bens, tendo em mira, inclusive, os preceitos constitucionais que asseguram
o direito de propriedade e, mais do que isso, de que a propriedade deve ter uma finalidade
social (art. 5º inc. XXII e XXIII, da nossa Carta Política de 1988).
Bibliografia.
ALVES, Joaquim Augusto Ferreira. Manual do Código Civil Brasileiro, vol XIX.
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil – v. VI., 10.ed. Rio de
Janeiro: Paulo de Azevedo, 1958.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil Comentado, 4 ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
Notas.
2. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil:Direito das Sucessões. São Paulo: Atlas,
2003, p. 208.
(...)
II - a averbação:
(...)
12. RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: v.7 - Direito das sucessões, São Paulo: Saraiva,
1979, p. 139.
18. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil Comentado, 4
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp.995-996.
20. BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil – v. VI., 10.ed.
Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1958, p. 105.
23. Consoante o abalizado escólio de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade
Nery "Somente nos casos expressos em lei pode o juiz decidir por equidade (CPC
127). Em todos os procedimentos de jurisdição voluntária, há autorização para o juiz
assim proceder (CPC 1109). A lei processual concede ao juiz a oportunidade de
aplicação dos princípios da equidade ao arrepio da legalidade estrita, podendo
decidir escorado na conveniência e oportunidade, critérios próprios do poder
discricionário, portanto inquisitorial, bem como de acordo com o bem comum. NERY
JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e
Legislação Extravagante, 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.1061.