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POEMAS DE AMOR E MORTE

(antologia sincrônica da poesia brasileira)

Organização e Prefácio

Lígia Cademartori
Adalberto Müller

Apresentação

Benedito Nunes

2012

1
SUMÁRIO

AMOR
Eu tenho um coração maior que o mundo

Soneto da Fidelidade – Vinícius de Moraes


Cântico dos Cânticos – Oswald de Andrade
Soneto (Necessito de um ser humano) – Mário Faustino
Navegação Amorosa – Manoel Botelho de Oliveira
Chanson d’amour – Neide Archanjo
Nupcial – Gilberto Mendonça Teles
Poema inspirado por Marta – Fernando Ferreira de Loanda
Soneto do amor total – Vinícius de Moraes
O sol da meia noite – Italo Moriconi
Malícia – Augusto Meyer
Óleo sobre tela – Vera Americano
Chuva de granizo – Mário Domingues
Dama negra (O gondoleiro do amor) – Castro Alves
Esfinge – Teófilo Dias
Encontrei-te. Era o mês…Que importa o mês? agosto… - Alphonsus de
Guimarães
Eu te trago, ainda frescas e orvalhadas – Onestaldo de Pennafort
Não, nada aqui – Armando Freitas Filho
Declaração de Lereno – Domingos Caldas Barbosa
Os seios – Teófilo Dias
Vagabundo – Álvares de Azevedo
Marília, teus olhos – Tomás Antonio Gonzaga
Nova Passante – Carlito Azevedo
Retrata o poeta as perfeições desta dama – Gregório de Matos
Esprema a vil calúnia muito embora – Tomás Antonio Gonzaga
O que é mais longo que um caminho? – Elizabeth Hazin
Que amor é esse que, desperto, dorme – Ivan Junqueira
Definição de Amor – Gregório de Matos

Ele me guia a mim, não eu a ele

Otelo – Martins Fontes


Não te cases com Gil – Cláudio Manoel da Costa
A uma pastora tão formosa como ingrata – Alexandre de Gusmão
Sofer por gosto – Domingos Caldas Barbosa
Contra Naturam – Carlito Azevedo
Mineração do outro - Carlos Drummund de Andrade
O mundo que venci deu-me um amor – Mário Faustino
Logrador – Antonio Cícero
Estive sempre de pé no ônibus, espremido entre o ferro – Carpinejar
Mulheres – João Moura Jr.

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Amor, esse sufoco/Amor, então – Paulo Leminski
As coisas da casa – Marcelo Sandmann
Faz a imaginação de um bem amado – Cláudio Manoel da Costa
Recordação – Gonçalves Dias
Nel mezzo del camin… - Olavo Bilac
Duas Almas – Alceu Wamosy
O adeus de Teresa – Castro Alves
Teresa – Manuel Bandeira
A D. Bárbara Heliodora – Alvarenga Peixoto
Me chupe com muita pena – Armando Freitas Filho
Mapa – Orides Fontela
Não prometo que as laranjas amadureçam – Carpinejar
Amor e medo – Casimiro de Abreu
Vendo a Anarda, depõe o sentimento – Manoel Botelho de Oliveira
Não saberia dizer a hora – Eucanaã Ferraz
Helena – Alexei Bueno

E ele e os outros me vêem


Aceitação – Cecília Meireles
Romance das três irmãs ou Miramar – Onestaldo de Pennafort
Ismália – Alphonsus de Guimaraens
A noiva – Maria Lúcia dal Farra
Voa, suspiro meu, vai diligente – Beatriz Francisca de Assis Brandão
A mulher que diz que ama – Ana Eurídice Eufrosina de Barandas
Lamento de Penélope – Luciana Martins
Ao amor búfalo – Elizabeth Veiga
Exercício – Maria Rita Kehl
Ausência – Virna Teixeira
Minha alma fria, e já desenganada – Ana Eurídice Eufrosina de Barandas
Te procuro/Minha voz – Alice Ruiz
Porco poeta, que me sei, na cegueira, no charco – Hilda Hilst
Penélope – Orides Fontela
Ulysses – Ana Cristina César
Que este amor não me cegue nem me siga – Hilda Hilst
Nada disfarça o apuro do amor – Ana Cristina César
Por que sou forte – Narcisa Amália
Mudança – Lélia Coelho Frota

E a paixão será arquivada


Moda do corajoso – Mário de Andrade
História natural – João Cabral de Melo Neto
Antonico e Corá – Fagundes Varela
O amor que é cá do Reino – Domingos Caldas Barbosa
Dois sonetos de amor ao pé – Glauco Mattoso
Necrológio dos desiludidos do amor – Carlos Drummond de Andrade
Namoro a cavalo – Álvares de Azevedo
Sob os ramos – Pedro Kilkerry
Três sonetos dramáticos – Artur Azevedo

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Separação – Affonso Romano de Sant’Anna
Na presença de duas damas – Gregório de Matos
Ars amandi – José Paulo Paes

MORTE

Tudo que pensa passa

As coisas que te cercam, até onde – Paulo Henriques Britto


Ansiosamente a áspera ladeira – Eduardo Guimarães
Animal barbado – Ronaldo Costa Fernandes
Quando se morre – Contador Borges
Fogo dos rios (3 fragmentos) – Fernando Paixão
As peras – Ferreira Gullar
A J.P. Sartre – José Paulo Paes
Meios de Transporte – João Cabral de Melo Neto
A flor e a fonte – Vicente de Carvalho
O tempo – Anderson Braga Horta
Constat – Carlos Loria
Visão do último trem subindo ao céu – Joaquim Cardozo

Ela veio chegando ao ritmo do pulso…

Da morte – José de Anchieta


Nova concepção da morte – Ferreira Gullar
Como a morte se infiltra – João Cabral de Melo Neto
A morte – Ivan Junqueira
Mais fiel que a sombra…/Rosas floreceram… – Maria Angela Alvim
Se nasce morre nasce – Haroldo de Campos
Decadência – Raul de Leoni

O corpo é que nem véu largado sobre um móvel

Epitáfio que não foi gravado – Felipe D’Oliveira


O morto – Manoel de Barros
O morto – Thiago de Melo
Velório – Francisco Alvim
Um morto, barco à deriva – Moacir Amâncio
órfico science – Ricardo Schmitt Carvalho
O defunto – Pedro Nava
Momento num café – Manuel Bandeira
A uma taça feita de um crânio humano – Castro Alves
Vida obscura – Cruz e Sousa
Improviso do rapaz morto – Mário de Andrade
Morte da India – Augusto Frederico Schmidt
Os mortos – Carlos Drummond de Andrade
Quando eu morrer – Castro Alves

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Os nomes – Manuel Bandeira
Convívio – Carlos Drummond de Andrade
Vozes da morte – Augusto dos Anjos

Ao gozo, ao gozo amiga…

Margem – Francisco Alvim


Lápides 1 e 2 – Paulo Leminski
Mocidade e morte – Castro Alves
Sempre distante amor e perto anseio – Maria Angela Alvim
Acalanto – Paulo Henriques Britto
Soneto do amor total – Vinícius de Moraes
Minha bela Marília, tudo passa – Tomás Antonio Gonzaga
A Carolina – Machado de Assis
Não me deixes – Gonçalves Dias
Lembrança de morrer – Alvares de Azevedo
Temor – Junqueira Freire
A saudade – Silva Alvarenga
Vou morrendo devagar – Domingo Caldas Barbosa
Epitalâmio – José Paulo Paes
Coup d’étrier – Castro Alves
Soneto (Bronze e brasa na treva:diamantes) – Mário Faustino

Não te aflijas com a pétala que voa…

Estudo n. 4 – Murilo Mendes


Eternidade – Jorge de Lima
4o. motivo da rosa – Cecília Meireles
Soneto do empinador de papagaio – Lêdo Ivo
Lembrança de morrer – Alvares de Azevedo
O arranco da morte – Junqueira Freire
Viver – Mário Quintana
AMORTEMOR – Augusto de Campos
Os lados – Paulo Mendes Campos
Restauradora – Henriqueta Lisboa
Uma criatura – Machado de Assis
Desejo – Junqueira Freire

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APRESENTAÇÃO

Esta Antologia não carece de apresentação. O prefácio da obra, por ambos

autores assinado, já diz tudo. E por isso nos aventuramos a só acrescentar a tão

primorosa escolha, um simples escólio, que propõe, a modo de diversão ou jogo de

abertura, alternativas ao amplo e satisfatório repositório acerca do bifurcado tema da

seleta ora publicada – Amor e Morte.

A primeira alternativa seria dispor de um segundo foco, que não suprime o já

adotado e que a ele se acrescenta, para o tema do amor – a cruciante oposição que, por

exemplo, se divisa em Mário Faustino, entre juventude e velhice, entre o esplendor e a

decadência do corpo, prenunciando a morte, como no soneto Nam Sibyllam... (Lá onde

um velho corpo desfraldava / as trêmulas imagens de seus anos ) e no fragmento (

Juventude / a jusante a maré entrega tudo) desse poeta.

A segunda alternativa ampliaria o tratamento da morte em Carlos Drummond de

Andrade, dando-se conhecimento ao leitor de algumas de suas grandes elegias, como

Estâncias (Amor? Amar? Vozes que ouvi, já não me lembra / onde: talvez entre grades

solenes...), Permanência (Agora me lembro um, antes me lembrava outro), Nudez (Não

cantarei amores que não tenho), Os últimos Dias (Que a terra há de comer. / Mas que

não coma já), Elegia (Ganhei (perdi) meu dia) e, ainda, reforçaria a linha humorística

apresentada em torno do mesmo tema, com o aditamento da tonalidade sarcástica de

Falta pouco (Falta pouco para acabar / o uso desta mesa pela manhã) ou Cantilena

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Prévia (Don don dorondondon / É o castelo de Drummond que vai à penhora) de A falta

que ama.

Esses acréscimos mostrariam, afinal, que a bifurcação temática inicialmente

proposta nada mais é do que uma cômoda divisória, fazendo realçar aquilo que não

consegue esconder: a conjunção ou a fraternidade entre Amor e Morte de que falou

Leopardi (Irmãos gêmeos que são, Amor e Morte / engendrou-os a sorte), e que

expressaram, em uníssono, as toantes e ressoantes vozes ouvidas nesta Antologia,

principalmente as daqueles dois poetas, Carlos Drummond de Andrade e Mário

Faustino, que melhor e de longa data conheço.

Belém, março, 2005.

Benedito Nunes

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Prefácio

Reúnem-se aqui poemas que partilham uma afinidade básica: é de amor e morte
que falam. Evocam os chamados temas de sempre, os temas líricos por excelência.
Escritas em diferentes épocas e distintos lugares, as composições repercutem sentidos
coincidentes ou opostos. Sucedem-se sem obedecer à ordem no tempo nem à seqüência
de estilos. O que importa são as relações que os poemas estabelecem entre si, quando
postos em ordem que não a habitual.
Um possível fio narrativo se insinua na seleção e organiza os poemas em temas –
amor e morte – e em seções que aproximam composições com propriedades em comum:
imagens similares, ecos semânticos, gradação de sentidos. Em lugar de títulos, as seções
são identificadas pelo que sugerem certos versos, como o de Tomás Antonio Gonzaga –
‘eu tenho um coração maior que o mundo’ – que dá início à antologia. Os poemas da
primeira seção têm como característica a expressão da intensidade amorosa. Imagens
marítimas, figurações do olhar percorrem vários poemas. A celebração e o júbilo
amoroso não dispensam, porém, indagações sobre a verdadeira natureza desse
sentimento, como nos poemas dos contemporâneos Elisabeth Hazin e Ivan Junqueira,
postos aqui em diálogo imaginário com Gregório de Matos, que responde, na
contramão, com sua peculiar definição de amor.
‘Ele me guia a mim, não eu a ele’ é o verso de Alexandre Gusmão que anuncia a
seção 2, onde a consciência da falta se sobrepõe ao entusiasmo da paixão. A tensão,
provocada pelo inacessível objeto de desejo, aguça os versos de poetas antigos,
modernos e novos.
A presença do feminino, na seção 3, seja como expressão, seja como motivo, é
ilustrada pelo verso de Ana Cristina César ‘e ele e os outros me vêem’. A pluralidade da
condição de ser mulher, de que fala Maria Lucia Dal Farra, manifesta-se em vozes
antigas e modernas que nomeiam diversas circunstâncias femininas: de noiva, de
Penélope, de búfalo enfurecido.

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Na seção seguinte, o excesso de sentido atribuído ao tema amoroso é revertido
pelo tom irônico, satírico ou burlesco das criações. ‘E a paixão será arquivada’ é o verso
de Mário de Andrade que sugere a dessacralização do amor em poemas como os de
Fagundes Varela, Arthur Azevedo, Carlos Drummond de Andrade, Affonso Romano de
Sant’anna.
A morte ganha também múltiplas inflexões poéticas. Na seção 5, o verso de Paulo
Henriques Britto – ‘tudo que pensa passa’ – é emblemático das figurações da morte sem
transcendência.
O pressentimento da morte e a dolorida consciência da finitude reúnem
composições na seção 6, de José de Anchieta a Haroldo de Campos, prenunciadas pelos
versos de Ferreira Gullar: ‘ela veio chegando ao ritmo do pulso, sem pressa nem vagar e
sem perder impulso’.
Na seção 7, é da morte do outro que se trata, e o verso que a ilustra é de Mário de
Andrade: ‘o corpo é que nem véu largado sobre um móvel’. Às previsíveis presenças de
poetas como Castro Alves, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de
Andrade, somam-se outras, como do bissexto Pedro Nava, ou de Francisco Alvim, com
seu peculiar estilo narrativo.
Na seção 8, o carpe diem dos versos de Junqueira Freire – ‘ao gozo, ao gozo,
amiga, o chão que pisas a cada instante te oferece a cova’ – ressoa em composições
como as de Maria Ângela Alvim, Paulo Leminski, Vinicius de Moraes.
Culmina a seção 9 com a noção de integração no infinito, de que é prenúncio o
conhecido verso de Cecília Meireles ‘não te aflijas com a pétala que voa’, que encontra
ressonâncias em composições de Mario Quintana, Jorge de Lima, Murilo Mendes,
Gonçalves Dias, Machado de Assis.
O leitor verá que são muito variadas e distintas as figurações poéticas do amor e
da morte. Há o amor que idealiza seu objeto a ponto de sacralizá-lo e prestar-lhe culto.
Mas existe outro que percebe seu caráter de efemeridade e contingência. Há poetas que
celebram o encontro; outros, a busca, do modo como propõe Rainer Maria Rilke, em
Primeira elegia de Duíno, ao indagar se não seria tempo de quem ama libertar-se do
amado, como a flecha que supera o arco para ser, no vôo, mais do que apenas flecha.
Há amor como falta e amor como complementação. Amor compungido e amor
burlesco. Festa, falha, farsa. Multiforme é o sentimento, e diferentes as vozes que dele
falam. Por isso, vale o lugar à parte para a concepção feminina do amor, que abriga ela
própria muita diversidade.

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A simbolização da transitoriedade mostra, do mesmo modo, faces variadas. A
morte, como forma de completude possível, superação e emancipação do homem, está
presente em muitos poemas. Mas, em outros, o enquadramento é trágico. Seguem a
vertente de Sófocles, ao conceber a finitude humana como punição divina, contingência
sem a aura heróica que lhe conferiu Homero.
Na obra de muitos poetas contemporâneos, a morte surge sem qualquer sentido
particular que não seja o de limite humano. É destituída de transcendência. Parecem
seguir Heráclito na recomendação de que não se deve conjecturar à toa sobre as coisas
supremas. Em outras composições, porém, o tema faz-se inseparável da reflexão sobre
a temporalidade, de que é exemplar o singularíssimo poema longo de Joaquim Cardozo,
que ecoa em composição de Ana Cristina César. Versos conversam, o leitor irá
perceber.
Mas àqueles a quem a poesia encanta de modo a não requerer formalidade nem
sistematização, para quem um poema é só um poema, aqui e agora, a liberdade da
leitura prevalecerá sempre. A montagem por seções é algo que acompanhará, se quiser.
Poderá, porém, desconsiderá-la e selecionar livremente os poemas que lhe interessam -
ou que o acaso trouxer - e deflagrar, assim, o diálogo que realmente importa: o do leitor
com o poema ou, em clave mais livre, com o verso. Pois não é de todo impossível que
alguns versos possam abrir caminho a uma constelação de signos, e fazer com que o
leitor sinta, como disse Manoel de Barros, quebrar-se dentro de si “um engradado de
estrelas”.
Poemas e poetas não foram selecionados por representarem o melhor da poesia
brasileira. A palavra antologia, em sua origem grega, dá idéia de colheita de flores.
Coleta que – sabe-se – não exclui o fortuito, o aleatório, ao recolher o belo com sua
promessa de possível felicidade. E, se a delimitação dos temas excluiu da seleção vozes
reconhecidas, permitiu o reencontro com outras que têm estado injustamente
esquecidas.
Os organizadores sabem que, no momento mesmo em que veja o índice, o leitor
pensará em outros recortes, outros poetas, outros poemas. Fatalidade e função das
antologias é serem sempre incompletas e condicionadas por incontornável parcialidade.
Uma antologia, inevitavelmente, estimula a organização de outras. O que já é um bom
motivo para fazê-la.
Reunir poemas que falam de amor e morte não é, claro, prática inocente nem
despida de intenções. Maria Rita Kehl, em ensaio de Os sentidos da paixão (Companhia

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das Letras, 1987), denunciava: “o mercado se apropria de eros propondo o narcisismo; o
amor de cada um por si mesmo. E se apropria de thánatos propondo aquilo que as
classes média e alta consideram suas conquistas maiores: o conforto e a segurança”. Os
poemas que seguem, exemplos da vitalidade de nossa produção poética, navegam
contra a corrente. Expõem-se aos riscos, nomeiam o que tende ao esquivo,
experimentam a transposição dos limites. São outros modos de ver e dizer o amor e a
morte, em páginas que estão aí para atestar a maturidade e a riqueza de expressão da
literatura brasileira.
*

As obras que serviram de base para estabelecimento de textos constam das


referências bibliográficas. As datas apostas ao nome dos poetas correspondem, quase
sempre, à primeira publicação dos poemas em livro. Em alguns casos, como nos de
Gergório de Matos e José de Anchieta, a data é estimada. Alguns textos foram
renomeados, de outros foram extraídos fragmentos, por efeito de composição da
antologia.

Os organizadores

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Amor

SEÇÕES

Eu tenho um coração maior que o mundo

ele me guia a mim, não eu a ele

e ele e os outros me vêem

e a paixão será arquivada.

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Eu tenho um coração maior que o mundo

Tomás Antônio Gonzaga

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SONETO DE FIDELIDADE

De tudo, ao meu amor serei atento


Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento


E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure


Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):


Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Estoril, outubro, 1939

VINÍCIUS DE MORAES [1957]

Livro de sonetos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

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CÂNTICO DOS CÂNTICOS PARA FLAUTA E VIOLÃO(fragmento)

oferta

Saibam quantos este meu verso virem


Que te amo
Do amor maior
Que possível for

canção e calendário

Sol de montanha
Sol esquivo de montanha
Felicidade
Teu nome é
Maria Antonieta d’Alkmin

No fundo do poço
No cimo do monte
No poço sem fundo
Na ponte quebrada
No rego da fonte
Na ponta da lança
No monte profundo
Nevada
Entre os crimes contra mim
Maria Antonieta d’Alkmin

Felicidade forjada nas trevas


Entre os crimes contra mim

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Sol de montanha
Maria Antonieta d’Alkmin

Não quero mais as moreninhas de Macedo


Não quero mais as namoradas
Do senhor poeta
Alberto d’Oliveira
Quero você
Não quero mais
Crucificadas em meus cabelos
Quero você

Não quero mais


A inglesa Elena
Não quero mais
A irmã da Nena
Não quero mais
A bela Elena
Anabela
Ana Bolena
Quero você

Toma conta do céu


Toma conta da terra
Toma conta do mar
Toma conta de mim
Maria Antonieta d’Alkmin

E se ele vier
Defenderei
E se ela vier
Defenderei
E se eles vierem
Defenderei

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E se elas vierem todas
Numa guirlanda de flechas
Defenderei
Defenderei
Defenderei

Cais de minha vida


Partida sete vezes
Cais de minha vida quebrada
Nas prisões
Suada nas ruas
Modelada
Na aurora indecisa dos hospitais

Bonançosa bonança

OSWALD DE ANDRADE [1945]

Cântico dos cânticos para flauta e violão. Obras completas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972, vol. 3.

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SONETO

Necessito de um ser, um ser humano


Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano


Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço


Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:


Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.

MÁRIO FAUSTINO [1955]

O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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MADRIGAIS

I
Navegação amorosa

É meu peito navio,


São teus olhos o Norte,
A quem segue o alvedrio,
Amor Piloto forte;
Sendo as lágrimas mar, vento os suspiros,
A venda velas são, remos seus tiros.

II
Pesca amorosa

Foi no mar de um cuidado


Meu coração pescado;
Anzóis os olhos belos;
São linhas teus cabelos
Com solta gentileza,
Cupido pescador, isca a beleza.

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III
Naufrágio amoroso

Querendo meu cuidado


Navegar venturoso,
Foi logo soçobrado
Em naufrágio amoroso;
E foram teus desdéns contrário vento,
Sendo baixo o meu vil merecimento.

MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA [1705]

Manuel Botelho de Oliveira.Música do Parnaso. Rio de Janeiro: INL, 1953.

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CHANSON D’AMOUR

Posto que é noite,


em tua pele
uma fímbria de mar
permanece.

Com a boca recolho


ondas algas espumas.

E feliz
enuncio
que és azul
e serás azul
para todo o sempre.

Um azul
que nem conheces.

NEIDE ARCHANJO [1999]

Todas as horas e antes — Poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2004.

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NUPCIAL

Um dia as minhas mãos de chumbo


e sortilégio se estenderão
isentas
como uma flor madura ou gesto
repentino ao sol fotografado.

Os meus dedos sem rumo


habitarão teu reino fechado
sobre o mar numeroso e noturno.
E as tuas mãos sem nunca
deslizarão mil dádivas sobre
o tempo prescrito e decifrado.

Teu corpo de silêncio e espuma,


palpitante e liberto do mármore,
do sal e dos vestidos imperecíveis,
teu corpo sereno muito
além das tempestades, sub-
merso e nupcial como os peixes marinhos,
teu corpo em plenitude
me estenderá seus vínculos
no idioma das águas.

E seremos destino de afogados,


amantes das profundezas, noivos
cujos gritos já trêmulos

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dormirão como as algas malferidas
de tanto aroma e claridade.

GILBERTO MENDONÇA TELES [1967]

Poemas Reunidos. Rio de Janeiro: J. Olympio / Brasília: INL, 1978.

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POEMA INSPIRADO POR MARTA

O mar nos búzios ressoando


ando,
mar alto, amorfo, anódino,
sou vento, vento
a tarde toda, beira-mar,
marinho o porto,
e acinzento o horizonte.

Pareço nuvem, chovo,


interrompo encontros,
na grávida cidade
a ingrávidos amores.
Sonido de bonde vem,
e com ele uma mulher
a pensar em Cingapura.
Impiedoso vento,
ventoinha, ventarola,
na ventana os cabelos
lhe umedeço, venturoso
levo-lhe o mar. Amar.

FERNANDO FERREIRA DE LOANDA [1964]


Do amor e do mar. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1964.

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SONETO DO AMOR TOTAL

Amo-te tanto, meu amor… não cante


O humano coração com mais verdade…
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,


E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,


De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde


É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
Rio, 1951.

VINÍCIUS DE MORAES [1957]

Livro de sonetos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

25
O SOL DA MEIA NOITE

o sol da meia noite


são teus olhinhos
de calor? dona
você pulveriza
o tempo,
você

uma parede surge por trás, de repente


como lagarto verde sobre o verde
quando assusta o dia,
você
movente
em torno do poste
cabelos bulindo
cinzentos

são os prédios da cidade


que me abraçam
que me apertam
calor
das galerias,
dos encanamentos,
dos subways…

ITALO MORICONI JR. [1988]


Léu. Rio de Janeiro: Taurus: 1988.

26
MALÍCIA

Dizes: — “É lindo o teu olhar, querida!”


E, então, ficas a olhar, num suave enleio,
essa mulher que um belo dia veio
encher de vida a tua vida.

Dizes: — “É lindo o teu olhar, querida,


Como se nele o céu aparecesse…”

É lindo. Mas, repara: ao fundo, vê-se


A tua imagem refletida.

AUGUSTO MEYER [1957]

Poesias. Rio de Janeiro: São José, 1957.

27
ÓLEO SOBRE TELA

Quando olhei,
teu cabelo escorregava
sobre a testa,
uma ruga
atravessava
redenção e juras.
Vi teu cabelo a resvalar
sobre uma fenda do tempo,
imagens costuradas,
citações.

Ao te olhar,
Me vi.

VERA AMERICANO [2002]

Arremesso livre. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

28
CHUVA DE GRANIZO
para Maira Weber • 1995

chuva de granizo:
o viso de tudo
através do vidro
(chove cacos de vidro)

nada ninguém
atravessa ouvido
(janela: lágrima
espessa)

tua imagem
não se inverte
na minha retina
(chuva fina)

toda chuva é temporária:


no vapor
teu nome escrito
ao contrário

MARIO DOMINGUES [2001]

Paisagem transitória. São Paulo: Ciência do Acidente, 2001.

29
O GONDOLEIRO DO AMOR
Barcarola
DAMA NEGRA

Teus olhos são negros, negros,


Como as noites sem luar…
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,


Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é a cavatina


Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento;

E como em noites de Itália,


Ama um canto o pescador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora,


Que o horizonte enrubesceu,
— Rosa aberta com o biquinho
Das aves rubras do céu;

Nas tempestades da vida,


Das rajadas no furor,

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Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada


Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;

Como é doce, em pensamento,


Do teu colo no langor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?

Teu amor na treva é — um astro,


No silêncio uma canção,
É brisa — nas calmarias,
É abrigo — no tufão;

Por isso eu te amo, querida,


Quer no prazer, quer na dor…
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.

Recife, janeiro de 1867.

CASTRO ALVES [1870]


Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

31
ESFINGE

Tuas pupilas alaga


Não sei que acerba ternura,
Cuja luz cruel me afaga,
Cujo afago me tortura.

Unge-te o seio moreno


Um perfume sufocante,
Suave como um calmante,
Pérfido como um veneno.

Freme-te a alma fatal


No frágil corpo nervoso,
Como um filtro perigoso
Numa prisão de cristal.

Para estancar os desejos,


Que teu sangue tantalizam,
Teus lábios prodigalizam
Dentadas por entre beijos.

Com sarcasmos me apunhalas;


Depois, as feridas cruas
Ameigas com a luz que exalas
Dos teus olhos — negras luas.

Tua palavra me é dura


Às vezes, pelo sentido,
E doce pela brandura
Com que me trina no ouvido.

32
Há uma alma que suspira
Em cada ponto do espaço
Quando caminhas: teu passo
Murmura como uma lira.

No movimento discreto
Revelas, por entre gazes,
Todo um poema correto
Escrito em versos sem frases.

Os teus lençóis apaixonas


Com a gentileza, que apuras
Nas langorosas posturas
Em que o teu corpo abandonas.

Dos primores, de que és feita,


A nenhum dou primazia:
É do conjunto a harmonia
Que os meus sentidos sujeita.

E eu te amo, beleza fátua,


Minha perpétua loucura,
Como o verme a flor mais pura,
E o musgo a mais bela estátua!

TEÓFILO DIAS [1882]


Poesias escolhidas. Antonio Candido, org. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura,
1960.

33
ENCONTREI-TE. ERA O MÊS... QUE IMPORTA O MÊS? AGOSTO,

Encontrei-te. Era o mês… Que importa o mês? agosto,


Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar, que importa? ou fosse o sol já posto,
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.

Que saudades de amor na aurora do teu rosto,


Que horizonte de fé no olhar tranqüilo e garço!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março.

Encontrei-te. Depois… depois tudo se some:


Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira…
Era o dia… Que importa o dia, um simples nome?

Ou sábado sem luz, domingo sem conforto,


Segunda, terça ou quarta ou quinta ou sexta-feira,
Brilhasse o sol, que importa? ou fosse o luar já morto!

ALPHONSUS DE GUIMARAENS [1899]

Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

34
EU TE TRAGO, AINDA FRESCAS E ORVALHADAS...
Je t’apporte l’enfant d’une nuit d’Idumée.
Stéphane Mallarmé

Eu te trago, ainda frescas e orvalhadas


Da noite e do silêncio das estradas
Ermas, por onde vim com o pensamento
Cheio de ti e de arrependimento,
Estas flores silvestres que trescalam
Perfumes fortes como as bocas falam…
Colhidas, como sonhos, no caminho
Em que voltava para teu carinho,
Que elas te digam a ternura ansiosa
Que houve na grande noite harmoniosa
Que fez o esquecimento e fez as flores
Do silêncio das flores interiores…
E, de aspirá-las, sentirás no ouvido
Um barulho de folhas, um zumbido
De asas e uma frescura de água boa
Como um olhar suave que perdoa…

ONESTALDO DE PENNAFORT [1927]

Interior. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1927.

35
NÃO. NADA AQUI

Não.
Nada aqui
e submerge
pois a natureza
abdica de todo espelho
e cai em si
das nuvens
sozinha, ao sol
sem saber, sem quebrar
o silêncio de suas sombras
mesmo quando transborda
e o luar cria um lago
ou algo parecido: um olhar
que alaga este lugar.

ARMANDO FREITAS FILHO [1985]


3 x 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

36
DECLARAÇÃO DE LERENO

Queres que eu diga,


Cara, o meu nome,
Cara inimiga,
Eu to direi.

Eu sou Lereno,
De baixo estado,
Choça nem gado
Dar poderei.

Mas se tu queres
Melhor morada,
Vem, minha amada,
Que eu ta darei.

Entra em minha alma,


Entra em segredo,
Contente e ledo
Te adorarei.

DOMINGOS CALDAS BARBOSA [1798]

Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

37
OS SEIOS

Como serpente arquejante


Se enrosca em férvida areia,
Meu ávido olhar se enleia
No teu colo deslumbrante.

Quando o descobres, no ar
Morno calor se dissolve
Do aroma em que ele se envolve,
Como em neblina o luar.

Se ao corpo te enrosco os braços,


A terra e os céus estremecem,
E os mundos febris parecem
Derreter-se nos espaços!

E tu nem sequer presumes


Que então, querida, até creio
Sorver, desfeito em perfumes,
Todo o sangue do teu seio.

Depois que aspiro, ansiado,


Do teu níveo colo o incenso,

38
Minh’alma semelha um lenço
De viva essência molhado.

Deixa que a louca se deite


Nesse torpor que extasia,
E que o vinho do deleite
Me espume na fantasia;

Pois não há ópio ou hachis


Que me abrilhante as idéias
Como as fragrâncias sutis
Que fervem nas tuas veias!

TEÓFILO DIAS [1882]

Poesias escolhidas. Antonio Candido, org. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura,
1960.

39
VAGABUNDO

Eat, drink, and love; what can the rest avail us?
Byron, Don Juan

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,


Fumando meu cigarro vaporoso,
Nas noites de verão namoro estrelas,
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos, nem dinheiro…


Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas…
E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva


Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando, à noite, na treva, em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.

Namoro e sou feliz nos seus amores,


Sou garboso e rapaz… Uma criada
Abrasada de amor por um soneto
Já um beijo me deu subindo a escada…

Oito dias lá vão que ando cismando


Na donzela que ali defronte mora…
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora…

40
Tenho por meu palácio as longas ruas,
Passeio a gosto e durmo sem temores…
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,


Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,


De painéis a carvão adorno a rua…
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

Sinto-me um coração de lazzaroni,


Sou filho do calor, odeio o frio,
Não creio no diabo nem nos santos…
Rezo a Nossa Senhora e sou vadio!

Ora, se por aí alguma bela,


Bem doirada e amante da preguiça,
Quiser a nívea mão unir à minha
Há de achar-me na Sé, domingo, à missa.

ÁLVARES DE AZEVEDO [1853]

Lira dos vinte anos. Edição preparada por Maria Lúcia dal Farra. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. (Poetas do Brasil)

41
MARÍLIA, TEUS OLHOS...

Marília, teus olhos


São réus e culpados
Que sofra e que beije
Os ferros pesados
De injusto Senhor.
Marília, escuta
Um triste pastor.

Mal vi o teu rosto,


O sangue gelou-se,
A língua prendeu-se,
Tremi e mudou-se
Das faces a cor.
Marília, escuta
Um triste pastor.

A vista furtiva,
O riso imperfeito
Fizeram a chaga,
Que abriste no peito,
Mais funda e maior.
Marília, escuta
Um triste pastor.

Dispus-me a servir-te;

42
Levava o teu gado
À fonte mais clara,
À vargem e prado
De relva melhor.
Marília, escuta
Um triste pastor.

Se vinha da herdade,
Trazia dos ninhos
As aves nascidas,
Abrindo os biquinhos
De fome ou temor.
Marília, escuta
Um triste pastor.

Se alguém te louvava,
De gosto me enchia;
Mas sempre o ciúme
No rosto acendia
Um vivo calor.
Marília, escuta
Um triste pastor.

Se estavas alegre,
Dirceu se alegrava;
Se estavas sentida,
Dirceu suspirava
À força da dor.
Marília, escuta
Um triste pastor.

Falando com Laura,


Marília dizia;
Sorria-se aquela,

43
E eu conhecia
O erro de amor.
Marília, escuta
Um triste pastor.

Movida, Marília,
De tanta ternura,
Nos braços me deste
Da tua fé pura
Um doce penhor.
Marília, escuta
Um triste pastor.

Tu mesma disseste
Que tudo podia
Mudar de figura;
Mas nunca seria
Teu peito traidor.
Marília, escuta
Um triste pastor.

Tu já te mudaste;
E a olaia frondosa,
Aonde escreveste
A jura horrorosa,
Tem todo o vigor.
Marília, escuta
Um triste pastor.

Mas eu te desculpo,
Que o fado tirano
Te obriga a deixar-me,
Pois busca o meu dano
Da sorte que for.

44
Marília, escuta
Um triste pastor.

TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA [1792]

Poesias e Cartas chilenas. Ed. Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: INL, 1952.

45
NOVA PASSANTE

1. sobre
esta pele branca
um calígrafo oriental
teria gravado sua escrita
luminosa
— sem esquecer entanto
a boca: um
ícone em rubro
tornando mais fogo
suor e susto
tornando mais ácida e
insana a sede
(sede de dilúvio)

2. talvez
um poeta afogado num
danúbio imaginário dissesse
que seus olhos são duas
machadinhas de jade escavando o
constelário noturno:
a partir do que comporia
duzentas odes cromáticas
— mas eu que venero (mais que o ouro verde
raríssimo) o marfim em
alta-alvura de teu andar em
desmesura sobre uma passarela de
relâmpagos súbitos, sei que
tua pele pálida de papel

46
pede palavras
de luz

3. algum
mozárabe ou andaluz
decerto
te dedicaria
um concerto
para guitarras mouriscas
e cimitarras suicidas
(mas eu te dedico quando passas
no istmo de mim a isto
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios)

CARLITO AZEVEDO (1991)

Sublunar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001.

47
RETRATA O POETA AS PERFEIÇÕES DESTA DAMA COM GALHARDO
ASSEIO

Podeis desafiar com bizarria


Só por só, cara a cara, a bela Aurora,
Que a Aurora não só cara vos faria
Vendo tão boa cara em vós, Senhora:
Senhora sois do sol, e luz do dia,
Do dia, que nascestes até agora,
Que se Aurora foi luz por uma estrela,
Duas tendes em vós, a qual mais bela.

Sei, que o sol vos daria o seu tesouro


Pelo negro gentil desse cabelo
Tão belo, que em ser negro foi desdouro
Do sol, que por ser d’ouro foi tão belo:
Bela sois, e sois rica sem ter ouro
Sem ouro haveis ao sol de convencê-lo,
Que se o sol por ter ouro é celebrado,
Sem ter ouro esse negro é adorado.

Vão os olhos Senhora tende tento:


Sabeis os vossos olhos o que são?
São de todos os olhos um portento,
Um portento de toda a admiração:
Admiração do sol, e seu contento,
Contento, que me dá consolação,
Consolação, que mata o bom desejo,
Desejo, que me mata, quando os vejo.

48
A boca para cravo é pequenina,
Pequenina sim é; será rubi
Rubi não tem a cor tão peregrina,
Tão peregrina cor,eu a não vi:
Vi a boca, julguei-a por divina,
Divina não será, eu não o cri:
Mas creio, que não quer a vossa boca
Por rubi, nem por cravo fazer troca.

Ver o aljôfar nevado, que desata,


A Aurora sobre a gala do rosal;
Ver em rasgos de nácar tecer prata,
E pérolas em concha de coral:
Ver diamantes em golpes de escarlata
Em picos de rubi puro cristal,
É ver os vossos dentes de marfim
Por entre os belos lábios de carmim.

No peito desatina o Amor cego


Cego só pelo amor do vosso peito;
Peito, em que o cego Amor não tem sossego,
Só cego por não ver-lhe amor perfeito:
Perfeito, e puro amor em tal emprego
Emprego assemelhando à causa efeito,
Efeito, que é mal feito ao dizer mais,
Quando chega o Amor a extremos tais.

Tanto se preza o Amor do vosso amor,


Que mais prazer o tem em amor tanto,
Tanto, que diz o amor, que outro maior
Não teve por amor, nem por encanto:
Encanto é ver o Amor em tal ardor,
Que arde tão bem o peito, por espanto;

49
Tendo de vivo fogo por sinal
Duas vivas empolas de cristal.

A dizer eu das mãos não me aventuro,


Que a ventura das mãos a tudo mata,
Mata Amor nessas mãos já tão seguro,
Que tudo as mãos lavadas desbarata:
A cuja neve, prata, e cristal puro
Se apurou o cristal, a neve a prata:
Belíssimas pirâmides formando
Onde Amor vai as almas sepultando.

Descrever a cintura não me atrevo,


Porque a vejo tão breve, e tão sucinta,
Que em vê-la me suspendo, e me elevo,
Por não ver até agora melhor cinta:
Mas porque siga o estilo, que aqui levo,
Digo, que é a vossa cinta tão distinta
Que o Céu se fez azul de formosura,
Só para cinto ser de tal cintura.

Vamos já para o pé: Mas, tate-tate!


Que descrever um pé tão peregrino,
Se loucura não é, é desbarate,
Desbarate, que passa o desatino:
A que me desatine, me dá mate
O picante de pé tão pequenino,
Que pé tomar não posso em tal pegada,
Pois é tal vosso pé, que em pontos nada.

GREGÓRIO DE MATOS [16- ]


Obra poética. Ed. James Amado. 4ª. Edição. Rio de Janeiro: Record, 1999, vol. 2.

50
ESPREMA A VIL CALÚNIA MUITO EMBORA,

Esprema a vil calúnia muito embora,


Entre as mãos denegridas e insolentes,
Os venenos das plantas
E das bravas serpentes;

Chovam raios e raios, no meu rosto


Não hás de ver, Marília, o medo escrito;
O medo perturbado,
Que infunde o vil delito.

Podem muito, conheço, podem muito,


As fúrias infernais, que Pluto move;
Mais pode mais que todas
Um dedo só de Jove.

Este deus converteu em flor mimosa,


A quem seu nome deram, a Narciso,
Fez de muitos os astros,
Qu’inda no céu diviso.

Ele pode livrar-me das injúrias


Do néscio, do atrevido, ingrato povo;
Em nova flor mudar-me,
Mudar-me em astro novo.

Porém se os justos céus, por fins ocultos,


Em tão tirano mal me não socorrem,

51
Verás então que os sábios,
Bem como vivem, morrem.

Eu tenho um coração maior que o mundo,


Tu, formosa Marília, bem o sabes:
Um coração, e basta,
Onde tu mesma cabes.

TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA [1812]

Poesias e Cartas chilenas. Ed. Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: INL, 1952

52
QUARTO POEMA

O que é mais longo do que um caminho?


O que chora no escuro além da fonte?
O que vai, não volta e nunca é longe?
O que machuca essa boca é o amargo espinho?
Por que tem a saudade a cor do plátano?
Era vidro. Sabias quando o deste?
(Por que flutua assim sem que se quebre?)
Era pouco. Sabias quando o tinhas?
(Por que flutua assim sem que se acabe?)
E as promessas? e os sonhos? e as carícias?
Estava escrito nos astros o encontro?
Não nos dera o poema um dia apenas?
Por que não pode o sonho contra o tempo?
Por que não pode o tempo contra o sono?

ELISABETH HAZIN [1994]

O arqueiro e a lua. Recife: FUNDARPE, 1994.

53
QUE AMOR É ESSE QUE, DESPERTO, DORME

Que amor é esse que, desperto, dorme


e quando acorda faz-se ambíguo sonho,
transfigurando o belo no medonho
e em noite espessa a vida multiforme?
Então amor é só o que suponho,
o que não digo por ser tão informe
que fôrma alguma lhe é jamais conforme
como este molde em que teimoso o ponho?
Será amor o que se esquiva à fala
ou à linguagem que o pretende claro?
E o que seria esse tremor mais raro
que ao aflorar parece que se cala?
Amor oblíquo que olha de soslaio,
mas que ilumina e queima como raio…

IVAN JUNQUEIRA [1982]

Cinco movimentos. Rio de Janeiro: Gastão de Holanda Editor, 1982.

54
DEFINIÇÃO DO AMOR

ROMANCE

Mandai-me, Senhores hoje


que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosápia,
e de Cupido as proezas.
Dizem, que da clara escuma,
dizem, que do mar nascera,
que pegam debaixo d’água,
as armas, que Amor carrega.
Outros, que fora ferreiro
seu Pai, onde Vênus bela
serviu de bigorna, em que
malhava com grã destreza.
Que a dous assopros lhe fez
o fole inchar de maneira,
que nele o fogo acendia,
nela aguava a ferramenta.
Nada disto é, nem se ignora,
que o Amor é fogo, e bem era
tivesse por berço as chamas
se é raio nas aparências.
Este se chama Monarca,
ou Semideus se nomeia,
cujo céu são esperanças,
cujo inferno são ausências.
Um Rei, que mares domina,

55
um Rei, o mundo sopeia,
sem mais tesouro, que um arco,
sem mais arma, que uma seta.
O arco talvez de pipa,
a seta talvez de esteira,
despido como um maroto,
cego como uma Topeira.
Um maltrapilho, um ninguém,
que anda hoje nestas eras
com o cu à mostra, jogando
com todos a cabra-cega.
Tapando os olhos da cara,
por deixar o outro alerta
por detrás à italiana,
por diante à portuguesa.
Diz, que é cego, porque canta,
ou porque vende gazetas
das vitórias, que alcançou
na conquista das finezas.
Que vende também folhinhas
cremos por cousa mui certa,
pois nos dá os dias santos,
sem dar ao cuidado tréguas;
E porque despido o pintam,
é tudo mentira certa,
mas eu tomara ter junto
o que Amor a mim me leva.
Que tem asas com que voa
e num pensamento chega
assistir hoje em Cascais
logo em Coina, e Salvaterra.
Isto faz um arrieiro
com duas porradas tesas:
e é bem, que no Amor se gabe,

56
o que o vinho só fizera!
E isto é Amor? é um corno.
Isto é Cupido? má peça.
Aconselho, que o não comprem
ainda que lhe achem venda.
Isto, que o Amor se chama,
este, que vidas enterra,
este, que alvedrios prostra,
este, que em palácios entra:
Este, que o juízo tira,
Este, que roubou a Helena,
este, que queimou a Tróia,
e a Grã-Bretanha perdera:
Este, que a Sansão fez fraco,
este, que o ouro despreza,
faz liberal o avarento
é assunto dos Poetas:
Faz o sisudo andar louco,
faz pazes, ateia a guerra,
o Frade andar desterrado,
endoudece a triste Freira.
Largar a almofada a Moça,
ir mil vezes à janela,
abrir portas de cem chaves,
e mais que gata janeira.
Subir muros, e telhados,
trepar cheminés, e gretas,
chorar lágrimas de punhos
gastar em escritos resmas.
Gastar cordas em descantes
perder a vida em pendências,
este, que não faz parar
oficial algum na tenda.
O Moço com sua Moça,

57
o Negro com sua Negra,
este, de quem finalmente
dizem, que é glória, e que é pena.
É glória, que martiriza,
uma pena, que receia,
é um fel com mil doçuras,
favo com mil asperezas.
Um antídoto, que mata,
doce veneno, que enleia,
uma discrição sem siso,
uma loucura discreta.
Uma prisão toda livre,
uma liberdade presa,
desvelo com mil descansos,
descanso com mil desvelos.
Uma esperança, sem posse,
uma posse, que não chega,
desejo, que não se acaba,
ânsia, que sempre começa.
Uma hidropisia d’alma,
da razão uma cegueira,
uma febre da vontade
uma gostosa doença.
Uma ferida sem cura,
uma chaga, que deleita,
um frenesi dos sentidos,
desacordo das potências.
Um fogo incendido em mina,
faísca emboscada em pedra,
um mal, que não tem remédio,
um bem, que se não enxerga.
Um gosto, que se não conta,
um perigo, que não deixa,
um estrago, que se busca,

58
ruína, que lisonjeia.
Uma dor, que se não cala,
pena, que sempre atormenta,
manjar, que não enfastia,
um brinco, que sempre enleva.
Um arrojo, que enfeitiça,
um engano, que contenta,
um raio, que rompe a nuvem,
que reconcentra a esfera.
Víbora, que a vida tira
àquelas entranhas mesmas,
que segurou o veneno,
e que o mesmo ser lhe dera.
Um áspide entre boninas,
entre bosques uma fera,
entre chamas Salamandra,
pois das chamas se alimenta.
Um basalisco, que mata,
lince, que tudo penetra,
feiticeiro, que adivinha,
marau, que tudo suspeita
Enfim o Amor é um momo,
uma invenção, uma teima,
um melindre, uma carranca,
uma raiva, uma fineza.
Uma meiguice, um afago
um arrufo, e uma guerra,
hoje volta, amanhã torna,
hoje solda, amanhã quebra.
Uma vara de esquivanças,
de ciúmes vara e meia,
um sim, que quer dizer não,
não, que por sim se interpreta.
Um queixar de mentirinha,

59
um folgar muito deveras,
um embasbacar na vista,
um ai, quando a mão se aperta.
Um falar por entre dentes,
dormir a olhos alerta,
que estes dizem mais dormindo,
do que a língua diz discreta.
Uns temores de mal pago,
uns receios de uma ofensa
um dizer choro contigo,
choromigar nas ausências.
Mandar brinco de sangrias,
passar cabelos por prenda,
dar palmitos pelos Ramos,
e dar colar pela festa.
Anel pelo São João,
alcachofras na fogueira,
ele pedir-lhe ciúmes,
ela sapatos, e meias.
Leques, fitas, e manguitos,
rendas da moda francesa,
sapatos de marroquim,
guarda-pé de primavera.
Livre Deus, a quem encontra,
ou lhe suceder ter Freira;
pede-vos por um recado
sermão, cera, e caramelas.
Arre lá com tal amor!
isto é amor? é quimera,
que faz de um homem prudente
converter-se logo em besta.
Uma bofia, uma mentira
chamar-lhe-ei mais depressa,
fogo salvaje nas bolsas,

60
e uma sarna das moedas.
Uma traça do descanso,
do coração bertoeja,
sarampo da liberdade,
carruncho, rabuge, e lepra.
É este, o que chupa, e tira
vida, saúde, e fazenda,
e se hemos falar verdade
é hoje o Amor desta era.
Tudo uma bebedice,
ou tudo uma borracheira,
que se acaba co dormir,
e co dormir se começa.
O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve temor de artérias.
Uma confusão de bocas
uma batalha de veias,
um rebuliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.

GREGÓRIO DE MATOS [16 -]

Obras completas. Edição James Amado. Salvador: Janaína, 1968, vol 5.

61
Ele me guia a mim, não eu a ele

Alexandre de Gusmão

62
OTELO

Quem minha angústia suportar, prefira


a morte, redentora, à desventura
de não poder, nas vascas da loucura,
distinguir a verdade da mentira.

Infrene dúvida, implacável ira,


esta que me alucina e me tortura!
— Ter ciúmes da luz, formosa e pura,
do chão, da sombra e do ar que se respira!

Invejo a veste que te esconde! a espuma


que, beijando teu corpo, linha a linha,
toda do teu aroma se perfuma!

Amo! E o delírio desta dor mesquinha,


faz que eu deseje ser tu mesma, em suma,
para ter a certeza de que és minha!

Martins Fontes [1917]

Poesia. Cassiano Ricardo, org. Rio de Janeiro: Agir, 1959 (Nossos clássicos).

63
NÃO TE CASES COM GIL, BELA SERRANA

Não te cases com Gil, bela Serrana;


Que é um vil, um infame, um desastrado;
Bem que ele tenha mais devesa, e gado,
A minha condição é mais humana.

Que mais te pode dar sua cabana,


Que eu aqui te não tenha aparelhado?
O leite, a fruta, o queijo, o mel dourado,
Tudo aqui acharás nesta choupana.

Bem que ele tange o seu rabil grosseiro,


Bem que te louve assim, bem que te adore,
Eu sou mais extremoso e verdadeiro.

Eu tenho mais razão, que te enamore;


E se não, diga o mesmo Gil vaqueiro:
Se é mais, que ele te cante, ou que eu te chore.

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA [1768]

Obras de Cláudio Manuel da Costa. São Paulo: Cultrix, 1992.

64
A UMA PASTORA TÃO FORMOSA COMO INGRATA

Pastora a mais formosa, e desumana,


Que fazes de matar-me alarde, e gosto:
Como é possível que um tão lindo rosto
Unisse o Céu a uma alma tão tirana?

Cruel! Que te fiz eu, que me aborreces?


Tens duro coração, mais que um rochedo!
Sou tigre, ou sou leão, que meta medo,
Que apenas tu me vês desapareces?

Por ti tão esquecido ando de tudo,


Que o gado no redil deixei faminto;
O sol me fere a prumo, e não o sinto;
A ovelha está a chamar-me, e não lh’acudo.

Lá vai o tempo já, que em baile, e canto


Eu era no lugar o mais famoso;
Agora sempre aflito, e pesaroso
Só o que eu sei é desfazer-me em pranto.

Há pouco que encontrei alguns Pastores,

65
Que iam comigo ao monte após o gado,
Que não me conheceram de mudado.
Que tal me têm parado os teus rigores!

Até o rebanho meu, que um dia viste


Tão nédio antes que eu enlouquecesse,
Não come já, nem medra, e se emagrece
Por dó, que tem de ver-me andar tão triste.

Ele me guia a mim, não eu a ele,


Que vou nos meus pesares enlevado;
Bem pode o lobo vir, levar-me o gado
À minha vista, sem que eu dê fé dele.

Não sei que nuvem trago neste peito,


Que tudo quanto vejo me entristece;
A flor do campo parda me parece;
Até ao mesmo sol acho imperfeito.

Do alegre prado fujo para o escuro


Encontro mais triste dos rochedos;
Ali pergunto às feras e aos penedos
Se alguém é mais que tu cruel e duro?

Ali ouço soar rompendo o mato


Do ribeirinho as saüdosas águas:
E em competência vão as minhas mágoas
Dos olhos despedindo outro regato.

Este mal, que hoje sofro, eu o mereço,


Que ingrato desprezei quem me queria;
Agora que me vê, faz zombaria
Que bem vingada está no que padeço.

66
Então não conhecia o que amor era;
Também me ria do tormento alheio;
Oh quão cedo (inda mal) o tempo veio
Que o conheço já mais do que quisera.

ALEXANDRE DE GUSMÃO [1841]

Vários escritos inéditos políticos e literários. São Paulo: Edições Cultura, 1943.

67
SOFRER POR GOSTO

Todo o mundo está pasmado


De me ver andar assim,
Ando cumprindo o meu fado,
Ninguém tenha dó de mim.

Estou preso e mui bem preso,


Amor foi o meu malsim,
Mas prisões d’Amor são doces,
Ninguém tenha dó de mim.

Já não tenho liberdade,


Que rendê-la a Amor eu vim,
Sou cativo por meu gosto,
Ninguém tenha dó de mim.

Todos chamam mal d’Amor


Mal perverso, mal ruim,
Eu padeço sem queixar-me,
Ninguém tenha dó de mim.

Eu adoro a uma ingrata


Não há gênio mais ruim,
Assim mesmo gosto dela,
Ninguém tenha dó de mim.

Tenho dito, não importa


Que o meu bem me trate assim,
Que esta vida toda é dela,
Ninguém tenha dó de mim.

Eu bem sinto a minha vida


Quase posta já no fim,
Mas morrer d’Amor me alegra,
Ninguém tenha dó de mim.

DOMINGOS CALDAS BARBOSA [1798]

Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

68
CONTRA NATURAM

1. o melhor amor, contra naturam,


ama-se
por isso amo (carícia em
riste) por isso amas (não asas,
azagaias): corais no corpo contra
o tédio do amor (essa mistura de
torpor gaia inconsciência e
palavras em estado de ronsard)

2. rosnar, antes:
mandíbulas à mostra
por todo o corpo

3. (tatear num
corpo que se
despe
a nudez que se
crispa)

4. sonar, este, como aliás qualquer deus


não pede menos
do que pavor
não pode menos
que atear chispas

69
5. e sua mestria:
com pontas de fogo
tatuar águas-vivas

CARLITO AZEVEDO [1991]

Sublunar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001.

70
MINERAÇÃO DO OUTRO

Os cabelos ocultam a verdade.


Como saber, como gerir um corpo
alheio?
Os dias consumidos em sua lavra
significam o mesmo que estar morto.

Não o decifras, não, ao peito oferto


mostruário de fomes enredadas,
ávidas de agressão, dormindo em concha.
Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento,
e cada abraço tece além do braço
a teia de problemas que existir
na pele do existente vai gravando.

Viver-não, viver-sem, como viver


sem conviver, na praça de convites?
Onde avanço, me dou, e o que é sugado
ao mim de mim, em ecos se desmembra;
nem resta mais que indício,
pelos ares lavados,
do que era amor e, dor agora, é vício.

O corpo em si, mistério: o nu, cortina


de outro corpo, jamais apreendido,
assim como a palavra esconde outra
voz, prima e vera, ausente de sentido.

71
Amor é compromisso
com algo mais terrível do que amor?
— pergunta o amante curvo à noite cega,
e nada lhe responde, ante a magia:
arder a salamandra em chama fria.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE [1962]

Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

72
O MUNDO QUE VENCI DEU-ME UM AMOR,

O mundo que venci deu-me um amor,


Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo,
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória…

MÁRIO FAUSTINO [1955]

O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

73
LOGRADOR

Você habita o próprio centro


de um coração que já foi meu.
Por dentro torço por que dentro
em pouco lá só more eu.

Livre de todos os negócios


e vícios que advêm de amar
lá seja o centro de alguns ócios
que escolherei por cultivar.

Para que os sócios vis do amor,


rancor, dor, ódio, solidão,
não mais consumam meu vigor,

amado e amor banir-se-ão


do centro rumo a um logrador
subúrbio desse coração.

ANTONIO CICERO [1996]

Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.

74
ESTIVE SEMPRE DE PÉ NO ÔNIBUS, ESPREMIDO ENTRE O FERRO

Estive sempre de pé no ônibus, espremido entre o ferro


da cadeira e o rumor dos passageiros.
Educado a ser o último, cedi o lugar a gestantes e idosos.
Estive sempre de pé no ônibus, me defendendo
ao largo do corrimão de tantos rumos,
alianças e ponteiros com paradas diferentes.
E o brado irritante do cobrador ainda a exigir
um passo à frente.

O fato de não ter sido é mais trabalhoso


do que a fama. Prossegui a me imaginar,
sondando o que poderia ter vivido.
Disperso, anônimo, no comício do mar
e nas trevas.

Diminuindo o risco, reduzimos a possibilidade


de nos libertar. O medo, o medo, o medo
é o que nos faz escolher.

Descobre-se um amor
na iminência de perdê-lo.

CARPINEJAR [2001]

Terceira sede. São Paulo: Escrituras, 2001.

75
MULHERES

Por que temos que amar tanto as mulheres?


Viveríamos decerto mais tranqüilos
— a mulher é um jantar de mil talheres —
em companhia apenas de um ou dois livros.

Pound percebia o ronronar de invisíveis


antenas estando em companhia delas.
A mulher é uma lista de impossíveis:
é ela o verdadeiro mundo às avessas.

E que não venham chamar de misógino


este que, no máximo, é um misantropo
(deseja estar sozinho, ma non troppo)

e que ama tanto o sexo feminino


sem que uma boa razão para isso exista
que chega a ser um fero feminista.

JOÃO MOURA JR. [1988]

Páginas Amarelas. São Paulo: Duas cidades, 1988.(Claro Enigma)

76
O AMOR, ESSE SUFOCO

o amor, esse sufoco,


agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro
ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos

PAULO LEMINSKI (1987)


Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987.

AMOR, ENTÃO,

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

PAULO LEMINSKI (1983)


Caprichos & relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983.

77
AS COISAS DA CASA

Trazia nas mãos pressurosas


o ramo das rosas do arrependimento.

E no botão da rosa mais vistosa


a abelha venenosa
que bulia por dentro.

A raiva invadiu a casa


numa labareda violenta.

Crestou tudo!

Agora os dois carregam baldes de água


para dentro,
espionados pelos vizinhos,

que olham de longe,


por trás de gelosias engelhadas.

MARCELO SANDMANN [2000]

Lírico renitente. São Paulo: 7Letras, 2000.

78
FAZ A IMAGINAÇÃO DE UM BEM AMADO

Faz a imaginação de um bem amado,


Que nele se transforme o peito amante;
Daqui vem, que a minha alma delirante
Se não distingue já do meu cuidado.

Nesta doce loucura arrebatado


Anarda cuido ver, bem que distante;
Mas ao passo, que a busco, neste instante
Me vejo no meu mal desenganado.

Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,


E por força da idéia me converto
Na bela causa de meu fogo ativo;

Como nas tristes lágrimas, que verto,


Ao querer contrastar seu gênio esquivo,
Tão longe dela estou, e estou tão perto.

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA [1768]

Obras de Cláudio Manuel da Costa. São Paulo: Cultrix, 1992.

79
RECORDAÇÃO

Nessun maggior dolore…


Dante

Quando em meu peito as aflições rebentam


Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada,
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor, piedade; — e que os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d’angústias que meu peito oprime:

Volvo aos instantes de ventura, e penso


Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos, — nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastara ainda
por que de os ver me saciasse!… O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. — Em tal pensando

80
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.

GONÇALVES DIAS [1846]

Cantos. Edição preparada por Cilaine Alves da Cunha. São Paulo: Martins Fontes,
2001. (Poetas do Brasil)

81
NEL MEZZO DEL CAMIN…

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada


E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha…

E paramos de súbito na estrada


Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo… Na partida


Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,


Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

OLAVO BILAC [1888]

Poesias. Edição preparada por Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Poetas
do Brasil)

82
DUAS ALMAS

Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,


entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada…

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,


e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,


essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:


Há de ficar comigo uma saudade tua…
Hás de levar contigo uma saudade minha…

ALCEU WAMOSY [1914]

Coroa de sonho. Poesias. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1925.

83
SOB OS RAMOS

É no Estio. A alma, aqui, vai-me sonora,


No meu cavalo — sob a loira poeira
Que chove o sol — e vai-me a vida inteira
No meu cavalo, pela estrada afora.

Ai! desta em que te escrevo alta mangueira


Sob a copada verde a gente mora.
E em vindo a noite, acende-se a fogueira
Que se fez cinza de fogueira agora.

Passa-me a vida pelo campo... E a vida


Levo-a cantando, pássaros no seio,
Qual se os levasse a minha mocidade...

Cada ilusão floresce renascida;


Flora, renasces ao primeiro anseio
Do teu amor... nas asas da Saudade!

PEDRO KILKERRY [1907]

In: CAMPOS, Augusto de. ReVisão de Kilkerry. São Paulo: Fundação Estadual de
Cultura, 1970.

84
O "ADEUS" DE TERESA

A vez primeira que eu fitei Teresa,


Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus…
E amamos juntos… E depois na sala
“Adeus” eu disse-lhe a tremer co’a fala…

E ela, corando, murmurou-me: “adeus.”

Uma noite… entreabriu-se um reposteiro…


E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus…
Era eu… Era a pálida Teresa!
“Adeus” lhe disse conservando-a presa…

E ela entre beijos murmurou-me: “adeus!”

Passaram tempos… sec’los de delírio


Prazeres divinais… gozos do Empíreo…
…Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse — “Voltarei!… descansa!…”
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: “adeus!”

Quando voltei… era o palácio em festa!…


E a voz d’Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.

85
Entrei!… Ela me olhou branca… surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!…

E ela arquejando murmurou-me: “adeus!”

São Paulo, 28 de agosto de 1868.

CASTRO ALVES [1870]

Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

86
TERESA

A primeira vez que vi Teresa


Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo


Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada


Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

MANUEL BANDEIRA [1930]

Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.

87
A D. BÁRBARA HELIODORA

(SUA ESPOSA REMETIDA DO CÁRCERE DA ILHA DAS COBRAS)

Bárbara bela,
Do Norte estrela,
Que o meu destino
Sabes guiar,
De ti ausente
Triste somente
As horas passo
A suspirar.

Por entre as penhas


De incultas brenhas
Cansa-me a vista
De te buscar;
Porém não vejo
Mais que o desejo,
Sem esperança
De te encontrar.

Eu bem queria
A noite e o dia
Sempre contigo
Poder passar;
Mas orgulhosa
Sorte invejosa,
Desta fortuna
Me quer privar.

Tu, entre os braços,


Ternos abraços
Da filha amada

88
Podes gozar;
Priva-me a estrela
De ti e dela,
Busca dous modos
De me matar!

ALVARENGA PEIXOTO [1865]

Poesias. In: LAPA, M. Rodrigues. Vida e obra de Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro:
INL, 1960.

89
ME CHUPE COM MUITA PENA

Me chupe com muita pena


nesta cama bravia
encapelada
de lençóis de espuma;
todo mar revolto
não cabe aqui
neste leito
e transborda pelo chão
e as roupas bóiam
no naufrágio
sob a luz da lâmpada.

ARMANDO FREITAS FILHO [1985]


3 x 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

90
MAPA

Eis a carta dos céus:


as distâncias vivas
indicam apenas
roteiros
os astros não se interligam
e a distância maior
é olhar apenas.

A estrela
vôo e luz somente
sempre nasce agora:
desconhece as irmãs
e é sem espelho.

Eis a carta dos céus: tudo


indeterminado e imprevisto
cria um amor fluente
e sempre vivo.

Eis a carta dos céus: tudo


se move.

ORIDES FONTELA [1983]


Trevo. São Paulo: Duas Cidades, 1988. (Claro Enigma)

91
NÃO PROMETO QUE AS LARANJAS AMADUREÇAM

Não prometo que as laranjas amadureçam


arredondadas, que a colmeia transborde brasas,
que a horta de verduras seja eito de ventura.

Não peço que leias pensamentos, muitos deles te feririam.

Quero te deixar enfurecida, ofender tua insônia.


Quero bombear mais rápido teu sangue,
ciscar no idioma uma palavra que te maltrate.
Quero ser tua impaciência esfriando devagar,
rir de tua loucura ajeitando as malas.

O jogo de cena contenta os casais que ensaiam seus papéis.


Não a nós, aprumados na contenda.
Nossos corpos foram moldados à discordância.

A mesma proximidade que mata, salva.

CARPINEJAR [2001]

Terceira sede. São Paulo: Escrituras, 2001.

92
AMOR E MEDO

I.

Quando eu te fujo e me desvio cauto


Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
“— Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!”

Como te enganas! meu amor é chama,


Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco…
És bela — eu moço; tens amor — eu medo!…

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,


Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores,


A luz da aurora me entumece os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.

É que esse vento que na várzea — ao longe,


Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!

93
Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia,
Diz: — que seria da plantinha humilde
Que à sombra dele tão feliz crescia?

A labareda que se enrosca ao tronco


Torrara a planta qual queimara o galho,
E a pobre nunca reviver pudera,
Chovesse embora paternal orvalho!

II.
Ai! se eu te visse no calor da sesta.
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas!…

Ai! se eu te visse, Madalena pura,


Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos — palpitante o seio!…

Ai! se eu te visse em languidez sublime,


Nas faces as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala a protestar baixinho…
Vermelha a boca, soluçando um beijo!…

Diz: — que seria da pureza d’anjo,


Das vestes alvas, do candor das asas?
— Tu te queimaras, a pisar descalça,
— Criança louca, — sobre um chão de brasas!

No fogo vivo eu me abrasara inteiro!


Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro

94
As pobres flores da grinalda virgem!

Vampiro infame, eu sorveria em beijos


Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço
Anjo enlodado nos pauis da terra.

Depois… desperta no febril delírio,


— Olhos pisados — como um vão lamento,
Tu perguntaras: — qu’é da minha c’roa?…
Eu te diria: desfolhou-a o vento!…

Oh! não me chames coração de gelo!


Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito,
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!…

Outubro, 1858.

CASIMIRO DE ABREU [1859]

As primaveras. Edição preparada por Wagner Camilo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
(Poetas do Brasil)

95
VENDO A ANARDA DEPÕE O SENTIMENTO

A serpe, que adornando várias cores,


Com passos mais oblíquos, que serenos,
Entre belos jardins, prados amenos,
É maio errante de torcidas flores;

Se quer matar da sede os desfavores,


Os cristais bebe co'a peçonha menos,
Porque não morra cos mortais venenos,
Se acaso gosta dos vitais licores.

Assim também meu coração queixoso,


Na sede ardente do feliz cuidado
Bebe cos olhos teu cristal fermoso;

Pois para não morrer no gosto amado,


Depõe logo o tormento venenoso,
Se acaso gosta o cristalino agrado.

MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA [1705]

Manuel Botelho de Oliveira.Música do Parnaso. Rio de Janeiro: INL, 1953.

96
GRAÇA

Não saberia dizer a hora


em que me desfizera de tudo o que não era teu,

quando cada coisa se deixou cobrir


por tua presença sem margens

e deixou de haver um lado


que fosse fora de ti.

EUCANÃA FERRAZ [2004]

Rua do mundo. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2004.

97
HELENA

No cômodo onde Menelau vivera


Bateram. Nada. Helena estava morta.
A última aia a entrar fechou a porta,
Levaram linho, ungüento, âmbar e cera.

Noventa e sete anos. Suas pernas


Eram dois secos galhos recurvados.
Seus seios até o umbigo desdobrados
Cobriam-lhe três hérnias bem externas.

Na boca sem um dente os lábios frouxos


Murchavam, ralo pêlo lhe cobria
O sexo que de perto parecia
Um pergaminho antigo de tons roxos.

Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,


Compuseram seus ossos quebradiços,
Deram-lhe à boca uns rubores postiços,
Envolveram-na em faixas perfumadas.

Então chamas onívoras tragaram


A carne que cindiu tantas vontades.
Quando sua sombra idosa entrou no Hades
As sombras dos heróis todas choraram.
6/5/1992

ALEXEI BUENO [1993]


Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

98
E ele e os outros me vêem

Ana Cristina Cesar

99
ACEITAÇÃO

É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens


e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano


e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar,


nem tu.

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:


não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

CECÍLIA MEIRELES [1939]

Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958.

100
ROMANCE DAS TRÊS IRMÃS OU MIRAMAR

C’erano tre zitelle


E tutti tre d’amore.

Nós éramos três irmãs


Num castelo ao pé do mar.
A primeira era Marfida,
A segunda Guiomar.
A terceira por desgraça
Miramar se foi chamar.
Nós éramos três irmãs,
Todas las tres por casar!
A primeira tinha um colo
Para um punhal se cravar.
A segunda tinha uns braços,
Oh, quem mos dera a abraçar!
A mais formosa de todas,
Tinha os olhos cor do mar.
Logo por desgraça dela
Miramar se foi chamar!
Mira, mira, que remira,
Passa os dias a mirar
As ondas que vão e vêm.
Nas águas verdes do mar.
Nós éramos três irmãs

101
Num castelo ao pé do mar!
Cavaleiros que passavam,
No seu lindo galopar,
Cavaleiros que passavam,
Marfida que ia a espiar.
Tanto espiou, que algum dia
Um deles que ia a apear.
Tão bem que a mão lha pedia,
Que ela a não soube negar.
Montou logo na garupa,
Puseram-se a galopar.
Passava mais de ano e dia
Que tinham ido a casar,
Em derredor do castelo
Se escuta um belo cantar.
O trovador que trovava,
Guiomar que ia a escutar.
A voz que entrava no ouvido,
A saia de lhe apertar!
Chamam dois xastres, a saia
Não na podem consertar.
Só um frade é que o podia,
Que o remédio era casar.
Tão cheinha que ela estava
Das trovas de aquel trovar!
Chamam um frade, ali mesmo
Muito bem que os vai juntar.
Miramar, a malfadada,
Estava mirando o mar.
Passam dias, passam noites,
Passam anos de contar,
Miramar, a malfadada,
Estava mirando o mar.
Arde o castelo com o fogo

102
Que o demo foi atear.
Miramar, a malfadada,
Estava mirando o mar!

ONESTALDO DE PENNAFORT [1931]

Espelho d’água & Jogos da noite. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1931.

103
A NOIVA

Ela passa
(no mínimo)
por dez camadas de felicidade indivisível,
situadas entre a nudez
e o esplendor das vestes coloridas _
e isso porque o quadro é inacabado:
e assim é
certamente pela convicção de que a alegria
não se conta, o gozo
não se enumera.

O que eleger como primeiro?


Que face apontar,
que estágio da vida referir ao único noivo?
A ele
tão pouco para o que há nela de plural?

MARIA LÚCIA DAL FARRA [2002]

Livro de Possuídos. São Paulo: Iluminuras, 2002.

104
VOA, SUSPIRO MEU, VAI DILIGENTE

Voa, suspiro meu, vai diligente,


Busca o Lar ditoso onde mora
O eterno objeto, que minha alma adora,
Por quem tanta aflição meu peito sente.

Ao meu bem te avizinha docemente;


Não perturbes seu sono: nesta hora,
Em que a Amante fiel saudosa chora,
Durma talvez pacífico e contente.

Com os ares, que respira, te mistura;


Seu coração penetra; nele inspira
Sonhos de amor, imagens de ternura.

Apresenta-lhe a Amante, que delira;


Em seu cândido peito amor procura;
Vê se também por mim terno suspira.

BEATRIZ FRANCISCA DE ASSIS BRANDÃO [1856]


Escritoras brasileiras do século XIX. Zahide Muzzart, org. Florianópolis: Editora
Mulheres, 2000.

105
A MULHER QUE DIZ QUE AMA

A mulher que diz que ama


Certamente mente, mente.

Glosa

Sendo notória a má fama


Que os homens têm no amor,
É ser forte, é ter valor
A mulher que diz que ama.
O seu mimoso programa
Ao mundo é bem evidente:
E quando algum diz que sente,
Por nós, ânsias de morrer,
Num continuo padecer:
Certamente mente, mente.

ANA EURÍDICE EUFROSINA DE BARANDAS [1845]


O ramalhete ou flores escolhidas no jardim da imaginação. Porto Alegre: EDIPUCRS /
Nova Dimensão, 1990.

106
LAMENTO DE PENÉLOPE

de rima em rima
vou removendo a resina
de poeta sem verso e sem poema
de mulher sem nome e sem semema
de anjo sem sêmen e só dilema

de rio em rio
vou cavando o fundo atrás de sono
vou fazendo do leito o escorredouro
de minha mágoa tristeza e abandono

tendo ele se perdido na ilha de Circe


— aqui do meu lado só há o fantasma —
fui vendo sem que ninguém visse
que amor não é coisa que se plasma

vou arrastando o corpo pela casa


vou varrendo pedaços de asa
vou desfazendo a costura
das colchas de cama

— Eis o destino desta dama.

LUCIANA MARTINS [2003]

Espetáculo das sensações alheias. Curitiba: Medusa, 2003.

107
AO AMOR BÚFALO

Que heras venenosas te recubram


o avesso dos cabelos onde a idéia
de amor brotou torta
da cratera
desde o início.
E o tempo em temporais de areia
seja-te leve
ó meu suplício.
Nada foi verdadeiro na vereda
de finos artifícios
que teceram
com palha a fogueira das malícias,
benesses pesadelas:
teu passo elefantino e orgulhoso
com seus troféus de espanto e garrotes
novos à garota agradecida.
Seja-te leve esse esconjuro
de sal e ardósia,
esta laje com jeito
e faina de esfiapar-te
da lembrança,
catavento
de cartas de amor despedaçadas.

ELISABETH VEIGA [2002]


Sonata para pandemônio. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

108
EXERCÍCIO

Pular no fosso onde você não está. Exercício de amar à


distância, na perda total.
O abandono é uma perfeição.
Amar sem saber de nada, até onde se esgarça,
onde há que se pisar em brasas, a pão e água,
sem bênção nenhuma.
Amar na decadência e no perigo. Amar o medo disso.
Amar no vazio,
no vácuo, até o nada completo onde ainda sou capaz de
desenhar seu rosto — com que tinta?

MARIA RITA KEHL [1996]

Processos primários. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

109
AUSÊNCIA

o que as palavras
escondiam
de delicadeza

no meio da violência
o amor

na voz que não cabe


neste silêncio

e a fotografia
sobre a mesa
nunca enviada

são as palavras
que sofrem
aqui, onde tudo
termina.

VIRNA TEIXEIRA [2005]


Distância. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

110
MINHA ALMA FRIA, E JÁ DESENGANADA

Minha alma fria, e já desenganada,


Despida de ilusões e fantasia
Em gostoso sossego aqui vivia,
Dos prazeres do mundo já deixado.

Eis que por novo acaso sou tirada


Do profundo letargo, em que jazia;
Pela mais agradável simpatia,
Aos Elíseos minha alma é transportada!

Magnético poder a ti me prende;


É só fria amizade? Não: eu minto;
Tanto fogo amizade não acende.

Que descubro! Oh céus! Belo Filinto!


Que repentina luz me aclara e fende!
É amor... é amor que por ti sinto!

ANA EURÍDICE EUFROSINA DE BARANDAS [1845]


O ramalhete ou flores escolhidas no jardim da imaginação. Porto Alegre: EDIPUCRS /
Nova Dimensão, 1990.

111
TE PROCURO

te procuro
nas coisas boas

em nenhuma
encontro inteiro

em cada uma
te inauguro

MINHA VOZ

minha voz
não chega aos teus
ouvidos

meu silêncio
não toca teus sentidos

sinto muito
mas isso é tudo que sinto

ALICE RUIZ [1984]


Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984.

112
PORCO-POETA QUE ME SEI, NA CEGUEIRA, NO CHARCO

Porco-poeta que me sei, na cegueira, no charco


À espera da Tua Fome, permita-me a pergunta
Senhor de porcos e de homens:
Ouviste acaso, ou te foi familiar
Um verbo que nos baixios daqui muito se ouve
O verbo amar?

Porque na cegueira, no charco


Na trama dos vocábulos
Na decantada lâmina enterrada
Na minha axila de pêlos e de carne
Na esteira de palha que me envolve a alma

Do verbo apenas entrevi o contorno breve:


É coisa de morrer e de matar mas tem som de sorriso.
Sangra, estilhaça, devora, e por isso
De entender-lhe o cerne não me foi dada a hora.

É verbo?
Ou sobrenome de um deus prenhe de humor
Na péripla aventura da conquista?

HILDA HILST [1989]

Amavisse. São Paulo: Massao Ohno, 1989.

113
PENÉLOPE

O que faço des


faço
o que vivo des
vivo
o que amo des
amo

(meu “sim” traz o “não”


no seio).

ORIDES FONTELA [1983]

Trevo. São Paulo: Duas Cidades, 1988. (Claro Enigma)

114
ULYSSES

E ele e os outros me vêem.


Quem escolheu este rosto para mim?

Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo


estilete da minha arte tanto quanto
eu temo o dele.

Segredos cansados de sua tirania


tiranos que desejam ser destronados

Segredos, silenciosos, de pedra,


sentados nos palácios escuros
de nossos dois corações:
segredos cansados de sua tirania:
tiranos que desejam ser destronados.

o mesmo quarto e a mesma hora

toca um tango
uma formiga na pele
da barriga,
rápida e ruiva,

Uma sentinela: ilha de terrível sede.


Conchas humanas.

ANA CRISTINA CESAR [1985]


Inéditos e dispersos. Armando Freitas Filho, org. São Paulo: Ática, 1985.

115
QUE ESTE AMOR NÃO ME CEGUE NEM ME SIGA

Que este amor não me cegue nem me siga.


E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente


E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

HILDA HILST [1995]

Cantares do sem nome e de partidas. São Paulo: Massao Ohno, 1995.

116
NADA DISFARÇA O APURO DO AMOR

Nada disfarça o apuro do amor.


Um carro em ré. Memória da água em movimento. Beijo.
Gosto particular da tua boca. Último trem subindo ao
céu.
Aguço o ouvido.
Os aparelhos que só fazem som ocupam o lugar
clandestino da felicidade.
Preciso me atar ao velame com as próprias mãos.
Sirgar.
Daqui ao fundo do horto florestal ouço coisas que
nunca ouvi, pássaros que gemem.

ANA CRISTINA CESAR [1985]

Inéditos e dispersos. Armando Freitas Filho, org. São Paulo: Ática, 1985.

117
POR QUE SOU FORTE

Dirás que é falso. Não. É certo. Desço


Ao fundo da alma toda vez que hesito...
Cada vez que uma lágrima ou que um grito
Trai-me a angústia - ao sentir que desfaleço...

E toda assombro, toda amor, confesso,


O limiar desse país bendito
Cruzo: - aguardam-me as festas do infinito!
O horror da vida, deslumbrada, esqueço!

É que há dentro vales, céus, alturas,


Que o olhar do mundo não macula, a terna
Lua, flores, queridas criaturas,

E soa em cada moita, em cada gruta,


A sinfonia da paixão eterna!...
E eis-me de novo forte para a luta.

(Resende, 7.9.1886)

NARCISA AMÁLIA [1872]


Escritoras brasileiras do século XIX. Zahide Muzzart, org. Florianópolis: Editora
Mulheres, 2000.

118
MUDANÇA

A Walmir Ayala

Duas salas de cal me esperam,


clariabertas,luz ferida.
Ainda não é a morte.
Outro princípio? O ser
gasta a sua vez de viver, e gosta.

Viver de vez ,
que amor consuma tudo
corroa em cal toda recusa
toda sombra
que me case
à sua alvura
que o amado
faça em mim a sua casa.

Ah bem-querer-vos
amor meu de domingo e retas claras
e de abraços em cúpulas sonhadas
abertas para o mar do céu aberto
como a flor sobe no ar, não destinada
a nada que não sejam suas pétalas
seu caule vertical na luz do dia
no gratuito arroubo de ser flor.
Assim, donatário, te amaria
floriria para ti a rosa nossa

119
em mim – me habitarias!
(Mas digo não
ao trauma vigilante da paixão,
sua garra, sua devoração.)
Mudança, mudança,
sem tardança, há que prover
dona da casa, um fluido, um fluido cúmplice,
um bem chegar
que imante portas a colheres, luz à letra,
janelas aos vestidos, silêncio à campainha
a cama aos armários da cozinha, o amor ao sono,
há que vibrar o que está solto
numa casa
prover princípios às coisas
perdidas
reperplexas.

Ordenação do caos, presença amante!


Difícil
princípio difícil
nossa fragilidade é tão tocante!
Ah um afeto, um só comoveria, moveria
tão mais em lã a ênfase do esforço
de ser em pé, reunir, mobiliar
com as coisas do existir o branco espaço inerte.
Ser, sem subterfúgio, assumir-me, habitar-me,
depois ser visitada sempre e sempre.
Difícil princípio no princípio
era o caos.
Abrir os olhos na manhã
toneladas de cansaço me contemplam
do fundo dessas pirâmides me arrasto
- um alfinete pesa em minha mão –
derrocam as barrocas do desgosto

120
sobre a cabeça implume a pele doce.
Que importam portas
como fazer
colheres colham,água ágüe
livros livrem, a luz luza
o armário armárie, o corpo corpe
a alma se anime
como que tudo colha, livre, luza, anime, seja?

Ah vida das coisas, ah vida, ah minha vida


tudo minhas filhas, minhas donas
carentes, exigentes
de meu cuidado, informação, consentimento?

Tenho um cordeiro, uma pomba


e uma fonte
nos longes azulados
ando longe
ando léguas partidas para vê-los
preciosos, ditosos, tão seamantes!
Curto é meu fôlego, meu amor minguante
curto é meu fôlego
hora de minha morte!
Quem me ajuda, quem me companhia
nesta calçadinha minha minha
neste meio-fio vida e morte
que devo atravessar sem atropelo?
Cordeiro, pomba minha
água da fonte, caminha
me naufraga entre a nuvem
e a florbela, a louçania
da vida eterna ! Me naufraga!

Não ainda, não, ainda não,

121
não.
Enquanto, singro minha mudança
danço minha mudança
minha ininterrupta balança
- onde meu número, minha rua, minha cidade –
danço minha dança
de amor, para o que for
o mundo
me desmonta o coração com sua seta
ouço vozes lá fora, são chamados
presenças, familiares vozes
feitas para a mágoa e para o afeto.
Abro devagar as mãos fechadas.

Elas consentem, e se enchem lentamente de terra.

LÉLIA COELHO FROTA [1971]

Poesia lembrada. Apresentação de Henriqueta Lisboa. Rio de Janeiro: José


Olympio, 1971.

122
E a paixão será arquivada.

Mário de Andrade

123
MODA DO CORAJOSO

Maria dos meus pecados,


Maria, viola de amor…

Já sei que não tem propósito


Gostar de donas casadas,
Mas quem que pode com o peito!
Amar não é desrespeito
Meu amor terá seu fim.
Maria há-de ter um fim.

Quem sofre sou eu, que importa


Pros outros meu sofrimento?
Já estou curando a ferida.
Se dando tempo pro tempo
Toda paixão é esquecida.
Maria será esquecida.

Que bonita que ela é!… Não


Me esqueço dela um momento!
Porém não dou cinco meses,
Acabarão as fraquezas
E a paixão será arquivada.
Maria será arquivada.

Por enquanto isso é impossível

124
O meu corpo encasquetou
De não gostar senão de uma...
Pois, pra não fazer feiura,
Meu espírito sublima
O fogo devorador.
Faz da paixão uma prima,
Faz do desejo um bordão,
E encabulado ponteia
A malvadeza do amor.

Maria, viola de amor!…

MÁRIO DE ANDRADE [1926]

Poesias completas. Belo Horizonte: Vila Rica, 1993.

125
HISTÓRIA NATURAL

O amor de passagem,
o amor acidental,
se dá entre dois corpos
no plano do animal,

quando são mais sensíveis


à atração pelo sal,
têm o dom de mover-se
e saltar o curral.

O encontro realizado,
juntados em casal,
eis que vão assumindo
o cerimonial

que agora é já difícil


definir-se de qual:
se ainda do semovente
ou já do vegetal

(pois os gestos revelam


o ritmo luminal
de planta, que se move
mas no mesmo local).

126
No fim, já não se sabe
se ainda é vegetal
ou se a planta se fez
formação mineral

à força de querer
permanecer tal qual,
na permanência aguda
que é própria do cristal,

que não só pode ser


o imóvel mais cabal
mas que ao estar imóvel
está aceso e atual

Depois vem o regresso:


sobem do mineral
para voltar à tona
do reino habitual.

Vem o desintegrar-se
dessa pedra ou metal
em que antes se soldara
o duplo vegetal.

Vem o difícil de-


semaranhar-se mal,
desabraçar-se lento
dessa planta dual

127
que enquanto embaraçada
lembrava um cipoal
(no de parecer uma
sendo mesmo plural).

Vem o desabraçar-se
sem querer, gradual,
de plantas que não querem
subir ao animal

certo por compreender


que o bicho inicial
a que agora regressam
(já vão no vegetal),

certo por compreender


que o bicho original
a que já regressaram
desliados, afinal,

não mais se encontrarão


no palheiro ou areal
multi-multiplicado
de qualquer capital.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO [1959]

Quaderna.Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

128
ANTONICO E CORÁ

HISTÓRIA BRASILEIRA

Homenagem ao gênio desconhecido — à primeira inspiração brasileira,


o Sr. Tenente-Coronel Antônio Galdino dos Reis.

Corá tinha vinte anos,


Antonico pouco mais;
Eram ambos dous pombinhos
Sem iguais.

amavam-se; neste afeto


Ninguém dúbios laços veja,
Eles estavam ligados…
Pela igreja.

Corá na voz, nos requebros,


Era mesmo uma espanhola,
Antonico um Alexandre
Na viola.

Quatro anos de venturas


Passaram os dous no ermo;

129
Mas as ditas deste mundo
Têm um termo.

O nosso herói obrigado,


Por uma questão urgente,
Teve de deixar a esposa
De repente.

Corá chorou por três noites,


Por três noites lamentou-se;
Mas no fim dessas três noites…
Consolou-se.

Aonde fora Antonico?


Bem não sei, nem bem me lembro,
Findava-se o mês, suponho,
De setembro;

Passou outubro, novembro,


Dezembro e entrou janeiro,
Antonico demorou-se
O ano inteiro!

Corá, cujos róseos sonhos


Mudavam-se em pó e fumo,
Tomou sem mais cerimônias
Outro rumo.

Mas onde estava Antonico?


Não sei; dessas longes plagas
Guardo apenas na carteira
Notas vagas.

O que sei é que no cabo

130
De três ou de quatro meses
Procurou quem lhe fizesse
Dela as vezes.

(Dela, previno-te, amigo,


Que me refiro a Corá,
Como ao correr desta história
Se verá.)

Ora bem, eis envolvido


Antonico um belo dia
No crime horrendo que chamam
Bigamia!

Mísero o gênio do homem!


A diversão não o cansa!
Tem por lei dos atos todos
A mudança!

Dous anos mais são passados,


E Antonico, quem diria!
De sua segunda esposa
Se enfastia!

Recorda-se dos encantos,


Da figura alta e faceira,
Dos requebros, dos olhares
Da primeira!

Maldiz o gênio versátil


Que o fez mudar de mulher;
Nem mais um beijo à segunda
Dá sequer!

131
Jura, jura, como jura
Bom marido e bom cristão,
Sanar de antigos direitos
A lesão.

Uma tarde se prepara,


E a pé, qual romeiro monge,
Põe-se contrito a caminho
Para longe.

Chegando à mísera aldeia,


Cumprindo o triste fadário,
Vai logo bater à porta
Do vigário.

Era tarde, mas o padre,


Cheio de santo fervor,
Ouviu as queixas do aflito
Pecador.

Meu amigo, disse, é noite,


Vai dormir um poucachinho,
Volta amanhã, falaremos
Bem cedinho.

Passa revista em teus erros,


Em todos, em todos, filho,
Deus te lançará de novo
No bom trilho!

Assim falou, e Antonico,


Fazendo uma reverência,
Foi conversar com a pobre
Consciência.

132
No dia seguinte, humilde,
Nos largos peitos batendo,
Voltou à casa do gordo
Reverendo.

Estava deitado o padre


Sobre um mundo de lençóis,
Na cama em que repousaram
Seus avós.

Cama grande, forte, larga,


Fabricada para dois,
Cujo peso arrastaria
Trinta bois!

— Bom dia, senhor vigário.


— Bom dia, à confissão vem?
— Sim, senhor, pode atender-me?
— Muito bem:

Não é mister levantar-me,


Daqui o ouço, não acha? —
Benzem-se, e as rezas começam
Em voz baixa.

Findas as rezas: — Acuse-se,


Murmura o bom reverendo.
Antonico enxuga os olhos
E tremendo

Principia: — Ah, padre, padre,


Cometi um tal delito
Que sou de Deus e dos homens

133
Maldito!

Dos homens… ah! se souberem


Da ação tão negra e tão feia,
Por certo que apodrecera
Na cadeia!

— Não tenhas medo, prossegue,


Filho, em tua confissão;
Deus nunca nega aos culpados
O perdão.

Furtaste acaso? — Não, padre.


— Violaste algum penhor?
— Não. — Caluniaste, fala!
— Fiz pior!

— Pior! Juraste então falso?


Feriste alguém? — Não, senhor.
— Mataste, filho, mataste?
— Fiz pior!

— Pior? Pior?! Então conta


O que hás feito, se quiseres
Que te absolva! — Ah! meu padre!
Casei com duas mulheres!

— Casou com duas mulheres!


Com duas! o padre exclama;
E treme, agita-se, pula
Sobre a cama.

E uma feminil cabeça,


Ao som desta rude voz,

134
Surge dentre as vastas ondas
De lençóis;

E ardendo por ver o monstro


Bi-casado, a erguer-se vai,
Quando um grito de seus lábios
Rubro, sai!

— Corá!… exclama Antonico.


— Compaixão!… brada Corá.
— O que é isto? indaga o padre,
— Que será?

E Corá logo mergulha,


Antes que a luta apareça,
No meio dos travesseiros
A cabeça.

— O que é isto? O caso é grave,


Novo, intrincado, eu o creio!
Explica-te, filho, fala
Sem receio.

— Quer que eu fale, que me explique,


Que esclareça o fato, quer?
Não, dê-me sem mais rodeios
A mulher!

A mulher que me pertence,


Que aí repousa a seu lado!
É isto que eu chamo um feio,
Vil pecado!

O padre franze os sobrolhos,

135
Esfrega as orelhas bentas,
Passa a língua pelos lábios,
Coça as ventas.

E fala: — Sossega, filho,


Tudo, tudo arranjaremos,
Chega-te aqui para perto,
Conversemos:

— Que tal a tua segunda


Mulher? Faceira? Garbosa?
Clara ou morena? Morena?
Graciosa?

Gorda? — Gorda, sim, meu padre.


— Olhos negros? — Lindos olhos!
— São ciladas à virtude!
São escolhos!

— São… quanto a braços, pescoço,


Cabelos… — Oh! lindos, belos!
Que lindo colo! Que braços!
Que cabelos!

— Bonitos, hein? diz o padre


Contente esfregando as mãos,
Pois obremos, filho, como
Bons cristãos:

— Traze-ma, pois, e contigo


Levarás esta, formosa,
Legítima, incontestável
Boa esposa:

136
— A carne de tua carne,
Mais o osso de teu osso;
E assim se expressando, a porta
Mostra ao moço.

Como as cousas se passaram,


Leitor, não guardo memória…
Concluí como quiserdes
Esta história.

FAGUNDES VARELA [1869]

Cantos e fantasias e outros cantos. Edição preparada por Orna Messer Sevin. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. (Poetas do Brasil)

137
O AMOR QUE É CÁ DO REINO

O amor que é cá do Reino


É um amor caprichoso,
O do Brasil todo é doce,
É bem bom, é bem gostoso.

Gentes, como isto


Cá é temperado,
Que sempre o favor
Me sabe a salgado;
Nós lá no Brasil
A nossa ternura
A açúcar nos sabe

Tem muita doçura,


Oh! Se tem! Tem.

Eu tremo se o meu bem vejo


Enfadadinho e raivoso;
Mas o momento das pazes
É bem bom, é bem gostoso.

Gentes etc.

Um certo volver dos olhos,


Inda um tanto desdenhoso,
No meio disto um suspiro
É bem bom, é bem gostoso.

Gentes etc.

Um dizer-me vá-se embora


Com um adeus cicioso
E um apertinho de mão
É bem bom, é bem gostoso.

Gentes etc.

Um ir ver-me da janela
Com um modo curioso
E então assoar-se a tempo
É bem bom, é bem gostoso.

Gentes etc.

138
Um temer um ladrãozinho
Que me assaltasse aleivoso
Bater-lhe por isso o peito,
É bem bom, é bem gostoso.

Gentes etc.

Ao moço que me acompanha


Um perguntar cuidadoso,
Um ai de desassustar-se,
É bem bom, é bem gostoso.

Gentes etc.

Quando triste estou em casa


A recordar-me saudoso,
Um recadinho que chega
É bem bom, é bem gostoso

Um escrito em duas regras


Dum modo mui amoroso,
Um misturado de letras
É bem bom, é bem gostoso.

Gentes etc.

Vir a gente rebulindo


Ao chamado imperioso,
Ouvir-lhe apre inda não chega!
É bem bom, é bem gostoso

Gentes etc.

Chegar aos pés de nhanhá,


Ouvir chamar preguiçoso,
Levar um bofetãozinho
É bem bom, é bem gostoso.

DOMINGOS CALDAS BARBOSA

Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1980.

139
DOIS SONETOS DE AMOR AO PÉ

28 PSICANALÍTICO

Não tem muitos mistérios o meu ego:


O pé, símbolo fálico evidente,
ilustra todo o tal do inconsciente
com sonhos coloridos, pois sou cego.

Se existe algum complexo que carrego,


de Édipo não era, certamente.
O nome grego só me vem à mente
porque “pé inchado” é o étimo que pego.

É de inferioridade o meu complexo,


explica Freud, e, à luz do que analisa,
a fixação no pé ganha seu nexo.

Só há libido quando alguém me pisa.


Sola na cara é estímulo do sexo.
Mais grossa a sola, mais a língua é lisa.

140
46 HINDU

Na Índia a felação é tão falada


que tem nos “Kama Sutra” um texto inteiro.
Lá diz que um servo, como chupeteiro,
resolve quando a fêmea não quer nada.

Me contam que na mais baixa camada


os cegos são mantidos em puteiro
e, em troca de comida ou por dinheiro,
batalham pra chupar gente abastada.

Queria fazer parte desta casta


e, além de chupar rola, ser forçado
a toda a obrigação dum pederasta:

Após ao superior o cu ter dado,


ralar a língua vil na sola gasta
e suja (Vou gozar!) de seu calçado.

GLAUCO MATTOSO (1999)

Centopéia: sonetos nojentos e quejandos. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999.

141
PRETENDE O POETA INTRODUZIR-SE, COM A PRIMEIRA, OU SEGUNDA

Dá-me o Amor a escolher


de duas uma demônia,
ou Inácia, ou Apolônia,
e eu não me sei resolver:
a ambas hei de querer,
porque depois de as lograr,
mais fácil será acertar,
que nos risco da eleição
o seguro é lançar mão
de tudo por não errar.

Assim será: mas que monta


isto que fazer pertendo,
se dirão, que estou fazendo
sem a hóspeda esta conta:
qual delas será tão tonta,
que se acomode aos desares
de partir com seus pesares
amor, assistência, e tratos,
se as damas não são sapatos,
que se hajam de ter aos pares.

Mas se debaixo da lua


não val mais esta, que estoutra
eu não deixo, uma por outra,
nem escolho outra por uma,
não há dúvida nenhuma,

142
que ambas são moças de porte,
e se não mo estorva a morte,
ambas me hão de vir à mão,
Inácia por eleição,
e Apolônia pela sorte.

Isto que remédio tem,


sejam entre si tão manas,
que repartindo as semanas,
vá uma, quando outra vem;
que eu repartirei também
jimbo, carinho, e favor,
por que advirta algum Doutor,
que sendo à lógica oposto,
na aritmética do gosto
pode repartir-se o amor.

GREGÓRIO DE MATOS [16--]

Obra poética. Ed. James Amado. 4ª. Edição. Rio de Janeiro: Record, 1999, vol. 2.

143
NECROLÓGIO DOS DESILUDIDOS DO AMOR

Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,


escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia


dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
E um estômago cheio de poesia…

Agora vamos para o cemitério


levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,


sem coração, sem tripas, sem amor.

144
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1934)

Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

145
NAMORO A CAVALO

Eu moro em Catumbi: mas a desgraça,


Que rege minha vida malfadada,
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde


Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
A minha namorada na janela…

Todo o meu ordenado vai-se em flores


E em lindas folhas de papel bordado…
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito… mas furtado.

Morro pela menina, junto dela


Nem ouso suspirar de acanhamento…
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a comédia — em casamento…

Ontem tinha chovido… Que desgraça!


Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando… uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama…

Eu não desanimei. Se Dom Quixote


No Rocinante erguendo a larga espada

146
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada…

Mas eis que no passar pelo sobrado,


Onde habita nas lojas minha bela,
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela…

O cavalo ignorante de namoros


Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada…

Dei ao diabo os namoros. Escovado


Meu chapéu que sofrera no pagode…
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa


Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!…

ÁLVARES DE AZEVEDO [1873]

Lira dos vinte anos. Edição preparada por Maria Lúcia dal Farra. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. (Poetas do Brasil)

147
TRÊS SONETOS DRAMÁTICOS

ARRUFOS

Não há no mundo quem amantes visse


Que se quisessem como nos queremos;
Mas hoje uma questiúncula tivemos
Por um capricho, por uma tolice.

— “Acabemos com isto!” ela me disse.


E eu respondi-lhe assim: — “Pois acabemos!”
E fiz o que se faz em tais extremos:
Tomei do meu chapéu com fanfarrice,

E tendo um gesto de desdém profundo,


Saí cantarolando. (Está bem visto
Que a forma aí contrafazia o fundo).

Escreveu-me, voltei. Nem Deus, nem Cristo,


Nem minha mãe, volvendo agora ao mundo,
Eram capazes de acabar com isto!

148
O INCESTO

O Incesto. Drama em 3 atos. Ato primeiro:


Jardim. Velho castelo iluminado ao fundo.
O cavaleiro jura um casto amor profundo.
E a castelã resiste… Um fâmulo matreiro

Vem dizer que o barão suspeita o cavaleiro…


Ele foge, ela grita… — Apito! — Ato segundo:
Um salão do castelo. O barão, iracundo,
Sabe de tudo… Horror! Vingança! — Ato terceiro:

Em casa do galã, que, sentado, trabalha,


Entra o barão armado e diz: — “Morre, tirano,
Que me roubaste a honra e me roubaste o amor!”

O mancebo descobre o peito. — “Uma medalha!


Quem ta deu?” — “Minha mãe!” — “Meu filho!” Cai o pano…
À cena o autor! À cena o autor! À cena o autor!

149
IMPRESSÕES DE TEATRO
A Guimarães Passos

Que dramalhão! Um intrigante ousado,


Vendo chegar da Palestina o conde,
Diz-lhe que a pobre da condessa esconde
No seio o fruto de um amor culpado.

Naturalmente o conde fica irado.


— “O pai quem é?” pergunta. — “Eu”, lhe responde
Um pajem que entra. — “Um duelo!” — “Sim! Quando? Onde?”
No encontro morre o amante desgraçado.

Folga o intrigante… Porém surge o mano,


E vendo morto o irmão, perde a cabeça,
Crava o punhal no peito do tirano.

É preso o mano, mata-se a condessa,


Endoidece o marido… e cai o pano,
Antes que outra catástrofe aconteça.

ARTUR AZEVEDO [1909]

Rimas, Rio de Janeiro: Companhia Industrial Americana, 1909.

150
SEPARAÇÃO

Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos
das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.

O amor não resistiu


às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,


discos e remorsos.
Esperar o infernal
juízo final do desamor.

Vizinhos se assustam de manhã


ante os destroços junto à porta:
- pareciam se amar tanto!

Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.

Amou-se um certo modo de despir-se,


de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.

No entanto, o amor bate em retirada


com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?


Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?

No quarto dos filhos


outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem

151
numa colagem de afetos natimortos.

O amor ruiu e tem pressa de ir embora


envergonhado.

Erguerá outra casa, o amor?


Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo


um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA (1992)


Poesia reunida 1965-1999. Porto Alegre: L&PM, 2004, v. 2.

152
ARS AMANDI

amar
amar
amar

qual ama

o nascituro a mama
o incendiário a chama
o opilado a lama

JOSÉ PAULO PAES [1973]

Um por todos (poesia reunida). São Paulo: Brasiliense, 1986.

153
Morte
SEÇÕES

Tudo que pensa passa

Ela veio chegando ao ritmo do pulso…

O corpo é que nem véu largado sobre um móvel

Ao gozo, ao gozo, amiga

Não te aflijas com a pétala que voa.

154
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.

Paulo Henriques Britto

155
AS COISAS QUE TE CERCAM, ATÉ ONDE

As coisas que te cercam, até onde


alcança a tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem

nem mesmo uma migalha de atenção,


essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa —
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.

O mais é enchimento, e se consome.


As tais Formas eternas, as Idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.

As testemunhas cegas da existência,


sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,

156
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(Não que isso tenha a mínima importância.)

PAULO HENRIQUES BRITTO [2004]

Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

157
ANSIOSAMENTE, A ÁSPERA LADEIRA

Ansiosamente, a áspera ladeira


subo, a fatal e ríspida subida,
que dizem ser pior que a descida,
ao escoar da hora derradeira...

Sigo essa estrela, pálida romeira,


que promete levar-me a uma outra vida...
Mas esse ideal de terra prometida
bem pode ser uma ilusão traiçoeira!

Sigo, apesar de ouvir a todo instante


uma voz d’entre as sombras malfazejas,
voz que me diz, palidamente triste:

– Embalde segues, doido caminhante!


O que existe, não queres nem desejas.
E aquilo que procuras, não existe.

EDUARDO GUIMARÃES [1908]

EDUARDO GUIMARÃES. A divina quimera. Org. e prefácio Monsueto Bernardi.


Porto Alegre: Globo, 1944.

158
ANIMAL BARBADO

Este animal que se rasura


como quem raspa a orelha do porco
para a feijoada de fim de semana,
este animal feroz e matutino,
como um auto-retrato,
com seus olhos 3 x 4,
observa a paisagem da janela
e do outro lado do vidro
está ele mesmo,
é ele a paisagem que envelhece
cada vez que a freqüenta.
Este homem ao espelho,
gilete de martírios e angústias violáceas,
barbeia seu minuto e sua morte,
exasperada e afiada servidão,
a consciência espumosa da pequena guilhotina.

RONALDO COSTA FERNANDES [2004]

Eterno passageiro. Brasília: Varanda, 2004.

159
QUANDO SE MORRE

Quando se morre
o estômago
é a primeira parte
que se dissolve
mas e os olhos?
sei que se fecham
e sob as pálpebras
(relaxadas)
se dilatam
mas as imagens
de que são feitas
as palavras
também não voltam
ao lugar
de onde vieram
somente os ossos
respondem
ao encanto
como um poema
em branco.

CONTADOR BORGES [2002]


O reino da pele. São Paulo: Iluminuras, 2002.

160
FOGO DOS RIOS
(Três fragmentos)

27

Vigia-se a morte
com o farol dos dias.
Mas ela vem chegando
viagem noite adentro
com a boca da luz
aberta no peito.

84-a

Descobri a morte aos poucos


imagens que ceifam como foices.
Repentinos amanheceres
torcidas árvores
e frutas podres.
Fui provando
seus sabores.

161
96

Amanhã estarei morto


indecifrável aquém dos sinais.
Planto em mim flores convictas
e atravessarei a noite montado
em centauros céleres.
Não esperarei o ritual das lamentações.
Urdi o fim que devia ser: luminarei.

FERNANDO PAIXÃO [1989]

Fogo dos rios. São Paulo: Brasiliense, 1989.

162
AS PERAS

As peras, no prato,
apodrecem.
O relógio, sobre elas,
mede
a sua morte?
Paremos a pêndula. De-
teríamos, assim, a
morte das frutas?
Oh as peras cansaram-se
de suas formas e de
sua doçura! As peras,
concluídas, gastam-se no
fulgor de estarem prontas
para nada.
O relógio
não mede. Trabalha
no vazio: sua voz desliza
fora dos corpos.

Tudo é o cansaço
de si. As peras se consomem
no seu doirado
sossego. As flores, no canteiro
diário, ardem,
ardem, em vermelhos e azuis. Tudo
desliza e está só.
O dia
comum, dia de todos, é a
distância entre as cousas.

163
Mas o dia do gato, o felino
e sem palavras
dia do gato que passa entre os móveis
é passar. Não entre os móveis. Pas-
sar como eu
passo: entre nada.

O dia das peras


é o seu apodrecimento.

É tranqüilo o dia
das peras? Elas
não gritam, como
o galo.
Gritar
para quê? se o canto
é apenas um arco
efêmero fora do
coração?

Era preciso que


o canto não cessasse
nunca. Não pelo
canto (canto que os
homens ouvem) mas
porque can-
tando o galo
é sem morte.

FERREIRA GULLAR [1954]


A luta corporal. Rio de Janeiro, José Olympio, 1994.

164
MORTO
A J. P. Sartre

morto
sem filho nem
árvore

livros só

enfim
a existência
feita essência:

JOSÉ PAULO PAES [1988]

Melhores poemas. Seleção de Davi Arriguci Jr. São Paulo: Global, 2000.

165
MEIOS DE TRANSPORTE

1
O câncer é aquele ônibus
que ninguém quer mas com que conta;
não se corre atrás dele,
mas quando ele passa se toma;

que ninguém quer mas sabe;


e que um dia ao sair-se do sono,
lá está, semi-surpresa,
quase pontual, no seu ponto.

2
Sem pontos de parada,
solto nas ruas como um táxi,
sem o esperar, querer,
sem ter por que, se toma o enfarte:

táxi que, de repente,


ao lado de quem não se pensava,
pára, no meio-fio,
toma, quem não o vira ou chamara.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO (1974)

Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

166
A FLOR E A FONTE

"Deixa-me, fonte!" Dizia


A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.

"Deixa-me, deixa-me, fonte!"


Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte..."
"Não me leves para o mar."

E a fonte, rápida e fria,


Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.

"Ai, balanços do meu galho,


"Balanços do berço meu;
"Ai, claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu..."

Chorava a flor, e gemia,


Branca, branca de terror,
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.

"Adeus, sombra das ramadas,


"Cantigas do rouxinol;
"Ai, festa das madrugadas,
"Doçuras do pôr-do-sol;

167
"Carícia das brisas leves
"Que abrem rasgões de luar...
"Fonte, fonte, não me leves,
"Não me leves para o mar!..."
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...

VICENTE DE CARVALHO [1902].

Poemas e canções. São Paulo: Saraiva, 1965

168
O TEMPO

Espantados olhos
vasculhando a treva
(A ignorância nossa
do mistério é ceva.)

Num lugar da noite


(ao lado ou cá dentro)
dormem o ontem, o hoje,
o amanhã e o sempre.

Onde a espada que


a armadura rompa,
onde a lança que

desmantele o escudo e
mostre as faces do
tempo simultâneas?

ANDERSON BRAGA HORTA [1971]

Fragmentos da paixão. São Paulo: Massao Ohno, 2000.

169
CONSTAT

Me dou conta
neste exato momento
de que sou o homem
que vem pensando
desde o início do Tempo
desde sempre
o mesmo homem
vindo sempre
vindo até este ponto
e este ponto
neste exato momento
se desconcentra.

CARLOS LORIA [1988]

Aborigem. Salvador: Código, 1988.

170
VISÃO DO ÚLTIMO TREM SUBINDO AO CÉU (fragmento)

IX

O último trem da Terra chega à região dos mortos.


Uma sonorização extinta penetra pelos ouvidos surdos
— Vibração sem música da treva inteira.
Composição de todas as fases e freqüências
De ondas que, invertidas, se desenham no Mundo
Nas mais súbitas e inesperadas imagens de Líssajous.
— É a sombra soprando nos tubos magnéticos
Que o universo abrangem.
— Som de cordas ligadas a móveis suportes,
a suportes incertos…
Fricções, raspagens, torções, percussões, ponteios, pulsações.

Fuscos ü
ý reflexos sônicos de cordas infirmes
Fantásticos þ

Fricções de arcos em violinos de ausentes cravelhas


Dedilhados sobre fios soltos… em vôo.

Entramos no Extremo do aqui e agora


Estamos no não “do não ser” e no não ser,
Do agora e além da expansão de Tudo.
E a expansão no vazio reflui, reverte sobre si mesma
Se volta, se faz avessa;
Sua sombra é sua luz.

171
O trem penetra num espaço de curvatura nula,
Interminavelmente nula.
Espaço fibrado sobre uma variedade curvi-pluri-universal.
— Região dos Mortos —

O trem se torna cada vez mais curto e mais opaco.


Está fora das galáxias, dos limites
Onde se perdeu a real natureza da expansão;
Está na região dos mortos onde
Não há mais brotar de dimensões;
E as florestas do crescer emurcheceram;
No entanto há cicatrizes de lembranças
E, dentro delas, pulsos a vibrar;
Há marcos de ação e movimento
Onde involutiva se pressente uma dor.

Região dos Mortos! Duas nuvens a ocupam:


Uma infinitamente clara (constituída de simples pontos brancos);
Outra ilimitadamente escura (constituída de pontos muito negros)
Pontos juntos e disjuntos (pontualmente paralelos)
(intimamente interpenetráveis)
Juntos: sem distância e sem contato.

O trem ao se chocar com as nuvens


Delas faz ressoar: explosões sônicas, inertes —
Que estavam fechadas dentro do som-imagem
— Contida música, oculta no som, no cerne do som —
Aquele que não se ouve na solidão-silêncio
— E os passageiros ouviram o que era provável de ouvir (dentro da nuvem clara)

Os choques dos remos da nave


Que voltava
Da ilha santa de Delos
Trazendo para Sócrates

172
O gosto da cicuta —
— E ouviram o que era possível de rezar
(dentro da nuvem escura)
A voz de Maria Caetana,
A que foi professora em Bolonha;
A que descobriu a Cúbica de Agnesi;
E professou depois no convento das Celestes.
A voz de Maria Caetana! Rezando?

O trem fugia, fugia através da região do esquecimento.


Os passageiros viram o que era parecer de ver

No pólen da Nuvem Negra


A figura aparecer de Adolf Hitler
E no claro pólen da Nuvem Branca
Em hábito de monja a Judia: Edith Stein
Consultando seus cadernos de filosofia.

Na nuvem escura, vocalises do soprano Galli-Curci


Cantando a Ária da Loucura.
— Somente ouvida na nuvem clara.

Nas gotas da nuvem escura — Jesus de Nazaré


Nas gotas da nuvem clara — Maria Madalena
Sem poder tocá-lo.

Nos pontos negros da nuvem prefigura-se Mahatma Gandhi


E as cabrinhas que lhe deram o saboroso leite;
Nas gotas da clara nuvem, os homens
Que ele não pôde impedir de morrerem famintos.

Os passageiros do trem viram tudo que era de ouvir,


Tudo que era de refletir de ver,
Todo o perceber que vem do ver,

173
Todo o conhecer do sentir de ouvir.

— Entre os pingos das duas nuvens


— No vazio que fica portanto entre elas
Está um homem tranqüilamente pescando
Limpo, agora, de toda a merde do planeta
Onde morou: Alfred Jarry.
Está pescando todos os peixes
Pois usa dois anzóis: um na nuvem escura
outro na nuvem clara

Na limalha das duas nuvens-manchas


Resultantes da desintegração do último metal,
O que está além de todos, na Escala de Mendeleev,
Não distingui ninguém que, vivo, tivesse conhecido
Eu, Passageiro do Trem,
Do trem que agora transfoge a região dos mortos,
Eu, passageiro do último trem já próximo do céu.

(sinal de surpresa)

Por fim!…
— Ninguém — Ninguém! — ouço falar, de súbito,
Uma voz irônica e profunda.
Teria sido a de um Rei, de um Imperador?
De um Presidente de República?

Ninguém!
O único meu conhecido no fim para-chegar
Do último trem.

174
X

Pois tudo que é vivido é apenas sabido


E tudo que é sabido é apenas sonhado
Saber do saber físico
Sonho do sonhar eterno
— Termo da vida-matéria; região dos sonhos.

Sonho
Sonho do sonho
Sonho do sonho do sonho.
…………………………… (Tudo é sonhado)

Viver é saber, sentir, sonhar.


Sonho: Gás da Razão fictícia.
Razão, simples registro da memória dos homens
Que não se perderá no Universo

175
Pois nunca foi conhecida,
E dela nada se sabe entre as estrelas.

Se o trem partisse mais cedo;


Se fosse outra a locomotiva escolhida
e revelada;
Se passasse ao longo de outros quintais;
Se outros passageiros conduzisse.
Se o trem partisse de madrugada,
Se passasse, ao amanhecer, pelos mesmos subúrbios
Assistindo o acordar do povoado;
Ou com o sol e o azul do meio-dia;
Sentisse a monotonia do entre-tarde e manhã.
Para qualquer dessas condições
Outros seriam os pontos-acontecimentos
De sua viagem.
Seriam outros o sonho e o sonho do sonho.
Outra a visão do, ao céu chegando,
último Trem.

lua lenda sobre perene ü


ï
turvo sonho canto macio ï
ouro luto aberta nuvem ï
ï
fecunda longe ríspido cantar ï
ý motivo fonético
rara terra sofre indefinida ï
ï
coro rio azul lâmpada bigorna ï
ï
figos cloro seres densidade ï
þ

Quase totalmente apagado


Totalmente no adormecido do apagado
O trem transurge da região do sonho
Opaco ü reduzido quase a um ponto-superfície
ý
Turvo þ um ponto supérfluo

176
E diminui de tamanho, diminui, se condensa
Ao estado super-nuclear; diminui, minidui, nuidimi.

O trem e o seu passageiro são agora uma célula


Semelhante à que esteve no ventre materno:
Ao céu findando, chegando, nascendo.
Vendo a primeira luz,
Ouvindo a primeira voz;
Sonhando o sonho simples da primeira alegria
Dentro do primeiro sono.

E continua e diminua, diminui, infradiminui


E a reduzir-se, a durezir-se, a ziredur-se…
O trem chegou além da região do sonho
Totalmente apagado; passou,
Como uma partícula neutra,
Numa câmara de névoas.

XI

Enfim como uma partícula neutra,


Um simples ponto: menos do que o corte de duas retas
Um simples ponto sem a sua reversão
sem a sua inflexão
sem a sua vizinhança.
— os que estavam na estação,
quando o trem partiu —
e que se fizeram mim mesmo
Eterno ponto de cada um.

O trem caiu sobre uma superfície suprema


E nela se integrou no para-sempre.
Caiu num corpo de substâncias infinitas:

177
Um Toro, um Anel, um Elo de corrente
Uma Aldrava, uma Argola, uma Algema

Um toro cortado, torcido e recomposto


Num campo de direções sem módulos
sem fronteiras
sem sentidos
Representante de todos os números:
Os que são, e os que poderão/poderiam ser.
— E no âmago desse espaço, último e total
Sem métrica e metria, sem ordem física,
Sem orientação e sem origem;
— No centro dos centros, do anúncio de todos os possíveis,
Erguido em Glória, em Majestade, em Grandeza,
O Acontecimento Branco.
Divino? Eterno.

Rio, 1970

JOAQUIM CARDOZO [1970]

Poesias completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

178
Ela veio chegando ao ritmo do pulso,
sem pressa nem vagar e sem perder o impulso

Ferreira Gullar

179
COMO VEM GUERREIRA!

Como vem guerreira


a morte espantosa!
Como vem guerreira
e temerosa!

Suas armas são doença


com que a todos acomete;
Por qualquer lugar se mete
sem nunca pedir licença;
Tanto que se dá a sentença
da morte espantosa,
Como vem guerreira
E temerosa!

Por muito poder que tenha,


ninguém pode resistir.
Dá mil voltas, sem sentir,
mais ligeira que uma azenha.
Quando manda Deus que venha
a morte espantosa,
como vem guerreira
e temerosa!

A uns caça quando comem,


sem que engulam o bocado.
Outros mata no pecado,
sem que o gosto nele tomem.
Quando menos teme o homem,

180
a morte espantosa
como vem guerreira
e temerosa!

A ninguém quer dar aviso,


porque vem como ladrão;
Se não acha contrição,
Então mata mais de siso.
Quando toma de improviso,
a morte espantosa
como vem guerreira
e temerosa!

Quando esperas de viver


longa vida, mui contente,
ela chega de repente,
sem deixar-te aperceber.
Quando mostra seu poder,
a morte espantosa
como vem guerreira
e temerosa!

Tudo lhe serve de espada,


com tudo pode matar;
em todos acha lugar
para dar sua estocada.
Ah terrível bombardada
da morte espantosa!
Como vem guerreira
e temerosa!

A primeira morte mata


o corpo com quanto tem.
A segunda, quando vem,

181
a alma e o corpo arrebata,
Co’o inferno se contrata
a morte espantosa:
como vem guerreira
e temerosa!

JOSÉ DE ANCHIETA [15-- ]

Lírica Portuguesa e Tupi. Tradução de Armando Cardoso. São Paulo: Loyola, 1984.

182
NOVA CONCEPÇÃO DA MORTE

Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso


na carne, como sempre ocorre aos seres vivos;

um aviso, um sinal, que não lhe veio de fora,


mas do fundo do corpo, onde a morte mora,

ou dizendo melhor, onde ela circula


como a eletricidade ou o medo, na medula

dos ossos e em cada enzima, que veicula,


no processo da vida, esse contrário: a morte

(decidida sem que se saiba de que sorte


nem por quem nem por que nem por que côrte

de justiça, uma vez que era morte de dentro


não de fora (como as que causa externa engendra)

Ela veio chegando ao ritmo do pulso,


sem pressa nem vagar e sem perder o impulso

que empurra a vida para o desenlace, para


o ponto onde afinal o sistema dispara

183
cortando a luz do corpo — e a máquina pára.
Muito antes, porém, que ocorra esse colapso,

chega o aviso da morte, indecifrado, lapsus


linguae, sinal errado ou mal pronunciado

no código de sais, ou não compreendido


deliberadamente: a gente faz ouvido

de mercador à voz que a morte noticia


pra não ouvi-la, já que não tem serventia

ouvi-la e assim saber que a hora está marcada.


Só para entristecer-se ante a noite estrelada?

Essa é a morte de dentro, endógena; a de fora,


a exógena, provém do acaso, se elabora

na natureza ou então no tráfego ou no crime


e implacável chega, e nada nos exime

da injusta sentença, a moral impoluta,


a bondade, o latim, nossa boa conduta,

nada: a pedra que cai ou a bala perdida


sem razão nos atinge e acaba com a vida.

Diz-se que dessa morte, a notícia também


nos chega, aleatória antecipação,

na pronúncia da brisa e dos búzios, além


do que se lê na carta e nas linhas da mão.

184
Mas, se vinda de dentro ou fora, não se altera
essencialmente o fato: a morte, por si, gera

um processo que altera as relações de espaço


e tempo e modifica, inverte, em descompasso,

o curso natural da vida: uma vertigem


arrasta tardes, sóis, desperta da fuligem

vozes, risos, manhãs já de há muito apagadas,


e as precipita velozmente, misturadas,

para dentro de si, como fazem as estrelas


ao morrer, cuja massa, ao ser prensada pelas

forças de contração da morte, se reduz


a um buraco voraz de que nem mesmo a luz

escapa, e assim também com as pessoas ocorre.


E é por essa razão que quando um homem morre,

alguém que esteja perto e que apure o ouvido


certamente ouvirá, como estranho alarido,

o jorrar ao revés da vida que vivera


até tornar-se treva o que foi primavera.

FERREIRA GULLAR [1999]

Muitas vozes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.

185
COMO A MORTE SE INFILTRA

Certo dia, não se levanta,


porque quer demorar na cama.

No outro dia ele diz por quê:


é porque lhe dói algum pé.

No outro dia o que dói é a perna,


e nem pode apoiar-se nela.

Dia a dia lhe cresce um não,


um enrodilhar-se de cão.

Dia a dia ele aprende o jeito


em que menos lhe pesa o leito.

Um dia faz fechar as janelas:


dói-lhe o dia lá fora delas.

Há um dia em que não se levanta:


deixa-o para a outra semana,

outra semana sempre adiada,


que ele não vê por que apressá-la.

Um dia passou vinte e quatro horas


incurioso do que é de fora.

186
Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.

Um dia, pensou: respirar,


eis um esforço mais que evitar.

Quem deixou-o, a respiração?


Muda de cama. Eis seu caixão.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO [1985]

Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

187
A MORTE

A morte fecha o cerco.


Pouco a pouco o seu cheiro
se alastra em labaredas
e gruda-se aos afrescos,

ao mármore, aos tapetes,


às úmidas paredes,
às cinzas da lareira,
à poeira das gavetas.

A morte e seu cortejo


de esgares e trejeitos,
de seráficos dedos
cruzados sobre o peito.

A morte, essa abadessa


que vela desde o berço
e que, pontual e neutra,
é a única certeza.

Ela espia, o olho aceso,


sua álgida colheita:
são milhares de alqueires
em que o homem a semeia.

Ninguém lhe abre o segredo:


é o fim? Será o começo?

188
Não há nenhum espelho
que a mostre por inteiro.

Inútil que lhe dês


convite ou endereço;
ela há de estar à mesa
de tua última ceia,

esquiva às guloseimas
e a tudo o que não seja
teu híspido esqueleto
servido na bandeja.

A morte fecha o cerco.


Há em tudo um gosto acerbo
de ossos e veias secas.
A vida sabe a pêsames.

IVAN JUNQUEIRA [1987]

O grifo. São Paulo: Nova Fronteira, 1987.

189
MAIS FIEL QUE A SOMBRA É A MORTE

Mais fiel que a sombra é a morte.


Aquela que não queres ser vem e se perde.
E tu gritas: — Vida!
Mais fiel que a sombra é a morte.

ROSAS FLORESCERAM EM MEUS CABELOS

Rosas floresceram em meus cabelos.


Negras rosas do Egito.
Meu corpo espera há séculos
e a alma o presencia.
Só a morte compreende.

MARIA ÂNGELA ALVIM [1950]

Poemas. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.

190
SE

se
nasce
morre nasce
morre nasce morre
renasce remorre renasce
remorre renasce
remorre
re re
desnasce
desmorre desnasce
desmorre desnasce desmorre
nascemorrenasce
morrenasce
morre
se

HAROLDO DE CAMPOS [1958]

Poesia concreta. Iumna Simon & Vinicius Dantas, org. São Paulo: Abril Educação,
1982. (Literatura Comentada)

191
DECADÊNCIA

Afinal, é o costume de viver


Que nos faz ir vivendo para a frente.
Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente
O hábito melancólico de ser...

Vai-se vivendo... é o vício de viver...


E se esse vício dá qualquer prazer à gente,
Como todo prazer vicioso é triste e doente,
Porque o Vício é a doença do Prazer...

Vai-se vivendo... vive-se demais,


E um dia chega em que tudo que somos
É apenas a saudade do que fomos...

Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos


Que somos sombras, que já não somos mais nada
Do que os sobreviventes de nós mesmos!...

RAUL DE LEONI [1928]

Luz mediterrânea. São Paulo: Martins, 1959

192
O corpo é que nem véu largado sobre um móvel
Mário de Andrade

193
O EPITÁFIO QUE NÃO FOI GRAVADO

Todos sentiram quando a morte entrou


com um frêmito apressado de retardatária.

A que tinha de morrer, — a que a esperava, —


fechou os olhos
fatigados de assistirem ao mal-entendido da vida.

Os que a choravam sabiam-na sem pecado,


consoladora dos aflitos,
boca de perdão e de indulgência,
corpo sem desejo,
voz sem amargor.

A que tinha de morrer fechou os olhos fatigados,


mas tranqüilos...
Porque os que a choravam nunca saberiam
o rancor sem perdão de sua boca,
o desejo saciado de seu corpo,
o amargor de sua voz,
a sua angústia de arrastar até o fim a alma postiça que lhe fizeram,
o seu cansaço imenso de abafar, secretos, na carne ansiosa,
a perfeição e o orgulho de pecar.

194
A que tinha de morrer fechou os olhos para sempre
e os que a choravam
nunca souberam de alguém que foi de todos junto ao leito
à hora do exausto coração parar
o mais distante,
o mais imóvel,
o que não soluçou
o que não pôde erguer as pálpebras pesadas,
o que sentiu clamar no sangue o desespero de sobreviver,
o que estrangulou na garganta o grito dilacerado do solitário,
o que depôs, sobre a serenidade da morte purificadora,
a redenção do silêncio,
como uma pedra votiva de sepulcro.

FELIPE D’OLIVEIRA [1926]

Obra completa. Lígia Militz da Costa, Maria Berenice Moreira e Pedro Brum Santos,
org. Porto Alegre: IEL; Santa Maria: UFSM, 1990.

195
O MORTO

A chuva lavou
As pessoas do morto
E lavou o morto
Com a sua fisionomia
De torto
E com seus pés de morto
Que arrastava um rio seco
E suas mãos de morto
Onde se dependurou
Insistente, um gesto oco.
À noite enterrou-se
O homem
Na raiz de um muro
Com sua roupa de corpo.
E a chuva chegou no horto
Desse vitorioso
Homem morto
Enormes violetas
E uns caramujos férteis…

196
II

Veja esse morto como esgotou um por um seus segredos.


Sentado como um doutor
Veja que respeito nutre pelo silêncio…
Que morto!
Um piano dormindo no fundo de um poço
Não é mais cômodo do que um homem morto num
porto.
Veja que comodidade:
Ele não usará seus dedos secos nunca mais para pegar
em moças…
Que morto!

MANOEL DE BARROS [1969]

Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1990.

197
O MORTO

Qual a verdade que o morto


conheceu, além dos muros,
e lhe fez cerrar os lábios,
estrangulando a palavra
porventura essencial?
Enfim livre da cegueira,
que paisagem contemplou
para que o rosto lhe turve
tão rude ruga de mágoa?

Soube talvez que melhor


fora mostrar-se de todo:
desvelar inteira a face,
seus amores e seus ódios,
e não (de medo) exilar-se
no recôncavo do sonho,
onde fundava universos
em que só fulgisse a luz
de fabulárias auroras.

Certo lhe amarga saber


que inútil fora o tormento
de escolher entre dois rumos;
que o soberbo privilégio
sobre a pedra, sobre o pássaro,

198
de assombrar-se ante si mesmo,
está proscrito. Que agora
irmanados inexistem.

Dói-lhe esta mágoa profunda:


a de perceber-se enigma
e não se ter decifrado.
Talvez a mágoa do morto
seja mais funda: saber
ter sido apenas um erro
no pensamento de Deus.

THIAGO DE MELLO [1952]

Narciso cego. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952

199
VELÓRIO

Bichos empalhados
pequenos ventiladores incidindo
sobre o dossel cujo cortinado —
em tiras —
fora recortado à tesoura
Na cama a morta
À meia-noite apareceu a grande pintora
também passou por lá o grande poeta
acompanhado de seu protegido
(de que só me lembro o nome de guerra: Jungle)
Moço de classe média
entretenu
nunca fez nada
De uma beleza estonteante
que não suportou a perda da mocidade
e um dia se matou

FRANCISCO ALVIM [2000]

Poemas [1968-2000]. São Paulo: 7Letras/Cosac Naify, 2004 (Ás de colete).

200
UM MORTO, BARCO À DERIVA

Um morto, barco à deriva


já sem ponto de partida,
também livre de um final
que enfim começa outra frase
sem arriscar solução.

É feito ilha que ele vai


boiando em seu próprio tempo,
mar que quando se desata
não encrespa, água em ondas,
nem arrebenta represas.

De repente tudo fica


como se montasse guarda,
imóvel ao passar pastoso
mais pesado do que a vida,
impossível de barrar.

É peso da ausência de alma,


aquela mão que o prendia
ao corpo do qual liberto
esquece a forma da letra,
abole todas as pautas.

201
Ele exige muito espaço
nesse desfluir redondo,
germinação do vazio,
fonte que não se rastreia,
sede que não se interroga

e não bebe, é absoluta.

MOACIR AMÂNCIO [1992]

Do objeto útil. São Paulo: Iluminuras, 1992.

202
ÓRFICO SCIENCE

da primeira vez que chico science desceu ao hades


onde mora o maracatu
subiu com um som de zumbis

da segunda vez não conseguiu


chegou partiu
a cabeça em pedaços

da primeira vez que mergulhou no mangue


caranguejou-se

na segunda o cara anjou-se

decerto morreu olhando o mesmo mangue


caranguemusos sujos de sangue

seria siri sua euridicereia?

RICARDO SCHMITT CARVALHO [2002]

Lascas. Curitiba: Medusa, 2002.

203
O DEFUNTO

A Afonso Arinos de Melo Franco

Quando morto estiver meu corpo


evitem os inúteis disfarces,
os disfarces com que os vivos,
só por piedade consigo,
procuram apagar no Morto
o grande castigo da Morte.
Não quero caixão de verniz
nem os ramalhetes distintos,
os superfinos candelabros
e as discretas decorações.

Eu quero a morte com mau gosto!

Dêem-me coroas de pano,


Dêem-me flores de roxo pano,
angustiosas flores de pano,
enormes coroas maciças,
como enormes salva-vidas,
com fitas negras pendentes.

E descubram bem minha cara:


que a vejam bem os amigos.

204
Que a não esquecem os amigos
e ela lance nos seus espíritos
a incerteza, o pavor, o pasmo…
E a cada um leve bem nítida
a idéia da própria morte.

Descubram bem esta cara!

Descubram bem estas mãos:


Não se esqueçam destas mãos!
— Meus amigos! olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
em que sexos se demoraram
seus sabidos quirodáctilos?
Foram nelas esboçados
todos os gestos malditos:
até furtos fracassados
e interrompidos assassinatos.

— Meus amigos! olhem as mãos


que mentiram às vossas mãos…
Não se esqueçam!
elas fugiram
da suprema purificação
dos possíveis suicídios…

— Meus amigos! olhem as mãos,


as minhas e as vossas mãos!

Descubram bem minhas mãos!

Descubram todo o meu corpo.


Exibam todo o meu corpo
e até mesmo do meu corpo

205
as partes excomungadas,
as sujas partes sem perdão.

— Meus amigos! olhem as partes…


Fujam das partes.
Das punitivas, malditas partes…

Eu quero a morte nua e crua


terrífica e habitual,
com o seu velório habitual.

— Ah! o seu velório habitual.

Não me envolvam num lençol:


a franciscana humildade,
bem sabeis que não se casa,
com meu amor pela Carne,
com meu apego ao Mundo.

E quero ir de casimira:
De jaquetão com debrum,
calça listrada, plastron…
E os mais altos colarinhos.

Dêem-me um terno de ministro


ou roupa nova de noivo…
E assim solene e sinistro,
quero ser um tal defunto,
um morto tão acabado,
tão aflitivo e pungente,
que sua lembrança envenene
o que restar aos meus amigos
de vida sem minha vida.

206
— Meus amigos! Lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
deste pobre terrível morto
que vai se deitar para sempre,
calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão
os penetras escorraçados,
as prostitutas recusadas,
os amantes despedidos,
como os que saem enxotados
e tornariam sem brio
a qualquer gesto de chamada.

—Meus amigos! Tenham pena,


senão do morto, ao menos
dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
sapatos pretos de verniz.
Olhem bem estes sapatos
e olhai os vossos também.

Rio, 23-VII-38.

PEDRO NAVA [1938]

Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos. Manuel Bandeira. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

207
MOMENTO NUM CAFÉ

Quando o enterro passou


Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos.

Estavam todos voltados para a vida


Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado


Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição


E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

MANUEL BANDEIRA [1936]

Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.

208
A UMA TAÇA FEITA DE UM CRÂNIO HUMANO
(Traduzido de Byron)

“Não recues! De mim não foi-se o espírito…


Em mim verás — pobre caveira fria —
Único crânio, que ao invés dos vivos,
Só derrama alegria.

Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte


Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!… que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.

Mais val guardar o sumo da parreira


Do que ao verme do chão ser pasto vil;
— Taça — levar dos Deuses a bebida,
Que o pasto do reptil.

Que este vaso, onde o espírito brilhava,


Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro
…Podeis de vinho o encher!

Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra taça,


Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra,
E ébria folgando profanar teus ossos.

E por que não? Se no correr da vida

209
Tanto mal, tanta dor aí repousa?
É bom fugindo à podridão do lodo
Servir na morte enfim p’ra alguma coisa!…”

Bahia, 15 de dezembro de 1865.

CASTRO ALVES [1870]

Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

210
VIDA OBSCURA

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,


Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste no silêncio escuro


A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,


Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos


Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!

CRUZ E SOUSA [1905]

Obras completas. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1923.

211
IMPROVISO DO RAPAZ MORTO

Morto, suavemente ele repousa sobre as flores do caixão.

Tem momentos assim em que a gente vivendo


Esta vida de interesses e de lutas tão bravas,
Se cansa de colher desejos e preocupações.
Então pára um instante, larga o murmúrio do corpo,
A cabeça perdida cessa de imaginar,
E o esquecimento suavemente vem.
Quem que então goze as rosas que o circundam?
A vista bonita que o automóvel corta?
O pensamento que o heroiza?…
O corpo é que nem véu largado sobre um móvel,
Um gesto que parou no meio do caminho,
Gesto que a gente esqueceu.
Morto, suavemente ele se esquece sobre as flores do caixão.

Não parece que dorme, nem digo que sonhe feliz, está morto.
Num momento da vida o espírito se esqueceu e parou.
De repente ele assustou com a bulha do choro em redor,
Sentiu talvez um desaponto muito grande
De ter largado a vida sendo forte e sendo moço,
Teve despeito e não se moveu mais.
E agora ele não se moverá mais.
Vai-te embora! vai-te embora, rapaz morto!
Oh, vai-te embora que não te conheço mais!
Não volta de-noite circular no meu destino
A luz da tua presença e o teu desejo de pensar!

212
Não volta oferecer-me a tua esperança corajosa,
Nem me pedir para os teus sonhos a conformação da Terra!

O universo muge de dor aos clarões dos incêndios,


As inquietudes cruzam-se no ar alarmadas,
E é enorme, insuportável minha paz!
Minhas lágrimas caem sobre ti e és como um Sol quebrado!
Que liberdade em teu esquecimento!
Que independência firme na tua morte!
Oh, vai-te embora que não te conheço mais!

(1925)

MÁRIO DE ANDRADE [1930]

Poesias completas. Belo Horizonte:Vila Rica, 1993.

213
MORTE DA ÍNDIA

Está morta agora. Não poderá mais fugir


Não poderá mais fugir, rindo selvagem.
Está morta. Tem os pés frios, os olhos fechados
As mãos estão cruzadas. Tudo morto.
Menos os cabelos, os cabelos estão vivos,
São vermelhos, estão vivos e continuarão a crescer.

Olho a morta. E lembro sua maldade livre


Lembro sua beleza desigual e ágil
Lembro o perfume de jasmim de uma noite
Em que a quis tomar nos braços e me contive.
Agora o repouso trouxe para ela uma inocência impressionante,
Ficou inocente. Vi agora que era uma criança!
Está triste tudo. O dia vem nascendo sem sol
O vento matinal entra frio pelas janelas.
Vejo-a imóvel. A cruz sobre seu coração virgem
Flores sobre seu corpo queimado e bárbaro.
A morte como que aumentou sua beleza diferente.
Há no meu coração um grande sossego final.
Penso que não poderá mais fugir, ágil,
Correndo pela mata, escondendo-se misteriosamente.
Sei bem onde ela está. Irei vê-la sempre.
Rezarei humilde pela paz da sua alma que era natural
E sem espiritualidade nenhuma, espontânea como as árvores
Alma úmida como a relva das madrugadas.

Sua morte me dá uma liberdade vertiginosa

214
Respiro o ar da manhã com força e não choro
No entanto sei que vão levá-la da minha esperança,
Sei que me perderei morto também vivendo,
Mas só de contemplá-la neste momento, estou feliz.
Me vingo da sua maldade que era impetuosa e simples.
Lá embaixo está o mar, os rochedos e a espuma.
Lá embaixo está o mar, o mar de ondas enormes.
Quando fechou os olhos e ficou imóvel, sua alma
Desceu a montanha, entrou pelo mar adentro como um raio.
Um grande frio me acordou. A noite morria.
Já a vi morta. Sua mão está pendente da rede.
Foi uma flor misteriosa que se perdeu e nunca mais florirá.
Foi a última flor de uma espécie desaparecida. Lembro do seu perfume.
Está morta. O sol não virá hoje. Tudo está quieto.
Meu coração está parado. Meus olhos fixam seu corpo.
Os seios pequenos. As mãos em cruz. Os lábios. Tudo morto.
Menos os cabelos. Sua beleza está fria. Sinto-me inteiramente lúcido.

AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT [1934]

Canto da noite. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934.

215
OS MORTOS

Na ambígua intimidade
que nos concedem
podemos andar nus
diante de seus retratos.
Não reprovam nem sorriem
como se neles a nudez fosse maior.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1962)

Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

216
QUANDO EU MORRER

Eu morro, eu morro. A matutina brisa


Já não me arranca um riso. A fresca tarde
Já não me doura as descoradas faces
Que gélidas se encovam.
Junqueira Freire

Quando eu morrer… não lancem meu cadáver


No fosso de um sombrio cemitério…
Odeio o mausoléu que espera o morto
Como o viajante desse hotel funéreo.

Corre nas veias negras desse mármore


Não sei que sangue vil de messalina,
A cova, num bocejo indiferente,
Abre ao primeiro a boca libertina.

Ei-la a nau do sepulcro — o cemitério…


Que povo estranho no porão profundo!
Emigrantes sombrios que se embarcam
Para as plagas sem fim do outro mundo.

Tem os fogos — errantes — por santelmo.


Tem por velame — os panos do sudário…
Por mastro — o vulto esguio do cipreste,
Por gaivotas — o mocho funerário…

Ali ninguém se firma a um braço amigo

217
Do inverno pelas lúgubres noitadas…
No tombadilho indiferentes chocam-se
E nas trevas esbarram-se as ossadas…
Como deve custar ao pobre morto
Ver as plagas da vida além perdidas,
Sem ver o branco fumo de seus lares
Levantar-se por entre as avenidas!…

Oh! perguntai aos frios esqueletos


Por que não têm o coração no peito…
E um deles vos dirá “Deixei-o há pouco
De minha amante no lascivo leito.”

Outro: “Dei-o a meu pai”. Outro: “Esqueci-o


Nas inocentes mãos de meu filhinho”…
…Meus amigos! Notai… bem como um pássaro
O coração do morto volta ao ninho!…

São Paulo, março de 1869.

CASTRO ALVES [1870]

Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

218
OS NOMES

Duas vezes se morre:


Primeiro na carne, depois no nome.
A carne desaparece, o nome persiste mas
Esvaziando-se de seu casto conteúdo
— Tantos gestos, palavras, silêncios —
Até que um dia sentimos,
Com uma pancada de espanto (ou de remorso?),
Que o nome querido já nos soa como os outros.

Santinha nunca foi para mim o diminutivo de Santa.


Nem Santa nunca foi para mim a mulher sem pecado.
Santinha eram dois olhos míopes, quatro incisivos claros à flor da boca.
Era a intuição rápida, o medo de tudo, um certo modo de dizer “Meu Deus, valei-me”.

Adelaide não foi para mim Adelaide somente,


Mas Cabeleira de Berenice, Inominata, Cassiopéia.
Adelaide hoje apenas substantivo próprio feminino.
Os epitáfios também se apagam, bem sei.
Mais lentamente, porém, do que as reminiscências
Na carne, menos inviolável do que a pedra dos túmulos.

MANUEL BANDEIRA [1952]


Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.

219
CONVÍVIO

Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós
e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil.
Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama tempo.
E essa eternidade negativa não nos desola.
Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós, é vida não obstante.
E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco.

Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nossos atuais habitantes
E nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!
A mais tênue forma exterior nos atinge.
O próximo existe. O pássaro existe.
E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que disfarçados…

Há que renunciar a toda procura.


Não os encontraríamos, ao encontrá-los.
Ter e não ter em nós um vaso sagrado,
um depósito, uma presença contínua,
esta é nossa condição, enquanto
sem condição transitamos
e julgamos amar
e calamo-nos.

220
Ou talvez existamos somente neles, que são omissos, e nossa existência,
apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1951)

Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

221
VOZES DA MORTE

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,


Tamarindo da minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!


E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!


E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,

Na multiplicidade dos teus ramos,


Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos!

AUGUSTO DOS ANJOS [1912]

Eu e outras poesias. Edição preparada por A. Arnoni Prado. São Paulo: Martins Fontes,
1994. (Poetas do Brasil)

222
Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas
A cada instante te oferece a cova
Junqueira Freire

223
MARGEM

Orfeu tange a lira


Eurídice e ele estão vivos
Estão vizinhos da morte
mas ainda vivem e os que estão perto também vivem

Atrás deles há um rio


onde os mortos mergulham
há uma barca e reflexos sombrios na água
Na outra margem
estão o castelo
o prazer e a morte

FRANCISCO ALVIM [1981]

Poemas (1968-2000). São Paulo: 7Letras/Cosac Naify, 2004 (Ás de colete).

224
LÁPIDE 1
epitáfio para o corpo

Aqui jaz um grande poeta.


Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.

LÁPIDE 2
epitáfio para a alma

aqui jaz um artista


mestre em desastres

viver
com a intensidade da arte
levou-o ao infarte

deus tenha pena


dos seus disfarces

PAULO LEMINSKI [1881]


La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991.

225
MOCIDADE E MORTE

E perto avisto o porto


Imenso, nebuloso e sempre noite
Chamado — Eternidade. —
Laurindo

Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate.


Dante.

Oh! eu quero viver, beber perfumes


Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh’alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n’amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma…
Nos seus beijos de fogo há tanta vida…
— Árabe errante, vou dormir à tarde
À sombra fresca da palmeira erguida.

Mas uma voz responde-me sombria:


Terás o sono sob a lájea fria.

226
Morrer… quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem…
Quero boiar à tona das espumas.
Vem! formosa mulher — camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas.
Minh’alma é a borboleta, que espaneja
O pó das asas lúcidas, douradas…

E a mesma voz repete-me terrível,


Com gargalhar sarcástico: — impossível!

Eu sinto em mim o borbulhar do gênio.


Vejo além um futuro radiante:
Avante! — brada-me o talento n’alma
E o eco ao longe me repete — avante! —
O futuro… o futuro… no seu seio…
Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após — um nome do universo n’alma,
Um nome escrito no Panteon da história.

E a mesma voz repete funerária:


Teu Panteon — a pedra mortuária!

Morrer — é ver extinto dentre as névoas


O fanal, que nas guia na tormenta:
Condenado — escutar dobres de sino,
— Voz da morte, que a morte lhe lamenta —
Ai! morrer — é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher — no visco
Da larva errante no sepulcro fundo.

Ver tudo findo… só na lousa um nome,

227
Que o viandante a perpassar consome.

E eu sei que vou morrer… dentro em meu peito


Um mal terrível me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada,
Só tem por braços uma cruz erguida.
Sou o cipreste, qu’inda mesmo flórido,
Sombra de morte no ramal encerra!
Vivo — que vaga sobre o chão da morte,
Morto — entre os vivos a vagar na terra.

Do sepulcro escutando triste grito


Sempre, sempre bradando-me: maldito! —

E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,


Quando a sede e o desejo em nós palpita…
Levei aos lábios o dourado pomo,
Mordi no fruto podre do Asfaltita.
No triclínio da vida — novo Tântalo —
O vinho do viver ante mim passa…
Sou dos convivas da legenda Hebraica,
O estilete de Deus quebra-me a taça.

É que até minha sombra é inexorável,


Morrer! morrer! soluça-me implacável.

Adeus, pálida amante dos meus sonhos!


Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!
Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga
Os prantos de meu pai nos teus cabelos.
Fora louco esperar! fria rajada
Sinto que do viver me extingue a lampa…
Resta-me agora por futuro — a terra,
Por glória — nada, por amor — a campa.

228
Adeus!… arrasta-me uma voz sombria
Já me foge a razão na noite fria!…

Recife, 7 de outubro de 1864.

CASTRO ALVES [1870]

Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

229
SEMPRE DISTANTE AMOR E PERTO ANSEIO

Sempre distante amor e perto anseio,


e triste descambar do adeus e a ida
em promessa que apenas prometida
tanto levou do ser que o fez alheio.

De outra morte morrer, opõe receio?


Morre um morto após si, já em seguida
à perda ao largo de alma tão perdida?
Mortos são os que morrem vida em meio.

São os vivos de amor, que amor esquece,


e, súbito, na morte amadurece
antes de tudo mais que vai morrendo.

Feridos numa dor que está vivendo


no arrastar em gemido e em passo tardo,
ter sido, mais que ser, terrível fardo.

MARIA ÂNGELA ALVIM [1962]

Poemas. Campinas: Editora da Unicamp, 1983.

230
ACALANTO

Noite após noite, exaustos, lado a lado,


digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,


fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho


na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,


a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, e um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos


no aconchego de um outro corpo morno.

PAULO HENRIQUES BRITTO [2000]

Macau. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

231
MINHA BELA MARÍLIA, TUDO PASSA

Minha bela Marília, tudo passa;


a sorte deste mundo é mal segura;
se vem depois dos males a ventura,
vem depois dos prazeres a desgraça.
Estão os mesmos Deuses
sujeitos ao poder do ímpio fado:
Apolo já fugiu do Céu brilhante,
já foi Pastor de gado.

A devorante mão da negra morte


acaba de roubar o bem, que temos;
até na triste campa não podemos
zombar do braço da inconstante sorte:
qual fica no sepulcro,
que seus avós ergueram, descansando;
qual no campo e lhe arranca os frios ossos
Ferro de torto arado.

Ah! enquanto os destinos impiedosos


não voltam contra nós a face irada,
façamos, sim, façamos, doce amada,
os nossos breves dias mais ditosos.
Um coração, que, frouxo
a grata posse de seu bem difere,
a si, Marília, a si próprio rouba,
e a si próprio fere.

232
Ornemos nossas testas com as flores,
e façamos de feno um brando leito;
prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
gozemos do prazer de sãos amores.
Sobre as nossas cabeças,
sem que o possam deter, o tempo corre;
e para nós o tempo, que se passa,
também, Marília, morre.

Com os anos, Marília, o gosto falta,


e se entorpece o corpo já cansado;
triste o velho cordeiro está deitado,
e o leve filho sempre alegre salta.
A mesma formosura
é dote, que só goza a mocidade:
rugam-se as faces, o cabelo alveja,
mal chega a longa idade.

Que havemos de esperar, Marília bela?


que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
e pode enfim mudar-se a nossa estrela.
Ah! não, minha Marília,
aproveite-se o tempo, antes que faça
o estrago de roubar ao corpo as forças,
e ao semblante a graça.

TOMÁS ANTONIO GONZAGA [1792]


Poesias e Cartas chilenas. Ed. Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: INL, 1952

233
A CAROLINA

Querida, ao pé do leito derradeiro


Em que descansas desta longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe o mesmo afeto verdadeiro


Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, — restos arrancados


Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos


Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

MACHADO DE ASSIS [1906]

Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar: 1992, v. 3.

234
NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas águas dum regato,


A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava…
— “Ai, não me deixes, não!

“Comigo fica, ou leva-me contigo


“Dos mares à amplidão:
“Límpido ou turvo, te amarei constante;
“Mas não me deixes, não!”

E a corrente passava; novas águas


Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer, curva na fonte:
— “Ai, não me deixes, não!”

E das águas que fogem incessantes


À eterna sucessão,
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
— “Ai, não me deixes, não!”

Por fim desfalecida e a cor murchada,


Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,


Leva-a do seu torrão;

235
A afundar-se dizia a pobrezinha:
— “Não me deixaste, não!”

GONÇALVES DIAS [1857]


Cantos. Edição preparada por Cilaine Alves da Cunha. São Paulo São Paulo: Martins
Fontes, 2001. (Poetas do Brasil)

236
LEMBRANÇA DE MORRER

No more! o never more!


Shelley

Quando em meu peito rebentar-se a fibra,


Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura


A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio


Do deserto o poento caminheiro…
Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro…

Como o desterro de minh’alma errante,


Onde fogo insensato a consumia,
Só levo uma saudade — é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade — é dessas sombras


Que eu sentia velar nas noites minhas…
E de ti, ó minha mãe! pobre coitada
Que por minhas tristezas te definhas!

237
De meu pai… de meus únicos amigos,
Pouco, bem poucos! e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,


Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei!… que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Ó tu, que à mocidade sonhadora


Do pálido poeta deste flores…
Se vivi… foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,


Verei cristalizar-se o sonho amigo…
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu! eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário


Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
— Foi poeta, sonhou e amou na vida.

Sombras do vale, noites da montanha,


Que minh’alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado
E no silêncio derramai-lhe um canto!

Mas quando preludia ave d’aurora


E quando, à meia-noite, o céu repousa,

238
Arvoredos do bosque, abri as ramas…
Deixai a lua pratear-me a lousa!

ÁLVARES DE AZEVEDO [1853]

Lira dos vinte anos. Edição preparada por Maria Lúcia dal Farra. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. (Poetas do Brasil)

239
TEMOR

Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas


A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olhe que a terra
Não sinta o nosso peso.

Deitemo-nos aqui. Abre-me os braços.


Escondamo-nos um no seio do outro:
Não há-de assim nos avistar a morte,
Ou morreremos juntos.

Não fales muito. Uma palavra basta


Murmurada em segredo ao pé do ouvido.
Nada, nada de voz, — nem um suspiro,
Nem um arfar mais forte…

Fala-me só com o revolver dos olhos.


Tenho-me afeito à inteligência deles.
Deixa-me os lábios teus, rubros de encanto,
Somente pra os meus beijos.

Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas


A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olha que a terra
Não sinta o nosso peso.

JUNQUEIRA FREIRE [1855]


Poesias completas. Rio de Janeiro: Z. Valverde, 1944.

240
À MORTE
(Rondó)

O prazer, a singeleza,
A beleza, que em ti via,
Num só dia, (ingrata sorte!)
Tudo a morte me roubou.

Esculpido na memória
Amo, ó Glaura, o teu semblante;
Nele vejo a cada instante
Essa glória que passou.

Volve o rio as puras águas,


Vai correndo e não descansa;
Assim foi minha esperança,
E só mágoas me deixou.

O prazer, a singeleza,
A beleza, que em ti via,
Num só dia, (ingrata sorte!)
Tudo a morte me roubou.

Neste bosque, em verde leito,


Que já foi por ti ditoso,
Leio o nome teu saudoso,
Que em meu peito o amor gravou.

Este monte, que já viste

241
Pelas Graças habitado,
Delas hoje desprezado,
Feio e triste se tornou.

O prazer, a singeleza,
A beleza, que em ti via,
Num só dia, (ingrata sorte!)
Tudo a morte me roubou.

Glaura chamo sem conforto,


E só Eco me responde:
Glaura busco e não sei onde,
Nem se morto ou vivo estou.

Assim triste passarinho


A consorte em vão procura,
Que farpada seta dura
Do seu ninho arrebatou.

O prazer, a singeleza,
A beleza, que em ti via,
Num só dia, (ingrata sorte!)
Tudo a morte me roubou.

Voraz tempo não consome,


Nem abranda meus pesares,
Nem eu deixo estes lugares,
Que o teu nome eternizou.

Entre os côncavos rochedos


Chorarei enternecido,
Onde amor compadecido
Meus segredos sepultou.

242
O prazer, a singeleza,
A beleza, que em ti via,
Num só dia, (ingrata sorte!)
Tudo a morte me roubou.

SILVA ALVARENGA [1799]

Obras poéticas. Edição preparada por Fernando Morato. São Paulo: Martins Fontes,
2005. (Poetas do Brasil)

243
VOU MORRENDO DEVAGAR

CANTIGAS

Eu sei, cruel, que tu gostas,


Sim gostas de me matar;
Morro, e por dar-te mais gosto,
Vou morrendo devagar:

Eu gosto morrer por ti;


Tu gostas ver-me expirar;
Como isto é morte de gosto,
Vou morrendo devagar:

Amor nos uniu em vida,


Na morte nos quer juntar;
Eu, para ver como morres,
Vou morrendo devagar:

Perder a vida é perder-te;


Não tenho que me apressar;
Como te perco morrendo,
Vou morrendo devagar:

O veneno do ciúme
Já principia a lavrar;
Entre pungentes suspeitas

244
Vou morrendo devagar:

Já me vai calando as veias


Teu veneno de agradar;
E gostando eu de morrer,
Vou morrendo devagar:

Quando não vejo os teus olhos,


Sinto-me então expirar;
Sustentado d’esperanças,
Vou morrendo devagar:

Os Ciúmes, e as Saudades
Cruel morte me vêm dar;
Eu vou morrendo aos pedaços,
Vou morrendo devagar:

É feliz entre as desgraças,


Quem logo pode acabar;
Eu, por ser mais desgraçado,
Vou morrendo devagar:

A morte, enfim, vem prender-me,


Já lhe não posso escapar;
Mas abrigado a teu Nome,
Vou morrendo devagar.

DOMINGOS CALDAS BARBOSA [1798]


Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1980.

245
EPITALÂMIO

uva
pensa da
concha oclusa
entre coxas
abruptas

teu
vinho sabe
a tinta espessa
de polvos noturnos

(falo
da noite
primeva nas águas
do amor da morte)

JOSÉ PAULO PAES [1967]

Melhores poemas. Seleção Davi Arriguci Jr. São Paulo: Global, 2000.

246
COUP D’ÉTRIER

É preciso partir! Já na calçada


Retinem as esporas do arrieiro;
Da mula a ferradura tacheada
Impaciente chama o cavaleiro;
A espaços ensaiando uma toada
Cincha as bestas o lépido tropeiro…
Soa a celeuma alegre da partida,
O pajem firma o loro e empunha a brida.

Já do largo deserto o sopro quente


Mergulha perfumado em meus cabelos.
Ouço das selvas a canção cadente
Segredando-me incógnitos anelos.
A voz dos servos pitoresca, ardente
Fala de amores férvidos, singelos…
Adeus! Na folha rota de meu fado
Traço ainda um — adeus — ao meu passado.

Um adeus! E depois morra no olvido


Minha história de luto e de martírio,
As horas que eu vaguei louco, perdido
Das cidades no tétrico delírio;
Onde em pântano turvo, apodrecido
D’íntimas flores não rebenta um lírio…
E no drama das noites do prostíbulo
É mártir — alma… a saturnal — patíbulo!

247
Onde o Gênio sucumbe na asfixia
Em meio à turba alvar e zombadora;
Onde Musset suicida-se na orgia,
E Chatterton na fome aterradora!
Onde, à luz de uma lâmpada sombria,
O Anjo-da-Guarda ajoelhado chora,
Enquanto a cortesã lhe apanha os prantos
P’ra realce dos lúbricos encantos!…

Abre-me o seio, ó Madre Natureza!


Regaços da floresta americana,
Acalenta-me a mádida tristeza
Que da vaga das turbas espadana.
Troca dest’alma a fria morbideza
Nessa ubérrima seiva soberana!…
O Pródigo… do lar procura o trilho…
Natureza! Eu voltei… e eu sou teu filho!

Novo alento selvagem, grandioso


Trema nas cordas desta frouxa lira.
Dá-me um plectro bizarro e majestoso,
Alto como os ramais da sicupira.
Cante meu gênio o dédalo assombroso
Da floresta que ruge e que suspira,
Onde a víbora lambe a parasita…
E a onça fula o dorso pardo agita!

Onde em cálix de flor imaginária


A cobra de coral rola no orvalho,
E o vento leva a um tempo o canto vário
D’araponga e da serpe de chocalho…
Onde a soidão é o magno estradivário…
Onde há músculos em fúria em cada galho,

248
E as raízes se torcem quais serpentes…
E os monstros jazem no ervaçal dormentes.

E se eu devo expirar… se a fibra morta


Reviver já não pode a tanto alento…
Companheiro! Uma cruz na selva corta
E planta-a no meu tosco monumento!…
Da chapada nos ermos… (o qu’importa?)
Melhor o inverno chora… e geme o vento.
E Deus para o poeta o céu desata
Semeado de lágrimas de prata!…

Curralinho, 1 de junho de 1870.

CASTRO ALVES [1870]

Espumas flutuantes & Os escravos. Edição preparada por Luiz Dantas e Pablo Simpson.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Poetas do Brasil)

249
SONETO

Bronze e brasa na treva: diamantes


pingam
(vibram)
lapidam-se
(laceram)
luz sólida sol rijo ressonantes
nas arestas acesas: não vos deram,
calhaus
(calhaus arfantes),
outro leito
corrente onde roçar-vos e suaves
vossas faces tornardes vosso peito
conformar
(como sino)
como as aves
em brado rebentando em cachoeira
dois amantes precípites brilhando:
tições em selvoscura: salto!
beira
de sudário ensopado abismo armando

amo r
amo r
amo r a
mo r te
r amo

de ouro fruta amargosa bala!

e gamo.

MÁRIO FAUSTINO [1957]


O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

250
Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.
Cecília Meireles

251
ESTUDO N.º 4

Quando se acalmará
Esta doença fértil a que chamam Vida?
Não quero soletrar o horizonte
Nem seguir o desenho da onda na areia,
Nem quero conversar flores no campo idílico.
Quero antes correr a cortina sobre mim mesmo,
Transcender minha história
E esperar que Deus remova meu corpo.
Quero tudo, ou nada:
Todas as paixões, todos os crimes, delícias e propriedades.
Ou então mergulhar num saco de cinzas,
Montar num avião de fogo, e nunca mais descer.

MURILO MENDES [1944]

As metamorfoses. Rio de Janeiro: Record, 2002.

252
ETERNIDADE

Ele reviu-se:
não era mais
nem corpo
nem sombra
nem escombros.

Como foi isso?


Tudo irreal:
um barco
sem mar
a boiar.

Ele sentiu-se:
recomeçava.
Vivera
morrendo
numa estrela.

Ele despiu-se
de quê?
De tudo
que amara.

253
Surdo-mudo
cegara.
Agora vê.

JORGE DE LIMA [1943]

Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, vol. 1.

254
4.º MOTIVO DA ROSA

Não te aflijas com a pétala que voa:


também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verás, só de cinza franzida,


mortas intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos,


ao longe, o vento vai falando em mim.

E por perder-me é que me vão lembrando,


por desfolhar-me é que não tenho fim.

CECÍLIA MEIRELES [1945]

Mar absoluto. Porto Alegre: Globo, 1945.

255
SONETO DO EMPINADOR DE PAPAGAIO

A nada aceito, exceto a eternidade,


nesta viagem ambígua que me leva
ao altar absoluto que, na treva,
espera pela minha inanidade.

O que sonhei, menino, hoje é verdade


de alva estação que em meu silêncio neva
o inverno de uma fábula primeva
que foi sol, cego à própria claridade.

Na hora do fim de tudo, separados


fiquem os dois comparsas do destino
que sabe a cinza após o último alento.

E a morte guarde em cova os injuriados


despojos do homem feito; que o menino
empina o papagaio, vive ao vento.

LÊDO IVO [1960]

Poesia completa 1940-2004. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

256
O ARRANCO DA MORTE

Pesa-me a vida já. Força de bronze


Os desmaiados braços me pendura.
Ah! já não pode o espírito cansado
Sustentar a matéria.

Eu morro, eu morro. A matutina brisa


Já não me arranca um riso. A rósea tarde
Já não me doura as descoradas faces,
Que gélidas se encovam.

O noturno crepúsculo caindo


Já não me lembra o escurecido bosque
Onde me espera a meditar prazeres
A bela que eu amava.

A meia-noite já não traz-me em sonhos


As formas dela — desejosa e lânguida —
Ao pé do leito, recostada em cheio
Sobre meus braços ávidos.

A cada instante o coração vencido


Diminui um palpite; o sangue, o sangue,
Que nas artérias férvido corria,
Arroxa-se e congela.

257
Ah! é chegada a minha hora extrema!
Vai meu corpo dissolver-se em cinza;
Já não podia sustentar mais tempo
O espírito tão puro.

É uma cena inteiramente nova.


Como será? — Como um prazer tão belo,
Estranho e peregrino, e raro, e doce,
Vem assaltar-me todo!

E pelos imos ossos me refoge


Não sei que fio elétrico. Eis! sou livre!
O corpo que foi meu, que lodo impuro!
Caiu, uniu-se à terra.

JUNQUEIRA FREIRE [1854]

Poesias completas. Rio de Janeiro: Z. Valverde, 1944.

258
VIVER

Quem nunca quis morrer


Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar… Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar…
e voar…
cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!

MÁRIO QUINTANA [1986]

Baú de espantos, Rio de Janeiro: Globo, 1986.

259
260
OS LADOS

Há um lado bom em mim.


O morto não é responsável
Nem o rumor de um jasmim.
Há um lado mau em mim,
Cordial como um costureiro,
Tocado de afetações delicadíssimas.

Há um lado triste em mim.


Em campo de palavra, a folha branca.

Bois insolúveis, metafóricos, tartamudos,


Sois em mim o lado irreal.

Há um lado em mim que é mudo.


Costumo chegar sobraçando florilégios,
Visitando os frades, com saudades do colégio.

Um lado vulgar em mim,


Dispensando-me incessante de um cortejo.
Um lado lírico também:
Abelhas desordenadas de meu beijo:
Sei usar com delicadeza um telefone,
Não me esqueço de mandar rosas a ninguém.

Um animal em mim,
Na solidão, cão,
No circo, urso estúpido, leão,

261
Em casa, homem, cavalo…

Há um lado lógico, certo, irreprimível, vazio


Como um discurso.
Um lado frágil, verde-úmido.
Há um lado comercial em mim,
Moeda falsa do que sou perante o mundo.

Há um lado em mim que está sempre no bar,


Bebendo sem parar.

Há um lado em mim que já morreu.


Às vezes penso se esse lado não sou eu.

PAULO MENDES CAMPOS [1951]

A palavra escrita. Rio de Janeiro: Hipocampo, 1951.

262
RESTAURADORA

A morte é limpa.
Cruel mas limpa.

Com seus aventais de linho


— fâmula — esfrega as vidraças.
Tem punhos ágeis e esponjas

Abre as janelas, o ar precipita-se


inaugural para dentro das salas.
Havia impressões digitais nos móveis,
grãos de poeira no interstício das fechaduras.

Porém tudo voltou a ser como antes da carne


e sua desordem.

HENRIQUETA LISBOA [1949]

Flor da morte. Belo Horizonte: Edições João Calazans, 1949.

263
UMA CRIATURA

Sei de uma criatura antiga e formidável,


Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;


E no mar, que se rasga à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.


Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,


Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;


E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo,


Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está toda a obra:


Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.

264
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte: eu direi que é a Vida.

MACHADO DE ASSIS [1900]


Ocidentais. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, v. 3.

265
DESEJO

(HORA DE DELÍRIO)

Se além dos mundos esse inferno existe,


Essa pátria de horrores,
Onde habitam os tétricos tormentos,
As inefáveis dores;

Se ali se sente o que jamais na vida


O desespero inspira:
Se o suplício maior que a mente finge,
A mente ali respira;

Se é de compacta, de infinita brasa


O solo que se pisa:
Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores
Tudo que ali se visa;

Se ali se goza um gênero inaudito


De sensações terríveis;
Se ali se encontra esse real de dores
Na vida não possíveis;

Se é verdade esse quadro que imaginam


As seitas dos cristãos;
Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias,
Não são uns erros vãos;

266
Eu — que tenho provado neste mundo
As sensações possíveis;
Que tenho ido da afecção mais terna
Às penas mais incríveis;

Eu — que tenho pisado o colo altivo


De vária e muita dor;
Que tenho sempre das batalhas dela
Surgido vencedor;

Eu — que tenho arrostado imensas mortes,


E que pareço eterno;
Eu quero de uma vez morrer p’ra sempre,
Entrar por fim no inferno!

Eu quero ver se encontro ali no abismo


Um tormento invencível:
— Desses que achá-los nas existência toda
Jamais será possível!

Eu quero ver se encontro alguns suplícios,


Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
— “Chora por fim, — que és homem!”

Que de arrostar as dores desta vida


Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo:
Quero vencer o inferno!

JUNQUEIRA FREIRE [1854]


Poesias completas. Rio de Janeiro: Z. Valverde, 1944.

267
AGRADECIMENTOS

a Benedito Nunes, pela atenção com que nos distinguiu ao ler e


apresentar esta seleção;
a Ione Nassar, Graça Ramos, Sérgio de Sá, Francisco Balthar Peixoto,
pelos comentários, sugestões e, sobretudo, por partilharem conosco o amor
por poemas e livros;
a Luis Tavares Ladeira, pela preparação atenta dos originais e pela
colaboração na pesquisa;
a Constância Duarte, Zahide Muzart e Hilda Flores, pelas informações
que contribuíram para que se fizessem ouvir os distintos timbres das vozes
femininas;
a Alessandra Conceição, pelo simpático apoio;
a Luis Lorenzo Rivera e a Alexandre Martins Fontes, muito
especialmente, pelo estímulo e pela confiança no projeto.

268

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