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A equipe multiprofissional da ‘Saúde da Família’:

ARTIGO ARTICLE
uma reflexão sobre o papel do fisioterapeuta

‘Family health’ multiprofessional teams:


a reflection on the physiotherapist’s role

Mônica de Rezende 1
Marcelo Rasga Moreira 2
Antenor Amâncio Filho 1
Maria de Fátima Lobato Tavares 1

Abstract This article is intended to contribute for Resumo Este artigo pretende contribuir para o
the debate instituted about the composition of “Fam- debate instituído sobre a composição das equipes de
ily Health” teams. It must be understood as a reflec- Saúde da Família. Deve ser apreendido como uma
tion about the possibility of integrating the physio- reflexão sobre a possibilidade de integração do fisio-
therapist to those teams, aiming to present some as- terapeuta nas equipes, na intenção de mostrar os
pects of the profession that might potentially improve aspectos da profissão que a tornam capaz de poten-
the outcomes of primary health care. On this study, cializar a resolutividade da atenção básica. No es-
we analyze the legal documents that approve the rules tudo, foram analisados os documentos legais que
for qualifying professional physiotherapists. In the aprovam as normas para habilitação ao exercício
1970s and 1980s, following Brazilian sanitary reform, da profissão de fisioterapeuta. Nos anos setenta e
those documents made official the process that led oitenta, acompanhando a reforma sanitária brasi-
physiotherapy, which was historically recognized for leira, tais documentos oficializaram o processo que
its clinic acting, into a shift on its work object. This levou a fisioterapia, profissão historicamente reco-
change approximated physiotherapists to preventive nhecida pela atuação clínica, a mudar seu objeto de
and health promotion practices, typical of the first trabalho, aproximando o fisioterapeuta de práticas
level of care. We conclude that such changes opened preventivas e de promoção da saúde, típicas do pri-
an important space for integration still little explored. meiro nível do cuidado. Concluiu-se que tal mu-
We propose to strengthen these new fields, by focus- dança abriu importante espaço de integração ainda
ing the reflection on integration forms and on the pouco trabalhado e propõe-se seu aprofundamento,
1
necessity to impose to managers to plan their actions direcionando a reflexão para as formas de integra-
Departamento de
Administração e in association with the community, taking into ac- ção e a necessidade que se impõe aos gestores de pla-
Planejamento em Saúde, count the local health situation and assuring inter- nejar suas ações de forma articulada com a comuni-
Escola Nacional de Saúde vention on problems according to priority popula- dade, a partir da análise da situação de saúde no
Pública Sérgio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz tion groups. nível local, garantindo a intervenção sobre proble-
Rua Leopoldo Bulhões Key words Family Health, Physiotherapy, Multi- mas e grupos populacionais prioritários.
1480/707, Manguinhos. professional teams Palavras-chave Saúde da Família, Equipes multi-
21041-21 Rio de Janeiro RJ.
monica.rezende@ensp.fiocruz.br profissionais, Fisioterapia
2
Departamento de Ciências
Sociais, Escola Nacional de
Saúde Pública Sérgio
Arouca, Fundação Oswaldo
Cruz.
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Rezende M et al.

Introdução sobre a relação entre a composição das equipes e


as necessidades de saúde das comunidades.
O Sistema Único de Saúde (SUS), resultado de um Desse modo, identificar os objetos de trabalho
processo de lutas políticas e setoriais capitaneadas e estudo da fisioterapia por intermédio da análise
pelo movimento sanitário brasileiro, tem o objetivo de documentos legais que aprovam as normas para
de garantir a saúde como direito do cidadão e dever habilitação ao exercício da profissão de fisiotera-
do Estado. Propõe, como horizonte, a superação peuta; relacionar as mudanças destes objetos no
dos limites do modelo médico-assistencial privatis- decorrer do processo de construção do Sistema
ta, que tem como bases a especialização do profissi- Único de Saúde com as transformações ocorridas
onal e a ênfase na doença e no processo de cura. no cenário da Saúde Pública no Brasil e analisar de
Nessa dimensão, a incorporação do conceito que forma a fisioterapia pode, a partir destas mu-
ampliado de saúde, que a associa às condições de danças, integrar-se à estratégia Saúde da Família,
vida, norteia a formulação e a implementação de são propostas que se encontram contidas e per-
estratégias que viabilizem um serviço de saúde uni- meiam este artigo.
versal, integral, eficaz, eficiente, com equidade e O presente artigo, pois, se insere no contexto
participação popular. sanitário atual como uma contribuição ao debate
Uma dessas estratégias é a “Saúde da Família”. instituído sobre a composição das equipes de Saú-
Inserida no nível da atenção básica do sistema, fun- de da Família. Deve ser apreendido como uma re-
damenta-se no trabalho de equipes multiprofissio- flexão cujos objetivos se assentam na análise sobre
nais que, de acordo com o Ministério da Saúde, a possibilidade de integração do fisioterapeuta nas
devem ser compostas, no mínimo, por um médico, equipes de Saúde da Família, na intenção de mos-
um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e seis trar os aspectos da profissão que a tornam capaz
agentes comunitários de saúde e, quando amplia- de potencializar a resolutividade nesse primeiro
da, inclui ainda um dentista, um auxiliar de consul- nível da atenção à saúde e na expectativa de se cons-
tório dentário e um técnico em higiene dental1. tituir em instrumento para o fortalecer a estratégia
A co-responsabilidade dos governos munici- Saúde da Família, somando esforços na direção
pais e federal pelo financiamento das equipes de da consolidação dos princípios e pressupostos do
Saúde da Família, somada à diretriz apresentada Sistema Único de Saúde brasileiro.
pelo Ministério da Saúde para sua composição Importante registrar, também, que este texto é
mínima, cria a necessidade de ampliar a discussão resultado de estudo realizado no âmbito da linha
sobre a integração, nas equipes, de outras catego- de pesquisa que abriga o projeto “Avaliação da in-
rias profissionais não contempladas diretamente serção do fisioterapeuta na estratégia Saúde da
na proposta do governo federal, assim como so- Família: um estudo de caso”. Tal projeto foi apro-
bre as possíveis formas de se fazer essa integração. vado e selecionado de acordo com os termos do
Formular e implementar um sistema de saúde Edital nº 49/2005, iniciativa conjunta dos Ministé-
estruturado sob os princípios da universalidade, rios da Saúde e da Ciência e Tecnologia. Foi desen-
da integralidade e da equidade, tendo como diretri- volvido pela Escola Nacional de Saúde Pública Ser-
zes a descentralização da gestão, a regionalização e gio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz, no mu-
hierarquização do planejamento e oferta dos servi- nicípio de Macaé, Estado do Rio de Janeiro, no
ços de saúde e a participação comunitária (controle período de 2005 a 2007, com o apoio do Conselho
social), implica, necessária e obrigatoriamente, ra- Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-
dical mudança de concepção, de mentalidade no lógico (CNPq) e colaboração da Secretaria Muni-
tocante à compreensão da saúde e sua dimensão e, cipal de Saúde do citado município.
consequentemente, em relação ao fenômeno vida.
A demanda por reflexão e diálogo em torno
dessa perspectiva nova ocorre tanto na esfera in- Os caminhos da fisioterapia
terna de cada profissão quanto no campo da saú-
de como um todo. Por um lado, é preciso que os A fisioterapia surgiu como uma “especialidade pa-
profissionais reflitam conjuntamente sobre as fi- ramédica2” com o propósito de reabilitar e prepa-
nalidades de sua prática, reconstruindo o sentido e rar pessoas fisicamente lesadas nas grandes guer-
o significado do seu agir, tornando-os coerentes ras, em acidentes de trabalho ou por doenças oriun-
com a proposta apresentada, em especial no que das das condições sanitárias precárias para o re-
tange à atenção básica. Por outro, torna-se indis- torno à vida produtiva3.
pensável a ponderação, junto a gestores e organi- No Brasil, foi criada como profissão de nível
zações comprometidas com a participação social, superior em outubro de 1969, pelo Decreto-Lei nº.
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938, que, em seu art. 3º, estabeleceu que “é ativida- fisioterapeuta que, refletindo o movimento da saú-
de privativa do fisioterapeuta executar métodos e de então vigente, definiu como atos desse profissio-
técnicas fisioterápicas com a finalidade de restau- nal, “planejar, programar, ordenar, coordenar, exe-
rar, desenvolver e conservar a capacidade física do cutar e supervisionar métodos e técnicas fisioterá-
paciente4”. picos que visem à saúde nos níveis de prevenção
O uso do termo “paciente” indica uma pro- primária, secundária e terciária9”.
posta de atuação voltada para o indivíduo doente Em relação ao Decreto-Lei nº 938/69, a Resolu-
e, portanto, já em fase de tratamento3. É coerente ção COFITTO nº 08/78 ampliou consideravelmen-
com o pensamento clínico sobre o processo saú- te o campo de atuação do fisioterapeuta, tanto em
de-doença, que faz com que a saúde seja “entendi- relação aos níveis de assistência (prevenção pri-
da ou representada como ausência de doença e a mária, secundária e terciária) quanto ao foco da
organização dos serviços medicamente definida5”. atenção, passando a apreender a saúde do indiví-
Fundamentados neste ideário, os esforços dos duo como um todo e não mais apenas no que diz
profissionais e/ou áreas de estudo preocupadas respeito à sua capacidade física.
com as condições de saúde do homem concen- Estas alterações conceituais, embora impor-
tram-se na descoberta de novos métodos de “tra- tantes, demonstram-se frágeis quando a mencio-
tamento” das doenças, revelando a predominân- nada Resolução, no seu Art. 3º, fixa o ato profissi-
cia de uma assistência “curativa”, recuperativa e rea- onal na terapia física: “prescrever, ministrar e su-
bilitadora. pervisionar terapia física que objetive preservar,
Na década de setenta, surgiram, no cenário manter, desenvolver ou restaurar a integridade de
mundial, novos conceitos de saúde e novas concep- órgão, sistema ou função do corpo humano9” [grifo
ções do processo saúde-doença mais vinculadas à nosso], posto que o termo “terapia” está direta-
qualidade de vida de uma população e que procu- mente relacionado ao substantivo “terapêutica” que
ravam articular, como dimensões explicativas, a se refere à “parte da medicina que estuda e põe em
biologia humana, os estilos de vida, o ambiente e prática os meios adequados para aliviar ou curar
serviços de saúde. A publicação do documento A os doentes10”.
new perspective on the health of Canadians, em 1974, A partir do momento em que os fisioterapeutas
por Marc Lalonde6, marca o início do moderno ampliaram seu campo de atuação e apresentaram-
movimento da promoção da saúde e apresenta a se como aptos a contribuir, também, na prevenção
perspectiva da história social das doenças. primária, eles criaram a necessidade de rever e rees-
A partir da Declaração de Alma-Ata, em 1978, truturar sua prática. O processo de transforma-
a Atenção Primária à Saúde (APS) passou a ser ção, no entanto, ficou incompleto, na medida em
defendida como estratégia para se alcançar a meta que faltou atribuir a si, na regulamentação, ações
“Saúde para Todos”, inicialmente proposta com o de educação em saúde e prevenção de doenças.
ano 2000 como prazo limite, posteriormente es- A década de oitenta foi um período efervescen-
tendido para o século XXI. De acordo com a pro- te, em que o Movimento da Reforma Sanitária
posta, governos, organizações internacionais e toda despontou como um dos protagonistas políticos
a comunidade mundial deveriam unir esforços na luta pela redemocratização do país. Respalda-
para que todos os povos do mundo atingissem do pelas novas concepções do processo saúde-do-
um nível de saúde que lhes permitissem levar uma ença, surgidas no cenário mundial, o movimento
vida social e economicamente produtiva7. buscou a redefinição da política de saúde brasilei-
No Brasil, acompanhando esse movimento, ra, a partir da incorporação de seus determinantes
intensificaram-se as críticas ao modelo vigente (cen- sociais, da ênfase às condições de vida e da garan-
trado na assistência médico-hospitalar), resultan- tia do direito do exercício da cidadania.
do na implantação, por intermédio da reforma do A Oitava Conferência Nacional de Saúde (8ª
ensino médio e da saúde pública8, da proposta da CNS), cuja realização esteve diretamente vincula-
medicina preventiva. da ao movimento sanitarista, ocorreu em março
Em 1975, com a criação do Conselho Federal de de 1986, tendo como um de seus principais temas
Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFITTO), (senão o principal), a reformulação do sistema
pela Lei nº 6.316, iniciou-se o processo de regula- nacional de saúde. Em seu relatório final11, a saúde
mentação da profissão de Fisioterapia. Tendo o foi definida em sentido mais abrangente, como
Conselho, como uma de suas incumbências, exer- “resultado das formas de organização social da
cer função normativa, emitiu, em fevereiro de 1978, produção, as quais podem gerar grandes desigual-
a Resolução COFITTO nº 08, aprovando as nor- dades nos níveis de vida” e foi proposta a criação
mas para habilitação ao exercício da profissão de de um sistema unificado de saúde, com “a integra-
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lização das ações, superando a dicotomia preven- como se configura na atualidade: o primeiro nível
tivo-curativo”. do sistema de assistência à saúde, articulado com
Em maio de 1987, após a 8ª CNS e antes da os demais, com o intuito de garantir maior acesso
criação do Sistema Único de Saúde, a Resolução aos cuidados e integralidade da atenção, consoan-
COFFITO nº 80, por meio de atos complementa- te a Declaração de Alma-Ata de que os cuidados
res, buscou ampliar as atribuições do fisioterapeuta primários “têm em vista os problemas de saúde da
expressas na Resolução nº 08/78, numa perspecti- comunidade, proporcionando serviços de promo-
va que procurou adequar a Fisioterapia ao novo ção, prevenção, cura e reabilitação, conforme as
momento do cenário sanitário brasileiro. necessidades7”.
Dentre as considerações da Resolução nº 80, A reabilitação, a partir dos anos oitenta, assu-
deve ser destacada a que alude ao objeto de estudo miu perspectiva diferente da adotada na medicina
e trabalho do fisioterapeuta: A fisioterapia é uma preventiva, que se encontra respaldada na história
ciência aplicada, cujo objeto de estudos é o movimen- natural das doenças. O documento “Programa de
to humano em todas as suas formas de expressão e Ação Mundial para Pessoas com Deficiência”, apro-
potencialidades, quer nas suas alterações patológicas, vado e divulgado pela Organização das Nações Uni-
quer nas suas repercussões psíquicas e orgânicas, com das em 1982, ressaltou que o direito dos “deficien-
objetivos de preservar, manter, desenvolver ou res- tes” (termo utilizado no documento) situava-se no
taurar a integridade de órgão, sistema ou função12. mesmo patamar de oportunidades dos demais ci-
Essa foi uma mudança essencial, porque o dadãos, ao afirmar que a eles também caberia “usu-
movimento é a forma de comunicação do indiví- fruir, em condição de igualdade, das melhorias nas
duo com o mundo externo, que acontece a partir condições de vida”. A novidade decorreu de uma vi-
da sua interação com o meio em que vive. Não há são abrangente e multidimensional, que compreen-
comunicação sem movimento: a fala produz-se a deu ações de reabilitação como treinamento e empo-
partir do movimento; a respiração só ocorre com werment do portador de necessidades especiais, in-
movimento; através do movimento, os indivíduos tervenções sociais amplas, adaptação do meio am-
expressam seus sentimentos e assumem posturas biente e proteção dos direitos do portador13.
diante dos desafios da vida. Assim, ao assumir o A discussão conceitual em relação ao portador
movimento como seu objeto, o fisioterapeuta ado- de necessidades especiais e à reabilitação levou à
tou uma perspectiva relacional, pensando o sujeito associação de dois componentes principais: o fun-
não apenas por suas características biológicas, mas cional e o social. Este enfoque influenciou, também,
também o considerando na sua dimensão social. a assistência em reabilitação daqueles que apresen-
Visto dessa forma, o fisioterapeuta deve atuar tam lesões transitórias e foi referida em uma das
em interação com outros profissionais, para me- considerações da citada Resolução nº 80/87, que
lhor compreender e poder interferir positivamen- apresentou a reabilitação como “uma proposta de
te, no sentido de ampliar e de tornar mais rica e atuação multiprofissional voltada para a recupera-
prazerosa a relação permanente do indivíduo com ção e o bem-estar bio-psico-social do indivíduo12”.
seu ambiente. Junto com os usuários dos serviços Afora a discussão do objeto do fisioterapeuta,
de saúde, deve refletir sobre o uso que eles fazem a possibilidade de trazer a reabilitação e o trata-
do próprio corpo nas suas relações com o espaço mento de distúrbios do movimento para o ambi-
e com outras pessoas e, a partir de então, promo- ente em que o indivíduo vive e desenvolve suas
ver ações visando à melhoria da qualidade de vida atividades – tornando-os mais eficientes, acessí-
no presente e para o futuro. Muito mais do que veis e prevenindo transtornos maiores para as pes-
tratar e reabilitar, o fisioterapeuta tem o encargo soas que convivem com algum problema – ratifi-
de agir na direção do desenvolvimento das poten- ca, sobremodo, o espaço que se abre para a Fisio-
cialidades do indivíduo para exercer suas ativida- terapia no primeiro nível da atenção.
des laborativas e da vida diária. Esse posiciona- Contudo, de acordo com os termos da Reso-
mento está diretamente relacionado ao que expli- lução nº 80/87, o ato do fisioterapeuta é, ainda,
cita a Resolução COFITTO nº 80/87: “Por sua for- restrito ao “processo terapêutico” e, portanto, à
mação acadêmico-profissional, pode o fisiotera- relação com a doença: “Baseando-se nas condi-
peuta atuar juntamente com outros profissionais ções psico-físico-social, [o fisioterapeuta] busca
nos diversos níveis da assistência à saúde, na ad- promover, aperfeiçoar ou adaptar, através de uma
ministração de serviços, na área educacional e no relação terapêutica, o indivíduo a uma melhor
desenvolvimento de pesquisas12”. qualidade de vida12”.
Esta consideração atesta o fisioterapeuta como Para melhor entendimento da questão, cabe
um profissional apto a atuar na atenção básica tal assinalar a relação observada entre transforma-
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ções marcantes no âmbito da Fisioterapia e mu- no desse eixo “tem mostrado inegável eficácia nas
danças importantes ocorridas na área da saúde, diversas áreas em que atua14” e no enfrentamento
vista como um todo. Nesse sentido, o Quadro 1 de variadas situações.
sintetiza um conjunto de eventos, os quais infor- O segundo elemento de reflexão diz respeito à
mam e subsidiam a construção do presente texto. inserção e ao papel do fisioterapeuta no Sistema
O desenho comparativo apresentado no Qua- Único de Saúde, criado como parte de uma dinâ-
dro 1 permite perceber as mudanças no objeto de mica histórica e social que significa um olhar dife-
estudo, no campo de atuação e no foco da atenção rente em relação à percepção sobre as causas das
da fisioterapia, em consonância com as alterações doenças e dos problemas de saúde. A nova política
que ocorreram, no mesmo período, na área da sanitária obriga, em especial, mudanças nos mo-
saúde. Entretanto, dois elementos suscitam refle- delos de atenção, definidos genericamente como
xão: 1) o ato profissional permaneceu enfatizando “combinações de saberes (conhecimentos) e técni-
a terapia física e, 2) após a criação do Sistema Úni- cas (métodos e instrumentos) utilizados para aten-
co de Saúde, não houve nenhuma complementa- der necessidades de saúde individuais e coletivas15”.
ção a essas resoluções. No entanto, mudar modelos instalados e em
A insistência no ato terapêutico, enquanto uma operação é um processo lento e tenso, na medida
intervenção destinada a minorar ou solucionar um em que eles representam políticas e práticas que
problema físico localizado, parece sintomática. Para retratam interesses profissionais, de instituições e
esse tipo de atividade, o fisioterapeuta encontra de corporações. A tensão tem reflexo e encontra
mercado de trabalho e reconhecimento profissio- ressonância nas decisões (ou ausência delas) de
nal. Vale considerar que, embora a Fisioterapia seja cada categoria profissional. No tocante à Fisiote-
recente como profissão, apresenta-se como um dos rapia, se evidencia pela ausência de complementa-
campos mais antigos da saúde, pois os agentes fí- ção da regulamentação da profissão pós surgimen-
sicos vêm sendo utilizados há milhares de anos no to do Sistema Único de Saúde, principalmente em
tratamento das patologias, sendo que determina- relação ao ato profissional.
das condutas fisioterapêuticas construídas em tor-

Quadro 1. Relação entre as transformações na regulamentação da fisioterapia e na área da saúde.

Décadas Área da Saúde Fisioterapia

1960 9Predomínio do pensamento clínico sobre Decreto-Lei nº 938 (1969)


o processo saúde-doença; 9Cria a profissão de fisioterapeuta;
9Paradigma flexneriano. 9Ato profissional: terapia física (tratamento);
9Foco da atenção: capacidade física.

1970 9Surgimento de novos conceitos de saúde Resolução COFITTO nº 08 (1978)


e de novas concepções do processo saúde- 9Objeto de estudos: corpo humano (órgão,
doença; sistemas e funções);
9Sistemas de saúde dos países 9Campo de atuação: prevenção primária,
desenvolvidos fortemente questionados; secundária e terciária;
9No Brasil: implantação da proposta da 9Ato profissional: terapia física;
medicina preventiva. 9Foco da atenção: saúde.

1980 9Movimento da Reforma Sanitária; Resolução COFITTO nº 80 (1987)


9“Programa de Ação Mundial para Pessoas 9Objeto de estudos: movimento humano;
com Deficiência” / ONU (1982): Visão 9Campo de atuação: diversos níveis da
abrangente e multidimensional da assistência à saúde;
reabilitação. 9Ato profissional: terapia física;
9VIII CNS (1986); 9Foco da atenção: saúde (qualidade de vida e
9Criação do SUS (1988). bem-estar biopsicossocial do indivíduo).

Fonte: Elaborado pelos autores.


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A busca pela atenção integral à saúde assistência contínua, de qualidade, com menor
custo e em lugar e tempo certos.
O fundamento para a regionalização dos serviços e Em meados da década de noventa, a partir de
dos sistemas de serviços de saúde organizados em um acúmulo de experiências implementadas por
bases populacionais, juntamente com a moderna todo o país, com destaque para o Programa de
concepção de atenção primária à saúde, é encon- Agentes Comunitários de Saúde (PACS), o Progra-
tra-se no Relatório Dawson, de 1920, publicado no ma Saúde da Família (PSF) é adotado pelo governo
Reino Unido. No mesmo relatório, preconiza-se a federal como eixo estruturante da atenção básica
organização do sistema de serviços de saúde em no Sistema Único de Saúde. Hoje chancelado como
três níveis: os centros primários de atenção, os cen- estratégia Saúde da Família, o modelo apresenta,
tros secundários e os hospitais de ensino16. introduz e induz mudanças relevantes no processo
A determinação e abrangência da atenção pri- de trabalho em saúde, como resultado da transfor-
mária à saúde como doutrina universal, entretan- mação das Unidades Básicas de Saúde (UBS) em
to, ocorreu somente em 1978, na Conferência Inter- Unidades de Saúde da Família (USF)18.
nacional sobre Cuidados Primários de Saúde, rea- Ao contrário do modelo assistencial privatista,
lizada em Alma-Ata, a partir da qual a Organização no qual o profissional médico tem presença predo-
Mundial de Saúde começou a estabelecer estratégi- minante nas intervenções, ocasionando um papel
as para operacionalizar as metas então acordadas16. secundário aos demais profissionais que compõem
Dessa maneira, segundo a Declaração de Alma- a força de trabalho na saúde, a Saúde da Família
Ata, os cuidados primários de saúde representam o baseia-se, essencialmente, no trabalho das equipes18.
primeiro nível de contato dos indivíduos, da família Cabe a elas, entre outras atribuições: cadastrar to-
e da comunidade com o sistema nacional de saúde, das as famílias de uma determinada região, identi-
através do qual os cuidados de saúde são levados o ficar os problemas de saúde dessa população ca-
mais proximamente possível aos lugares onde pesso- dastrada, planejar suas ações dentro das necessida-
as vivem e trabalham, e constituem o primeiro ele- des locais, acompanhar os grupos mais vulnerá-
mento de um continuado processo de assistência à veis, realizar atendimentos de qualidade (agenda-
saúde7. dos previamente, por demanda espontânea nas
O Sistema Único de Saúde propõe que os servi- unidades ou em visita em domicílio), desenvolver
ços de saúde sejam organizados por níveis de aten- ações de educação e promoção da saúde e estabele-
ção. A Lei 8.080, de setembro de 1990, que regula as cer vínculos de compromisso e co-responsabilida-
ações e serviços de saúde no âmbito do Sistema, de com as pessoas da comunidade.
prevê que as ações devem ser desenvolvidas e or- Tais funções devem ser desempenhadas tanto
ganizadas em uma rede de serviços regionalizada e numa abordagem individual quanto coletiva. O
hierarquizada. A tecnologia utilizada nas ações deve profissional deve partir da premissa de que as alte-
ser adequada a cada nível, com mecanismos for- rações físicas ou mentais vivenciadas pelos indiví-
malizados de referência e contra-referência, visan- duos geram uma desarticulação de sua existência,
do ao atendimento integral da população. abalando e desestruturando a dinâmica de sua fa-
A atenção básica passa, então, a ser compreen- mília e dos demais grupos com os quais se relacio-
dida como “porta de entrada” para o sistema de nam e nos quais se encontram inseridos. É impres-
saúde, passando a ser defendida como o primeiro cindível perceber a multicausalidade dos proces-
nível do cuidado, representado por um conjunto sos mórbidos, contextualizando, sempre, o indiví-
de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, duo em seu ambiente19.
que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a Por outro lado, a relação e o vínculo dos pro-
prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a fissionais com os membros da comunidade, usuá-
reabilitação e a manutenção da saúde17. rios dos serviços, dá-se através de ações, reações e
Assim, por possuir capacidade de resolução em efeitos que geram novas situações e apresentam
relação a grande parte dos problemas de saúde da novos desafios num processo contínuo de busca
população, a atenção básica, se bem estruturada, por atenuar ou superar problemas e obstáculos20.
permite reduzir o fluxo de usuários para os níveis Aqui revela-se a complexidade do trabalho profis-
de maior densidade tecnológica, racionalizando o sional nesse primeiro nível da atenção5, visto que o
uso da tecnologia e dos recursos terapêuticos mais cumprimento de uma atividade integrada e coo-
caros e possibilitando maior acesso aos cuidados. perativa exige o desenvolvimento de um conjunto
A proposta, portanto, é viabilizar, a partir do pri- de novas competências21.
meiro nível do cuidado, a integração dos diversos No entanto, além de novas competências, o tra-
pontos de atenção à saúde, possibilitando uma balho profissional das equipes envolve, também,
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atividades e conhecimentos técnicos que estão cons- particular do tema central deste artigo, a crítica
tituídos e situados nas esferas de diferentes catego- volta-se para a visão restrita quanto à função do
rias profissionais. Saberes bem definidos, que com- fisioterapeuta. A inserção deste profissional atra-
põem a “caixa de ferramentas” do trabalhador da vés dos núcleos, da forma como proposta, limita à
saúde e que concebem o olhar do profissional so- reabilitação a contribuição que o fisioterapeuta
bre o usuário, “enquanto objeto de sua interven- pode oferecer ao cuidado no nível da atenção bási-
ção, em um processo de captura do mundo da- ca, na Saúde da Família.
quele e de suas necessidades22”. O que este artigo propõe é pensar novas for-
Nessa perspectiva, a integração de profissionais mas de integrar o fisioterapeuta às equipes, com
de várias categorias nas equipes de Saúde da Famí- suas atribuições indo além da atividade de reabili-
lia permite distintos olhares, ampliando as possibi- tação, fazendo com que ele se envolva e se compro-
lidades inovadoras das práticas do cuidado e au- meta com ações de promoção e proteção da saúde,
mentando o potencial de resolutividade, com qua- de prevenção de doenças e de assistência. Mais do
lidade e sem descaracterizar a proposta original. que inserir o fisioterapeuta na Saúde da Família,
aproximando-o da atenção básica, sua integração
às equipes compreende a idéia de criar pontos de
Considerações finais interseção, tanto nas ações realizadas como entre
os profissionais, facilitando e incentivando a ado-
O processo de expansão da estratégia Saúde da ção de medidas que conformem um olhar e uma
Família como projeto nacional tem ocorrido a prática integral da saúde.
partir de suporte técnico e financeiro do governo A integração proposta depende de diversos fa-
federal aos municípios, para que ampliem o nú- tores, fundamentados no reconhecimento do va-
mero de equipes e, consequentemente, o contin- lor agregado com esta participação. Dentre eles,
gente da população atendida. inclui-se a reflexão sobre o “o que fazer” da profis-
Embora a diretriz do Ministério da Saúde para são na Saúde da Família, o que torna relevante e
a composição das equipes não seja restritiva, ela necessário rever a formação dos fisioterapeutas,
tem sido co-responsável por manter ainda tímido tendo em vista que, muitas vezes, estão reprodu-
o debate sobre a incorporação, às equipes de saúde, zindo práticas sem refletir sobre elas e sobre o pa-
das denominadas “outras categorias profissionais”. pel que elas ocupam e desempenham na dinâmica
Essa discussão é importante para o processo de social, política, econômica e cultural do país.
descentralização da gestão do sistema de saúde, que Contudo, apesar das dificuldades encontradas
tem como um de seus objetivos incentivar a análise até o momento, alguns municípios já incluíram o
da situação de saúde no nível local, para que a in- fisioterapeuta nas suas equipes de Saúde da Famí-
tervenção sobre problemas e grupos populacionais lia. Tais vivências precisam ser observadas e anali-
prioritários aconteça a partir do mapeamento de sadas. Estudos e investigações sobre esse fenôme-
danos e riscos que afetam a população. no, buscando identificar as peculiaridades e espe-
Dessa maneira, a elaboração de planos e a or- cificidades de cada situação enfocada, precisam ser
ganização de ações e de serviços poderiam aconte- disseminados, gerando, inclusive, informações e
cer de forma articulada, com participação da co- dados que subsidiem a tomada de decisões que
munidade, ao abrir-se um amplo espaço de dis- fortaleçam e criem inovações no processo de pla-
cussão para pensar, coletivamente, quais profissi- nejamento, gestão e educação na saúde.
onais estariam mais aptos a contribuir para a me-
lhoria da saúde e da qualidade de vida da popula-
ção de determinada região.
A proposta atual do Ministério da Saúde para
a inserção do fisioterapeuta na estratégia Saúde da Colaboradores
Família é que ela se dê através dos Núcleos de Aten-
ção Integral na Saúde da Família (NAISF), criados
pela Portaria nº 1.065/GM, de 04 de julho de 2005. M Rezende idealizou e planejou o artigo, o levanta-
A forma como os núcleos foram estruturados mento dos dados, a redação preliminar; MR Mo-
tem levantado polêmica entre os profissionais que reira contribuiu ao planejamento e análise crítica
atuam na saúde, com algumas questões sendo con- do texto; A Amâncio Filho e MFL Tavares contri-
sideradas pontos críticos, como a implantação de buíram para a formulação de questões, redação e
um núcleo para cada nove a onze equipes (popu- revisão final do texto. Todos participaram da aná-
lação maior ou igual a 40 mil habitantes). No caso lise dos dados e da discussão dos resultados.
1410
Rezende M et al.

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