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N° 19 | Novembro de 2012 U rdimento

Secalharidade como ética e como modo de vida: o


projeto AND_Lab e a investigação das práticas de 1

encontro e de manuseamento coletivo do viver juntos 2

João Fiadeiro3 e Fernanda Eugenio4

Resumo

Partilhamos aqui dois extratos do discurso que sustenta o projeto AND_Lab,


um laboratório de investigação que emergiu do encontro não-marcado
entre um coreógrafo e uma antropóloga: 1) um trecho do manifesto
que escrevemos juntos na inauguração do AND_Lab e 2) uma parte da
conferência-performance “Secalharidade”, conceito que nomeia, justamente,
o modo de operar e habitar paisagens comuns que se desenhou na
contaminação recíproca entre nossos conceitos e procedimentos.

Palavras-chave: Ética, comunidade, acontecimento.

Abstract

We are sharing here two extracts of the discourse that supports the AND_Lab
project, a research laboratory that emerged from the unanticipated encounter
between a choreographer and an anthropologist: 1) a segment of the manifest
we wrote together for the opening of the AND_LAB and 2) a part of the text
used in the lecture-performance “Mayhapness”, which is a concept nominating
the mode of manoeuvring and inhabiting common landscapes that designed
itself within the reciprocal contamination between our concepts and procedures.

Keywords: Ethics, community, event.

1
www.re-al.org / andlab@re-al.org

2 O percurso de João Fiadeiro têm-no levado a aproximar-se da investigação através da arte e a distanciar-se, a uma velocidade proporcional, da
criação coreográfica. Este movimento, que ganha agora uma dimensão mais formal com a sua colaboração regular com disciplinas como as Ci-
ências dos Sistemas Complexos, a Neurociência ou a Antropologia, esteve sempre latente quer na sua prática enquanto artista, como na forma
como desenhou a RE.AL – estrutura que fundou em 1990 – à volta de projetos transversais e laboratoriais. Em qualquer dos casos a sua ambição
foi sempre investigar, questionar e experimentar modalidades do “como viver juntos”. E é exatamente essa questão que o leva a encontrar a an-
tropóloga Fernanda Eugénio – pós-doutoranda pelo ICS da Universidade de Lisboa, doutora e mestre pelo Museu Nacional da UFRJ –, que, por
sua vez, se tem aproximado das artes performativas na sequência de uma crescente inquietação em relação à onipresença do interpretativismo
relativista nas práticas de produção discursiva das Ciências Sociais e àquilo que começou, cada vez mais, a lhe parecer uma neutralização da
vivência etnográfica na coerência explicativa do texto e na função-autor assumida pelo investigador.
3 Pesquisador, dançarino e coreógrafo. Iniciou a sua atividade coreográfica em 1989 para o XII Estúdio Coreográfico do Ballet Gulbenkian. Desde
1997 tem sido convidado para ensinar ou orientar ateliers de pesquisa em Composição em Tempo Real em diversas instituições nacionais e
estrangeiras. Vive em Lisboa e coordena o Atelier Real, onde coordena atualmente o Projeto AND_Lab - Anthropology ‘n’ Dance - Artistic Re-
search and Scientific Creativity - simultaneamente um centro de investigação, um espaço de convivência e formação, a criação de um objeto
cênico e a escrita de um livro.
4 Fernanda Eugenio (Fernanda Eugenio Machado) é pós-doutoranda pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e doutora em Antropologia Social pela UFRJ. Pro-
fessora Adjunta do Departamento de Sociologia e Política da PUC/Rio e pesquisadora Associada do Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESAP) da UCAM. Formada em Dança
Contemporânea pela Escola Angel Vianna (RJ), vem desenvolvendo pesquisas em antropologia da arte, investigando as aproximações entre a etnografia e a dança contemporânea.
Atualmente, vive em Lisboa e colabora com o criador português João Fiadeiro no Projeto AND_Lab - Anthropology ‘n’ Dance - Artistic Research and Scientific Creativity. Publicou o
livro “Corruptelas o livroblog” (Multifoco, 2007).

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Chamamos “secalharidade” a um É dentro desta paisagem de inquieta-


modo de relação que assenta na substitui- ção que, a partir da força de um “encontro
ção do sujeito, do controle e da manipula- não-marcado” que já vinha sendo explora-
ção, por uma ética do manuseamento sufi- do informalmente desde que nos conhece-
ciente, que transfere para o próprio ato do mos – no contexto da Bienal Internacional
encontro (e para o acontecimento que daí de Dança do Ceará, em 2009 – decidimos
emerge) a capacidade de fornecer a medi- em 2011 colocar em marcha o projeto
da justa, a cada vez, para o nosso posicio- AND_Lab, uma experiência de “etnogra-
namento recíproco. Neste modo de relação, fia recíproca”, onde pudéssemos explorar
cabe-nos a responsabilidade de gerir (e não as contaminações entre nossos métodos
de gerar) o nosso plano comum, disponibi- de trabalho, nossas ferramentas e nossos
lizando-nos a uma “assistência não expec- conceitos, bem como abrirmo-nos à par-
tante”, desarmada do eu e atenta ao outro. tilha e à troca com outros investigadores
“Secalharidade” também nomeia a ocupados com a questão do “viver juntos”.
prática de improvisação e criação coletiva Neste projeto buscamos simultaneamente
de paisagens de convivência, resultante do desativar a hierarquia moderna entre in-
encontro entre o método de Composição vestigador e investigado e a simetrização
em Tempo Real desenvolvido pelo core- pós-moderna entre ambos – para ativar, no
ógrafo João Fiadeiro e a etnografia como lugar, a hipótese de sermos todos investi-
ferramenta para performances situadas da gadores, bem como a hipótese da investi-
antropóloga Fernanda Eugenio. gação ser capaz de gerar, sistematicamente
Cada qual a seu modo, a dança e a e de modo imanente, o próprio território
antropologia vêm-se interrogando, hoje, a ser investigado. Para isso, acionamos
sobre seus habituais contra-discursos de como funcionamento não o diálogo entre
resistência à cinética moderna – sobre a su- duas posições ou duas áreas – a dança, a
ficiência destes em produzir e dar a ver o
antropologia – mas sim o “metálogo”, ou
encontro criativo, a relação com o outro, a
seja, a conversação entre diferenças de pro-
convivência e a colaboração. Oferecem-se,
cedimento e operação que, por seguirem
assim, hoje, como perspectivas privilegia-
se diferenciando na medida do colocar e
das para pensar e operacionalizar ferra-
recolocar de problemas, façam emergir o
mentas conceituais e práticas mais precisas
encontro como relevo acidentado. Investi-
para visibilizar uma “ética do comum”,
gação do território comum, deste entre-ter
investigar formas de criatividade já não
que cresce e se propaga como meio. Não
assentes na identidade radical do sujeito,
meio-termo, mas meio-ambiente.
do autor ou do artista, e lidar francamente
com a questão do “viver juntos”. Hoje, em AND_Lab: do projeto-piloto
várias frentes em simultâneo, emerge na ao centro de investigação
antropologia um interesse por levar a sério
as consequências da dimensão de encontro No escopo deste artigo, gostaríamos de
que caracteriza o deslocamento etnográfi- partilhar dois momentos-chave do proces-
co. E, num movimento correlativo, pode- so de implementação do AND_Lab como
mos acompanhar na dança um percurso centro de investigação artística e criativi-
que se vem dirigindo simultaneamente ao dade científica, a operar como plataforma
questionamento da representação (a dra- de partilha de procedimentos, operações e
maturgia como linha de sentido) e do re- modos de fazer-problema, vindos tanto da
lativismo (seja o da equivalência generali- arte como da ciência, na relação-tensão en-
zada de procedimentos e conteúdos ou o tre política, ética e cotidiano.
da improvisação entendida como impulso A inauguração das atividades do
livre), situando também no encontro e na AND_Lab, em setembro de 2011 no Atelier
relação a possibilidade de estabelecer ou- Real, dá-se tendo como rastilho a escrita
tras vias de atuação. do manifesto Dos modos de re-existência: um
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outro mundo possível, a secalharidade. Neste como um reposicionamento cada vez mais
momento o AND_Lab emerge como pro- estruturado de João perante sua própria
jeto-piloto, ocupado com um programa de comunidade. Tendo deixado de coreogra-
formação, investigação e partilha que, du- far em 2007 para dedicar-se ao “artesana-
rante um ano, nos levaria a experimentar to” da CTR, era tempo, entretanto, de re-
as várias gradações do encontro, bem como tornar com os resultados já amadurecidos
a produzir as condições para a investiga- deste esforço a um plano de visibilidade e
ção, a sistematização e a partilha das fer- partilha mais estável.
ramentas-conceito e do modo operativo da Assim, se por um lado o manifesto mar-
“secalharidade”. cou o início da fase piloto do AND_Lab, o
Nossa ambição era ativar um lugar co- outro texto que gostaríamos de compar-
mum, ou seja, um lugar de “des-autoriza- tilhar neste espaço sinaliza justamente o
ção”, onde noções dadas como adquiridas cumprimento da “dobra” a que nos referi-
(“território” ou “autoria”, por exemplo) mos acima. Após um processo intenso, que
pudessem ser questionadas. Um lugar no se estendeu de setembro de 2011 a junho
qual pessoas de diferentes proveniências, de 2012, a fase piloto do AND_Lab já con-
graus de experiência e interesses se pudes- tava com iniciativas variadas de partilha
sem juntar de forma a se envolverem na e transmissão: cursos com gradações que
discussão e na experimentação de noções iam dos três dias aos três meses, passando
transversais à arte, à vida e à política, tais por diversas outras durações, entre as três
como as de  relação, acontecimento, deci- semanas, as duas semanas e os dois meses;
são, auto-organização, comunidade, coo- conferências, encontros abertos, sessões
peração, colaboração etc. avulsas, apresentações formais e informais
Nessa dimensão piloto, o projeto fun- etc. Havíamos também acumulado todo o
cionava também como “dobra” para uma material que servirá de base à sistematiza-
mudança de paradigma efetiva na trajetó-
ção tanto das ferramentas-conceito quanto
ria de mais de 20 anos de João Fiadeiro na
do modo operativo de nosso trabalho, sob a
dança, e da sua estrutura RE.AL. A própria
forma de áudio, vídeo, registro fotográfico,
emergência do AND_Lab como projeto
anotação e verbetes. Para além, nos meses
na intersecção entre arte e vida sinalizava
finais da fase piloto, mergulhamos na cria-
o esgotamento do formato anterior, de al-
ção de um objeto de partilha no formato da
gum modo ainda ligado a uma lógica mais
conferência-performance, que apresenta-
autoral e mais exclusivista da dança como
mos no Festival Alkantara 2012, em Lisboa.
campo. Este redirecionamento já vinha
É deste objeto, a conferencia-performance
marcando o trabalho de João Fiadeiro há
a que demos o nome de Secalharidade, que
muitos anos: quase sem querer (como todas
as descobertas de valor) e camuflado no es- extraímos o outro texto que partilhamos
paço ficcional proporcionado pela arte, seu convosco no escopo deste artigo.
método de Composição em Tempo Real se Trecho selecionado do
foi desenvolvendo como ferramenta aberta manifesto AND_Lab
e de aplicação transversal. A partir da ex-
periência com a improvisação e a compo- O regime do “e, e, e...”:
sição praticadas na dança contemporânea, a des-cisão e a re-existência
a CTR foi entretanto tomando a direção
de um estudo minucioso e meticuloso dos Mas... e se imaginássemos um outro
processos de decisão, auto-organização e mundo possível? Um terceiro regime sen-
colaboração no espaço “laboratorial” pro- sível, nem complementar nem simétrico?
porcionado pelo atelier de trabalho. For- Um mundo em que existir não fosse re-
jou-se assim, aos poucos, toda uma nova produzir ou rebelar, e em que resistir não
rede de cumplicidades e parcerias ao nível consistisse no cancelamento da relação?
da investigação artística e científica, bem Um modo de vida em que a coisa toda não
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se resumisse à certeza ou à alternância, ao se não for re-existir, não atinge a relativi-


sonho com a concordância consensual ou à dade: morre no relativismo. Não atinge a
omissão indiferente? relação, morre na compulsorização da in-
Um mundo no qual a diferença não teratividade ou na trincheira da negação
fosse identitariamente congelada, como no inconformista. Se o propósito positivo é
regime moderno, mas tão pouco fosse can- a continuidade vital, então falemos antes
celada na indiferença do “tudo pode” pós- em re-existência, em resiliência: a força fle-
moderno. Um mundo no qual a diferença xível da fragilidade adaptativa, que reside
pudesse se propagar em sua assimetria in- na explicitação molecular e na aceitação
finitesimal, sem ser oferecida em sacrifício re-inventiva, no lidar com “o que se tem”
para que haja encontro, e no qual tão pouco mais do que na insistência rígida da nega-
o encontro precisasse ser sacrificado para ção ou na desistência indiferente do con-
que houvesse simetria? Um mundo “dis- sentimento.
sensual” (Rancière, 2010a e 2010b), em que Este é um problema que atravessa as
o viver juntos fosse feito do cromatismo mi- práticas artísticas e a vida em comunidade.
croscópico dos ritmos singulares? Fantasia Acioná-lo e frequentá-lo nos coloca para
de idiorritmia (Barthes, 2003), de comunida- além de uma lógica setorial a delimitar áre-
de, “devir-minoritário” (Deleuze e Guatta- as de conhecimento e campos artísticos, e
ri, 1980) que circula e circulou entre os dois nos devolve a awareness ética e política de
outros regimes, ativando-se aqui e ali, na que “fazemos nossos próprios fatos e estes
maior parte das vezes de modo fugaz, bac- nos fazem em retorno” (Latour, 2002) – de
teriano e invisível. Fantasia de torná-lo ha- maneira que podemos e devemos nos res-
bitação, de o visibilizar numa ética do sufi- ponsabilizar por nossos modos de viver
ciente (não do necessário, muito menos do juntos e nossos modos de criar mundo.
compulsório) em relação à proclamação do Não há espectadores; não há artistas, so-
Eu. Um mundo que se inaugura não a par-
mos todos (quer assumamos a responsabi-
tir da cisão, mas do esforço por perpetuar a
lidade ou não) artesãos do nosso próprio
relação ou a “des-cisão” produzindo como
convívio.
plano comum de atuação o Acontecimento.
Eis uma terceira imagem do pensa- Investigar um outro mundo possível:
mento – e da ação, que neste caso não se a emergência da secalharidade
opõem: a da reciprocidade. Uma terceira
imagem não assentada no pressuposto da Será neste lugar-questão que se situ-
entidade, da espécie, do contorno prévio ará o presente projeto de investigação:
ao encontro, mas na qual arriscamo-nos a nas afinidades entre os modos de “fazer
experimentar com as gradações da relação, problema” da antropologia contemporâ-
com a diferencialidade da diferença: e, e, nea praticada por Fernanda Eugenio e das
e... Um modo de vida em que não temos de questões suscitadas pelo método de Com-
escolher entre a existência conformada ou a posição em Tempo Real desenvolvido por
resistência dos libertarismos tiranos, onde João Fiadeiro.
temos de nos aplicar a um rigoroso (mas O projeto (tal como acontece com este
não rígido) trabalho de re-materialização texto) adota a forma do metálogo (Bateson,
(Latour 2005, 2008) de ambos os movimen- 1972) – do pensar-fazer do próprio através
tos na operação da “des-cisão”: decisão de do pensar-fazer do outro, contaminação e
des-cindir, de prescindir do entitarismo, da reinvenção cruzada de problemas, ques-
certeza (ou da desesperada busca pela cer- tões e modos de funcionamento. O metá-
teza perdida pós-moderna) de que “sou” logo: deslocar para existir (eis o re-existir),
como condição para o encontro. Re-existir empenho na manutenção e na propagação
a cada encontro, ser a consequência, e não a da abertura e do dissenso; recusa à concor-
causa, da relação. dância desejavelmente conclusiva do di-
E isto porque nos parece que resistir, álogo. Uma investigação sobre a existên-
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João Fiadeiro e Fernanda Eugenio
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cia/resistência entendida e vivida como Nesta velocidade que não é movimen-


re-existência. Portanto, não como ato de to, a criação encontra um território inteira-
“colocar-se contra”, mas como ato de “co- mente outro para fixar o seu sentido: nem
locar-se com”. Daí a importância crucial de criação no sentido bíblico (a partir do zero
se alargar a compreensão do que seja uma fazer o “é”), nem no sentido romântico (a
composição: muito claramente, um “pôr- partir do “é” do artista fazer, por capricho,
se com” o outro, a posição de cada agente o “zero”). Mas criação como estigmergia:
dada pela relação com os demais, a posição trabalho coletivo, sem sujeito e sem objeto;
conseqüente, a “com-posição”. trabalho ilimitado de re-materialização da-
Será uma proposta de habitação cola- quilo que emerge da relação; trabalho com
borativa: a da investigação sobre modos de o que se tem a cada vez e com o que fica,
operacionalizar um mundo outro que não com as marcas e os rastros do viver juntos.
o da cinética moderna e pós-moderna da Trabalho no qual ocupamo-nos tão somen-
mobilização infinita. O que envolve, antes te em distrairmo-nos suficientemente do Eu
de mais, um enorme esforço por retroceder para ativar a atenção ao entorno e ao ma-
da Ação e do Eu, um esforço por estancar nusear não manipulativo dos encaixes pos-
o imediatismo impulsivo de conhecer e sa- síveis, à calibragem fina entre o persistir e
ber “o que aquilo é”. Um esforço “subtrati- o desistir para, então, re-existir.
vo”: subtração (Deleuze, 2010) do Eu e do Criação que emerge porque nos abste-
Porquê (da fixação pelo significado, em sua mos do controle e do protagonismo e dis-
forma explicativa ou interpretativa) a fim ponibilizamo-nos enquanto ferramentas
de extrair o retorno à simplicidade do “di- “menores”, enquanto gamekeepers do “de-
reito de seguir”, ou seja, do sentido enten- senho cego” do Acontecimento. Criação,
dido tão somente como direção emergente assim, como autopoiesis (Maturana e Vare-
e não-teleológica. la, 1980) do comum. Como serendipidade –
Um esforço, então, por colocar como
encontrar aquilo que não se buscava, que
pergunta primeira a explicitação do que
não se sabia, que não se desejava, que não
“temos” mutuamente para oferecer, a cada
foi criado por nenhum autor em particu-
vez, como matéria da relação.
lar, mas que é feito dos encontros em rede
Orienta o nosso projeto um empenho
de ilimitados contributos anônimos (sem
por reformular a pergunta, na confiança
nome, sem Eu). Encontrar aquilo que “ca-
de que um mundo novo não se inaugura
lhou” ou aconteceu.
quando encontramos respostas, mas quan-
Esta é, assim, uma investigação sobre
do mudamos as perguntas. Não perguntar
um outro mundo possível, nem o da mo-
pelo Ser – “o que é que isto é?” –, mas pelo
dernidade nem o da pós-modernidade.
Ter (Tarde, 2003) – “o que é que isto tem?”
Trabalhar para tornar visíveis as affordances Talvez, quem sabe, o da Secalharidade.
(Gibson, 1977; 1979) – as propriedades-pos- Trecho selecionado da
sibilidades que convidam ao encaixe rela- conferência-performance Secalharidade
cional contingente – é, assim, também um
esforço por não operar nem indutiva nem O encontro é uma ferida. Uma ferida
dedutivamente, mas abdutivamente (Ginzs- que, de uma maneira tão delicada quanto
burg, 1999). Um esforço por retroceder do brutal, alarga o possível e o pensável, si-
que é vidente (o evidente) e abrir intervalo nalizando outros mundos e outros modos
para que se traga à superfície aquilo que o para se viver juntos, ao mesmo tempo que
vidente obscurece (ou “obvia”). subtrai passado e futuro com a sua emer-
O “motor” deste funcionamento é, as- gência disruptiva.
sim, a pausa: não a cinética incansável do to O encontro só é mesmo encontro quan-
understand, mas a sua inibição, desafio de do a sua aparição acidental é percebida
permanecer no adiamento da ação, no in- como oferta, aceite e retribuída. Dessa im-
tervalo do stand. plicação recíproca emerge um meio, um am-
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O diagrama da “secalharidade”: manusear e sustentar, em ato e a cada vez, a regulação imanente 


do viver juntos (2012). Foto: Daniel Pizamiglio/Acervo AND_Lab

biente mínimo cuja duração se irá, aos pou- que parte da premissa de que há um senti-
cos, desenhando, marcando e inscrevendo do por detrás das coisas, a ser interpretado
como paisagem comum. O encontro, então, “subjetivamente”. Num ou noutro caso,
só se efetua – só termina de emergir e come- chega-se cedo demais com um saber – lei
ça a acontecer – se for reparado e consecuti- ou ponto de vista, uno ou plural: ambos
vamente contra-efetuado – isto é, assistido, manipulação. Ambos versões de uma mes-
manuseado, cuidado, (re)feito a cada vez ma cisão entre sujeito e objeto, a repartir
in-terminável. por decreto o que pode e o que não pode
Muitos acidentes que se poderiam cada um destes entes. A setorizar no sujei-
tornar encontro, não chegam a cumprir o to, de modo unilateral, toda a capacidade
seu potencial porque, quando despontam, de agência e de produção de sentido, as-
são tão precipitadamente decifrados, ane- sim como todo o direito de legislar sobre
xados àquilo que já sabemos e às respostas o objeto para fins de diagnóstico, contro-
que já temos, que a nossa existência segue le, classificação, pacificação do espírito,
sem abalo na sua cinética infinita: não os etc. Tornado objeto, o acidente é também
notamos como inquietação, como oportu- cancelado na sua inclinação e potência de
nidade para reformular perguntas, como afetação cabendo, à força, numa certeza
ocasião para refundar modos de operar. ou num “achar”. E assim se vai existindo.
Com o pressuposto de que primeiro é “Achando” antes de se encontrar.
preciso saber para depois agir, raramen- Sendo esta a lógica dominante a operar
te paramos para reparar no acidente: mal no nosso quotidiano – a do desespero e não
ele nos apanha, tendemos a bloquear a sua a da espera; a da urgência e não a da emer-
manifestação ainda precária e incipiente. gência, a da certeza e não a da confiança –
Recuamos com o corpo e avançamos com o um acidente , só é experimentado como tal
“olhar” – que julga apenas constatar “obje- se tiver a força de uma catástrofe. Se for tão
tivamente” o que lá está – ou com o “ver”, desproporcional na sua diferença, na sua
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discrepância em relação à nossa expectati- das discordâncias, das intransigências, dos


va e aos nossos instrumentos de decifração equívocos tornados lei. “Já é tarde” para in-
e interpretação, a ponto de se antecipar e se sistir em viver “como se” o consenso fosse
sobrepor ao decreto de objetivação, levan- possível ou mesmo desejável. Para insistir
do-nos, num só folgo, de sujeitos a sujeita- numa  existência  inabalável, que pretende
dos. Então não o conseguimos ignorar nem saber por antecipação, apoiada num nexo
o domesticar: ele, simplesmente, cai-nos apriorístico e transcendente: a cada coisa
em cima. Mas o que é trágico, é que mesmo o seu nome, o seu enquadramento, a sua
este acidente-catástrofe, tão pouco tende regularidade; nenhum susto ou risco, tudo
a ser vivido como encontro, já que a cisão explicado, tudo previsto. E isso, tudo isto,
entre sujeito e objeto preserva-se, apenas já não se sustenta mais.
se invertem os seus sinais. Destituídos do Mas se já não há como prosseguir
controle que julgávamos nos pertencer de numa existência acomodada, na pacata de-
direito, paralisamos-nos ultrajados dian- simplicação do “tá-se bem”, também “já é
te da súbita soberania do acidente. Entra- tarde” tanto para a  resistência  como para
mos em crise, colocamos tudo em dúvida; a  desistência: fica cada vez mais claro que
culpamos os deuses, os pais, o estado, o não há “saída” nem “solução” a partir des-
país. Em desespero, precipitamo-nos para sas duas maneiras de nos  desresponsabili-
a arbitrariedade do “tanto faz” ou para a zarmos.
prepotência do “tudo pode”: pomos-nos a E, talvez por isso, seja este o momento
resistir. E se mesmo assim não funcionar, justo para estancar o desespero e reparar
pior ainda, pomo-nos a desistir. no que há à volta. Suspender o regime da
Só que aí já é tarde – nem o saber se urgência, criando as condições para uma
aplica mais, nem os “achismos” nos sal- abertura desarmada e responsável à emer-
vam, nem nos abrimos à estimativa recí- gência. Substituir a expectativa pela espe-
proca, perdendo assim a oportunidade de ra, a certeza pela confiança, a queixa pelo
experimentar “ao que sabe” o encontro. Já empenho, a acusação pela participação, a
não detemos o controle e muito menos as rigidez pelo rigor, o escape pelo compare-
certezas que o amparavam. Já claramente cimento, a competição pela cooperação, a
não somos nós quem decide. Entretanto, eficiência pela suficiência, o necessário pelo
como se nos tivéssemos esquecido de sin- preciso, o condicionamento pela condição,
cronizar os nossos pressupostos à atuali- o poder pela força, o abuso pelo uso, a ma-
zação do mundo, permanecemos reféns do nipulação pelo manuseamento, o descartar
decreto que nos dava a ilusão de decidir. E pelo reparar. Reparar no que se tem, fazer
é aqui que está o nó: não em termos perdi- com o que se tem. E acolher o que emerge
do o “poder de decisão” (será que alguma como acontecimento. Reencontrar, naque-
vez o tivemos?), mas em sermos incapazes la matéria simples e quotidiana em relação
de tomar uma “des-cisão”, de revogar o de- à qual aprendemos a nos insensibilizar – a
creto da cisão. matéria da “secalharidade” – reencontrar
O mundo em que vivemos hoje é jus- aí, nesse comparecer recíproco, toda uma
tamente este: aquele em que já percebe- multiplicidade de vias contingentes para
mos que não podemos decidir, mas ainda abrir uma brecha. Uma brecha para a  re-
não aprendemos a des-cindir. Um mundo existência.
em que, atônitos, nos sentimos consecu- De forma a explorar essa brecha é pre-
tivamente apanhados por acidente atrás ciso abdicar das respostas, largar a obstina-
de acidente, crise atrás de crise, incerteza ção por se definir o que as coisas “são”, o
atrás de incerteza. Apanhados pela exas- que “significam”, o que “querem dizer”, o
perada sensação de que “já é tarde”. “Já que “representam”. Deixar de lado a obses-
é tarde” para insistir na ficção de que de- são pelas causas, pelos motivos, pelas ra-
temos o controle. “Já é tarde” para insistir zões, e a procura insaciável por identificar
na negação das disparidades, dos conflitos, e acusar culpados, por fortalecer o lamento
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– enquanto, impávidas, as consequências do fragmento (parte de um todo) ao fractal


vão seguindo os seus rumos. É preciso, jus- (todo de uma parte).
tamente, ativar um trabalho com as conse- Relação: encaixe situado entre possibi-
quências, empenhado em assistir e rastrear lidades compossíveis que co-incidem.
no óbvio as oportunidades para entrar em Relação de relações: uma tendência,
plano comum. um percurso, um acontecimento que só
Se há alguma razão no encontro, não é dura enquanto não “é”, que só dura en-
a das causas e a dos sensos, mas a razão – o quanto re-existimos com ele.
ratio – das distâncias que o com-põe enquan- Viver juntos é, tão somente, adiar o fim.
to modulação distributiva de diferenças
dinâmicas, autônomas porque co-depen- Considerações Finais
dentes. É este tipo de “razão” que aparece Convocar alguém para uma “party-
quando nos envolvemos na estimativa das cipação” envolve ampliar a membrana do
variantes em jogo, no cálculo infinitesimal pequeno grupo e abrirmo-nos a uma con-
dos encaixes e das proporções suficientes. versa sobre os modos de estarmos juntos,
Isso só pode ser feito se revogarmos na partilha das responsabilidades pelo ge-
os escudos protetores seja do sujeito seja rir do nosso próprio entorno.
do objeto e se largarmos os contornos Mas como usar o que temos para de-
pré-definidos do eu e do outro. Isso só senhar um território de “party-cipação”
pode ser feito se não avançarmos de ime- franco e recíproco, quando o que temos são
diato com a vertigem do desvendamento mecanismos de poder que escoam quase
ou com a tirania da espontaneidade, en- irresistivelmente para a  representação, a
contrando tempo dentro do próprio tem- demonstração ou a exposição? E estes, a
po das coisas. Um tempo que já lá está, primeira coisa que fazem é imobilizar o ou-
entre o estímulo e a resposta, mas que tro, em algum grau, na condição de objeto,
desperdiçamos na verocidade com que retirar-lhe a agência e a responsabilidade,
cedemos ao medo e recaímos no hábito, cancelar o convite a ele recém-endereçado,
nas respostas prontas ou numa reação organizar o “evento” e suspender a hipóte-
impulsiva qualquer, apenas para saciar o se do acontecimento como acidente emer-
desespero de não saber. Isso só pode ser gente e auto-organizativo.
feito se abrirmos mão do protagonismo, Pensamos então testar modos de tornar
transferindo-o para esse lugar “terceiro”, possível a emergência da  idiorritmia – mo-
impuro e precário, que se instala a meio dos de oferecer ao Outro a possibilidade de
caminho no cruzamento das inclinações nos etnografar a nós, de disponibilizarmo-
recíprocas: o acontecimento. nos como matéria, como coisa, como com-
Se nos dermos esse tempo, esse silên- bustível a alimentar um campo de forças
cio, essa brecha; se suportarmos manter a comum, feito ao mesmo tempo da nossa
ferida aberta, se suportarmos simplesmen- (nossa e dos outros) autonomia enquanto
te (re)parar – voltar a parar para reparar no agentes individuais e da nossa (nossa e dos
óbvio até que ele se “desobvie” – então, eis outros) justa e assumida exposição a rela-
que o encontro se apresenta e nos convida, ções de co-dependência e reciprocidade.
na sua complexidade embrulhada em sim- Relações estas que estão sempre a ser (re)
plicidade. feitas, cabendo a nós (a nós e aos outros)
Encontrar é ir “ter com”. É um “entre- tornar o dispositivo que temos numa par-
ter” que envolve desdobrar a estranheza ty-cipação no aqui e no agora, mas também
que a súbita aparição do imprevisto nos numa continuada inclinação à duração.
traz. Desdobrar o que ela “tem” e, ao mes- Convocar uma “party-cipação” envol-
mo tempo, o que nós temos a lhe oferecer ve oferecemo-nos, mas oferecer também
em retorno. Desfragmentar, nas suas miu- as ferramentas que usamos – dizê-las,
dezas, as quantidades de diferença inespe- praticá-las convosco, expô-las ao vosso
radamente postas em relação. Retroceder manuseamento.
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João Fiadeiro e Fernanda Eugenio
N° 19 | Novembro de 2012 U rdimento

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Secalharidade como ética e como modo de vida: o projeto AND_Lab e a investigação das práticas de encontro e de manuseamento coletivo do viver juntos

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