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CARLOS AUGUSTO SEGATO lustragdes: Marcos Guilherme — fi — A TERRA DAS yo PERDIDAS 128 ediggo MUITO ALTO... © quintal da casa do seu Cataventi, o inventor, vivia cheio de correias, engrenagens, pecas e ferramentas. ‘Marcelinho nao se conformava. Se nao fosse tanta tranqueira ali, seria um étimo lugar para a molecada da Tua rodar pido, jogar futebol ou brincar de pique entre as arvores. Aquela era a ultima casa da rua Bem-te-vi, que terminava de encontro a um muro muito alto, Era onde comecava a curiosidade do mundo. Os mais velhos nao deixavam ninguém subir nele porque era perigoso. O que existia do outro lado? Nunca contaram as criangas. Nem o pai de Marcelinho, nem o pai do Joel, nem seu Alcides ou seu Giuseppe, ninguém. A rua, com suas dezoito ou vinte casinhas, vinha terminar no muro. A vida, a paisagem, o mundo, tudo terminava naquele muro enorme. —E melhor nao se preocupar com isso — os adultos diziam. — La nao deve haver nada que nos interesse. OS§ BOP x Eas Criancas? Que vontade de ver o que existia do outro lado daquele muro importante e misterioso! Dava pra saber que la havia arvores altas porque a sua ‘copada apontava por cima do muro e alguns galhos pendiam para o quintal do professor. E passaros também, que vinham pousar nesses galhos. O Joel, um moreninho meio gorducho, amigo inseparavel de Marcelinho, jurava que um dia desses tinha visto uma pipa colorida sendo empinada do lado de la. — Por que seré que € proibido...? — pensava alto Marcelinho, olhando para dentro da ofcina — Hum... — resmungou o velho inventor, que alguns vizinhos chamavam de “professor”, batendo nervosamente na careca. Sentado sobre a carcaca de uma lavadora de roupas, Marcelinho partiu uma tangerina e enfiou trés gomos de uma s6 vez na boca. Imaginou como seria se cada uma das sucatas do velho Cataventi de repente virasse um brinquedo. Aquilo ali ia virar um parque de diversoes. E a casa tinha tanta bugiganga e tanta desordem que até os inventos do professor qualquer hora também iam acabar parando no meio do quintal. Entao 0 menino se lembrou de seus velhos brinquedos perdidos. Duas raquetes de pingue-pongue quebradas, uma bola furada, umn caminhao-tanque chamuscado por uma fogueira inventada pelo Joel... Ha quanto tempo Marcelinho nao ganhava um brinquedo novo? Diziam que o “professor”, que morava sozinho, era um. homer muito distraido. Talvez ele nunca tivesse pensado que atrés daquele muro pudesse existir um mundo de coisas malucas e interessantes. O menino quase entrou na oficina outra vez, mas lembrou-se de que o professor esta- va jogando xedrez contra si proprio. E ficava fulo de raiva quando alguém o interrompia. Ainda mais naquele dia, que tinha perdido um relégio de estimacao... Ele movimentava uma pedra branca, levantava-se, sentava-se do outro lado da mesa e, entao, jogava com as pretas. As vezes até xingava o adversario, que era ele mesmo, Dai voltava para o lado das brancas, mexia outra pedra, e assim por diante. Marcelinho nao se aguentava e ria com os tapas que ele dava na propria careca quando errava algum lance. E © inventor se zangava ainda mais: — Nao fique ai cacoando de mim, rapazinho! Em vez disso, por que nao vai errumar alguém para jogar comigo? Bem que Marcelinho queria entender o que fazia aquele amontoado de pecas nos quadrados do tabuleiro. Pedes, éavalos, torres... Seu Cataventi tinha explicado que era 0 exército branco em guerra contra o exército preto. — Qualquer dia eu ensino vocé a jogar, menino. — Uma hora 0 senhor ainda vai encontrar um grande adversario, professor... OJOELE ALGUNS RELOGIOS Era 0 seu grande companheiro. Tirando de lado as conversas meio estranhas, nao tinha melhor parceiro do que o Joel para o jogo de taco ou de bolinhas de gude e, além disso, os dois tinham os mesmos 8 anos de idade. Viviam naquele mundo atrapalhado que era 0 quintal do seu Cataventi. E ai historias malucas rolavam: —Marcelinho, hoje eu descobri o que tem l4, atras daquele muro! —E oque é que tem? — Um rio, De um lado, tem um acampamento de ciganos. E do outro, o esconderijo de uns bandidos... — Ora, vocé ta brincando! — Verdade! Eu jurol Eu ouvi meu pai conversando com © Seu Giuseppe... —Té inventando. —Bom, nao quer acreditar, problema seu. Nao conto mais nada. Joel era uma parada. Quando queria provoca-lo de verdade, falava do relégio que ia ganhar de presente do seu padrinho. Um relogio que nem 0 que seu Alcides usava, que tinha até calculadora. Ou como aquele que seu Noné puxava do bolsinho da calea pela corrente. Nesse mesmo instante, a voz do inventor explodiu de dentro da oficina: — Meu relégio! Eu perdi o meu relégio! —Ih, de novo? — riu Joel, escondido atrés de uma bananeira. Seu Cataventi também consertava relogios e outras maquinas, além de inventar geringonces que fritavam pastéis; falavam em alemao ou estendiam roupas nos varais. S6 que se esquecia de cuidar do préprio relégio, um Omega do tempo do seu avo, que ele vivia perdendo. Da porta da oficina para fora, reinavam Marcelinho © Joel. Como naquela tarde de sol, saltando sobre eixos de automével, motores de geladeira ou tubos de televisor abandonados. Marcelinho espiou outra vez pela fresta da porta do pordo. Se o professor Catayenti ja tivesse acabado seu jogo de xadrez, entdo poderia andar 4 vontade também pela oficina, folhear revistas antigas e inventar novos brinquedos com ripas, arames e canos de plastico. Foi quando alguém bateu palmas ao portao. * SEU RODANIO Era um homem magro e alto, com uma camisa surrada ‘© uma barba preta e pontuda na cara séria, O professor convidou-o para entrar. Joel desceu de um mamoeiro e Marcelinho deixou de lado seu cavalo Silver. Quem seria o visitante misterioso? Quando conseguiram se aproximar discretamente, que nem o detetive do seriado da tarde, a conversa ja estava no fim: — Entao, o senhor pode aprontar o servico ainda esta semana? — perguntava o homem. — Claro que posso, seu Rodanio — respondeu seu Cataventi. Ai, depois de mais duas ou trés palavras, estavam se despedindo, deixando Marcelinho e Joel intrigados. Nunca tinham visto aquele homem por ali. E, depois de ele sair, seu Cataventi parecia ter ficado meio chateado... — Quem é, professor? um fregués, Marcelinho. Veio trazer uns relogios e um radio para consertar — respondeu ele, desanimado. ‘Aquele homem da barbicha preta, seu Rodanio, devia ‘ter trazido alguma mé noticia ou falado qualquer coisa de que seu Cataventi nao tinha gostado, pra deixa-lo sem graca daquele jeito. Foi o que pensou Marcelino. Mas Joel parecia nao ter notado nada. Entao, devia ser so impresséo mesmo. — Nao... é a vida! — ele suspirou. — Agora eu preciso voltar aos meus consertos. Relégios velhos, maquinas de lavar roupa, radios antigos... O inventor passou a mao pelos tufos de cabelo que cresciam dos lados da sua cabeca, ajeitou os dculos e nao. disse mais nada. tea UMA NOTICIA ABALA A RUA Ha muito tempo Marcelinho nao ganhava um brinquedo novo. O pai quase nunca tinha dinheiro, o eluguel estava atrasado e as contas subiam todo més. O Natal estava chegando e o menino nao sabia se ia ganhar um carrinho de plastico ou uma bola de borracha, para fazer companhia aos seus brinquedos jé gastos, As criancas Pobres da rua Bem-te-vi quase nunca tinham brinquedos novos. , Seu Cataventi pouco falou durante todo o resto da tarde. Ele andava tristonho naqueles dias. Nao dava bola pra ninguém quando ficava daquele jeito. Marcelinho ¢ Joel ja estevam acostumados com isso. Sabiam que nao era recomendavel entrar na oficina quando ele estava ocupado, pensando em uma engenhoca nova, ou queimando a pestana com os defeitos das coisas que os outros Ihe traziam. Ou quando ficava assim, pensando na vida. Mas para os dois meninos nao tinha problema algum. Eles brincavam até enjoar: pido, bolinha de gude, subiam na jabuticabeira, na pereira € na romazeira, empinavam cavalos de cabo de vassoura sobre a grama e depois iam embora, cansados. Aquele dia acabou assim, igual a tantos outros para os meninos. Veio a noite, os pais chegaram do trabalho e as méaes vieram chamé-los para tomar banho e jantar. E cada unt foi pra sua casa. Sabiam que seu Cataventi ia ficar ocupado na oficina até tarde, até acabar cochilando sobre @ sua banca de ferramentas. Nunca poderiam imaginar a noticia que ia correr pela rua logo cedo, no dia seguinte: — O professor Cataventi desapareceu! A vizinhanga acordou agitada. Uns queriam telefonar para a policia, outros, para os bombeiros, alguém queria chamar 0 jornal, 0 radio e a televiséo... Tudo ao mesmo tempo. Seu Cataventi estava com tanto servico para entregar, gostava tanto de passar as tardes descobrindo novas jogadas no tabuleiro de xadrez, amava o quintal, a rua, os muros € as drvores dali, era amigo de todo mundo, nao ia fugir sem mais nem menos. S6 podia ter sido sequestrado! — ... desapareceu! — seu Giuseppe acabava de contar ao seu Alcides. —QQ-— COMO ACHAR UM DETETIVE? — Eu nao falei? — foi a primeira coisa que o Joel disse Para Marcelinho, alisando o cabelo com a maozinha espalmada. —Falou o qué? — Que aquele homem, o seu Rodanio, era meio estranho. — Ora, eu nao me lembro de vocé ter falado nada... Mas nem importava agora saber se o Joel tinha falado ou nao alguma coisa a respeito do seu Rodanio. Precisavam era fazer alguma coisa. Dona Marta e dona Selma, vizinhas dali da rua e amigas do inventor, ja entravam pela casa onde o velho Cataventi morava, em busca de alguma pista do sumico, E nada! Dona Emerenciana, a empregada, tinha chegado cedinho, como fazia todos os dias, e buscado o pao, preparado o café, esquentado o leite. Depois, tinha batido na porta do quarto do inventor, também como de costume. E nada de tesposta, como nao era de costume, Enjoou de bater, Dez, vinte vezes. Ai resolveu chamar um vizinho, seu Tavino, e abriram a Porta. O quarto estava vazio. Quer dizer, vazio de gente, Porque continuava com a cama desarrumada, com Papéis, caderninhos ¢ livros velhos espalhados pelo chao, pedacos de canos, vidros com produtos quimicos... como ele era desorganizado! | —Ai, Jesus! Ele foi sequestrado! Ele foi sequestrado! —tinha saido gritando a mulher, apavorada. E nao adiantaram os pedidos de “Calma!” de seu Tavino, dona ‘Selma e dona Marta, ‘Marcelinho andava de la pra ca, preocupado. Isso era um caso para um grande detetive. Mas eles nao conheciam nenhum, a nao ser aqueles dos filmes policiais, dos desenhos animados ou dos gibis. E néo sabiam como entrar em contato com eles. — Esquece 0 detetive — resmungou Joel. — A gente nao conhece nenhum. — Claro! Ja esqueci faz tempo... — emendou Marcelinho, nao querendo perder pontos para o amigo em nenhuma situacéo. — So falei pra ver se voce tava ligado... — Se fosse 0 Capitéo Antares... — Ora, se detetive jé t8 dificil, imagine entdo herdi do espaco! — foi a vez de Marcelinho dar o troco, justamente em cima do super-herdi preferido de Joel. Andaram por toda a grama do quintal, procurando alguma pista do sumico do professor Cataventi, Nao era assim que os detetives do gibi faziam? Podia ser que achassem pegadas, sinais de luta, um galho quebrado, alguma palavra escrita na parede... Que nada! lam quase desistindo, quando, de repente, Joel deu um salto: —Tive uma ideia! —Ih, la vem ele... — Nao, é sério! Eu tava pensando em falar com o seu Toninho. —Poxal Até que enfim vocé usou a cabega.... Vamos logo! © HOMEM DA BANCA NA PRAGA A banca do seu Toninho ficava a trés quadras dali, na ponta de uma praca, debaixo das copas de um salgueiro. Os dois meninos chegaram com a pressa de quem tem uma missao importante. — Seu Toninho... — foram chamando, assim que botaram os pés na calcada, e logo ouviram a velha misica que ele costumava cantarolar: Eu sou general da banda, tele... Eu sou general da banda, le-la! Entéo o homem magro de barba clara, que estava cantarolando, surgiu sorrindo por entre os varais coloridos que se apertavam naquele pequeno espaco de lata com Purpurina, jornais e revistas, E falou: — Ora, vejam quem esta ai! Meus amiguinhos de todas as horas... —Precisamos da sua ajuda... — comecou Joel, armando um suspense. — O professor Cataventi foi sequestrado! — terminou Marcelinho, quebrando de propésito o suspense de Joel. — O qué? — respondeu 0 jomaleiro, espichando ainda mais a cabeca por uma fresta entre uma revista de esportes e um album de figurinhas do mundo artistico. — Mas nao € possivel! —E, sim. E esta todo mundo desorientado, mas ninguém sabe o que fazer. Seu Giuseppe, seu Elias, dona Marta... Acho que até ja chamaram a policia — tagarelou Joel, gesticulando para reforcar a importancia da informagéo. Foi quando Marcelinho, de repente, bateu na testa: , — Ja sei! Aquele muro que tem no fundo do quintal. Aquele muro alto! ‘Seu Toninho ajeitou os éculos grossos de quem jé tinha lido muita historia de detetive na vida. — Ora, sera que vocé nao da uma dentro? — zombou Joel. —Esperem, meninos — murmurou o jornaleiro, cogando a cabeca. — Esperem, acho que aquele lugar perigoso demais... — Por qué? Ninguém sabe direito o que tem do lado de 14... — contestou Marcelinho. — Por isso mesmo — continuou 0 jornaleiro. — E um terreno abandonado, cheio de mato, que deve servir até para esconderijo de marginais. Muito perigoso... Era o que os adultos sempre falevam: nao podia subir naquele muro, que era perigoso. Perigoso cair? Cair até que no era o pior. O perigo era o lado de la. Diziam que tinha bichos ferozes, bandidos, bruxas, assombracées... ‘Mas, mesmo morrendo de medo, qual a crianga que nao ficava doida para dar ao menos uma espiadinha? Quantas vezes os dois meninos no tinham pensado em levar uma escada até ali? Quem sabe uma corda com um gancho na ponta? Joel olhou para 0 companheiro, intrigado, com uma carinha de vocé-nao-esté-pensando- ‘o-mesmo-que-eu...? Entéo, perguntou, do jeito mais inocente que pode, para seu Toninho: — Quer dizer que o senhor também acha que tem bandidos la, do outro lado do muro? — Claro! — respondeu o homem, fazendo 0 troco de uma freguesa. — Entao foram eles que sequestraram o professor Cataventi — concluiu Marcelinho, preparando-se para . atravessar a rua outra vez, confiante. —Eil Aonde vocés vao com essa pressa? Esperem! Seu Toninho no acrecitou que estava vendo aqueles dois cochichando, animados e cordiais. Eles nao viviam pra discutir um com © outro? O que estavam tramando, com tanto entusiasmo? Mas, exatamente nesse instante, chegou um velho fregués e perguntou dos resultados do futebol na noite anterior. Um bando de andorinhas cruzava a praca, num voo em curva, fazendo uma danca barulhenta nos céus de Ribeirépolis. Seu Toninho quase se distraiu no papo do futebol, mas um minuto depois pediu licenca, deixou o seu sobrinho Alexandre tomando conta da banca e saiu atras dos meninos e do muro alto. Cee GET Os GENIOS DO BOSQUE AMARELO Ele foi alcancar Marcelinho e Joel jé virando a ultima esquina e entrando na rua Bem-te-vi, pertinho da casa do inventor desaparecido. — Ei! Meninos! Assim que olharam para tras, seu Toninho viu em seus colhos que eles estavam decididos a escalar o muro a qualquer custo. E.os perigos? Eles deviam gostar muito do velho inventor ranzinza para se arriscarem daquele jeito. —O senhor descobriu alguma coisa? — perguntou Joel. — Nao. $6 vim falar pra vocés nao tentarem subir no muro. Eu tenho certeza de que o professor Cataventi nao. esta la. — Como assim? Pois eu acho que ta... — teimou Joel. — Como é que 0 senhor sabe que nao? — Os génios do Bosque Amarelo acabaram de me assoprar que ele nao esta la... — respondeu ele, comegando a inventar uma historia para tentar fazé-los esquecer a aventura. — Génios? Que génios sao esses? E que bosque...? Entao seu Toninho convidou os dois para tomar um refrigerante numa lanchonete ali perto. No caminho, contou a seguinte historia: Tem muita coisa neste mundo que a gente pensa que esta perdida para sempre, Uma bola colorida que furou, um caozinho de estimacdo que morreu, ou mesmo a paisagem que existia na janela do quarto antes que consirulssem um prédio bem em frente, Mas a gente se engana se pensar que nunca vai dar pra recuperar o brinquedo quebrado, a roupa despedacada ou uma festa Perdida... E claro que da! Peis saibam que, gracas aos génias do Bosque Amarelo, elas ndo se perderam. Apenas foram guardadas em um lugar chamado Terra das Coisas Perdidas, E pouca gente ‘no mundo sabe disso. Sao umas terras escondidas, de propriedade dos génios, onde fica o proprio Bosque Amarelo € uma porgao de estacces e lugares que deste lado do mundo s6 existem em sonho... Al vocés perguniariam: como se faz para ir até esse lugar? * La 86 se chega com uma palaura magica... Nesse momento, Marcelinho. interrompeu seu Toninho para perguntar: — O senhor quer dizer: uma senha? — Isso! — Claro! — reforgou Joel. — E que senha € essa? — insistiu Marcelinho. Mas seu Toninho continuava, empolgado: — Foi para a Terra das Coisas Perdidas que os génios levaram os brinquedos, bichos, lugares e pessoas que os homens esqueceram ou perderam no mundo, — Puxa vidal Eu ia gostar de conhecer esse lugar — entusiasmou-se Marcelinho. — E muito longe? — Nao, Pode ser muito longe e pode ser muito perto. Depende da pessoa que for viajar até esse reino das coisas ¢ lugares que hoje s6 existem na nossa lembranca. Ha muitos caminhos para esse mundo. — Eo Bosque Amarelo? Nao entendi o que ele tema ver com essa terra — interrogou Joel. — Ele € apenas um dos lugares da Terra das Coisas Perdidas. E onde moram os génios... — E como sao esses génios? — tornou Marcelinho. — E dificil explicar, meninos. Sao como as boas qualidades das pessoas, quase invisiveis. E eles adoram fuagir da gente, como os sonhos. Sao como a amizade, a fantasia, a alegria, o amor, que nés nunca vemos mas sabemos que existem e que gragas a eles muitas coisas boas acontecem. — Ah, se agente pudesse descobrir a passagem para esse mundo! E essa palavra magica... — comecou a imaginar Joel. — Eu ainda nao descobri, mas, quando ficar sabendo, conto pra vocés, ta? — Ta legal! — responderam os dois, em coro. — Bem, agora eu preciso voltar ld pra banca — falou seu Toninho, certo de que tinha desviado a atencao dos meninos dos perigos do muro com aquela historia fantastica. — Juizo, hein? — Pode deixar, seu Toninho, —Entao, tchau! —Tehaul —falou 0 jornaleiro, confiante, dando meia- volta e retornando a sua banca enquanto cantarolava: Eu sou general da banda, lee... ‘Mas ele estava enganado. Assim que se afastou, Marcelinho cochichou para Joel: — Ele nao quis falar, mas eu sei... — Sabe o qué? — Esse caminho para a tal Terra das Coisas Perdidas. — Duvido — retrucou Joel. — E onde é, entao? — J vi que vocé nao serve para detetive... — espezinhou Marcelinho, aproveitando-se da situacao. — Fale logo. Se € que sabe alguma coisa... — Claro que sei. A Terra das Coisas Perdidas fica atras do muro da casa do seu Cataventi. Claro! Joel lembrou que sua mae nao se conformava com a perda de um anel, presente da sua madrinha, no mer de Santos. E 0 pai de Mercelinho volta e meia falava de um aparelho de barbear que tinha esquecido num hotel em ‘Sao Caetano, quando ainda era solteiro. Todo mundo tinha pelo menos uma coisa perdida na vida. Um brinquedo, um gibi antigo, um numero de telefone, um cheiro, ou uma velha cancao. Mas tinha. — Acho que vocé tem razéo — disse Joel, entregando 08 pontos. —Claro! — Mes no precisa ir estufando 0 peito. Eu detesto gente convencida. E assim foram caminhando em direcao ao quintal do professor Cataventi, aor Reema SALTANDO PARA O DESCONHECIDO . De onde estavam jé dava para enxergar o muro alto, que interrompia todo o cenério, inclusive a rua. Marcelinho e Joel tinham nascido ali, na rua Bem-te-vi. Ja estavam terminando o terceiro ano e eram capazes de ler gibis e pequenos livros infantis. A casa do professor Cataventi continuava fechada. Os dois meninos abriram cuidadosamente o portéo e entraram para o quintal. Ventava naquela manha. La estavam as 4ryores, 0 muro ¢ toda a tralha do professor: pedacos de madeira, motores, carcacas antigas, chapas de lato, tudo o que ele reaproveitava em seus reparos e invengdes malucas. — Sabe 0 que eu estou com vontade de fazer, Joel? — Acho que posso adivinhar... — ... pular o muro e procurar alguma pista do professor Cataventi la, do outro lado — completou ele. Joel pensou nas vantagens e desvantagens da aventura, e nao demorou para responder: — Eu topo! Mas meus pais nao vao deixar, Os mais yelhos ficam errepiados s6 em pensar nos perigos que pode ter 1é do outro lado... — Entao vamos aproveitar agora, que nao tem gente grande por perto. Acharam uns caixotes de madeira e pedacos de corda que seriam Uteis para a escalada do muro. Nao se esqueceram do lanche: Joel apanhou algumas peras ali mesmo no quintal, e Marcelinho catou bananas e romas. Depois de tudo pronto, subiram nos caixotes e, agarrando-se nos galhos de uma jabuticabeira, chegaram 20 alto do muro, Nenhuma das pessoas que estavam na rua naquela hora se lembrou de olhar para aquela direcao. Os meninos tinham subido sem nenhum barulho e ja se preparavam para descer do outro lado. ‘Que havia do outro lado? Quando saltaram para 0 cho, com a ajuda dos pedacos de corda emendados e dos galhos da Jabuticabeira, foram cair justamente diante do Bosque Amarelo. A ESTACAO DAS ORQUIDEAS — Sera que mora alguém por aqui? — murmurou Joel. A frente deles as arvores iam se destacando em tamanhos e formas diferentes. Havia mais arvores amarelas do que verdes, vermelhas, azuis, ou de qualquer outra cor, Os meninos, porém, estavam mais preocupados em descobrir um caminho para ir em frente do que em observar todo aquele espetaculo botanico. , —Néo sei — respondeu Marcelinho. — Mas, se morar, espero que seja amigo. Um colibri dangou sobre um galho carregado de flores © sumiu pelo bosque. E agora? Para que lado irian? Andaram um pouco e descobriram, por tras de um tronco grosso e escuro, um caminho estreito que avancava por entre as arvore: — Vamos. © caminho fazia curvas complicadas. la ser dificil segui-lo. Comecaram a sentir medo. Podia haver monstros ou bandidos ali, como haviam avisado os mais velhos. De vez em quando um esquilo ou uma raposa saltava de trés de um tronco e passava correndo por eles, quase esbarrando em seus pés. E do alto das arvores passaros cantavam sem parar. Jé deviam estar bem longe de casa. . As vezes encontravam orquideas, to bonitas que até paravam para admirar sua beleza e o contraste das suas cores. Na rua Bem-te-vi morava um colecionador de orquideas. Ele nem sonhava que ali, to perto, do outro lado do muro, havia espécies capazes de ganhar prémio em qualquer concurso do mundo. Ja estavam cansados de caminhar quando avistaram 0 fim do bosque e um barulho estranho os surpreendeu. Depois da ultima fileira de arvores, 0 chao terminava num barranco. O que haveria 14 embaixo? O barulho veio aumentando... —Parece um trem... — sussurrou Marcelinho. Os dois se aproximaram com cuidado e espiaram. La embaixo devia ser uma grande fazende. Um ribeiréo de curvas brilhantes cortia por um vale. Havia doze casinhas de madeira e uma estagdo. Bois e cabras pastavam preguicosos perto de um acude, e un bando de andorinhas voou detras de uma fileira de pinheiros. Na beira do barranco havia uma placa, onde estava escrito: ESTACAO DAS ORQUIDEAS Atras deles, uma voz estridente gritou: — Cuidaaaaadooo!!! Tarde demais. O chao onde estavam desmoronou e eles despencaram barranco abaixo. Sem ter onde se agarrar, foram caindo, caindo, rolando, e acabaram parando sobre um gramado. Quando se levantaram, ainda atordoados, ‘ouviram uma longa e frouxa gargalhada. Foi ai que viram’ um negro sorridente, com uma farda amarela e vermelha, cheia de franjas e botdes de latao. — Bem-vindos & nossa terra — saudou ele, tirando seu quepe vermelho e dourado. OTREM DAS ONZE EMEIA — Quem é 0 senhor? — perguntou Marcelinho, batendo a poeira e os pedacinhos de grama da roupa. : . — Ew sou o General da Banda. — Onde nés estamos? —Na Estacao das Orquideas — foi a sorridente resposta, — Agora me desculpem, mas preciso ir. Vocés vao ficar por aqui? —0O senhor viu o professor Cataventi? — perguntou Joel. _— Nao. Na minha banda s6 tem um professor, que sou ‘eu. Ah! Ah! Ah! Quem € esse professor Catavento? — Cataventi — corrigiu Marcelinho. — Ah, deixa pra la. Ei, espere! Quem foi que gritou “Cuidado!” antes da gente cair? — Deve ter sido’ Maja, a menina cigana. — Cigana? — perguntaram os dois, em coro. ‘Os ciganos chegaram ontem de uma longa viagem e estao acampados perto do rio. Mas as criancas adoram vir brincar e procurar frutas no bosque. ‘Os dois garotes olharam para tras. Uma menina magra © morena, da idade deles, estava parada no alto do barranco, sorrindo. Seus cabelos negros saiam debaixo do lenco estampado e caiam por tras dos ombros. Ela sacudiu o braco reluzente de pulseiras de cobre, acenando para eles. Marcelinho perguntou para o General, que ja se voltava para o seu caminho, afobado: — Para onde © senhor esta indo? — Vou apanhar o trem das onze e meia — respondeu o homem, consultando o seu relégio de pulso e comecando a andar ligeiro. Joel olhou para 0 amigo, como se perguntasse o que iriam fazer. Néo conheciam nada naquele lugar. O melhor mesmo era sairem correndo atrés do General, por aquela estradinha, até 0 prédio da estacao. O trem vinha chegando com um antincio alegre: — Pitili-piiii-piiiiuwuuuiiiiiill! — Uma maria-furnaca! — exclamou Joel. — igualzinha 4 que tinha no meu livro do ano passado. Mas a professora falou que elas quase nao existem mais... O barulho da maquina, que estavam ouvindo desde a saida do bosque, veio aumentando. — Seré que aqui ja € a Terra das Coisas Perdidas? — Claro! — ri o General. — Onde mais acham que estdo? Onibus espaciais é que nao vao encontrar por aqui... Marcelino observava tudo, impressionado. O verde dos campos brilhava ao sol da manha, e no céu nenhuma nuvem atrapalhava o passeio das andorinhas. Com sua chaminé ainda fumegante, a frente da locomotiva parecia um rosto de gente, sorrindo para os meninos. a ____ see 24 O GENERALE SEU LALAU — Vejam sé! Existe coisa mais simpatica do que um trenzinho antigo? — perguntou o General. Maria-fumaca ainda estava apitando e chiando, parada diante deles. — Quando surgiram trens mais modernos, ela foi parar num museu. Mas os génios do bosque a trouxeram para c4. — Entao quer dizer que roubaram a maria-fumaca de [a2 Mas e as criancas que visitam o museu e querem saber como ela era? — Nao, ela ndo foi roubada, Os génios foram visita-la no museu, disfargados. Quando voltaram para ca, trouxeram o trenzinho no pensamento. A maria-fumaca do museu ficou la, sem vida. E, a0 mesmo tempo, ganhou vida aqui, na Terra das Coisas Perdidas. Entenderam? No segundo vagao uma porta se abriu. Alguem estendeu uma tabua e por ela foi descendo uma banda com trombones, pratos, bumbos, pistons e tudo 0 mais que urna banda costuma ter. E veio tocando e cantando: O trem de ferro ; quando vern de Pernambuco vai fazendo xiquexique pro sertao do Ceara... oO, 25 B ‘© General comandava os misicos com uma batuta enfeitada com fitas verdes e prateadas. E ria do espanto de Marcelinho e Joel: — Eu sou o General da Banda, nao sou? E a minha banda, meninos! Os misicos foram marchando até a ponta da plataforma, deram meia-volta e vieram tocando outra musica: Eu sou general da banda, le-lé... Eu sou general da banda, le-la! — Vamos! — comandou, de repente, o General. — Estamos atrasados. Vamos logo para a Estacao do Ribeirinho! Temos um compromisso lé. Os misicos entraram de novo no vagao, sempre tocando e cantando. Joel subiu na locomotiva com Marcelinho, logo atras do General. La dentro, um homenzinho forte, com um bone alto, arrumava uma pilha de lenha. O General apontou para ele e apresentou: — Este é 0 Lalau, o foguista do trem. E eu sou o maquinista —completou, sempre sorridente. — Ora, mas néo pense que é 0 mais importante! — retrucou © foguista. — Ora, 0 maquinista ¢ o comandante do trem. — Mas 0 foguista também é importante. Sem fogo na fornalha a maria-fumaca nem sai do lugar. — Eil Nao precisam brigar...— riu Joel. — A gente sabe que os dois so importantes. Seu Lalau e o General olharam para ele meio desconcertados e acabaram com a discussdo. Entdo 0 trenzinho voltou a se movimentar. beaded O RELOGIO DO TEMPO PERDIDO Seu Lalau jogou lenha na fornalha e 0 calor avermelhou seu rosto enquanto a madeira crepitava. O General puxou um cordao e a maria-fumaca apitou trés vezes. A paisagem comecou a correr pela janela lateral. As casinhas de madeira, os bois e os pinheiros foram ficando para tras como figurinhas de um desenho. Qs meninos sentaram-se pera nao lhes contou a sua historia: — Na cidadezinha onde eu morava antes de vir para cé, ‘a minha banda tocava todo domingo no coreto. Ou quando tinha quermesse na noite fria de Sao Joao. Ou no desfile do aniversério da cidade. Mas os miisicos foram envelhecendo e a banda acabou. Antes que eu formasse outra, veio alguém e falou que retreta e coreto tinham caido de moda. E 9 pior é que 0 povo acreditou. Ai nao teve mais banda mesmo, e eu precisei arrumar outro emprego, de maquinista da maria-fumaga. Seu Lalau enfiou mais lenha e fechou a portinha da fornalha. O General continuou: —Mas uns tempos depois a Companhia de Estradas de Ferro comprou uma porgao de trens moderos, e olha eu desempregado outra vez. Foi quando os génios do bosque mandaram me convidar para ser 0 maquinista da maria- fumaca aqui na Terra das Coisas Perdidas. E eu voltei a ser feliz! Entao o General — S6 aqui mesmo para um velho maquinista e um velho foguista se sentirem felizes... — ajuntou seu Lalau. Nisso, 0 General afastou a manga da sua farda para olhar as horas. — Estamos atrasados! — comentou. — Ei, seu General! — falou Marcelinho. — Mas 0 seu reldgio esté sem ponteiros e sem nuimeros! Acho que 0 senhor os perdeu por al. — Para que ponteiros € nimeros? — respondeu homem, com a maior naturalidade. — Aqui o tempo nunca se perde mesmo. Quanto mais os homens desperdicam 0 seu precioso tempo la, onde vocé mora, mais a gente ganha aqui. Nao temos tempo perdido, ninguém fica aflito com as horas que se foram. Por isso mesmo é que é a Terra das Coisas Perdidas. Joel olhou para seu amigo, com cara de que nao tinha entendido direito aquela historia maluca de ganhar ali o tempo perdido no mundo. Se 0 tempo sempre sobrava deste lado, por que estavam atrasados? Entao por que o General usava aquele relégio esquisito, se o tempo nao tinha tanta importancia? Mas foi interrompido por mais uma gargalhada desabrida do proprio General: — Pode parar de pensar nisso, gente boa! O tempo ja passou e nos chegamos a Estacao do Jao. — Otimo! — exclamaram os meninos, pondo-se em pé. — Precisamos encontrar logo seu Cataventi. — Calma, gente! Aqui nao € 0 nosso destino — advertiu seu Lalau. — S6 vamos parar para deixar umas encomendas. — Mas nosso amigo pode estar perdido por aqui, nao? —E meio dificil — respondeu o foguista. — Nao seio que ele iria fazer no meio de tanto bicho... NA ESTACGAO DO JAO — Quem sabe nao seria bom a gente perauntar por ele? Alguém pode té-lo visto passar... — insistiu Marcelinho. Ali s6 havia mesmo 0 prédio da estacdo, que era uma casinhola de madeira. Nenhuma casa a mais, s6 mato. Um secé-boi e um flamingo ergueram a cabeca ao longe, observando curiasos a parada do trem. Um macaco- aranha saltou para a janela da locomotiva e fez uma careta para o menino, que arregalou os olhos, fascinado. Na plataforma, uma tartaruga esticou 0 pescoco para fora do casco. Tinha sido acordada e estava contrariada com caquela algazarra. Seu Lalau desceu, descarregou quatro caixas grandes e carregou outras duas e um bati de couro, Um homem alto saiu da casinha da estagao fumando um cachimbo. O foguista entregou-Ihe as notas da mercadoria. Marcelinho e Joel desceram e examinaram o lugar. —Seu Lalau, pergunte a ele se viu um senhor meio careca... — pediu Joel. O homem do cachimbo balangou a cabega e disse que nao passava ninguém por ali hé muitos dias, s6 bichos mesmo. O macaco-aranha tinha entrado num vagao e estava dando cambalhotas e fazendo micagens para os outros animais 14 fora através das janelinhas. Uma codorna- buraqueira cruzou apressada a ponta da plataforma. A tartaruga recolheu sua cara de rabugem para dentro do casco outra vez. Um tamandué-bandeira acenou, da beira da linha. — E uma judiacao o que os cacadores tém feito com esses bichos... — lastimou Marcelinho. — Vocés nao viram nada — ajuntou seu Lalau, quase em lagrimas. — Queria que vissem a beleza que s4o 0 mico-ledo-dourado, a rolinha-do-planalto ou o macarico- esquimo. A gente até podia chamar este lugar de Estacdo dos Bichos Perdictos! Porque a maioria desses ai esta em extincao... O General ja havia subido a locomotiva. Os visitantes foram entrando, apesar da vontade de passar o resto do dia ali. Mas 0 apito soou outra vez, e o trem se pos em marcha, Adiante tinha um brejo. Um jacaré-de-papo-amarelo bocejava preguicosamente, sem se importar com a folia que os macucos faziam 4 sua volta. A ultima coisa que os meninos viram, antes que todas as terras da Estacao do Jad ficassem para tras, foi 0 voo rasante de um gaviao- de-penacho. Passou o brejoe o trem fez uma curva ao redor de uma montanha. Passou por um tinel e entrou cortando uma mata. © General anunciou: — Proxima parada: Estado de Rondinhal — Por aqui tem muitas estacdes? — perguntou Joel. — Muitas! — respondeu o General da Banda, — Todas saquelas estacdezinhas do interior, por onde passava a maria-furnaca e que hoje estdo abandonadas, vieram para , Perderam a vida 14 e ganharam aqui. A Estacao de Rondinha era tao pequena quanto a do Jad, Para la havia trés caixas encomendadas, ¢ um velho indio veio apanhé-las. Guardou-as na casinhola de madeira e depois embarcou. Quando 0 trem jé ia partindo, um cigano a cavalo 0 alcancou, gritando para que o esperassem. Era um homem alto ¢ forte, com um chapéu escuro € um grande bigode preto caindo pelos cantos da boca. Tinha duas argolas pendendo das orelhas ¢ uma mochila as costas. Na sua garupa estava Maja, a menina cigana da Estacao das Orquideas. O cigano, entao, abragou-a, e ambos saltaram para 0 terceiro vagao do trem, que j4 estava em movimento. — Qual é a proxima estacéo? — perguntou Joel. —A préxima € a Estacao do Ribeirinho, que fica na Cidade Fantastica. La vocés vao poder conhecer a Casa dos Reldgios e outros lugares mais — informou seu Lalau, orgulhoso. — La é o final da linha para nos, meninos! 31 O MONO-CARVOEIRO Foi o trecho mais curto. Mal tinham comecado uma prosa qualquer e ja estavam chegando a Estacao do Ribeirinho. Era bem maior do que as outras, e muito mais movimentada. Ao seu redor tinha muitas casas. Jé estavam dentro da Cidade Fantastica. ‘A banda do General era esperada com festa. Bandeirinhas coloridas enchiam o patio da estacéo. Homens de temoe chapéu aplaudiram quando a maria-fumaga veio chiando e freando. E 0 som vibrante de um dobrado desceu pela Tampa com a marcha garbosa dos misicos. Marcelinho saltou para a plataforma logo atras do General e notou que alguns bichos tinham pegado carona nos outros vagées desde a Estacao do Jad. Uma ararinha- azul, um tatu-canastra e um mono-carvoeiro, — Aqui na Estacao do Ribeirinho é sempre festa — contou seu Lalau. —O pessoal adora misica, mesmo que seja 0 tique-taque dos relégios. Quando é som de banda, entéo, nem se fala. Um homem magro aproximou-se, tirando a cartola para cumprimenté-los: ne ee —Bem-vindos a Cidade Fantastica, amigos. Eu sou o prefeito. Espero que tenham uma feliz estada entre nos. E exatamente meio-dia e meia — completou ele, retirando um luxuoso relégio do bolso do colete. Os meninos levaram as maos a boca, tentando disfarcar 0 seu espanto. Foi Joel quem sussurrou: — Euconhego 0 senhor! E 0 seu... —Seu Toninho! — completou Marcelinho. —E um prazer recebé-los na Cidade Fantéstica, meninos — sorriu o prefeito, deixando os meninos em davida se o seu Toninho-prefeito daqui era o mesmo seu Toninho-jornaleiro de la. —Entéo o senhor mora...? — quis esclarecer Joel. —Moro aqui, neste lugar indescritivel — afirmou ele, olhando para os lados, ja preocupado com o movimento todo e a chegada da banda. —Entao o senhor descobriu a palavra magica...? — Claro! Sendo nao estaria aqui. —E néo quis conter para a gente? —A gente nao consegue contar ou ensinar para os outros, meus amigos, Todos tém essa magia adormecida. E preciso desperta-la no cora¢ao e na cabega, como uma janela que se abre para um mundo encantado, com um nome magico que é... —Fantasial — responderam em coro os meninos. Marcelinho lembrou-se de que j@ passava da hora do almogo. Ele e Joel buscaram nos bolsos as frutas que haviam colhido ainda no quintal do seu Cataventi. Avistaram um prédio em forma de torre atras da estagao. —O que é aquela casa alta? — perguntou Joel ao prefeito. 33 —E a Casa dos Relégios. Todo viajante que aqui chega vai visitd-la. Meio-dia e trinta e dois. — Casa dos Relogios? Deve ser interessante. murmurou Marcelinho. — Ei, Joel, talvez a gente possa comegar a procurar o professor por la... = Boa ideia. Mas antes precisamos lavar estas peras. Seu Toninho, o prefeito, tinha se afastado para recepcionar a banda, Os meninos avistaram um chafariz no centro de uma pequena praca, no outro lado da rua. — Vamos pra la, que eu estou com fome... — reclamou Joel. Cada vez chegava mais gente para ver a exibicao da banda. O mono-carvoeiro também ia atravessando a rua e, atrés dele, o cigano com a menina. — Querem comprar objetos antigos de cobre? Relégios Preciosos... — gritou-lhes 0 cigano. —Mas 0 General disse que a gente nao precisa de relégios pra saber o tempo perdido... — respondeu Joel, enquanto Marcelinho olhava para a garota morena. — Ora, onde se viu? O mundo inteiro precisa de relégios, menino — insistiu o cigano. — Quem nao precisa? Quem nao precisa dominar o tempo? Relégios! Aqui é a terra dos reldgios! — Mas nés s6 estamos aqui para procurar um amigo desaparecido... Enquanto conversavam, o mono-carvoeiro aproximou- se e olhou para Joel com uma expressao inteligente, como se quisesse pedir-Ihe algo. Vendo que ele se portava Coec quéTiem um ser humano, o garoto perguntou-lhe, divertido: — Deseja alguma coisa, senhor? O bicho cocou a cabega e respondeu: — Eu tenho fome, meu jovem. Poderia me ceder uma banana? Boquiaberto, Joel voltou-se para Marcelinho, que tambem estava assombrado. Tudo o que tinham nas maos ra duas romas, trés peras e quatro bananas, — Macacos falam? — sussurrou Joel. — Nao é qualquer macaco que fala, claro! Mas um mono-carvoeiro, na Terra das Coisas Perdidas, fala! Eu sou Miquerinos, as suas ordens. ‘Marcelinho, ainda mudo de espanto, estendeu-Ihe uma banana. O cigano e a menina riam a disténcia. —E por isso que nés estamos na Terra das Coisas Perdidas, meu jovem — sorriu o bicho, dando uma bocada faminta que levou metade da fruta. — Para lembrar o tempo das fabulas, das lendas, e aquele tempo em que os bichos que moravam nas matas brasileiras ainda nao estavam ameacados de extingao e também falavam! Entendeu? — Caramba! — suspirou Marcelinho. — Bem, se nao querem comprar nada, vou andando. Vou oferecer minhas coisas 4 frequesia... — disse 0 cigano, subindo a grande mochila de camurga as costas e saindo em direcao a plataforma outra vez. ‘A menina, no entanto, ficou. Joel inclinou-se e lavou as peras na agua que saia do chafariz em forma de reldgio. Marcelinho partiu uma roma € ofereceu metade a Maja, que aceitou. Aquele indio que tinha subido na Estacéo de Rondinha Passou por eles e se perdeu na multidao. Joel achou-o muito triste e calado. Mas nao estranhou muito, porque a professora tinha falado que a maioria das tribos estava em extingdo. Talvez, por isso mesmo, fossem um povo triste. Miquerinos Ihes sorriu: — Obrigado pelo alimento, meninos. Vocés foram muito gentis com um pobre mono. —Essa frute esté mesmo deliciosa! — falou a ciganinha. — Eu adoro roma, — Em qual destas estacdes vocé mora? — perguntou Marcelinho a Miquerinos. — Eu moro la na Estacao do Jaé e venho pouco aqui. A Terra das Coisas Perdidas é tao grande que muitas vezes as pessoas de uma Estacao mal conhecem as pessoas da estacao vizinha. A maioria dos bichos fica l4, nas redondezas do Jad. Aqui ficam as pessoas, os relojoeiros antigos, os aventureiros, os velhos inventores, 9s trovadores medievais... — Que interessante! — Estamos indo para a Casa dos Relégios — anunciou Joel. — Procurames um amigo desaparecido. Vocés dois querem vir com a gente? — Vamos! — disse 0 mono-carvoeiro. — Eu gostaria muito — disse Maja delicadamente. UM SUJEITO MUITO LOUCO A porta era enorme e nao tinha campainha. Marcelinho bateu duas vezes. Veio atender um homenzinho de barbicha branca. Antes que dissessem qualquer coisa, ele fez sinal para que entrassem. Os quatro desceram por uma escada de pedra até um local iluminado por quatro grandes lustres dourados. O homenzinho curvou-se 4 frente dos dois visitantes e pronunciou: —Euma evinte da tarde! — Sim, obrigado. Ja nos falaram a hora agora ha pouco — respondeu Joel. — E que aqui ¢ costume falar a hora para cumprimentar as pessoas. — Mas nés acabamos de chegar, e nem temos relégio... — Como? — espantou-se o homem, puxando a prépria barbicha. — Nao sabem entao que toda crianga ganha um relégio assim que nasce? — E que nao somos daqui. E estamos procurando um amigo que... — E ele tem relégios? — Mas o senhor s6 pensa em relégios? — perguntou Marcelinho, — Vocés nao sabem a senha para poder andar livremente pela Cidade Fantastica? — No. Qual é? —A senha é estar usando um relégio. — Ta bom — respondeu Joel, irritado. — Entdo fale para nos onde € que podemos arrumar alguns relégios, assim ninguém mais vai nos amolar... © homem falou: — Uma e meia! E uma e meial O saléo onde estavam se iluminou mais ainda. Puderam ver que na parede dos fundos havia pelo menos uns duzentos relégios pendurados. Relégios de todos os tipos, tamanhos e modelos. De madeira, de pedra, de metal, de coral, de osso. De todas as idades! Era relgio. demais. Cada um marcava uma hora diferente. Os meninos se aproximaram, enquanto atras deles o velhinho rolava no chao de tanto gargalher. — 0 que foi que ele achou tao engracado? — perguntou Joel. — Nao sei — respondeu o mono-carvoeiro, logo atras deles. — Acho que entramos num hospicio por engano. — Mas quanto relégio bonito! — falou Maja, aproximando-se também. — Uma e trinta e cinco! — gritou o homenzinho, entre uma gargalhada e outra. —Entao nés vamos embora, sem relogio nem coisa nenhuma! — ameagou Joel. — Nao! Ah! Ah! Onde se viu andar na Cidade Fantastica sem relégio? Ah! Ah! — Entao como é que a gente faz para ter um relégio? Nés nao temos dinheiro... — Ah! E quem disse que aqui existe dinheiro? — Perguntou 0 homem, vertendo lagrimas de tanto rir. — Ah! Ah! Nao tem coisa mais perdida do que dinheiro. Hoje tem um valor, amanha tem outro, depois vale menos ainda... Nao! Ah! Ah! O dinheiro ia perder o valor até aqui, na Terra das Coisas Perdidas. Nos acabamos com ele. $6 os homens de la, do mundo normal, € que se preocupam com o dinheiro, ficam arrancando os cabelos e perdendo o sono por causa disso. Para nés a historia é outra. Vamos ver se adivinham 0 que € que tem importancia aqui, em vez de dinheiro. * Nem imagino... — respondeu Joel. — Nao sei — disse a ciganinha. — Eu sei! — falou o mono-carvoeiro, batendo na testa. — Lembrancas! Quanto mais vocé consegue se lembrar das coisas, mais rico voce é. — Muito bem, Miquerinos! — aplaudiu o homem da barbicha, que parecia ja conhecé-lo de outras ocasioes. — Lembrancas? — indagaram as tres criancas, em coro. — Sim! — respondeu o homem, levantando-se do chao. — E por falar em lembrancas, vamos ao teste com voces. — Teste? Que teste? — Nao € para perguntar. E para responder. Primeiro vocé — chamou ele, apontando para Joel. — Como era 0 nome dos trés navios da esquadra de Cristovao Colombo? — Santa Maria, Pinta e Nina. — Muito bem! —o homem falou, dando um passo e apanhando um relégio azulado na parede e entregando-o ao garoto. — Agora a senhorita. Maja deu um passo a frente. —O que € que cai em pé e corre deitado? —A chuva! — respondeu ela, prontamente. — Isso nao vale! — reclamou Marcelinho. — A dela foi muito mais facil! Quem que nao conhece essa adivinha? E muito manjada. Até o mono-carvoeiro conhece essa. — Ora, garanto que vocé nao sabia — retrucou Maja, indignada com a reclamacao. © homem da Casa dos Reldgios entregou a menina um relégio de pulso em pedra lilés. E entio voltou-se para Marcelinho: — Vamos ver vocé. Qual é a peca mais importante do jogo de xadrez? Marcelinho embatucou. Nao sabia. Seria a torre? Ou o bispo? Por que nao tinha prestado mais atencao aquelas Partidas malucas que o professor Cataventi jogava contra si mesmo? E agora? O que ia acontecer se nao soubesse RAG ALM 40 responder? E, ainda por cima, parece que de propésito para irrité-lo, o homem anunciou: — Uma e cinquenta! Vamos, o tempo esta passando.., Ou seria o cavalo? Marcelinho jurou que, assim que tivesse oportunidade, ia aprender a jogar xadrez com o professor Cataventi. Seria o rei ou a rainha? Entao ele olhou para Maja, para aqueles seus olhos bonitos, e respondeu: —Arainha! — Errado! — berrou o homem. — E 0 rei. O rei é mais importante do que a rainhal —Machista! — reclamou a ciganinha. — Silencio! Vocé nao vai ter direito a sua senha! E se o fiscal o encontrar sem a senha, voce val preso! Agora, por Ultimo, o mono-carvoeiro Miquerinos. Faga uma quadrinha falando de macacos, —E facil. La vai: Voce sabe 0 que eu vi hoje La na mata do cips? Um macaco de colete E um bugio de paleto! — Muito bem! — aprovou o homem, passando-lhe um relégio de bronze com mostradores verdes. — Muito bem, nada — contestou Marcelinho, despeitado. —Era uma quadrinha sobre macacos, nao era? Macacos, no plural. E ele falou sobre um macaco sé, — Ora, um bugio também ¢ um macaco! — defendeu- se Miquerinos. — Eu falei de dois macacos. — Claro que nao! Um bugio é um bugio! Isso é légico. Errou feio! — Acertou! — gritou o homem, para Marcelinho. — $6 vocé errou. Ah! Ah! Ah! — E 0 que vai acontecer comigo? — perguntou 0 menino. — Se o fiscal te pegar sem rel6gio, vocé vai preso. Ahi Ah! — respondeu ele, continuando a rir. — Entao nao olhe para tras agora. — Por qué? — Porque tem um lobisomem ai, bem atras de vocé. — Ah, ta pensando que eu caio nessa? — riu o homem, comecando a se transformar noutra pessoa. — Essa é mais velha do que andar pra frente. Ah! Ah! Mas Marcelinho ja tinha dado um salto e arrancado um Telégio de pulso que estava pendurado na parede ao alcance da sua mao. Era um relégio verde-escuro, feito de uma pedra semipreciosa que contrastava com os ndmeros, em metal dourado. Lindo! — Eil — gritou Joel. — Ele esta se transformando no. — Seu Rodanio! — completou Marcelinho, assombrado, — Ei, espere aqui! Ah! Seu fedelho! Ah! Ah! Vem ca! Devolva meu relégio, meninol Ah! Ah! Ah! — gritou o homem, rolando no chao de tanto gargalhar. Mas os dois meninos, a ciganinha e o mono-carvoeiro ja chispavam pela porta. — Nao me deixem aqui... Ah! Ahl Ah! Estou perdendo © folego! Chamem um médico! Ah! Ah! — Sujeito mais sem graca! — resmungou Marcelinho, Puxando 0 grupo numa corrida para alcancar 0 outro lado da rua. ELA SE FOI A CIGANINHA... A banda continuava tocando na plataforma da estacao € ninguém viu os quatro atravessando a rua sorrateiramente. Ao chegar a calcada do outro lado, Joel olhou para tras e viu dois enfermeiros que saiam da Casa dos Relégios carregando um homem que se esborrachava de tanto rir. Vai ver toda a Cidade Fantastica ja estava acostumada com aquelas crises. —E agora, como é que a gente vai fazer? — indagou Marcelinho, quando chegaram a terceira esquina daquela rua. — Precisamos encontrar o professor — emendou Joel. —E capaz dele estar por aqui — disse o mono, apontando para as fachadas das casas, onde havia placas indicando Casa dos Poetas Esquecidos ou Casa dos Campedes do Passado. Outras nao tinham placa nenhuma. —Mas em qual delas? — Entéo aqui néo devia se chamar Terra das Coisas Perdidas. Mas sim, Terra das Coisas, Pessoas e Bichos Perdidos... — falou Joel. Marcelinho pensou que podiam estar atras dele por causa do relogio roubado da Casa dos Relégios. E se 0 maluco que tinha virado seu Rodanio tivesse avisado a policia daquele lugar? Os olhinhos negros de Maja brilharam quando ela se deparou com o enorme sobrado do outro lado da rua, cuja placa anunciava Casa dos Brinquedos Perdidos. —Olhem! Vamos ver o que tem la dentro! — sugeriu ela. — Mas nao é possivel! A gente preocupado em encontrar um amigo desaparecido, que pode até estar em perigo, e a Maja pensando em brincar. — Pois é! — concordou Joel. — Ei, Miquerinos, vocé que € 0 intelectual da nossa turma, nos dé uma ideia... Onde seré que podemos encontrar nosso amigo? — Eu? — surpreendeu-se Miquerinos, todo orgulhoso, estufando 0 peito. — Vamos ver, meninos, deixem-me pensar. Foram caminhando em dire¢ao ao final daquela rua. As casas continuayam, cada uma com sua placa, Casa dos Cantores Esquecidos, Casa do Cinema Mudo, Casa dos Velhos Lobos do Ma — Eu néo vou ficar aqui! Eu quero é ir conhecer a Casa dos Brinquedos Perdidos — insistiu Maja. —Ta bom, pode ir — respondeu Joel, sem mais arguments. E [4 se foi a ciganinha para a casa enorme, cujo telhado estava cheio de cataventos coloridos. No jardim, criangas empinavam pipas e brincavam com caleidoscopios. No fundo, os dois meninos também estavam loucos para ir até l4. Mas procurar um amigo desaparecido era mais importante. — Vamos comecar a perguntar para as pessoas da rua se nao viram um velhinho... — A gente podia ter perguntado pro prefeito, o seu Toninho. — E, mas nis ficamos tao abobalhados naquela hora... Foi qliando apontou na esquina um homem alto e gordo, com um imenso bigode espetado no meio do rosto rechonchudo. Por estar usando um uniforme preto, acharam que podia ser um policial. E essa impressao ficou reforcada pelo quepe preto que parecia pequeno demais na sua cabega redonda e pela sua cara de poucos amigos. Aquele homem vinha na direcao deles. — Quem €? — perguntou Marcelinho ao mono- carvoeiro, que, dos trés, era de longe quem mais conhecia aquelas terras. ‘Miquerinos s6 teve tempo de cochichar: — O fiscal... Ohomem ja estava do lado deles, brandindo um. cassetete e ordenando, com uma voz de estremecer 0 quarteirao: —A senha! Quero ver a senha de todos! + Quase paralisados, os trés estenderam o braco esquerdo ao mesmo tempo. Sé que no pulso de Marcelinho nao havia relégio algum, para espanto e tragédia do grupo. E 0 relégio que ele havia surrupiado, enganando o velhinho maluco na Casa dos Relégios? Por isso ele tinha passado mal de tanto rir? —Mas como...? — Marcelinho sussurrou para os ‘outros. O relégio havia se desintegrado, derretido, sumido? — Esta preso! — berrou 0 fiscal, agerrando com ume mao gorda e peluda o bracinho indefeso e sem senha do menino. — Ei, senhor...! — quis protestar Miquerinos. — Nao tem conversa! — respondeu o bigodudo, lancando 0 menino ao ombro. — Se nao tem senha, vai presol

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