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Edição sob licença de Jo!tn Calde[' Publishers (Londres) ,./J

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Capa: detalhe do retrato da Condessa Heu['y Creff"lhe, por Paul Nada[,
[Justraç'H's: desenhos de Mareel P,'oust
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T['adução publicada o['iginalmente em 1986 (L & PM Editores)
e revista para psta c(lição.
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Capa e projeto gráfico MAYUMI OKLJYAMA
Preparação ltOBEltTA SARAIVA COlTTINUO
Revisão MARIA HELENA AHlUG1JCGI E SAl\nlEL TITAN ;IH.
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(Funda<,~ào BibliuLeca Nacional)
~aejonal do T.Jivro
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Bcekett, Samucl cI9o(j'I98~)]
Samuel Beekel.l:: Proust
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Título original: Prousl- ",o.o~~ L~. A /JJ6-.--~.!:jJ~/,-~:lp;'
Tradução: Arthur Nestl'ovski
São Paulo: Cosae & l\aify,2003
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1. Literatura francesa ?:. J\.'1arcelProust 3. SarIluel Beckell {l~ t---Cfc.. / v-...- V'- f,-~/~J-~-I ~
COSAC & NAIF\' I~-- e-L v' ~_ / u:;- ~<--r rI.. /~i- I vi::: ~t;-~
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SAMUEL BECKETT

Proust

Tradução •
ARTHUR NESTROVSKI

Casac & Naify


Não há neste livro alusão à vida e à morte legendárias de MareeI •
Proust, nem à velha viúva tagarela das Cartas, nem ao poeta,
nem ao autor dos Ensaios, nem à Eau de Selzian, equivalente da
"beautiful botde ofsoda- water" de Carlyle.1 Preferi manter os títu-

10s em francês. As referências correspondem à abominável edi-


ção da NouíJelle ReíJue Française, em dezesseis volumes.

S.B.

A equação proustiana nunca é simples. O desconhecido, esco-
lhendo suas armas de um manancial de valores, é também o in-
cognoscível. E a qualidade de sua ação fica sob duas rubricas.
Em Proust, cada lança pode ser uma lança de Télefo. Este dua-
lismo na multiplicidade será examinado em detalhe com rela-
ção ao "perspectivismo" proustiano. Para os propósitos desta
síntese, convém adotar a cronologia interna da demonstração
proustiana, examinando em primeiro lugar esse monstro de
duas cabeças, danação e salvação - o Tempo.
Os alicerces de sua estrutura são revelados
ao narrador na biblioteca da Princesa de Guermantes (outrora
Madame Verdurin) e a natureza de seu material, na tarde se-
guinte. Seu livro toma forma em sua mente. Ele tem consciência .

9
das muitas concessões impostas ao artista literário pelas limita- As criaturas de Proust são, portanto, vítimas
J
ções da convenção literária. Como escritor, não terá liberdade desta circunstância e condição predominante: o Tempo. Vítimas
absoluta para separar efeito e causa. Será necessário, por exem- corno também o são os organismos inferiores que, conscientes
plo, interromper (desfigurar) a projeção luminosa do desejo apenas de duas dirnensões, subitamente confrontam-se com o
j
pelo cômico alívio nas feições do sujeito. Será impossível prepa- mistério da altura - vítimas e prisioneiros. Não há como fugir
rar as centenas de máscaras que por direito pertencem mesmo das horas e dos dias. Nem dc amanhã nem de ontem. Não há

aos objetos de seu mais indiferente escrutínio. Pesaroso, ele como fugir de ontem porque ontem nos deformou, ou foi por •
aceita a régua e o compasso sagrados da geometria literária.
J\
..
nós deformado. O estado emocional é irrelevante. Sobreveio
Mas não admite estender sua submissão à escala espacial, re- urna deformação. Ontem não é um marco de estrada ultrapas-
cusa-se a medir o tamanho e o peso de unI homem em termos sado, mas um diamante na estrada batida dos anos e irremedia-
de seu corpo e não em termos de seus anos. Nas palavras finais velmente parte de nós, dentro de nós, pesado e perigoso. Não
do livro, ele expõe sua posição: "Mas fosse-me concedido tempo estamos meramente rnais cansados por causa de ontem, somos
para realizar minha obra, não deixaria de estampá-Ia com o selo outros, não mais o que éramos antes da calamidade de ontem.
daquele Tempo, agora tão vivo em minha mente; e nela descre- Calamitoso dia, mas calamitoso não necessariamente por seu
veria os homens, mesmo sob risco de atribuir-Ihes com isto conteúdo. A boa ou má disposição do objeto não tem nem rea-
uma aparência monstruosa, ocupando no Tempo um lugar bem lidade nem significado. Os prazeres e pesares imediatos do
maior do que aquele tão parcamente concedido a eles no Es- corpo e da inteligência não são mais do que malformações de
paço, um lugar, em verdade, prolongado sem medida, pois, como superfície. Assim corno foi, esse dia é assimilado ao único
gigantes mergulhados nos anos, tocam eles, a uma só vez, aque- mundo que tem realidade e significado, o mundo de nossa
les períodos de suas vidas separados por tantos dias - tão dis- consciência latente, cuja cosmografia sofre assim um desloca-
tanciados no Tempo".2 mento. Estamos, portanto, na situação de Tântalo, com a dife-

10 II
rença de que nos deixamos tantalizar. E possivelmente o moto- como instrumento de evocação e provê uma imagem tão dis-
perpétuo de nossas desilusões está sujeito a maior variedade. tante do real quanto o mito de nossa imaginação ou a caricatura
As aspirações de ontem foram válidas para o eu de ontem, não fornecida pela percepção direta. Não há mais do que uma im-
para o de hoje. Ficamos desapontados com a nulidade do que pressão real e um modo adequado de evocação. Não temos o
nos apraz chamar de realização. Mas o que é a realização? A iden- menor controle sobre qualquer um dos dois.1àl realidade e tal
tificação do sujeito com o objeto de seu desejo. O sujeito mor- modo serão discutidos em seu devido lugar.
reu -- quem sabe muitas vezes - pelo caminho. Que o sujeito Mas o engenho venenoso do Tempo na ciên- •
B fique despontado com a banalidade de um objeto escolhido cia da aflição não é limitado à sua ação sobre o sujeito, ação
pelo sujeito A é tão ilógico quanto esperar que nossa fome se que, como foi demonstrado, resulta na modificação incessante de
dissipe com o espetáculo de tÍtia tomando sua sopa. Mesmo su- sua personalidade, cuja realidade permanente, se é que existe,
pondo que, por um desses raros milagres de coincidência, só pode ser apreendida como uma hipótese em retrospecto.
quando o calendário dos fatos corre paralelo ao calendário dos O indivíduo é o sítio de um constante processo de decantação,
sentimentos, a realização tenha-se dado, que o objeto do desejo decantação do recipiente contendo o fluido do tempo futuro, in-
(no sentido estrito dessa doença) tenha sido conquistado pelo dolente, pálido e monocromático, para o recipiente contendo o
sujeito, neste caso a eongruência é tão perfeita, o estado-de-tempo fluido do tempo passado, agitado e multicolorido pelo fenômeno
da realização elimina tão precisamente o estado-de-tempo da de suas horas. De maneira geral, o primeiro é inócuo, amorfo,
aspiração que o real parece o inevitável e (todo esforço intelec- sem caráter, sem qualquer virtude borgiana.3 Preguiçosamente
tual consciente de reconstituir o invisível e o impensável como ponderado em antecipação, em meio à névoa de nossa vontade
uma realidade sendo em vão) tornamo-nos incapazes de apre- enfatuada de viver, de nosso pernicioso e incurável otimismo,
ciar nosso contentamento, comparando-o com nosso pesar. A me- parece isento da amargura da fatalidade: esperando por nós e
mória voluntária, Proust o repete ad nauseam, não tem valor não esperando em nós. Em certas ocasiões, contudo, é capaz de

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suplementar os esforços de seu colega. Só é necessário que sua se encontrc definitivamente situado c designado por uma data.
superfície seja rompida pm uma data, por qualquer especiflca- Enquanto Albcrtine fora sua prisioneira, a possibilidade de
ção temporal permitindo a medida dos dias que nos separam de evasão nem mesmo chegara a perturbá-Io seriamente, já que in-
urna ameaça ou de uma promessa. Swann, por exemplo, cem- distinta e abstrata, como a possibilidade da morte. Seja qual fm
templa com resignação taciturna os meses que deve passar sepa- a opinião que nos ocorra entreter a rcspeito do tema da mortc,
rado de Odette, durante o verão. Certo dia, Odette comenta: podemos ter certeza de que não terá qualquer sentido ou valor.
"Forcheville [seu amante e, depois da morte de Swann, seu ma- A morte não nos pede mn dia livre. A arte da publicidade foi •
ri'd]o vaI. ao I',glto
L" na. .p'ascoa."S wann tra d uz: "E
.1 U vou ao E glto
. revolucionada por semelhante consideração. Assim, sou incen-
com Forcheville, na Páscoa". O fluido do tempo futuro se con- tivado não somente a experimentar o laxativo do Pastor, mas a
gela e o pobre Swann, face a face com a realidade futura de experimentá-Io às sete e trinta.
Odette e Forcheville no Egito, sofre mais penosamente do que Até aqui temos considerado um sujeito mó-
nunca a desgraça de sua presente condição. O desejo do narra- vel perante um objeto ideal, imutável e incorruptível. Mas nossa
dor de ver La Berma em Fedra é mais violentamente estimulado percepção vulgar não se refere a nada além de fenômenos vul-
pelo aviso de "Portas fechadas às duas horas em ponto" do que gares. Isenção de fluxo interno num dado objeto não altera o
pelo mistério da "palidez jansenista e mito solar" de BergoUe. fato de ele ser o correlativo de um sujeito que não goza de tal
Sua indiferença ao despedir-se de Albertine ao fim do dia em imunidade. O observador inocula o observado com sua própria
Balbec transforma-se na mais horrenda ansiedade por força de mobilidade. Além disso, quando se trata de um caso de inter-re-
um simples acordo entre ela e sua tia ou qualquer outra amiga: lação humana, encontramo-nos face ao problema de um objeto
"Amanhã, então, às oito horas". O entendimento tácito de que o cuja mobilidade não é meramente função da mobilidade do su-
futuro pode ser controlado é destruído. O evento futuro não jeito, mas independente e pessoal: dois dinamismos intrínsecos
pode ser focalizado, nem apreendidas suas implicações, até que e separados, carentes de um sistema de sincronização. De modo

'4 ,5
que, seja qual for o objeto, nosso desejo de posse é, por defini-
ção, insaciável. Na melhor das hipóteses, tudo o que se der no
Tempo (todo produto do Tempo), seja na Arte ou na Vida, só
poderá ser possuído sucessivamente, por uma série de anexa-
ções parcIaIs e nunca integralmente, de uma só vez. A tragédia
do caso Marcel-Albertine é a tragédia arquetípica das relações
humanas, cujo fracasso é preestabelecido. Minha análise dessa

catástrofe central tornará mais claro este enunciado por demais
arbitrário e abstrato do pessimismo proustiano. Mas a cada tumor As leis da memória estão sujeitas às leis mais

um bisturi e uma compressa. Memória e Hábito são atributos do abrangentes do hábito. O hábito é o acordo efetuado entre o in-

cronocarcinoma ..Ambos controlam mesmo o mais simples dos divíduo e seu meio, ou entre o indivíduo e suas próprias excen-

episódios proustianos e o entendimento de seu mecanismo tricidades orgânicas, a garantia de uma fosca inviolabilidade,

deve preceder qualquer análise particular de sua aplicação. São o pára-raios de sua existência. O hábito é o lastro que acorrenta

eles os arcobotantes do templo erigido para celebrar a sabedo- o cão a seu vômito. Respirar é um hábito. A vida é um hábito. Ou

ria do arquiteto, que é também a sabedoria de todos os sábios, melhor, a vida é uma sucessão de hábitos, posto que o indivíduo

de Brahma a Leopardi, a sabedoria que consiste não na satisfa- é uma sucessão de indivíduos (uma objetivação da vontade do

ção, mas na extirpação do desejo: indivíduo, diria Schopenhauer), o pacto deve ser continuamente
renovado, a carta de salvo-conduto atualizada. A criação do

In noi di eari inganni mundo não foi um evento único e primordial, é um aconteci-

non ehe Ia speme, il desiderio e spento. 4


rnento que se repete a cada dia. O hábito, então, é um termo ge-
nérico para os incontáveis compromissos travados entre os in-

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contáveis sujeitos que constitucm o indivíduo e seus incontáveis Porque a devoção perniciosa ao hábito paralisa nossa atenção,
objetos correspondentes. Os períodos de transição que sepa- anestesia todas as servas da percepção cl~a cooperação não lhe
rarn adaptaçôes consecutivas (já que nenhum expediente maca- seja absolutamente essencial. () hábi to é como Françoise,
bro de transubstanciação poderá transformar as mortalhas em a imortal cozinheira do lar dos Proust, que sabe o que tem de ser
fraldas) representam as zonas de risco na vida do indivíduo, feito e prefere trabalhar dia e noite feito uma escrava a tolerar
precárias, perigosas, dolorosas, misteriosas e férteis, quando por qualq uer atividade redundante na cozinha. Mas nosso hábito
um instante o tédio de viver é substituído pelo sofrimento de ser. usual de viver é tão incapaz de lidar com o mistério de um céu •
(Nesse ponto e com o coração pesado, para satisfação ou descon- incomum ou de um quarto estranho, com qualquer circunstân-
tentamento dos gidianos, semi ou absolutos, me vem a inspiração cia não prevista em nosso currículo, quanto Françoise de conce-
de conceder um breve parêntese aos analogívoros, capazes de in- ber ou dar-se conta da extensão do horror de uma orneZette à Du-

terpretar o dito "Viver perigosamente" um triunfante soluço (JaZ. Acorrem, então, as faculdades atrofiadas em nosso socorro e
em meio ao vácuo -- como o hino nacional do eu verdadeiro, exi- o máximo valor de nosso ser é restaurado. Mas circunstâncias

lado no hábito. Os gidianos advogam um hábito de vida - e par- menos dramáticas também podem gerar essa lucidez tensa e
tem em busca de um epíteto. Frase bastarda e disparatada. Impli- provisória do sistema nervoso. O hábito pode não estar morto
citamente referem-se a uma hierarquia de hábitos, como se fosse (ou praticamente morto, fadado a morrer), mas sim adormecido.
válido falar de bons hábitos e maus hábitos. Um ajustamento au- Esta segunda experiência, mais fugidia que a primeira, pode ou
tomático do organismo humano às condições de sua existência não ser isenta de dor. Não inaugura um período de transição.
tem tão pouca significação moral quanto a decisão de praticar ou Mas o primeiro e principal modo é inseparável do sofrimento e
não praticar tiro ao alvo no outono, e a exortação ao cultivo de um da ansiedade - o sofrimento do moribundo e a ansiedade ciu-

hábito faz tanto sentido quanto a exortação ao cultivo da coriza.) menta do exilado. O eu antigo resiste até o fim. Assim como foi
O sofrimento de ser: isto é, o livre jogo de todas as faculdades. mn ministro do embotamento, também era um agente de segu-

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rança. Quando deixa de prestar esta segunda função, quando
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ti ~ I.- i.-f ( , tem pela frente um fenômeno que não é capaz de reduzir à con-
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pbJ~kP-- L trai seu cargo de confiança corno um véu que protege sua vítima
L,r,~ h r!z "-'> tL do espetáculo da realidade, ele desaparece e a vítima, agora uma
iJ Iv.. t. fh;r I j ex-vÍtima, liberta por um instante, é exposta à realidade expo-
<-.rd ~ ns:) sição que tem suas vantagens e suas desvantagens. Desaparece

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um velho aos prantos, rangendo os dentes. O microcosmo
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mortal é incapaz de perdoar a relativa imortalidade do macro-
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cosmo. O uísque guarda rancor do alambique. O narrador não

'~It '~C~rJ,x- pode adormecer num quarto estranho, torturado por um teto

.:-t ./.:-iz tA t. A-h alto, acostumado que está a um teto baixo. O que está se pas-
sando? O pacto antigo prescreveu. Não continha cláusula al-
tr~~e-~ tk
11-1.:: ~ v- (I ,"'-- guma tratando de tetos altos. O hábito de amizade com o teto
~< ~)k,%- baixo não tem mais efeito e deve morrer para que um hábito de
rJ'-;( .~'1-'•••~ I amizade com o teto alto possa nascer. Entre esta morte e este
L~~~,,-i, nascimento, a realidade, intolerável, febrilmente absorvida por
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sua consciência, no limite extremo de intensidade, organizada
~f~' por sua consciência total para evitar o desastre, para criar um
tCfr/vt .V-Z: novo hábito que dissipará o mistério de sua ameaça - e também
de sua beleza. "Se o Hábito", diz Proust, "é uma segunda natu-

21
reza, ela nos conserva em ignorância da primeira e está livre de sentimento. A criatura de hábitos dá as costas àquele objeto

suas crueldades e de seus encantos." Nossa primeira essência, que nem à força poderá eorresponder a um ou outro de seus

portanto, correspondendo, como verernos rnais tarde, a unr ins- preconceitos intelectuais, que resiste às proposições de seu es-

tinto mais profundo do que o mero instinto animal de autopre- quadrão de sínteses, organizado pelo Hábito segundo princípios

serva<;ão, vem à tona durante esses períodos de abandono. E de economia de energia.


suas erueldades e seus encantos são as crueldades e eneantos da Exemplos desses dois modos a morte do

realidade. "Encantos da realidade" tem o ar de um paradoxo. Hábito e a breve suspensão dc sua vigilância -- são freqüentes •
em Proust. Transcrevo abaixo dois incidentes na vida do narra-
Mas quando o objeto é percebido como particular e único e não
eomo simples membro de uma família, quando ele aparece inde- dor. a primeiro, ilustrativo do pacto renovado, é extremamente

pendente de qualquer noção geral e desligado da sanidade de importante como preparação para um incidente posterior, que

uma causa, isolado e inexplicável à luz da ignorância, então e so- terei ocasião de discutir no contexto da memória e da revelação

mente então poderá ser uma fonte de encantamento. Lamenta- proustianas. a segundo exemplifica o pacto abandonado em

velmente, o Hábito já decretou seu veto a essa forma de percep- prol da íJia dolorosa do narrador.

ção, sua ação consistindo precisamente em esconder a essência a narrador, acompanhado de sua avô, chega

- a Idéia - do objeto na névoa dos conceitos - dos preconcei- pela primeira vez a Balbec-Plage, uma estação de veraneio na

tos. Normalmente, encontramo-nos na posição do turista (a espe- Normandia. Ficarão hospedados no Grande Hotel. Ele entra em

cificação tradicional constituiria um pleonasmo) cuja experiên- seu quarto, febril e exausto depois da viagem. Mas dormir nesse
cia estética consiste em uma séria de identificações e para quem inferno de objetos desconhecidos está completamente fora de

um guia de viagem é um fim e não um meio. Privado por natu- questão. Todas as suas faculdades estão em alerta, na defensiva,

reza da faculdade cognitiva e por sua educação de qualquer con- vigilantes e tensas e tão dolorosamente incapazes de relaxa·
tato com as leis da dinâmica, uma breve inscrição imortaliza seu mento quanto o corpo torturado de La Balue em sua gaiola,

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22
onde não podia sentar-se ou pôr-se em pé. Não há espaço para perante a exf(Jliação perpétua da personalidade, explica também
seueorpo neste apartamento vasto e hediondo, porque sua aten- seu horror à idéia de jamais viver sem Gilberte Swann, de jamais
ção o mantém povoado por uma gigantesea mohília, uma tem- perder seus pais, à idéia de sua própria morte. Mas esse pavor
pestade de sons e uma agonia de cores. O Hábito não teve tempo frente ao pensamento da separação de Gilberte, de seus pais,
ainda de silenciar as explosões do relógio, reduzir a hostilidade de si mesmo é dissipado por um terror maior, quando ele
das cortinas roxas e rebaixar a abóbada inacessível desse belve- pensa que à dor da separação sucederá a indiferença, que a pri-
dere. Sozinho nesse quarto que ainda não é um quarto, mas vação deixará de ser uma privação quando a alquimia do Hábito •
uma caverna de feras selvagens, de estranhas e implacáveis cria- tiver transformado o indivíduo capaz de sofrimento em um es-
turas cuja privacidade ele acaba de perturbar, atacado por todos tranho para quem os motivos daquele sofrimento serão não mais
os lados, ele deseja morrer. Sua avó aparece para confortá-Io, in- que uma história sem maior importância, quando não apenas os
terrompe seu movimento quando ele se abaixa para desabotoar objetos de sua afeição tiverem desaparecido, mas também aquela
as botas, insiste em ajudá-Io a despir-se, acomoda-o na cama e própria afeição; e ele pensa em como é absurdo nosso sonho de
antes de partir o faz prometer que baterá na parede divisória que um Paraíso com retenção da personalidade, já que a vida é uma
separa o seu quarto do dela caso necessite de alguma coisa du- sucessão de Paraísos sucessivamente negados, que o único Pa-
rante a noite. Ele bate e ela vem novamente em seu socorro. raíso verdadeiro é o Paraíso que perdemos e que a morte a mui-
Mas naquela noite e por muitas noites ele sofre. Esse sofrimento tos curará de seu desejo de imortalidade.
é interpretado por ele como a humilde, orgânica e obscura re- O segundo episódio que escolhi, como ilus-
cusa, por parte daqueles elementos que até então representavam tração do pacto abandonado, envolve os mesmos dois persona-
o que de melhor havia na sua vida, em aceitar a possibilidade de gens, o narrador e sua avó. Ele está há alguns dias em Doncieres,
uma fórmula na qual não terão qualquer participação. Essa relu- com seu amigo Saint-Loup. Faz uma chamada telefônica a sua
tância em morrer, essa longa, diária e desesperada resistência avó em Paris. (Depois de ler a descrição desse telefonema e de

24 25
seu não menos intenso corolátio, quando, anos depois, ele fala ao e de sua ansiedade, seu hábito encontra-se temporariamente
telefone com Albertine, tarde da noite, ao retornar à casa depois suspenso, o hábito de ternura para com sua avó. Seu olhar não
de sua primeira visita à Princesa de Guermantes, a Voz humana é mais o exercício de necromancia que vê em cada objeto esti-
de Cocteau parece não apenas uma banalidade, mas uma bana- mado um espelho do passado. A noção do que ele deveria ver
lidade desnecessária.) Depois do desentendimento de costume não teve tempo de insinuar seu prisma entre o olho e o objeto.
com as "Virgens Vigilantes" da telefonica central, ele escuta a voz Seu olho funciona com a precisão cruel de uma câmara e foto-
de sua avó, ou o que supõe ser sua voz,já que a escuta agora pela grafa a realidade de sua avó. E ele compreende horrorizado que
primeira vez, em toda sua pureza e realidade, tão diferente da voz sua avó está morta, há muito c já muitas vezes, que a figura que-
que ele se acostumara a acompanhar na partitura sensível de sua rida de sua mente, composta piedosamente ao longo dos anos
face, que não a reconhece como sendo dela. É uma voz sofrida, pela solicitude da memória habitual, não mais existe, que esta ve-
agora que sua fragilidade não está mitigada e disfarçada pela lha louca, cochilando sobre um livro, carregada de anos, tosca,
máscara cuidadosamente preparada de suas feições, e essa voz corada e vulgar, é uma estranha que ele nunca viu.
estranha e real é a medida do sofrimento de sua dona. Ele a ouve A trégua dura pouco: "de todas as plantas
também como símbolo do isolamento de sua avó, da separação humanas", escreve Proust, "o Hábito é a que requer menos cui-
deles dois, uma voz impalpável como a dos mortos. A voz se inter- dado e é a primeira a surgir na aparente desolação da pedra
rompe. Sua avó parece tão irreparavelmente perdida quanto Eu- nua". Dura pouco e é perigosamente dolorosa. A obrigação fun-
rÍdice entre as sombras. Sozinho na cabine, ele chama por ela em damental do Hábito, em torno à qual descreve os arabescos fúteis
vão. Nada poderá persuadi-Io a permanecer em Doncieres. Pre- e entorpecentes de seus próprios excessos, consiste no perpétuo
cisa ver sua avó. Ele a surpreende lendo sua adorada Madame de ajustar e reajustar de nossa sensibilidade orgânica às condições
Sévigné. Mas ele não está ali, porque ela não sabe que ele está ali. de seus mundos. O sofrimento representa a omissão desse dever,
Ele presencia sua própria ausência. E, em conseqüência da viagem seja por negligência ou ineficácia; o tédio representa seu cumpri-

26 27
mento adequado. O pêndu 10 oscila entre esses dois termos: So-
frimento que abre uma janela para o real e é a condição prin-
cipal da experiência artística-, e Tédio com seu exército de
ministros higiênicos e aprumados, o Tédio quc deve ser conside-
rado como o mais tolerável, já que o mais duradouro de todos os
males humanos. Considerada como uma progressão, essa série f~
., .

infinita de renovações nos deixa indiferentes, assim como a he- ..~P

terogeneidade de qualquer um de seus termos e a inconseqüên-


cia de cada dado termo nos perturba tão pouco quanto a comé- Proust tinha má memória como tinha um

dia de substituições. De fato, tomamos tão pouco conhecimento hábito ineficiente, ou porque tinha um hábito ineficiente. O ho-
de uma como de outra, a não ser vagamente, após o evento, ou mem de boa memória nunca lembra de nada, porque nunca es-
com clareza, quando, como no caso de Proust, dois pássaros quece de nada. Sua memória é uniforme, uma criatura de rotina,
voando têm valor infinitamente maior do que um na mão, e - se simultaneamente condição e função de seu hábito impecável,
me permitem acrescentar esta nU.r (Jomica a um aperitivo de me- um instrumento de referência e não de descoberta. A apologia de
táforas- porque o coração da couve ou o centro ideal da cebola sua memória - "Lembro-me como se fosse ontem ..." - é tam-

representariam tributo mais apropriado aos trabalhos de escava- bém seu epitáfio e indica a expressão exata de seu valor. Não
ção poética do que uma coroa de louros. Extraio a conclusão pode lembrar-se de ontem, na mesma medida em que não se
deste assunto do tesouro proustiano de frases que dizem tudo: pode lembrar de amanhã. Pode apenas contemplar o dia de on-
"Se não existisse o Hábito, a Vida teria, por certo, uma aparência tem, pendurado para secar juntamente com o feriado estival de
deliciosa para todos aqueles a quem a Morte ameaça a cada mo- maior índice de precipitação pluviométrica de que se tem regis-
mento, isto é, para toda Humanidade". tro, pouco adiante no varal. Porque sua memória é um varal e as

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-I

imagens de seu passado são roupa suja redimida, criados infali- trado por nossa extrema desatcnção e armazenado naquele úl-
velmente complacentes de suas necessidades dc reminiscência. timo c inacessível calabouço de nosso ser, para o qual o Hábito
A mcmória é obviamente condicionada pela percepção. A curio- não possuía a chave-- e não prccisa possuir, pois lá não encon-
sidade é um reflexo não condicionado e, em suas manifestações trará nada de sua útil e hedionda parafernália de guerra. Mas
mais prirnitivas,uma reação a um estímulo perigoso; mesmo em aqui, nesse "gouJJre inlerdil à nos sondes"," está armazenada a es-
suas formas superiores e aparentemente mais imparciais, rara- sência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas
mente cstá isenta de considerações utilitárias. A curiosidade é a aglutinações, que os simplistas chamam de mundo; o rnelhor,
cabeleira do hábito querendo se eriçar. É raro que nossa atenção porque acumulado sorrateira, dolorosa e pacientemente a dois
não esteja marcada, em maior ou menor grau, por esse elemento dedos do nariz da vulgaridade, a fina essência de uma divindade
animal. A curiosidade é a salvaguarda, não a morte do gato, esteja reprimida cuja disjaziofle sussurrada afoga-se na vociferação sau-
ele à beira do telhado ou à frente da lareira. Quanto mais com- dável de um apetite que abarca tudo, a pérola que pode desmen-
prometido nosso interesse, mais indelével o registro de suas im- tir nossa carapaça de cola e de cal. Pode - quando escapamos
pressões. Seu espólio estará sempre à nossa disposição, pois seu para o anexo espaçoso da alienação mental, durante o sono ou
ataque foi uma forma de defesa pessoal, isto é, a função de uma nas raras folgas de loucura diurna. Desta fonte profunda, Proust
invariável. Em casos extremos, a memória está ligada tão direta- alçará seu mundo. Sua obra não é um acidente, mas seu salva-
mente ao hábito que sua palavra ganha corpo e, ao invés de sim- mento é. As circunstâncias deste acidente serão reveladas no
plesmente disponível em casos de urgência, entra agora em vigor ápice desta pré-visão. Um clímax de segunda-mão é melhor do
por força do hábito. Assim, a distração é felizmente compatível que nada. Mas não há por que esconder o nome do mergulhador.
com a presença ativa de nossos órgãos de articulação. Repetindo, Proust o chama de "memória involuntária". A memória que não
a rememoração não se aplica a esses extratos de nossa ansie- é memória, mas simples consulta ao Índice remissivo do Velho
dade. Estritamente falando, só podemos lembrar do que foi regis- Testamento do indivíduo, ele chama de "memória voluntária".

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Esta é a memória uniforme da int.eligência; é de confiança para a ganda de saponáceo. Na verdade, se o Hábito é o Deus do Embo-
reprodução, perante nossa inspetoria sat.isfeita, daquelas impres- tamento, a memória voluntária é Shadwell fi, e de ascendência ir-
sões do passado formadas por ação conscient.e da inteligência. landesa. A memória involuntária é explosiva, "uma deflagração to-
Não demonstra int.eresse algum pelo misterioso elemento de de- tal, imediata e deliciosa". Restaura não somente o objeto passado
sa t.enção que colore nossas experiências mais triviais. Apresenta- mas também o Lázaro fascinado ou torturado por ele, não somente
nos um passado monocromático. As imagens que escolhe são tão Lázaro e o objeto, mais porque menos, mais porque subtrai o útil,
arbitrárias quanto as escolhidas pela imaginação e igualmente o oportuno, o acidental, porque em sua chama consumiu o Há-
distantes da realidade. Sua ação é comparada por Proust à de virar bito e seus labores e em seu fulgor revela o que a falsa realidade
as páginas de um álbum de fotografias. O material que fornece da experiência não pôde e jamais poderá revelar - o real. Mas a
não contém nada do passado; uma vez removida nossa ansie- memória involuntária é um mágico rebelde e não se deixa impor-
dade e nosso oportunismo, não passa de uma projeção uniforme tunar. Escolhe seu próprio tempo e lugar para a operação do mi-
e enevoada - isto é, nada. Não há grande diferença, diz Proust, lagre. Não sei quantas vezes este milagre reaparece em Proust.
entre a memória de um sonho e a memória da realidade. Quando Acho que doze ou treze. Mas a primeira - o famoso episódio da
o sujeito adormecido acorda, esta emissária do hábito corre a madeleine embebida em chá - justificaria a asserção de que seu
lhe assegurar que sua "personalidade" não desapareceu com sua livro é todo ele um monumento à memória involuntária e a epo-
fadiga. É possível (para aqueles que têm interesse em semelhan- péia de sua atuação. O mundo inteiro de Proust sai de uma taça
tes especulações) considerar a ressurreição da alma como um de chá e não apenas Combray e sua infância. Pois Combray nos
ato final de impertinência dessa mesma ordem. A memória vo- traz aos "dois caminhos" e a Swann, e a Swann é possível relacio-
luntária insiste na mais necessária, salutar e monótona forma de nar cada elemento da experiência proustiana e, conseqüente-
plágio ~ o plágio de si mesmo. Democrata incondicional, não faz mente, seu clímax e revelação. Swann está por trás de Balbec e
qualquer distinção entre os Pensamentos de Pascal e uma propa- Balbec é Albertine e Saint-Loup. Diretamente ele envolve Odette

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33
e Gilberte, os Verdurin e seu clã, a música de Vinteuil e a prosa
mágica de Bergotte; indiretamente (via Balbec e Saint-Loup), os
Guermantes, Oriane e o Duque, a Princesa e Monsieur de Char-
luso Swann é a pedra angular de toda a estrutura e a figura cen-
traI da infância do narrador, uma infância que a memória invo-
luntária, estimulada ou encantada pelo gosto há muito esquecido
de uma madeleine embebida em chá, evoca, em todo o relevo e
.~
cor de seu significado essencial, do poço raso da inescrutável ba-
nalidade de uma taça. É desse janusiano, triádico e ágil monstro ou
Divindade - Tempo, uma condição de ressurreição, porque um
instrumento de morte; Hábito, um castigo, na medida que im-
pede a exaltação perigosa da primeira e uma benção, na medida
que ameniza a crueldade da segunda; Memória, um laboratório
clínico com estoques de veneno e medicamento, de estimu-
lante e sedativo -, é Dela que a mente se afasta, para a única
compensação e único milagre de evasão tolerado por Sua tira-
nia e vigilância. Tal salvação acidental e fugidia em plena vida
sobrevirá apenas (e mesmo assim não necessariamente) quando
a ação da memória involuntária for estimulada por negligência
ou agonia do Hábito - e sob nenhuma outra condição. Proust

34 35
1

adota essa experiência mística como Leltrnotll,J de sua composi- 1. A rnadeleine embebida numa infusão de chá (Du Côté de
ção. Como a frase escarlate do Septeto de Vinteuil, ela reapa- Chez Swann, I. 69-73);

rece, urna neuralgia mais do que um tema, persistente e monó- 2. Os campanários de Martinville, vistos da carruagem do
tona; desaparece sob a superfície para emergir como uma doutor Percepied ( ibid., 258-262);

estrutura ainda mais sutil e mais nervosa, enriquecida de insó- 3. Um cheiro de mofo num lavatório público nos Champs-
litas e necessárias incrustações ornamentais, uma exposição Elysées (A I'Ornbre des JeunesFilles en Fleurs, I. 90);
mais essencial e confiante da realidade, elevando-se através 4. As três árvores, perto de Balbec, vistas da carruagem de
de uma série de ajustamentos e purificações ao cimo de onde Madame de Villeparisis ( ibid., 11. 161);

dirige e esclarece o mais humilde incidente de sua ascensão e 5. A cerca viva de espinilho, perto de Balbec ( ibid., IlI. 215);

pronuncia seu ultimato triunfante. Ela aparece pela primeira 6. Ele se abaixa para desabotoar as botas, por ocasião de
vez no episódio da rnadeleine e reaparece pelo menos cinco ve- sua segunda visita ao grande Hotel, em Balbec (Sodome
zes antes de sua múltipla e última investida na mansão de et GornorT'he, lI. 176);

Guermantes, no início do segundo volume de Les Ternps re- 7. Paralelepípedos irregulares no pátio da mansão de
troul,Jé, sua expressão integral e culminante. Desse modo, o Guermantes (Le Temps Retroul,Jé, lI. 7);
germe da solução proustiana está contido no próprio enun- 8. O som de uma colher contra um prato ( ibid., 9)
ciado do problema. A fonte e ponto de partida dessa "ação sa- 9. Ele limpa a boca com um guardanapo ( ibid. , 10)
grada",· os elementos de comunhão, são fornecidos pelo 10. O barulho da água nos canos ( ibid., 18);

mundo físico, por alguma ação imediata e fortuita da percep- lI. François le Champi, de Georges Sand (ibid., 30);

ção. O processo é quase o de um animismo intelectualizado.


Segue-se abaixo uma lista dos fetiches: A lista não está completa. Deixei de incluir
um bom número de ensaios e experiências inconclusas, nenhuma

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das quais constitui propriamente uma reaparição do motivo, mas Champi podem ser consideradas como uma única anunciação,

sim uma premonição de sua chegada. Destas evocações incom- fornecendo a chave de sua vida e de sua obra. A sexta experiência

pletas e indistintas, um certo grupo de três é especialmente sig- capital é particularmente importante (embora menos conhecida

nificativo. Ele está em casa, à espera de Mademoiselle de Sterma- do que a famosa madeleine, invariavelmente citada como arquétipo

ria (que poderia ter sido a Albertine do narrador se ela aqui não da revelação proustiana), representando não apenas uma aparição

o tivesse desapontado). É transportado sucessivamente a Bal- central do motivo, mas também uma demonstração da maquina-

bec, Doncieres e Combray pela luz do crepúsculo distinguida ria errática do hábito e da memória, na concepção do autor. Alber-

acima das cortinas de sua janela, pelo percurso escada abaixo tine e o Discurso do método proustiano, tendo esperado tanto

lado a lado com Saint- Loup e pelo denso nevoeiro que envolve tempo, podem esperar um pouco mais, e o leitor é cordialmente

a rua. Essas três evocações, embora incompletas, são intensa- convidado a desprezar esta análise sumária do que é talvez a maior

mente violentas, e por um momento ele se torna consciente da passagem jamais escrita por Proust - Les lntermittences du coeur.

matéria e substância heterogêneas desses três períodos de seu O incidente tem lugar na primeira noite da

passado: da pedra arenosa, áspera e sombria de Combray, con- segunda visita do narrador a Balbec. Nessa ocasião ele está com

trastada com o alabastro de veios rosados, compacto, brilhante e sua mãe, sua avó tendo morrido um ano antes. Mas os mortos

translúcido de Rivebelle. Mas não está só, é logo interrompido anexam os vivos, tão certamente como o Reino da França anexa

por Saint- Loup, e o que poderia ter sido o instante crucial de sua o Ducado de Orléans. Sua mãe transformou-se em sua avó, seja

vida, o clímax que não será atingido até muitos anos depois, no pela sugestão de remorso, ou por um culto idólatra aos mortos,

pátio e na biblioteca da Princesa de Guermantes, não será nada ou pelo efeito desintegrador de uma perda que rompe o casulo e

mais do que um de seus mais fugazes precursores. acelera a metamorfose de um embrião atávico, cuja maturação é

As últimas cinco graças divinas - paralelepí- lenta e imperceptível sem o estímulo do pesar. Carrega consigo a

pedos, prato e colher, guardanapo, água nos canos e François le bolsa e o regalo de sua mãe e nunca deixa de portar um volume

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.:§

de Madame de Sévigné. Ela, que outrora caçoava de sua mãe por rar uma pálpebra ao avesso e que consiste na imposição de nossa
se~ incapaz de escrever uma carta sem deixar de citar Madame de alma familiar sobre a alma aterradora de nosso ambiente". Ele se

Sévigné ou Madame de Beausergent, agora constrói suas próprias abaixa cautelosamente, sem exigir demais de seu coração
cartas a seu filho em torno de alguma frase das Cartas ou das Me- para desabotoar suas botas. Subitamente sente-se tomado por
mórias. Os motivos do narrador para essa segunda visita não são uma presença familiar e divina. Mais urna vez é restaurado a si
aqueles fornecidos por Swann e por sua fantasia - que lhe por aquela criatura cuja ternura, muitos anos atrás, num mo-
roubaram a paz enquanto Balbec conservava ainda o mistério e a mento semelhante de aflição e fadiga, trouxera-lhe um momento
beleza de seu nome, antes que a realidade substituísse a miragem de calma, por sua avó como fora então, como continuara a ser até
da imaginação pela miragem da memória e minimizasse o valor o dia fatal de seu colapso nos Champs-Elysées, depois do qual
do desconhecido, como Veneza será minimizada a seu tempo e nada mais restou dela além de um nome, de tal forma que sua
como a odisséia do calhambeque local através de uma terra mís- morte não teve, para ele, importância maior do que a da morte de
tica será minimizada pela etimologia de Brichot e pelo desprezo uma desconhecida. Agora, um ano depois de seu sepultamento,
mitigante da familiaridade. A igreja persa com seus vitrais "bor- graças à misteriosa ação da memória involuntária, ele descobre
rifados de espuma do mar" e seu campanário sobressaindo do pa- que ela está morta. A cada dado momento, nossa alma total, a
redão de granito de um penhasco normando foram substituídos despeito de sua rica folha contábil, não tem mais que um valor
pela camareira giorgionesca de Madame de Putbus. fictício. Seu ativo não é jamais negociável por completo. Mas desse
Ele chega cansado e doente, como na prévia gesto ele não extraiu meramente a realidade perdida de sua avó:
ocasião, analisada acima como exemplo da morte do Hábito. é sua própria realidade perdida que ele recuperou, a realidade
Desta feita, contudo, o dragão foi reduzido à docilidade e a ca- de seu eu perdido. Como se a imagem do Tempo pudesse ser re-
verna é um quarto. O Hábito foi reorganizado - uma operação presentada por uma série infinita de linhas paralelas, sua vida
descrita por Proust como "mais longa e mais difícil do que revi- passa para outra linha e prossegue, sem qualquer solução de

40 41
continuidade, a partir daquele momento remoto de seu passado compreender "esta dolorosa síntese de sobrevivência e aniquila-
quando sua avó se curvou sobre sua angústia. E ele é incapaz de ção". E escreve: "Não sabia ao certo se dessa impressão dolorosa
visualizar os incidentes pontuando esse longo período de intermi- e de momento incompreensível eu jamais sucederia em extrair
tência, os incidentes das últimas horas, como se nesse intervalo qualquer verdade, mas sabia que o pouco de verdade que me
ele tivesse sido inexoravelmente privado do precioso retalho na coubesse contemplar não poderia vir de qualquer outra impres-
tapeçaria de seus dias representando sua avó e seu amor por ela. são que não daquela, tão particular, tão espontânea, que não
Mas o reatamento de uma vida passada é envenenado por um fora traçada por minha inteligência nem atenuada por minha
cruel anacronismo: sua avó está morta. Pela primeira vez desde pusilanimidade, mas que a morte mesmo, a brusca revelação da
sua morte, desde os Champs-Elysées, ele a recupera viva e com- morte lavrara, como um raio, dentro de mim, segundo um dese-
pleta, como tantas vezes fora, em Combray, em Paris, em Balbec. nho sobrenatural e inumano, como um duplo e misterioso
Pela primeira vez desde sua morte, ele sabe que ela morreu, sabe sulco". Mas já a vontade, a vontade de viver, a vontade de não so-
quem está morta. Foi preciso recuperá-Ia viva e terna antes que frer, o Hábito, tendo-se recobrado de sua paralisia momentâ-
pudesse concebê-Ia morta e para sempre incapaz de qualquer nea, já tem dispostas as fundações de sua estrutura maléfica e
ternura. Esta contradição entre presença e irremediável oblite- necessária e a visão de sua avó começa a se esvair e a perder
ração é intolerável. Não apenas a memória- a experiência de aquele relevo e claridade milagrosos que esforço algum de reme-
sua predestinação mútua é abolida retrospectivamente pela cer- moração deliberada poderia conferir ou restituir. Por um ins-
teza de que é tolice falar de predestinação em casos como este, de tante, é resgatada pela visão daquela parede divisória que, como
que sua avó foi alguém que ele conheceu por acaso e os anos um instrumento, transmitira o vacilante relato de sua angústia e,
passados com ela um acidente, de que assim como antes de se alguns dias mais tarde, pelo correr de uma veneziana num vagão
encontrarem ele nada significava para ela, também agora, depois de trem, quando a evocação de sua avó é tão vívida e tão dolorosa
que ela se foi, ele nada pode significar para ela. Ele é incapaz de que ele se vê obrigado a deixar o trem e abandonar uma visita a

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iill'.!

Madame Verdurin.Mas antes que esse novo fulgor, esse fulgor aquela fosse a fotografia de uma avó e não de uma doença - pre-
antigo, revivido e intensificado possa finalmente se extinguir, o cauções traduzi das pelo narrador como frivolidades de coquete.
Calvário da pena e do remorso deve ser trilhado. A memória in- Assim que, ao contrário de Miranda,7 ele agora sofre com aquela
sistente de erueldades para com alguém que já morreu é um fla- que não vira sofrer, como se para ele, como para Françoise a
gelo, pois os mortos só estão mortos na medida que continuam quem a serva caridosa e grávida de Giott08 ou a transformação
a existir no coração do sobrevivente. E o sentimento de pena violenta do que é justo que viva no que é justo que se coma dei-
pelo sofrimento passado é uma expressão mais precisa e cruel xam totalmente indiferente, mas que se mostra incapaz de conter
desse sofrimento do que a estimativa consciente do sofredor, as lágrimas ao ser informada de que ocorreu um terremoto na
a quem se poupa ao menos um desespero - o desespero do es- China -, a dor só pudesse encontrar seu foco na distância.
pectador. O narrador relembra um incidente ocorrido durante
sua primeira estada em Balbec, à luz do qual considerara sua avó
como uma velha frívola e vaidosa. Ela insistira em ser fotografada
por Saint- Loup, para que seus netos amados guardassem pelo
menos um mínimo registro de seus últimos dias, uma verda-
deira fuzilaria de síncopes ("sÍmcopes", no dizer do gerente do
Grande Hotel, que agora revela ao narrador este primeiro assalto
da enfermidade de sua avó e involuntariamente provê, com sua
pronúncia absurda, mais um elemento de evocação dolorosa) e
colapsos, que lhe permitiram vislumbrar a morte claramente, afi-
nal, como um acontecimento já não muito distante. E ela fora me-
ticulosa quanto à pose e à inclinação do chapéu, desejando que

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mais tarde, quando Albertine já foi destacada e tornada cativa,
/'/.'
~~(r~,r quando as nebulosas dessa constelação já foram sintetizadas
numa única obsessão astral, que ele negue não apenas a reali-
dade objetiva de seu amor por ela (como foi o caso com Gil-
berte), mas também a realidade subjetiva, ao coordená-Ia com
outra imagem. Certo dia, ela olha para ele, na praia (a identifica-
ção com como Albertine é retrospectiva), e ele escreve: "Sabia
que não possuiria esta jovem ciclista se não possuísse o que
A tragédia de Albertine é preparada durante avistara em seus olhos". Sua imaginação vai tecendo um casulo
a primeira visita do narrador a Balbec, emaranhada pelo relacio- em torno dessa frágil e quase abstrata crisálida, essa unidade
namento dos dois em Paris, consolidada por sua segunda visita num grupo orgiástico de Bacantes ciclistas. É apresentado a ela
a Balbec e consumada pelo encarceramento de Albertine em pelo pintor Elstir e parte em busca de seu real conhecimento
Paris. Ela aparece a ele, pela primeira vez, absorvida pelo brilho por uma série de subtrações, cada fragmento de sua fantasia e de
da petite bande em Balbec, empurrando uma bicicleta, não mais seu desejo sendo substituídos por uma noção infinitamente me-
que um item numa intangível e inefável procissão, enovelando e nos precisa. Assim, o relacionamento de Albertine com Madame
desenovelando suas graciosas figuras contra o mar e assumindo, Bontemps, suas primeiras amabilidades, o efeito de uma pe-
aos olhos invejosos de seu adorador, uma aparência tão herme- quena e enfática marquinha no queixo, seu emprego do advérbio
ticamente inacessível quanto um friso grego ou o cortejo num "perfeitamente", ao invés de "absolutamente", a inflamação tem-
afresco. Não possui individualidade. Ela é meramente um botão porária de suas têmporas, constituindo um centro óptico de gra-
nessa delicada cerca viva de rosas quebrando a linha das ondas, vidade em torno do qual se organiza a composição de suas fei-
e esse mistério original e coletivo dapetite bande permitirá, anos ções, são elementos suficientes, quando tomados em conjunto,

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qlW sua hip(ít<~se original de que ela seria possiveluwnle a na-
morada de IHn eampeão de ciclismo 011 de 11111
box(~ador' nao

sonwnte era ineorreLa em slla delel'tnina<.:ão específ'iea, rnas ba-


seada llUlua impressão inteiranwntel:t1sa de sell car;ít(~r. Ele

conelll i que Alberti ne (~casta (' slla pri nl('i ra estada ('Ill Ball wc
. -
enC(~r'ra-se nessa lmpreSSa().

!\ correção s(~rá ef'e1l1ada por' ocasião (Ie lima


visita de Albertine, em Paris. A Ulll novo vocabulário, gual'tl(Tido
I de sof'istiea<,:ões eomo "(lt:s'tlngllé", "a nl(~U ver", "seleto" (~"Iapso
I,

r
,/ f
de Lempo", eOITeSpon(k agora uma nova Albertine, tão pr<Ídiga
.j

de favores quanto pareimoniosa antes. O narrador, supondo-a


. lI!I..
\ objeLo de lima iniciação, vô-se incapaz de esLabelecer llIlIa me-
(I t (lida comum entre esLas lrôs versôes prineipais de Alhertine: a

AlberLine arrebatada c ir'real da praia, a AlherLine r'eal e virginal


correspondendo à imagem formada por ele ao final de sua es-

tada em Balbec e agora esta terceira Albertine, que realiza as pro-


messas da pl'imeira lia segunda. "Meu excedente de eonhecimenLo

resultou num agnosticismo provis<Írio. O que poderia afirmar,

quando a hipóLese original fora inicialmente refutada e, logo a


seguir, confirmada?" E o prazer que ele Lem com AlbcrLine é in-
tensifieado pelo movimento do espírito na direção da realidade

51
imaterial que ela parece simbolizar, Balbec e seu mar "como
de i\lbertine que prometera vir e não vem e cuja demora trans-
se a posse de um objeto, a residência na cidade, fosse o equiva- forma uma simples irritação física numa chama de angústia mo-
lente da posse espiritual". Esse objeto composto do desejo ral, de modo que ele fica à escuta de seus passos, à escuta de uma
uma mulher e o mar terá seu segundo elemento subtraído por sublime chamada telefônica, e não com sua mente e seus ouvi-
ação do hábito do primeiro. O ciúme poderá formar um com- dos, mas com seu coração. Pois com sua ansiedade ele acaba de
posto secundário, restaurando o amálganw de elementos mari- adicionar mais um cristal a este ramo dos Salzburg: o cristal da
nhos e humanos, mas não mais como um estímulo visual e sim
necessidade, da mesma necessidade que o torturara em Combray
cardíaco. Mesmo essa nova Albertine, porém, será múltipla e, as- e que só sua mãe era capaz de apaziguar, com a hóstia de seus lá-
sim como as mais modernas técnicas fotográficas, que permitem bios. Mas quando ela telefona para lhe explicar sua demora,
o enquadramento de uma catedral nas arcadas de outra ou várias
quando ele sabe que ela já está a caminho, então ele se per-
outras catedrais e do panorama inteiro do horizonte sob o arco
gunta como pode ter visto nesta vulgar Albertine, semelhante ou
de uma ponte ou entre duas folhas adjacentes, decompondo mesmo inferior a tantas outras, uma fonte de consolo e salvação
desta forma a ilusão de um objeto sólido em seus multifacetados
que milagre algum poderá substituir. "Só se ama o que não se
componentes, também a breve excursão de seus lábios à face de
possui, só se ama o que nos leva a perseguir o inacessível."
Albertine criará dez Albertines, transformando uma banalidade
A segunda visita a Balbec, que se inicia com
humana numa deusa de muitas cabeças. Mas um presságio do a perda retrospectiva e o luto por sua avó, completa a transforma-
que por certo será a vida com ela se anuncia mais claramente
ção de uma criatura de superfície numa outra de profundidade
quando, depois de sua primeira visita à Princesa de Guermantes,
insondável e alcança a solidificação de um perfil. No momento
ele está sentado sozinho em seu quarto, à espera de Albertine
em que o doutor Cottard avista Albertine e sua amiga Andrée
(que, momentaneamente obscurecida pela misteriosa Mademoi- (outro membro dapetite bande) dançando juntas no Cassino em
selle de Stermaria, está longe de seu pensamento toda a noite), Incarville e pomposamente diagnostica um caso de perversão

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I'

sexual, inaugura-se a "tort.ura recíproca" de seu relacionament.o. da separação. Menciona por aeaso seu interesse pela música de
A partir desse ponto, serão só mentiras e cont.ra-mentiras, perse- Vinteuil. Albertine, cujo gost.o musical é tão primitivo quanto é
guiçôes e evasão e, da parte do narrador, um amor por Albertine refinada sua apreciação de pint.ura e arquit.etura, visando criar
cuja int.ensidade est.á relacionada, em proporção diret.a, ao su- uma impressão favorável, declara que conhece "perfeitamente
cesso de suas prevaricaçôes. Porque Albertine não é apenas uma bem" a mlÍsica de Vint.euil, graças à intimidade com Madernoi-
mentirosa como são rnent.irosos os que se crêem amados: Alber- selle Vinteuil e sua amiga, a atriz Léa. Num paroxismo de ciúme,
tine é urna mentirosa nat.a. Uma sucessão de incidentes consoli- o narrador se transporta de volta a Montjouvain, espect.ador hor-
dará as dúvidas do narrador no que concerne ao capítulo Alber- rorizado dessas duas lésbicas saboreando seu prazer num ato de
tine, isto é, estimulará ao máximo seu amor por ela. Albertine profanação da memória do próprio Monsieur Vinteuil, já morto
deixa de comparecer a um encontro, mente sobre um compro- há algum tempo. Sua visão de Montjouvain parece vir como
misso com certa mÍtica amiga de sua tia em InfreviUe, fixa o Orestes para vingar a morte de Agamenão. E ele pensa em sua
olhar na imagem refletida em um espelho de Mademoiselle avó e em suas crueldades para com ela. Albert.ine, tão sem in-
Bloch e de sua prima, duas lésbicas praticantes, e imediatamente teresse, tão remota de seu coração um rTIomento antes, torna-se
nega tê-Ias visto. O cilÍme e a sensação de impotência do narra- agora não meramente uma obsessão, mas parte dele mesmo, e
dor tendo chegado a seu ponto mais alto, o que se segue é um in- o movimento que ela faz para deixar o trem ameaça partir seu
tervalo de calma e ele se tranqüiliza com a docilidade de uma AI- corpo em dois. Ele a força a acompanhá -10 a Balbec. A praia e
bertine que está sempre à sua disposição. Ele se torna o mar não mais existem e o verão morreu. O mar é um véu in-

indiferente a esta nova criatura que não mais lhe oferece resis- capaz de esconder o horror de Montjouvain, a intolerável visão
tência. Resolve romper com ela e anuncia a decisão a sua mãe. de sadismo e lascívia e de uma fotografia profanada. Ele vê em
Ao retomar de uma festa em La Raspeliere, durante a viagem de Albertine outra RacheI e outra Odette, e a esterilidade e des-
calhambeque com Albertine, repassa mentalmente as fórmulas dém de. uma afeição ditada pelo interesse. Vê sua vida como

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i

lUna sucessão de auroras melancólicas, corrornpida pelas tortu- produzira um encantamento então, e que agora, visto que repre-
ras da memória e do isolamento. Na manhã seguinte, leva Al- senta a fragilidade de sua dorninação, ele espera abolir. Essa úl-
bertine a Paris e a encerra em sua casa. tima fase de sua associação com Albertine traz a marca de sua
A vida em comum com Albertine é vulcâ- própria origem, sua origem no ciúme dele e na falsidade dela.
mca, sua mente lacerada por uma série de erupções: Fúria, "De onde tiramos a coragem de viver, de realizar um movimento
CilÍme, Inveja, Curiosidade, Sofrimento, Orgulho, Honra e Amor. que nos preserve da morte, num mundo em que o amor é pro-
A forma deste último é preestabelecida pelas imagens arbitrárias vocado por uma mentira e consiste tão-somente na necessidade
da memória e da imaginação, uma ficção artificial à qual, para de vermos nosso sofrimento apaziguado pela criatura, seja ela
seu sofrimento, ele força Albertine a conformar-se. A pessoa de quem for, que é precisamente a causa de nosso sofrimento?"
Albertine não tem qualquer importância. Ela não é um motivo, Não há por certo, no conjunto da literatura, outro estudo compa-
mas uma noção, e tão distante da realidade quanto o retrato de rável desse deserto de solidão e recriminações que os homens
Odette pintado por Elstir, um retrato não de sua amada, mas do chamam de amor, formulado e desenvolvido com tão diabólica
amor que a deformou, está distante da Odette real. Sua ansie- inescrupulosidade. Depois disto, Adolphe é uma baba petulante,
dade, portanto, não pode ser atribuída à pessoa de Albertine, mas a falsa epopéia da hipersecreção salivar, Madame de Cambremer
a todo um processo de sofrimentos e emoções associados a essa (cujo nome, como Oriane de Guermantes observa a Swann,
pessoa e vinculados a ela pelo hábito. Sua vida com Albertine, acaba justo a tempo) aos prantos. Cada palavra e cada gesto de
não contendo sequer uma única e positiva vantagem, não é mais Albertine são envolvidos num vórtice de ciúme e de suspeita,
do que uma compensação, a garantia e símbolo de um monopó- traduzidos e mal traduzidos, explicados e mal explicados. Cada
lio. E nem sempre uma compensação, pois persiste o mistério de incidente relembrado é decomposto pelo ácido da desconfiança.
Albertine, o mistério que ele avistara em seus olhos, quando de "Nesta álgebra do desejo, minha imaginação fornecia equações
seu primeiro encontro, à beira do mar de Balbec, o mistério que para o desconhecido." Mas Albertine é uma fugitiva e nenhuma

56 57
expressão de seu valor estará completa se não for precedida por duas, para amanhã à noite. Assim, esses raros momentos de alí-
algum símbolo semelhante àquele que em física denota veloci- vio, que lhe permitem consolidar a determinação de romper
dade. Uma Albertine estática seria prontamente conquistada e com Albertine e pôr fim a essa dupla escravidão <pIeoilnpede
prontamente comparada a todas as possíveis conquistas excluí- de visitar Veneza, o impede de trabalhar, o separa de seus amigos
das por sua posse e ao infinito do que não é e talvez seja prefe- e quando muito lhe concede, e a contragosto, a satisfação amarga
rível à nulidade do que é. () amor, ele insiste, só pode coexistir de saber que nenhum rival gozará do que ele mesmo não pode
com um estado de insatisfação, seja ele nascido do ciúme ou de gozar -, esses raros períodos de relativo sossego são brusca-
seu predecessor o desejo. Hepresenta nossa busca de um mente interrompidos pela intervenção de um novo motivo de
todo. Sua origem e continuação pressupõem a consciência de ciúme ou pela transformação, no incansável cadinho de sua
que algo está faltando. "Só se ama o que não se possui inteira- mente, de algum detalhe insignificante do passado de AlberlÍne
mente." E até que ocorra o rompimento (e mesmo bem depois de em um veneno preparado para exacerbar seu ciúme, ódio ou amor
sua ocorrência, mesmo quando já está morto o objeto, graças a (termos equivalentes) e para carcomer seu coração. Por exemplo,
um ciúme retrospectivo, uTlejalousie d'escalier)9- guerra. Alber- quando ele se resolve, finalmente, pela separação, Albertine lhe
tine menciona casualmente que talvez visite os Verdurin. Ana- jura que sua tia não tem amiga nenhuma em Infreville. Não há li-
grama: "talvez faça uma visita aos Verdurin amanhã. Não sei. Não mite para a falsidade dela, nem para a capacidade de sofrimento
tenho muita vontade". Tradução: "é absolutamente certo que vou do narrador. E em meio a essa TributÍada,lo ele sabe que essa mu-
visitar os Verdurin amanhã. É absolutamente da maior importân- lher não tem qualquer realidade, que "nosso amor mais exclusivo
cia". Ele recorda que Morei prometeu reger o Septeto de Vinteuil por uma pessoa é sempre o amor por outra coisa qualquer", que
para Madame Verdurin e conclui que Mademoiselle Vinteuil e intrinsecamente ela é o mesmo que nada, mas que neste nada
sua amiga estarão entre os convidados e que Albertine, num existe uma corrente, misteriosa, invisível e ativa, que o força a se
rasgo infernal de malícia, terá combinado um encontro com as curvar e idolatrar uma Deusa implacável e obscura e a sacrificar-

58 59
~

se em sua honra. E a Deusa que requer essc sacrifício e essa hu- e determinada hora, aquele ser não nos pertence. Mas não pode-

milhação, e cujas bênçãos recaem exclusivamente sobre os cor- mos tocar todos os pontos". E ainda: "Um ser espalhado no

ruptos, e em cuja crença e arnor nasce toda a humanidade, éa tempo e no espaço não mais é uma mulher, mas uma série de

Deusa do Tempo. Nenhum objeto que se prolongue nesta di- eventos que somos incapazes de iluminar, uma série de proble-

mensão temporal será capaz de tolerar a posse, significando aqui mas de impossível solução, um oceano que, como Xerxes, casti-

posse total, só atingível por rneio de uma identificação completa gamos com varas, em nosso desejo absurdo de puni -10 por ter

entre sujeito e objeto. A impenetrabilidade da mais vulgar e in- engolfado nosso tesouro". E define o amor como "o Tempo e o

significante criatura humana não é meramente uma ilusão do Espaço tornados perceptíveis ao coração". O narrador procura

ciúme do sujeito (embora essa impenetrabilidade sobressaia com persuadir Albertine a assistir a um espetáculo especial no Troca-

maior clareza quando exposta aos raios X de um ciúme tão vio- déro, ao invés de comparecer à recepção dos Verdurin. Ela con-
sente. Evitada a ameaça de Mademoiselle Vinteuil, ele pensa em
.:1'1
lentamente hipcrtrofiado quanto o do narrador, um ciúme que é,
Albertine como um transtorno. Está a folhear preguiçosamente
sem dúvida, uma forma de seu complexo de autoridade e de seu
infantilismo, duas tendências altamente desenvolvidas em os cadernos do Figaro quando subitamente é galvanizado por
um anúncio da atuação de Léa justamente naquele espetáculo
Proust). Tudo que é ativo, tudo que está envolvido pelo tempo e
pelo espaço, é dotado do que poderia ser descrito como uma de gala à qual ele acaba de enviar Albertine. Gala! Tomado de

ideal, abstrata e absoluta impenetrabilidade. Compreende-se en- agitação, ele envia Françoise para que a traga de volta. Albertine

tão a posição de Proust: "Imaginamos que o objeto de nosso de- retorna sem ter tido oportunidade de conversar com Léa. Sua
calma é restaurada e uma vez mais destroçada por urna alusão de
sejo é urna criatura exposta à nossa frente e limitada por um
Albertine ao Buttes-Chaumont. O narrador suspeita de Andrée.
corpo. Mas, para nossa desgraça, ele é a extensão a todos os pon-
tos do espaço e do tempo que aquela criatura já ocupou e um dia Ele vê que não pode haver paz nem descanso até que Albertine

ocupará. Se não estabelecemos contato com determinado local se vá. Esquecerá dela como esqueceu de Gilberte Swann e da

6,
60
Duquesa de Gucrmantes. (Mas Gilberte está para Albertine as-
sim como a Sonata está para o Septeto ambas não passam de
estudos preparatórios.) E a idéia de cessação do sofrimento é
ainda mais intolerável do que o próprio sofrimento. "O leão de
rneu anror estrcnrecia frente à serpente do csqueeirnerrto." Ao
acordar certa manhã, durante um período de calma, ele chega a
uma decisão. Albertine deve deixá -10. Ele não mais a ama. Irá

para Veneza e a esquecerá. Toca a campainha, para que Françoise


vá buscar um guia de viagem e a tabela de horários de trem. Irá
para Vcneza, seu sonho de um tempo gótico num mar de prima-
vera. Entra Françoise: "Mademoiselle Albertine partiu às nove
horas e deixou comigo esta carta para o senhor". E, como Fedra,
ele reconhece a presença sempre vigilante dos Deuses .

... ces dieux qui dans monflanc


Om allumé lefeu/atal à tout mon sang,

Ces dieux qui se sont/ait une gloire cruelle


De réduire le coeur d'une/aible mortelle.lI

Pouco tempo mais tarde, Albertine morre,


num acidente em Touraine. Sua morte, sua emancipação do

63
Tempo, não chega a aplacar o ciúme do narrador, nem a acelerar que o que ficou para trás está ainda à sua frente. "Assim é a cruel-
o desaparecimento de urna obsessão cuja engrenagem foram os dade da memória." Ele descreve três desses estágios, arranjados
dias e as horas. Como seu amor, também eles foram anfíbios, em ordem decrescente de brutalidade. O primeiro é uma cami-
rnergulhados no passado e no presente. Existe certo clima moral nhada solitária pelo Bois de Boulogne, onde cada figura feminina
e certo calendário sentimental cujo instrumento de medida não é uma Albertine, a síntese astral da luminosa e turbulenta petite
é solar, mas cardíaco. Para esquecer Albertine, ele deve - como bande de Balbec, agora empalidecendo e se dividindo, com sime-
um homem acometido de hemiplegia - esquecer as estações, as tria inversa, em suas muitas nebulosas; o segundo, uma conversa
estações que foram deles e, como uma criança, reaprendê-Ias de com Andrée, que revela a extensão completa da traição e tristeza
novo. "Para obter consolo, precisaria esquecer não uma, mas inú-
da vida de sua amiga; finalmente, em Ve~eza, uma mensagem de
meras Albertines." E não somente um eu, mas muitos eus. Para Gilberte anunciando seu noivado com Saint-Loup e assinada
cada Albertine existe um narrador correspondente e nenhum "Albertine" graças a uma leitura equivocada da caligrafia vulgar e
anacronismo pode separar o que o Tempo uniu. Ele deve retor- pretensiosa de Gilberte. Mas essa Albertine ressuscitada dos mor-
nar e reviver cada posto de seu sofrimento já diminuído. Desse tos não pode causar distúrbio à sua real sepultura, a única sepul-
modo, seu espanto ao confrontar-se com o fato de que Albertine, tura inviolável, no cemitério malcuidado do coração. Albertine é
tão viva dentro dele, possa estar morta- o fato de sua vida ser a primeira e única, a Bacante da praia, como percebida pelo nar-
assaltada por sua morte - cederá lugar ao menos doloroso es- rador naquele ato de conhecimento puro-- de intuição - e é
panto perante o fato de que alguém que está morto continue a prisioneira que recuperou a liberdade e a vida, dona de si entre
sendo causa de suas preocupações -- o fato de sua morte ser as jovens lavadeiras, banhando-se no Loire. Esta última confirma-
assaltada pela noção de sua vida. Mas as estações desse calvário ção de sua perspectiva original é típica da caracterização prous-
invertido retêm seu dinamismo original, seu crescendo, sua ten- tiana. Do mesmo modo, há uma sugestão de congruência entre a
dência rumo à cruz. A cada parada ele sofre com a alucinação de última Duquesa de Guermantes, como ela aparece na matinée de

64 65
seu primo, e a gentil libertina descendente de Genevieve de Bra- terar a capacidade de sofrimento, ao invés de lutar em vão para re-
bant, exposta pela primeira vez à adoração do narrador na Igreja duzir o estímulo que alimenta tal capacidade. "Nau cite Ia .\perne, il
de Saint-Ililaire, em Combray, assistindo à missa na capela de desiderio ... " "Desejamos ser compreendidos porque desejamos ser
Gilberto, o Mau, seus olhos de caramujo sorridentes e inquietos, arnados e desejamos ser amados porque amamos. Somos indife-
os raios de luz filtrados no vitral, ou saídos da f~lÍxana cintura da rentes à compreensão dos outros e seu amor é um transtorno."
própria Genevieve, banhada no rnistério da era merovíngia c no Mas se o amor, para Proust, é função da tris-
imortal e lendário esplendor de seu nome. E Gilberte emerge teza do homem, a amizade é função de sua covardia; e se ne-
também de suas sucessivas transformações, da Gilberte Swann nhum dos dois pode concretizar-se, devido à impcnctrabilidade
~
dos Champs-Elysées, Mademoiselle de Forcheville depois da (ao isolamento) de tudo que não for cosa rnentale,12 ao menos o
morte de Swann, à Madame de Saint-Loup e, finalmente, com a fracasso da posse terá, talvez, a nobreza do que é trágico, en-
morte de Robert, à Duquesa de Guermantes, semelhante à sua quanto que a tentativa de se comunicar onde não é possível
primeira imagem, entrevista através de uma sebe de espinilho ro- qualquer comunicação não passa de vulgaridade simiesca ou
sado, uma ninfa atrevida apoiada em sua pá, em meio às paredes horrendamente cômica, corno o delírio que sustenta um diálogo
cor de eobre e cobertas de jasmim. E ele vê seu amor por Alber- com a mobília. A amizade, segundo Proust, é a negação da soli-
tine eomo confirmação de seu ato original de clarividência e dão irremediável à qual cada ser está condenado. A amizade pres-
como afirmação, a despeito das negações da razão, de sua imagem supõe uma aceitação quase piedosa das aparências. A amizade é
como uma esquiva e voraz gaivota, hostil e distante contra o mar. um expediente social, como earpetes e cortinas ou a distribuição
"Em meio à mais completa cegueira, subsiste a perspicácia, sob de sacos de lixo. Não tem qualquer significado espiritual. Para o
forma de ternura e predileção. De modo que é um erro falar de artista, que não lida com superfícies, a rejeição da amizade é não
má escolha no amor, já que o mero fato de ter havido escolha su- só razoável, mas necessária. Porque o único desenvolvimento
gere que ela foi má." E, como antes, a sabedoria consiste em obli- espiritual possível é no sentido da profundidade. A tendência

li

66 67
,~

artística não é de expansão, mas de contração. E arte é a apoteose


I se no mesmo nível de confusão que as nossas." Para ele, o exer-
da solidão. Não há eomunicação porque não há veíeulos de co- cício da amizade é equivalente a um sacrifício da única essência
municação. Mesmo nas raras oeasiões em que palavra e gesto real e incomunicável de nós mesmos às exigências de um hábito
oeorrem ser expressões válidas da personalidade, perderão seu amedrontado, cuja confiança precisa ser restaurada por uma
significado ao passar através da catarata da personalidade alheia. dose de atenção. Representa um falso movimento do espírito-
Ou falamos e agimos por nós mesmos - e neste easo ação e fala de dentro para fora, da assimilação espiritual do imaterial que
serão distorcidas e esvaziadas de seu significado por uma inteli- nos mostra o artista, extraído por ele da vida, às cascas abjetas e
gência que não é nossa ---,ou então falamos e agimos pelos outros indigestas do contato direto com o material e o concreto, com o
- e neste caso mentimos. "Mentimos incessantemente durante que chamamos de material e concreto. Assim, visitará Balbec e
toda a vida", esereve Proust, "em especial àqueles que nos amam Veneza, conhecerá Gilberte e a duquesa de Guermantes e Alber-
e acima de tudo àquele estranho cujo desprezo rios causaria a tine, impelido não pelo que são, mas por seus equivalentes ideais
mais profunda dor--- nós mesmos." Mas o desdém de meia dú- e arbitrários. A única investigação fértil é escavatória, imersiva,
zia -- ou meio milhão - de sineeros imbecis para com um ho- uma contração do espírito, um movimento descendente. O ar-
11

mem de gênio por certo deveria curar-nos de nosso puntiglio tista é ativo, mas negativamente, esquivando-se da nulidade de
absurdo e de nossa capacidade de nos deixar afetar por aquela fenômenos extracircunferenciais, atraído pelo centro do rede-
calúnia abreviada que chamamos de insulto. moinho. Não pode cultivar a amizade porque !1 amizade é a força
Proust situa a amizade nalgum ponto entre a centrífuga de autonegação e medo de si mesmo. Saint-Loup tem
fadiga e o tédio (ennui). Ele discorda da concepção nietzschiana de ser considerado como algo mais geral, como um produto da
de que a amizade deve ser baseada na simpatia intelectual, por- mais antiga nobreza da França, e a beleza e desembaraço de sua
que não vê na amizade qualquer significado intelectual. "Estamos ternura para com o narrador - como, por exemplo, quando des-
de acordo com aqueles cujas idéias (não-platônicas) encontram- creve o mais delicado e gracioso movimento de acrobacia, em

68 69
IIi

pleno restaurante parisiense, para impedir que seu amigo seja trágica representa a expiação do pecado original, do pecado
perturbado são apreciados não como manifestações de uma original e eterno, cometido por ele e por todos seus socii malo-
personalidade especial e encantadora, mas como inevitáveis rum13, o pecado de haver nascido:
acessórios de um berço e de uma educação muito acima do co-
mum. "O homem", diz Proust, "não é urn mero edifício que Pues el delito moyor
DeI hombre es haber nascido. H
pode crescer se aumentarmos sua superfície, mas uma árvore
cujo tronco e ramagem são expressão de seiva interior." Esta-
mos sós. Incapazes de compreender e incapazes de sermos
compreendidos. "O homem é a criatura que não consegue sair
de si, que só conhece os outros em si mesmo e que, quando
afirma o contrário, mente."

Aqui, como sempre, Proust está inteira-


mente livre de qualquer consideração moral. Não há certo e er-
rado em Proust, nem no mundo. (Salvo talvez naquelas passa-
gens tratando da guerra, quando por um momento ele deixa de
ser um artista e une sua voz aos apelos da plebe, do populacho,
da multidão, do povaréu.) A tragédia não diz respeito à justiça
dos homens. A tragédia é o relato de uma expiação, mas não a
expiação insignificante de uma quebra codificada de um acordo
local, redigido por patifes para usufruto dos tolos. A figura

7° 71
I
um fim, mas não uma conclusão. E ele pensa em como vazia é a
.~~ frase de Bergotte: "as alegrias do espírito". Porque a arte, por
tanto tempo seu ideal de um elemento inviolável em meio a um
mundo venal, parece agora, seja devido à sua pessoal e incurável
falta de talento ou à inerente artificialidade dela mesmo, tão irreal
ou estéril quanto as fantasias de uma imaginação enlouquecida
--- "desse realejo doido, que sempre toca a melodia errada"; e a
matéria da arte Fausto e Beatriz e o "azur du ciel immense et
A caminho da mansão de Guermantes, ele rond"15 e as cidades à beira-mar-, toda a beleza absoluta de um
sente que tudo está perdido, que sua vida é uma sucessão de per- mundo mágico, é tão vulgar e desprezível em sua realidade
das, destituída de realidade porque nada sobrevive, nada de, seu quanto RacheI e Cottard, e pálida e triste e fatigada e inconstante
amor por Gilberte, pela Duquesa de Guermantes, por sua avó e e cruel como a lua de Shelley. Assim, depois de anos de solidão
nada agora de seu amor por Albertine, nada de Combray, Balbec infrutífera, é sem nenhum entusiasmo que ele se força a retornar
i.j,(

e Veneza, exceto as imagens distorcidas da memória voluntária, a uma sociedade que há muito já não lhe diz nada. E agora, na vi-
uma vida longitudinal, uma seqüência de ajustamentos e deslo- zinhança dessa futilidade, favorecido pela própria depressão e fa-
camentos, onde nem o mistério nem a beleza são sagrados, onde diga, que aparecem, para seu desgosto, como conseqüência de
tudo, exceto as colunas inflexíveis de seu tédio duradouro, foi um minuto de estéril lucidez (favorecido porque as pretensões
consumido no solvente torrencial dos anos, uma vida tão procras- de uma memória desencorajada estão de momento reduzidas à
tinada no passado e tão inexpressiva no futuro, tão completamente sua mais imediata e utilitária expressão), ele receberá o oráculo
despojada de qualquer necessidade individual e permanente, até então invariavelmente negado à mais elevada tensão de seu
que sua morte, agora ou amanhã ou em um ano ou em dez, seria espírito, o que sua inteligência não fora capaz de extrair do

72 73
enigma sísmico da flor, da árvore, do gesto e da arte, e passará cem sua ansiedade e suas dúvidas a respeito da realidade da arte
por uma experiência religiosa, no único sentido inteligível do e da vida, ele é surpreendido por ondas de extático entusiasmo,
termo, a uma só vez anunciação e assunção, de forma que ele saturado daquela mesma felicidade que já irrigara ocasionalmente
compreenderá afinal a promessa de Bergotte, a conquista de a desolação de sua vida. A insipidez é obliterada por um fulgor in-
Elstir e a mensagem enviada porVinteuil de seu paraíso, o eurso tolerável. E subitamente Veneza emerge de urna série de dias es-
doloroso e necessário de sua própria vida e a infinita futilidade quecidos, Veneza cuja essência radiante ele jamais fora capaz de

,
,

para o artista -- de tudo que não seja arte. ~,I


expressar, porque rejeitada pela vulgaridade autoritária da memó-
A matinée é dividida em duas partes. A expe- ria eficaz de seu dia-a-dia, mas que esta reduplicação casual de
riência mística e meditação do narrador na estufa cartesiana da certa sensação de equilíbrio precário no batistério de San Marco
biblioteca dos Guermantes e as inferências dessa experiência, alçou de sua costa adriática e depositou, como uma intrusa lumi-
aplicada à obra de arte que toma forma em sua mente, no decor- f nosa e veemente, no pátio da Princesa de Guermantes. Mas já se
rer dá recepção propriamente dita. Da vitória sobre o Tempo, ele
,j desvanece a visão e o deixa livre para retomar suas funções sociais.

1I
passa à vitória do Tempo, da negação da morte à sua afirmação.
No final, assim como no corpo de sua obra, Proust continua, por-
II
-3'
Ele é conduzido à biblioteca, porque ex-madame Verdurin, si-
multaneamente Norn16 e Vítima de Enxaquecas Harmônicas, está

II
tanto, respeitando o duplo significado de cada condição e cir-
t entronizada em meio a seus convidados, apaixonadamente absor-
cunstância de vida. A mais ideal tautologia pressupõe ainda uma vendo Rino-Gomenol, em benefício de sua membrana mucosa, e
relação e a equação de igualdade envolve não mais que uma iden- ! padecendo dos mais atrozes êxtases de neuralgia stravinskiana.
tificação aproximada que, afirmando a unidade, nega a unidade. Enquanto ele espera, a sós, que a música se acabe, o milagre do
Ao cruzar o pátio, ele tropeça nos paralelepí- pátio é reiterado de quatro maneiras diferentes. Já nos referimos
pedos. Esvai-se o ambiente que o cerca, convidados, lacaios, está- , a elas. Um criado bate uma colher contra um prato, ele limpa a
bulos, carruagens, a realidade toda do lugar e sua hora, desapare- boca com um guardanapo fortemente engomado, a água soa como

74
75
uma sirene nos canos e ele tira F'rançOl:\'le Champi da prateleira. o giro da sensação, é ele o centro de gravidade de sua coerência.
E assim como a Piazza di San Marco irrompera no pátio impetuo- De modo que nenhum esforço de manipulação voluntária poderá
samente, fazendo valer ali sua dominação deslumbrante e fugidia, reconstituir em sua integridade uma impressão que a vontade,
a biblioteca agora é sucessivamente invadida por uma floresta, a por assim dizer, forçou à incoerência. Mas se, por um acidente e
maré alta na costa de Balbec, a vasta sala de jantar do Grande Ho- dadas as circunstâncias favoráveis (um relaxamento do hábito de
tel, em Balbec, inundada como um aquário pelo mar do entarde- reflexão do sujeito e uma redução do raio de sua memória, uma
cer e pela luz do crepúsculo, e finalmente Combray e seus "dois diminuição geral da tensão da consciência, conseqüente a um
caminhos", a respeitosa clocução de uma prosa distinta e passada, período de extremo desânimo), se por algum milagre de analo-
modulada pela voz de sua mãe, suavizada e perfumada quase gia a impressão central de uma sensação passada reaparece
como um acalanto, desenrolando noite adentro sua confortadora como um estímulo imediato, capaz de ser identificado instinti-
paisagem sonora perante a insônia de uma criança.
I:"
, '
vamente pelo sujeito com o modelo da duplicação (cujapureza
O mais bem-sucedido experimento de evo- integralfói conservada, porque esquecida), então a sensação pas-
cação é incapaz de projetar mais do que o eco de uma sensação sada em sua totalidade, não seu eco ou sua cópia, mas a sensa-
passada, porque, como um ato intelectivo, está condicionado ção ela mesma, aniquilando qualquer restrição espacial e tem-
pelos preconceitos da inteligência, que abstrai de cada dada poral, vem prontamente envolver o sujeito em toda a beleza de
sensação, como ilógico e insignificante, como intruso discre- sua infalível proporção. Assim, o som de uma colher batendo
pante e frívolo, qualquer gesto ou palavra, perfume ou som que contra um prato é inconscientemente identificado pelo narra-
não se possa enquadrar no quebra-cabeça de um conceito. Mas dor com o som de um martelo brandido por um maquinista
a essência de qualquer nova experiência está contida precisa- contra a roda de um trem estacionado junto a um bosque,
mente nesse elemento misterioso que o arbítrio de plantão re- som que sua vontade rejeitara como estranho à sua atividade

jeitará como anacronismo. É ele o eixo em torno ao qual se dá mais imediata. Mas um ato de percepção subconsciente e de-

76 77
I

\
1'1 .. 1

sinteressada reduzira o objeto o bosque a seu equivalente A identificação entre as experiências imediata
imaterial, espiritualmente digerível, e o registro desse ato de e passada, a reaparição de uma ação passada, ou sua reação no
f
,{
cognição pura foi não somente associado com o som de um presente, consiste numa colaboração entre o ideal e o real, entre
martelo brandido contra uma roda, mas centrado e organizado a imaginação e a apreensão direta, entre símbolo e substância. Tal
à sua volta. O estado emocional, como sempre, é irrelevante. colaboração libera a realidade essencial, negada tanto à vida ativa
O ponto de partida da demonstração proustiana não é a aglo- como à contemplativa. O que é comum ao passado e ao presente
meração cristalina, mas seu núcleo -- o cristalizado. A mais tri- é mais essencial do que cada um deles visto separadamente. A rea-
vial experiência, ele afirma, está incrustada de elementos que 1idade, imaginativa ou empiricamente tomada, permanece apenas
não podem ser relacionados logicamente a ela e que conse- uma superfície, permanece hermética. A imaginação aplicada
qüentemente foram rejeitados por nossa inteligência: está en- a priori -- ao que está ausente é um exercício no vácuo, incapaz
carcerada em um vaso perfumado com certa fragrância, colorido de tolerar os limites do real. Também não será possível qualquer
, ~, ,

por certa cor e elevado a uma certa temperatura. Esses vasos es- contato direta e puramente experimental entre sujeito e objeto, já
'"
"
i"
, ,
tão suspensos ao longo da linha de nossos anos e, inacessíveis à que estão automaticamente separados pela consciência que o su-
I
memória inteligente, conservam-se de certo modo imunes, a pu- jeito tem de sua percepção, o que faz com que o objeto perca sua
reza de seu conteúdo climático resguardada pelo esquecimento, pureza e se torne um mero pretexto ou motivo intelectual. Mas
cada um mantido à sua distância, em sua data. De forma que, graças a essa reduplicação a experiência é a uma só vez imagina-
quando o microcosmo encarcerado é assediado da maneira des- tiva e empírica, a uma só vez evocação e percepção direta, real
crita, sentimo-nos inundar por um novo ar e um novo perfume sem ser apenas factual, ideal sem ser meramente abstrata, o real
(novo precisamente porque já experimentado) e respiramos o ideal, o essencial, o extratemporal. Mas se essa experiência mís-
verdadeiro ar do Paraíso, do único Paraíso que não é o sonho de tica transmite uma essência extratemporal, é certo então que o
um louco, do Paraíso que se perdeu. transmissor se torna, naquele momento, um ser extratemporal.

78 79
~~~-~~--~~-------------------------------
-------~------------------------~~~~~~~---~-~-~ F

Conseqüentemente, a solução proustiana consiste, até onde já Dante sua canção aos "ingegni slorti e loschi",17 aornenos UIna be-
analisamos, na negação da Morte e do Tempo, na negação da leza incorruptível:
Morte porque negação do Tempo. A morte morreu porque o
tempo morreu. (Neste ponto, uma breve impertinência, que con- Ponele mente almen com 'ia son bella.IH

siste em considerar Le Temps relrou(Jé como uma descrição tão


pouco apropriada da solução proustiana quanto Crime e castigo de E ele compreende o significado da definição
uma obra-prima que não contém qualquer alusão a um crime ou que dava Baudelaire da realidade como "união apropriada entre
a um castigo. O Tempo não é redescoberto, é obliterado. O Tempo sujeito e objeto" e mais claramente do que nunca a grotesca Ül-

é redescoberto, e com ele a Morte, quando o narrador deixa a bi- lácia de uma arte realista --- "a mísera exposição da linha e da
blioteca e une-se aos convidados, empoleirados em decrepitude superfície" ~- e a vulgaridade barata de uma literatura de apon-
precária nos vertiginosos pilares do primeiro e preservados da se- tamentos. Ele deixa a biblioteca para confrontar-se com o espe-
gunda por um milagre de aterrorizado equilíbrio. Se o título é um táculo do Tempo feito carne. E onde, um momento antes, os
bom título, a cena da biblioteca é um anticlímax.) Agora, portanto, cÍmbalos resplandecentes de dois momentos, paralisados à dis-
11,

ii
na exaltação de sua breve eternidade, tendo escapado da escuri- tância da rígida expansão de anos intermediários, obedeceram a
dão do tempo e do hábito, da paixão e da inteligência, ele com- um impulso irresistível de mútua atração e chocaram-se, como
preende a necessidade da arte. Pois somente no esplendor da arte duas nuvens na tempestade, produzindo um raio e um estrépito
poderá ser decifrado o êxtase perplexo que ele conheceu perante clangoroso, agora a medida de sua separação está escrita na face
as superfícies inescrutáveis de uma nuvem, um triângulo, uma e na debilidade dos moribundos, curvados, como os orgulhosos
torre, uma flor, um cascalho, quando o mistério, a essência, a de Dante, sob a carga de seus anos ~ "pesados, vagarosos, cor-
Idéia, encarcerados na matéria, imploraram pela caridade de um pulentos e pálidos como chumbo";
sujeito passante, em sua casca de impureza, e ofereceram, como

80 8,
e qual piu pazienza avea negli alá mexeriqueiro, algo entre mascate mesquinho e bufão mOrI-
piangendo parea dica: -~ Piu rwn posso. 19
bundo, ele traz à tona seu inimigo, Monsieur d' Argencourt, como
ele o conhecera, engomado, pomposo e impecável; de uma viúva
E nós dizemos adeus a Monsieur de Charlus, robusta, que a princípio ele toma por Madame de Forcheville, a
barão Palamede de Charlus, duque de Brabant, cavalheiro de própria Gilberte. E assim passam eles - Oriane e o Duque de
Montargis, príncipe de Oléron, Carency, Viareggio e Dunas, o Guermantes, RacheI e Bloch, Legrandin e OdetLe e muitos ou-
inexprimivelmente desaforado Charlus, hoje um humilde e con- tros, carregando o peso de Saturno rumo à estrela que vai nas-
vulsivo Lear, coroado pela torrente prateada de seu cabelo, cer, rumo a Urano, a estrela do Sabá.
Édipo, senil e derrotado, debruçado sobre um missal ou fazendo
vênias e rapapés para espanto de Madame de Sainte-Euverte, ca-
luniada nos dias áureos de seu terrível orgulho como Duchesse de
Caca ou Princesse de Pipi, o Arcanj o Rafael em seus últimos dias,
ainda perseguindo furtivamente todos os filhos de Tobias, escol-
tado pelo fiel Jupien, Senhor do Templo da Falta de Pudor. E o
lamento de seu sussurro sepulcral cai como terra da pá de um
coveiro. "Hannibal de Bréauté - morto! Antoine de Mouchy -
morto! Charles Swann - morto! Adalbert de Montmorency -
morto! Barão de Talleyrand -- morto! Sosthene de Doudeauville
- morto!" O narrador executa uma série de identificações, vo-
luntárias e árduas identificações - contrabalançando as da bi-
blioteca, involuntárias e espontâneas. De um fantoche abjeto e

82
83
lairiana é uma unidade post rem, uma unidade abstraída da plura-
lidade. Sua corre.spondence é determinada por um conceito, por-
tanto estritamente limitada e esgotada em sua própria definição.
Proust não lida com conceitos, ele persegue a Idéia, o concreto. Ele
;~ admira os afrescos da Arena de Pádua porque seu simbolismo é
tratado como uma realidade, específica, literal e concreta, e não é
apenas a transmissão pictórica de uma noção. Dante, se se pode di-
zer que tenha fracassado em alguma instância, fracassa com suas
No Tempo, criativo e destrutivo, Proust desco- figuras puramente alegóricas, Lúcifer, o Grifo do Purgatório e a
bre a si mesmo como artista: "compreendi o significado da morte, Águia do Paraíso, cujo significado é puramente convencional e
do amor e da vocação, das alegrias do espírito e da utilidade da extrÍnseco. Aqui a alegoria fracassa, como deve sempre fracassar
dor". Já se fez alusão a seu desprezo pela literatura que "des- nas mãos de um poeta. A alegoria de Spenser desmorona transcor-
creve", pelos realistas e naturalistas adoradores do refugo da ex- ridos não mais que alguns cantos. Dante, que era um artista e não
periência, prostrados perante a epiderme e a passageira epilepsia, um profeta menor, não pôde impedir que sua alegoria se aquecesse
e satisfeitos com a transcrição da superfície, da fachada atrás da e eletrizasse a ponto de tornar-se anagogia. A l/zsão de Mirza21 é boa
qual se encarcera a Idéia. Ao passo que o procedimento prous- alegoria, porque é uma escrita plana. Para Proust, o objeto pode
tiano é o de ApoIo esfolando Mársias e capturando, sem qualquer ser um símbolo vivo, mas símbolo de si mesmo. O simbolismo de
emoção, a essência, as águas frÍgias. "Chi non ha laforza di uccidere Baudelaire transformou -se no auto-simbollsmo proustiano. O ponto
Ia realtà non ha Iaforza di crearla. "20 Mas Proust é por demais um de partida de Proust pode estar situado no simbolismo, ou em
homem de sentimentos para se satisfazer com o simbolismo inte- seus arredores. Mas não progride paripassu com Anatole France,
lectual de um Baudelaire, abstrato e discursivo. A unidade baudtr- rumo a um ceticismo elegante e aos modos marmóreos, nem, como

84 85
já vimos, com Daudet e os Goncourt, rumo às notes d'apres nature, tico na ansiedade de cumprir com sua missão, de realizá-Ia
ncm, é claro, com os parnasianos, ru'rrlOaos incfáveis fragrnentos como um servo bom e fiel. Não busca esquivar-se das implica-
lodosos de François Coppée. Não solicita fatos e não cinzela po- ções de sua arte, tal como esta sc lhe revelou. Escreverá como
mos de espadas ccllinescas.Rcage, mas noutra direção. Dos sim- vive - no Tempo. O artista clássico arroga-se onisciência c oni-
bolistas ele recua, mais par'a trás até TTugo.E por essa razão é potência. Eleva-se artificialmente acima do Tempo no intuito de
uma figura solitária e independente. O único contemporâneo em outorgar relevo à sua cronologia e causalidade a seu desenvol-
que posso discernir algo dessa mesma tendência regressiva é Jo- vimento. A cronologia em Proust é extremamente difícil de se-
ris Karl Huysmans. Mas este a detestava em si mesmo e a repri- guir, a sucessão de eventos é espasmódica, e seus personagens
miu. Hllysmans critica duramente a "inelutável gangrena do ro- e temas, embora aparentando obedecer a alguma necessidade
mantismo"; .e no entanto seu des Esseintes é uma criatura interna quase insana, são apresentados e desenvolvidos com
fabulosa, um Alfred Lord Baudelaire. um fino desprezo dostoievskiano pela vulgaridade de uma con-
Freqiientemente somos lembrados dessa veia catenação plausível. (O impressionismo proustiano nos trará de
romântica em Proust. Ele é romântico em sua substituição da volta a Dostoiévski.) De maneira geral, o artista romântico se
inteligência pelo afeto, em sua oposição da evidência de um es- preocupa muito com o Tempo e está consciente da importância
tado afetivo particular às sutilezas da inter-relação racional, em da memória na inspiração -
sua rejeição do Conceito em favor da Idéia, em seu ceticismo
diante da causalidade. Assim, suas explanações puramente lógicas (c 'est toi qui dors dans !'ombre,

de determinado efeito (em contraste às explanações intuitivas) A /. • I


o sacre sOu(Jenzr.... )22

invariavelmente oferecem múltiplas alternativas.' É um român-


- mas está inclinado a sensacionalizar o que é tratado por Proust
Com relação a esta tendência antiintelectual, cf Swann, I. 286, 11. 29 e 234;
Guermantes, I. r62 (o gesto ex nihilo de Saint Loup);Albertine disparue, I. r4 epassim. com patológica força e sobriedade. Com Musset, por exemplo, o

86 87
interesse está mais nurna vaga identificação extratemporal, sem forma, suas faculdades responderão com mais violência a estí-
nenhuma coesão real ou simultaneidade entre o eu e o não-eu, do mulos intermediários do que a outros, capitais, terminais. En-
que nas evocações funcionais de uUlamemória especializada. Mas contraremos incontáveis exemplos desses reflexos secundários.
a analogia é vaga e não nos levaria a lugar algum, embora Proust Recolhido em seu quarto escuro e fresco, ele extrai a essência
chegue a citar Chateaubriand e Amiel como seus antecessores total de um meio-dia abrasador dos golpes escarlates e estelares
espirituais. É: difícil associar Proust a essa dupla de panteístas de um martelo na rua e da música de câmara das moscas no ar.

melancólicos, dançando um fandango de morte ao anoitecer. Mas Deitado em sua cama ao amanhecer, a qualidade exata do,
Proust admirava a poesia da Condessa de Noailles. Saperlipopetle! tempo, temperatura e visibilidade é transmitida a ele em termos
O narrador atribuíra sua "falta de talento" à sonoros, pelo badalar dos sinos e gritos dos mascates. Assim
falta de observa<;ão, ou melhor, ao que ele supunha ser um há- pode ser constatada a primazia da percepção instintiva - da in-
bito não-artístico de observação. Julgava-se incapaz de registrar tuição - no mundo proustiano. Porque o instinto, quando não
a superfície. De modo que, quando lê um relato tão brilhante- corrompido pelo Hábito, é também um reflexo e, do ponto de
mente abarrotado como o Journal dos Goncourt, a única alter- vista proustiano, um reflexo idealmente remoto e indireto, um
nativa à conclusão de que o narrador seja inteiramente carente reflexo em cadeia. Agora ele vê sua lamentada deficiência para
de um meticuloso talento jornalístico é a suposição de que a observação artística como uma série de "inspiradas omissões"
existe um enorme abismo entre a banalidade da vida e a mágica e a obra de arte como não sendo nem criada nem escolhida, mas
da literatura. Ou ele é destituído de talento ou a arte, de reali- descoberta, revelada, escavada, preexistente no interior do ar-
dade. E ele descreve a qualidade radiográfica de sua observação. tista, uma lei de sua natureza. A única realidade é fornecida por
O que é copiávellhe passa despercebido. Procura uma relação, hieróglifos traçados pela percepção inspirada (identificação de
um fator comum, fundamentos. Está, portanto, menos interes- sujeito e objeto). As conclusões da inteligência não têm mais
sado no que se diz do que em como isso é dito. Da mesma que um valor arbitrário, potencialmente válido. "Uma impressão

88 89
~

é para o escritor o que uni experimento é para o cientista --


com a diferença de que no caso do cientista a ação da inteLigên-
I
.~ mos como, no caso de Albertine (e Proust estende esta experiên-
cia a todas as relações humanas), os múltiplos aspectos (leia-se
cia precede e no caso do escritor é conseqúente a ela." Disto se- Blickpunkt ao invés dessa palavra miserável) não se fundiram para
gue-se que para o artista a única hierarquia possível num formar qualquer síntese positiva. O objeto evolui e quando afinal
mundo de fenômenos objetivos é representada por uma tabela se chega- se se chega a uma conclusão, estajá se terá desa-
de seus coeficientes respectivos de penetração, isto é, nos termos tualizado. Em certo sentido Proust é positivo, mas seu positi-
do sujeito. (Mais um desacato aos realistas.) O artista conquista vismo não tem absolutamente nada a ver com seu relativismo,
seu texto: o artesão o traduz. "O dever e tarefa de um escritor que é tão pessimista e negativo como o de France e empregado
[de um escritor, não de um artista] são aqueles de um tradutor." como elemento cômico. O "livro", para Proust um relato literário,
A realidade de uma nuvem refletida nas águas do Vivonne não é um caderno de contas para a governanta e, para Sua Majestade
é expressa por "Zut alors", mas pela interpretação desse co- Real, o registro de visitantes. RacheI Quand du Seigneur repre-
mentário inspirado. A obliqüidade verbal deve ser restaurada à senta, para o narrador, trinta francos e uma satisfação enfastiada,
sua posição vertical: assim, "você é encantadora" é igual a para Saint-Loup, uma fortuna e infinito sofrimento. Do mesmo
"abraçá-Ia me causa prazer". modo, quando Saint-Loup vê a fotografia de Albertine, não é ca-
O relativismo e o impressionismo proustia- paz de esconder seu espanto perante o fato de que uma vulgar
nos são acessórios dessa mesma atitude antiintelectua1. Curtius nulidade possa ter atraído seu brilhante e popular amigo. O Conde
fala do "perspectivismo" e "relativismo positivo" de Proust, em de Crécy trincha um peru e estabelece um calendário tão preciso'
oposição ao relativismo negativo do final do século XIX, o ceti- quanto a morte de Cristo ou a fuga do Egito. Para o Barão, a infi-
cismo de Renan e France.23 A meu ver, a expressão "relativismo dele de Musset24 deve ser um pajem de hotel ou um cocheiro.
positivo" constitui um oxímoro, estou quase certo de que não se Tal relativismo é negativo e cômico. O narrador deve sua exalta-
aplica a Proust e sei ter saído do laboratório de Heidelberg. Já vi- ção ao ouvir a música de Vinteuil à atriz Léa, única pessoa capaz

9° 9'
de decifrar os manuscritos póstumos do compositor, e às relações
de Charlus com Charlie MoreI, o violinista. Proust é positivo na
I explicações são experimentais e não-demonstrativas.
plica para que possam aparecer como realmente são - inexpli-
Ele os ex-

medida em que afirma o valor da intuição. cáveis. Ele os inexplica.*


Por "impressionismo", refiro-me a seu relato O estilo de Proust foi universalmente con-

não-lógico de certos fenômenos na ordem exata de sua percep- denado pelos círculos literários franceses. Mas agora que ele
ção, antes que tenham sido distorcidos até a inteligibilidade, não é mais lido, concede-se que poderia ter escrito uma prosa
para que se adaptem a uma cadeia de causa e efeito.' O pintor ainda pior. Por outro lado, é difícil estimar com justiça um es-
Elstir ê o arquétipo do impressionista, relatando o que vê e não tilo com o qual só se pode travar conhecimento através de um
o que sabe que deveria ver: por exemplo, empregando termos processo dedutivo, numa edição da qual não se pode dizer que
urbanos para o mar e termos marinhos para a cidade, de ma- tenha transmitido os escritos do autor, mas meramente traído
neira a transmitir sua intuição dessa homogeneidade. O que uma certa tendência nesse sentido. Para Proust, como para o
nos faz lembrar da definição do Schopenhauer do procedimento pintor, o estilo é mais uma questão de visão do que de técnica.
artístico como "a contemplação do mundo independentemente Proust não partilha da superstição de que a forma não é nada
do princípio da razão". Nesse contêxto, é possível pensar na re- e o conteúdo é tudo, nem de que a obra-prima literária ideal
lação de Proust com Dostoiévski, que expõe seus personagens não possa ser expressa senão por proposições monossilábicas.
sem explicá-Ios. A isto poderia objetar-se que Proust não faz Para Proust, a qualidade da linguagem é mais importante do
praticamente nada além de explicar seus personagens. Mas suas que qualquer sistema ético ou estético. De fato, ele não faz
qualquer esforço para separar forma e conteúdo. Um é a concre-
* Exemplos: um guardanapo no chão empoeirado é confundido com um
pincel de luz; o som da água nos canos, com um cachorro latindo ou uma si-
rene; o barulho de uma porta automática se fechando, com a orquestração do * Cf a analogia entre Dostoiévski e Madame de Sévigné, A I'Ombre des Jeunes
Coro dos Peregrinos. en Fleurs, n. 75.

92 93
tização do oulro, a revela(;ão d(~um Illundo. () mundo proustiano
<' expresso metalórÍcalllente pelo artesão porque apreendido
rlletaf(H'icamente pelo artista: a expl'(~ssão comparativa c indi-
reta da p(~rcep(;ão comparativa c indireta. () equivalente l'd()-
rico do real pl'Oustiano <' a cadeia IIlctafóriea. Um estilo cansa-
tivo, Inas que não cansa a mente.;\ claridade da frase é cumulativa
e explosiva. A üldiga que se sente é uma fadiga do coração,
uma üldiga do sangue. Depois de urna hora, se está exausto c ir-
ritado, submcrso, dominado pela rebentação de metáfora após
metáf()ra: Inas nunca estupefato. A queixa de que este é um es-
tilo enredado, cheio de paráfrases, obscuro c impossível de se-
guir, não tem qualquer fundamento.
J~~significativo que a maioria de suas imagens
sejam botânicas. Ele assimila o 111unano ao vegetal. Está cons-
ciente da humanidade como llora, jamais como fauna. (Em
Proust não há gatos pretos ou galgos fiéis.) Ele lamenta "o tempo
que perdemos decorando nossas vidas com uma vegetação para-
sitária e humana", A esposa e o filho do adorador de Le Sidaner
lhe aparecem na praia de Balbec corno dois ranúnculos em llor.
A risada de Albertine tem a cor e o perfume de um gerânio. Gil-
berte e Odette são syringae, branca urna e a outra violeta. Ele fala ...
.\
_.
\

94
I!t

de uma cena em Pelléas etMélúande que exaspera sua febre-de-


rosa e o faz espirrar. Tal preocupação está naturalmente associada
,Te
até que compreende que a vontade, por natureza utilitária, um
servo da inteligência e do hábito, não será uma condição da ex-
à sua completa indiferença para com valores morais e justiças
I periência artística. Quando o sujeito é isento de vontade, o objeto
burnanas.' Flor e planta não têm vontade consciente. Não têm
pudor e expõem sua genitália. E assim o são, em certo sentido, os
II é isento de causalidade (o Tempo e o Espaço tomados juntos). E

I
essa vegetação humana é purificada na apercepção transcen-
homens e mulheres de Proust, cuja vontade é firme e cega, mas dental que é capaz de capturar o Modelo, a Idéia, a Coisa em si.
nunca consciente de si, nunca abolida na pura percepção de '~
Não há, portanto, em Proust, um colapso da
um objeto puro. São vítimas de sua volição, ativa em uma prede- vontade, como é o caso, por exernplo, em Spenser, Keats ou
terminada e grotesca atividade, dentro dos limites estreitos de Giorgione. Ele passa a noite sentado em seu quarto em Paris,
um mundo impuro. Mas sem pudor. Não há questão de certo ou com uma flor de macieira cuidadosamente disposta ao lado de
errado. O homossexualismo jamais é chamado de vício: está tão sua lâmpada de cabeceira, o olhar fixo na espuma da alva co-
livre de implicações morais quanto o modo de fecundação da rola, até que a aurora venha tingi -Ia de carmim. Mas esta não é
Primula (Jer'isou doLythrumsalicoria. E, assim como os membros a estase aterrorizada de Keats, agachado num matagal coberto
do mundo vegetal, eles parecem suplicar por um sujeito puro, de musgo e anulado, como uma abelha, na doçura, "adormecido
para que possam passar de um estado de vontade cega a um es- pelo aroma das papoulas" e observando "o último destilar, hora
tado de representação. Proust é este sujeito puro. Ele é quase após hora"; nem ainda a remota, imóvel, quase arquejante pai-
isento da impureza da vontade." Lamenta sua falta de vontade xão de uma jovem giorgionesca, o espírito destroçado pela cor-
rupção, já úmido e apodrecendo, tão sutilmente sugerida por
*
Cf. La Prisonniere, 11. ng. d'Annunzio em sua descrição do CO,ncerto("ma se io penso alie
* Cf. Swann, r. 22,24, 5gpassim; Guermantes, I. 63; Sodome et Gomorrhe n.2, 188; sue mani nascoste, le immagino nell'atto di jrangere le joglie dei
Albertine disparue n. 14.g (paralizado por O Sole Mio em Veneza). lauTOper projumarsene le dita")25e tão grosseiramente mal inter-

96 97
pretada pelo mesmo autor quando vê na condenada e embeve- Idéia no que lhe parece um paradigma adequado. Assim, por
eida figura da Tempesla um vulgar Leandro descansando entre definição, a ópera é uma corrupção hedionda dessa que é a
orgasmos; neIll ainda as horrendas rOIllãs de 11 Fl1oco, explo- mais imaterial de todas as artes: as palavras de um libreto estão
dindo c sangrando, o visco de suas sementes gotejando, pútri- para a frase musical particularizada por elas assim como a co-
das na água pútrida. A estas~ proustiana é contemplativa, um luna da Place Vendôme está para a perpendicular ideal. Desse
ato puro de conhecimento, destituído de vontade, a amabilis in- ponto de vista, a ópera é menos completa que o l,Jal1del,Jille,que
sania e holder Tflálmsinfl. 2G
ao menos inaugura a comédia da enumeração excessiva. Tais
Seria possível escrever um livro sobre o sig- considerações ajudam a compreender a bela convenção do da
nificado da música na obra de Proust, em particular a música capo como um testemunho da natureza íntima e inefável de
de Vinteuil: a Sonata e o Sepleto. A influência de Schopenhauer uma arte que é perfeitamente inteligível e perfeitamente inex-
nesse aspecto da demonstração proustiana é inquestionável. plicável. A música é o elemento catalisador na obra de Proust.
Schopenhauer rejeita a visão de Leibniz da música como uma É ela que afirma, para sua descrença, a permanência da perso-
"aritmética oculta" e, em sua estética, isola-a de todas as outras nalidade e a realidade da arte. A música sintetiza os momentos
artes, capazes somente de produzir a Idéia através de seus fe- de privilégio e corre paralelamente a eles. Em certa passagem
nômenos concomitantes, enquanto que a música é a Idéia em ele descreve a repetida experiência mística como "uma impres-
si, inconsciente do mundo dos fenômenos, existindo ideal- são puramente musical, não extensiva, inteiramente original, ir-
mente fora do universo, apreendida não no Espaço, mas no redutível a qualquer outra ordem de impressão, (...) sine mate-
Tempo e apenas nele, e conseqüentemente insensível à hipó- ria". O narrador - ao contrário de Swann, que identifica a
tese teleológica. Essa qualidade essencial da música é distor- petile phrase da Sonata com Odette, espacializa o que é extra-es-
cida pelo ouvinte que, como sujeito impuro, insiste em atribuir pacial, e a estabelece como hino nacional de seu amor - per-
uma imagem ao que é ideal e invisível, insiste em encarnar a cebe na frase escarlate do Septeto, proclamando sua vitória

98 99
~ ~~ '" •.. 1wt'J-'-Y:t. "-1"'-- '--~ >-,t
I.t-:, ;..../v<J t~ 'j-: Á ~ ;tJ ~ Ljl;-; ;J
como um arcanjo de Mantegna exibindo suas vestes verme-
lhas, a exposição imatel'ial e ideal de urna beleza única, de um
" "li 1::"< 7
~,.....
~ h-~J~J-l::: L- t:-L. J.--> {tr;;~1 ~.~
rnundo único, o mundo e a beleza invariáveis de Vinteuil, ex-
I L':J a..-:--...:tl '/dJ- ;f <Í'--'~. ~ .I,e.-J ~~
pressos lirnidarnenle, corno uma prece, na Sonata, c suplicante- ;e~. ,~ k I'h., e/f~'~j ~~~/Y <.

mente, como urna inspiração, no SeptelO a "realidade invisÍ-

vel" que amaldiçoa a vida do corpo na terra como um castigo e ~,"-'>


ír p-.tt.-.LÚ-A-r-~.-.
i:-- ;t( ....
l_d <Ajt I.-. :-P (, ~. ~.::t:J> t...-.-A)

rcvela o significado da palavra d4imelus.


l' I/ '~.;t-~ ~~~ ~ 1 '7'J J /
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NOTAS DESTA EDIÇÃO 12. Beekett cita Leonardo daVinei, para quem "Ia pittura e cosa mentale". [N.E.J
13. Isto é, "companheiros de infortúnio". [N.E.J
'4. Pedro Calderón de Ia Barca, A vida é sonfLO, L [N.E.]

J. "A botde «/beallüjiJlsoda-waler (.. _)on(y wit!z an inlelleCl o/lcn-fold vivacity" ou 15. Baudelaire, "La Chevelure": "azul do céu imenso e redondo". [N.E.J
"uma garTafa de água gasosa (... ) mas com umillteleeto de vivacidade ímpar" 16. Na mitologia nórdica, uma das divindades do Destino. [N.E.]
escreveu T. CarJyle a respeito dc .Ruskin, ídolo do jovcm Froust. [N.E.]
17. Beekett atribui a Dante um verso de Fetrarca, Cancioneiro, CCLlX: "para fugir
2. Beekctt traduziu as passagens de Proust baseado na primeira cdição, não cor- a esses espíritos surdos e vesgos". [N.E.I
rigida, da NOllvelle Rcvlle Françaúe. Isto cxpliea as diferenças entrc o presente
,8. Dante, Convivia, canzona T: "Notem ao menos como sou bela". [N.E.]
tcxto e a versão boje corrente. Para evitar dcsacordos entre comentário e cita-
ção, os fragmentos do texto de Proust foram retraduzidos da tradução de Bec- 19. Dante, Purgatório, x, 136-139: "E aquele que tinha o aspecto mais paciente
kett para o inglês (mas sempre com o auxílio do texto original). [N_T.] parecia dizer, chorando: Não posso maú!". [N.E.I
20. Francesco de Sanctis, Storia della letteratura italiana, VII: "Quem não tem
3. "Borgiana" (Borgian no original) refere-se aos Borgia, e não a Borges. [N.T.]
a força de matar a realidadc não tem a força de criá-Ia". [N.E.I
li· Leopardi, "A se stesso": "(... ) em nós dos caros erros / Mais que a esperança,
o próprio desejo se cxtinguiu". [N.E.I 21. J. Addison, "Vision of Mirza", no Speclator 150, I de setembro de '7". [N.E.I

5. Baudelaire, "Le Baleon": "abismo proibido a nossas sondas". [N.E.J 22. Hugo, "Tristesse d'Olympio": "és tu que dormes à sombra, / oh, sagrada lem-
brança!". [N.E.]
6. T. Shadwell (c. 1642-,692), dramaturgo inglês, autor de peças satíricas. [N.E.I
23. Beckett refere-se a "Der Perspektivismus MareeI Prousts", inNeue Schweizer
7· Shakespeare, T!ze Tempcst 1,2: "01 I have suffer'd /With those that I saw suf-
Rllndschau 5, '925: Curtius lecionava na universidade de Heidelberg. [N.E.J
fer" ou "Oh, eu sofri / com aqueles que vi sofrer". [N.E.]
24. Beckett refere-se provavelmentc ao poema de Musset, "La Muse". [N.E,I
8. Becketl: rcfere-se à Carità de Giotto, urna das sete virtudes que figuram no ci-
elo de afrescos da capela Scrovegni, em Pádua.[N. E.I 25. D'A~nunzio,IlfiJoco, romance de 1898: "mas quando pen..so em suas mãos
escondidas, imagino-as no ato de esmagar as folhas de louro para perfumar
9· "Ciúme retrospectivo", a partir de esprit d'escalier, expressão que designa os
os dedos". [N.E.]
lerdos de espírito. [N.E.]
26. Isto é, "doce loucura" (Horáeio, Odes III.4) e "adorável delírio" (vVieland, Obe-
10. No original, "Tolornea", a partir de 1011,tributo, pedágio, tarifa. [N.E.I
ron); Beekett cita a partir de Schopenhauer, O mundo como vontade e represen-
11. Racine, Phedre, localizar: "... esses deuses que em meu flanco / Acenderam o tação, livro TIl, §36. [N.E.I
fogo fatal a todo meu sangue, / Esses deuses que se glorificam cruelmente / por
subjugar o coração de uma frágil mortal( .. .)".[N. E.]

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