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A Fixação da Crença

(Popular Science Monthly 12 (November 1877), pp. 1-15)


(versão inglesa)

Charles Sanders Peirce


(tradução de Anabela Gradim Alves, Universidade da Beira Interior)

I um cientista, a concepção escolástica de ra-


Poucas pessoas se dão ao trabalho de es- ciocínio aparecia apenas como um obstáculo
tudar lógica, porque toda a gente se concebe à verdade. Ele viu que apenas a experiên-
a si própria como sendo já suficientemente cia ensina alguma coisa — uma proposição
versado na arte de raciocinar. Mas eu cons- que a nós parece fácil de entender, porque
tato que essa satisfação se limita à sua pró- nos foi legada pelas gerações anteriores uma
pria capacidade de raciocinar, e não se es- concepção distinta da experiência; e que a
tende à dos outros homens. Entramos na ele lhe parecia também perfeitamente clara,
plena posse do nosso poder de retirar infe- porque as suas dificuldades ainda não se ha-
rências como a última das nossas faculda- viam revelado. De todos os tipos de expe-
des, pois não é tanto um dom natural, mas riência, a melhor, julgava, era a iluminação
uma longa e difícil arte. A história da sua interior, que ensina muitas coisas sobre a Na-
prática daria um esplêndido assunto para um tureza que os sentidos externos nunca pode-
livro. Os escolásticos medievais, seguindo riam descobrir, tal como a transubstanciação
os romanos, faziam da lógica, depois da gra- do pão.
mática, o primeiro dos estudos de um ra- Quatro séculos depois, um outro mais cé-
paz, e apresentavam-no como sendo muito lebre Bacon, no primeiro livro do seu Novum
fácil. Assim era, tal como o entendiam. O Organum, deu a sua clara explicação de ex-
seu princípio fundamental, segundo eles, era periência como algo que deve estar aberto à
que todo o conhecimento repousa ou na au- verificação e reexame. Mas, ainda que a con-
toridade ou na razão; mas o que quer que cepção de Lord Bacon seja superior a noções
seja deduzido pela razão depende em úl- mais antigas, um leitor moderno que não es-
tima análise de uma premissa derivada da teja maravilhado com a sua grandiloquên-
autoridade. Deste modo, assim que um ra- cia é sobretudo chocado pela inadequação da
paz era perfeito no procedimento silogístico, sua visão do procedimento científico. Que
acreditava-se que o seu conjunto de ferra- tenhamos apenas de fazer algumas cruas ex-
mentas intelectuais estava completo. periências para esboçar resumos dos resulta-
Para Roger Bacon, esse intelecto notável dos em certas formas despidas de interesse,
que em meados do século XIII era quase revê-los por regra extirpando tudo o que não
2 Charles Sanders Peirce

está provado e estabelecendo as alternativas, lhanço, sonhar que com alguma modificação
e que assim em poucos anos a ciência física teria outro resultado, e acabar por publicar
ficaria terminada - que ideia! Na verdade, o último sonho como um facto: o seu mé-
“escreveu sobre a ciência como um chance- todo era levar a mente para o laboratório e
ler”. fazer dos seus alambiques e cucúrbitas ins-
Os primeiros cientistas, Copérnico, Tycho trumentos de pensamento, oferecendo uma
Brahé, Kepler, Galileu e Gilbert, tinham mé- nova concepção do acto de raciocinar como
todos mais semelhantes aos dos seus mo- algo que deveria ser feito com os olhos aber-
dernos confrades. Kepler empreendeu dese- tos, pela manipulação de coisas reais ao in-
nhar uma curva através da órbita de Marte; vés de palavras e ideias vagas.
e o seu maior serviço à ciência foi imprimir A controvérsia darwinista é em grande
na mente dos homens que isto era o que de- medida, uma questão de lógica. Mr. Darwin
veria ser feito se desejavam melhorar a as- propôs-se aplicar o método estatístico à bio-
tronomia; e que não deveriam contentar-se logia. A mesma coisa já fora feita num ramo
com inquirir se um sistema de epiciclos era muito diferente da ciência, a teoria dos ga-
melhor que outro, mas que deveriam reflectir ses. Embora incapazes de dizer quais se-
sobre os números e descobrir o que a curva, riam os movimentos de qualquer molécula
na verdade, era. Ele conseguiu isto pela sua particular de gás numa dada hipótese sobre
incomparável energia e coragem, tropeçando a constituição desta classe de corpos, Clau-
às cegas da forma mais inconcebível (para sius e Maxwell eram contudo capazes, pela
nós), de uma hipótese irracional para outra, aplicação da doutrina das probabilidades, de
até que, depois de tentar vinte e duas des- predizer que a longo prazo tal proporção de
tas tropeçou, por mera exaustão da sua in- moléculas, sob dadas circunstâncias, adqui-
venção, sobre a órbita que uma mente bem riria tais e tais velocidades; e que teria lugar,
apetrechada com as armas da lógica moderna cada segundo, determinado número de coli-
teria tentado quase à partida. sões, etc; e a partir destas proposições foram
Do mesmo modo, todo o trabalho de ci- capazes de deduzir certas propriedades dos
ência suficientemente relevante para ser re- gases, especialmente quanto às suas relações
cordado por umas poucas gerações comporta de calor. Do mesmo modo, Darwin, embora
algum exemplo do estado defeituoso da arte incapaz de dizer qual será, em cada caso in-
de raciocinar do tempo em que foi escrito; e dividual, a operação de variação e selecção
cada passo fulcral em ciência tem sido uma natural, demonstra que a longo prazo estas
lição de lógica. Assim foi quando Lavoi- adaptarão os animais às suas circunstâncias.
sier e os seus contemporâneos empreende- Se as formas animais existentes são ou não
ram o estudo da química. A velha máxima devidas a tal acção, ou que posição a teoria
dos químicos tinha sido “lege, lege, lege, la- deverá tomar, forma o sujeito de uma discus-
bora, ora, et relege”. O método de Lavoisier são na qual questões de facto e questões de
não era ler e rezar, mas sonhar que algum lógica se encontram curiosamente entrelaça-
longo e complicado processo químico teria das.
um certo efeito, colocá-lo em prática com
lenta paciência, depois do seu inevitável fa-

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A Fixação da Crença 3

II riência, é provável que o nosso optimismo


seja extravagante. Ser lógico quanto a as-
O objecto do raciocínio é descobrir, a suntos práticos é a qualidade mais útil que
partir da consideração daquilo que já sabe- um animal pode possuir, e pode, consequen-
mos, alguma outra coisa que desconhece- temente, resultar da acção da selecção na-
mos. Consequentemente, o raciocínio é bom tural; mas fora disto é provavelmente mais
se for tal que ofereça uma conclusão verda- vantajoso para o animal ter a sua mente cheia
deira a partir de premissas verdadeiras, e não com visões agradáveis e encorajadoras, inde-
de outra forma. pendentemente da sua verdade; e assim, so-
Assim, a questão da sua validade é pura- bre assuntos não práticos, a selecção natu-
mente uma questão de facto e não de racio- ral pode ocasionar uma tendência de pensa-
cínio. Sendo A as premissas e B a conclu- mento falaciosa.
são, a questão é se estes factos estão de tal Aquilo que nos determina, a partir de pre-
forma relacionados que se A é, B é também. missas dadas, a retirar uma inferência ao in-
Se assim for, a inferência é válida; se tal não vés de outra, é algum hábito da mente, quer
ocorrer, não o é. seja constitucional ou adquirido. O hábito
Não é de somenos importância a ques- é bom ou não segundo produz conclusões
tão de saber se quando as premissas são verdadeiras a partir de premissas verdadei-
aceites pela mente, sentimos um impulso ras, ou não; e uma inferência é tomada como
para aceitar também a conclusão. É ver- válida ou não, sem referência especial à ver-
dade que, geralmente, raciocinamos natural- dade ou falsidade da sua conclusão, mas se-
mente de forma correcta. Mas isso é um aci- gundo o hábito que a determina é tal que em
dente; a conclusão verdadeira permaneceria geral produz conclusões verdadeiras, ou não.
verdadeira se não tivéssemos esse impulso O hábito específico da mente que governa
para a aceitar; e a falsa permaneceria falsa, esta ou aquela inferência pode ser formulado
embora não pudéssemos resistir à tendência numa proposição cuja verdade depende da
para acreditar nela. validade das inferências que o hábito deter-
Encontramo-nos, sem dúvida, entre os mina; e tal fórmula é chamada princípio con-
principais animais lógicos, mas não o somos dutor da inferência. Suponhamos, por exem-
perfeitamente. Muitos de nós, por exemplo, plo, que observamos que um disco de cobre
são naturalmente mais sanguíneos e esperan- em rotação rapidamente fica em estado de re-
çosos do que a lógica justificaria. Parece- pouso quando colocado entre os pólos de um
mos ser constituídos de tal forma que na au- magneto, e inferimos que isto sucederá com
sência de quaisquer factos que o justifiquem todo o disco de cobre. O princípio condutor
estamos felizes e auto-satisfeitos; de forma aqui é que o que é verdadeiro para um pe-
que o efeito da experiência é contrariar con- daço de cobre é verdadeiro para outro. Tal
tinuamente as nossas esperanças e aspira- princípio condutor a respeito do cobre seria
ções. Contudo uma vida inteira da aplicação muito mais seguro do que em relação a mui-
deste correctivo habitualmente não erradica tas outras substâncias — latão, por exemplo.
a nossa disposição sanguínea. Onde a espe- Poderia escrever-se um livro para sinalizar
rança não é confrontada com qualquer expe- todos os princípios condutores de raciocínio

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mais importantes. Seria provavelmente, te- existem estados de espírito como crença
mos de confessá-lo, de nenhuma utilidade e dúvida — que é possível a passagem
para uma pessoa cujo pensamento está total- de um a outro, permanecendo o objecto
mente dirigido para assuntos práticos, e cuja do pensamento o mesmo, e que esta
actividade se move por caminhos já muito transição está sujeita a certas regras que
conhecidos e trilhados. Os problemas que se enformam igualmente todas as mentes.
apresentam a tal espírito são assuntos de ro- Como estes são factos que já temos de saber
tina com que ele aprendeu, de uma vez por antes de podermos ter qualquer concepção
todas, a lidar ao aprender a sua ocupação. clara do uso da razão, não podemos supor
Mas deixem um homem aventurar-se num ser ainda de muito interesse questionar a sua
campo pouco familiar, ou onde os seus re- verdade ou falsidade. Por outro lado, é fácil
sultados não são continuamente verificados acreditar que aquelas regras de raciocínio
pela experiência, e toda a história mostra que que são deduzidas da própria ideia do pro-
o mais másculo intelecto perderá por vezes a cesso são aquelas que são mais essenciais;
sua orientação e desperdiçará os seus esfor- e, na verdade, que enquanto se conforma
ços em direcções que não o aproximam do com estas não conduzirá, pelo menos, a
seu objectivo, ou desviam-se mesmo inteira- falsas conclusões a partir de premissas
mente dele. É como um navio em mar alto, verdadeiras. De facto, a importância do que
sem ninguém a bordo que entenda as regras pode ser deduzido das assunções envolvidas
de navegação. E em tal caso um estudo geral na questão lógica acaba por ser maior do
dos princípios condutores do raciocínio seria que poderia ser suposto, e isto por razões
seguramente de utilidade. que é difícil mostrar à partida. A única que
O assunto, todavia, dificilmente poderia vou aqui mencionar é que concepções que
ser tratado sem ser primeiro limitado; são verdadeiramente produto de reflexão
uma vez que praticamente qualquer lógica, sem que se veja prontamente que
facto pode servir de princípio condutor. assim são, misturam-se com os nossos
Mas sucede que existe uma divisão entre os pensamentos comuns, e são frequentemente
factos, divisão essa tal que numa classe se causa de grande confusão. É o caso, por
encontram aqueles que são absolutamente exemplo, da concepção de qualidade.
essenciais como princípios condutores, Uma qualidade, enquanto tal, nunca é ob-
enquanto na outra se encontram todos os jecto de observação. Podemos ver que uma
outros que possuem algum interesse distinto coisa é azul ou verde, mas a qualidade de
como objectos de pesquisa. Esta divisão é ser azul ou a qualidade de ser verde não são
então entre aqueles que são necessariamente coisas que vejamos; são produto de reflexões
tomados como certos ao questionar se certa lógicas. A verdade é que o senso comum, ou
conclusão se segue de certas premissas, e o pensamento tal como emerge acima do
aqueles que não estão implicados em tal nível do estritamente prático, está profun-
questão. Um momento de reflexão mostrará damente imbuído com essa má qualidade
que uma variedade de factos já são su- lógica à qual o epíteto metafísica é comum-
postos quando a questão lógica é primeiro mente aplicado; e nada poderá esclarecê-lo
colocada. É implicado, por exemplo, que

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excepto um sério curso de lógica. quando surge a ocasião. A dúvida não tem
qualquer efeito deste tipo, mas estimula-nos
a agir até que é destruída. Isto lembra-nos
III a irritação de um nervo e a acção reflexa
consequentemente produzida; enquanto para
Sabemos geralmente quando queremos o análogo da crença, no sistema nervoso,
perguntar uma questão ou pronunciar um jul- devemos atender às chamadas associações
gamento, pois existe uma dissemelhança en- nervosas — por exemplo, para aquele hábito
tre a sensação de duvidar e a de acreditar. dos nervos em consequência do qual o
Mas não é apenas isto que distingue a cheiro de um pêssego fará crescer água na
dúvida da crença. Existe também uma di- boca.
ferença prática. As nossas crenças guiam
os nossos desejos e moldam as nossas ac-
ções. Os Assassinos, ou Seguidores do Ve- IV
lho da Montanha, costumavam precipitar-se
na morte ao seu mínimo comando, porque A irritação da dúvida causa uma luta para
acreditavam que obedecer-lhe lhes assegura- atingir um estado de crença. Chamarei a esta
ria uma felicidade interminável. Tivessem luta inquirição, embora deva admitir-se que
duvidado disso, e não teriam agido como esta não é, às vezes, a designação mais ade-
agiram. Sucede o mesmo com toda a crença, quada.
segundo o seu grau. O sentimento de crença A irritação da dúvida é o único motivo
é uma indicação mais ou menos segura de imediato para a luta por atingir a crença.
se encontrar estabelecido na nossa natureza É certamente melhor para nós que as nossas
algum hábito que determinará as nossas ac- crenças sejam tais que possam verdadeira-
ções. A dúvida nunca tem tal efeito. mente guiar as nossas acções de forma a sa-
Também não devemos descurar uma ter- tisfazer os nossos desejos; e esta reflexão far-
ceira diferença. A dúvida é um estado de nos-á rejeitar qualquer crença que não pa-
desconforto e insatisfação do qual lutamos reça ter sido formada para assegurar este re-
para nos libertar e passar ao estado de crença; sultado. Mas só o fará criando uma dúvida
enquanto este último é um estado calmo no lugar dessa crença. Logo, com a dúvida
e satisfatório que não desejamos evitar, ou a luta inicia, e com o cessar da dúvida ter-
alterar por uma crença noutra coisa qual- mina. Donde, o único objecto da inquiri-
quer. Pelo contrário, agarramo-nos tenaz- ção é o estabelecimento da opinião. Pode-
mente, não meramente à crença, mas a acre- mos ter a impressão de que isto não é sufici-
ditar exactamente naquilo em que acredita- ente para nós, e que procuramos, não mera-
mos. mente uma opinião, mas uma opinião verda-
Assim, tanto a dúvida como a crença têm deira. Mas ponha-se esta impressão à prova,
efeitos positivos sobre nós, embora muito e ela revelar-se-á infundada; pois assim que
diferentes. A crença não nos faz agir ime- uma crença firme é alcançada, ficamos intei-
diatamente, mas coloca-nos numa posição ramente satisfeitos, quer a crença seja ver-
em que nos comportaremos de certa forma, dadeira, quer seja falsa. E é claro que nada

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fora da esfera do nosso conhecimento pode 3. Algumas pessoas parecem retirar prazer
ser nosso objecto, pois nada que não afecte de discutir um assunto depois de todo
a mente poderá ser motivo de esforço men- o mundo estar plenamente convencido
tal. O máximo que pode ser sustentado é dele. Mas nenhum avanço posterior
que buscamos uma crença que julgaremos pode ser feito. Quando a dúvida cessa,
ser verdadeira. Mas pensamos que cada uma a acção mental sobre o sujeito termina;
das nossas crenças é verdadeira, e, na ver- e, se continuasse, não teria qualquer
dade, é uma mera tautologia dizê-lo. objectivo.
Que o estabelecimento da opinião é o
único fim da inquirição é uma proposição
muito importante. Varre, de uma só vez, vá- V
rias concepções de prova vagas e erróneas.
Algumas delas podem ser aqui recenseadas. Se o estabelecimento da opinião é o único
objecto da inquirição, e se a crença é da na-
1. Alguns filósofos tinham imaginado que tureza de um hábito, porque não haveríamos
para começar uma inquirição era ape- de atingir o fim desejado tomando qualquer
nas necessário formular uma questão ou resposta a uma questão da nossa simpatia,
escrevê-la num papel, e recomendaram- e reiterando-a constantemente para nós mes-
nos mesmo que iniciássemos os nos- mos, agarrando-nos a tudo que possa condu-
sos estudos questionando tudo. Mas o zir a essa crença, e aprendendo a olhar com
mero facto de colocar uma proposição desprezo e ódio tudo que possa perturbá-la?
na forma interrogativa não estimula a Este método simples e directo é realmente le-
mente para que se afadigue em busca da vado a cabo por muitos homens. Lembro-me
crença. Deve existir uma dúvida real e de uma vez me terem pedido que não lesse
viva, e sem ela toda a discussão é oci- certo jornal, com receio de que poderia mu-
osa. dar a minha opinião sobre o livre comércio.
“Para que eu não pudesse ser ludibriado pe-
2. É uma ideia muito comum que a de-
las suas falácias e pseudo-proposições”, foi
monstração deve repousar sobre propo-
a forma de expressão. “Você não é”, disse o
sições últimas e absolutamente indubi- meu amigo, “um estudante atento de econo-
táveis. Estas, de acordo com uma es- mia política. Poderá, por isso, ser facilmente
cola, são princípios primeiros de natu- enganado pelos argumentos falaciosos sobre
reza geral; segundo outra, são sensações
o assunto. Você pode, então, se ler esse jor-
primeiras. Mas, de facto, uma inquiri-
nal, ser levado a acreditar no proteccionismo.
ção, para obter esse resultado completa-
Mas você admite que o livre comércio é a
mente satisfatório chamado demonstra- verdadeira doutrina; e não deseja acreditar
ção tem apenas de começar com propo- no que não é verdadeiro”. Tenho muitas ve-
sições perfeitamente livres de toda a dú-
zes visto este sistema ser deliberadamente
vida actual. Se, de facto, não se duvida
adoptado. E ainda mais vezes, tenho visto
de todo das premissas, elas não podem
o instintivo desagrado por um estado de es-
ser mais satisfatórias do que já são.
pírito ainda não decidido, exagerado num

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vago receio de dúvida, que faz os homens ticamente mantendo fora do seu campo de
agarrarem-se espasmodicamente às posições visão tudo o que poderia causar uma mu-
que eles já têm. O homem julga que, se con- dança nas suas opiniões, e se consegue ser
seguir manter-se fiel à sua crença sem vaci- bem sucedido — baseando o seu método, o
lar, isso será inteiramente satisfatório. Nem que faz, em duas leis psicológicas fundamen-
pode ser negado que uma fé firme e inamo- tais — não vejo o que possa ser dito contra
vível produz grande paz de espírito. Pode, o facto de o fazer. Seria uma impertinência
na verdade, dar origem a inconveniências, egotista objectar que o seu procedimento é
como no caso de um homem que continuasse irracional, pois isso resume-se a dizer que o
resolutamente a acreditar que o fogo não o seu método de estabelecer uma crença é di-
queimaria, ou que se danaria eternamente se ferente do nosso. Ele não se propõe ser ra-
recebesse os alimentos que ingere de outra cional, e, na verdade, falará frequentemente
forma que não através de uma bomba gás- com desprezo da razão fraca e ilusória do ho-
trica. Mas então o homem que adopta este mem. Portanto deixem-no pensar como lhe
método não permitirá que estes inconveni- aprouver.
entes sejam maiores que as suas vantagens. Mas este método de fixação da crença,
Dirá “agarro-me resolutamente à verdade, e que pode ser chamado método da tenacidade,
a verdade é sempre salutar”. E em muitos ca- será incapaz de, na prática, manter o seu fun-
sos poderá bem ocorrer que o prazer que ele damento. O impulso social está contra ele.
retira da sua calma fé compense todas as in- O homem que o adoptar descobrirá que os
conveniências resultantes do seu carácter en- outros homens pensam de forma diferente
ganador. Consequentemente, se for verdade dele, e estará apto a que lhe ocorra, num mo-
que a morte é aniquilação, então o homem mento de maior lucidez, que as opiniões des-
que acredita que certamente irá directamente ses outros homens são tão boas como as suas,
para o céu quando morrer, desde que tenha e isto abalará a sua confiança na sua crença..
cumprido certas observâncias simples nesta Esta concepção, que o sentimento ou pensa-
vida, tem um prazer barato que não será se- mento de outro homem pode ser equivalente
guido pelo mínimo desapontamento. Con- ao seu próprio sentimento ou pensamento, é
sideração semelhante parece ter pesado em um passo distintamente novo, e de elevada
muitas pessoas no que toca a tópicos religi- importância. Surge de um impulso demasi-
osos, pois ouvimos frequentemente ser dito: ado forte no homem para que possa ser su-
“Oh, não poderia acreditar nisto ou naquilo primido sem perigo de destruir a espécie hu-
porque seria infeliz se o fizesse”. Quando mana. A não ser que nos transformemos em
uma avestruz enterra a cabeça na areia as- eremitas, devemos necessariamente influen-
sim que um perigo se aproxima, muito pro- ciar as opniniões uns dos outros; de forma
vavelmente toma a decisão mais feliz. Es- que o problema se transforma em como fixar
conde o perigo e depois calmamente diz que a crença, não meramente a nível individual,
o perigo não existe; e se se sente perfeita- mas na comunidade.
mente segura de que não existe nenhum pe- Deixem então a vontade do estado actuar,
rigo, para quê levantar a cabeça para ver? em vez da do indivíduo. Deixem que seja
Um homem pode atravessar a vida, sistema- criada uma instituição que terá por seu ob-

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jecto manter doutrinas correctas sob a aten- existiu nenhuma religião que não possuísse
ção do povo, reiterá-las perpetuamente, e uma — este método tem sido mais ou me-
ensiná-las aos jovens; possuindo ao mesmo nos utilizado. Onde quer que exista uma
tempo poder para evitar que doutrinas con- aristocracia, ou uma guilda, ou uma associa-
trárias sejam ensinadas, defendidas ou ex- ção de uma classe de homens cujos interes-
pressas. Deixem-nos ser mantidos na igno- ses dependem, ou sejam supostos depender,
rância, evitando que aprendam alguma razão de certas proposições, serão inevitavelmente
para pensar de outra forma distinta da que encontrados alguns traços deste produto na-
pensam. Deixem as suas paixões serem lis- tural do sentimento social. As crueldades
tadas, de forma a que possam encarar opi- acompanham sempre este sistema; e quando
niões privadas e pouco habituais com ódio e é consistentemente prosseguido, tornam-se
horror. Depois, deixem todos os homens que atrocidades do tipo mais horrível aos olhos
rejeitam a crença estabelecida serem aterro- de qualquer homem racional. Nem deverá
rizados remetendo-se ao silêncio. Deixem as esta ocorrência surpreender, pois o funcio-
pessoas expulsar e cobrir com alcatrão e pe- nário de uma sociedade não sente que seja
nas tais homens, ou deixem que sejam fei- justificado descurar os interesses dessa soci-
tas inquisições ao modo de pensar de pessoas edade por mera misericórdia, como poderia
suspeitas, e quando se descobrir que são cul- fazer no caso dos seus interesses pessoais. É
pados de crenças proibidas, deixem-nos ser natural, portando, que a simpatia e compa-
sujeitos a algum castigo exemplar. Quando o nheirismo produzam consequentemente um
acordo total não puder ser alcançado de ou- poder mais desumano.
tra forma, um massacre geral de todos os que Ao julgar este método de fixação da
não pensem de certo modo tem provado ser crença, que pode ser chamado método de au-
um meio muito eficiente de estabelecer opi- toridade, temos, em primeiro lugar, de con-
nião num país. Se não existe poder suficiente ceder a sua imensurável superioridade men-
para fazer isto, deixem ser esboçada uma tal e moral em relação ao método da tena-
lista de opiniões, às quais nenhum homem cidade. O seu sucesso é proporcionalmente
com um mínimo de independência de espí- maior; e, de facto, tem repetidamente produ-
rito possa anuir, e deixem os fiéis serem soli- zido os resultados mais majestosos. As me-
citados a aceitar todas estas proposições, de ras estruturas de pedra de cuja construção foi
forma a exclui-los tão radicalmente quanto a causa — no Sião, por exemplo, no Egipto
possível da influência do resto do mundo. e na Europa — possuem muitas delas uma
Este método tem sido, desde os tempos sublimidade apenas rivalizada pelas maiores
mais remotos, um dos meios principais de obras da Natureza. E, exceptuando as épocas
sustentar doutrinas teológicas e políticas cor- geológicas, não existem períodos de tempo
rectas, e de preservar o seu carácter univer- tão vastos como os que são medidos por al-
sal ou católico. Em Roma, especialmente, gumas destas fés organizadas. Se escrutinar-
tem sido praticado desde os dias de Pompílio mos o assunto atentamente, descobriremos
Numa até aos de Pio IX. Este é o mais per- que não existiu um único dos seus credos que
feito exemplo na história; mas onde quer que tenha permanecido sempre o mesmo; e con-
exista uma classe de sacerdotes — e nunca tudo a mudança é tão lenta que permanece

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imperceptível durante a vida de uma pessoa, e a sua imposição arbitrária sobre outros,
de forma que a crença individual permanece devem, consequentemente, ser abandonadas,
sensivelmente fixada. Para a massa da huma- e um novo método de estabelecer opiniões
nidade, então, não existe talvez melhor mé- deve ser adoptado, método esse que deverá
todo do que este. Se é seu impulso mais ele- não apenas produzir um impulso para acredi-
vado serem escravos intelectuais, então de- tar, mas decidirá também qual a proposição
verão permanecer escravos. que deve ser acreditada. Deixem a acção das
Mas nenhuma instituição pode empreen- tendências naturais não ser constrangida, en-
der regular opiniões sobre todos os assuntos. tão, e sob a sua influência deixem os homens,
Só os mais importantes podem ser atendidos, conversando juntos e observando os assuntos
e no resto as mentes dos homens têm de ser a diferentes luzes, desenvolver gradualmente
deixadas à acção de causas naturais. Esta crenças de harmonia com as causas naturais.
imperfeição não será fonte de fraqueza en- Este método assemelha-se àquele pelo qual
quanto os homens permaneçam num tal es- concepções de arte foram trazidas à maturi-
tado de cultura que uma opinião não influen- dade. O exemplo mais perfeito encontra-se
cie outra — isto é, enquanto não consigam na história da filosofia metafísica. Sistemas
somar dois mais dois. Mas nos estados mais deste tipo não repousam habitualmente so-
dominados pelos padres descobrir-se-ão al- bre quaisquer factos observados, pelo menos
guns indivíduos que são elevados acima de não em grau elevado. Foram em grande me-
tal condição. Esses homens possuem um tipo dida adoptados porque as suas proposições
de sentimento social mais vasto; vêem que fundamentais pareciam “conformes à razão”.
homens de outros países e de outras épocas Esta é uma expressão apropriada; não sig-
se apegaram a doutrinas muito diferentes da- nifica aquilo que concorda com a experiên-
quelas em que eles próprios foram educados cia, mas aquilo que nos encontramos incli-
a acreditar; e não podem evitar ver que foi o nados a acreditar. Platão, por exemplo, julga
mero acidente de terem sido ensinados como de acordo com a razão que as distâncias de
foram, e terem sido rodeados com as manei- umas esferas celestes às outras devem ser
ras e associações que possuem, que causou proporcionais aos diferentes comprimentos
as crenças que possuem, e não outras muito de cordas que produzem acordes harmonio-
diferentes. E a sua candura não pode resistir sos. Muitos filósofos foram conduzidos às
à reflexão de que não existe qualquer razão suas conclusões fundamentais por conside-
para atribuir às suas crenças um valor mais rações deste tipo; mas esta é a forma mais
elevado que às de outras nações e outros sé- baixa e menos desenvolvida que este método
culos; e isto dá origem a dúvidas nas suas pode assumir, pois é claro que outro homem
mentes. pode achar a teoria de Kepler, que as esferas
Perceberão ainda que dúvidas como es- celestes são proporcionais às esferas inscri-
tas têm de existir nas suas mentes com re- tas e circunscritas de diferentes sólidos regu-
ferência a toda a crença que pareça ser de- lares, mais de acordo com a sua razão. Mas
terminada por capricho, seja deles próprios o choque de opiniões conduzirá rapidamente
ou daqueles que originaram as opiniões po- os homens a confiarem em preferências de
pulares. A adesão voluntária a uma crença, uma natureza bem mais universal. Tome-

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se, por exemplo, a doutrina de que o homem forma de tratar as mulheres, não posso evitar
apenas age egoisticamente — isto é, a par- ver que, embora os governos não interfiram,
tir da consideração de que agir de uma certa os sentimentos, no seu desenvolvimento, po-
forma lhe trará mais prazer do que agir de dem ser grandemente determinados por cau-
uma outra. Isto não se baseia em nenhum sas acidentais. Agora, existem algumas pes-
facto do mundo, mas tem uma larga aceita- soas, entre as quais suponho que o meu leitor
ção como sendo a única teoria razoável. se encontra, que, quando vêem que alguma
Este método é bem mais intelectual e res- das suas crenças é determinada por quais-
peitável do ponto de vista da razão que qual- quer circunstâncias estranhas aos factos, ad-
quer um dos outros que aqui observamos. mitirá não meramente por palavras, a partir
Mas o seu falhanço foi o mais manifesto. desse momento, não apenas que a sua crença
Faz da inquirição algo semelhante ao desen- é duvidosa, mas experimentará uma dúvida
volvimento do gosto; mas o gosto, infeliz- real acerca dela, de forma que deixa de ser
mente, é sempre mais ou menos um assunto uma crença.
de moda, e consequentemente os metafísi- Consequentemente, para satisfazer as nos-
cos nunca chegaram a fixar qualquer acordo, sas dúvidas, é necessário que seja encon-
mas o pêndulo tem balançado para trás e trado um método pelo qual as nossas cren-
para a frente, desde os tempos mais remo- ças não possam ser causadas por algo hu-
tos até aos mais recentes, entre uma filosofia mano, mas por alguma permanência externa
mais material e uma mais espiritual. E as- — por algo sobre o qual o nosso pensamento
sim a partir disto, que tem sido chamado o não tem efeito. Alguns místicos imaginam
método a priori, somos conduzidos, na frase que possuem tal método, numa inspiração
de Lord Bacon, a uma verdadeira indução. privada vinda do alto. Mas isso é apenas
Examinamos este método a priori como algo uma forma do método da tenacidade, no qual
que prometia libertar as nossas opiniões do a concepção de verdade como algo público
seu elemento acidental e caprichoso. Mas o ainda não foi desenvolvida. A permanên-
desenvolvimento, embora seja um processo cia externa não seria externa, no sentido que
que elimina o efeito de algumas circunstân- aqui lhe damos, se fosse restringida na sua
cias casuais, magnifica o efeito de outras. influência a apenas um indivíduo. Tem de
Logo, este método não difere de forma es- ser algo que afecte, ou possa afectar, todo
sencial do da autoridade. O governo pode o homem. E, embora estas afecções sejam
não ter levantado um dedo para influenciar as necessariamente tão variadas quanto várias
minhas convicções; posso ter sido deixado, são as condições individuais, contudo o mé-
exteriormente, livre para escolher, diremos, todo deve ser tal que a última conclusão de
entre a monogamia e a poligamia, e apelando cada homem será a mesma. Tal é o mé-
apenas à minha consciência, posso ter con- todo da ciência. A sua hipótese fundamen-
cluído que esta última prática é em si licenci- tal, reformulada numa linguagem mais fami-
osa. Mas quando vejo que o maior obstáculo liar, é a seguinte: existem coisas reais, cu-
à expansão do Cristianismo entre um povo jas características são inteiramente indepen-
de cultura tão elevada como os Hindus tem dentes das nossas opiniões àcerca delas; es-
sido a convicção da imoralidade da nossa tas realidades afectam os nossos sentidos de

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A Fixação da Crença 11

acordo com leis regulares, e embora as nos- suportam a minha explanação do facto de
sas sensações sejam tão diferentes como o não duvidar do método ou da hipótese que
são as nossas relações aos objectos, contudo, supõe; e não tendo qualquer dúvida, nem
tirando proveito das leis da percepção, pode- acreditando que qualquer outra pessoa que
mos descobrir, através do raciocínio como as eu pudesse influenciar tenha, seria mero pa-
coisas realmente são; e qualquer homem, se lavreado alongar-me mais sobre o assunto.
possuir suficiente experiência e raciocinar o Se existir alguém com uma dúvida viva so-
suficiente sobre o assunto, será conduzido à bre o assunto, deixem-no meditar sobre ela.
única conclusão verdadeira. A nova concep- Descrever o método da investigação cien-
ção aqui envolvida é a de realidade. Pode ser tífica é o objecto desta série de estudos. Pre-
perguntado como sei eu que existem quais- sentemente só tenho espaço para dar nota de
quer realidades. Se esta hipótese é o único alguns pontos de contraste entre este e outros
suporte do meu método de inquirição, o meu métodos de fixar a crença.
método de inquirição não pode ser utilizado Este é o único dos quatro métodos que
para sustentar a minha hipótese. A resposta é apresenta alguma distinção entre um modo
esta: 1. Se a investigação não pode ser enca- certo e um modo errado. Se adoptar o mé-
rada como provando que existem coisas re- todo da tenacidade, e me fechar a todas as
ais, pelo menos não conduz à conclusão con- influências, o que quer que eu pense que
trária; mas o método e a concepção no qual é é necessário para o fazer é necessário se-
baseada permanecem sempre em harmonia. gundo esse método. O mesmo sucede com
Nenhumas dúvidas de método, consequen- o método da autoridade: o estado pode ten-
temente, surgem da sua prática, como su- tar abater uma heresia por meios que, de um
cede com todos os outros. 2. O sentimento ponto de vista científico, parecem muito mal
que dá origem a qualquer método de fixar a calculados para atingir os seus objectivos;
crença é uma insatisfação face a duas propo- mas o único teste sobre esse método é o
sições opostas. Mas aqui já existe uma vaga que o estado pensa; de forma que não pode
concessão que existe uma única coisa à qual prosseguir o método erradamente. Sucede o
uma proposição deve conformar-se. Logo, mesmo com o método a priori. A própria
ninguém pode realmente duvidar que exis- essência desse método é pensar tal como se
tem realidades, pois, se o fizesse, a dúvida está inclinado a pensar. Todos os metafísicos
não seria uma fonte de insatisfação. Conse- estarão seguros de o fazer, não obstante pos-
quentemente, esta é uma hipótese que toda sam estar inclinados a julgar-se uns aos ou-
a mente admite. De forma a que o im- tros como estando perversamente errados. O
pulso social não me leva a duvidar dela. 3. sistema Hegeliano reconhece toda a tendên-
Toda a gente usa o método científico àcerca cia natural do pensamento como lógica, em-
de muitas coisas, e apenas cessa de utilizá- bora sejam certamente abolidas por contra-
lo quando não sabe como o aplicar. 4. A tendências. Hegel julga que existe um sis-
prática do método não me levou a duvidar tema regular na sucessão destas tendências,
dele, mas, pelo contrário, a investigação ci- em consequência do qual, depois de andar
entífica tem tido os mais maravilhosos triun- à deriva por um longo período de tempo, a
fos na forma de estabelecer opinião. Estes opinião ficará finalmente correcta. E é ver-

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12 Charles Sanders Peirce

dade que os metafísicos obtêm por fim ideias dade de opinião será assegurada por um ter-
correctas; o sistema hegeliano da Natureza rorismo moral, ao qual a respeitabilidade da
representa toleravelmente a ciência daquela sociedade dará a sua inteira aprovação. Se-
altura; e pode ter-se a certeza que o que guir o método da autoridade é o caminho da
quer que a investigação científica tenha co- paz. Certas discordâncias são permitidas; al-
locado a salvo de dúvida receberá presente- gumas outras (consideradas não seguras) são
mente uma demonstração a priori da parte proibidas. Estas são diferentes em diferentes
dos metafísicos. Mas com o método cien- países e em diferentes eras; contudo, onde
tífico o caso é diferente. Posso começar com quer que estejas, deixa que se saiba que se-
factos conhecidos e observados para prosse- riamente manténs uma crença tabu, e pode-
guir para o desconhecido; e contudo as re- rás estar perfeitamente seguro de ser tratado
gras que sigo ao fazê-lo podem não ser do com uma crueldade menos brutal mas mais
tipo que a investigação aprovaria. O teste refinada do que se te perseguissem como
para saber se sigo verdadeiramente o método um lobo. Assim, os maiores benfeitores inte-
não é um apelo imediato aos meus sentimen- lectuais da humanidade nunca se atreveram,
tos e objectivos, mas, pelo contrário, envolve e não se atrevem agora, a enunciar a totali-
ele próprio a aplicação do método. Donde dade do seu pensamento; e assim uma som-
sucede que mau raciocínio assim como bom bra de dúvida prima facie é lançada sobre
raciocínio são possíveis; e este facto é a fun- cada proposição que é considerada essencial
dação do lado prático da lógica. à segurança da sociedade. Curiosamente, a
Não se pode julgar que os primeiros três perseguição nem sempre vem do exterior;
métodos de estabelecer opinião não apresen- mas um homem atormenta-se a si próprio e
tam qualquer vantagem sobre o método ci- fica muitas vezes extremamente angustiado
entífico. Pelo contrário, cada um possui al- ao ver que acredita em proposições que foi
guma vantagem particular que só a ele per- educado a encarar com aversão. Consequen-
tence. O método a priori distingue-se pelas temente, o homem pacífico e complacente
suas conclusões reconfortantes. É da natu- achará difícil resistir à tentação de submeter
reza do processo que adoptemos qualquer as suas opiniões à autoridade. Mas mais do
crença para a qual estejamos inclinados, e que tudo, admiro o método da tenacidade por
existem certas lisonjas para a vaidade do ho- ser directo, e pela sua força e simplicidade.
mem nas quais todos acreditamos por natu- Os homens que o prosseguem distinguem-
reza, até sermos acordados do nosso agradá- se pelo seu carácter decidido, que se torna
vel sonho por alguns duros factos. O método muito fácil com tal regra mental. Eles não
da autoridade governará sempre a massa da perdem tempo a tentar decidir o que querem,
humanidade; e aqueles que dominam as vá- mas, apressando-se como um relâmpago so-
rias formas de força organizada dentro do es- bre qualquer alternativa que lhes apareça pri-
tado nunca serão convencidos que o pensa- meiro, mantém-se fiéis a ela até ao fim, su-
mento perigoso não deve, de alguma forma, ceda o que suceder, sem um instante de in-
ser suprimido. Se a liberdade de expressão decisão. Esta é uma das esplêndidas quali-
for desembaraçada das formas mais grossei- dades que geralmente acompanha o sucesso
ras de constrangimento, então a uniformi- brilhante e temporário. É impossível não in-

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A Fixação da Crença 13

vejar o homem que despede a razão, embora evitar olhar para o fundamento de qualquer
saibamos como isso deve terminar no fim. crença com medo de que se revele apodre-
Tais são as vantagens que os outros mé- cido é tão imoral quão desvantajoso. A pes-
todos de estabelecer a crença possuem sobre soa que confessa que existe algo como a ver-
a investigação científica. Um homem deve dade, que se distingue da falsidade simples-
pensar bem neles; e depois deve considerar mente por isto, que se prosseguida nos le-
que, no fim de contas, deseja que a sua opi- vará ao ponto que desejamos atingir e não
nião coincida com os factos, e que não existe por mau caminho, e então, embora conven-
nenhuma razão para que os resultados desses cida disto, não se atreve a conhecer a verdade
três primeiros métodos façam com que tal mas procura evitá-la, encontra-se na verdade
suceda. Produzir este efeito, coincidir com num estado de espírito lamentável.
os factos, é prerrogativa do método da ciên- Sim, os outros métodos possuem os seus
cia. Sobre estas considerações ele tem por- méritos: uma clara consciência lógica tem
tanto de fazer a sua escolha — uma escolha um preço — assim como qualquer virtude,
que é muito mais que a adopção de qualquer bem como tudo o que estimamos, nos cus-
opinião intelectual, é uma das decisões fun- tam caro. Mas não devemos desejar que seja
damentais da sua vida, à qual, uma vez to- de outra forma. O génio do método lógico
mada, ele está obrigado a aderir. A força do de um homem deve ser amado e reverenci-
hábito será a causa, às vezes, de que um ho- ado como sua noiva, que ele escolheu de en-
mem se agarre a velhas crenças, depois de tre todas as mulheres do mundo. Ele não
estar em condição de ver que não possuem precisa de menosprezar as outras; pelo con-
bases sãs. Mas a reflexão sobre o estado das trário, pode honrá-las profundamente, e ao
coisas ultrapassará estes hábitos, e ele deve fazê-lo apenas a honra ainda mais. Pois ela é
conceder à reflexão a totalidade do seu peso. aquela que ele escolheu, e ele sabe que estava
As pessoas às vezes retraem-se de o fazer, certo ao fazer essa escolha. E tendo-a feito,
tendo a ideia de que as crenças são totali- trabalhará e lutará por ela, não se queixará
dades que elas não podem evitar sentir que dos golpes a suportar, e lutará para ser o va-
não têm fundamento. Mas deixem tais pes- loroso cavaleiro e campeão daquela de cujos
soas supor um caso análogo distinto do deles esplendores da chama retira a sua inspiração
próprios. Deixem-nos perguntar-se a si pró- e coragem.
prios o que diriam a um muçulmano conver-
tido que hesitasse em abandonar as suas an-
tigas crenças a respeito das relações entre os
sexos; ou a um católico convertido que ainda
se retraísse em ler a Bíblia. Não diriam que
estas pessoas deviam considerar o assunto na
totalidade, e entenderem claramente a nova
doutrina, e que depois deveriam abraçá-la na
sua totalidade? Mas, acima de tudo, pense-
se que a integridade da crença é mais impor-
tante que qualquer crença particular, e que

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