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Afroceará

Quilombola
Diretores da série:
_______________________________________________________

Prof. Dr. Henrique Cunha Júnior


Prof. Dr. Estanislau Ferreira Bié
Prof.ª. Me. Maria Saraiva da Silva

Comitê Científico e Editorial:


_______________________________________________________

Ana Beatriz Souza Gomes Izabel Cristina Evaristo da Silva


Universidade Federal do Piauí-UFPI Universidade Federal da Paraíba-UFPB

Cícera Nunes João Marcus Figueiredo Assis


Universidade Regional do Cariri-URCA Universidade Federal do Estado do RJ-UNIRIO

Cláudia Teixeira Marinho Kiusam Regina de Oliveira


Universidade Federal do Ceará-UFC Universidade Federal do Espirito Santo-UFES

Eduardo Davi de Oliveira Leandra Gonçalves dos Santos


Universidade Federal da Bahia-UFBA SME/Vitória-ES

Estanislau Ferreira Bié Marcilene Garcia de Souza


Universidade Federal do Ceará-UFC Instituto Federal da Bahia-IFBA

Francisco Valdemy Acioly Guedes Maria Auxiliadora Martins da Silva


Universidade Federal do Ceará-UFC Universidade Federal de Pernambuco-UFPE

Gustavo Henrique de Araújo Forde Maria de Fátima Vasconcelos da Costa


Universidade Federal do Espírito Santo-UFES Universidade Federal do Ceará-UFC

Henrique Cunha Júnior Maria Saraiva da Silva


Universidade Federal do Ceará-UFC Universidade Federal do Estado do RJ-UNIRIO

Ivan Costa Lima Marizilda dos Santos Menezes


Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Universidade Estadual Paulista-UNESP
Afro-Brasileira-UNILAB
Rinaldo Pereira Pevidor
SME/Vitória-ES
Afroceará
Quilombola
Samia Paula dos Santos Silva
Marlene Pereira dos Santos
Henrique Cunha Junior
Estanislau Ferreira Bié
Maria Saraiva da Silva
(Orgs.)

φ
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Fontella Margoni

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são


prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira
e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

http://www.abecbrasil.org.br

Série Conhecimento Afrodescendente - 1

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


SILVA, Samia Paula dos Santos; SANTOS, Marlene Pereira dos; CUNHA JUNIOR; Henrique; BIÉ,
Estanislau Ferreira; SILVA, Maria Saraiva da (Orgs.)

Afroceará Quilombola [recurso eletrônico] / Samia Paula dos Santos Silva; Marlene Pereira dos
Santos; Henrique Cunha Junior; Estanislau Ferreira Bié; Maria Saraiva da Silva (Orgs.) -- Porto
Alegre, RS: Editora Fi, 2018.

214 p.
ISBN - 978-85-5696-321-5

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. História; 2. Afroceará; 3. Quilombola; 4. Brasil; I. Título. II. Série

CDD-900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
Conhecimento Afrodescendente

Os organizadores

A difusão do conhecimento humano nas diversas culturas


alcança os setores das sociedades quando ocorre eficácia nas
comunicações. Na atualidade os meios de comunicação difundem as
informações através de mídias variadas e sistemas avançados pela
rapidez de reprodução.
Dentre os meios em que se pode difundir o conhecimento e a
cultura, a produção de livros digitais com possibilidade de leitura em
tela e solicitação de livro físico torna a comunicação mais
emblemática correspondendo às possibilidades de escolha do meio
mais prazeroso que possa atender a necessidade de um solicitante
leitor.
Em se tratando do Conhecimento Afrodescendente as
diversas culturas se utilizam desde a oralidade às mais novas
técnicas. Não se invalida a tradição e não se despreza as inovações.
Portanto, nos dispusemos apresentar uma proposta de
disseminação dos conhecimentos afrodescendentes da e na
Diáspora.
Entendemos que pela dispersão africana por vários países e
por sua diversidade nas regiões brasileiras a produção de
conhecimentos e divulgação de experiências que brotam da história,
da filosofia, da educação, das religiosidades, das sociologias, das
engenharias e etc., e pela infinidade de temas lançamos a Coleção
Conhecimento Afrodescendente, dentro da Série que leva o mesmo
título.
Objetivamos organizar, acolher, publicar livros e coletâneas
que tenham o tema referendado como proposta. Temos a finalidade
de expandir estes conhecimentos para que alcance inúmeros
pesquisadores, leitores e propagadores da história e cultura dos
descendentes de africanos em dispersão.
Como matéria de cultura das mais importantes, o livro seja
digital ou físico na forma como a proposta dispôs é um convite ao
conhecimento das realidades que brotam dos mitos, lendas,
histórias vividas e recriadas que remonta o legado de vários povos.
Expandir o conhecimento afrodescendente torna-se para os
organizadores desta coleção um feito importante como fato gerador
de ações afirmativas através da propagação da cultura oral expressa
pela escrita digital de alcance múltiplo com propensão a material
didático e complementar de educação.
A sociedade brasileira em sua maioria populacional de
descendência africana desconhece as raízes ancestrais e por este
desconhecimento por vezes obscurecido pela história oficial, social e
educativa faz jus que suas histórias possam ser contadas, escritas e
divulgadas para que as gerações futuras conheçam e se reconheçam
naqueles que por seu legado cultural muito contribuíram para a
formação do Brasil.
Sobre autoras e autores

João do Cumbe – João Luís Joventino do Nascimento


Mestre em Educação Brasileira (2014) pela Universidade Federal do Ceará,
Faculdade de Educação – FACED/UFC. Graduado em Ciências da Religião (2008)
pela Universidade Estadual do Vale do Acaraú – UVA. Especialização em
Museologia (2010) Faculdade Vale do Jaguaribe – FVJ e em História e Cultura
Africana e dos Afrodescendentes para Formação de Professores/as de Quilombos
(2011) pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Tem experiência na área da
Educação, com ênfase no Ensino-Aprendizagem. Milita nas questões
socioambientais na defesa dos ecossistemas costeiros, terra e territórios
tradicionais. Trabalha com Educador Social Popular no Conselho Pastoral dos
Pescadores/as Artesanais – CPP/CE (2017). joaodocumbe@gmail.com.

Marlene Pereira dos Santos


Doutoranda em educação-UFC. Pedagoga. Mestre em educação pela –UFC,
especialista em cultura folclórica aplicada IFTCE (2010). Pesquisa os temas da
estética, arte, saúde, pertencimento, cabelos crespos e empoderamento de
mulheres e homens negros, educação e cultura em comunidades
afrodescendentes tradicionais. Membro do núcleo de africanidades cearense-
NACE-UFC. Colabora com o instituto de pesquisa da afrodescendencia-IPAD
Brasil. Pesquisa sobre comunidades quilombolas, história e cultura afro-brasileira
e indígena, lei 10.639/03 e 11.645/08. marpdosantos@gmail.com

Maria Eliene Magalhães da Silva


Membro do NACE-UFC. Filiada ao MNU, secretaria de Movimentos Sociais e
Populares do PT Caucaia. Mestra em Educação Brasileira pela Universidade
Federal do Ceará (UFC); Especialista em Psicopedagogia pela UFC; Ensino
Religioso PROMINAS; Especialização Em História e Cultura Africana E dos
Afrodescendentes Para Formação de Professores de Quilombos, Área de
Conhecimento: Ciências Humanas; Graduada Em Ciências da Religião (ICRE);
graduada em Pedagogia pela (UVA); graduada em História pela (UVA); graduada
em Letras-Português pela (UFC); Professora da Educação Básica da Prefeitura de
Caucaia à disposição do SINDSEP-Caucaia como dirigente sindical; dirigente
partidária pelo (PT); Professora do ensino superior graduação e especialização
pela CEPRONE-FAK; FVJ e orientadora de mestrado pelo IAMP-FACNORTE.
Membro das academias de letras: Sócia-fundadora da AAFROCEL, cadeira 4;
ALJUG, cadeira 40; Sócia honorária das academias de letras: ALMECE e ALAC.
negaeliene@yahoo.com.br

Gilderlan Alves Ferreira da Silva


Possui graduação tecnológica em logística pela Universidade Anhanguera de São
Paulo (2013), ensino médio segundo grau pelo Figueiredo correia (2006) (anexo
Bastiões-Ce) e aperfeiçoamento em IPD DIGITACAO; WINDOWS; WORD, EXCEL
pela DEALLTEC INFORMATICA (2007). Membro fundador do grupo de teatro
arte popular (Bastiões-CE). Atualmente é pesquisador no instituto brasileiro de
geografia e estatística (IBGE). gilnostalgia@hotmail.com.

Alberto Assis Magalhães


Especialista em Educação Física Escolar e Arte, pela Faculdade Venda Nova do
Imigrante (FAVENI). Graduado em Educação Física (Licenciatura), pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Avançado
Profª. Maria Eliza de Albuquerque Maia (CAMEAM). Professor do ensino
fundamental II, da rede municipal da cidade de Iracema-CE. Tenho publicações
na área de Educação Física Escolar assim como Educação. Atua principalmente
nos seguintes temas: escola, comunidade quilombola Bastiões, reprodução da
cultura hegemônica, lei de nº 10.639/2003, Educação, Formação de Professores e
pesquisa científica na formação docente.betoassis2001@hotmail.com.

Samia Paula dos Santos Silva


Doutoranda em educação PPGE/UFC (2017), Mestre em Educação PPGE/UFC
(2016), Linha Movimentos Sociais, Educação Popular e Escola; Eixo Sociopoética,
Cultura e Relações Étnico Raciais. Possui graduação em Pedagogia pela
Universidade Estadual do Ceará (2012). Membro do grupo de pesquisa Ética,
Educação e Formação Humana (UECE). EMAIL: samiapaula86@hotmail.com

Henrique Cunha Junior


Professor Titular da Universidade Federal do Ceará, militante do Movimento
Negro. Trabalha com a Produção teórica sobre Afrodescendência no campo da
Educação. Leciona história Africana e Afrobrasielira para a formação de
Professores. hcunha@ufc.br

Jair Delfino
Doutorando em educação pela UFC, Mestre em educação pela mesma instituição.
Possui graduação em Química com Bacharelado e Licenciatura pela Universidade
de Guarulhos (2002). Desenvolve pesquisa relacionadas a cultura Africana e afro-
brasileira. Tem experiência na área de Química, com ênfase em Cinética Química,
fabricação de domissanitários, produtos cosméticos e Catálise. Curso de Técnico
Químico, Colégio Meta (2012). Curso de Iridologia Sistêmica, novembro de 2012.
Curso de Terapeuta Acupunturista(2013). Curso de ventosaterapia e Moxabustão
(2013). jair7314@gmail.com

Joselina Da Silva
Possui doutorado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). É uma das redatoras dos verbetes relacionados à raça, ao
racismo e ao movimento negro, na Enciclopédia Contemporânea da América
Latina e do Caribe (2006). Coordena o N´BLAC (Núcleo Brasileiro, Latino
Americano e Caribenho de Estudos em Relações Raciais, Gênero e Movimentos
Sociais), certificado pelo CNPQ. Atualmente orienta mestrado e doutorado no
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará
(UFC) e no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos
Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc), da UFRRJ. É professora
associada da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Atua
principalmente nos seguintes temas: relações raciais, mulheres negras, violência
contra a mulher, movimento social negro e anti-racismo.
joselinajo@yahoo.com.br

Cicera Nunes
Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (2010). É
Mestre em Educação Brasileira também pela Universidade Federal do Ceará
(2007). Pedagoga e Especialista em Arte-Educação pela Universidade Regional do
Cariri (2003). É Professora Adjunta J vinculada ao Departamento de Educação da
Universidade Regional do Cariri - URCA. Professora Permanente do Mestrado
Profissional em Educação e do Mestrado Profissional em Ensino de História da
URCA. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Educação, Gênero e Relações
Étnico-Raciais - NEGRER/URCA e do Congresso Artefatos da Cultura Negra. Tem
experiência na área de Educação atuando principalmente nos seguintes temas:
cultura afrodescendente e educação, reisados, formação de professores e o ensino
da história e cultura africana e afrodescendente. Cicera.nunes@gmail.com

Alex Ratts
Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2001), mestre em
Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (1996) e graduado em
Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Ceará (1988). Professor
na Universidade Federal de Goiás nos cursos de graduação e pós-graduação em
Geografia e de pós-graduação em Antropologia. Coordenador do Laboratório de
Estudos de Gênero, Étnico-Raciais e Espacialidades do Instituto de Estudos Sócio-
Ambientais da Universidade Federal de Goiás (LaGENTE/IESA/UFG). Foi um
dos(as) fundadores(as) e pesquisadores(as) do Núcleo de Estudos Africanos e
Afro-Descendentes da Universidade Federal de Goiás (NEAAD/UFG) (2005-
2010). Atua nas áreas de Geografia, Antropologia e Educação e desenvolve
atividades de ensino, pesquisa e extensão com espacialidades e identidades
culturais, étnicas, raciais, de gênero e sexuais. É membro da Rede de Estudos de
Geografia, Gênero e Sexualidades Iberos Latino-Americanos (REGGSILA).
alexratts@uol.com.br

Ana Paula dos Santos


Pedagoga, mestre em Educação - Universidade Federal do Ceará- UFC na linha de
pesquisa Movimentos Sociais, Educação popular e Escola, eixo Sociopoética,
Cultura e Relações Étnico-raciais, pesquisa educação escolar quilombola,
pedagogias de quilombo e formação de professores quilombolas.
Paulacrato99@gmail.com

Maria Kellynia Farias Alves


Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Ceará, Mestre em
Educação e Pedagoga pela UFC. Atua na educação básica de Caucaia-CE e
professora substituta na Universidade Estadual do Ceará-UECE. Membro do
Núcleo das Africanidades Cearenses-NACE/UFC. Atua nos temas: EJA,
Africanidades, Formação de professores, Educação Popular e Educação Indígena.
Kellynia_farias@yahoo.com.br

Cláudia Oliveira da Silva


Mulher quilombola, filha do chão do quilombo de Serra do Juá, Caucaia CE.
Professora do Sistema Público de Ensino Municipal de Caucaia. Mestra em
Educação-UFC. Coordenadora da Caravana Cultural Afroquilombola de Caucaia e
pesquisadora do pertencimento afro e Educação Escolar Quilombola.
claudia.quilombola13@gmail.com

Cristiane Sousa da Silva


Doutoranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. Mestre
em Educação pela Universidade Federal do Ceará (2012). Possui graduação em
Educação Física pela Faculdade Integrada do Ceará (2006). Tem experiência na
área de Educação Física, atuando principalmente nos seguintes temas: educação,
educação física frente à diversidade e cultura corporal. cristsousilva@gmail.com
Sumário

Apresentação ............................................................................................... 15
Os organizadores

Parte I
A problemática da educação nas comunidades quilombolas do estado do Ceará

Capítulo 1 .....................................................................................................25
Escola e quilombo, diálogo necessário: Reconhecendo a presença do legado
cultural africano no cariri cearense
Ana Paula dos Santos; Cícera Nunes

Capítulo 2.....................................................................................................47
As comunidades quilombolas e os desafios de uma educação antirracista
Cláudia de Oliveira da Silva; Maria Kellynia Farias Alves

Capítulo 3.....................................................................................................67
A aplicação da lei de nº 10.639/2003, na comunidade de Bastiões, Iracema-
CE: Uma comunidade remanescente de quilombo
Alberto A. Magalhães; Gilderlan A. F. da Silva; Samia Paula dos S. Silva

Capítulo 4.................................................................................................... 85
Bairro rural negro quilombola: Conceito e educação
Marlene Pereira dos Santos; Henrique Cunha Junior

Capítulo 5 ................................................................................................... 105


Práxis antirracista no ensino superior: Múltiplos olhares sobre Quilombo
Sítio Veiga –CE
Cristiane Sousa da Silva; Joselina da Silva
Parte II
Itinerários de resistências, tradições e manifestações culturais nas
comunidades de quilombos do Ceará

Capítulo 6....................................................................................................121
Comunidades quilombolas rurais do Ceará: invisibilidade e desafios no
processo de titulação dos territórios de maioria negra
João do Cumbe - João Luís Joventino do Nascimento

Capítulo 7 ................................................................................................... 139


Medicina tradicional das senhoras rezadeiras: Dimensões da cosmovisão
africana
Maria Eliene Magalhães da Silva

Capítulo 8 .................................................................................................. 157


Quilombos: Educação, resgate tradicional, patrimônio, espaço e
territorialidade
Jair Delfino; Henrique Cunha Junior

Capítulo 9................................................................................................... 173


Parentes, conhecidos e estranhos: Relações interétnicas e quilombos
Alex Ratts

Capítulo 10 ................................................................................................. 195


Um olhar sobre a comunidade Bastiões (CE): Das relações conflituosas as
manifestações cultuais e tradicionais
Samia Paula dos Santos Silva; Joselina da Silva
Apresentação

Os organizadores

Este livro, intitulado “Afroceará-Quilombola”, é uma


coletânea produzida majoritariamente por pesquisadores cearenses
que desenvolvem trabalhos e vivências junto às comunidades
quilombolas do estado do Ceará.
O livro surge a partir da sistematização das pesquisas em
quilombos e africanidades realizadas no Programa de pós-
graduação em educação brasileira da Universidade Federal do
Ceará, na linha de pesquisa Movimentos Sociais Educação Popular e
Escola, no eixo temático Sociopoética, Cultura e Relações Étnico
Raciais.
Com a intenção de aprofundar o olhar sobre as comunidades
de quilombos do estado em questão, reunimos junto ao doutorando
Jair Delfino e o professor Henrique Cunha Júnior no ano de 2015, na
Universidade Federal do Ceará, algumas lideranças e pesquisadores
de diferentes quilombos em um evento intitulado, Os Marcadores
Atemporais africanistas na cultura e tradição dentro das
comunidades quilombolas do Ceará.
Na ocasião foram tratados assuntos referentes a essa temática
pelo olhar dos moradores que também são pesquisadores, trazendo
para o social os problemas não percebidos pelo senso comum e que
são melhores exemplificados por quem os vivencia no cotidiano. A
partir dos dois ciclos de conversas sentimos a necessidade de
organizar um material que contribua com as lutas das comunidades
que resistem para existir enquanto quilombola, preservando suas
identidades, tradições e culturas.
16 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Comunidades de quilombos no Ceará é um tema novo para os


estudos de pesquisa acadêmica e possui grande relevância devido a
existência de pelo menos oitenta e três comunidades reconhecidas
pela Fundação Cultural Palmares, que é órgão federal do Ministério
da Cultura e responsável pela titulação das terras quilombolas.
O estado do Ceará desde a sua formação no período colonial
apresenta a existência de quilombos, constituídos por africanos em
busca de liberdade, provenientes das fazendas do estado de
Pernambuco. No território do atual estado do Ceara a produção de
gado, couro e carne de sol existiram na forma de produção
escravista, como outras atividades de cana de açúcar engenho de
rapadura, algodão e mineração, navegação, transporte de
mercadorias e construções urbanas que também se realizaram com
trabalho de escravizados, o que implicou no estabelecimento de
comunidades rurais e urbanas de população de africanos e
descendentes.
Quanto à existência de populações negras e da formação de
quilombos no estado do Ceará não difere em muito dos demais
estados do Nordeste, sendo o que muda neste estado com relação
aos demais é apenas as atividades econômicas e número de
escravizados empregados. A concentração nas propriedades era
menor, pois as atividades econômicas eram de menos amplitude
condicionadas pelo clima e pelo solo. Outro fator relevante para a
presença de populações negras foi à migração de outros estados
durante o período do escravismo e depois da abolição. Várias são as
comunidades negras rurais no estado do Ceará que migraram de
outros estados a procura de terras inexploradas e de baixo preço.
Afroceará quilombola representa parte do nosso fazer
acadêmico de trabalho com as comunidades de quilombo do estado
de Ceará. Nas universidades do estado do Ceará existem diversas
iniciativas de pesquisa sobre quilombos e nos artigos que compõem
este livro apresentamos alguns dos resultados das pesquisas
realizadas dentro do programa de pós-graduação em educação. As
pesquisas apresentam uma preocupação com a história, geografia,
Os organizadores | 17

identidade, cultura e movimentos de quilombos no estado, pondo


também em pauta os problemas da educação nestas comunidades.
É um livro composto de 10 artigos, assim descritos com
resumo em linhas gerais.
No texto intitulado, Escola e Quilombo, Diálogo Necessário:
reconhecendo a presença do legado cultural africano no Cariri
cearense, as pesquisadoras, Ana Paula dos Santos e Cícera Nunes,
discutem a importância da manutenção da cultura e identidade
quilombola e afrodescendentes inter-relacionadas com as ações
escolares desenvolvidas no território da comunidade remanescente
de quilombos, Carcará-Potengi (CE). As autoras iniciam o texto
relatando as lutas e conquistas dos movimentos negros e
quilombolas, com relação a educação escolar, considerando esta,
direito dos povos. Em seguida, apresentam a história de resistência
negra desse território e terminam por fazer uma análise do
funcionamento pratico da escola local, E.E.F Maria Virgem da Silva.
Entre os principais pontos de críticas ao estabelecimento de ensino
é a não valorização das produções da comunidade, e as atividades
que trabalham a história e cultura africana serem realizadas apenas
no mês de novembro em alusão à consciência negra.
No texto, As comunidades quilombolas e os desafios de
uma educação antirracista, Cláudia de Oliveira Silva e Kellynia
Farias Alves, são pesquisadoras que fazem uma análise sobre a
educação escolar quilombola pensada sobre a perspectiva da
pretagogia usando como ponto de partida, as memórias, pesquisas
e aprendizagem de quem fala “da porteira para dentro”. As
autoras iniciam o texto traçando um itinerário histórico de como as
comunidades de quilombos eram vistas, sendo essas, consideradas
aglomerados de negros e as mudanças nos conceitos a partir dos
dispositivos legais como a CF-Constituição Federal (1988), que passa
a valorizar a autodefinição dos grupos e a história e cultura de
resistência negra. São destaques no texto as pesquisas realizadas
pelas professoras em escolas do município de Caucaia-Ceará, onde
foram identificadas, pela Fundação Palmares, nove comunidades
18 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

quilombolas. Nestes contextos, a educação escolar não trabalha com


a perspectiva antirracista e de valorização da cultura negra e
quilombola, prejudicando o desenvolvimento e autoafirmação dos
quilombolas. As autoras finalizam defendendo através de
levantamento bibliográfico que a educação precisa de fato ser parte
integrante das comunidades e dos povos negros para que
efetivamente lhes permita fortalecer suas lutas.
No texto, A aplicação da lei n° 10.639/03 na comunidade
Bastiões em Iracema: uma comunidade remanescente de
quilombo, Alberto Assis Magalhães, Gilderlan Alves Ferreira da
Silva e Samia Paula dos Santos Silva, analisam o sistema de ensino
da comunidade remanescente de quilombos Bastiões-Ceará,
enfocando especialmente a aplicabilidade da lei 10.639/03. No início
do texto os pesquisadores narram o modo de vida e a convivência
entre os moradores antes do reconhecimento como remanescente
de quilombos destacando que houve muitas mudanças com esse
acontecimento. No decorrer da produção são descritas as
características estruturais do sistema de ensino, e por fim, exposta
a pesquisa realizada junto aos professores que trabalham nas escolas
de ensino médio e na escola de ensino fundamental, sobre a
aplicação da referida Lei, os autores mostram que os trabalhos
realizados com essa finalidade são de forma mecânica não
permitindo o desenvolvimento participativo dos alunos.
Em Comunidades quilombolas rurais do Ceará:
invisibilidade e desafios no processo de titulação dos territórios
de maioria negra, João Luís Joventino do Nascimento trata das
dificuldades e desafios para a titulação de comunidades quilombolas.
É destaque na parte inicial do texto os problemas enfrentados por
estas comunidades, como, a burocratização das políticas que podem
beneficia-las e negação histórico/cultural do negro no estado
cearense, que gera a invisibilidade das lutas e tornam-se obstáculos
para as conquistas com relação às posses das terras. O autor finaliza
retomando as discussões sobre as relações raciais, e negação dos
negros e quilombolas no estado, ressaltando as manobras racistas
Os organizadores | 19

das instituições públicas e privadas para anularem as lutas e


autoconhecimento do negro cearense.
No texto, Bairro rural negro quilombola: conceito e
educação. Marlene Pereira dos Santos e Henrique Cunha Junior,
falam da educação na comunidade quilombola de Alto Alegre,
situada no município de Horizonte-Ceará. Na abertura os autores
fazem a problematização de diversos conceitos que estão
interligados como os de quilombo, patrimônio material/ imaterial e
identidade. Seguem tratando da comunidade de Alto Alegre-Ce,
narrando a sua trajetória e as transformações e dificuldades
ocorridas com a exploração da região pelo poder público, que tem
trazido como ônus, a perda de terras e modificação da forma de vida
do lugar. Os autores descrevem as características do território
estudado e analisam as diferenças de outros quilombos rurais do
estado, a partir disso, o conceituam como bairro rural,
especialmente pela proximidade com o município de Horizonte. Por
fim, apresentam a história do funcionamento educacional local,
destacando os avanços e conquistas, tendo na atualidade uma
educação considerada pelo governo municipal como de qualidade, e
que segundo os pesquisadores, valoriza a cultura quilombola.
Em Medicina Tradicional das Senhoras Rezadeiras:
dimensões da cosmovisão africana, Maria Eliene Magalhães da
Silva trata dos trabalhos de cura realizados pelas rezadeiras
quilombolas das comunidades de Caucaia-Ceará, relacionados com
os elementos da cultura africana. De início a autora nos remete às
suas memorias de infância, levando os/as leitores/as a conhecerem
o trabalho de rezadeira desenvolvido por sua avó, que cultivava no
quintal de casa diversos tipos de ervas, com as quais cuidava da
saúde da família. Em seguida são apresentadas as rezadeiras dos
quilombos localizados no município de Caucaia e suas formas de
benzer fazendo relação com os elementos ligados a africanidades e
a natureza.
Com Práxis antirracista no ensino superior: múltiplos
olhares sobre Quilombo Sítio Veiga-CE, Cristiane Sousa da Silva e
20 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Joselina da Silva tratam de análise de ações pedagógica realizadas no


ensino superior na Faculdade Rainha Do Sertão, situada no
quilombo Sítio Veiga-Quixadá-Ceará. De início as autoras fazem
uma reflexão sobre o significado dos quilombos, seu conceito e luta.
Em seguida direcionam-se as atenções para a comunidade estudada,
fala-se das visitas e contato com a cultura local a necessidade da
valorização da cultura negra/quilombola e a realização do projeto de
extensão desenvolvido pela autora e orientadora, com a intenção de
aproximar à universidade da comunidade e da ênfase a valorização
da questão racial.
No texto, Parentes, conhecidos e estranhos: relações
interétnicas e quilombos, Alex Ratts, faz uma análise sobre a
relação entre os quilombos e as questões raciais. O professor-
pesquisador traz para as problematizações e questionamentos
autores como Alfredo Wagner Berno de Almeida, Clovis Moura,
Edison Carneiro e Roger Bastide que apresentam posicionamentos
diferentes sobre a constituição dos quilombos no Brasil. Na
sequência, Ratts passeia pela história e narra a convivência social da
comunidade de quilombo Conceição dos Caetanos-Ceará,
revelando-nos como se desenvolvem as relações interétnica nesse
território majoritariamente negro. O texto segue trazendo pesquisas
que mostram a realidade das relações dos grupos raciais em outras
comunidades de quilombos no Brasil. No encerramento o autor
volta a direcionar o olhar para Conceição dos Caetanos,
apresentando as perspectivas diferentes das muitas pesquisas
realizadas no território, e que tornam a comunidade referência no
estado em relação a autoimagem da construção da identidade
coletiva quilombola.
Em Um olhar sobre a comunidade Bastiões (CE): das
relações conflituosas as manifestações as manifestações
culturais e tradicionais, tratamos da história e cultura dessa
comunidade remanescente de quilombos, o texto surge através de
vivências e experiências. No princípio, narramos a história e a vida
social do território: sua fonte econômica, as brincadeiras de jovens
Os organizadores | 21

e crianças e suas relações sociais. Em seguida destacamos


característica importante da comunidade que é a sua relação com a
agua, que com o passar dos anos sua forma de acesso mudou, assim
como algumas das atividades desenvolvidas anteriormente em
açudes. Encerramos o texto descrevendo as diversas manifestações
religiosas e suas festas locais.
No texto Quilombos: educação, resgate tradicional,
patrimônio, espaço e territorialidade, Jair Delfino e Henrique
Cunha Júnior, consideram que os elementos tradicionais da cultura
quilombola, fruto da herança africana, superam as barreiras do
tempo e se mantém vivas preservando as identidades através dos
elementos que compõem a oralidade transmitindo entre as gerações
os saberes ancestrais. Seguem destacando a importância dos
patrimônios material e imaterial para as comunidades de
quilombos, relacionando-os aos fatores espaço e tempo que são
essenciais para a formação da identidade coletiva do povo. Os
autores finalizam o texto relatando as diferenças geográficas das
comunidades, e essa influência nos seus modos de vidas e
consequente desenvolvimento cultural.
Nesse contexto de produções acerca da história e memória de
resistência e lutas das comunidades pertencentes ao estado do
Ceará, os alunos e ex-alunos do eixo de pesquisa anteriormente
citado e moradores militantes das comunidades de quilombos
desenvolvem em seus escritos aspectos importantes para
manutenção da cultura e identidade quilombola do estado.
Parte I

A problemática da educação nas comunidades


quilombolas do estado do Ceará
Capítulo 1

Escola e quilombo, diálogo necessário:


Reconhecendo a presença do legado cultural
africano no cariri cearense

Ana Paula dos Santos


Cícera Nunes

Introdução

A educação escolar quilombola tem estado na pauta de


políticas públicas brasileiras, ressaltamos que isto se deve ao
Movimento Negro Brasileiro e ao Movimento Negro Quilombola que
desde a vinda dos primeiros africanos para o Brasil vem
reivindicando e sinalizando a valorização da história e cultura
africana e afro-brasileira no currículo da escola e em outros setores
sociais, bem como a garantia e a legalização de direitos a esta parcela
da população como ressarcimento de dívida histórica excludente.
Citamos como exemplo de políticas públicas para povos
remanescentes de quilombo em contexto nacional brasileiro, o
Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003 que regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação e
titulação de terras ocupadas por quilombolas, outros órgãos como o
Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares tem promovido
formação para professores quilombolas ou que atuam nestas áreas,
e certificado comunidades pelo INCRA (Instituto Nacional de
26 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Colonização e Reforma Agrária)1. Para este trabalho consideramos


como política pública importante a Resolução nº 8 de 20 de
novembro de 2012 homologada pelo parecer CNE/CEB nº 16/ 2012
que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação
Escolar quilombola que tem definições legais acerca da educação
escolar quilombola.
Avaliando que qualquer trabalho investigativo requer clareza
na definição do objeto de estudo, para nós, perceber como a escola
do quilombo dialoga com a cultura de base africana da comunidade
que, neste caso, ganha um sentido maior em nosso estudo por
acreditarmos que naquele local há sujeitos munidos de história e
saberes que devem ser representados no currículo da escola.
Há muitas maneiras de estudar o passado, porém, pesquisar
comunidades quilombolas nos remete pensar que o tempo
longínquo se confunde com o presente, porque a tradição oral dos
mais velhos destas comunidades se encarrega de manter vivos os
saberes, as experiências e as visões de mundo, socializado nas
práticas religiosas, nos festejos e nos modos de viver. São práticas
culturais ressignificadas, atualizadas no contexto brasileiro em
diálogo com outros grupos étnicos.
Para esta pesquisa, como metodologia, adentramos na
história oral, no que tange ao recolhimento de depoimentos
pessoais, referenciados ao contexto histórico social da comunidade
em questão. Esse procedimento metodológico nos permite
“recuperar memórias locais, comunitárias, regionais, étnicas, de
gênero, nacionais, entre outros” (DELGADO, 2010, p 19).
Por outro lado, dentro do que estamos tratando, a pesquisa
participante também nos serve porque “tem os conteúdos da
representação social, trata-se de uma busca da compreensão destas
representações no ambiente de pesquisa” (CUNHA Jr, 2006, p.5),
mais ainda, a adoção deste procedimento nos coloca em contato com

1
É uma autarquia federal cuja missão prioritária é executar a reforma agrária e realizar o ordenamento
fundiário nacional. Disponível em: http://www.incra.gov.br/sobre_o_incra. Acesso em 8/11/2014.
Ana Paula dos Santos; Cícera Nunes | 27

a ancestralidade tradicional oral africana viva da comunidade


quilombola de Carcará, na qual “suas características particulares são
o verbalismo e sua maneira de transmissão na qual difere das fontes
escritas” (VANSINA, 2010, p. 140).
Realizamos três visitas à comunidade quilombola: a primeira
em abril de 2014 quando entramos em contato com a gestora da
escola, que nos deu informações importantes, por meio de conversa
coletiva com os demais presentes, e no ensejo nos forneceu o
documento da escola chamado de Plano de Trabalho Anual, pois o
Projeto Político Pedagógico 2 encontrava-se em elaboração. A
segunda visita, em setembro, aconteceu com a realização do V
Artefatos da Cultura Negra no Ceará que levou para a comunidade,
com o apoio do GRUNEC (Grupo de Valorização Negra do Cariri),
pesquisadores, estudiosos e estudantes da Universidade Regional do
Cariri, contamos inclusive com a presença do Professor Kabenguele
Munanga da Universidade de São Paulo (USP) e professores de
outras nacionalidades, a citar, Estados Unidos- Alabama e Nigéria.
Com esse evento, procuramos dar visibilidade às lutas e os anseios
da comunidade. No terceiro encontro, em outubro, realizamos
intercâmbio cultural entre os grupos de estudo da URCA e os
estudantes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), momento
em que o líder e outros quilombolas nos concederam entrevista
coletiva e esclareceram o percurso histórico da comunidade, os
saberes coletivos e ancestrais.

Comunidades de Quilombo: Educação Escolar em Pauta

Há um histórico de lutas que tem como protagonista o


movimento negro brasileiro, e nesta categoria está inserido o
movimento negro quilombola que demandou a garantia, o
reconhecimento e a legitimidade da educação escolar como direito
ao povo dos quilombos.

2
É um documento e instrumento que reflete a proposta educacional da escola.
28 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

A educação escolar quilombola é uma política afirmativa, e


como tal, tem por finalidade reparar e corrigir desigualdades
históricas que atingem a população negra do Brasil. Lideranças
organizadas de quilombo reivindicam práticas que considerem suas
realidades, vivências e visões de mundo no sistema educacional.
O percurso histórico da educação escolar quilombola é
marcado pela luta dos movimentos sociais, consideramos
importante destacar, que a garantia em seu território deve ser
assegurada, entanto direito. É a partir desta ideia que surgem uma
série de discussões e reivindicações que resultaram a colocação da
educação escolar quilombola na pauta das políticas públicas
brasileiras. A começar pela alteração da Lei de Diretrizes e Bases
Nacional da Educação 9.394/96, o artigo 26-Ainstituindoqueos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, tornem obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira e indígena, o artigo 79-B estabelece que seja inserido
no calendário escolar o 20 de novembro como o dia da consciência
negra em reconhecimento da importância da população negra na
formação da identidade deste país. Anterior a isto, temos a Lei
10.639/2003 que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História
da África e dos africanos no currículo escolar do ensino
Fundamental e médio, homologada pela a Resolução CNE/CP nº 01
de 2004 que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-brasileira e Africana e foi ainda alterada pela Lei
11.645/2008 que acrescenta as questões indígenas.
No encontro da Conferência Nacional de Educação (CONAE)
2010, no eixo VI- Justiça social educação e trabalho: Inclusão,
diversidade e igualdade, tendo naquela ocasião por meio da
representação de movimento negro quilombolas a reivindicação ao
Ministério da educação e ao Conselho Nacional de educação o
reconhecimento da educação escolar quilombola como uma
modalidade da educação básica, assim, como educação no campo,
Ana Paula dos Santos; Cícera Nunes | 29

Educação de Jovens e Adultos (EJA), educação profissional, educação


à distância e educação indígena.
A partir dessa discussão da CONAE surgem o Parecer
CNE/CEB Nº 7/2010 e a Resolução nº4 de 13 de julho de 2010 que
dizem respeito às Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a
Educação Básica, documento que indica a educação escolar
quilombola como uma modalidade de ensino e propõe que seja
organizada uma regulamentação específica, com isso, o Parecer
CNE/CEB 16/2012 e a Resolução nº8 de 20 de novembro de 2012
definem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola configurando um processo histórico de luta,
afirmação de identidade e avanço dessas comunidades.
É importante dizermos que a conquista da Lei 10.639/2003,
que alterou a LDB, foi para o Brasil um marco na democracia e na
promoção da igualdade racial. Neste sentido, ultrapassou medidas
não apenas para a educação, mas também reconheceu as
contribuições da população negra para a formação do povo
brasileiro, além de garantir outros direitos. O Parecer CNE/CEB nº
16/ 2012 afirma que “esse histórico de lutas tem o Movimento
Quilombola e o Movimento Negro como os principais protagonistas
políticos” (BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 16/ 2012, p.13), ou seja, são
esses movimentos que lutam por reconhecimento e afirmação de
identidade enquanto negro quilombola no Brasil.
Assim sendo, comunidades quilombolas também tem direito
à educação, porém, no histórico educacional do Brasil foram sequer
mencionadas, foram negadas e tratadas como inexistentes, “na
gestão dos sistemas de ensino, nos processos de formação de
professores, na produção teórica educacional, essa realidade tem
sido invisibilizada ou tratada de forma marginal” (BRASIL, Parecer
CNE/CEB nº 16/ 2012, p. 18), entretanto, se educação para todos
aparece em todos os discursos, falada nos "quatro cantos do
mundo", deve ser assim também para as comunidades quilombolas
deste país. A própria Constituição de 1988 assegura esse direito.
Garantir educação nesses espaços é pressuposto fundamental em
30 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

direção a uma educação pautada nos princípios da gestão


democrática.
Considerando a questão da terra, da territorialidade como
algo importante a ser tratada, a Constituição Federal de 1988, no Ato
das disposições transitórias artigo 68, garante aos remanescentes
quilombolas que estão a ocupar terras o reconhecimento legal da
propriedade como posse definitiva, devendo o estado emitir os
títulos de donos da terra.
Para que uma determinada comunidade seja reconhecida
como remanescente quilombola é necessário entender o conceito de
quilombo, que, de acordo com o Decreto nº 4.887/2003, são assim
denominados “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-
atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL,
art. 2 do decreto 4.887/2003), ou seja, os próprios quilombolas vão
incorporando através de sua história e características específicas,
aliadas às políticas públicas, e a partir daí vai decorrendo “a
necessidade do grupo social em identificar suas raízes e valorizar o
núcleo de sua cultura por meio da luta de resistência” (BENNETT,
2010, p. 30). Desse modo, assume-se uma identidade afirmada como
quilombola. Ou seja, é importante que os próprios grupos se
reconheçam e se autodefinam como tal.
Na atualidade, uma comunidade com identidade quilombola
afirmada abandona a ideia colonial de local distante com negros
fugidos do sistema opressor silencioso, ganha um sentido de espaço
que preserva a cosmovisão cultural e saberes dos antepassados
africanos, esse foi um dos primeiros movimentos organizados no
Brasil, “criaram economias importantes e povoações expressivas e
duradouras por todo o país” (CUNHA Jr, 2005, p. 264), prova disso
é a certificação de centenas de comunidades quilombolas espalhadas
por todo o território brasileiro.
Em relação ao passado histórico, equiparando-se ao atual, o
sistema social ainda é racista e ideologicamente opressor, porém,
Ana Paula dos Santos; Cícera Nunes | 31

agora são outros "quinhentos" e continuamos a não nos conformar,


a não silenciar diante das demandas que nós negros/negras e
afrodescendentes, seja em locais urbanos ou em comunidades
quilombolas rurais. Negros, afrodescendentes em quilombo urbano
ou rural demandam reconhecimento histórico social, identitário e
ressarcimento de um “escravismo criminoso” (Cunha Jr, 2007),
estes “reivindicam o direito à permanência e ao reconhecimento
legal de posse das terras ocupadas e cultivas para moradia e
sustento, bem como o livre exercício de suas práticas, crenças e
valores” (Leite, 2000, p. 334). Livramo-nos das correntes que
marcaram nosso corpo, mas ainda não nos livramos das correntes
ideológicas do racismo.
Há que se pontuar também que essas comunidades requerem
seja cumprido tudo que está assegurado por lei, diante do contexto
de leis que garantem seus direitos3, isso porque “eles se mantêm
vivos, na atualidade, por meio da presença ativa das várias
comunidades quilombolas existentes nas diferentes regiões do país”
(BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 16/ 2012, p. 5). Afirmam ainda,
Munanga e Gomes (2006), que os africanos trouxeram em suas
bagagens elementos significativos e representativos dessa cultura
que contribuiu para a formação da identidade do povo brasileiro.
Mas mesmo com tantas leis, deparamo-nos com o seguinte
questionamento: qual contexto histórico social essas comunidades
vivem atualmente ou que atribuições podemos fazer ao sentido da
palavra quilombo ou quilombola, certamente não mais a conotação
de escravos fujões? “A ideia de quilombo foi ressignificada como
referência histórica fundamental, tornando-se assim, um símbolo
no processo de construção e afirmação social, política, cultural e
identitária” (Gomes, 2013, p.10).
De acordo com os dados da Fundação Palmares, mais de 1.500
comunidades já foram certificadas em todo Brasil. Destas, quarenta

3
Constituição Federal de 1988, lei 10639/2003, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola, Resolução nº 8 de 2012 e o Decreto 4.887/2003.
32 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

e cinco (45) 4 estão no território do Ceará. A região do Cariri,


composta por vinte e sete (27) municípios, insere-se neste contexto
com seis (6) comunidades certificadas, sendo elas: Araripe, com a
comunidade quilombola Sítio Arruda; Potengi, com Sítio Carcará;
Porteiras, com Souza; e Salitre com Serra dos Chagas, Renascer
Lagoa dos Criolos e Nossa Senhora das Graças do Sítio Arapuca.

Espaço, tempo e memória: Quilombo Carcará em Potengi- CE

O município de Potengi está localizado na região do “cariri”,


atualmente sua população é de 10.144 habitantes, está cerca de
quinhentos quilômetros (500 km) distanciados da capital do estado
do Ceará – Fortaleza. O quilombo da comunidade sítio Carcará
localiza-se na zona rural da referida cidade.
Carcará está a cerca de 17 quilômetros do centro da cidade de
Potengi, com aproximadamente 200 habitantes. A comunidade
possui em sua história a prova da reminiscência quilombola.
Certificada desde dia 30 de julho de 2013 pela Fundação Palmares,
que tem como objetivo formalizar a existência de comunidades
rurais quilombolas assegurando juridicamente, desenvolvendo
projetos, programas e políticas públicas garantindo a cidadania,
conforme o texto em sua página de apresentação 5 . Carcará está
registrada no Livro de Cadastro Geral n.º 015, Registro nº 1.911,
fl.129 – processo n° 01420.001979/2013-88.
As primeiras pessoas a pôr “os pés” no chão daquele local
foram três famílias influentes: a de Mariano Massau e as de
sobrenome Alves e Silva que se instalaram ali em meados do século
XIX. É o que consta na memória do líder comunitário Sebastião,
conhecimento este, que a ele foi transferido pelos mais velhos da
comunidade Carcará. O lugar recebe este nome em alusão a um

4
Disponível em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/crqs/quadro-geral-por-estado-
ate-23-02-2015.pdf. Acesso em 08/03/2015.
5
Disponível em: http://www.palmares.gov.br/quilombola/ Acesso em: 05/10/2014.
Ana Paula dos Santos; Cícera Nunes | 33

pássaro muito comum na época em que seus antepassados fugiam


da casa grande para se refugiarem na mata, local onde hoje é o
quilombo. É importante fazer este registro da memória, por que:

Sei que a qualquer momento os (as) idosos (as) podem falecer e se


não documentarmos os conhecimentos que possuem, levarão
consigo capítulos guardados em suas memórias de uma história do
vivido, sentido e por isso escritas vivas em seus corpos,
alimentados por suas lembranças que precisamos salvaguardar
mesmo que seja na frieza das letras de um livro, que para nós
jamais serão mortas, porque falam de vida, entrelaçadas com a
nossa vida, anunciando vidas, de vidas e vidas que se formarão
porque sempre se farão vivas (VIDEIRA, 2010, p. 63).

A casa grande, conhecida na região como A Casa do Infincado,


traz na sua arquitetura marcas do período escravocrata, que
remonta o cenário dos castigos físicos, quando negros e negras eram
açoitados e espancados criminosamente pelos seus senhores, que os
tinham como mercadoria de troca e venda ou como objeto de
utilidade doméstica ou pessoal, eram pessoas escravizadas
capturadas no continente africano. A casa fica cerca de 30
quilômetros de distância da comunidade Carcará. Sebastião tem
claramente na memória ancestral o quadro daquele período:

Mas lá para que vocês possam, se vocês chegarem lá dentro para


vocês fazerem a história do nego sofrido mesmo, sofrendo mesmo,
pra vocês chegarem e dizerem assim: Será como era que era os
negos? Eles ficava era amarrado, o nego ficava piado. Não precisa
não, vocês ó, cada um de vocês se chegarem dentro daquela casa,
a casa grande do inficado, só basta vocês entrarem com um
caderno e uma caneta com certeza só em vocês andarem dentro
daquela casa lá, vocês fazem a história como se estivessem vendo
negros espancados, porque lá em cada canto de casa tem uns
torno, umas algora na altura que os negos ficavam com os braços
abertos enganchados naquelas algora a onde os negros ficavam
espancados (Depoimento de Sebastião, em entrevista coletiva,
23/10/2014).
34 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Segundo ele, a extensão territorial do quilombo era bem


maior, mas algumas pessoas no passado não tinham conhecimento
sobre seus direitos à terra e com isso venderam e se desfizeram do
seu “pedaço de chão”. Sobretudo, “são terras ocupadas por
remanescentes dos quilombolas, utilizadas para a garantia de sua
reprodução física, social, econômica e cultural” (art. 2º, §2º do
decreto 4.887/2003). Atualmente, apesar da comunidade já ter sido
certificada pela Fundação Palmares, ainda se encontra em processo
no NCRA pela legalização e demarcação do território.
A comunidade preserva os conhecimentos tradicionais por
meio do uso de plantas medicinais, pelas rezadeiras, benzedeiras e
parteiras que ainda prestam auxílio às mulheres em trabalho de
parto e às crianças recém-nascidas. Uma senhora chamada Silva
mantém a tradição passada de mãe para filha, sua mãe de 72 anos
já fez o parto de 190 crianças da comunidade e regiões
circunvizinhas. Silva, na arte de “pegar menino”, ainda hoje faz o
trabalho de parto nas mulheres do quilombo, na condição de que a
gestante não apresente problemas durante a gestação. As rezadeiras
usam de suas crenças, plantas e rituais para curar dor de cabeça, dor
de barriga e dor de dente.
Outra manifestação cultural preservada no quilombo é a
dança do toré, que foi trazida pelos quilombolas no século XIX. A
dança vem se mantendo viva nos festejos da comunidade. O toré é
uma ciranda de coco cantada e dançada em versos criados no
improviso ou sendo recantados os mesmos versos cantados pelos
antepassados.
Na visita que realizamos durante o V artefatos da Cultura
negra no Ceará, no dia 6 de setembro de 2014, observamos que a
dança é conduzida por mulheres da comunidade ao som do pife,
instrumento de fabricação artesanal, tocado pelo senhor Mazin e
seus dois filhos, um tocando o instrumento musical triângulo e o
outro bumbo. Dona Bizunga, uma das mulheres dançadeiras,
lembra que a dança foi ensinada por Raimunda Massau, uma das
pessoas mais velhas da comunidade, hoje com 101 anos de idade, e
Ana Paula dos Santos; Cícera Nunes | 35

esta aprendeu com a “finada Joana de Côra”6, que as ensinava no


terreiro da casa grande.
A dança do toré, no quilombo Carcará, é realizada em
movimentos circulares, elas dançam e cantam ao mesmo tempo.
Jovens, crianças e os mais velhos podem participar do ritual. São
entoados cânticos, como: Amor à torta, o casamento, a flor do i, o
curumé carneiro, a dança crioula dentre outras.
Os versos e “divertimentos” contam histórias, misturados
com alegria e culto à ancestralidade, os movimentos representam
poder, força, energia ancestral e união:

Em cima daquela serra, curumécarneiro


Passa boi, passa boiada, curumécarneiro
Também passa mulatinha, curumécarneiro
Do cabelo cacheado, curumécarneiro
E balança o côcocurumé carneiro
E balança o coco curumé carneiro

Entre uma cantiga e outra não há uma sequência musical. As


mulheres ao dançarem combinam entre si a próxima do repertório
e continuam:

Fulô do i, fulô do a, vamos apanhar maracujá,


Fulô do i, fulô do a, vamos apanhar maracujá,
E ela tire, tire eu, tire eu tire eu,
E ela tire, tire eu, tire eu tire eu.

Nesta cantiga as pessoas que estão em volta do círculo a


apreciar a dança são convidadas a participar da brincadeira do toré.
São colocadas no centro por uma das mulheres, e no compasso do
ritmo movimentam o corpo, assim, sucessivamente, todos vão

6
Joana de Couro, mãe de Maria Virgem da Silva, que deu origem ao nome dado à escola do quilombo.
36 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

participando. Já no cântico a seguir, elas vão cantando e falando


versos a cada refrão:

Olha o passarinho domine, caiu no laço domine,


Das um beijinho domine e dois abraços domine.

Dentro do meu peito tem garrafinha de vintém,


Um melinho açucarado, pá boquinha do meu bem.

Olha o passarinho domine, caiu no laço domine,


Das um beijinho domine e dois abraços domine.

Pimenta do reino é preta, mas põe de comer gostoso,


Meu benzinho também é preto, mas tem um olhar dengoso.

Olha o passarinho domine, caiu no laço domine,


Das um beijinho domine e dois abraços domine.

Os versos neste cântico são improvisados, fala de suas vidas


cotidianas e de sua história de negro quilombola, além de unir o
passado e o presente em um conjunto de saberes culturais e
históricos respeitados e valorizados pela comunidade.
E outra cantiga que faz lembrar o homem negro que agora
livre das amarras físicas, dos castigos sofridos e convicto de suas
raízes, luta para livrar-se da invisibilidade, da negação de seus
direitos, que por mais de quatrocentos anos foram negados. É a
seguinte:

Boi, boi vamos vadiar, Boi, boi vamos vadiar


Meu boi bonito vamos vadiar, não vá errar, vamos vadiar.

Boi, boi vamos vadiar, Boi, boi vamos vadiar


Meu boi bonito vamos vadiar, não vá errar, vamos vadiar.
Ana Paula dos Santos; Cícera Nunes | 37

A comunidade tem muito a nos dizer acerca das suas heranças


históricas africanas evidenciadas em suas manifestações culturais.
Os mais velhos formam uma espécie de guardiões desta memória e
repassam através de narrativas para os mais novos no momento da
dança, nos cânticos, na sabedoria tradicional e nos modos de falar.
Percebe-se claramente a preocupação da comunidade com a
continuação deste saber no espaço escolar. Na entrevista coletiva do
dia 23/10/2014, o líder da comunidade afirmou que a escola não tem
cumprido o seu papel e compromisso com a Lei 10.639/2003, que
instituiu a obrigatoriedade da história e cultura africana e afro-
brasileira no currículo da educação básica, alegou ainda que não se
sente de uma forma geral, enquanto comunidade negra quilombola,
representado na escola situada dentro do quilombo.
Atualmente, a comunidade é representada legalmente por
uma associação e isso lhes tem dado respaldo diante do governo
diante das conquistas de políticas públicas em benefício dos seus
moradores. A comunidade é atendida pelo Projeto Criação de
Galinhas, Brasil sem Miséria, sistema de água com construções de
cisternas e aguarda a demarcação de território pelo INCRA para ser
beneficiada pelo programa Federal Minha casa Minha Vida. O
quilombo dispõe de uma creche e uma escola de Ensino
Fundamental construídas recentemente e conquistadas pela ação da
associação. A escola recebe o nome de Maria Virgem da Silva em
homenagem a uma mulher forte que em vida buscou melhorias para
a comunidade, era rezadeira, fazia remédios e distribuía para quem
precisasse, conhecida na região por abrigar andarilhos que
passavam por ali, ela era filha de Joana de Couro.
A comunidade quilombola de Carcará tem direito a uma
educação escolar diferenciada, que deve ser implantada de acordo
com as suas especificidades histórico-culturais. As inúmeras
comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil carregam consigo
um histórico patrimonial cultural diferente, porém, em um mesmo
contexto histórico, pois na diáspora, africanos das diversas regiões
38 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

da África foram misturados. Assim, a escola deve estar conectada


com os saberes do quilombo.

Educação escolar na Comunidade Quilombola Carcará: Escola


Maria Virgem da Silva

A E.E.F. Maria Virgem da Silva foi inaugurada com a estrutura


atual, em 2 de junho de 2012, inicialmente funcionou em uma
estrutura improvisada pela comunidade. Os que compõem a escola
têm consciência que a comunidade já foi reconhecida pelo Governo
Federal como Remanescente de Quilombolas, e por este motivo,
muitos programas e projetos já foram e continuam sendo
desenvolvidos na comunidade para uma melhor qualidade de vida
dos seus habitantes.
A instituição tem boa estrutura física e oferece aos seus
educandos o Ensino Fundamental, os seis primeiros anos iniciais. O
corpo docente está dividido da seguinte forma: seis professores para
o 1º, 2º, 3º, 4º e 5º ano e dois professores para o 6º ano. O Núcleo
Gestor é composto por uma diretora, uma coordenadora e uma
secretária escolar. Os demais funcionários estão distribuídos em
quatro auxiliares de serviços gerais, quatro merendeiras e dois
porteiros. A escola define o perfil dos alunos como bastante
heterogêneo, filhos de agricultores.
Timidamente a escola tem pautado no seu currículo a história
afro-brasileira, isso se intensifica na semana em que é comemorado
o dia da Consciência Negra. Nas nossas pesquisas e estudos
realizados pela Universidade Regional do Cariri- URCA, temos
levantado o questionamento no que se refere às escolas trabalharem
e discutirem o tema somente nesse período, pois defendemos que a
temática afro deve estar presente em todo o currículo escolar e
durante todo o período letivo. A educação escolar pela via do
silenciamento traz prejuízos e sérios danos ao fortalecimento da
identidade daquele local. A escola não pode fechar os olhos para o
que acontece fora dela, a comunidade Carcará tem uma história,
Ana Paula dos Santos; Cícera Nunes | 39

manifestações culturais e saberes civilizatórios que pertencem


àquele conjunto de indivíduos que ali residem. A educação escolar
quilombola é diferenciada, ela não pode ser moldada nos quesitos da
escola que conhecemos.
Durante nossa pesquisa, notamos que a escola Maria Virgem
da Silva precisa fazer a aproximação com a comunidade. Para tanto,
o primeiro passo é inserir os conteúdos da história e cultura africana
no seu currículo; em segundo, compreender que o espaço em que a
escola está situada é um quilombo. Esta compreensão precisa estar
além do espaço físico, precisa ter a “cara” da comunidade, as
crianças e seus antepassados precisam se sentir representados.
Já há mais de dez conteúdos da história e cultura africana que
são obrigatórios no currículo de toda a educação básica através da
lei 10.639/2003. Ressaltamos que de acordo com o Parecer CNE nº
16/2012 muitas secretarias de educação não têm oferecido formação
adequada para seu professorado e muito menos para gestores
escolares, sendo esta uma das dificuldades apontadas pela gestora
em Carcará.
A escola deve unir o currículo tradicional aos saberes
patrimoniais da comunidade, preservando e mantendo vivas as
tradições do quilombo, porque são conhecimentos que fazem parte
do processo civilizatórios daquele local.
Ao analisarmos o Plano Anual de Trabalho de 2014 da escola,
chegamos à conclusão de que ele é igual aos das outras escolas, ou
seja, a instituição escolar situada dentro do quilombo ainda não
corresponde ao que se espera de uma educação escolar quilombola.
O que estamos tratando aqui vai além do que está expresso na
lei 10.639/2003, queremos afirmar que a educação escolar
quilombola é uma modalidade da educação básica, portanto, será
pensada para esses povos em suas modalidades de ensino,
considerando a importância “da memória coletiva; das línguas
reminiscentes; dos marcos civilizatórios; das práticas culturais; das
tecnologias e formas de produção do trabalho; repertórios orais; dos
40 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

festejos; territorialidade” (Art. 1§1º I, p. 3). De acordo com o Parecer


CNE/CEB nº 16/ 2012:

Do ponto de vista nacional, com destaque para a legislação


educacional, as escolas quilombolas e as escolas que atendem
estudantes oriundos de territórios quilombolas, bem como as
redes de ensino das quais fazem parte, possuem orientações gerais
constantes da lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da
educação) e da Lei nº 11.494/2007, que regulamenta o Fundo de
Desenvolvimento da educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da educação (FUNDEB) para o atendimento dessa
parcela da população. (BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 16/ 2012, p.
19).

Portanto, acompanha as discussões em torno da LDB e do


FUNDEB, garantindo-se com isso o reconhecimento da
especificidade histórico-cultural de cada comunidade, pois “Os
quilombos são territórios heterogêneos com direitos garantidos por
lei e de culturas distintas” (VIDEIRA, 2010, p. 67). A autora acima
citada pontua que os quilombos têm o mesmo histórico de lutas, mas
se constituem em espaços geográficos diferentes com expressões
próprias. Ela chama também nossa atenção para os termos que
recebem na atualidade e a má compressão das novas gerações para
o sentido de quilombola, ocasionando a recusa desta identidade,
porque tal aceitação os levaria ao entendimento de que seriam
escravizados novamente.
De acordo com o Parecer CNE/CEB nº 16/ 2012, o
funcionamento das escolas em território quilombola, devido às
dificuldades encontradas, tornou-se um grande desafio nas diversas
comunidades espalhadas pelo Brasil, com questões como: falta de
alimentação, boa estrutura e transporte escolar, principalmente em
atendimento aos alunos que estudam em escolas próximas ao
quilombo, que têm se tornado um abismo entre o direito à educação
e a garantia de acesso e permanência dessa população na escola.
Outra questão importante que o referido parecer destaca é o
material didático e de apoio pedagógico que escolas quilombolas
Ana Paula dos Santos; Cícera Nunes | 41

devem dispor ao professorado, aos gestores, alunos e a todos que


compõem a escola, que devem trazer em seus conteúdos a
representação da história e cultura africana e afro-brasileira geral e
local. Os líderes das comunidades têm reivindicado e cobrado isso
da escola. O Parecer afirma que o Ministério da Educação tem
produzido material e enviado à escola, mas tropeça em questões
complicadas, como a maneira que os gestores dos sistemas de
ensino têm encaminhado os recursos didáticos para as escolas em
território quilombola, uma vez que muitas vezes desconhecem a
existência dessas comunidades.
Outro fator é a questão da organização da alimentação
escolar. Os quilombolas têm reivindicado, inclusive em Carcará, que
essa alimentação esteja articulada com a agricultura produzida na
própria comunidade, com a dieta e com os modos de ser do povo
quilombola em cada situação. Existe a preocupação por parte das
políticas públicas governamentais para que haja coerência e diálogo
entre o órgão e os líderes comunitários na distribuição de recursos
para as reais necessidades e hábitos da comunidade. Para tanto,
deverão ser levados em consideração seus processos próprios
específicos de produção, sua sabedoria e trato com a terra.
O currículo deverá considerar os aspectos que norteiam as
Diretrizes Nacionais Gerais da Educação Básica (2010) seguidas
pelas escolas de todo território brasileiro, não excluindo as
comunidades quilombolas, mas deve ir além desses conteúdos, pois
no currículo da educação escolar quilombola os conhecimentos
gerais devem dialogar com os conhecimentos tradicionais da
comunidade, como sua história se articula com as dimensões locais,
regionais, nacionais e com a diáspora africana, e ainda:

Faz-se necessário abrir espaços, de fato, para maior participação


da comunidade e dos movimentos sociais e construir outras
formas de participação coletiva e de consulta, nas quais docentes,
gestores, pedagogos e estudantes dialoguem com as lideranças
quilombolas, pessoas da comunidade, anciãos e educadores
quilombolas. Um currículo flexível e aberto só poderá ser
42 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

construído se a flexibilidade e a abertura forem, realmente, as


formas adotadas na relação estabelecida entre a instituição e a
comunidade (BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 16/ 2012, 42).

Em termos gerais, há no Brasil registros de comunidades


quilombolas quase que em todo território, assim, para cada grupo
deve ser pensada uma educação diferenciada que atenda aos
princípios de uma educação escolar quilombola. O projeto político
pedagógico precisa refletir na dinâmica cultural da comunidade.
A escola pode ressignificar o sentido de quilombo tendo como
ponto de partida a própria história de Palmares, sendo este um dos
mais conhecidos do Brasil no período colonial, procurando
relacionar todos esses fatores à diáspora africana, à história de
resistência negra no contexto do escravismo criminoso e às
comunidades na atualidade. Conteúdos que devem favorecer o
fortalecimento identitário e a recriação de significados.
O calendário escolar, de acordo com o Parecer CNE CEB nº
16/2012, deve incluir as comemorações de âmbito nacional e local, e
chama a atenção para o fato de ser recorrente, no currículo das
escolas brasileiras, os conteúdos de ensino de história africana
serem tratados apenas na semana do dia 20 de novembro, quando
é comemorado o dia da consciência negra, caindo no risco da
improvisação. A maneira mais segura e adequada de discutir o
calendário da escola é permitir que ele seja abordado nas
assembleias, nos conselhos e nas reuniões escolares. Sugere-se que,
além do dia da Consciência negra, o calendário inclua outras datas
consideradas importantes para a população negra, podendo variar
de região para região e isso poderá ser acordado entre a comunidade
e seus líderes.
O projeto político pedagógico (PPP) também segue as
orientações gerais da educação básica, porém, ele possui
características e especificidades daquela determinada comunidade
escolar quilombola, pois são sujeitos que têm contextos e trajetórias
Ana Paula dos Santos; Cícera Nunes | 43

históricas de vida diferenciadas que devem ser consideradas pela


escola.

Algumas considerações

Quem busca por quilombo procura um pouco de si7. Isso é, de


certa forma, inquietante numa sociedade que tenta, por meio do
racismo silencioso, calar definições seguras de identidades e
passados históricos, suprimidos pela tentativa de legitimar o mito
da democracia racial. É neste contexto histórico que gestão
democrática da educação só faz sentido se estiver presente nas
práticas e interações sociais.
Os quilombos são fundados pela resistência e sobrevivência
de uma cultura viva ancestral, a permanência dessa ancestralidade
africana presentes em comunidades quilombola tem sido sinônimo
de afirmação de identidade, e a luta para se inserirem dentro de um
contexto político social tem marcado a vida de muitos quilombolas
espalhados pelo território brasileiro.
Consideramos que ainda há muito caminho a ser percorrido,
pois há muitas comunidades que vivem sem a garantia dos seus
direitos, outras não receberam suas titulações e demarcações de
terras. O conflito identitário e o distanciamento com o elo africano
guiado pelo mito da democracia racial ainda interferem na própria
autoafirmação e autoatribuição enquanto cidadão quilombola deste
país.
Os que já se percebem dentro desse contexto buscam
melhores condições de vida para suas comunidades e procuram
garantir a continuidade da memória coletiva dos seus antepassados,
e produzir nos mais jovens o desejo de prosseguir com uma
ancestralidade identitária afirmada, é nesse contexto que as escolas

7
Alex Ratts, palestra proferida no V memórias de Baobá realizado de 26 a 29 de novembro de 2014.
Fortaleza, Praça do Mártires – Passeio Público
44 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

localizadas no quilombo ou próximas a ele possam cumprir com seu


papel, garantindo uma educação escolar quilombola diferenciada.
Este trabalho é apenas um ponta pé inicial junto à escola na
comunidade de Carcará, que será ampliado e aprofundado no
mestrado e que nos permitirá realizar possíveis intervenções
pedagógicas no interior da escola em parceria com a comunidade e
universidade.

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doutoramento - Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2010.
Capítulo 2

As comunidades quilombolas e os desafios de


uma educação antirracista

Cláudia de Oliveira da Silva


Maria Kellynia Farias Alves

A educação é a arma mais poderosa


que você pode usar para mudar o mundo.
Nelson Mandela

Introdução

Certa vez, no I curso de Especialização Pós-graduação Lato


Sensu em História e Cultura Africana e dos Afrodescendentes de
formação de professores de quilombo promovido pela Universidade
Federal do Ceará (2010-2011), os professores e as professoras
cursistas foram solicitados a fazer um memorial. Essa atividade foi
facilitada pelas reflexões geradas nas árvores dos saberes. Em cada
árvore, as pessoas deviam listar os seus saberes, intervalando de sete
em sete anos como forma de dividir as etapas de nossas vidas. Esta
técnica é uma adaptação que Jacques Gauthier fez das árvores do
conhecimento de Pierre Levy. Nesta inspiração, esses saberes são
vistos pela pretagogia como os saberes afro-brasileiros que
aprendemos e com eles construímos nossa identidade negra, o
nosso pertencimento.
48 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

A Pretagogia é um referencial teórico-metodológico que vem


sendo construído desde 2011 e que toma os saberes da Mãe África
como orientadores das reflexões e atividades docentes. Parte do
princípio de que as expressões da trajetória dos afrodescendentes
por serem complexas necessitam precisam ser estudados nas
matrizes conceituais e filosóficas na afroperspectiva
(PETIT&SILVA,2011; PETIT, 2015). Este referencial tem como
princípios: a tradição oral africana, o reconhecimento do lugar social
do negro, o autorreconhecer-se afrodescendente, a reconhecimento
da sacralidade, a apropriação da ancestralidade, o princípio da
circularidade, a religiosidade, o corpo como fonte espiritual e
produção de saberes, a relação comunitária e o território.
Esses valores presentes neste referencial são atravessados por
um outro princípio, o da “porteira de dentro” ou “desde dentro”
(LUZ, 2000). Nesta perspectiva, há uma outra relação entre
pesquisa e pesquisador que estabelecem em um nível “ bipessoal”.
São outras implicações da/na pesquisa como explicam PETIT; SILVA
(2011) uma nova relação entre pesquisador e grupo:

Na perspectiva da porteira de dentro, @ pesquisador/a produz uma


relação de sujeito a sujeito, de compromisso, respeito e sensibilidade
para com o grupo alvo. Adota a postura da afrodescendência, não se
colocando em exterioridade ao seu objeto, e sim no interior,
primeiro reconhecendo-se afrodescendente, em seguida assumindo
as consequências sociais, culturais e, sobretudo políticas de tal auto-
afirmação. (...). Assim, não se quer adotar a postura de analisar a
cultura do outro e sim, vê-la como parte da própria cultura e
percebendo as problemáticas que a perpassam como afetando a
própria existência. (PETIT; SILVA, 2011, p.89)

Assim, é “desde dentro” que as reflexões neste artigo serão


conduzidas. As construções sobre a educação escolar quilombola
serão tecidas a partir das memórias, aprendizagens e pesquisas a
fim de alimentar esse debate no viés da Pretagogia. Esse é o ponto
de partida e a referência: as memórias e as vivências no território
Cláudia de Oliveira da Silva; Maria Kellynia Farias Alves | 49

quilombola, em especial, daquelas situadas no município de


Caucaia-CE.

Comunidades quilombolas: definição do ponto de vista legal

No tempo de nossa infância vivíamos de forma mais coletiva,


com sentimentos de colaboração e irmandade. Nossos avós nos
ensinavam os valores que hoje percebemos na pretagogia como
princípios civilizatórios africanos. As comunidades tinham vínculos
culturais bem aproximados das culturas africanas. As danças, as os
reisados, as brincadeiras de boi, as crenças, os rituais para celebrar
as boas colheitas ou pedir bom inverno, fartura, as celebrações
religiosas, a culinária tradicional, a cura pelos remédios caseiros e
benzenções das rezadeiras/benzedeiras, faziam parte do nosso
cotidiano. Atualmente, vimos que esses costumes estão sendo
desvalorizados pelas comunidades, pois a mídia divulga um
estereótipo de sociedade padrão e manipula a mente dos (as) jovens
que preferem se afastar de suas raízes para tornar-se “iguais” do
ponto de vista da modernidade.
Enquanto isso, o que queremos é que crianças, jovens, adultos
e idosos sejam capazes de incluir-se na sociedade atual, sem perder
seu contato íntimo com a cultura afrodescendente, pois acreditamos
que uma comunidade com a identidade fortalecida, em seu
pertencimento étnico-racial tem mais condições de enxergar
possibilidades de um futuro mais digno, com a garantia dos direitos
cidadãos e políticas públicas que contribuam para uma vida com
mais oportunidades.
Há muitos anos as comunidades quilombolas eram
conceituadas como toda habitação de negros (as) fugidos (as) em
grupo de mais de cinco pessoas, mesmo que não tivessem rancho,
nem pilões. Essa ideia de quilombo permaneceu por longo tempo e
influenciou muitas pessoas. Esse conceito se refere à época da
escravidão no Brasil e o quilombo era tido como um espaço de
resistência dos (as) negros (as), também intituladas por muitos
50 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

pesquisadores como de “terra de pretos” “terra de mocambos” ou


“território negro”.
A Constituição Federal de 1988 oficializou as comunidades
quilombolas através do Art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, garantindo aos remanescentes das
comunidades dos quilombos, que estejam ocupando suas terras, o
reconhecimento e a propriedade definitiva do território, devendo o
Estado emitir os títulos respectivos. Esse ato retira da invisibilidade
as comunidades quilombolas que já existem hão séculos e motivam-
nas a acreditar na possibilidade de obter o título de suas terras,
dentre outros importantes direitos, tais como a educação e a
manutenção cultural.
Em 2003, o Decreto nº 4.887/03 regulamentou os
procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por esses grupos.
Assegurou que a caracterização das comunidades como
remanescentes de quilombos poderia ser atestada mediante
autodefinição dos membros das próprias comunidades. A
caracterização de remanescentes de quilombos não se limitava a
somente aqueles quilombos históricos, constituídos de escravizados
fugidos, estendendo-se às comunidades negras constituídas a partir
de diversos elementos fundadores tais como, a herança da
ancestralidade negra.
A diversidade que envolve as comunidades quilombolas é bem
ampla e complexa, por isso é necessário que essa denominação de
quilombo vá além de homens e mulheres fugitivos (as), isolamento
geográfico em local de difícil acesso, morar em ranchos ou
sobreviver do autoconsumo. Tais avanços no campo da legislação
foram possíveis devido a organização e mobilização dos povos
quilombolas que tem assumido uma postura de resistência e
preservação da história e memória de seus ancestrais, respeitando e
valorizando sua cultura. Muitas comunidades quilombolas têm
produção autônoma, elas desenvolvem diversos tipos de produtos
agrícolas e artesanais. Participam da vida em diversos meios da
Cláudia de Oliveira da Silva; Maria Kellynia Farias Alves | 51

sociedade, como empregos em indústrias, porém, ainda se tem a


carência majoritária da profissionalização das pessoas das
comunidades, principalmente na área da educação.

Os desafios de uma educação contextualizada nas comunidades


quilombolas

Os quilombos simbolizam a resistência histórica, política e


cultural dos afrodescendentes. Em Caucaia, segundo dados da
Fundação Palmares, são nove comunidades quilombolas, das quais
cinco são certificadas e quatro em processo de certificação. Parte
dessas comunidades situa-se em áreas de difícil acesso, estratégia de
sobrevivência das populações quilombolas. Outras, em distritos
muito próximos às áreas urbanas. São muitas as lutas para que
sejam asseguradas as condições básicas de acesso às políticas
públicas do direito à terra, à educação e à saúde.
Segundo SILVA (2013) as políticas são fundamentadas em um
aparato legal, jurídico, econômico e social. No entanto a falácia da
igualdade racial e o racismo estrutural distorcem a compreensão das
demandas emergentes da população quilombola, revelando uma
perspectiva eurocêntrica. Explicita a autora que,

Com essa visão eurocêntrica colonizadora de desenvolvimento, a


maior parte dos gestores, ao virar as costas para a África brasileira
ou para o Brasil e africano, também viram as costas para os
brasileiros descendentes de africanos, do mesmo modo que vira as
costas para às populações indígenas de cujas terras se apropriam
e para as populações pobres, que vivem do seu próprio trabalho.
(SILVA, 2013, p. 222)

A partir do acompanhamento das escolas no município de


Caucaia, região metropolitana de Fortaleza, foi possível identificar
que as escolas que estão localizadas em territórios quilombolas, não
trabalham com uma educação antirracista. Pelo contrário,
fortalecem a ideia de conformismo com a realidade atual e de não
52 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

participação como sujeitos ativos (as) produtores (as) de saberes.


Geralmente as pessoas que ocupam os poucos cargos existentes na
comunidade, são profissionais oriundos de outras localidades. Isso é
um caso que atinge diretamente à educação realizada no quilombo.
A educação oferecida nessas escolas nas comunidades
quilombolas, retrata a manutenção da dominação e da obediência. É
perceptível a resistência por parte dos profissionais que ali atuam,
já que muitas vezes não pertencem à comunidade, não receberam
formação específica ou são indicados (as) politicamente por pessoas
que tem ligação com a propriedade das terras. Alguns não
consideram importante a inclusão da história desses povos como
protagonistas de sua história. Isso traz um dano quase irreparável
às pessoas da comunidade, pois dificilmente enxergarão suas
potencialidades neste cenário.
Essas potencialidades se expressam por diversos elementos
como o contato e a proximidade com a natureza, que é um aspecto
privilegiado no que diz respeito à preservação ambiental. Também
na relação com o sagrado, a ligação ancestral e a identificação das
divindades como nossos (as) protetores (as), que mesmo depois de
praticarmos rituais religiosos dos nossos colonizadores, ainda
instintivamente ou pelo chamado ancestral, praticamos rituais e
saberes que nos remetem sempre à matriz africana.
Isso demonstra outro aspecto: nas comunidades quilombolas
as pessoas são muito talentosas. Há quem tenha criatividade para
criar histórias, traduzir o dia-a-dia em verso e prosa, recriar
situações através de trabalhos manuais, colorir as dificuldades com
o verde da esperança e apesar de tudo, os sorrisos se misturam aos
cheiros da natureza. Essas características ficam esmaecidas diante
de uma educação que não as consideram como ponto fundamental
para o sucesso da comunidade.
Os valores e saberes que as pessoas das comunidades
cultivam, ficam a margem das salas de aulas. Então, a educação
permanece desvinculada dos sentimentos, das histórias, dos fazeres
e dos saberes dos povos tradicionais, se transforma em uma
Cláudia de Oliveira da Silva; Maria Kellynia Farias Alves | 53

ferramenta poderosa a favor dos opressores e não a serviço da (re)


construção da identidade quilombola. Segundo Lima,

As etnias negras no contexto brasileiro são demarcadas pelas


raízes históricas sócio-culturais e políticas que marcam a formação
populacional brasileira no contexto do escravismo e pelas relações
estabelecidas tanto nas suas ancestralidades distantes como nas
vivências contemporâneas. (LIMA,2008, p. 38.)

É fundamental que se efetive uma proposta educacional que


contribua para a autoafirmação, na condição de protagonista do
processo de formação e de emancipação social como possibilidade
da cidadania plena. Assim, a educação desenvolvida nas
comunidades quilombolas deve estar em harmonia com outras
perspectivas teóricas que debatem a educação popular e educação
do/no campo. É necessário o investimento na qualificação
profissional das pessoas da comunidade para que os valores e os
princípios sejam considerados na escola como parte integrante do
currículo de ensino (SILVA, 2013).
Esse cenário tem possibilidade de ser modificado, (re)
elaborado e (re) construído pela Lei 10.639/03 que torna obrigatório
o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana as escolas do
país. Mas, acima de tudo, é um grande desafio a ser enfrentado.
Mesmo com esse amparo legal, as dificuldades não deixam de existir,
afinal a Lei já ultrapassou uma década e ainda se relaciona de maneira
episódica, em momentos pontuais que acontecem nas escolas.
O Plano Nacional de implementação da Lei 10.639/03, as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais, o Estatuto da Igualdade Racial e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola são
exemplos de documentos que orientam essa efetivação. No entanto,
esse aparato não assegura por si só as mudanças. As pessoas das
comunidades se colocam como subalternas, sem direito a voz, pois
ainda creditam que... “a vida é assim mesmo.” “Quem nasce em uma
54 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

comunidade quilombola rural tem o mesmo destino: servir aos seus


senhores, porque eles têm dinheiro e por isso podem qualquer coisa”.
Outro desafio se encontrava no âmbito da gestão escolar.
Mesmo que os gestores municipais tentassem realizar alguma ação,
esbarravam nas diferentes formas de racismo, dentre elas o
institucional. Percebe-se tal fato na experiência de Caucaia,
principalmente nos momentos que as escolas eram comunicadas das
atividades ou reuniões. Diversas ferramentas eram usadas para a
mobilização dos gestores escolares, porém parte significativa do
grupo não comparecia aos encontros promovidos pela Secretaria
Municipal de Educação (SME) quando a pauta tratava da educação
quilombola. Vários empecilhos surgiam, deixando transparecer a falta
de prioridade e de interesse sobre o assunto. Inclusive, é uma forma
de afastamento. Enquanto isso, a comunidade permanece ansiosa
para que seus direitos sejam efetivados e suas lutas consideradas.
Essa situação reafirma a necessidade de formação em todos
os espaços da escola. E uma formação que possa promover
mudanças e não apenas reproduza o cenário que alimenta a
discriminação e o preconceito. No sentido da educação
transformadora da realidade considera-se que

[...] a importância da positivação do “eu” na constituição da


autoestima e motiva o desenvolvimento da explicitação do “nós” a
partir dos referenciais ancestrais afrodescendentes positivos nos
diversos âmbitos onde essa participação tem sido ocultada. (LIMA,
2008, p. 40)

A educação contextualizada traz consigo o papel transformador


dessa realidade. A importância de seus atores terem conhecimentos
da realidade. Na perspectiva da Pretagogia (PETIT, 2015; PETIT;
SILVA, 2011) é necessária que primeiro seja feita uma retrospectiva
do próprio eu, um encontro com nossa própria essência e nossas
memórias, para se perceber ou não, na relação ancestral que os povos
tradicionais cultuam e repassam através da oralidade, elemento forte
da cosmovisão africana. Os profissionais da educação que atuam nas
Cláudia de Oliveira da Silva; Maria Kellynia Farias Alves | 55

escolas das comunidades quilombolas precisam fazer esse ritual de


autoconhecimento, vivenciar ações práticas para então, compreender
a realidade que os cercam, assim como reforça Gomes,

O entendimento dos conceitos estaria associado às experiências


concretas, possibilitando uma mudança de valores. Por isso, o
contato com a comunidade negra, com os grupos culturais e
religiosos que estão ao nosso redor é importante, pois uma coisa é
dizer, de longe, que se respeita o outro, e outra coisa é mostrar esse
respeito na convivência humana, é estar cara a cara com os limites
que o outro me impõe, é saber relacionar, negociar, resolver
conflitos, mudar valores. (GOMES,2011, p. 149)

Assim, se defende a importância de práticas pedagógicas


fundamentadas em princípios e valores nas relações entre todos (as)
que fazem parte do processo educativo nas escolas. Aqui ressalta
que esse debate sobre o tratamento que a escola tem dado as
relações raciais vai muito além da análise do livro didático e das
leituras complementares, mas salienta-se no campo atitudinal das
representações do ser negro (a) que possuímos e continua:

É preciso abrir esse debate e tocar com força nessa questão tão
delicada. Caso contrário, continuaremos acreditando que a
implementação de práticas anti-racistas no interior da escola só
dependerá do maior acesso à informação ou do processo ideológico
de politização das consciências dos docentes. Reafirmo que é
preciso construir novas práticas. Julgo ser necessário que os(as)
educadores(as) se coloquem na fronteira desse debate e que a
cobrança de novas posturas diante da questão racial passe a ser
uma realidade, não só dos movimentos negros, mas também dos
educadores, dos sindicatos e dos centros de formação de
professores. GOMES (2011, p. 151).

O que temos presenciado na maioria das escolas que estão


localizadas nas comunidades quilombolas de Caucaia – Ceará, ou
que atendem aos estudantes oriundos desses territórios, é que há
um desconhecimento e não reconhecimento da luta quilombola os
profissionais da educação. E isso fato não é exclusividade desta
56 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

localidade. Ele revela como séculos de uma educação colonializante


e eurocentrada interfere no imaginário sobre o lugar dos
afrodescendentes na sociedade. Acaba influenciando diretamente no
processo pedagógico de (re) construção da identidade quilombola e
pertencimento afro. A escola não pode mais ficar alheia a todos esses
fatores. As Diretrizes da Educação Escolar Quilombola na Educação
Básica garantem em seu Artigo 6º, parágrafo III.

III – assegurar que as escolas quilombolas e as escolas que atendem


estudantes oriundos dos territórios quilombolas considerem as
práticas socioculturais, políticas e econômicas das comunidades
quilombolas, bem como os seus processos próprios de ensino-
aprendizagem e as suas formas de produção e de conhecimento
tecnológico.

Compreendo que esse processo de autoconhecimento étnico-


racial perpassa por todas as entidades e das diversas esferas de
governo. Faz-se necessário que essa temática seja a mais discutida, a
mais refletida de forma transdisciplinar e para todos os sujeitos da
educação. É questão de Direitos Humanos: o direito ao
reconhecimento das contribuições dos (as) negros (as) para a
construção social, cultural, econômica, étnica, tecnológica e científica
do país. Esse trabalho quando priorizado pelo sistema governamental,
garante que a lei não permaneça apenas no papel e seja efetivada de
fato e de direito. A conquista da aprovação da Lei 10.639/03 foi
resultado das lutas dos movimentos negros e sua implementação
agora depende da continuidade dessas lutas, concomitantes com as
reivindicações pelo território, a exigência de uma educação condizente
com as nossas necessidades e interesses coletivos.

Igualdade, diferença e equidade na elaboração e aplicação de


políticas de educação.

A educação sistematizada acontece de forma coletiva e esse


aspecto sugere conviver com as diferenças. No Brasil esse fator se
Cláudia de Oliveira da Silva; Maria Kellynia Farias Alves | 57

agrava quando se depara com a questão racial. O racismo ainda é


muito forte na sociedade que foi ensinada a sentir-se superior às
pessoas de corpos negros. Essas atitudes secularmente
intencionalizadas geram graves prejuízos em todos os setores da
vida dessas pessoas. Para SANTOS (2011) a desigualdade é
fundamentada na subordinação e na hierarquização da colonização
e é também um ponto de geração do racismo. Quando a educação
oferecida não dá ao indivíduo a chave de autoconstrução de se
reconhecer capaz, ela contribui com menos condições de
crescimento cidadão (ã).
Na entrevista realizada por FUNCEF em 20 de novembro de
2011, com a então Ministra de Promoção da Igualdade Racial, Luiza
Helena Bairros, demonstra as deficiências na sociedade brasileira
quando se refere à negritude. A repórter questiona à Ministra sobre o
que faltaria para que a igualdade racial se tornasse um “valor nacional
absorvido pela população brasileira”. Respondeu a ministra:

Fundamentalmente o que nos falta é ganhar a consciência social. Na


medida em que nós consigamos fazer com que no Brasil as pessoas
não tenham mais qualquer dúvida a respeito da necessidade de
incorporar como um valor essencial da democracia a igualdade
racial. Assim conseguiríamos inclusive um maior número de
efetividade das ações do Estado na medida em que também teremos
conseguido com que todos os Ministérios, independentemente do
trabalho interno que a gente faça no governo, que esses Ministérios
tenham um olhar diferenciado para os direitos da população negra,
que tem sido negado durante tantos anos. (Ministra Luiza Bairros,
FUNCEF, 20 de novembro de 2011)

Do ponto de vista do governo, Luiza Bairros (2011) considera


avanços nos debates, medidas e programas que visam a inclusão
social e econômica da população negra. Porém, afirma que o racismo
se adapta as diversas situações, permanecendo sempre fortalecido
por atitudes discriminatórias no que se refere ao povo negro. No
campo educacional, a então ministra ressaltava que era necessário
que a escola cumprisse o seu papel para que as populações de menos
58 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

acesso à escola consigam ultrapassar o Ensino Médio, pois dados


indicam que a maioria dos (as) jovens negros (as) estacionam no
Ensino Médio, mesmo antes de concluí-lo.
Essa reflexão precisa permear o cotidiano das escolas e ser
assumida por pais, mães, professores, estudantes, gestores e por
toda a sociedade. Alguém já parou para pensar nos motivos que
levam os (as) jovens negros ou oriundos de comunidades
quilombolas a desistirem sem mesmo concluir a Educação Básica?
Talvez porque recebem um ensino alheio à sua realidade.
Recentemente em pesquisas realizadas no âmbito dos
quilombos em Caucaia, dentre os quais o Quilombo da Serra do Juá,
foi percebido a relevância de uma escola que de fato se comunique
com os valores e saberes destas comunidades. Desde 2011, o brincar,
o falar e a auto-afirmação negra, têm demonstrado que o papel da
educação no reconhecimento e da preservação dos valores,
tradições, história e memória. Essas reflexões estão presentes no
livro Africanidades Caucaienses (PETIT; SILVA, 2013).
Em 2014, dois momentos de pesquisa sociopoética8 na Serra
do Juá levantaram conhecimentos importantes que sugerem outras
formas de relacionar escola, comunidade e tradição. Quando os
lugares geomíticos 9 revelaram as relações com a resistência,
espiritualidade e ancestralidade africana (SILVA et al, 2014)
deparamo-nos com a necessidade de questionar a ausência desses
elementos nos currículos escolares.
A outra pesquisa, cujo tema gerador era a “rezadeira na
educação quilombola”, apresentou que o tipo de escola que a

8
A sociopoética é um método de pesquisa e aprendizagem criado pelo filósofo e pedagogo Jacques
Gauthier. A partir das experiências no movimento de luta dos Kanak, povo indígena da Nova
Caledônia. Esse método se fundamenta na combinação dos conhecimentos da Pedagogia do Oprimido,
da Esquizoanalise e da análise institucional. A Sociopoética percebe a pesquisa como um processo
coletivo por meio do grupo-pesquisador, do corpo como fonte de conhecimento e da criatividade
artística no compreender, aprender e pesquisar. (Petit et al., 2005).
9
Lugares geomíticos - uma técnica sociopoética em que os participantes são estimulados a associar
lugares da natureza com tema gerador, considerando que esses espaços são habitados espitualmente
e ressignificados em mitos. (SILVA et all, 2014)
Cláudia de Oliveira da Silva; Maria Kellynia Farias Alves | 59

comunidade valoriza e necessita remete a valores relacionados ao


acolhimento, a rezadeira, a espiritualidade, ao respeito às tradições,
afirmação do ser negro e do respeito à diferença. Essa pesquisa
revelou que a escola poderia “promover um espaço para aprender
com os mais velhos, que têm a sabedoria da vida e da tradição. Nesse
sentido, o papel da escola pode ser fonte de afirmação da identidade
quilombola” (SILVA et al 2014, p. 120). Estes estudos revelaram uma
outra relação com educação condizente com a proposta defendida
pela Pretagogia e pelas orientações e diretrizes para a educação
escolar quilombola.
Em Caucaia, são sete escolas que estão neste perfil, sendo
possível identificar, no início do processo, casos de
resistência/desconfiança com a proposta desenvolvida ou por parte
de seus (as) gestores (as), líderes ou até mesmo pelas famílias. Outra
ação básica que está sendo construída é o fortalecimento do diálogo
com os gestores, professores e quilombolas. Além disso, temos dado
especial atenção à promoção de outros espaços de partilha e
formação, inclusive estimulando que no senso escolar sejam
preenchidos os campos que se referem à diversidade étnico-racial.
São ações embrionárias, mas que revigoram a necessidade repensar
a educação escolar quilombola e começam a gerar frutos.
Em 2016 aconteceu o curso de extensão ‘Guardiões da
Memória Quilombola de Caucaia’ referenciado pela Pretagogia, em
parceria entre o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Ceará (IFCE), Campus Caucaia, a Supervisão de Inclusão Étnico
Racial e Territorial da SME/Caucaia. Este curso orientou
intervenções na escola e comunidade, além da produção de um
produto didático, portfólio e avaliação institucional para a qualidade
da educação Afroquilombola e assim, valorizando seu patrimônio
cultural.
Além disso, as escolas iniciaram um fortalecimento do diálogo
sobre a educação escolar quilombola, assumindo novas posturas e
possibilitando a valorização do ser afroquilombola. Por exemplo: a
escola municipal Yara Guerra e Silva foi informada no censo escolar
60 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

como escola quilombola; a comunidade Boqueirãozinho se


identificou a partir das interações do curso Guardiões, sendo uma
comunidade mobilizada que vem trabalhando o seu fortalecimento
através da valorização da cultura, com práticas de mutirões,
cirandas, capoeira e culinária.
Em 2017 a Supervisão de Inclusão Étnico Racial e Territorial
(SIERT/SME) trabalhou na elaboração da Resolução Municipal de
Educação Escolar Quilombola. A comissão organizadora teve uma
representante de diversas instituições. Secretaria Municipal de
Educação de Caucaia, Sindicato de Servidores Públicos Municipais
(SINDSEP), comunidades quilombolas, Caravana Cultural
Afroquilombola de Caucaia, gestoras de escola Quilombola,
Professoras quilombola, Conselho Municipal de Educação de
Caucaia.
A resolução fundamentará a legalização da educação escolar
quilombola de Caucaia, sendo discutidas em 16 encontros da
comissão. A SME iniciou os encontros de reformulação dos PPPs das
escolas quilombolas. Em 2018 há previsão da realização do
‘Guardiões II’ para aprofundar as discussões e intervenções surgidas
na primeira edição. A SME também incluiu em 2017 o livro A
Formação do Povo Brasileiro, material complementar do 6º ao 9º
ano e planeja realizar uma formação diferenciada sobre este
material para uma melhor implementação.
O trabalho de mobilização, formação e pesquisa, compõem o
tripé que alimenta nossas reflexões e ações. Neste sentido, temas
como: a capoeira, a rezadeira e a educação afro-quilombola 10 , se
entrelaçam nas dimensões da religiosidade, da tradição, da cultura,
da educação escolar quilombola e da relação comunitária. Esses
elementos são investigados e vivenciados, propondo por meio da
Pretagogia, uma outra relação com o conhecimento, com a tradição
e o pertencimento afro.

10
Pesquisas de mestrado de Claudia Oliveira da Silva, Maria Eliene Magalhães e Rafael Ferreira da
Silva.
Cláudia de Oliveira da Silva; Maria Kellynia Farias Alves | 61

Algumas considerações...

Existem muitas possibilidades e estratégias pedagógicas que


podem ser aplicadas ao ensino das comunidades remanescentes de
quilombos, com intervenções das esferas governamentais e do
movimento negro e quilombola, à luz da Lei 10.639/03.
Considerando as experiências e as vivências das comunidades,
compreendidas pelos profissionais da educação através de uma
formação inicial e continuada na perspectiva da Pretagogia para
estes e para as pessoas das comunidades.
Nosso povo ainda resguarda muitos costumes, valores e
tradições que são repassados pela oralidade e hoje tem necessidade
que a escola assuma como parte fundamental de seu currículo e de
suas práticas. A religiosidade de matriz africana muitas vezes
camuflada em religiões cristãs, a tradição culinária, as danças e as
expressões culturais, as crenças e os mitos, o respeito à senhoridade
dos mais velhos, as ações de solidariedade e o trabalho em mutirão.
A escola adquiriu um papel social mais amplo e vem influenciando
na manutenção cultural e preservação dos valores
afrodescendentes. No contexto das comunidades tradicionais
prevalecem a relação com o sagrado e a espiritualidade que tem
simbologia presente nas ações, carregadas de sentidos ancestrais. O
processo de modernização das comunidades não pode apagar o
patrimônio material e imaterial da nossa identidade.
É urgente que as escolas reconheçam esses aspectos em seu
currículo, pois as crianças e jovens estão vivendo em um ambiente
dominado ela mídia e pelo eurocentrismo (também na escola). São
influenciados por valores que os (as) distanciam de suas raízes,
ferindo profundamente a sua identidade afro, fazendo-os (as) reféns
de uma identidade imposta que danifica a autoestima da pessoa.
Estes desafios se apresentam nos planos micro e macrossocial, pois
os desafios na escola se articulam com os desafios no campo da
62 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

garantia de direitos no âmbito político, sob as bases de um racismo


estrutural.
Dentre estes desafios, vale citar o cenário político que se
demonstra cada vez mais desfavorável à questão dos povos
originários. Vemos avançar os ataques a estes povos por meio de
projetos de lei que podem ser abrigados no projeto guarda-chuva do
Projeto de Emenda Constitucional(PEC) nº 215, que visa dar ao
Congresso o poder de demarcar as terras indígenas e quilombolas,
e do ‘Marco Temporal’, interpretação jurídica localiza a referência
das terras tradicionais aquelas ocupadas por povos indígenas ou
quilombolas em 1988.11. Juntamente à ação de inconstitucionalidade
do Decreto 4.887/2003 que regulamenta o Art. 68 da Constituição
Federal de 1988 e configuram severos ataques aos direitos
conquistados pelos povos quilombolas e indígenas.
Temos ciência do desafio que é atingir a sensibilização de
todos os segmentos da comunidade escolar, bem como as
autoridades. Mas esse é caminho, mesmo que longo e cheio de
obstáculos. É assim que vamos atingir a cidadania plena, com todos
os direitos que levaram centenas de anos para serem conquistados
e agora passam pelo processo de efetivação.
Portanto, a partir desse debate, podemos tomar como
orientação a necessidade de continuar repensando o modelo de
escola para os povos quilombolas em Caucaia e a Pretagogia tem
contribuído neste processo. Compreendemos que algumas
tentativas estão sendo feitas. No entanto, ainda é necessário avançar
e consolidar a reformulação dos Projetos Políticos Pedagógico, dos
currículos, da formação específica de professores para a preservação
da história e memória desses povos. Ou seja, ainda temos
resistência, mas diante das diversas ações desenvolvidas pela
SIERT/SME são perceptíveis os avanços, sendo possível dialogar

11
Conforme o coletivo ‘De Olho nos Ruralistas’ – com base em informações de organizações como o
Instituto Socioambiental (ISA) – mostra que há pelo menos 25 Projetos de Lei tramitando no
Congresso que configuram ameaças aos direitos dos povos indígenas e quilombolas. Quase todos os
projetos (24 deles) foram apresentados pela bancada ruralista.
Cláudia de Oliveira da Silva; Maria Kellynia Farias Alves | 63

com a maioria das escolas. Tomar como importante processo de


afirmação a produção didática que corresponda aos valores e
interesses das comunidades quilombolas e a reflexão de que os
mecanismos de gestão devem promover a igualdade e o respeito aos
direitos quilombolas.

Referências

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Carvalho. FUNCEF – 20 de novembro de 2011.

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Brasília, SEPPIR, 2004.

________, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR.


Diretrizes Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na
Educação Básica. Brasília, SEPPIR, 2012.

________, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

CARRARA, Sérgio. Educação, diferença, diversidade e desigualdade. Gênero e


diversidade na escola: formação de professoras/es em Gênero, Orientação
Sexual e Relações Étnico-Raciais. P. 13 a 15. Livro de conteúdo. Versão
2009. – Rio de Janeiro:

CEPESC; Brasília: SPM, 2009.

GOMES, Nilma Lino. Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre Algumas


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revisada / Kabengele Munanga, organizador. – [Brasília]: Ministério da
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LIMA, M. IDENTIDADE ÉTNICO/RACIAL NO BRASIL: Uma reflexão teórico-


metodológica. Revista Fórum Identidades. Ano 2, Volume 3 – p. 33-46 –
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64 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

MARTINS, Tereza Cristina. Comunidades Quilombolas e o desafio de uma


Educação Comprometida com a sua realidade. In. A Educação nas
Comunidades Quilombolas e os desafios para a sua contribuição no
fortalecimento da identidade e da luta pelos direitos. Anais do IV Fórum
Identidades e Alteridades: Educação e Relações Etnicorraciais. 10 a 12 de
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PETIT, Sandra Haydée; SILVA, Geranilde Costa. Pretagogia: Referencial Teórico-


Metodológico para o ensino da História e Cultura Africana e dos
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PETIT, S.H. et al. Introduzindo a sociopoética. In: SANTOS, I. et al. (Orgs.).


Prática da pesquisa nas ciências humanas e sociais: abordagem
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SANTANA, Patrícia Maria de Souza. A luta por uma educação quilombola no


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Universidade Federal do Pará – UFPA – Belém – Pará, 2014.

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Africanidades Brasileiras. Superando o Racismo na escola. 2ª edição
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do Sul – Porto Alegre, 2013.

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Serra do Juá. In: ADA et al. (orgs.) – Tudo que não inventamos é falso-
Cláudia de Oliveira da Silva; Maria Kellynia Farias Alves | 65

Dispositivos artísticos para pesquisar, ensinar e aprender com


sociopoética. Fortaleza: EdEUCE, 2014.

SILVA, C.O; ROQUE, A.H; SILVA, R.F; PETIT, S.H. Sociopoetizando a Capoeira na
Educação dos Quilombo ou de como mãe Dinah despertou as memórias
dos lugares encantados da serra. In: ADA et al. (orgs.) – Tudo que não
inventamos é falso- Dispositivos artísticos para pesquisar, ensinar e
aprender com sociopoética. Fortaleza: EdEUCE, 2014.

SILVA, E. A educação diferenciada para o fortalecimento da identidade


quilombola: estudos das comunidades remanescentes de quilombos do
Valeo do Ribeira - 2011. 127 fol. (Mestrado em Educação). Pontífica
Universidade de São Paulo - São Paulo, 2011.
Capítulo 3

A aplicação da lei de nº 10.639/2003, na


comunidade de Bastiões, Iracema-CE:
Uma comunidade remanescente de quilombo

Alberto Assis Magalhães


Gilderlan Alves Ferreira da Silva
Samia Paula dos Santos Silva

Introdução

Bastiões é uma comunidade rural pertencente ao município


de Iracema, localizado no sudeste do Estado do Ceará. A mesma tem
sido identificada como uma comunidade de origem negra, composta
por um grupo de moradores que se reconhecem como negros
descendentes das fundadoras da comunidade desde 2007
(BEZERRA, 2012).
O processo de reconhecimento da comunidade como sendo
Remanescentes de Quilombolas está estagnado há alguns anos, o
confronto social foi inevitável, não havia conhecimento de tal
assunto tanto por parte de quem não se denominava, como por
parte de quem posteriormente viria a se autodeclarar. Só houve
percas, o clima não era dos mais favoráveis para o convívio social, a
comunidade que se desenvolvia lentamente estagnou-se pelos anos
seguintes, houve inclusive retrocesso no que já se havia conquistado.
A associação que representava e era a única voz forte que falava em
favor da comunidade foi extinta depois que houve uma pressão por
68 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

parte dos posseiros das terras. Por falta de apoio, de mais


esclarecimentos e conhecimentos sobre os direitos a serem
adquiridos, houve um desânimo dos que lutavam pelos direitos de
todos da comunidade, aqueles que estavam à frente da associação.
Quanto ao sistema educacional na comunidade de Bastiões,
este é composto por quatro instituições, uma creche, EMEI Criança
Feliz e duas escolas: a Honorato José de Queiroz e Francisco de Assis
Filho, ambas oferecem o Ensino Fundamental, e ainda uma extensão
de ensino, da Escola de Ensino Médio Deputado Joaquim de
Figueiredo Correia, na qual tem sua sede na cidade que fica a 24 km
da comunidade de anteriormente citada.
A creche tem o seu próprio prédio, porém, funcionou por
aproximadamente quatro em uma sala na escola Francisco de Assis
Filho. Alguns funcionários da creche relataram que essa mudança
para a escola se deu por que tinha uma parede no prédio da creche
que estava caindo e fizeram essa migração para a escola enquanto a
reformavam, porém já retornou a seu prédio original. A escola
acima citada não apresenta locais de lazer, o pátio é muito pequeno,
ficando muito apertado na hora do intervalo. Para que os alunos
maiores não machuquem os menores com as suas brincadeiras, que
geralmente podem apresentar um maior teor de agressividade, a
solução que a escola encontrou para resolver este problema foi dar
o intervalo para os menores antes dos demais, evitando assim algum
acidente que poderia vir a acontecer.
Diante do exposto, relataremos a nossa vida estudantil na
Educação escolar desenvolvida na comunidade Bastiões, a fim de
traçamos um panorama sobre como funciona ao longo dos anos o
ensino nas escolas da localidade. Para tanto, além do relato de
vivencias no sistema de ensino realizamos pesquisa em todas as
escolas lá localizadas, através de questionário de entrevista aplicado
junto aos professores, com a intenção de compreender como os
assuntos relacionados à aplicabilidade da lei supracitada estão sendo
desenvolvidos pelos docentes.
Alberto A. Magalhães; Gilderlan Alves F. da Silva; Samia P. dos S. Silva | 69

Sendo assim, o objetivo desse artigo é relatar como estão sendo


trabalhados os conteúdos relacionados a lei de nº 10.639/2003, nas
escolas da comunidade remanescente de quilombos, Bastiões. Assim
como, analisar se os professores sentem alguma dificuldade em
lecionar esses conteúdos e quais são essas dificuldades.
O presente trabalho trata-se de uma pesquisa quantitativa,
mas também qualitativa, que Para Demo (2006, p. 20), pesquisas de
cunho qualitativo, “[...] pretendem trazer à cena da pesquisa a
preocupação com a realidade inesgotável no mensurável”. Trata-se
de uma pesquisa também descritiva, a qual, segundo Gil (2002, p.
42), “têm como objetivo primordial a descrição das características
de determinada população ou fenômeno ou, então, o
estabelecimento de relações entre variáveis”.
Firma principalmente na discussão da lei nº 10.639/2003 que
torna obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas
públicas e particulares do Brasil e também nas Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Para
tanto, também utilizamos como referencial teórico, autores que
trabalham a questão da educação quilombola, dentre eles: Brasil
(2004), Costa e Dutra (2009), dentre outros. O critério de inclusão
se deu pela escolha de artigos que tratassem a educação escolar
quilombola e também artigos sobre a comunidade de Bastiões.
Como sujeitos desta pesquisa, fizeram partes professores das
instituições mencionadas anteriormente. Como objeto de coleta de
dados utilizamos um questionário de nossa própria autoria com
perguntas abertas e fechadas, sendo no total de quatro perguntas,
onde buscava-se perceber se os professores tinham conhecimento da
lei de nº 10.639/2003, como os conteúdos relacionados à história e
cultura afro-brasileira estão sendo trabalhados nas escolas da
comunidade de Bastiões, tendo em vista que a mesma é considerada
como uma comunidade remanescente de quilombo. A pesquisa contou
com a participação de treze professores. Vale ressaltar que todos os
70 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

participantes desta pesquisa assinaram um Termo de Consentimento


Livre e Esclarecido (TCLE), tendo ciência do pesquisado.

Cultura, costumes e educação na comunidade de Bastiões (CE):


experiências como estudantes e residentes

Antes de relatarmos nossas experiências como estudantes na


comunidade Bastiões, convém uma contextualização sociocultural.
Bem antes de se ouvir o termo “quilombo” ou “remanescente de
quilombo” a convivência local era como a de qualquer outra
comunidade interiorana: pacífica, calma, com alguns mexericos
entre vizinhos, crianças que aprontavam suas peripécias, jovens que
tentavam ganhar seu dinheiro, idosos a conversarem em suas
cadeiras que balançavam preguiçosamente ao entardecer defronte a
suas casas. Infelizmente ou felizmente, algumas coisas são imutáveis
outras não, diria que neste caso a convivência social foi afetada. A
partir do reconhecimento da comunidade como remanescente de
quilombo surgiu um clima hostil entre os moradores que se
reconhecia como descendentes de duas mulheres negras fundadoras
e os que negavam esse reconhecimento.
A partir do reconhecimento da comunidade, como
remanescente de quilombo a tranquilidade e a paz entre os
moradores dão lugar a uma intensa troca de acusações entre os que
se reconheciam como quilombolas e os que não se reconhecia.
A antiga associação quilombola, hoje extinta, deu significantes
passos para que a comunidade tivesse seus direitos garantidos e que
fossem beneficiados com os mesmos, o Governo Federal, por
exemplo, passou a destinar programas sociais que tinham como alvo
principal a comunidade quilombola, outro exemplo a ser citado foi
à conquista de 150 cestas básicas para as famílias descendentes. Fato
curioso é que tais cestas básicas atendiam as famílias descendentes
e aquelas que não se consideravam como tal, doadas pela associação
de bom grado.
Alberto A. Magalhães; Gilderlan Alves F. da Silva; Samia P. dos S. Silva | 71

Contudo, percebia-se que a população em geral não dava ar


de descontentamento pela associação trazer tais benefícios para a
comunidade, afinal todos sem exceção estavam sendo beneficiados,
até acontecer o fato que culminou na visita do órgão federal, o
INCRA. Houve uma denúncia, via carta endereçada ao órgão federal,
pela associação, onde uma moradora informava a apropriação
indevida de suas terras por um branco e exigia fazer valer seus
direitos da posse da terra. Este foi o estopim para a crise se instalar
na comunidade.
E neste caso o confronto se deu pelo fato de que os atuais
detentores da maior parte das terras, não reconhecem e nem
aceitam a comunidade como tal, oprimindo dessa forma os
verdadeiros donos das terras, seja por meio de uso da terra como
maneira de subsistência, seja pelo direito de ter a posse. Ocorre que
nestas condições os remanescentes são prejudicados além do fato de
não usufruir das terras, tendo que trabalhar dobrado, já que não
dispõem de tanto espaço para o plantio, trabalha quase que o ano
inteiro para pagar a parte que cabe aos donos das terras e para
garantir que sua família tenha o suficiente para se alimentar durante
todo o ano. Desta maneira, não sobra muito para investir em saúde,
educação, infraestrutura domiciliar e outras questões básicas às
quais todos têm direito.
Sem falar que os maiores proprietários são também os que
influenciam no fluxo social e econômico local. Por terem influência
social persuadem os remanescentes a fim de lhes mostrar que nem
o reconhecimento nem a demarcação das terras, trará benefícios a
eles. O que gera outro conflito interno entre os próprios
remanescentes, pois a ideia de tais ações se divergem entre os
mesmos. Uns acreditam no benefício comunitário, outros já não
compartilham tanto assim dessa certeza.
A saúde, ainda precária, também deixa a desejar. A
comunidade depende de um único transporte para se deslocarem
até ao município, que fica a 24 km de distância, um postinho público
que atendem apenas a cuidados clínicos básicos, tendo a
72 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

comunidade que se deslocar em estrada de terra para fazer, por


exemplo, um simples exame de sangue.
No tocante a educação na comunidade temos duas escolas de
Ensino Fundamental e uma creche, além de um anexo de uma das
escolas de Ensino Médio do município de Iracema. As instalações
dessas instituições atendem as seguintes características.
A escola Francisco de Assis filho, conta atualmente com seis
professores, os mesmos também são professores da escola Honorato
José de Queiroz, (popularmente conhecida na comunidade como
Grupo), sendo alguns da comunidade e outros não. Alguns desses
são descendentes das negras fundadoras da comunidade.
O anexo de Ensino Médio da Escola Dep. Joaquim de
Figueiredo Correia, as aulas são realizadas na escola Francisco de
Assis Filho no turno noturno. Essa extensão de ensino atualmente
conta com oito professores, assim como as demais escolas acima
citadas, tem professores que são da comunidade e outros não.
Os docentes dessas instituições, não lecionam apenas os
conteúdos referentes à sua área de formação, devido à falta de
professores para cada disciplina, as mesmas são divididas por área
do conhecimento.
Na creche nós sempre tivemos muitos momentos de lazer,
pois se contava com um bom espaço físico, mas também tínhamos
castigos, desde ficar sem brincar, até levar palmatória na mão, coisa
que aconteceu conosco e com os outros colegas. Ficávamos sem
brincar, fomos trancados em um quarto escuro onde ficavam alguns
brinquedos e até levamos palmatória, ainda hoje nos lembramos do
formato desse objeto, era uma mãozinha amarela com uma
proeminência na palma, e com um cabo.
Ao passar para o Fundamental I, fomos estudar na escola
Francisco de Assis Filho, a maior escola do distrito, e logo depois
para a escola Honorato José de Queiroz. Sempre ficávamos
mudando de escola. Esta última, era e ainda é muito pequena, conta
apenas com três salas e dois banheiros e em uma dessas salas estava
Alberto A. Magalhães; Gilderlan Alves F. da Silva; Samia P. dos S. Silva | 73

instalada a cantina. A mesma não tem pátio, na hora do intervalo


todos nós brincávamos no meio da rua.
Por um determinado tempo as aulas aconteciam somente na
maior escola, pois as salas do grupo foram ocupadas com outras
coisas, a sala maior ficou sendo a biblioteca, as outras ficavam
trancadas com alguns objetos, muitas vezes pensávamos que era
apenas uma única escola.
Já no Ensino Fundamental II, aconteciam da mesma maneira
que no Fundamental I, porém as aulas sempre ocorriam no prédio
da escola Francisco de Assis Filho. Nesta época foi onde nós tivemos
um contato mais direto com a cultura local. Todas as sextas feiras
tínhamos o momento cívico, onde tínhamos que apresentar alguma
coisa, poderia ser poesia, paródias, danças, peças teatrais, e sempre
erámos estimulados a participar. Aconteciam várias dinâmicas,
onde todos ficavam empolgados em participar, como a corrida do
saco, a dança da laranja, corrida do ovo, dentre outras. Todas as
apresentações eram voltadas para assuntos de suma importância
para a nossa formação como cidadãos, como a escravidão, o Brasil
Colônia, preconceito, racismo dentre outros.
A turma do 9º ano (antiga 8ª série) funcionava no prédio da
maior escola da comunidade, porém, pertencia à outra escola da
sede do município, a escola Joaquim de Holanda Campelo. Os alunos
dos Bastiões sempre foram discriminados pelos da sede, e na
maioria das vezes eles não gostavam de se misturar conosco, pois se
consideravam mais espertos. Nas datas comemorativas, quando
tínhamos que ir para o Iracema, ficava nítido essa discriminação.
Sempre éramos os discriminados, os que recebiam menos
importância, mesmo assim nunca deixamos de participar.
Um exemplo dessa discriminação era quando íamos para o
Iracema jogar futsal no torneio intercalasse, lá os estudantes locais
faziam piadas contra nós, falavam que seria fácil ganhar os jogos
porque nos Bastiões jogávamos com um coco pois, não tínhamos
condições de comprar uma bola.
74 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Antes quando aqui na comunidade não tinha a continuação de


Ensino Médio, todos os alunos tinham que sair da comunidade, em
um carro pau de arara, pegando poeira, sol e chuva, para poder
estudar na sede. Nesta época, os alunos não eram muito
discriminados, pois eram os que mais se destacavam nas escolas da
sede como relata uma moradora.

Na minha época pra estudar tinha que ta na hora do carro ali na


praça, que se não ficava e se tivesse chovendo nós ia debaixo de
chuva e chegava lá (Iracema) toda molhada. Era no carro pau de
arara que hoje em dia não pode mais. (Entrevista, Presidenta da
Associação Quilombola, 2015)

Depois de um tempo, foi implantada a extensão de ensino na


comunidade, então os alunos do Ensino Médio não precisavam mais
ir para o Iracema, a partir de então as aulas funcionavam no prédio
da escola Francisco de Assis Filho (funciona até hoje), e ao invés dos
alunos irem para o Iracema, os professores iam até a comunidade.
No período que estudamos no Ensino Médio o anexo de
ensino já estava implantada aqui, e como no Ensino Fundamental,
também sofríamos discriminação pelos alunos das escolas da sede,
que sempre se julgavam superiores à nós, muitos falavam que a
única coisa que sabíamos fazer era jogar bola, por que na maioria
das vezes os benefícios que vinham para a escola sempre ficavam na
sede, raramente o anexo era lembrado. Depois de algum tempo
passamos a receber um pouco mais de atenção dos gestores da
escola Dep. Joaquim de Figueiredo Correia, onde sempre buscavam
a nossa participação nos eventos na sede.
A partir de então sempre participávamos, e foi nesse
momento que alguns alunos da comunidade passaram a se destacar
na escola, com apresentações de trabalhos em feiras de ciências e
participação no parlamento jovem. Algo que pudemos notar em
nossa vida estudantil no Ensino Médio, é que a cultura e a história
do negro eram sempre trabalhadas. Lembramos de uma vez que foi
realizado apresentações somente sobre a cultura afrobrasileira,
Alberto A. Magalhães; Gilderlan Alves F. da Silva; Samia P. dos S. Silva | 75

onde todos os alunos participaram, com apresentação de capoeira,


músicas e danças africanas, relatando a vida do negro na África, a
sua vinda para o Brasil, e também a importância do negro para a
construção do nosso país. Eram momentos de festas e empolgações
para nós estudantes e também de muitas aprendizagens,
entendíamos sobre nossos ancestrais e da nossa cultura e ao mesmo
tempo nos divertíamos.
Atuando de forma incisiva na formação do aluno a escola tem
contribuído de maneira positiva ou negativa para a formação e
valorização da identidade dos alunos remanescentes de quilombo.
Quando nega o acesso aos conhecimentos relacionados a história e
cultura africana e afrobrasileira ou mesmo quando os reduzem a
folclore e/ou assuntos exóticos.
Porém não estamos considerando o trabalho educativo
desenvolvidos com uma dinâmica que envolva os alunos ao processo
de aquisição de conhecimentos como folclórico. Pontuamos somente
a importância da pesquisa dos docentes aos assuntos relacionados à
referida lei para que os conteúdos organizados dentro dessa
dinâmica possa realmente fazer parte de sua implementação.
Valorizando a influência e importância do negro para a formação da
sociedade brasileira, em especial da comunidade remanescente de
quilombo, e não somente sua relação com a escravidão.

Resultados/Discussões

Nesta pesquisa contamos com a participação de dois


professores de matemática, um da extensão de Ensino Médio e o
outro que leciona nas escolas de Ensino Fundamental da
comunidade. Ao pergunta-lhes se os mesmos trabalham os
conteúdos referente a cultura afro-brasileira, o primeiro relatou que
trabalha esses conteúdos em suas aulas. Vejamos em sua fala quais
as estratégias utilizadas. “Trabalho através de pesquisas extraclasse,
realizadas pelos alunos, debatendo em sala os acontecimentos ao
76 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

longo dos anos, ou seja, no aspecto do tempo histórico. ” (Entrevista,


Professor De Matemática, Bastiões, 2015).
Já o segundo professor de matemática relatou que, “Na
verdade, quem trabalha esse tema é a professora de história, eu já a
vi comentando sobre as aulas dela em relação a esse tema”
(entrevista, professor De Matemática Ensino Fundamental,
Bastiões, 2015)
Os nossos resultados apontam que a maioria dos professores
das escolas pesquisadas tem informação da lei de nº 10.639/2003,
precisamente 54% tem o conhecimento da lei acima citada, enquanto
que 46% (equivalente a seis professores) desconhecem a mesma.
Cerca de 100% dos participantes responderam que na escola
em que atua como professor é trabalhada essa temática. Embora
quase que a metade desconhecesse a lei, eles sabiam que esses
conteúdos são obrigatórios no currículo escolar.
Um professor da extensão de Ensino Médio ao ser
questionado como esses conteúdos são trabalhados, relatou: “A
nossa grade curricular contempla esses conteúdos, porém só é
ministrado no último período, porém vale ressaltar que já
trabalhamos com um projeto pedagógico que trata desse assunto de
grande importância para a nossa sociedade” (Entrevista, professor
de português da extensão de ensino,2015).
Durante a conversa ele informou que não era trabalhado
como disciplina, e sim como conteúdo. O mesmo também relatou
que nesses semestres iniciais o anexo de ensino trabalhou os
conteúdos relacionados à cultura e a história afro-brasileira, com
concurso de redação cujo tema era “o orgulho de ser negro”, onde o
autor da melhor redação de cada sala ganhou um celular. Também
foi realizado um concurso de vídeo, que abordasse o tema, o vídeo
tinha que ser criado pelos alunos, desta vez apenas um aluno da
comunidade iria ganhar. E para finalizar a aplicação desses
conteúdos, no último dia de aula desse semestre, foi feito um cinema
na escola com todas as três turmas do Ensino Médio do anexo, cujo
Alberto A. Magalhães; Gilderlan Alves F. da Silva; Samia P. dos S. Silva | 77

filme assistido foi “12 anos de escravidão”. Neste dia tivemos o


privilégio de assistir este filme com os alunos.
Ao questionar os professores como eles trabalham esses
conteúdos em suas aulas, a maioria, 69%, relataram que através de
pesquisas em livros, revistas e na internet, também com a utilização
de vídeos, apresentação de trabalhos, seminários, questionamentos
orais, onde o objetivo era mostrar que somos todos iguais, e da
importância que os negros tiveram, na formação da sociedade
brasileira.
Podemos perceber que as formas de se trabalhar as atividades
utilizando poucos recursos diferentes ao livro didático, transforma
o ensino em um ato mecânico e de pouco interesse para os
educandos, distanciando-os da temática.
Nesse contexto, ao questionar a professora de história que
atua nas duas escolas de Ensino Fundamental da comunidade a
mesma relatou que “De início estudamos a história dos negros na
África, o tráfico e vinda para o Brasil, sua cultura e contribuições
para a formação do Brasil. ” (Entrevista, Professora de História,
Bastiões, 2015).
Daí a importância das escolas localizadas nas comunidades
serem de fato quilombolas e não apenas instituições externas e
descontextualizadas colocadas dentro das comunidades de forma
improvisada e sem relação com os hábitos, valores e culturas das
mesmas. É também para a valorização da cultura e história local e
sua relação com a história e cultua africana e afro-brasileira que é
essência a implementação da lei 10639/03 nas comunidades
remanescentes de quilombos.
O professor de matemática do Ensino Médio vem relatando
isso em outra questão, onde ele expõe que

Incluir nas aulas de matemática esses conteúdos requer estratégias


e habilidades específicas. Além dessas qualidades a utilização de
jogos matemáticos africanos poderiam contribuir para uma
aproximação das temáticas em sala de aula. Podendo inclusive
demonstrar alguns valores de determinadas comunidades
78 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

africanas, pois em alguns jogos desenvolvidos na África o objetivo


não é vencer o oponente é ajudá-lo. (Entrevista, professor de
matemática, Bastiões, 2015).

Apenas 7,7% não trabalham esses conteúdos em suas aulas,


este número é relativo ao professor de matemática do Ensino
Fundamental, 15,6% trabalham esses conteúdos em roda de
conversa com os alunos do Ensino Fundamental I Esses dados estão
ligados aos pedagogos, 7,7% trabalha os conteúdos da capoeira, que
está relacionado ao professor de educação física da extensão de
Ensino Médio.
Ao questionar os professores sobre as possíveis dificuldades
em ministrar esses conteúdos, cerca de, 61,5% responderam que
não encontram problemas, e 38,5% (responderam que sim e que a
maior dificuldade encontrada é a falta de material didático e
capacitação que aborde esses conteúdos. A professora de história do
Ensino Fundamental, além de relatar essas dificuldades
informou“[...] a falta de interesse dos alunos, muitas vezes devido
ao preconceito com o negro”.
Essa falta de interesse em discutir as questões raciais na
comunidade não nos parece ser reservada apenas aos alunos como
vimos acima, pois nesta pesquisa encontramos algumas
dificuldades, mas a principal delas se deu na coleta de dados, onde
alguns professores não contribuíram para a pesquisa, não deram
muita importância ao assunto pesquisado, por isso não foram todos
os professores das escolas acima mencionadas que participaram da
pesquisa.
A falta de interesse dos alunos e dos professores em discutir os
assuntos relacionados ao negro na sociedade brasileira, assim como
na própria comunidade Bastiões, é reflexo da falta de importância
atribuída a eles que na comunidade tem perdido espaço para a
população branca que hoje tem o domínio dos bens da comunidade.
Ainda encontramos muitos (as) educadores (as) que pensam
que discutir sobre relações raciais não é tarefa da educação. É um
Alberto A. Magalhães; Gilderlan Alves F. da Silva; Samia P. dos S. Silva | 79

dever dos militantes políticos, dos sociólogos e antropólogos. Tal


argumento demonstra uma total incompreensão sobre a formação
histórica e cultural da sociedade brasileira. E, ainda mais, essa
afirmação traz de maneira implícita a ideia de que não é da
competência da escola discutir sobre temáticas que fazem parte do
nosso complexo processo de formação humana. Demonstra,
também, a crença de que a função da escola está reduzida à
transmissão dos conteúdos historicamente acumulados, como se
estes pudessem ser trabalhados de maneira desvinculada da
realidade social brasileira (GOMES, 2005, p. 146)
Com isso fica implícito que a visão de alguns professores é que
o dever da escola é a reprodução de conteúdo sistemáticos, jugando
assim que apenas esses conteúdos são importantes para a
preparação do aluno para o convívio em sociedade, desconsiderando
a importância de discutir elementos que verdadeiramente os
prepararão para os conflitos presentes na vida social.
Para que a escola consiga avançar na relação entre saberes
escolares/realidade social/diversidade étnico-cultural é preciso que
os (as) educadores (as) compreendam que o processo educacional
também é formado por dimensões como a ética, as diferentes
identidades, a diversidade, a sexualidade, a cultura, as relações
raciais, entre outras (GOMES, 2005, p. 147).
Com discursões que englobem valores sociais, culturais e
históricos sobre a importância do negro para a formação da
sociedade brasileira, os conflitos relacionados a questões raciais
poderiam vir a deixar de existir no ambiente escolar.
O sistema educacional, no que diz respeito a valorização da
cultura local, destinado para essas comunidades não funciona. Suas
culturas não são resgatadas da forma plena como deveria ser, a
estrutura de ensino instaladas nessas localidades não dar espaço
para tal, como deveria, pois, a escola é também lugar de formação.
Apesar disso há um resgate de Costumes, Cultura e Religião
por aqueles que ainda resistem apesar de todas as dificuldades
relatadas. E como protagonistas desse resgate estão os jovens que
80 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

também são os maiores alvos dos programas do governo destinados


à cultura. A exemplo disso, o projeto patrimônio para todos, visava
principalmente a participação de jovens e os incentivavam a
resgatar as memórias e costumes da comunidade, ficando bastante
claro que os costumes históricos e as memórias resgatadas desse
patrimônio comunitário são essencialmente vestígios que apontam
para uma comunidade que em sua história traz elementos que a
define como sendo uma comunidade remanescente de quilombo.
Outra forma desse resgate cultural, o qual é visto com bons
olhos por toda comunidade, é o grupo de jovens local que apresentam
teatro de rua, os mesmos se valem de elementos culturais e sociais
para a confecção das peças e personagens. As histórias por eles criadas
que buscam representar essa identidade quilombola ou que tragam
elementos que pertença ou que resgate essa identidade.
A criança tem o adulto como imagem a ser reproduzida, por
isso, observamos que as ações dos adultos que estão em contato
direto com as crianças influenciam diretamente na formação da sua
personalidade e características, como analisa Wallon (2007 p.144)
Em suas imitações espontâneas, a criança não tem uma
imagem abstrata ou objetiva do modelo. Longe de conseguir se opor,
começa unindo-se a ele numa espécie de intuição mimética. Só imita
as pessoas por quem se sente profundamente atraída ou as ações
que a cativaram. Na raiz de suas imitações, há amor, admiração e
também rivalidade. Nesse sentido, o professor tem papel
fundamental no desenvolvimento do aluno, pois é um dos adultos
que mais tem contato com ele, sendo, logo depois da família, a
principal referência para ela se espelhar.

Considerações Finais

A partir dos dados obtidos podemos constatar que todas as


escolas da comunidade de Bastiões, trabalham essa temática,
relacionada à lei de nº 10.639/2003. Porém a realização de tais
atividades é limitada e pouco profunda, pois são desenvolvidas
Alberto A. Magalhães; Gilderlan Alves F. da Silva; Samia P. dos S. Silva | 81

atividades de forma mecânicas com a utilização quase que exclusiva


do livro didático, fato que não desperta o interesse e a apropriação
dos conteúdos pelos educandos. Embora alguns professores
desconheçam a lei, eles não deixam de trabalhar os conteúdos
relacionados à cultura e história afro-brasileira, a maior parte a
conhecem, alguns até sabiam que era obrigatório o ensino destes
conteúdos, porém desconhecia o que a tornava obrigatório.
Podemos perceber também que a maioria dos professores
trabalham esses conteúdos da mesma forma, através de texto,
vídeos, pesquisas em livro e internet, salvo os professores do ensino
fundamental I que trabalham esses conteúdos em roda de conversa
com as crianças, e o professor de educação física que faz esse
trabalho utilizando a capoeira como principal método didático
pedagógico.
Tendo em vista que a comunidade é considerada como
remanescente de quilombo, esses conteúdos deveriam ser
abordados com mais frequência, pois é a identidade do nossa
comunidade, de um povo que foi de fundamental importância para
a formação social, cultural e histórica do nosso país, e o que
podemos perceber é que muitas vezes esses conteúdos estão sendo
deixados para trás, são trabalhados, porém não com muita ênfase,
trabalha-se por que na maioria das vezes vem no livro didático para
serem trabalhados.
O ambiente escolar, nesse contexto, é fundamental para o
bom desenvolvimento da identidade dos educandos, pois, a escola e
a família caracterizam-se como os dois principais espaços para a
formação humana, sendo estes os ambientes mais requentados pelo
indivíduo em grande parte da vida.
Atualmente, os jovens que buscaram conhecimentos foram da
comunidade por falta de qualidade e oportunidade desejam ver a
prosperidade e o desenvolvimento da mesma, sonham com o dia em
que seu povo não tenha que abdicar de suas origens em busca de
melhores condições de vida em outros lugares, no entanto
necessitam que alguém os norteie na procura dos meios cabíveis
82 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

para terem sua comunidade reconhecida. Sabem claramente do


significado que é ter sua identidade representada, identificada e
acima de tudo respeitada.
O que podemos observar também, é que a maior dificuldade
apontada pelos professores em lecionar esses conteúdos é a falta de
material didático, mas vejo que isso não é um empecilho, por que o
professor não deve ser um mero reprodutor de conhecimentos que
já vêm prontos no livro didático, temos que ter uma visão maior,
não devemos prender-nos somente ao livro.
A nossa comunidade vem perdendo cada vez mais a sua
identidade como comunidade remanescente de quilombo. Uma
cultura que foi passada de gerações a gerações e vem se perdendo
em meio aos anos.
A escola pode ser um ótimo caminho para tentar resgatar essa
cultura, pois na construção do saber e nas relações escolares é
essencial que se respeite e se valorize o conhecimento prévio do
aluno, pois vivências, conhecimento e cultura são dimensões
inerentes à criança, não podendo estarem dissociados do processo
educacional. Assim sendo, é muito mais vantajoso construir novos
conhecimentos a partir do já existente, pois o aluno se sentirá mais
confiante e terá mais motivação para participar dos momentos
educativos.
A educação tem grande influência na construção e
manutenção de valores, crenças, ideias, normas e pensamentos dos
indivíduos. Contribui para a formação das identidades sociais e é
compartilhada, de várias maneiras, de modo formal ou informal.
Sabemos que é inviável pensar na existência de uma única forma de
educação, assim como em um único modelo de educação que seja
visto como perfeito, absoluto e eficiente para diversos estilos de vida
e de diferentes grupos sociais. Neste contexto, o fortalecimento do
hibridismo que traz a ideologia educacional europeia para as
comunidades quilombolas seria uma forma de descredenciamento
das tradições das identidades coletivas das mesmas.
Alberto A. Magalhães; Gilderlan Alves F. da Silva; Samia P. dos S. Silva | 83

Referências

BEZERRA. A. L. Reconhecimento étnico da comunidade de bastiões-ceará (brasil):


rumores e conflitos. revista de ciências sociais, Fortaleza, v. 43, n. 1,
jan/jun, 2012, p. 50-65.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações


Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Brasília, DF. 2004.

DEMO, P. Pesquisa: princípio científico e educativo. 12. ed. São Paulo: 2006.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

GOMES, Nilma Lino. Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre Algumas


Estratégias de Atuação. In: MUNANGA, Kabengele. Superando o
racismo na escola. 2ª edição, Brasília: ministério da educação, secretaria
de educação, 2005.

MEC. Lei obriga o ensino de história e cultura afro. 2007. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?id=9403&option=com_content&tas
k=view. Acesso em: 25 de junho de 2015

WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. Tradução por Claudia


Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Coleção psicologia e
pedagogia).
Capítulo 4

Bairro rural negro quilombola:


Conceito e educação

Marlene Pereira dos Santos


Henrique Cunha Junior

Introdução

Este artigo é resultado de uma pesquisa de mestrado em


educação concluída em 2012 (SANTOS, 2012), que estuda a
comunidade de Quilombo de Alto Alegre, no município de Horizonte
em Alto Alegre e que utiliza a história oral como fonte de
informação. Consideramos que a educação popular, educação do
campo e as diversas denominações de educação com finalidade de
promover a autonomia e as inserções sociais de coletividades
humanas têm como dever o trabalho com as identidades e as
culturas dos grupos sociais de inclusão precária na sociedade.
Inclusão precária significa os grupos que sofrem os processos de
dominação social, cultural, política e econômica. Os quilombos são
os exemplos de comunidades com inclusão precária na sociedade
devido às lutas pela posse da terra e os desmandos dos grupos
dominantes. As histórias, as identidades e as culturas são as bases
onde repousa os sentidos de comunidade que produz a força de luta
pelos direitos sociais dos grupos de inclusão precária.
As identidades exercem um papel duplo, primeiro da
integração do grupo social a sociedade em geral, pelo seu
86 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

reconhecimento pelo reconhecimento dos seus valores, prática


sociais, conhecimentos e anseios, segundo pela sua integração a
educação e pela existência de conceitos e currículos que dinamize a
importância dos grupos sociais. As identidades são reconhecimentos
coletivos de memórias comuns, de necessidades de vidas em
comum, de anseios sociais em comum, de existências em um mesmo
território. As identidades são construções sociais coletivas que estão
em constante transformação. para as comunidades negras, devido à
permanência das bases das culturas negras é possível tratar as
identidades coletivas e as memórias coletivas com os conceitos de
ancestralidade. Pensando a ancestralidade como um processo de
quatro tempos: as histórias do passado distante e mitológico, as
histórias do passado próximo, as do presente e as que estão sendo
construídas para o futuro. a ancestralidade é um conceito que reúne
os seres humanos em coletividades e os lugares onde estes seres
constroem as suas vidas.
As territorialidades geográficas são ancestrais, sendo que
devemos considera-las nas suas formas materiais e imateriais. a
importância desta abordagem reside no fato de entendermos que as
territorialidades são dinâmicas, elas se transformam, mudam com
as mudanças dos territórios, assim também as identidades seguem
o mesmo percurso, acompanhado com as atualizações constantes da
memória coletiva. Sendo assim é importante a constante revisão dos
conceitos de quilombo para uma constante adequação dos currículos
e práticas da educação em quilombos. O conceito de quilombos e a
percepção política e social sobre estas populações negras
denominadas de quilombos variaram através dos tempos, mas teve
um considerável papel político para o movimento negro no brasil.
os estudos e as publicações de livros sobre quilombos são
significativos, sendo que podemos citar as contribuições de Clovis
Moura como um marco importante e histórico nesta área de
conhecimento.
Este artigo apresenta a importância dada ao conceito de
quilombo em diferentes momentos da história brasileira e as
Marlene Pereira dos Santos; Henrique Cunha Junior | 87

variações de percepção sobre o significado das comunidades de


quilombos para os movimentos negros. São apresentadas também,
os meios os quais estas organizações impulsionam a sociedade nesta
discussão. Quilombo é um termo associado aos estudos sobre
comunidades negras rurais e suas identidades. O conceito de
quilombos na atualidade cita uma formulação guiada pelos conceitos
de patrimônios materiais e imateriais, sendo definido e reconhecido
com base na cultura quilombola. Neste artigo são revistos
marcadores desta transformação conceitual. Para tais
entendimentos, definiu-se como objetivo conceituar quilombo,
território, identidade, patrimônio cultural, pois, estes elementos
vêm ligar elos fundamentais para o entendimento e valorização da
história e educação brasileira, há uma diversidade e as perspectivas
presentes na vivência da nossa sociedade. Pesquisar sobre quilombo
e ser professora formadora do programa ação escola da terra
instigou abordar este tema. Por se constituir um marco histórico que
deve estar presente de forma positiva na história, na nossa
sociedade e principalmente na educação. A formação histórica do
Brasil nestes quinhentos últimos anos é bastante diferente da
ocorrida nos países europeus devido à existência de um sistema de
produção escravista criminoso de duração que quase 350 anos.
Neste período se estabeleceu a importação compulsória e
sistemática de trabalhadores africanos para o desenvolvimento
econômica da colônia portuguesa e depois do império brasileiro.
A colonização do Brasil é realizada por uma mássica vinda de
africanos e a reprodução dos seus descendentes, o que constituiu
uma estrutura social pondo em oposição africanos e europeus,
conhecimento africano e conhecimento ocidental, culturas africanas
e culturas europeias. No campo das relações intercontinentais
existiu também durante 400 anos uma intensa luta entre nações
africanas e europeias resultando em três grandes problemas para
humanidade, num grande sistema colonial de dominação dos povos
africanos pelos europeus, a implantação do escravismo criminoso
nas Américas e o subdesenvolvimento econômico das nações
88 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

africanas. o continente africano, durante a idade média, era


economicamente mais desenvolvido que a Europa e se tornou
subdesenvolvido. Resultante destes sistemas de dominação foi
produzida uma ideologia de inferioridade social e de desqualificação
social para o trabalho dos povos africanos e dos descendentes que
podemos denominar como racismo contra as populações negras. A
escravização de africanos se deu em período menor em todos os
demais países das Américas, sendo, portanto o Brasil o mais longo e
mais intenso trafego de trabalhadores aprisionados no continente
africano. Resultando na estrutura social brasileira uma importante
desigualdade social entre as populações de descendes de africanos,
populações denominadas como de negras e negros, em relação às
populações de descendentes de europeus, denominados como
brancas e brancos. O que produziu como reação a existência de
movimentos sociais das populações negras. Deixamos claro que
negros e brancos são apresentados neste texto sobre a ótica da
história social e não como raças biológicas, portanto mesmo tendo
ocorrido a misturas populacionais os grupos resultantes tem a
polarização social entre os denominados negros (mulatos e
morenos) e os denominados brancos.

Quilombo de Alto Alegre

A comunidade de quilombo de alto alegre situa-se no


município de horizonte que faz parte da grande região
metropolitana de fortaleza. Trata-se de uma região que era de
agricultura de subsistência até o início da década de 1960. Faz parte
de uma faixa litorânea de grande desenvolvimento industrial e
turístico nos últimos 50 anos devido à presença de grandes
infraestruturas dos governos em termos de estradas e canais de
transposição de águas e grandes açudes. O estado do Ceará está
numa região semi-arida e o aproveitamento capitalista das terras
implicou em grandes investimentos hídricos. Tanto as estradas
como os investimentos hídricos retiraram terras da comunidade de
Marlene Pereira dos Santos; Henrique Cunha Junior | 89

quilombo. Esta também perdeu terras devido às disputas com os


grandes proprietários da região. Sendo que na atualidade a
comunidade não dispõe de terras suficientes para as suas atividades
de subsistência. A cidade de horizonte apresenta um grande
crescimento populacional e industrial. Os incentivos econômicos dos
governos trouxeram indústrias importantes e com elas migrantes
de outras regiões, além de uma grande valorização das terras o que
produziu forte acirramento das disputas pela terra. A população do
quilombo sofreu e sofre diversas pressões.
As comunidades negras em geral sofrem racismo e
discriminações o que complica o acesso aos direitos básicos e a vida
em condições democráticas. A geografia e a história do município
constituem uma base para a história social e econômica dentro da
qual se situa a história desta comunidade de quilombo. Alto Alegre faz
parte do distrito de Queimadas e este é parte do município de
Horizonte. A cidade de Horizonte, com a cerca de 80 mil habitantes,
esta repartida em quatro distritos, Sede, Dourados, Aningas e
Queimadas, ficando neste último o quilombo de Alto Alegre.
Importante destacarmos que para os habitantes de Alto Alegre, a sua
localidade é percebida como distinta a de Queimadas. Ou seja, como
Alto Alegre e Queimadas são duas localidades distintas. Eles dizem
constantemente nos depoimentos “La em Queimadas”. Existe uma
diferença entre a percepção oficial e a da população. Para o município
do Horizonte e região existem fases marcantes sobre a evolução do
município. Uma fase é antes da construção da rodovia BR-116 na
região. A rodovia abre um movimento de grande integração e
dinamismo nos anos de 1960. Uma modificação importante é a
construção na década de 1990 do canal do trabalhador na região. Os
governos estaduais do Ceará e municipais de Horizonte fizeram de
1985 um grande investimento na industrialização da região trazendo
um número importante de indústrias para o município, que para de
economia agrária para uma economia industrial. Estes movimentos
têm um impacto importante na comunidade de Quilombo de Alto
Alegre, devido a diversos fatores.
90 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

A valorização das terras e a diminuição da área utilizável para


as plantações e para criação. Também tem efeito sobre a
sobrevivência pela agricultura o aumento vegetativo da população.
O canal do trabalhador e o canal da Integração, são duas grandes
obras de infraestrutura do estado e que repercutem nesta
diminuição de terras. Segundo Nego do Neco, um dos moradores
antigos que fala em nome da comunidade, o pai dele não quis entrar
em confronto com a prefeitura e vendeu uma vasta área de
agricultura por um preço muito pequeno, para a construção do canal
da Integração. O que se constata hoje é que mesmo havendo uma
agricultura de subsistência, a área de plantação não propicia a
alimentação da população por completo, sendo muitos produtos
alimentares comprados fora da localidade. Em 1960 os produtos da
alimentação adquiridos fora eram poucos. A base alimentar era
quase totalmente mantida pela produção interna. Outro problema é
mesmo estando a beira dos canais os moradores não tem direito ao
uso água deles. A figura 2 mostra uma fotografia do canal do
trabalhador nas terras do quilombo.
Na produção de subsistência e comercial da População de Alto
Alegre o destaque é a plantação de mandioca e o fabrico de farinha.
Esta indústria da mandioca também teve o mesmo ciclo em toda a
região. Um período a produção de mandioca e transformação em
farinha é para o consumo interno. Isto muda por volta de 1960,
sendo que auge da produção de mandioca e de farinha acontece nos
anos de 1980 a 1998. Naquela época onde as casas de farinha tinham
uma importância em Alto Alegre, e nessa era que temos um
personagem da história local, senhor José Nogueira, conhecido como
Zé Paulo, que enriquece transportando a farinha da região em lombo
de mula até a estrada principal e depois levando em ônibus da
Empresa São Benedito até a grande Fortaleza para comercializar o
produto. O senhor Zé Paulo é na atualidade um comerciante bem
sucedido do setor de cimento, tendo três depósitos em Fortaleza. Na
produção da economia local tivemos outros produtos, a castanha de
caju e o caju, o gado, e a carnaúba. Ainda hoje, durante o período da
Marlene Pereira dos Santos; Henrique Cunha Junior | 91

colheita do caju, pais e filhos saem de casa as 4 ou 5 horas da manhã


e para colher as castanhas de cajueiro.

Figura 2: Fotografia do canal da Integração dentro das terras do quilombo.


Foto: Marlene P. Santos, 2011.

A fotografia da figura 3 abaixo mostra a casa de farinha de Alto Alegre.

Figura 3. Casa de Farinha de Alto Alegre. Foto: Marlene P. Santos, 2011.

Na atualidade a farinha tem baixa produção embora à


mandioca seja produzida. Os agricultores de Alto Alegre andam de
92 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

4 a 6 quilômetros por dia para plantarem em terras arrendadas. O


talo da mandioca é comercializado para a produção de ração animal,
sendo vendida.

Bairro Rural Negro

A comunidade de Alto Alegre difere das comunidades de


quilombos essencialmente rurais, distantes dos centros urbanos.
Não apresenta exatamente a paisagem de uma comunidade rural.
Isto levou a procurar um conceito que permitisse a classificação
desta realidade diferente de outras comunidades de quilombos. As
visitas a diversos quilombos no estado do Ceará nos permite
constatar uma variedade de formas de organização no espaço
geográfico destas comunidades. Esta diversidade de organização
espacial tem como diferença a densidade demográfica do lugar, a
topografia, os tipos de formas de trabalho, a distância do meio
urbano mais próximo, a formas de transporte disponíveis para
acesso a cidade ou a estrada mais próxima. Tal como Queiroz
(QUEIROZ, 1973) na sua observação e definição dos bairros rurais
paulista, podemos partir da proposta da existência de diversas
formas elementares de agrupamento e de vida cultural no meio
rural. No entanto como afirma a pesquisadora paulista Queiroz a
definição mesmo que vaga de bairros rurais surge de documentação
antiga que nomeia um grupo rural que parece ser a menor
aglomeração que se poderia deparar em localidades distantes.
O bairro constitui uma divisão da administração da freguesia,
sendo este último termo destinado a vilas. Na freguesia existe uma
paróquia e um núcleo de habitação. Também na documentação
passada o bairro rural poderia comportas uma dispersão de
habitação e o sentimento de pertencimento a uma localidade
impunha a denominação de bairro, mas com a classificação de rural.
O bairro rural implica em aglomeração sem presença dos serviços e
estrutura dos bairros urbanos. No caso da classificação dos bairros
rurais paulista a autora está focando também a cultura dos
Marlene Pereira dos Santos; Henrique Cunha Junior | 93

habitantes denominada por ela de caipira paulista. Elenca na


formação desta cultura a presença de tropeiros e caipiras formando
uma civilização cabocla. Na sua definição encontram-se os
elementos trazidos dos trabalhos de Antônio Candido relativos a
folclore como distintivo cultural (CANDIDO, 1971).
Conhecendo as localidades estudadas e as suas histórias parte
significativa do que está descrito se refere às comunidades negras
rurais, sendo que a palavra negra é evitada pelo autor que a trata
sempre como cultura popular, cultura de caipiras e caboclos do
interior paulista, marcando sempre uma distinção entre estes e os
trabalhadores rurais imigrantes europeus e seus descendentes. Então
é possível conceituar os bairros rurais, pelo seu povoamento, tipo de
distribuição espacial e cultura, ou melhor, pelo seu patrimônio
cultural distinto de outras comunidades rurais, mas também distinto
das comunidades urbanas. Para a comunidade do quilombo de Alto
Alegre temos que estas têm uma densidade habitacional diferente da
maioria dos quilombos das regiões de serra do Ceará, como exemplo
Serra do Juá, no município de Caucaia, próximo a Fortaleza, ou do
Minador e Bom Sucesso, no município de Oriente, distante 400 km
de Fortaleza. O quilombo de Alto Alegre apresenta uma definição de
ruas formando um tipo semelhante ao do bairro urbano, mas com
diversos constituintes da zona rural, como os tipos de casas parecendo
chácaras e às vezes sem uma delimitação precisa dos quintais das
casas e com grande comunicação espacial. São quintais com
plantações de mandioca, macaxeira, abóbora, banana e mamão,
paisagem típica de localidades rurais.
Devido às estas características, e também por causa da
proximidade da cidade de Novo Horizonte, e a existência de igrejas,
creche, escola próxima e pequenos negócios, além da cooperativa de
trabalho com sede e a Associação Quilombola, vamos conceituar esta
comunidade de quilombo como um bairro rural. Devemos lembrar
que as definições de quilombos urbano em contraposição ao rural já
vêm sendo utilizadas, sendo exemplos os da comunidade do Gelo no
Recife e da Família Silva no Rio Grande do Sul (CORREA, 2010). As
94 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

principais referências do registro da existência da comunidade de


Alto Alegre foram feitas nos anos de 1960, por uma equipe de
antropólogos da UFC, como nos afirma professor Alencar
Francisco Alencar em depoimento concedido para este
trabalho. Segundo ele estava sendo organizado um gabinete de
Antropologia na UFC, nos idos 1960, antes do golpe militar de 1964.
Neste gabinete de antropologia existia o ideal da procura das
comunidades indígenas da região. Uma vez em visita nesta
localidade, como por um acaso encontraram a comunidade negra do
Alto Alegre. Os antropólogos tinham um guia. Ao tomarem uma das
estradas o guia disse que não fossem naquela direção, pois ali existia
um povo escuro como o pneu do Jipe que eles viajavam. Pelo
interesse antropológico foram até a comunidade e estabeleceram
com o tempo relações de amizade e familiaridade. Nós presenciamos
a volta do professor Alencar à localidade quase passada 40 anos.
Para surpresa o mesmo foi reconhecido por uma das senhoras que
se lembrava dele da sua infância. O professor Alencar nos relata que
a produção agrícola de Alto Alegre beira uma agricultura de
subsistência, sendo a mandioca o produto mais importante da
agricultura e presente em todos os quintais e roçados. Também
plantam feijão, macaxeira, milho e abóbora. Das conversas com o
professor Alencar, deduzimos que no passado havia mais gado na
localidade e jumentos. O caju sempre foi cultivado nas diversas
formas, tendo importância também econômica.
Na atualidade temos a novidade da produção de mel em Alto
Alegre e a instalação de pequena fábrica para seu processamento.
Nos depoimentos internos à população de Alto Alegre nenhum dos
depoentes fala em conflitos de terras. No entanto, os depoentes
externos mencionam a existência de um período de conflito, mas é
um assunto que ninguém quer dar detalhes. Nós não encontramos
outras referências em jornais ou outro tipo de documento. A história
mítica narrada pelos habitantes de Alto Alegre é que a origem deles
vem da Família do Cazuza, um africano que supostamente chegou
ao Brasil depois das leis que proibiam o transporte de africanos para
Marlene Pereira dos Santos; Henrique Cunha Junior | 95

cá e foge de um dos navios ancorados na Barra do Ceará, história


essa que examinaremos mais adiante. Do ponto de vista dos
documentos e da legalização da posse das terras as mudanças
ocorrem depois da constituição da Associação de Remanescentes de
Quilombo de Alto Alegre e Adjacências - ARQUA.

Currículo e educação quilombola em Alto Alegre

Do ponto de vista dos documentos e da legalização do sistema


de educação para os municípios e estados da federação a
RESOLUÇÃO Nº 8, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2012, do Ministério
de Educação, define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Nesta resolução
se desta as premissas dão uma educação voltada para a cultura
quilombola e para o combate ao racismo contra as populações
negras. A Educação foi durante um longo período histórico um
desejo da população de Alto Alegre. As relações sociais eram
agravadas pelo analfabetismo e pelo tipo de tratamento ruim dado
aos analfabetos pelo estado e pela sociedade. Apesar do desejo e da
necessidade a história da Educação em Alto Alegre é curta e muito
recente. Não havia instituição educacional em Alto Alegre até 1983,
e o que tinham estava no distrito de Queimadas e tinha dependência
com a prefeitura de Pacajus, que a via como uma unidade rural
distante da sede do município. Em 1983 como segundo o
depoimento de mãe Davel (uma das senhoras antigas e muito
respeitada na localidade), vieram os missionários americanos da
Igreja Batista e organizaram uma escola que teve duração curta, esta
funcionou por quatro anos e depois se transferiu para Queimadas.
Ir à escola em Queimadas implicava numa caminhada de 4 a
5 quilômetros. Antes desta escola em Queimadas as referências
sobre a Educação são vagas, as pessoas estudavam, praticamente
morando fora da comunidade e ficando em casas de patrões, amigos
e parentes. As alfabetizações eram conseguidas com muito sacrifício
e por vezes incompletas. Hoje o quadro da educação no território
96 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

quilombola de Alto Alegre é de significativa diferença com o passado


e apresenta grande mudança com a emancipação do município de
Horizonte com relação a Pacajus em 1996. Existem quatro unidades
educacionais da prefeitura, sendo uma creche para crianças de 3 a 5
anos e três escolas de ensino fundamental e médio. A creche é
denominada Maria José Alves da Silva, em homenagem à primeira
professora da Comunidade, que era filha do lugar. 1. Além da creche
que abriga 160 crianças e agora tem uma nova designação da
prefeitura, como Centro de Educação Infantil – CEI, existem as
escolas Olimpio Nogueira, Fernando Augusto e José Bonifácio.
A prefeitura faz uma avaliação do desempenho quanto à
qualidade da educação das escolas e as classifica por cor sendo o
vermelho a pior e verde a melhor. A escola Olimpio Nogueira é de
categoria verde, ou seja, de boa qualidade em educação, e as demais
passaram do rosa para a cor azul, relativa a uma qualidade média.
Podemos pensar que na atualidade não existem sérios problemas na
educação de Alto Alegre. Na análise sobre currículo e práticas
educacionais feitas durante a pesquisa foram estudados os projetos
pedagógicos e os programas desenvolvidos nestas escolas. Podemos
dizer que embora exista um discurso sempre positivo e afirmativo
do ser negro, da importância do quilombo, e também do combate ao
racismo, pouco encontramos de efetivo com relação à comunidade
e ao patrimônio cultural local.
O município de Horizonte implantou o ensino de história e
cultura africana e tem professores dedicados ao tema lecionando
uma aula de duas horas semanais nas escolas de ensino fundamental
e médio. No mais tudo funciona por projetos esporádicos. Um deles
é a preparação para a comemoração do dia 20 de novembro, dia da
consciência negra que segundo o professor Haroldo é desenvolvido
durante vários meses, havendo a culminância em novembro. Neste
projeto do dia da consciência negra figuram atividades educativas
informais desenvolvidas em Alto Alegre, capoeira, maculelê e peças
sobre a abolição da escravatura no Brasil. Permanece ainda o desafio
de elaboração de um currículo que e de projeto pedagógico que
Marlene Pereira dos Santos; Henrique Cunha Junior | 97

tratem todos os temas relativos a bairro negro rural de Alto Alegre.


O município de Horizonte foi um dos poucos municípios do estado
do Ceará que realizou uma formação especifica de professores para
aplicação da história e cultura africana e afrodescendente, isto em
obediência as diretrizes curriculares da escola básica que obriga
estes temas.

Conclusões

Este artigo retrata parte de uma pesquisa de mestrado


realizada Alto Alegre sobre a comunidade do quilombo que foi um
exercício de elaboração dos elos existentes entre a história do local e
a memória dos seus habitantes e a educação na atualidade. A
memória é parte da história e a história pode em certo sentido ser
considerada parte da memória. A história, sobretudo oral é um
campo do conhecimento importante para o estudo das comunidades
de quilombo, como tivemos a possibilidade de constatar na nossa
revisão bibliográfica para elaboração dessa dissertação de mestrado.
A história oral conta com um eixo importante na atualidade que é
definido como história africana e da afrodescendência. Trata-se de
uma história oral formatada dentro das culturas de base africana e
tendo como outro parâmetro a história das relações sociais entre as
populações negras e os demais grupos sociais. Sempre relembrando
que a definição de negro utilizada não é baseada necessariamente na
cor da pele, mas sim nas relações sociais, culturais, políticas e
econômicas.
Neste estudo ficam sempre presentes as tensões que gera a
diversidade dos grupos sociais. Os negros são herdeiros das ideias e
das relações sociais do escravismo criminoso e vivem numa
sociedade onde a exploração econômica, se utiliza de mecanismos
sociais semelhantes ao do escravismo, com a desvalorização
ideológica do ser negro, do trabalho dos negros e das culturas
negras. A desqualificação social do ser negro é um processo de
dominação, se expressa em Alto Alegre, nas entrelinhas das diversas
98 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

conversas, com os de fora da comunidade e com os de dentro. Não


se deu importância à população de Alto Alegre durante quase todo o
século 20 e este e outros estudos demonstram que neste lugar já
estavam desde pelo menos a época da abolição do escravismo
criminoso no Brasil. A memória é uma fonte do conhecimento
apreendido pela pesquisa, mas que reflete o conhecimento contido
na comunidade. A memória certifica a existências e a continuidade
de conhecimentos que transmitem a presença do grupo social na
localidade e nas relações com um amplo território de vivências e
também de conflitos. A memória serve como atualização no presente
das lembranças e torna-se um espelho da identidade social do grupo.
A memória é um exercício afirmativo da identidade social.
O quilombo tornou-se importante após reconhecimento do
grupo e dependeu da memória. Os direitos sociais, não foram
ortogados apenas pela existência como seres humanos, e sim em
consequência ao reconhecimento como comunidade de quilombo.
Eles compraram as terras, mas não adquiriram os direitos plenos aos
usos e frutos. Este direito foi retirado por diversas formas, até mesmo
o estado na construção de canais retirou parte deste direito, ao não
atribuir remuneração satisfatória. Mas agora com reconhecimento
como comunidade de quilombo vem a esperança da regularização das
terras. Lembrar e relembrar que o Cazuza faz parte do mito de origem
permite a inserção na história oficial e traduz existência de uma
história oral que produz uma relativa união de propósitos de vida e
que os transforma numa coletividade. Não é fundamental se o Cazuza
foi em detalhes o que se fala, mas sim o que representa: a parte da
fundação de um ideal do grupo social, ser quilombo é ter origem na
história, ter independência e liberdade, mesmo no sistema escravista.
O Cazuza e sua epopeia de fuga funda uma sociedade livre para seus
descendentes. Portanto, podemos concluir que para esta comunidade,
o Cazuza representa mais que uma narrativa, e sim uma afirmação
social que se opõe ao estigma do negro como ser da senzala nas
representações encontradas na sociedade cearense.
Marlene Pereira dos Santos; Henrique Cunha Junior | 99

Assim entendemos e interpretarmos neste estudo a referência


feita nas diversas conversas ao Cazuza e à sua família direta.
Interessante que dão a entender que todos vêm do ramo Cazuza.
Mas sempre aparecem relações com grupos externos com pessoa
que já deveriam estar na região. O povoamento da localidade é um
assunto mais complexo que esta pesquisa não conseguiu revelar.
Temos um lugar de terras de negros e de índios, aonde famílias de
brancos chegam e passam a disputar o poder político e a
propriedade das terras e se tornam os donos de tudo. Os patrões
sediados em Queimadas, mas ligados às famílias do poder político
de Pacajus, que foi anterior sede do município onde estava inserido
Horizonte, antes da formação do município em 1963. Uma espécie
de coronelismo tardio foi vivido nas relações da população de Alto
Alegre e a família dos Nogueiras. Mas os conflitos transformarem-
se em segredos, estes são pouco explicitados e apenas escapam
traços que os membros sempre preferem omitir. O campo das
relações religiosas da comunidade atravessa uma mudança
significativa desde1983 com a chegada dos Batistas americanos.
Deixou de existir as religiões de base africana, sumiram os terreiros
e também em boa proporção o catolicismo de preto. Com esta
mudança as festas de negros foram desaparecendo.
Na atualidade foram substituídas por novas festas, como
maculelê a capoeira, mas agora nos espaços reservados da escola.
Também se forma um novo discurso sobre o ser negro, a auto-
afirmação. É repetido o refrão que “sou negro e sinto orgulho”. Prova
deste novo ser negro são as festas do concurso de miss negra.
Também o estado e as autoridades do estado e do município se
utilizam deste novo ser negro participando e ajudando na promoção
dos concursos. Isto nos leva a concluir que a identidade vai se
atualizando e modificando de maneira interna e externa à
comunidade. O fato de ser quilombola não é totalmente
compreendido por todos, sempre existem dúvidas, mas faz parte de
um discurso de uma nova auto-afirmação social. A cultura negra
tradicional é negada e associada ao mundo profano onde o novo
100 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

cristão evangélico não deveria estar. As interdições da religião são


fortes com relação às manifestações de base africana e vistas como
“coisas não pertencentes a Deus”. Contraditoriamente, esta cultura
tradicional africana permanece viva, basta se mexer um pouco que ela
aparece. A parte desta dissertação relativa as plantas e aos seus usos
é uma amostra desta memória viva da cultura tradicional. Podemos
concluir que durantes os períodos de 1950 até 1980 a comunidade foi
quase que totalmente de trabalho rural. Mas que na atualidade está
muito voltada para o emprego industrial, de serviços e do município.
A população jovem não quer continuar no trabalho na roça. A
educação escolar serve de passaporte para o emprego fora, para o
mundo da indústria. Os mais velhos têm gosto, orgulho e vê o
trabalho na roça como alguma coisa promissora, mas não
conseguem visualizar seus filhos poderiam viver educados nas
escolas e vivendo do trabalho na roça. O novo trabalho agrário
capitalista, com recursos tecnológicos, onde pequenos e médios
produtores são prósperos, ainda não foi implantando no Ceará, e
continua se pensando o trabalho agrário em termos de
sobrevivência mínima. Mesmo o estado não desenvolve o ensino
técnico agrícola e nem mesmo realiza política de transformação e
modernização do trabalho nas áreas rurais. O trabalho remunerado
ainda não é amplo nesta região. Trabalhar nas terras das pessoas
ricas em situação de meeiros é muito comum. Isto também
demonstra a inexistência de terra suficiente para a população de Alto
Alegre viver da sua produção agrícola. E também explica e
importância de terem reivindicado o reconhecimento para o
quilombo que pode resultar em mais terras, sendo que esta bandeira
não é de todos, pois nem todos pretendem continuar em atividades
do mundo agrário. Contudo, a cooperativa e associação figuram
como formas de independência e melhoria da vida em Alto Alegre.
A pesquisa permite concluir que os sentidos de identidade
como grupo social, de negritude e de localidade, são muitos fortes e
passam por uma ressignificação: são Quilombolas de Alto Alegre. A
identidade cultural, como uma forma dinâmica de pensar a
Marlene Pereira dos Santos; Henrique Cunha Junior | 101

subjetividade, a memória e a história garante um lugar social, faz


parte da continuidade da comunidade. No entanto também
concluímos que teremos muito a fazer ainda para aprofundar estes
temas. sobre a educação concluímos que o trabalho com identidade e
os conceitos de quilombo tem sido realizados mas ainda carecem de
aprofundamentos. Estabelecer um currículo e práticas curriculares
que transcrevam a realidade e as necessidades educacionais é ainda
um grande desafio devido as permanência dos modelos e informações
da educação universalista e não quilombola. O que tem sido
produzido para e educação quilombola abarca apenas quilombos
rurais e não se adapta de todo a realidade de Alto Alegre.

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Capítulo 5

Práxis antirracista no ensino superior:


Múltiplos olhares
sobre Quilombo Sítio Veiga –CE

Cristiane Sousa da Silva


Joselina da Silva

Introdução

O Quilombo do Sítio Veiga é uma comunidade tradicional


quilombola e rural, localizada no distrito de Dom Mauricio ou Serra
do Estevão, um dos pontos turísticos do município de Quixadá-CE.
O Quilombo fica a 3km da sede do distrito Dom Mauricio, 8km do
município Choró-Limão e a 25km da cidade de Quixadá. Serra do
Estevão está aproximadamente 700m do nível do mar. É uma
comunidade certificada pela Fundação Palmares e conforme os
dados levantados pelo INCRA, em outubro de 2012, havia 141
quilombolas, distribuídos em 39 famílias cadastradas. Estas moram
dentro do Território e apenas 08 famílias se auto- declararam não
quilombolas.
O interesse pelo tema primeiramente partiu quando estava
reelaborando o Plano Estadual de Política de Promoção da Igualdade
Étnico-Racial do Estado do Ceará, ao construir o texto sobre o eixo
quilombola, no levantamento de dados pelo site da Fundação
Palmares, identifiquei que em Quixadá existia uma comunidade
certificada chamada Sítio Veiga. Diante desse achado, perguntei para
106 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

alguns alunos, na Faculdade Católica Rainha do Sertão – FCRS, na


qual leciono no curso de Educação Física, sobre a existência deste
quilombo e ninguém sabia do que se tratava. Ao falar com meu
monitor, ele prontamente disse não saber e procurou uma pessoa
que tinha realizado uma pesquisa lá. Soube, então, que no dia
25/10/14, os integrantes do quilombo haviam feito uma
apresentação no colégio de ensino médio de Quixadá. Fui ao
encontro deles, mas já haviam saído e não foi possível o encontro.
A diretora desta mesma escola me deu o número de contato de uma
das pessoas e começou a articulação. Dentre tantas ligações,
consegui marcar uma ida à comunidade, juntamente com meu
monitor.
Falei com a Ana Eugênio, líder da associação, mulher negra
quilombola e empoderada. Expliquei que o projeto seria uma
articulação entre universidade e comunidade, onde seriam ações de
mão dupla em que o ensinamento e aprendizagem seria feito
coletivamente um ajudando o outro, ou seja, uma parceria. A única
exigência feita por ela foi que não apenas os pesquisássemos sem
dar retorno, como já havia acontecido várias vezes. Segundo ela, eles
já estavam cansados de serem “usados” e que queriam fazer parte
do quadro de alunos da instituição, queriam bolsas de estudos para
seus adolescentes. Disse-lhe que estaríamos estreitando a parceria
e que esta condição não cabia apenas a mim, seria uma decisão
institucional. Neste primeiro encontro, não senti confiança por parte
da Ana Eugênio, em relação ao projeto. Mas deixei claro, que nossa
intervenção só aconteceria a partir de março/2015 quando
voltássemos das férias.
Ao retornar para a faculdade, percebi o meu compromisso
com a questão racial mais aguçada. Havia a necessidade de se
realizar um trabalho consistente e concreto. Pensei a priori, em
realizar um projeto de extensão multidisciplinar composto a por
professores e alunos de outros cursos e áreas. Para tanto, precisaria
do empenho e compromisso dos envolvidos com a questão racial e
sua aplicação na comunidade do Sítio Veiga.
Cristiane Sousa da Silva; Joselina da Silva | 107

Assim, nasceu o NUMEQ- Núcleo Multidisciplinar em Estudos


Quilombolas - que tem como intuito a intervenção na comunidade
do Sítio Veiga a partir de suas necessidades associadas ao
conhecimento nas mais diversas áreas dentre eles: Educação Física,
Farmácia, Odontologia, Enfermagem, Fisioterapia, Direito,
Psicologia, Arquitetura e Urbanismo e Sistema de Informação.
Desta forma, cada curso faria um diagnóstico prévio, a partir da
demanda da comunidade e consequentemente traçaria um plano de
ação/intervenção. A priori, a escolha destes cursos se deu pelo
diálogo individual com cada professor da área sensibilizando-os
para trabalhar com a temática racial e da possibilidade de desdobrar
suas ações diretamente no quilombo do Sítio Veiga.
Esta é uma pesquisa em andamento. No âmbito das ações do
NUMEQ que foram iniciadas no primeiro semestre de 2015.O
projeto atualmente é composto por sete cursos, sendo oito,
professores e vinte e cinco alunos. As ações desenvolvidas são
voltadas para a valorização da cultura negra, construção da
identidade negra, protagonismo juvenil e empoderamento da
comunidade.

Uma breve reflexão teórica sobre quilombos

Os quilombos constituem para além da concepção de “reduto


de escravizados fugidos”, representam uma das mais significativas
e simbólicas questões do debate no que diz respeito à igualdade
racial no Brasil. O fator étnico e a territorialidade compõem a base
da organização, pois movem este grupo para ação política e
mobilização junto aos órgãos públicos, na reivindicação dos seus
direitos.
Segundo Bennett (2010), até 2010 das quase quatro mil
comunidades existentes no Brasil, apenas 106 títulos de
propriedades foram emitidos. Isso retrata um número mínimo, o
que necessita de uma maior agilidade e empenho por parte do
Estado brasileiro para solucionar esta questão, uma vez que o
108 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

conflito agrário permanece como principal problema enfrentado


pelas comunidades quilombolas. Ainda de acordo com o mesmo
autor, o INCRA contava com 948 processos abertos à espera da
titulação de terras.
Sobre quilombolas, Ratts (206, p.5) evidencia:

Para os (as) quilombolas, eles existem desde que seus


antepassados formaram as localidades em que nasceram e vivem.
Em seu ponto de vista podem ser antigos, numerosos e duradouros
e sabem, a seu modo, o que são territórios negros, pois neles vivem
seus problemas de saúde, terra, produção, consumo, etc. e seus
momentos de festa, e somente num país racista precisam
demonstrar que existem.

O período de 1980 é marcado pelo processo de


redemocratização do Brasil, onde o Movimento Negro e de
lideranças quilombolas intensificam suas lutas e que algumas
conquistas do movimento ficam evidentes. Exemplo dessas
reivindicações e que representa um marco na luta pelos direitos
quilombolas é o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT), que explicita em seu artigo 68: “Aos remanescentes das
comunidades de quilombo que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes
os títulos respectivos” (BRASIL, CF – 1988). Somente com o Decreto
Presidencial nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por quilombolas foi
regulamentado. De acordo com o artigo 2º do mesmo decreto:

Consideram-se remanescentes das comunidades quilombolas (...)


os grupos-étnico-racias, segundo critérios de autodistribuição com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida. (BRASIL,2003).
Cristiane Sousa da Silva; Joselina da Silva | 109

O Estado brasileiro, ‘reconhecendo’ os direitos das


comunidades quilombolas, é induzido a criar órgãos, conselhos e
políticas públicas específicas com o dever de contribuir de forma
mais direta e articulada com a questão quilombola especialmente,
acerca da garantia da posse da terra, visto ser esta a principal
reivindicação destas comunidades. Portanto, são medidas e formas
compensatórias tomadas pelo governo brasileiro para reparar a
injustiça histórica cometida contra a população negra no Brasil,
neste caso em especial, as comunidades quilombolas.
Sob a ótica de Arruti (2009), sofridas estas mudanças, os
quilombolas saem da condição de “quase folclóricos” para ativista
na reivindicação dos seus direitos – localizados no mapa político
nacional em algum lugar entre trabalhadores sem-terra, os
indígenas, as favelas e os universitários cotistas. Cabe aqui ressaltar,
entretanto, que o poder público apesar dos avanços não tem sido
suficientemente ágil nos encaminhamentos das demandas geradas
pelos quilombolas, principalmente no que se refere à certificação e
titulação das terras que lhes são de direito.
A invisibilidade para estes territórios ainda persiste, fato este
é a precariedade aos acessos aos serviços públicos que insistem em
não chegar às comunidades quilombolas, como foi visto, em relação
ao direito à terra. Ausência presente também no âmbito
educacional, onde há uma negligência e negação de um direito
básico ao homem do campo – o direito à educação.
Considerando que a identidade étnica dos quilombolas está
representada em seus elementos linguísticos, religiosos, culturais e
em sua organização político-social, é que a Constituição Federal de
1988, no seu artigo 216, declara tombados todos os documentos e
sítios detentores de reminiscências de quilombos, torna-se clara a
necessidade de uma política mais incisiva de preservação e
revitalização do patrimônio cultural das comunidades, passando
pelo processo de inventário e tombamento de sua riqueza material
e imaterial.
110 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Múltiplos olhares sobre o Sítio Veiga.

De acordo com os dados da Fundação Palmares (2014), existem


mais de 1500 comunidades quilombolas espalhadas pelo território
nacional com a certificação instituição. No Ceará, há um total de 44
comunidades quilombolas dessas 42 estão certificadas pela Fundação
Palmares. E dentre elas, a Comunidade do Sítio Veiga em Quixadá-Ce.
O primeiro encontro com a comunidade aconteceu
juntamente com os professores e alunos da Faculdade no dia
20/11/2014 na Festa de São Gonçalo, ou melhor, a Dança de São
Gonçalo. Convidei alguns dos meus alunos que já estávamos
estudando sobre o assunto e dois professores da arquitetura e
urbanismo juntamente com seus alunos que ainda não sabiam da
existência de tal quilombo. No dia do festejo, havia cerca de 20
pessoas da universidade, fomos recebidos com muito carinho,
atenção, afeto por todos da comunidade. Na ocasião, conhecemos o
seu Joaquim, Mestre da Cultura, 75 anos e desde os 3 anos mora
naquela comunidade. A dança de São Gonçalo é composta por 14
pessoas sendo 1 mestre - nesse caso, o seu Joaquim - , 1 contra-
mestre que toca a viola e 12 dançadeiras, organizada em duas
colunas, seis mulheres de cada lado, todas usam saia e blusa branca
as faixas azuis e rosas marcam a diferença entre elas.
A dança de São Gonçalo é comum em algumas comunidades
quilombolas. Consiste em uma tradição e marca identitárias deste
território negro. No entanto, como afirma Videira (2009), a dança
não é um espetáculo, dançam para celebrar e agradecer a boa
colheita e o plantio. Dançam porque para festejar tem que dançar. A
dança que junto com a reza da folia, pagamento de promessas,
preparação de comida, formam o conjunto amplo que compõe a
festa em homenagem a São Gonçalo que é uma religiosidade católica
realizada na semana da Consciência Negra no Quilombo do Sítio
Veiga. Naquele dia, saímos revigorados e cientes de que seria
possível desenvolver um projeto de extensão em que os professores
Cristiane Sousa da Silva; Joselina da Silva | 111

e alunos se envolvessem, tivessem o compromisso com a


comunidade e com a especificidade de cada curso.
As culturas marginalizadas não dispõem de estruturas
importantes de poder continuam a ser silenciadas, estereotipadas e
deformadas, pois a referência de ciência e universalidade estrutura-
se em moldes eurocêntricos de formação acadêmica.
A imposição de uma visão eurocêntrica ainda é predominante
e universal, a cultura e as ideias ocidentais l detêm a dominação
cultural, sendo este a um padrão para as demais culturas. Segundo
Cunha Júnior (2006), ao univerversalizar desaparecem as
especificidades, ou seja, as de cultura greco-romana, judaico-cristã
que são culturas que fundamentam o eurocentrismo anulando as
expressões africanas e afrodescendentes.
Logo, faz-se necessário romper com a lógica eurocêntrica e
epistemológica historicamente pautada na valorização ocidental,
desvalorizando as contribuições das civilizações africanas, muitas
vezes negada e silenciada por um currículo que não contempla a
questão racial e a diversidade étnico-racial nas diversas áreas
acadêmicas.
A universidade, enquanto uma instituição democrática
necessita rever suas ideias, práticas pedagógicas com o trato com a
diversidade, estabelecendo uma articulação com o Movimento Negro,
na formação dos seus docentes, na perspectiva pedagógica no trato
com a questão racial e da diversidade étnico-racial. A universidade, ao
silenciar e negar este debate reforça práticas racistas arraigadas na
sociedade brasileira, por isso é necessário trabalhar de forma crítica e
comprometida acerca das relações étnico-raciais na academia e
devem ser, ainda, conteúdos permanentes no currículo, contribuindo
para uma educação antirracista.
Com isso, revela-se cada vez mais urgente pensar o
rompimento do silêncio dos currículos no trato com o debate das
questões raciais, tornar público o “falar” sobre a questão africana e
afro-brasileiras nas áreas de humanas, exatas e saúde. Como bem
afirma Fanon (1997), o romper com o passado colonial herdado com
112 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

a escravidão, extermínio físico e simbólico, significa, para as


universidades, compartimentar a ciências em disciplinas isoladas
em relação aos problemas da realidade, ou seja, o saber científico
ganha um status superior em detrimento aos saberes de novos
grupos e pessoas constituídas cientificamente e socialmente como
diferentes.
Nesse sentido, ressignificar as ciências, por meio da
descolonização de mundo, conteúdos e metodologia, na qual foi
apropriada e acumulada pela ciência ocidental que deixa de
mencionar as outras formas de se fazer ciência e filosofia atuais,
como as de bases africanas, árabes, chineses entre outras.
O projeto de extensão do NUMEQ visa diminuir a distância
entre universidade e comunidade, visto que, as práticas
extensionistas contribuem para uma formação humanizada e com o
olhar mais sensível para o trato com a questão racial deste futuro
profissional no exercício de seus ofícios. A escolha dos professores
para compor o NUMEQ foi feita pela minha aproximação com eles e
a sensibilidade com a temática racial. A priori, foram os cursos de
educação física, farmácia, odontologia, enfermagem, fisioterapia,
direito, psicologia, arquitetura e urbanismo, sistema de informação,
falei individualmente com cada docente, como seria a proposta e
todos aceitaram no primeiro momento, não sabiam da existência do
quilombo e nem o que se tratava.
Falei da importância de se estudar nos seus respectivos cursos
este conteúdo, pois há uma invisibilidade e silenciamento no âmbito
acadêmico no que se refere às questões raciais e que seria o diferencial
em relação a formação dos seus alunos, já que nos currículos de cada
área não se contempla a temática racial e a partir das nossas
intervenção seria um campo propício para pesquisa, na qual, consiste
num fato de exigência da Faculdade, desta forma, o quilombo seria o
objeto comum para cada área e como questão racial poderia ser
debatida e discutida nos cursos inseridos no NUMEQ.
Após a conversa individual e a sinalização positiva de cada
professor, entrei em contato novamente com a Ana Eugênio, para
Cristiane Sousa da Silva; Joselina da Silva | 113

marcarmos uma reunião para conhecimento do quilombo por parte


dos professores que estariam envolvidos no NUMEQ e solicitei que
ela fizesse uma lista de demandas da comunidade para cada área.
Assim, os cursos já iriam planejar suas ações a partir das
necessidades do Sítio Veiga, ou seja, uma roda de conversa intra
quilombo. Os cursos de sistema de informação e odontologia não
participaram da visita, mas ao voltarmos o clima de encantamento,
vislumbre com a realidade e várias ideias para atuação tomaram
conta dos professores. Entendi que estar no campo, uma
aproximação com o quilombo possibilitou romper alguns
paradigmas em relação a questão racial, tais como, ressiginificar a
comunidade quilombola para além de um “reduto de escravizados”,
valorizar igualmente diferentes e diversificadas raízes das
identidades dos distintos grupos e buscar compreender e ensinar a
respeitar diferentes modos de ser, viver, conviver e pensar.
Organizei encontros de formação semanais, ou melhor, grupo
de estudos, onde estudamos temáticas referentes às questões raciais
e fazíamos o planejamento interdisciplinar para as intervenções no
Sítio Veiga. Inicialmente foram dois por semana às terças-feiras e
sextas-feiras, com duração de 3h nos respectivos dias durante três
meses, pois os horários e dias dos professores participantes do
projeto não conciliavam e nesse primeiro momento que era de
chegada tanto dos professores quanto dos alunos, houve esta
flexibilidade. Após, diminuímos o número de reuniões que,
permaneceram apenas às sextas-feiras, devido às outras demandas
dos professores e dos alunos na faculdade.
Os encontros contemplavam tanto os professores como os
alunos. A escolha dos alunos, deu-se pela sensibilização com o tema,
assim como, aconteceu com os professores. Depois do primeiro
encontro e com as primeiras formações, o número de cursos
participantes diminuiu. Ou seja, a euforia inicial não permaneceu
durante o processo de organização do grupo, a visita ao quilombo
não foi suficiente para que os professores se comprometessem com
as ações, no entanto, hoje contamos com sete cursos atuantes que
114 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

são: Educação Física, Odontologia, Fisioterapia, Psicologia, Direito,


Arquitetura e Urbanismo e Design Gráfico.
As intervenções no quilombo são realizadas duas vezes ao
mês, são os desdobramentos das ações que são construídas nos
encontros de formação/grupo de estudos de forma interdisciplinar.
Melhor dizendo, é a práxis antirracista, a relação da teoria e da
prática, o que é trabalhado e estudado se transforma em ações, que
visam o empoderamento e autonomia da comunidade bem como a
contribuição para a construção da identidade negra quilombola. Os
registros das nossas intervenções deram-se por vídeos e fotografias.
Sempre somos recepcionados por meio de uma acolhida feita pelos
moradores que cantam, recitam poesias e sempre dispostos a
participar das atividades que estamos propondo.
Após uma década de sua criação, entendemos que a lei
10639/03 precisa se atentar às diferentes formações de ensino, a partir
disso, já se pode propor reflexões sobre história africana, cultura afro-
brasileira devem ser somadas ao debate de raça e racismo na sociedade
brasileira. Para tal, diferentes áreas profissionais devem ser expostas
às leituras e práticas que contribuam para uma sociedade sem
desigualdades raciais e sem racismo.

Pensares conclusivos

Este texto se propôs a seguir o seguinte caminho: inicialmente


fazer uma breve apresentação do Quilombo do Sítio Veiga e da
aproximação da universidade com a comunidade e a criação do
NUMEQ. Mais adiante procurei debater sobre Quilombo,
ressaltamos a presença de comunidades quilombolas no Ceará,
destaque para o Sítio Veiga, com a Dança de São Gonçalo, o
distanciamento da universidade em relação a questão racial, as
atividades desempenhadas, como se dá a atuação dos professores e
os cursos envolvidos no projeto de extensão do NUMEQ. Por fim,
sua contribuição para uma práxis antirracista no ensino superior, a
Cristiane Sousa da Silva; Joselina da Silva | 115

partir de ações extensionistas que aproxime a universidade dos


territórios negros invisibilizados no âmbito da educação.
A ampliação do direito à educação e a democratização do
acesso ao ensino superior por meio das políticas de ações afirmativa
possibilitam entrar para o espaço educacional sujeitos antes
invisibilizados ou desconsiderados; sujeitos de conhecimentos,
diante dessa realidade, eles chegam com seus desejos, demandas,
corporeidade, valores e cultura, e passam a questionar os currículos
colonizados e colonizadores exigindo mudanças de práticas e
descolonização do currículo no Ensino Superior, no tocante aos
conteúdos referente à África e aos afro-brasileiros, há uma
necessidade de mudanças de representação e de práticas
pedagógicas em relação à discussão étnico-racial neste âmbito.
A lei 10639/03 preconiza os cursos de licenciatura e de
formação de professores/as, no entanto, a invisibilidade da
racialidade brasileira nas áreas de exatas, humanas e saúde
permanece no silenciamento e na omissão, contribuindo com
práticas de racismo cada vez mais notória na formação de futuros
profissionais e na execução dos seus ofícios.
De acordo com Pimenta (2002), as universidades brasileiras
baseiam-se tendo como influência alguns modelos europeus e
culturas hegemônicas com currículos organizados rigidamente, com
justaposição de disciplinas, fragmentados, empobrecimento de
caráter conteudista, desarticulado com a realidade social, não
significativo para o aluno e a figura do professor como transmissor
de conteúdo. Deixando a desejar a formação de um profissional
reflexivo sobre as culturas negadas e silenciadas no currículo.
O espaço acadêmico precisa se preparar para as transformações
exigidas nesse processo de globalização, na medida em que surgem
novos sujeitos organizados em ações coletivas e nos movimentos
sociais, o que significa considerar suas especificidades, práticas
culturais, seus conhecimentos. Desta forma, repensar a universidade,
bem como seu currículo, a partir da ruptura epistemológica e cultural,
trazida pela questão racial na educação brasileira
116 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Todavia, rediscutir seus compromissos institucionais desta


“nova” universidade, a partir do campo de novas identidades
culturais, retomando a função humanística e social em todas as
áreas de atuação, possibilita uma reflexão mais abrangente dos
currículos equilibrando a relação teoria e prática na formação dos
seus futuros profissionais.
A lei 10639/03 e sua regulamentação pelo parecer CNE/CP
03/2004 e pela resolução CNE/CP 01/2004 (BRASIL, 2005) abre
caminho para a construção de uma educação antirracista, bem como
uma ruptura epistemológica e curricular no trato com a questão racial
no ensino superior. O desafio maior está em inseri-los na formação
acadêmico-cientifico e na produção de novos saberes sobre a
diversidade étnico-racial. A questão principal que nos instiga a
pesquisar é como o campo de formação das áreas de humanas, exatas
e saúde lida com essas rupturas no trato com a questão racial? Como
a lei se insere nesse contexto? Qual o lugar da questão racial nos
currículos das áreas de humanas, exatas e saúde? Que novas práxis
pedagógicas estão se desenhando nas áreas já referidas mediante a
inserção da diversidade étnico-racial no seu campo de atuação?
Na avaliação do primeiro semestre de atuação do NUMEQ,
podemos perceber o compromisso dos professores e alunos de cada
curso tanto no grupo de estudos quanto nas intervenções, o que
possibilitou construir um vínculo com o Quilombo do Sítio Veiga
bem como conhecer mais a comunidade no que diz respeito, a sua
cultura, história, subsistência entre outros. Na realidade este
primeiro momento foi mais um estreitamento universidade e
comunidade, no que concerne, a confiança, se realmente iria ter uma
continuidade ou não, como bem ficou claro na fala da líder
comunitária, Ana, muitas foram as pesquisas que fizeram aqui, mas
não se teve nenhum retorno. E o que propomos é ter essa ligação
tanto com o Quilombo Sítio Veiga quanto com o debate acerca das
relações étnic-raciais dentro e fora da universidade. Entender que
enquanto formadores de opinião, temos que contribuir para uma
práxis antirracista tanto no ensino e nos seus futuros ofícios.
Cristiane Sousa da Silva; Joselina da Silva | 117

Estamos oportunizando, por meio do NUMEQ um espaço, onde não


fiquemos apenas no campo das ideias, da conscientização, mas de
ações efetivas e concretas de como trabalhar com a questão racial na
prática contribuindo para novas formas de trabalhar a lei 10639.
Desta forma, Silva (2208) afirma que o ensinamento da
cultura africana só terá sentido o que for aprendido pela ação, ou
seja, aprende-se o que se vive, e muito pouco sobre o que se ouve
falar. Dito de outra forma, de pouco adianta falar de consciência
negra, valorização da história e cultura africana e afro-brasileira,
senão há como colocá-la em prática, executar tarefa, vivenciá-lo,
ações concretas. A fim, de desenvolver estratégias de combate ao
racismo na educação brasileira.
Por isso, o contato com o quilombo do Sítio Veiga torna-se
relevante a partir do momento que a discussões teórica e conceitual
desembocam em ações concretas na comunidade, onde professores
e alunos constroem experiência de formação no trato com a questão
racial e estratégias de combate ao racismo. Pois, de acordo com
Gomes (2008) uma coisa é dizer, de longe, que se respeita o outro,
e outra coisa é mostra esse respeito.
Nesse sentido, faz-se necessário uma busca de estratégias
para proceder à mudança conceitual sobretudo para os professores
comprometidos em novas relações interétnica na sociedade
brasileira, como por exemplo, no combate aos próprios preconceitos
bem como os gestos de discriminação tão enraizada no nosso
cotidiano, na reconstrução dos seus discursos e ações pedagógicas
contribuindo para uma educação antirracista.

Referências

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de dezembro de 1996.

CUNHA JÚNIOR, Henrique. Afrodescendência e espaço urbano. In: Espaço


urbano e afrodescendência: um estudo da espacialidade negra urbana
para o debate das políticas públicas. Fortaleza: UFC, 2007.
118 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

CUNHA JÚNIOR, Henrique. Conceitos e conteúdos nas culturas africanas e


afrodescendentes. In: COSTA, Sylvio G.; PEREIRA, Sônia. Movimentos
sociais, educação popular e escola: a favor da diversidade. Fortaleza: UFC,
2006.

FANON, Franz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1997.

GOMES, Nilma Lino. Educação e relações raciais: refletindo sobre estratégias de


atuação. In: MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, 2008.

_________, Relações etnicorraciais, educação e descolonização do currículo.


Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1, p.97-109, 2012.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade


nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

PIMENTA, Selma Garrido; ANASTASIOU, Lea das G. Camargos. Docência no


ensino superior. São Paulo: Cortez, 2002.

SILVA, Petronilha B.G.; SILVÉRIO, Valter Roberto (Org.). Educação e ações


afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira,
2003.

_________, Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. In: MUNANGA,


Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2008.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias


do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2011

VIDEIRA Piedade Lino. Batuques, folias e ladainha: a cultura do Quilombo do Cria-


ú em Macapá e sua educação. Tese (Doutorado). Universidade Federal do
Ceará, Programa de Pós-Graduação em Educação, Fortaleza, 2010.
Parte II

Itinerários de resistências, tradições e


manifestações culturais nas comunidades de
quilombos do Ceará
Capítulo 6

Comunidades quilombolas rurais do Ceará:


invisibilidade e desafios no processo de
titulação dos territórios de maioria negra

João do Cumbe - João Luís Joventino do Nascimento

Introdução

A discussão em torno da problemática racial no caso do Ceará


é bastante complexa e, ao mesmo tempo, contraditória. Pois, parte-
se do pressuposto de que no Estado não tinha negros/as e nem tão
pouco, existiu monocultura com mão-de-obra escrava.
Contrariando a “historiografia oficial”, onde destaca, a então
província cearense, como a primeira do Brasil/Império a “abolir a
escravidão”, tornando-a conhecida nacionalmente como “Terra da
Luz” (CÁRITAS, 2011, p. 9).
De lá para cá, já se passaram mais de quatrocentos anos, e
pouco avançamos com essa discussão, onde, a maior parte da
sociedade cearense, reafirma em nega a importância dos negros/as,
suas contribuições na composição da população afro cearense, como
também dos marcadores africanistas presentes na composição e
formação da nossa cultura. Se no Estado do Ceará, parte da sua
gente encontra dificuldade em reconhecer essas marcas na religião,
culinária, arquitetura, língua, práticas e economia, como iremos
avançar na efetivação dos direitos garantidos constitucionalmente,
como a política de regularização fundiária, que regulamenta os
122 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

procedimentos de demarcação e titularização das terras e territórios


quilombolas?!
Desta forma, cabe aos quilombolas, movimentos sociais,
demais sujeitos e grupos políticos diversos, além das instituições de
pesquisa e seus pesquisadores/as, cobrar do poder público
constituído o seu devido direito, como determina o Art. 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT/CF), de 1988
da Constituição Federal, que garante:

[...] aos remanescentes das comunidades dos quilombos que


sejam estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. De
acordo com o Art. 2º do Decreto 4.887/2003, os quilombos são:
“grupos étnico-raciais segundo critério de auto atribuição, com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida (CNE, 2011, p. 9).

As Comunidades Quilombolas Rurais 12 símbolos da


resistência à opressão histórica se constituem por fortes traços de
parentesco e herança familiar ou não. A noção de território para os
quilombolas é algo de uso de todos/as, é uma região de uso coletivo,
para as presentes e futuras gerações, livre das injustiças sociais e
ambientais que recaem, principalmente, contra a população negra
rural.
Avançar no debate da política que disciplina e orienta os
procedimentos para avançar na regularização fundiária dos
territórios quilombolas, faz-se necessário e urgente, pois, parte de
uma demanda coletiva, onde a dimensão cultural, política e
econômica do grupo, estão ameaçadas por uma série de retrocessos
e perda de direitos que vão impactar negativamente no seu modo de
vida, além de se distinguirem e se diferenciarem das outras

12
Comunidades que se encontram na zona rural – campo, e que mantém relação com os elementos
presentes no território a ser titularizado e com certidão da Fundação Cultural Palmares.
João do Cumbe; João Luís Joventino do Nascimento | 123

comunidades tradicionais, e assim poderem decidir sobre suas vidas


e do gerenciamento partilhado do seu território de uso coletivo.
Esses territórios podem ser chamados de tradicionais, como
se encontra no Art. 3, da Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituído pelo
Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, que diz: “Os territórios
tradicionais são espaços necessários à reprodução cultural, social e
econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles
utilizados de forma permanente ou temporária (...)” (CNE, 2011, p.
11).
Diante desta lei/decreto, as lutas contra a “invisibilidade” e
afirmação das comunidades quilombolas rurais afro cearenses,
passam a compor uma das bandeiras de luta atual, onde começam a
se organizar como movimento social, a partir de 2005, criando a
Comissão Estadual de Quilombos Rurais do Ceará – CEQUIRCE,
passam a reivindicar dos governos os procedimentos para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação
das terras e territórios de maioria negra/quilombola.
Negar a existência e presença da população negra no estado,
forjando uma memória “oficial” da não presença africana em solo
cearense, contribui para a marginalização, preconceito,
criminalização e operação do racismo contra os grupos que se
autodefinem como negros/quilombolas e que são marcados por
traços negroides. O que contribui para morosidade nos processos de
regularização fundiária dos territórios quilombolas rurais, realizado
por órgãos federais como o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária - INCRA.

Comunidades quilombolas rurais no Ceará “Terra da Luz”

Dentre inúmeros problemas enfrentados pelas comunidades


quilombolas rurais do Ceará e demais regiões do Brasil estão à falta
de vontade política, à morosidade dos órgãos de justiça em fazer
cumprir a legislação federal e a burocratização nos processos
124 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

exigidos pelos próprios órgãos governamentais, responsáveis pela


emissão dos títulos das terras e territórios ocupados pela população
negra/quilombola ou afro-brasileiros.

É oportuno lembrar que a experiência quilombola está presente


em todas as regiões do Brasil e em outros países da América, onde
o regime escravista se estruturou. No Brasil, vale ressaltar, que as
discussões, em torno dessas comunidades, tomam forma entre as
décadas de 1980 e 1990 (CÁRITAS, 2011, p. 5).

No âmbito do Ceará, temos um fator histórico cultural que é


a negação da presença africana na composição da população do
Estado, onde é atravessado pelo discurso que não tivemos a
monocultura da cana-de-açúcar e nem engenhos para produzir
açúcar. Desta forma, a província não se encontrava na rota do tráfico
criminoso de escravos/as, para trabalhar nos engenhos da zona da
mata nordestina. “[...] se não tivemos açúcar não tínhamos muitos
escravizados, portanto não tivemos muitos negros” (CUNHA JR,
2011, p. 104).
Para um estado que se orgulha em ser o pioneiro na abolição
da escravatura e se tornar referência para os demais na luta pela
“libertação” do povo negro, soa até estranho, não termos em
território cearense nenhuma comunidade quilombola rural de posse
de suas terras. Pois, segundo o Censo Demográfico do IBGE 2010
(IPECE, 2012), afirma que 4,55% da população se autodefinem
como pretos e 61,88% pardos. Ao somarmos os quesitos pretos e
pardos, vamos ter uma população negra de 66,43%. “Isso evidencia
que o discurso de não-existência desse segmento necessita ser
superado buscando restituir sua história e incentivando seu
desenvolvimento político, social e econômico” (LIMA, 2009, p. 12).
Ao dizer que o cearense é fruto da mistura da raça branca com
a indígena, a invisibilidade das comunidades indígenas no estado é
flagrante e ocultada, e pouco se tem feito para seu reconhecimento
e avançar na regularização fundiária de suas terras e territórios.
Negando a luta do movimento abolicionista e do movimento negro,
João do Cumbe; João Luís Joventino do Nascimento | 125

como também, os processos de resistências das comunidades


quilombolas rurais que se autodefinem como de maioria negra,
acirrando a polêmica sobre a mestiçagem, onde o “[...] indígena e o
europeu são os povoadores” (CUNHA JR, 2011, p. 104).
Se assim acontece com os indígenas, o que não dizer do povo
negro, o descaso ocorre com as comunidades rurais negras, ou seja,
desde a Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei
de Terras, se “[...] promoveu uma ordenação conservadora da
estrutura fundiária do país, praticamente impossibilitando o acesso
de negros e de seus descendentes a terra na transição da escravidão
para o regime do trabalho assalariado durante o século XIX”
(INCRA, 2012, p. 6).
Se num determinado momento, o estado afirma que não há
comunidades rurais negras e nem indígenas, as terras ocupadas por
esses grupos passam a ser um grande território vazio, sendo passiva
de serem griladas. Neste mesmo período, um conjunto de leis em
vigor, contra os grupos que se afirmam como negras e indígenas,
passam a negar suas identidades para existirem. Hoje, por força de
novas normas constitucionais, trabalhadas pelos movimentos
sociais, passam por momentos diferentes, essas comunidades para
continuarem existindo, tem que afirmar suas identidades para
permanecerem habitando seus territórios e continuarem sua
reprodução social, cultural e econômica.
Outra situação bastante emblemática é a situação da formação
social, onde a afirmação do amorenamento é a solução para
descontruir o pensamento que no Ceará não tinha negros/as.

Na maior parte das comunidades encontradas, as pessoas se


assumiam como negras. Entretanto, em muitas delas a auto-
identificação estava ligado somente à cor da pele, o que não
constitui uma identidade de forma plena da etnia. Pelo que foi
percebido, mesmo naqueles agrupamentos em que existem fortes
manifestações associadas à cultura afro-brasileira, os seus
moradores não conseguem encará-las como uma herança africana
no Brasil. Por trás dessa dificuldade em assumir plenamente essa
126 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

identidade, foi identificada a forte presença do racismo da atual


sociedade. Em todos esses lugares são comuns os relatos de
preconceito e discriminação sofridos pelos seus moradores
(CÁRITAS, 2011, p. 7).

Não temos dúvida alguma, quando falamos e denunciamos o


preconceito e a discriminação racial que se tem contra a população
negra cearense. “A escravidão era uma prática no Ceará, onde os
senhores adquiriam mão de obra escrava para diversas finalidades:
status, comodidade, meio de produção de riqueza, companhia,
exploração, objeto sexual etc.” (ECOLOGY BRASIL, 2014, p. 21).
Neste sentido, a CEQUIRCE – Comissão Estadual de
Quilombos Rurais do Ceará identifica e reconhecem 75 comunidades
rurais quilombolas. Já a Fundação Cultural Palmares, órgão do
governo federal responsável pela emissão das certidões, tem nos
seus registros 46, destas todas são certificadas pelo órgão. Por outro
lado, temos 3 territórios com decreto presidencial 13 e nenhuma
comunidade com a regularização fundiária, definida e
regulamentada pelo governo federal, livre das ameaças econômicas.
Segue abaixo o quadro com o nome das 46 Comunidades
Quilombolas Rurais do Ceará, certificadas pela Fundação Cultural
Palmares.

13
Penúltimo processo das etapas de regulamentação fundiária das terras e territórios quilombolas.
João do Cumbe; João Luís Joventino do Nascimento | 127

Quadro Geral das Comunidades Quilombolas do Ceará, com Certidões


emitidas pela Fundação Cultural Palmares, até a Portaria Nº 268/2017,
publicada no DOU de 02 de outubro de 2017.
MUNICÍPIO COMUNIDADE ANO DA
CERTIFICAÇÃO
Acaraú Córrego dos Iús 10/12/2014
Aquiraz Goiabeira 06/12/2005
Aquiraz Lagoa do Ramo 06/12/2005
Aracati Cumbe 10/12/2014
Aracati Córrego de Ubaranas 04/11/2010
Araripe/Salitre Sítio Arruda 05/05/2009
Baturité Serra do Evaristo 24/03/2010
Catunda/Tamboril Lagoa das Pedras 02/03/2007
Caucaia Boqueirão das Araras 04/04/2012
Caucaia Caetanos em Capuan 03/09/2012
Caucaia Cercadão do Dicetas 04/04/2012
Caucaia Porteiras 04/04/2012
Caucaia Serra do Juá 04/04/2012
Caucaia Deserto 02/03/2016
Caucaia Serra da Rajada 14/03/2016
Caucaia Serra da Conceição 29/06/2016
Coreaú/Moraújo Timbaúba 13/12/2006
Crateús Queimadas 30/09/2005
Croatá/Ipueiras Três Irmãos 09/12/2008
Horizonte/Pacajus Alto Alegre 08/06/2005
Horizonte/Pacajus Base 07/06/2006
Ipueiras Coité 04/11/2010
Ipueiras Sítio Trombetas 24/03/2010
Itapipoca Nazaré 22/12/2011
Monsenhor Tabosa Boa Vista dos Rodrigues 03/09/2012
Monsenhor Tabosa Buqueirão 03/09/2012
Novo Oriente Barriguda 30/07/2013
Novo Oriente Bom Sucesso 27/04/2010
Novo Oriente Minador 19/11/2009
Ocara Melâncias 08/11/2011
Pacujá Batoque 10/12/2014
Porteiras Souza 19/04/2005
Potengi Sítio Carcará 30/07/2013
128 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Quiterianópolis Croatá 13/12/2006


Quiterianópolis Fidelis 13/12/2006
Quiterianópolis Furada 17/06/2011
Quiterianópolis Gavião 13/12/2006
Quiterianópolis São Jerônimo 17/06/2011
Quixadá Sítio Veiga 19/11/2009
Salitre Nossa Senhora das Graças 30/07/2013
do Sítio Arapuca
Salitre Renascer Lagoa dos 01/12/2011
Crioulos
Salitre Serra dos Chagas 27/04/2010
São Benedito Sítio Carnaúba II 30/07/2013
Tamboril Brutos 27/04/2010
Tamboril Encantados do Bom 13/12/2006
Jardim
Tamboril Torres 16/05/2007
Tauá Consciência Negra 13/12/2006
Tururu Água Preta 10/12/2004
Tururu Conceição dos Caetanos 10/12/2004
*Fonte: Fundação Cultural Palmares, até outubro de 2017.

Observa-se no quadro acima que as 49 Comunidades


Quilombolas Rurais do Ceará, com certidões emitidas pela Fundação
Cultural Palmares, estão distribuídas em 28 municípios. Dando
destaque para os municípios de Caucaia, região metropolitana de
Fortaleza que tem o maior número de comunidades certificadas,
depois Quiterianópolis nos Inhamuns. Outra coisa que chama
atenção, é que as comunidades passaram a reivindicar suas
respectivas certidões a Fundação Cultural Palmares, como de
maioria negra/quilombola, a partir de 2004, ou seja, somente no
século XXI. Com isso, temos apenas a Comunidade de Conceição dos
Caetanos, em Tururu, que em 1998, deu entrada com o pedido junto
a Palmares, ou seja, no século passado, mas, sendo certificada
somente em 2004.

O Estado do Ceará, marcado pela falsa ideia de que não havia


negros em sua formação, assistiu no final da década 70 a
João do Cumbe; João Luís Joventino do Nascimento | 129

“descoberta” da comunidade negra rural de Conceição dos


Caetanos, no município de Tururu. Com a exposição dos Caetanos
outras comunidades foram sendo estudadas por pesquisadores e,
sobretudo, por militantes do movimento negro cearense [...]
(CÁRITAS, 2011, p. 5-6).

Essa consideração demonstra a importância da Comunidade


de Conceição dos Caetanos, em Tururu, para o debate da existência
de comunidades rurais negras em solo cearense, como também, do
trabalho realizado pelo movimento negro e dos pesquisadores/as,
em identificar e afirmar a presença desses grupos rurais.
A criação da CEQUIRCE, em 2005, abre espaço para
avançarmos no processo de “organização” e reconhecimento das
comunidades quilombolas cearenses, como demonstra o registro da
Palmares, pois, até a criação da Comissão Estadual de Quilombos
Rurais do Ceará, tínhamos apenas 2 comunidades com certidões. O
que não quer dizer, que as comunidades não existissem e passassem
a ser vista após a criação do movimento: “Na história da formação
socioeconômica do estado já encontramos a referência à existência
de populações quilombolas em 1600 [...]” (CUNHA JR, 2011, p. 105).
Por outro lado, o Movimento Quilombola Rural do Ceará,
encontra dificuldade em está presente nos territórios rurais de
maioria negra/quilombola, por conta da dimensão territorial do
Estado, e de desenvolver ações que contribua para o fortalecimento
das identidades, garantindo políticas públicas voltadas as
necessidades e demandas dos grupos rurais quilombolas.

[...] o termo quilombola ainda é associado estritamente a ideia de


escravidão e sofrimento. Sobre esse compor-tamento cabe uma
indagação: com que propósito esconder esse passado, se não, como
ensinamento dos mais velhos para proteger a comunidade? As
possíveis respostas para essa questão requer um estudo mais
profundo e detalhado junto a cada um desses grupos. O que
pressupõe uma aproximação e convivência maior com eles
(CÁRITAS, 2011, p. 8).
130 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Os dados apresentados de alguma forma demonstram as


dificuldades enfrentadas pelas Comunidades rurais negras do Ceará
que são de várias ordens, falta de representação políticas nas
estâncias governamentais, burocracia nos processos, falta de
vontade política dos gestores/as, ineficiência operacional dos órgãos
responsáveis para efetivação da política, bem como a percepção de
que o poder judiciário, de uma forma geral, por ter se formado numa
concepção elitista e burguesa, acaba por legislar em interesses
contrários aos direitos das comunidades quilombolas, o que vai
ocasionar na negação da identidade.
Tudo isso irá desencadear na morosidade dos processos de
regularização fundiária dos territórios de maioria negra ou
afrodescendentes. O que passa ser necessário e urgente articular as
lutas travadas nos territórios na busca da defesa das terras
quilombolas e a ocuparem outros espaços das lutas políticas na
efetivação de seus direitos.

Relações Raciais e a Presença Negra No Ceará

São muitos os desafios e obstáculos a ser superados no que


tange as questões conceituais sobre relações raciais e da presença
negra no Ceará. Não existe por parte das esferas governamentais,
setor específico que possam trabalhar questões como identidade,
africanidades, afrodescendentes, o conceito de quilombo
contemporâneo, de forma conjunta das comunidades quilombolas
rurais, preparando-as para o exaustivo processo de luta pela posse
coletiva das terras ocupadas pelos seus ancestrais.
Para o professor titular e pesquisador da Universidade
Federal do Ceará, Henrique Cunha, “Existem procedimentos de
natureza de uma ideologia de negação da existência de população
afrodescendente no Ceará marcada pela afirmação persistente de
que no estado não há negros” (CUNHA JR, 2010, p. 106). É sabido,
que no âmbito do governo estadual e federal, pouco tem sido feito
para avançar com a efetivação de políticas públicas, voltadas para
João do Cumbe; João Luís Joventino do Nascimento | 131

atender a demanda do movimento quilombola nas esferas


governamentais.
Percebe-se que as pautas de luta do movimento quilombola
rural não se encaixa nos planos dos governos e nem são prioridades
nas suas gestões. O que contribui por acirrar os conflitos entre as
comunidades quilombolas rurais, pecuaristas, latifundiários,
grileiros de terras, empresários do agro e hidronegócio, e demais
setores de expansão do capital econômico.
A investida pela invasão das terras e territórios quilombolas
aceleram-se num processo de perda da identidade racial, costumes
e práticas produtivas seculares, desenvolvidas nos quilombos, e que
muitas são mantidas até hoje. Para grande parte dos setores
“desenvolvimentista” as atividades tradicionais, realizadas por esses
grupos, são consideradas como atrasadas e quando não, um entrave
para o crescimento econômico do país. Fatores esses que
contribuem para violar direito e dificultar os processos de
regularização fundiária das comunidades rurais negras.
Acreditando na importância de resignificar o papel político
pedagógico da luta do movimento quilombola rural do Ceará, como
forma de sensibilizar e levar informação as diferentes camadas da
sociedade barsileira, docentes e discentes, das diversas áreas do
conhecimento sobre os conflitos presentes nos territórios
tradicionais é que surge a necessidade de acessar conteúdos sobre
essas identidades e abrir o debate sobre a conjuntura atual, fazendo
perguntas como: Porque são os territórios tradicionais, étnicos e
raciais, os mais ameaçados pelos investimentos econômicos?
Para responder essa pergunta e tantas outras, temos primeiro
que lançarmos nossos olhares sobre as realidades vividas nas
comunidades e territórios quilombolas, denunciando as práticas
escravocratas, discriminatórias e inferiorizantes que pesistem nos
dias atuais, onde o governo não cumpre o que determina a
Constituição Federal, que asseguram aos descendentes de
quilombos, a regularização fundiária de seus territórios.
132 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Esses coletivos mostram que as concepções e práticas educativas


pensadas para educá-los, civilizá-los estão condicionadas pelas
formas de pensá-los, ou pelo padrão de poder/saber de como
foram pensados para serem subalternizados. As teorias
pedagógicas não põem em prática concepções, epistemologias de
educação trazidas de fora, do centro civilizado e civilizador, mas
foram gestadas na concretude do padrão de poder/saber
colonizador, aqui, nos processos concretos de dominar, submeter
os povos originários, indígenas, negros, mestiços, trabalhadores
livres na ordem colonial escravocrata ( ARROYO, 2012, p. 11).

O preconceito que impera nas diversas camadas da sociedade


brasileira e nos órgãos e intituições públicas, demonstra o quanto
fica difícil avançar nas questões que estão posta, justamente, pelo
fato de haver um projeto de governo, onde as comunidades
quilombolas, não estão inseridas e há poucas pesquisas e
pesquisadores/as na área da educação e do movimento quilombola
com esse enfoque.

[...] entre os intelectuais e principalmente entre a população, existe


uma persistência dos padrões racialistas e fenotípicos para pensar
a cultura negra e a população afrodescendente no Ceará. São
imaginadas caracteristicas físicas, fenotípicas e biológicas para
pensar a existência de negros que por vezes incorrem em
absurdos. “Negro verdadeiro é aquele do cabelo bem duro, bem
duro, que cai na água e não molha” (CUNHA JR, 2011, p. 105).

As pesquisas e a educação surgem como caminhos


importantíssimos na perspectiva de reverter o quadro histórico do
preconceito existente no país e no estado contra a população negra.
Um exemplo claro é a aplicação da Lei 10.639/03 nas escolas
públicas, que trata da obrigatoriedade do ensino de história e cultura
africana e afro-brasileira, como uma forma de reverter à negação já
tão naturalizada na sociedade brasileira, de teorias, consideradas
científicas, que trata a população negra como inferior.

A aprovação da lei 10.639/03 exige, hoje, da escola e sociedade


enquanto um todo, a responsabilidade de redimensionar a História
João do Cumbe; João Luís Joventino do Nascimento | 133

para promover o desvelamento, o reconhecimento e a valorização


das culturas e das histórias africanas e afro-brasileiras como forma
de reparação desse sinistro processo de exclusão social e racial
imposto à população afrodescendente, que sobreviveu e ainda
sobrevive ao preconceito e aos racismos, frutos do escravismo
criminoso, presente no Brasil há mais de 400 anos (SOUZA, 2012,
p. 95).

Suscitar na sociedade a valorização da cultura negra como a


dos demais grupos que compõem esse país nação, consiste em
identificar e perceber as marcas da herança africana deixada pelos
nossos ancestrais, como elementos importantes no combate do
racismo físico, institucional e ambiental.
Outra questão que precisa ser superada é a da não presença
negra no litoral cearense, em função de um aparente consenso, de
que no Ceará não existia negros. Forjando desta forma a negação
dos afrodescendentes em solo cearense, ou seja, criando
mecanismos de dominação e imposição de projetos econômicos, que
não respeita suas culturas e organização social, caracterizando
segundo militantes do movimento negro e pesquisadores/as o
racismo ambiental.

Racismo ambiental é a discriminação racial nas políticas


ambientais. É discriminação racial no cumprimento dos
regulamentos e leis. É discriminação racial no escolher
deliberadamente comunidades de cor para depositar rejeitos
tóxicos e instalar indústrias poluidoras. É discriminação racial no
sancionar oficialmente a presença de venenos e poluentes que
ameaçam as vidas nas comunidades de cor. E discriminação racial
é excluir as pessoas de cor, historicamente, dos principais grupos
ambientalistas, dos comitês de decisão, das comissões e das
instâncias regulamentadoras (CHAVIS, 1993, apud PACHECO e
FAUSTINO, 2013, p. 85).

Os mecanismos e as ações do Estado, em conjunto com outras


instituições públicas e privadas, são os principais responsáveis pelo
apagamento e silenciamento intencional das memórias da
134 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

população afrodescendente. O que contribui para que ela não se


reconheça como tal, negando sua identidade racial e assim,
dificultando a exigência de reparações diferenciadas, que possam
diminuir as desigualdades sociais entre a população branca e negra.
Contrariamente a isso, as comunidades quilombolas do Ceará,
ao se organizarem através da CEQUIRCE, reivindicam dos governos
um projeto de país e de “desenvolvimento”, onde seus direitos
passem a ser respeitados e que possam discutir em situação de
igualdade os destinos de suas vidas, de seus território de uso
coletivo, de uma educação que fale e valorize a cultura
afrodescendente, suas práticas, saberes, e que também, reconheçam
seus pesquisadores/as, escritores/as e filhos/as ilustres que
contribuíram para o engrandecimento deste país. O que estamos
acompanhando, quase em silêncio, há mais de 400 anos, é
estereótipo do que é ser negro, exclusão social, violência e o não
cumprimento de direitos conquistados.
Os constantes assassinatos da juventude negra e seu
encarceramento demonstram que as disputas de poder e de um
projeto de nação, onde a população negra é maioria, necessita ser
construída para que se possa ser incluída, e assim decidir em pé de
igualdade o seu futuro.
Na atual conjuntura política, o Brasil adotando padrões
insustentáveis para o crescimento econômico, os direitos
conquistados pela população negra e movimentos sociais, estão sob
ameaça por diferentes grupos econômicos, investimentos
estrangeiros, grupos políticos e pelas elites, formadas pela classe
dominante branca, burguesa, detentora de privilégios e com
passado escravocrata.
O aumento dos conflitos socioambientais no campo, os
diversos casos de injustiça ambiental e o racismo ambiental, estão
entre as causas que mais ameaçam a reprodução social, cultural,
econômica e política, das comunidades quilombolas que lutam pela
defesa e demarcação de seus territórios livres dos projetos
“desenvolvimentistas” que só geram exploração, desigualdade social
João do Cumbe; João Luís Joventino do Nascimento | 135

e morte. A realidade é que a grande maioria desses projetos são


concebidos considerando exclusivamente os benefícios para os
empreendedores, desconsiderando as dimensões social, econômica,
cultural, racial e de gênero das populações vulnerabilizadas e
impactadas pelo falso discurso de “desenvolvimento”.

Considerações Finais

Os quilombos rurais, símbolo da resistência negra no país


foram os primeiros lugares a serem perseguidos e dizimados pelas
elites do Brasil, sendo uma ameaça à ordem imperial, apagando
desta forma com a “história oficial” dos africanos ou afro-brasileiros
no estado. Mudar os rumos dessa história e da presença marcante
dos africanos no processo de formação do Ceará passa
necessariamente pela sensibilização de uma nova consciência, sobre
a importância e contribuições desses sujeitos sociais que foram
escravizados e trazidos a força para realizar todo o trabalho braçal
que esse país e estado necessitava.
Diante deste contexto, o que despertou minha atenção, com a
proximidade do Movimento Quilombola Rural do Ceará, foi a minha
inserção, enquanto quilombola do Quilombo do Cumbe, município
do Aracati, litoral leste, certificado pela Fundação Cultural Palmares,
em dezembro de 2014, e do grande número de comunidades
remanescentes de quilombos no estado, que não dispõe da certidão
do seu território tradicional ou comunidade com título coletivo da
terra.
Neste sentido, a luta pela regularização fundiária dos
territórios afro-brasileiros em solo cearense é bastante antiga, indo
na contramão dos fatos narrados e escritos pelas fontes documentais
históricas sobre o período da escravidão. Se no passado (1884), o
princípio de “liberdade” foi a principal bandeira de luta do
movimento abolicionista no Ceará, nos dias atuais, o processo de
“libertação” dos territórios quilombolas e/ou afro cearense e de suas
136 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

terras que se encontram de posse das famílias escravocratas, tarda


a ser efetivado na “Terra da Luz”.
O que está acontecendo com os clamores dos milhares de
“Dragões do Mar e da Terra” e de tantos “Negros Cosme”,
espalhados pelos quatros cantos do território cearense, que clamam
pela “libertação” de suas terras e não são ouvidos pela sociedade e
órgãos instituídos pelos governos? Onde está o nó do processo de
delimitação, reconhecimento, demarcação e de titulação das terras e
territórios, de maioria negra/quilombola, ocupada pelas
comunidades remanescentes de quilombos? Perguntas como estas e
tantas outras, merecem serem respondidas, para entendermos os
verdadeiros interesses na atual conjuntura.

Referências

ARROYO, Miguel G. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes,


2012.

CÁRITAS, Diocesana do Crato e GRUNEC, Grupo de Valorização Negra do Cariri.


Caminhos Mapeamento das Comunidades Negras e Quilombolas do
Cariri Cearense. Cariri/Ceará, 2011.

CNE. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola:


algumas informações. Brasília – DF/2011.

CUNHA JR, Henrique. Cultura Afro cearense. In: CUNHA JR, Henrique, SILVA,
Joselina da, NUNES, Cícera. Artefatos da Cultura Negra no Ceará.
Fortaleza: Edições UFC, 2011.

ECOLOGY BRASIL. Estudo Componente Quilombola. Comunidade


Remanescente de Quilombo de Córrego de Ubaranas/Aracati – CE. Julho
de 2014.

FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Certidões Expedidas às Comunidades


Remanescentes de Quilombos (CRQs) atualizadas até a Portaria Nº
84, de 8 de junho de 2015. Brasília – DF/2015.
http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551. Acessado em 01/12/2017.
João do Cumbe; João Luís Joventino do Nascimento | 137

INCRA. Relatório Territórios Quilombolas. Brasília – DF/2012.

IPECE. Informe Perfil da Raça da População Cearense. Análise a parir dos


dados do Censo Demográfico 2010. Fortaleza – CE, Nº 23 – Março de
2012.
http://www.ipece.ce.gov.br/publicacoes/ipeceinforme/Ipece_Informe_2
3_fevereiro_2012.pdf Acessado em 02/08/2015.

LIMA, Ivan Costa. Mobilização Social Negra: Recolocando Novos Atores Coletivos
na História da Educação. In: LIMA, Ivan Costa, NASCIMENTO, Joelma
Gentil. Trajetórias Históricas e Práticas Pedagógicas da População
Negra no Ceará. Fortaleza: Imprece, nº 1, jan. 2009.

PACHECO, Tania, FAUSTINO, Cristiane. In: PORTO, Marcelo Firpo, PACHECO,


Tania e LEROY, Jean Pierre (orgs.). Injustiça Ambiental e Saúde no
Brasil: o Mapa de Conflitos. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2013.

SOUZA, Glória Maria A. A lei 10.639/03 no cotidiano das escolas municipais de


Niterói/RJ. IN: BARRETO, Maria A. S. C. (et. al.). Africanidade(s) e
Afrodescendência(s): perspectivas para a formação de professores.
Vitória, ES: EDUFES, 2012.
Capítulo 7

Medicina tradicional das senhoras rezadeiras:


Dimensões da cosmovisão africana

Maria Eliene Magalhães da Silva

[...] ancião, no sentido africano da palavra, isto é,


aquele que sabe [...] poderia ter conhecimentos
profundos sobre religião ou história, como também
ciências naturais ou humanas de todo tipo. [...] uma
espécie de ciência da vida. (BÂ, 2003, p. 174)

Introdução

O presente trabalho faz parte de uma pesquisa iniciada em


2013, que trata da cura com uso das plantas medicinais pelas
rezadeiras enquanto saberes ancestrais abordados mediante
ensinamentos da cosmovisão africana
Há uma dificuldade e raridade em encontrar trabalhos sobre
as reza na perspectiva da cosmovisão africana. Nesse artigo
pretendo ressaltar alguns elementos apontados por autores/as da
cosmovisão africana e que me permitem identificar as dimensões
das africanidades presentes na reza.
A partir das leituras, entrevistas e oficinas de pesquisa nos
dois últimos anos de mestrado, percebo que existe na medicina
tradicional uma relação de afroreza, isto é aspectos de uma cultura
ancestral africana envolvendo místicas, energia vital, elemento
vegetal e água. .
140 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

O artigo inicia com a narrativa das minhas memórias de


infância onde eu trato da minha relação de linhagem de rezadeiras
na família e do uso dessa medicina tradicional. Em seguida trago
algumas das rezadeiras quilombolas de Caucaia que pesquisei e as
práticas de cura com plantas que podemos associar à ancestralidade
africana. Nesse item mostro também algumas características das
plantas e seu uso fitoterápico na reza. Finalizo sintetizando quais os
marcadores de africanidades que sua prática de cura revela.

Memórias da reza e do uso das plantas na minha infância

Lembro-me da minha infância, com minha mãe Iolanda e


minha avó Dona Otília, rezadeira que usava plantas medicinais em
alimentação e remédios. Minha avó já tinha recebido essas
orientações de sua mãe Dona Maroca que também era rezadeira da
Serra da Pacatuba no Ceará. Pelo privilégio de ser neta de uma
rezadeira de mão cheia aprendi e observei muitas coisas.
Na minha infância, todos as ervas tradicionais que uma
rezadeira indica, eu e meus irmãos usamos, pois minha avó tinha
sua horta tradicional no quintal e outra parte no jardim. Além disso
meus pais não tinham condições de comprar remédios caros, nessa
época éramos três filhos, num total de seis filhos nascidos.
Lembro-me do cheiro das folhas verdes para lambedores e
outras. Em casa, minha avó sempre tinha pé de corama, malva,
mastruz, hortelã, alecrim, capim santo, erva cidreira, colônia, essas
para doenças do corpo. Para enfraquecimento do corpo usava-se
mastruz com leite, que era benéfico para quem vive acometido de
fraqueza.
Eu e meus irmãos quando gripávamos, não usávamos
remédios de farmácias e talvez por isso nenhum de nós tenha sido
acometido de bronquite ou pneumonia. Os remédios eram vários,
envolviam lambedores, garrafadas, mel de jandaira com lima e eram
sempre feitos por minha avó, mãe ou tias. Lembro-me das fusões
com eucalipto, nunca usei máscaras de aerosol, acho que nesse
Maria Eliene Magalhães da Silva | 141

tempo nem existia. Para machucados era feito pasta de mastruz para
pôr no local e no outro dia já ficava sarado.
Lembro-me que para diarreia a minha avó receitava o olho da
folha da goiabeira para crianças menores, sempre ela doava uns
brotos de folha, pois no quintal tinha um pé de goiabeira próximo a
cacimba. Ela também passava folhas para doenças da alma, como
olho gordo e inveja, para isso ela aconselhava andar com alho na
bolsa como amuleto, ter na frente de sua casa um jarro com: Pinhão
Roxo, Arruda, Espada de São Jorge.
Minha mãe sempre usava a pepaconha para gripe mal curada,
funcionava como expectorante do catarro velho (amarelo) que era
expelido pelas fezes e também servia para verminoses tomadas com
chá de alho.
Como uma das filhas mais velhas, presenciei o nascimento de
três irmãos mais novos e lembro como eram tratados o recém-
nascido e a parturiente, pois minha mãe era cuidada pela minha avó.
O recém-nascido tomava chás para acalmar suas cólicas e minha
mãe usava água com aroeira cujo processo era chamado de ‘molho’,
ou seja permanecido na água 24 horas, o objetivo era sarar os pontos
do parto e evitar hemorragias uterinas.
Minha recordação do uso dessa medicina natural vem
também do meu pai, nascido em Quixadá. Além de usar muitas
raízes em suas refeições como batata doce e macaxeira, era adepto
de chás de canela, cidreira e outros, cozimentos de folhas de
eucalipto para inalar, mastruz com leite toda manhã para se sentir
forte. No livro Encontros com o Griot Soutigui Kouyaté. (Bernat:
2013 ) o griot diz: “A família é o espaço onde se dá a transmissão de
conhecimento, valores, ofícios e principalmente daquilo que
podemos reconhecer como uma ética para a vida.
Hoje, as pessoas tendem a usar cada vez mais remédios de
farmácias e antibiótico por qualquer coisa. A meu ver, existe uma
necessidade, em fortalecermos entre nós essas tradições ancestrais
africanas, que se não valorizarmos podem tornar-se peças de
museu.
142 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Rezadeiras Quilombolas de Caucaia

O cheiro, o ar da serra, os cães calmos, a vida tranquila, o chão


ancestral, as amizades construídas no pé de serra, o verde, a
natureza, a moradia das rezadeiras e as recomendações de cura
através das ervas, folhas e raízes, são elementos que motivaram
minha pesquisa com as rezadeiras. Nesse contexto, percebi, o
quanto essa medicina tradicional ainda é utilizada pelas rezadeiras,
mesmo com diferentes pertencimentos religiosos. Notei, entre
outras coisas, que cada rezadeira tem um local em sua casa onde
cultiva ervas e outras plantas medicinais.
Um exemplo é o de Dona Terezinha, rezadeira católica da
Comunidade Remanescente Quilombola de Porteiras:

Uso as folhas de Pitanga que serve para barriga, outros chás, eu


compro. Uso pauzinhos, raízes, folhas, madeiras como: cidreira,
quebra pedra, camomila, boldo, aroeira, pepaconha. (...)Passo
remédios, lambedores, garrafadas, algumas ervas (...) (Entrevista
à Dona Terezinha).

A rezadeira, em seu ofício, trabalha sem saber com a medicina


tradicional africana, utilizando os elementos da natureza e seus
ensinamentos.
Dona Valda, evangélica da Comunidade remanescente
Quilombola de Porteiras, falou do que aprendeu na iniciação e
jamais iria esquecer. Assim, mesmo mudando de religião da católica
para a evangélica, seus laços com a africanidade não se rompem,
muito embora exista uma resistência por parte dela em reconhecer
esse vínculo.
Ela compartilha sua reza de cura através da medicina
tradicional afroancestral:

Hortelã, que é pra febre; Capim santo, para depressão, é calmante.


Mastruz, conhecido como Santa Maria, Osteoporose. Cidreira,
calmante. Boldo do Pará, Para estomago, úlcera. Agrião, pra
Maria Eliene Magalhães da Silva | 143

garganta, câncer, todas as infecções. Alfavaca, para o coração,


gripe. Gergelim, para amolecer os nervos. Noni, para o câncer.
Picão, para dengue. Pitanga, antibiótico natural. (Entrevista à
Dona Valda).

Em Porteiras, a rezadeira Dona Verônica diz que:

Porque é tudo plantada aqui, tenho malva, babosa, manjericão,


quero tudo da natureza pra não tá comprando mais, quero tudo da
terra, tudo é da natureza mesmo, da terra aqui. Desenhei tudo
relacionado com a natureza, porque aqui é serra e tem muita terra
pra prantar. Tou começando com as coisas da terra, aqui é serra,
né? (Entrevista à Rezadeira Dona Verônica, p. 1-2)

Dona Verônica com sua capulana


144 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Na oficina “Capulanas”, Dona Dalva desenhou sua rotina, ou seja, o uso das
folhas na reza, ao redor de sua vida, como um jardim de mandalas verdes.

Plantas do jardim da rezadeira Dona Verônica

Notei ensinamentos que a rezadeira traz consigo,


transmitidos de mãe para filha, como o fato de usar folhas na cabeça.
Na conversa que tive com Dona Mariinha, da Serra do Juá, quando
perguntei por que ela usava umas folhas na cabeça, ela disse:”Minha
fia uso essas foias de carrapateira pra mode ficar boa da dor de
Maria Eliene Magalhães da Silva | 145

cabeça, uso o mato, o mato é mia farmácia, é receita da terra e não


faz mal, ai prendo com pano ou chapéu e rezo”. (Depoimento de D.
Mariinha, rezadeira de crianças do quilombo da Serra do Juá)
Dona Mariinha usa as folhas como forma de tratamento para
sua dor e disse naquela época, que ensinava a quem a procurava
com dor de cabeça, além de oferecer a reza para cura.

Foto de 2013 com a Rezadeira Dona Mariinha da Serra do Juá

Observei isso, também com as rezadeiras de Porteiras em


uma oficina de capulana14.
As Rezadeiras que representaram três comunidades
quilombolas de Caucaia, desenharam no tecido suas práticas e em
todas havia elementos da natureza usados na cura.

14
Capulana (origem tsonga) é o nome que se dá, em Moçambique, a um pano que, tradicionalmente,
é usado pelas mulheres para cingir o corpo, fazendo as vezes de saia, podendo ainda cobrir o tronco e
a cabeça. https://pt.wikipedia.org/wiki/Capulana
146 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

A rezadeira Dona Prazeres, da Comunidade remanescente do


Cercadão, desenhou sua horta que é cultivada na Associação
quilombola para toda a comunidade.
Comentam Gomes e Pereira:

É elemento constante nas benzenções o uso de ramos como corpos


intermediários para produção do efeito da cura: a planta fornece
energia vital ao homem. O vegetal representa a unidade
fundamental da vida, através das características cíclicas da
existência: nascimento, maturação, morte e transformação
(Gomes e Pereira, 2004, p.40)

O corpo necessita do alimento da terra, água, do sol, do ar e


dos vegetais, que é semeado, cultivado e colhido e recebe a energia
do corpo. “Para eficácia da benzeção, além das palavras recitadas,
ocorre a presença de elementos da Natureza, propriedades relativas
ao domínio do mal, tais como a água, o fogo, o ar, a terra e a
vegetação.” (Gomes e Pereira , 2004, p.31)

Erva, Raízes, folhas Recomendações fitoterapeuticas da Dona


medicinais Valda
CAPIM SANTO Indicado para depressão; serve como
calmante.
MASTRUZ (Conhecido como Com leite cura osteoporose; é anti-
Santa Maria) inflamatório.
CIDREIRA Indicado como calmante e controla cólica dos
recém-nascidos.
BOLDO DO PARÁ Indicado para problemas no estomago e
úlceras.
ALFAVACA Recomendado para o coração, gripe.
GIGILI As sementes usadas com leite servem para
amolecer os nervos.
NONI Para o câncer.
HORTELÃ Indicado para dor de barriga, garganta e
verminose.
AGRIÃO Para câncer e todas as infecções.
PICÃO DO MATO Para Dengue.
PITANGA É um antibiótico natural.
Maria Eliene Magalhães da Silva | 147

Dona Valda mantem uma relação muito forte com a natureza,


em seu quintal, que ela chama de terreiro, há um cajueiro e nele
sentam família e amigos para prosear.

A Rezadeira Dona Valda diz que sempre indica os benefícios


do cajueiro as pessoas, como podemos ver no quadro abaixo sobre
as características dos elementos que compõem o cajueiro.
Em seguida vemos algumas características das plantas e do
seu uso medicinal reveladas na pesquisa. O primeiro quadro traz a
indicações da rezadeira do quilombo de Porteiras, Dona Valda, já o
segundo quadro é extraído do livro O Cajueiro, Vida, Uso e Estórias
(2002)

Parte do cajueiro Recomendação


CASTANHA Antifebril (quando torrada);
Antileprótico (óleo da amêndoa);
É usado em vários tratamentos do aparelho
digestivo;
Estimulante da memória quando assada;
148 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

O chá serve para: picada de cobra, enxaqueca,


doenças da garganta inclusive rouquidão,
escorbuto, anemia, purificar o sangue.
FOLHAS O chá das folhas serve para: rouquidão,
O Chá das folhas gargarejos, puxado no peito, ou seja, falta de ar
substitui o chá preto da natural dos asmáticos.
Índia.
FLORES O chá das flores serve para: tônico e estimulante,
para tonturas,
PENDÚCUNLO FLORAL A carne do fruto é indicada para: tônico nervoso,
(Parte comestível – faz bem para os rins e ao sistema circulatório.
carne do fruto)
O Cajueiro, Vida, Uso e Estórias, Pre. Ágio Augusto Moreira.

Relação com as africanidades

Dona Valda diz em depoimento “Não abro mão de minhas


ervas, raízes e folhas, foram ensinamentos que recebi de Deus, amo
minhas plantas”. Desta maneira sem ela mesmo perceber, mostra
sua relação com a cosmovisão africana, pelo uso do elemento vegetal.

Rezadeira Valda, 66 anos, de Comunidade Remanescente de Porteiras

Na imagem, Dona Valda aborda a relação cósmica africana.


Vejo que ela sem saber fala de filosofia africana, da energia ancestral
com o cosmo e a cura.
Maria Eliene Magalhães da Silva | 149

Segundo ela, esse cajueiro é sagrado, tem relação espiritual e


corporal, pois ele cura quase tudo e serve de alimento e sombra, um
verdadeiro Baobá de Porteiras.
Segundo dona Valda a doença do corpo se trata com ervas e
rezas.

Cajueiro do terreiro da rezadeira Valda Timóteo de Aguiar, de


Porteiras, lugar de descarrego

As rezadeiras cuidam em seus terreiros de suas plantas


medicinais, existe uma relação sagrada com o cultivo a energia e isso
é africano.

Os levantamentos etnomédicos realizados demonstram a forte


influência africana na medicina popular do Brasil, principalmente
no Norte, Nordeste e Sudeste do país. A manutenção da herança
africana em vários âmbitos socioculturais brasileiros é, antes de
tudo, uma forma de resistência de uma camada mestiça. (Almeida,
2011, p. 44)

A influência africana está fortemente percebida no ofício das


senhoras da reza nos quilombos de Caucaia e a esse fato chamo de
afroreza por compartilhar em sua prática marcadores africanos
como o uso do elemento vegetal na cura.

A missão de orunmila na terra usando de suas autoridades e


sapiência, é revelar conhecimentos e conceder alguns pequenos
poderes aos homens. A medicina vegetal é vista como um dom
divino. Quem segue e conhece os seus ensinamentos poderá curar
com plantas rituais os homens e mulheres doentes que chegarem
ao caminho. (Almeida, 2011, p. 47)

Essa missão, pude conhecer de perto num ritual chamado


‘Roda de Cura’, que foi celebrado na Comunidade Quilombola
Cercadão dos Discetas, em Caucaia, organizado e liderado pela
rezadeira Maria dos Prazeres, líder quilombola da citada comunidade.
150 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Na Roda se usavam ervas para benzeções e limpezas junto


com rezas e plantas medicinais. O orixá Ogum, considerado protetor
das matas, foi referenciado a todo momento durante o ritual. Assim
a medicina tradicional fica relacionada ao mundo espiritual.
Essa ligação com as plantas medicinais vem de seus
antepassados.

No quintal das residências, elas costumam cultivar plantas, dentre


elas árvores fritíferas como mamoeiros, goiabeiras, coqueiros, pés
de acerola, graviola, etc., além de plantas medicinais como mastruz,
pimenta, corama, santa, hortelã, pinhão roxo, e outros tipos. Com
galhinhos (ramos) destas plantas consideradas medicinais que elas
realizam parte do seu ritual de cura. ( Santos, 2007, p. 95)

Na oficina de capulana que ministrei, as rezadeiras


abordaram mesmo sem entender sua ligação com o corpo
ancestral. Sobre essa ligação, Eduardo Oliveira diz:

O corpo é chão! Esta é uma definição provisória e definitiva do


corpo.
O corpo é terra
O corpo é solo
O corpo é território. (Oliveira, 2007, P. 99)

As rezadeiras são guardiãs de muitas sabedorias, adquiridas


pela relação de iniciação com ensinamentos dos mais velhos
(senhoridade) para os mais novos e esses saberes sobre a medicina
tradicional da afroreza devem ser compartilhadas nas escolas
quilombolas ou regulares, pois existem rezadeiras em áreas urbanas
também.
Os saberes das rezadeiras poderão assim ser socializados
tanto em escolas como em posto de saúde, principalmente das
comunidades de difícil acesso, pois carecem de atendimentos
médicos.
Essa relação afroancestral traz a condição de olharmos para
trás para entendermos o que somos, não só pelas características,
Maria Eliene Magalhães da Silva | 151

mas pelo que usamos, sabemos e pela nossa herança familiar desde
a infância que possui vínculo com a África.

Retirado da internet.

Tornamo-nos sankofa, um pássaro que se movimenta para frente,


ao passo que mantém sua cabeça voltada para trás, num elo
inquebrável com a nossa história e a nossa linhagem, biológica
e/ou simbólica, a um só tempo comunitária e cósmica. (Petit, 2015,
P. 72)

Comentários Finais

Desde o começo deste artigo fica evidente a minha relação


com o tema abordado, as rezadeiras e o uso das plantas medicinal
devido minha ancestralidade e memória de infância.
Em seguida foco minha experiência com a pesquisa em
oficinas, fazendo um breve resumo acerca dos trabalhos, mas focado
no uso das plantas medicinais.
Para entender melhor, mostro muitas fotos desse percurso, na
verdade minha intensão é abordar e mostrar essa relação.
Em seguida, contextualizo citações de entrevistas com falas
acerca do tema do trabalho com algumas contribuições comentadas
e autores.
Nesse sentido, abordo a palavra, o uso das ervas, raízes, folhas,
flores e frutos através da religiosidade tem um sentido profundo de
152 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

irmandade junto a ação da rezadeira, pela preocupação com o bem


estar do outro através da cura, do respeito pelo outro em cuidar, com
isso, quem necessita da reza sabe que precisa da rezadeira para
cuidar da saúde espiritual e principalmente do corpo. Assim a
rezadeira através de sua religiosidade preocupa-se com o outro,
mesmo sabendo que não ganhará nada material, pois a reza é dada
gratuitamente.
Minha intensão é afirmar que o uso do marcador africano
“elemento da natureza” é de base africana, um aspecto da
cosmovisão africana citada pelo filosofo africano Hampaté Bâ
(1982).
Seguindo o raciocino afirmo essa relação com o ofício das
rezadeiras e a ancestralidade africana, suas afirmações em suas
práticas.

ANEXO

Caderno de Saberes e Sentimentos- forma de avaliação e compartilhamentos


de sentimentos através da escrita e desenho das rezadeiras,
elaborado pela autora
Maria Eliene Magalhães da Silva | 153

Referências

BÂ, HAMPATÈ AMADOU: A Tradição Viva. IN: KI Zerbo Joseph (org), História
Geral da África. Vol. 1 – Metodologia Pré-história. São Paulo, Ática/
UNESCO, 1982. (p. 181-218)

BARROS, José Pessoa e Eduardo Napoleão. Ewé Òrìsa: Uso Litúrgico e


Terapêutico dos Vegetais nas Casas de Candomblé Jêje-nagô. Rio de
janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 6ª edição, 2013.

BERNAT, Isaac, Encontros Com o Griot Soutigui Kouyaté: Rio de Janeiro:


Pallas, 2013

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola:


algumas informações. Câmara de Educação Básica do Conselho de
Educação (CNE) Brasília – DF, 2011.

GOMES, Pereira de Magalhães Núbia e PEREIRA, Edimilson de Almeida. Assim


se Benze em Minas Gerais – Um Estudo Sobre a Cura Através das
Palavras. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2004

LIMA, Heloisa Pires, Capulana: Um Pano Estampado de Histórias. São Paulo:


Ed. Scipione, 2014.

PETIT, Sandra Haydée SILVA, Geranilde Costa e. Pret@gogia: Referencial


teórico-metodológico para o ensino da história e cultura africana e
dos afrodescendentes. In: CUNHA Jr. Henrique, NUNES, Cícera e SILVA
Joselina da (orgs): Artefatos da Cultura Negra no Ceará. Fortaleza: Edições
UFC, 2011, p. 73-101.

ROSA, Alan. Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem. Rio de Janeiro:


Aeroplano, 2013.

SANTOS, Francimário Vito dos. "Rezadeiras: prática e reconhecimento social.


2004. 92f."Monografia (Bacharelado em Ciências Sociais)–Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Departamento de Ciências Sociais, Natal
(2004).

SILVA, Maria Eliene Magalhães da. ___N: PETIT Sandra H e SILVA, Geranilde
Costa e (orgs) Africanidades Caucaienses, Fortaleza, Edições UFC,
2013, p.137-155
154 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

______, Diretrizes Curriculares Nacionais Para Educação Das Relações


Étnico-Raciais e Para o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Brasília/ DF: MEC, SEPPIR, SECAD/10.639/03, outubro, 200

PETIT, Sandra e SILVA, Geranilde Costa. Memórias de Baobá. Fortaleza, Edições


UFC, 2012.

PETIT, Sandra Haydée, Pretagogia: Pertencimento, Corpo-Dança,


afroamcestral e Tradição Oral Africana Na Formação de Professoras
e professores- Contribuições do Legado Africano Para
Implementação da Lei nº 10.639/03. Fortaleza: Ed. UECE, 2015.

SILVA, Maria Eliene Magalhães, Cláudia Oliveira da Silva, Rafael Ferreira da Silva,
Maria Kellynia Farias Alves e Sandra Haydée Petit . Livro: Tudo Que Não
inventamos é Falso. Dispositivos Artísticos para Pesquisar Ensinar e
Aprender Com a Sociopoética. Adad, Sandra Haydée Petit, Iraci dos Santos,
e Jacques Gauthier (organizadores). Fortaleza: Ed. UECE, 2014. P. 103-123.

SILVA, Maria Eliene Magalhães; A Poética literária das Razadeiras: Aspectos


das Africanidades Nos Versos da Reza. (Artigo do COPENE - VIII
Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negro(as): Ações Afirmativas:
Cidadania e Relações AÉtnico-Raciais. Orgs: Wilma de Nazaré de Nicelma
Jocenila Brito Soares e Carlos Aldemir Farias da Silva. Belém, PA, Ed.
Livraria da Física, 2014, p. 277-278.

SILVA, Maria Eliene Magalhães; Cláudia de Oliveira da Silva e Rafael Ferreira da


Silva. Oralidade e Filosofia Tradicional Africana: Conceitos de
Hampaté Bâ e Influências Nas Africanidades Brasileiras. (Artigo do
livro: Filosofia e Cultura. Orgs: José Gerardo Vasconcelos, Bruna Germana
Nunes Mota e Cristiane Brundenburg). Fortaleza: Ed. UFC, 2014, p. 29-43.

SILVA, Maria Eliene Magalhães; Um Marco na Tragédia de Nossas Vidas:


Relato dos Desdobramentos do I Curso de Especialização para
Formação de Professores em Quilombo Cearense. Monografia -
Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE.

________Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Res.


Nº 8 de 2012. CNE. Brasília, 2012.
Maria Eliene Magalhães da Silva | 155

BÂ, HAMPATÈ AMADOU: A Tradição Viva. IN: KI Zerbo Joseph (org), História
Geral da África. Vol. 1 – Metodologia Pré-história. São Paulo, Ática/
UNESCO, 1982. (p. 181-218)

BARROS, José Pessoa e Eduardo Napoleão. Ewé Òrìsa: Uso Litúrgico e


Terapêutico dos Vegetais nas Casas de Candomblé Jêje-nagô. Rio de
janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 6ª edição, 2013.

BERNAT, Isaac, Encontros Com o Griot Soutigui Kouyaté: Rio de Janeiro:


Pallas, 2013

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola:


algumas informações. Câmara de Educação Básica do Conselho de
Educação (CNE) Brasília – DF, 2011.

GOMES, Pereira de Magalhães Núbia e PEREIRA, Edimilson de Almeida. Assim


se Benze em Minas Gerais – Um Estudo Sobre a Cura Através das
Palavras. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2004

LIMA, Heloisa Pires, Capulana: Um Pano Estampado de Histórias. São Paulo:


Ed. Scipione, 2014.

PETIT, Sandra Haydée SILVA, Geranilde Costa e. Pret@gogia: Referencial


teórico-metodológico para o ensino da história e cultura africana e
dos afrodescendentes. In: CUNHA Jr. Henrique, NUNES, Cícera e SILVA
Joselina da (orgs): Artefatos da Cultura Negra no Ceará. Fortaleza: Edições
UFC, 2011, p. 73-101.

ROSA, Alan. Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem. Rio de Janeiro:


Aeroplano, 2013.

SANTOS, Francimário Vito dos. "Rezadeiras: prática e reconhecimento social.


2004. 92f."Monografia (Bacharelado em Ciências Sociais)–Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Departamento de Ciências Sociais, Natal
(2004).

SILVA, Maria Eliene Magalhães da. ___N: PETIT Sandra H e SILVA, Geranilde
Costa e (orgs) Africanidades Caucaienses, Fortaleza, Edições UFC,
2013, p.137-155
Capítulo 8

Quilombos:
Educação, resgate tradicional, patrimônio,
espaço e territorialidade

Jair Delfino
Henrique Cunha Junior

Introdução

A origem étnica da sociedade afrodescendente se confunde


com tradições de povos bantu, yorubás, sudaneses todos como
sabemos sequestrados do continente africano através do escravismo
criminoso para o Brasil. A questão que nos remete a este passado
tem enfoque direto na herança de uma tradição através da
especificidade de uma ancestralidade cíclica, ou seja, que se renova
com coletividade sem se traduzir com perdas para tradição dos
nossos costumes e filosofia de vida.
Não há como negar que com os passados anos perdemos
muito da tradição ancestral, mas também é de suma importância
lembrar-nos de como esta tradição vem se mantendo e o quanto
podemos aprender com ela e como ela é importante na instituição
de conhecimentos no meio educacional.
O passado trágico provocado pelo escravismo criminoso nos
remete as diversas formas de resistência contra o extermínio de uma
raça e sua tradição, podemos atribuir a como tipos de resistências as
irmandades do rosário, dos homens pretos, os candomblés, os
158 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

movimentos sociais atuais e as comunidades remanescentes


quilombolas e quilombolas.
Neste trabalho pretendemos discutir a questão da
atemporalidade dentro das comunidades Quilombolas bem como a
questões que envolvem a situação dos territórios e espaços distintos
Quilombolas, também discutiremos a importância da coletividade
frente ao hibridismo cultural, traduções e por fim as questões que
envolvem o patrimônio cultural.
O objetivo deste artigo é destacar as situações que abrange os
quilombos que não são abordadas dentro das escolas, vista a sua
importância social e histórica.

Atemporalidade nas Comunidades Quilombolas

As comunidades quilombolas têm contribuído em muito para


compreendermos a nossa herança da tradição africana as mesmas
tem feito um grande trabalho para manter a sua importância no
pertencimento e identidade do seu povo é desta forma que podemos
chamar este legado de atemporalidade sendo que o seu significado
se faz na busca de entender como algo que é sempre presente na
tradição de forma cíclica vem se adaptando no tempo e espaço, ou
seja, passando a mesma informação sem perder seus valores e
princípios.
O registro de memória é uma marca determinante na vida de
cada quilombola, pois a mesma está presente na cultura oral na
filosofia local bem como nos costumes é neste contexto é que
podemos falar de aspectos voltados a vivências e lembranças da
tradição que não é local e sim herdada através da tradição
afrodescendente. Coube a nos falarmos que dentro deste panorama
sempre o educador ao divagar sobre a questão quilombola deverá se
lembrar de que não basta um olhar crítico de fora para dentro para
entender a comunidade e sim o mesmo elencar a importância do
olhar crítico de dentro para fora, ou seja, de quem está de dentro da
comunidade para fora, este tipo de posicionamento crítico faz com
Alex Ratts | 159

que possamos entender a importância da comunidade para quem


está dentro e desta maneira se dar o devido reconhecimento e
respeito em nível de igualdade.
Acerca da oralidade presente nas comunidades podemos dizer
que a oralidade é a transmissão do saber de boca a ouvido que
também acontece através de uma tradição de povos ancestrais
africanos. O seu significado nos chega através das religiões de matriz
africana, costumes e tradições do povo e abarca conhecimentos da
cultura africana no Brasil.

A tradição negro-africana transmite o essencial. “É um sistema de


auto-interpretação”. Através da tradição oral, a sociedade explica-
se a si mesma... A história falada dos africanos se aproxima de uma
verdade ontológica, ou mais exatamente, ela fixa o olhar do
homem nas questões ontológicas ignoradas pela história científica
das sociedades europeias. (Ziégler, 1971, p.163.)

O contexto literário que abrange a oralidade é exercido com


especificidade na construção do saber coletivo e pode ser plural nas
expressões, afim do aprendiz cognir todo o entendimento e
aprendizado. Dentro da pratica da oralidade é necessário que haja o
entendimento primeiramente, que consequentemente através do
ouvir, praticar, interiorizar, externizar e eternizar com o meio
humano e natural de contato, acontecerá o que chamamos de
aprendizado real. Os meios para que haja a absorção do
conhecimento acontece através da pratica do oralizar e para isto o
mais velho que guarda a tradição oral transmite os conhecimentos
de seus ancestrais através de atividades didáticas que podem ser
provérbios, adivinhas, fórmulas didáticas, histórias etiológicas que
explicam o porquê das coisas, propondo sempre a interações e
interpretações através do raciocínio lógico e jogos e se traduzem
através das práticas em experiências didáticas.
No Brasil a tradição oral está presente com maior força na
comunicação, costumes e hábitos dentro dos terreiros de
Candomblé e as comunidades quilombolas a exemplo da sua força
160 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

encontramos a expressão da mesma; nos diálogos, hábitos, palavras,


gestos e tradições que persistem na nossa sociedade como forma de
resistência de uma cultura tão rica e pouco explorada dentro das
escolas.

A escola está a desgastar este ensinamento tradicional. As novas


ideias recebidas da Europa não deixam desenvolver no negro
“desclanizado” está literatura tradicional oral. No entanto, ela
continua espalhada pela população rural. Se não surge quem
continue, recolha e guarde o tesouro da sabedoria negra,
acumulada durante milênios, há perigo de há perder, pois;
conserva-se, apenas em alguns homens que brevemente vão
desaparecer para sempre (ALTUNA, 1985, p. 38).

A questão que envolve a situação da oralidade


afrodescendente de não ser contemplada como trabalho pedagógico
dentro das escolas, está atrelada a sistematização da metodologia de
ensino escolar ao despreparo do corpo docente da não preocupação
das instituições de formação com a temática que envolve a afro-
descendência em relação a valorização da sua cultura, tradição como
resgate para aqueles que buscam sua identidade e para aqueles que
a desconhecem como instituição do sentimento de nação de cada
brasileiro.
É dentro do contexto que abrange a identidade e memória
cultural que esta a importância da oralidade que tem grande
importância para a história do nosso povo a mesma nos é herdada
através dos mitos existentes dentro de algumas comunidades de
remanescentes quilombolas15, quilombolas 16e o seu resgate se
torna importante como seguiremos explicando abaixo.

15
A chamada comunidade remanescente de quilombo é uma categoria social relativamente recente,
representa uma força social relevante no meio rural brasileiro, dando nova tradução àquilo que era
conhecido como comunidades negras rurais (mais ao centro, sul e sudeste do país) e terras de preto
(mais ao norte e nordeste), que também começa a penetrar ao meio urbano, dando nova tradução a
um leque variado de situações que vão desde antigas comunidades negras rurais atingidas pela
expansão dos perímetros urbanos até bairros no entorno dos terreiros de candomblé.
16
São grupos sociais cuja identidade étnica – ou seja, ancestralidade comum, formas de organização
política e social, elementos linguísticos, religiosos e culturais – os distingue do restante da sociedade.
Alex Ratts | 161

A comunicação entre os povos de matriz africana e


afrodescendentes sempre foi oral como princípio filosófico embora
exista um grande corpo literário escrito a mesma se faz presente na
cultura e tradição africana no Brasil e o legado desta africanidade
não poderia ter vindo e permanecido no nosso país senão através da
oralidade africana, ou seja, também dos mitos como parte da nossa
tradição.
Os mitos podem ser as narrativas dos fatos reais como
também fatos da subjetividade, mas por de trás deles sempre há o
objetivo de transmitir o conhecimento de natureza cosmológica, de
tradições antigas, de tipo religioso e as relações com o Deus e a
Criação.
Quando o mito trata a subjetividade na tradição africana o
mesmo serve para explicar coisas que a ciência não havia explicado
fatos ligados a ritos, danças, orações e de alguma maneira explicar
o que é desconhecido pelo homem ou até mesmo revelar um
enigma.
O mito dentro da tradição africana e afrodescendente não é a
mentira contada e sim a forma cognitiva de relatar conhecimentos.
É através dos mitos que se formam as parábolas, adivinhas, versos,
contos e poemas dentro da cultura africana é também através do
mesmo que oralmente se passa o conhecimento coletivo para se
incitar o entendimento lógico para dele se suprir das informações
que ajudará na apreensão dos conhecimentos.
Mito é a forma de dar continuidade ao conhecimento e detêm
toda base do filosofar onde sobrevive como alma de um povo que
enxerga e vive nele a essência do bem viver. É a continuidade e ao
mesmo momento o testemunho através do que se repete de tempos
em tempos chamada ciclicidade da vida. De acordo com Vansina
(2010, p.14) o mito na tradição oral “pode ser definido, de fato, como
um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para

São comunidades que desenvolveram processos de resistência para manter e reproduzir seu modo de
vida característico em um determinado lugar.
162 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

outra” (VANSINA, 2010, p. 140).“Igba Kan nlo, Igba kan nbo. Ojo
nbori ojo, Ero iwaju nlo, Ero eyin ntele. Um tempo está partindo.
Outro está chegando. Um dia vai e outro vem; os da frente (os
anciões) estão indo. Os de trás (os Jovens) os estão seguindo. ”
É importante dizer que no panteão africano existem a
exemplo de mitos os cosmogônicos sendo estes os que relatam a
origem das coisas, os mitos genealógicos que explicam a árvore
genealógica do criador bem como a árvore genealógica da
humanidade, os mitos cosmológicos que detalha a lógica por detrás
da criação como uma fundamentação dos fatos acontecidos, os mitos
etiológicos já citados anteriormente, mitos soteriológicos de heróis
e salvadores que classificam a função dos Orixás (divindades
cultuadas no panteão africano, Brasil e em Cuba) e os mitos
fundadores sendo estes os que explicam a origem de uma crença, de
um rito, de uma cidade ou comunidade. Neste contexto percebemos
que os mitos sempre estarão relacionados com o divino, a criação e
o homem e sua tradição.
As características do mito na tradição africana e
afrodescendente não se fazem somente explicativa, mas também
simbólica, o mito retrata também a crença e suas particularidades e
também como tudo vem se adaptando e estruturando através do
tempo e espaço, por meio dos princípios apresentados também nos
mitos estão contidos a argumentação lógica ou a dedução reflexiva
e lógica como especificidade filosófica do pensar, desta forma o mito
se tornou uma forma de registro com objetivo e subjetividade.
O Mito, lendas e parábolas na sociedade africana é a simulação
criativa que agrega todos os valores, assimilações, princípios de um
povo, podem aparecer como o relato e assimilação frente aos
mistérios ou enigmas ontológicos com a intenção de relatar a
linguagem lógica em virtude dos costumes e tradição de uma
sociedade ou um povo é também a representação da origem que
conecta o ser humano ao que chamamos de subjetivo que pode ser
interpretado através dos fenômenos chamados de naturais
materiais e imateriais do nosso pertencimento de maneira que o
Alex Ratts | 163

metafísico e o físico nunca estão separados dentro da diáspora


africana.
Nas comunidades remanescentes quilombolas e de quilombos
os mitos são as histórias e lendas contadas pelos mais velhos,
quando se referem por exemplo como a mudança da lua pode
interferir no que se planta, no que se colhe e até mesmo na
parturiente e no nascituro.

E devemos entender mito no sentido que lhe dá Eliade (1992), ao


dizer que ele é o relato de uma verdade sagrada, ou seja, de um
evento primordial ocorrido no início do tempo, do que se passou
aborigine. Seus personagens são deuses ou heróis não humanos,
cuja gesta é um mistério que o homem não poderia conhecer se
fosse revelado. Então, contar o mito é fundar a verdade absoluta
através da revelação do mistério. (MARTINS, 2012, p.38).

Outro fator importante é que com a atemporalidade nasce à


coletividade através dos costumes e a subsistência depende também
da ação coletiva, daí é que poderemos dimensionar o tamanho da
importância coletiva nos grupos sociais bem como para a educação
que prepara o educando para a sociedade.
Discorrendo a respeito do povo afro-brasileiro fora das
comunidades quilombolas sobre o seu direito de pertencimento e
identidade, temos os descendentes que não conhecem a tradição, a
cultura e os saberes africanos no contexto geral conhecimentos que
lhe foram tirados no período colonial, e que até hoje não é analisado
como conceito de valor, ou seja, como forma axiológica na estrutura
pedagógica de ensino, dentro da escola laica. O corpo do saber é a
sistematização didática que ainda não se integrou das diversidades
da nossa cultura e tradições quilombolas de forma que o negro e o
afrodescendente no Brasil bem como todas as raças brasileiras
possam reconhecer também sua importância, identidade e
pertencimento através da escola com autovalorização e igualdade.
Os dados abaixo nos mostram que entre pretos e pardos, os pardos
são a maioria, o que nos leva a crer que a identidade do negro no
164 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Brasil é equivocada quando se autodenominam não negro ou não


preto; por vez, seria uma forma de no mínimo se autodenominarem
mestiços. A questão em foco deixa dúvidas, existe a raça parda ou
até mesma a cor parda?

No Brasil através do sistema de Pesquisa Nacional por Amostra de


Domicílio (Pnad 2013), a nossa população é de 201,5 milhões de
pessoas, sendo 48,6% de homens e 51,4% de mulheres. Somos
autodeclarados: 46,3% brancos; 8% pretos; 45% pardos e 0,8%
amarelos ou indígenas; pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE 2013).

Não é culpa do povo afro-brasileiro, ter um título


preconceituoso e errôneo de mestiço, que por décadas vem sendo
usado para diminuí-lo dentro de uma cultura eurocentrista e que
hoje ainda mostra seus resquícios e preponderância nas formas de
se autodeclarar no seu grupo étnico. Chama a atenção o fato das
escolas terem dificuldades de implementar no currículo das práticas
e competências a identidade e o pertencimento afro-brasileiro
dentro das escolas.
As escolas brasileiras encontram dificuldades mesmo diante
da Lei 10.639/03, que faz obrigatório e cria meios através, do
Conselho Nacional de Educação, o ensino de história e cultura afro
brasileira, africana e indígena, em todas as escolas públicas,
particulares de ensino fundamental e médio, estas não discorrem
com profundidade nos conhecimentos da oralidade acerca da
necessidade que se faz pela identidade e pertencimento prioritário
nos planos de aula para o aprendizado sobre este legado do nosso
povo. É através do viés da identidade que o afro-brasileiro e indígena
encontra seu pertencimento, que poderá acontecer através das
experiências didáticas vividas nas tradições e costumes ajudara
resgatar através do simbólico e pedagógico o que irá classificar o
cidadão socialmente dentro das relações humanas.

Identidade é de fato algo implícito em qualquer representação que


fazemos de nós mesmos. Na prática é aquilo que nos lembramos.
Alex Ratts | 165

A representação determina a definição que nos damos e o lugar


que ocupamos dentro de um certo sistema de relações. O idem
latino faz referência à igualdade ou estabilidade das
representações, possibilitadas pela ordem simbólica e pela
linguagem, mas também à unidade do sujeito consigo mesmo. A
consciência, enquanto forma simbolicamente determinada, é lugar
de identidade (SODRÉ, p 35).

A oralidade africana presente na tradição quilombola no


Brasil muito tem a contribuir para oralidade dentro das escolas, por
que traz para o educando a sua diversidade e resgata o seu
pertencimento social e cultural entendo que as formas de cognição
conduzem ao caminho do aprendizado epistêmico, ou seja; o
desenvolvimento natural da pessoa. A oralidade é ao mesmo tempo,
conhecimentos, ciência natural, iniciação, à arte, história,
divertimento e recreação, uma vez que todo por menor nos permite
remontar à unidade primordial (Bâ, 2010, p. 169). Por meio desta
oralidade do nosso pertencimento através da nossa herança
ancestral de cultura tradição e genética é que podemos encontrar a
identidade perdida para que haja uma relação social de igualdade
privilegiando através desta a relação coletiva e individual de cada
um.

A identidade individual e coletiva tem suas bases ou pontos de


referência em conhecimentos vividos pessoalmente e em
ensinamentos, na tradição em grupo, etc. Esses itens são
encontrados na memória. É ela que guarda as diretrizes de
organização e de aceitação de um grupo social. (OLIVEIRA, p.69).

A escola ainda é o lugar onde o professor trabalha e divulga as


normas de saberes universais sistematizados que devem respeitar
as diversidades, ou seja, a pluralidade de culturas. Bernard Charlot
(2013) no seu livro “Da Relação com o Saber às Práticas Educativas”
diz que a educação trabalha com três dimensões indissociáveis onde
a educação é um triplo processo: de humanização, de socialização,
de subjetivação/singularização. Neste aspecto a oralidade respeita a
166 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

singularidade do ser humano e acrescenta na instrução a


homonização para o educando ser parte do coletivo, face à reflexão
de que o coletivo é a própria identidade pessoal de cada um, e esta
identidade, é o seu espelho, entende-se, portanto, que se não houver
a luz para refletir no espelho, não poderemos se ver.
Em virtude do resgate do nosso pertencimento e identidade
podemos dizer que este fator envolve o fortalecimento do
sentimento de nação, pois o mesmo se opõe ao hibridismo cultural
e eurocêntrico da mesma forma que se deste fossemos vítimas
seriamos um povo a ser traduzido futuramente e jaz os valores da
identidade para nossa sociedade. As tradições a serem resgatas
através tradições africanas de resistência nos favorece com o poder
da coletividade para que não sejamos esquecidos dentro da nossa
própria nação que a cada dia que passa tenta ser hibrida sem ao
menos valorizar a sua própria cultura onde corre riscos das gerações
futuras não ter mais identidade e pertencimento.

Patrimônio Quilombola

É de suma importância à questão do patrimônio que envolve


a tradição quilombola. Os bens culturais de natureza imaterial dizem
respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se
manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações;
formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas e nos
lugares, tais como mercados, feiras e santuários que abrigam
práticas culturais coletivas.
É nas questões sobre o patrimônio que encontramos a
identidade coletiva e a mesma irá ajudar a formar a identidade
individual de cada um. Toda questão do patrimônio está
dimensionada na temática que envolve o espaço-tempo como dois
fatores inseparáveis por que dependem um do outro para tradição
se fundamentalmente se explicar nas suas relações com o meio que
se vive (local e tudo que ele oferece) bem como a sua cronologia
como fator marcante preponderante da força da Tradição.
Alex Ratts | 167

O espaço-tempo ligará a identidade de cada um a sua


atemporalidade, ou melhor, a sua ancestralidade que como dita
anteriormente está na história oral (mitos). Como irá se formar essa
identidade também é de suma importância, pois esta pode estar
ligada as especificidades desenvolvidas numa tal comunidade
quilombola e por meio desta podemos dizer que a mesma poderá
ser a exemplo da criatividade ou criação local, até mesmo muitas
vezes por adaptação, a porta de entrada como exemplo para tipos de
artes desenvolvidos especificamente somente naquela comunidade.
A sociedade formal daquela região bem como todos os tipos
de especificidades de uma comunidade ou costumes seja de jovens e
adultos podem atender aos princípios de ideologia local, mais do que
isto pode ser o que mantêm costumes. Os costumes de um povo é
todo o suporte para que se possa manter o patrimônio intacto e vivo
dentro de um povo e a exemplo do que os costumes significam
poderemos chama-lo de grupo patrimonial ou o mesmo o exemplo
de força da coletividade na ação que matem a sua tradição e os seus
valores correndo nas veias.

No grupo patrimonial, mesclam-se elementos reais e fictícios, estes


últimos inventados segundo a lógica das conveniências.
Simbolizações, mitologias, racionalizações genealógicas
concorrem para o imaginário coletivo do grupo patrimonial,
(SODRÉ, 1999, p.108).

O Patrimônio é o referencial social de uma dada comunidade


por conta de sua especificidade daquele grupo desta forma se detêm
a força da tradição que resiste como marcador cultural de identidade
e pertencimento fortalecendo a tradição e a muticulturalidade
afrodescendente.

Territórios e Espaços distintos

Esta questão vem de encontro com situações que envolvem


diretamente os quilombos bem como os quilombolas e os
168 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

remanescentes quilombolas que estão lutando pelas suas terras para


manter a sua própria subsistência. É importante para campo da
história e geografia elencar toda diversidade que envolve a questão
dos territórios e espaços distintos dentro da educação afim de
entendermos como os afrodescendentes vem se adaptando e
fazendo a diferença para nossa história frente suas dificuldades.
Toda esta questão que envolve territórios e espaços distintos
pode compreender vários tipos de atividades nas quais
encontraremos direta ligação com a especificidade local.
Podemos chamar de especificidade local a habilidade que se
desenvolve para se difundir certo tipo de economia de subsistência,
para tanto podemos encontrar fatores geológicos e climáticos que
exigem certa adaptação da comunidade.
As especificidades que exigem cada região diretamente irá
facilitar todo trabalho coletivo e para tanto os quilombolas bem
como os remanescentes quilombolas procuram sempre manter o
seu meio ambiente limpo e bem cuidado, uma fator importante
nesta questão é que alguns quilombos que lutaram por
reconhecimento que tem o seu subsustento através da terra são
fiscalizados pelo INCRA17 e são fiscalizadores quanto à exigência de
preservação a fim de manter a economia sustentável através do
meio ambiente, pois os mesmos retiram sua economia de
subsistência com o contato direto com a natureza somente não
entram neste contexto os quilombos urbanos que alguns hoje em
dia já se alto denominam como comunidades urbanas.
As questões que envolvem as regularizações de terras para os
quilombolas são de extrema importância, pois permite que tal

17
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) é uma autarquia federal da
Administração Pública brasileira. O Instituto foi criado pelo Decreto nº 1.110, de 9 de julho de 1970,
com a missão prioritária de realizar a reforma agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais
e administrar as terras públicas da União. Está implantado em todo o território nacional por meio de
30 Superintendências Regionais. O objetivo é implantar modelos compatíveis com as potencialidades
e biomas de cada região do País e fomentar a integração espacial dos projetos. Outra tarefa importante
no trabalho da autarquia é o equacionamento do passivo ambiental existente, a recuperação da
infraestrutura e o desenvolvimento sustentável dos mais de oito mil assentamentos existentes no País.
Alex Ratts | 169

território ou espaço distinto se torne não de propriedade coletiva e


sim de sua preservação de patrimônio e tradição, também se tornou
uma forma de lutar contra a especulação imobiliária e contra
empresas que hoje procuram as suas terras para plantio que
contaminam o solo e o lençol freático com agrotóxicos. Por este viés
percebemos o quanto é importante os remanescentes quilombolas
bem como o s quilombos para o equilíbrio natural da natureza.
Quanto à questão dos territórios e espaços distintos ocupados
podemos dizer que as comunidades quilombolas e remanescentes
quilombolas ocupam regiões distintas e podemos dizer que elas se
subdividem em litorâneas, onde se desenvolve a atividade artesanal
pesqueira no mar e no mangue e por conta da especulação
imobiliária se encontra com o equilíbrio ecológico ameaçado, um
exemplo é a comunidade do Cumbe (CE), temos comunidades que
ocupam a região das serras onde se desenvolvem a agricultura
extensiva (café, cana, milho e mandioca) e as comunidades que
ocupam o sertão ou semiárido onde se desenvolve a pecuária
somente de subsistência que se dividem em pecuária de corte,
indústria do couro e da carne seca.

Conclusão

Sabemos que um país plural de culturas não deve somente


atender a um único modelo pedagógico, em nosso caso o modelo
europeu de ensino, mas um padrão próprio que privilegie a
coletividade dos saberes que cria caminhos pedagógicos com o fim
também de evitar a evasão escolar bem como a falta de identidade e
pertencimento de cada um. Reconhecemos que existiu e ainda
existem barreiras para apreensão do conhecimento advindo da
cultura africana, pois falta familiaridade suficiente com os legados
das tradições dos povos africanos na nossa população afro-
brasileira. Em visita a esta dificuldade, precisamos conhecer nossas
pluralidades através de uma ciência da educação que busca
sustentação resgatando contexto axiológico, ou seja, os conceitos de
170 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

valores pertinentes ao legado omitido aos afrodescendentes na


construção histórica (social, cultural, econômica, e política). Ante o
exposto, se verifica hoje em dia a necessidade de resgatarmos a
cosmovisão africana pelo viés da oralidade, e para reafirmar valores
e princípios da cultura de base africana, instituindo assim na base
educativa o interesse pelo pluralismo cultural e pelo ser humano
como parte do coletivo, ou seja, como parte de um só corpo
sistêmico.

Referências

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Alex Ratts | 171

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Interministerial. Contribuições para Implementação da Lei 10639/2003:
Proposta de Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – Lei 10639/2003. Brasília,
2008. Disponível
em:http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/contribuicoes.pdf.
Capítulo 9

Parentes, conhecidos e estranhos:


Relações interétnicas e quilombos18

Alex Ratts

Introdução

Este texto consiste numa aproximação da temática dos


quilombos com a questão das relações raciais, sendo ainda, no meu
caso particular, uma retomada de indagações suscitadas ao longo de,
pelo menos, oito anos de contato com os moradores de Conceição
dos Caetano, localizada no município de Tururu, e vários de seus
parentes que residem em Fortaleza e/ou em outros agrupamentos
negros rurais, como Água Preta, no mesmo município e as
comunidades de Lagoa do Ramo e Goiabeiras, situadas em Aquiraz.
O fato de abranger núcleos de migrantes na cidade parte do
pressuposto de que a identidade de um indivíduo ou de um grupo é
multilocalizada e dispersa (MARCUS, 1991).

18
A primeira versão deste artigo é uma comunicação apresentada no Grupo de Trabalho “Relações
Raciais e Etnicidade” do XXIII Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação,
em Caxambu, em outubro de 1999 e que está disponível online. O texto compôs parte da tese de
doutorado em Antropologia apresentada na Universidade de São Paulo (RATTS, 2001). Mantive a
comunicação apenas com revisões formais. O retorno recente ao Ceará que incluiu visitas a Conceição
dos Caetano, o contato com parte da militância negra e quilombola e a (re)aproximação com
pesquisadores(as), alguns e algumas dos quais são oriundos do movimento social, me animaram a
republicá-lo agora. É o texto de um militante e antropólogo, com formação em Geografia, em processo
de amadurecimento.
174 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Trago uma breve releitura de artigos, teses e livros sobre


“comunidades negras rurais” e quilombos, a partir daquilo que
apontam ou mesmo abordam sobre relações raciais ou interétnicas.
Destaco artigos e reportagens que citam Conceição dos Caetano
dentre vinte anos de visibilidade dessa localidade no cenário
regional, desde o final dos anos 1970. Por fim, procuro discutir os
aspectos que esse caso me permite generalizar, tendo em vista a
situação de outros agrupamentos negros rurais contatados. Não
tratarei do reconhecimento de “remanescentes de quilombos”, nem
das questões diretamente fundiárias.

Quilombo, relações raciais e interétnicas

Pensando no tema relações raciais e etnicidade me coloquei


uma pergunta inicial: é possível falar em problemática racial com
referência aos quilombos? Essa indagação se diferencia, em parte,
da identificação de fronteiras étnicas, procedimento necessário que
tem sido utilizado na caracterização de “comunidades negras rurais”
enquanto grupos distintos e, mais especificamente, como
“remanescentes de comunidades de quilombos” (O’DWYER, 1995).
Como formular e buscar respostas para o vínculo entre relações
raciais e interétnicas e quilombos? Que posturas da parte de
quilombolas ou da população regional podem ser consideradas
“anti-racismo” ou “racismo”?
O contato com Conceição dos Caetano e outros agrupamentos
que estão na rede de parentesco dos membros deste grupo tornou-
se campo profícuo para essas indagações. Algumas dessas questões
podem ser parcialmente encontradas em diversos artigos e livros
que tratam de “bairros rurais de negros”, “comunidades negras
rurais”, “terras de preto”, “remanescentes de quilombos” ou
simplesmente “quilombos”.
Em artigo que se inclui na recente produção sobre quilombos,
Alfredo Wagner Berno de Almeida (1998) ressalta como “a
objetivação do dado étnico em movimento social configura uma
Alex Ratts | 175

singularidade que contribui para redimensionar os conflitos


agrários e o próprio processo de luta pela terra” no caso da luta de
índios, camponeses e “comunidades negras rurais” (p.20). O autor
alerta que, no caso da atual emergência dos quilombos, fronteiras
étnicas e classificações raciais não são necessariamente coincidentes,
o que é percebido, por exemplo, quando indivíduos publicamente
não reconhecidos como negros participam das mobilizações
quilombolas (p. 22-23).
Em artigo anterior, o mesmo autor (ALMEIDA, 1997)
evidenciou uma observação semelhante: constatou um processo de
afirmação étnica na atual “emergência” dos “remanescentes de
quilombos” que “não se atém necessariamente a critérios mais óbvios
ditados por rituais religiosos, por elementos linguísticos, por
características raciais (...) ou ainda por itens de cultura material”
(p.124).
Essa observação pode ser tomada como um pressuposto: não
cabe fazer uma mera aplicação de teorias raciais elaboradas a partir
de e para o espaço urbano, para o caso dos quilombos e das zonas
rurais. Tal questão nem sempre foi posta pelos estudiosos do
quilombo. O próprio fenômeno e o termo correspondente se
reconfiguram na mobilização política (ALMEIDA, 1996).
Os autores que discorreram sobre quilombos até meados dos
anos 1970, os trataram basicamente enquanto fenômenos do
passado. Por outro lado, a caracterização do quilombo enquanto
experiência coletiva de africanos e seus descendentes, ou seja,
negros, parecia ser bastante nítida. Adianto que ao citar Edison
Carneiro, Roger Bastide e Clóvis Moura em ordem cronológica, não
sigo totalmente a crítica de Flávio dos Santos Gomes (apoiada em
João José Reis) que inclui os dois primeiros autores entre os
“culturalistas” e o terceiro enquanto “materialista”, por enfatizar o
aspecto político da ação dos quilombolas (GOMES, 1995).
No capítulo “Singularidade dos Quilombos”, Edison Carneiro
aborda esses agrupamentos enquanto “ajuntamentos de escravos
fugidos” ocorridos por todo o país, fenômeno coletivo de massa,
176 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

sendo, no entanto, datado, relacionado aos períodos de maior


acirramento do sistema escravista. Para Carneiro, os quilombos
foram obra de africanos, enquanto que os “negros crioulos” teriam
optado por estratégias revoltosas. O que cabe reter da interpretação
desse autor é afirmação de que o quilombo “não tinha caráter
agressivo”: “os quilombolas viviam em paz, numa espécie de
fraternidade racial. Havia nos quilombos, uma população
heterogênea, de que participavam em maioria os negros, mas que
contava também mulatos e índios” (CARNEIRO, 1988, p.18).
Além de considerar os quilombos como “lugares tranquilos”,
o autor considera o que tais agrupamentos contribuíram para a
“nacionalização” dos africanos escravizados: “embora, em geral
contra a sociedade que oprimira os seus componentes, o quilombo
aceitava muito dessa sociedade e foi, sem dúvida, um passo
importante para a nacionalização da massa escrava. ” (CARNEIRO,
1988, p.25).
Clóvis Moura, redireciona sua interpretação concluindo que
os quilombos, formados por “negros fugidos”, constituíam uma
“forma fundamental de resistência” que existiu em toda extensão
da “sociedade escravista”. A expressão “luta dos quilombolas” marca
a primeira edição do seu livro mais conhecido, principalmente no
tocante a associação dos quilombos com revoltas (MOURA, 1981, p.
69). A partir da segunda edição de “Rebeliões da Senzala”, o autor
incluiu uma referência aos agrupamentos negros de Caiana e Serra
do Talhado no Estado da Paraíba, com base em matérias
jornalísticas contemporâneas (MOURA, 1981, p. 231-233).
Roger Bastide em um capítulo curto, e por demais categórico,
também considera os quilombos como um fenômeno protagonizado
por africanos, ainda que em certas regiões do país contasse com a
presença de índios e alguns brancos (BASTIDE, 1970, p. 136). A
oposição negros X brancos permeia todo o seu texto, em expressões
como “civilização branca”, “cultura dos brancos”, “repúblicas
negras”, “ódio comum aos senhores brancos”. Essas oposições se
destacam mesmo quando o autor discorre acerca da ambiguidade
Alex Ratts | 177

dessa relação, como no caso dos quilombos de Minas Gerais


(BASTIDE, 1970, p. 133-134).
As divergências na interpretação dos quilombos reaparecem
nos textos recentes. À semelhança de Edison Carneiro, João José Reis
identifica para os quilombolas um projeto coletivo, de viver “entre
os seus” parentes e aliados: “isolados ou integrados, dados à
predação ou à produção, o objetivo da maioria dos quilombolas não
era demolir a escravidão, mas sobreviver, e até viver bem, em suas
fronteiras” (REIS, 1996, p. 19).
Flávio Gomes, em obra acima citada, trata dos quilombos não
como “comunidades ‘marginalizadas’”, mas enquanto componentes
ativos da sociedade escravista, existentes por todo o Brasil, que
“procuraram, na medida do possível, transformar os limites da
sociedade escravista” e “enquanto sujeitos históricos, os
quilombolas recriaram um mundo novo dentro dos vários mundos
da escravidão” (GOMES, 1995, p.36).
Na sua noção de “campo negro” – “uma complexa rede social
permeada por aspectos multifacetados que envolveu, em
determinadas regiões do Brasil, inúmeros movimentos sociais e
práticas econômicas com interesses diversos” – destacam-se os
quilombolas na complexa interação entre de “comunidades de
fugitivos, cativos nas plantações e até nas áreas urbanas vizinhas,
libertos, lavradores, fazendeiros, autoridades policiais e outros
tantos sujeitos históricos” (GOMES, 1995, p. 63).

Parentes, conhecidos e estranhos

Voltemos a Conceição dos Caetano. Segundo a tradição oral


do grupo, a origem da localidade é narrada, com algumas versões, a
partir da trajetória de Caetano José da Costa, que, sendo “morador”
de um fazendeiro, se desentendera com este último acerca do acesso
à água numa propriedade e prometera para si mesmo adquirir suas
próprias terras para viver “em sossego com a família”. Trabalhando
em fazendas da região de Uruburetama e Itapipoca, provavelmente
178 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

em plantações de algodão, Caetano conseguiu adquirir as terras de


Conceição em 1884, data obtida em escritura encontrada na
localidade.
Caetano também residira no agrupamento negro de
Escondido ou Pedregulho que possuía vínculos com outros núcleos
de negros na região como Varjota, localidade dada como não mais
existente, e Água Preta, agrupamento situado em Tururu, a cerca de
20 km de Conceição, originário do final do século XIX ou início do
século XX. O Escondido, segundo a memória de um dos mais idosos
dos Caetano, filho do fundador de Água Preta, seria anterior às secas
de 1877-79 e 1888-89 e à “libertação dos escravos”.
O que se pode reter ainda mais das narrativas de origem de
Conceição, é que Caetano não era escravizado à época da aquisição
do terreno. Cabe assinalar que a partir de 25 de março de 1884,
oficialmente, a escravidão estava abolida no Ceará. Segundo vários
de seus descendentes, Caetano e Maria Madalena da Paz, sua esposa,
teriam chegado ao lugar com filhos e alguns primos.
Para entender a conformação da auto-imagem (CAIUBY
NOVAES, 1993) dos Caetano é necessário, ainda, remeter a outra
narrativa que leva à época da Guerra do Paraguai, quando Caetano
teria casado com Madalena, aos 19 anos, para escapar deste conflito.
O recrutamento forçado de jovens – notoriamente negros e solteiros
– foi comum em todo o Ceará e parece ter marcado a região onde
está situada Conceição. Uma localidade limítrofe de Conceição é
denominada de Paraguá, sendo numa versão dessa narrativa um
reduto de fugitivos do recrutamento.
Os primeiros Caetano, segundo se conta, tinham preferência
pelo casamento intra-étnico, o que era seguido com bastante rigidez
e acontecia entre os moradores de Escondido, Varjota, Conceição e
Água Preta. Na memória coletiva do grupo, e por uma série de
inferências possíveis de fazer, esses primeiros habitantes do lugar
não eram isolados, apesar de viverem em um território
relativamente exclusivo. Havia contato com “pessoas de fora” por
ocasião da venda de farinha, feijão e milho no mercado de
Alex Ratts | 179

Uruburetama, em festas religiosas católicas nessa cidade e em


Itapipoca, na compra de víveres em Fortaleza (quando das longas
estiagens), e nas viagens para os agrupamentos negros de
Goiabeiras e Lagoa do Ramo e para a região amazônica, onde
existem núcleos de Caetano migrantes.
É na rememoração desses longos primeiros tempos que os
Caetano enfatizam aspectos que compõem sua auto-imagem. Ser
Caetano é ser, antes de tudo, descendente de mulheres e homens
altivos e auto-determinados, é casar “na família” e viver entre os
parentes, ainda que não exclusivamente, é ser negro e também
católico. A própria adição do termo Caetano ao topônimo Conceição
ilustra essa auto-representação.
Segundo o Caetano, houve uma primeira experiência de
convivência com brancos nas terras de Conceição por volta dos anos
1950, que teria se encerrado quando esses “moradores” a quem foi
cedida residência, migraram à época da seca de 1958 à semelhança
de vários Caetano. Dos relatos orais depreende-se que, juntamente
com os moradores de Água Preta, distante cerca de 18 km, os
moradores de Conceição, na primeira metade do século XX, podem
ser considerados como constituintes de um território negro,
praticamente exclusivo.
No entanto, o casamento com “gente de fora”, ou seja, com
não negros, é indicado pelos Caetano mais idosos como tendo se
iniciado ainda entre os filhos do casal fundador. O casamento
racialmente misto é visto pelos Caetano mais idosos como uma
“mudança dos tempos” à qual tiveram que se adaptar forçosamente.
Para os nascidos em Conceição que residem em Fortaleza ou
Goiabeiras, manteve-se em geral o mesmo hábito de casar com
parentes, ainda que alguns jovens não o façam. O desejo de manter
a “origem”, ou seja, uma família negra, vem de longa data e
compõem um dos principais aspectos da auto-imagem dos Caetano.
É enquanto “comunidade negra” que Conceição ficou conhecida no
cenário regional e nacional.
180 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Idelfonso, 59 anos, que nasceu no local, residiu em Goiabeiras


e se estabeleceu em Fortaleza, indica como esse hábito era mantido
igualmente em Goiabeiras e Lagoa do Ramo:

Mais em família mesmo. Mais era na Conceição. Na Conceição,


parece que o negócio era mais rígido. Mas depois, foi
desmoronando. Aí começaram... Quer dizer, esses casamentos
nunca eram de gosto dos pais. Mas, aí, você sabe, quando a moça
quer, não tem conversa, não. O cara não aceita de gosto, mas aceita
contra a vontade. Não pode fazer nada (...). E agora é tudo
misturado (...).
Mas aqui, [em Goiabeiras] os mais velhos também aqui, eram do
mesmo jeito, também, como você vê. Mas tudo é na família. Mas
depois, as coisas também foram mudando do mesmo jeito. Que as
coisas vai evoluindo, evoluindo, evoluindo. Aí, vão se modificando.
E você não pode prender. Achando bom ou não, tem que
acompanhar (...).
[Casavam na família] eu acho, que era pra ter assim, uma coisa
assim, um sangue puro. Sabe? A família real, que só quer que seja
tudo [entre si]. Entonce era exatamente isso, era os reis preto, que
queria que tudo fosse puro. É o que eu penso, devia ser isso o que
eles queriam. Só que não puderam segurar o tempo todo. Que por
sinal, eu acho assim um negócio até bacana! Quer dizer, que eu
não tenho nada com as outras cores. Mas eu gosto muito da minha.
Que se fosse, se fosse pra me pintar, fosse fazer com a minhas
mãos, pintava da mesma corzinha. Porque eu gosto, eu gosto
mesmo. Tanto é, que até as pessoas com quem eu me casei, sempre
só procurei pra me casar mesmo, só aquela pessoa, exatamente,
que se identificasse comigo. (Entrevista. Goiabeiras, Aquiraz,
janeiro, 1999)

Goiabeiras é uma localidade composta de dois grupos: os


descendentes de Raimundo Nonato da Costa, avô de Idelfonso, e
aqueles que descendem de Delfino Pereira da Costa. Os dois grupos se
consideram aparentados, e de fato, há casamentos que os interligam,
no entanto, são unidades distintas na relação de apropriação da terra,
tem narrativas que são muito particulares a cada grupo.
Alex Ratts | 181

A partir dos relatos dos membros do grupo percebe-se que a


introdução de “gente de fora” nas terras de Conceição foi paulatina
e cresceu na década de 80. Alguns moravam em áreas limítrofes ou
próximas às terras dos Caetano. É preciso detalhar os diversos
segmentos dessa “gente de fora”. Há aqueles que casaram com
Caetano, que, na expressão corrente no grupo, “casaram na família”.
Outros têm uma relação de compadrio e participam das atividades
locais na capela e nas frentes de serviço. Com uma parte desses que
residem em Conceição há indicações de agressões raciais que são
difíceis de captar mesmo para um pesquisador “conhecido” e
militante do movimento negro porque dizem respeito à privacidade
dos casais mistos. Os poucos casos que me são relatados são feitos
em termos de segredo ou não incluem os nomes dos envolvidos.
Quanto à “gente de fora” que realmente reside em outras
áreas da região, posso destacar os políticos locais, como prefeito e
vereadores, e membros da igreja católica, como padres e religiosas.
Esses são conhecidos dos Caetanos, o que não quer dizer que não
haja em relação a eles um confronto racial latente. Um dos padres
que celebrava na capela local não esteve presente na “Festa do
Zumbi” por várias vezes e comenta-se que ele dizia “que se falava
muito contra o racismo nessa festa” e que, na verdade, “não gostava
mesmo da festa do Zumbi”. A denominação de estranhos tanto pode
ser utilizada para esses segmentos da população regional, quanto
para muitos dos que residem em Conceição que continuam sendo
denominados de “gente de fora”.
Maria Caetano, conhecida como Bibil, que é a principal
liderança do grupo, reflete sobre a dificuldade de constituir um
grupo do movimento negro entre os parentes e relata um dos casos
de discussão com uma “pessoa de fora”, mais precisamente um
comerciante que reside em Conceição:

Na consciência negra, nós já tentamos muitas vezes ver se formava


um grupo aqui, mas quanto mais dia passa, mais longe o pessoal
fica. Porque eles vão se acostumando com muita conversa sobre o
Grupo de União e Consciência Negra, sobre a liberdade, sobre a
182 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

discriminação, aí eles acha que é besteira [formar um grupo]. Em


vez deles ficarem mais fortes pra se organizar, não, fica mais longe.
E aqui não tem jeito de nós formar um grupo, não, de união e
consciência negra, não. (...)
Por que, inda ontem, uma pessoa de fora, disse assim: “Bibil, pra
que esse negócio dessa missa do dia 20, porque? Eu não sei pra
que essa arrumação de Missa do Zumbi, de negro? Por que o
pessoal não faz também comemoração com os branco?.” Eu disse
assim: ‘Ó, [fulano], qualquer um pode fazer sua comemoração.
Essa comemoração que nós faz sobre a causa do negro e, não é só
do negro, não, é do branco também. Tanto faz o negro como o
branco. Quem era escravo não era só o negro não.
E aí, eu vou dizer pra você: se o (...) entendesse, o senhor ficava
assim pensando. Porque há cem anos atrás o negro não tinha
direito de participar da igreja, o negro não tinha direito de ser um
padre, uma negra não tinha direito de ser uma freira, o negro não
tinha o direito de ser um presidente, o negro não tinha direito de
ser um advogado. E com a descoberta e com a luta do movimento,
aí, a igreja está aceitando, a sociedade tá aceitando. Então, a gente
faz essa comemoração, explica pro pessoal pra eles ter uma
consciênciazinha do que eles é.’
Aí, quando eu terminei de explicar pra ele, ele disse: ‘você tem razão,
eu não posso dizer mais nada’. Porque ele disse que o Nelson
Mandela lutou, eles dizem que ele lutou 300 anos (sic) pra conseguir
a liberdade dele e, agora, não conseguiu? Aí, ele disse que, nesse caso,
ele não pode dizer mais nada, tem que lutar mesmo. Eu achei
importante ele dizer isso. Quando ele disse que não precisava dessa
comemoração, que eu dei uma explicação pra ele, aí ele entendeu
que tinha que fazer mesmo. Tem que ser com luta.
Aí, a mulher dele completou que ‘aqui na comunidade o pessoal não
sabia o que era consciência, não sabia o que era branco, não sabia de
nada.’ E com essas reuniões que a gente vem se reunindo e
discutindo sobre os seus direito, muitos não se reúne, mas já tão
entendendo o que é a sua liberdade, o que é consciência, o que é ter
compromisso. Porque todo trabalho que a gente faz tem que ter um
compromisso. (Entrevista. Conceição dos Caetano, julho, 1994.)

Em sua fala, Bibil sintetiza uma versão da história dos negros no


Brasil à qual ela sempre se refere: que no período escravista não eram
apenas os negros que eram escravizados. Os trabalhos a esse respeito
Alex Ratts | 183

no Ceará aludem a escravizados mestiços com várias denominações


como “alvarentos”, “acaboclados” ou “cabra” (RIEDEL, 1988).
O termo “preto” é pouco utilizado como auto-designação na
localidade. Quanto ao termo “negro” há dois contextos de aposição.
À semelhança de outros agrupamentos negros rurais no Ceará
falava-se em “os negros de Conceição”, como também nos “negros
de Goiabeiras”. A extensão mais ampla de “negro(a)(s)” se verifica
na identidade de “comunidade negra”, e em expressões correlatas
como “consciência negra” advinda do referido contato com o
movimento negro 19.
Dessa interação os Caetano se apropriaram de um repertório
de narrativas ligadas à África, ao tráfico negreiro e ao Quilombo dos
Palmares (RATTS, 1996). O momento em que os Caetano colocam em
evidência sua auto-imagem enquanto “comunidade negra” ocorre na
Festa do Zumbi, Dia Nacional da Consciência Negra, realizada em
meio à festa da padroeira Nossa Senhora das Graças, em novembro.
Para esse evento acorrem moradores de Água Preta, parentes dos
Caetanos e militantes do movimento negro de Fortaleza.
Militantes do movimento negro são referidos como
conhecidos e é quase óbvia a referência a essa aproximação da parte
dos Caetanos, mesmo que nem todos dentre os primeiros sejam
negros. Alguns pesquisadores que realizaram trabalho de campo são
oriundos do movimento negro e podem ser incluídos entre os
“conhecidos”. É esse o meu caso. É necessário informar que a minha
participação enquanto militante do movimento negro prioriza o
mapeamento e a articulação regional dos quilombos.
Racismo e preconceito são temas comuns entre os Caetano.
Pode-se imaginar que esses assuntos se consolidaram no contato
com o movimento negro urbano, mas as experiências de confronto

19
A primeira entidade negra a estabelecer uma convivência com Conceição dos Caetano foi o Grupo
de União e Consciência Negra. Desse contato vem a expressão “consciência negra” como sinônimo de
movimento negro. Posteriormente passaram pela localidade diversos membros dos Agentes de
Pastoral Negros. Mais recentemente diversos militantes do movimento negro, entre os quais me
incluo, organizaram o PAN – Projeto Agrupamentos Negros (1996-1998).
184 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

racial no meio rural e na cidade são referidas como anteriores à


interação com militantes. Aqueles que residem em Conceição e são
denominados como “estranhos”, “gente de fora” ou “brancos” se
encontram alguns mestiços cujo fenótipo remete à imagem do
“caboclo”. Os estranhos são referidos em parte pela cor distinta da
dos Caetanos e também por não serem aparentados com estes.
As referências à cor variam, no caso dos negros, em termos
de gradação: da “cor mais fechada” à “cor mais aberta”. Em se
tratando dos filhos de casamentos mistos, a referência mais direta é
que são Caetano. Vários desses jovens e adolescentes se identificam
como negros. Os Caetano combinam então, na categoria parentes, a
referência à “marca” – a cor, o cabelo – e à “origem”- a ascendência
negra para usar os termos de Oracy Nogueira (1985).

Comunidades negras rurais, parentesco, relações raciais e


interétnicas

A correspondência dos “negros” e “brancos” com outras


categorias diferenciais como “pessoas de dentro” e “gente de fora”,
“parentes” e “estranhos” foi evidenciada em diversos trabalhos
publicados ou desenvolvidos na década de 1980. Luiz Eduardo
Soares, mesmo tendo por foco aos conflitos enfrentado pelo
campesinato maranhense, ressalta a composição étnica dos
moradores de Bom Jesus e a oposição “morenos” (como
correspondente a “negros” e “pretos”) versus “cearenses” (termo
atribuído a “chegantes” ou “caboclos”) e “alvos” (“brancos”). Para o
autor há, na interação entre os moradores de Bom Jesus e população
regional, o reconhecimento das divisões sociais. A auto-identificação
como negros se sobrepõe positivamente frente aos estigmas de
“pobres” e “preguiçosos”, idéias veiculadas por fazendeiros e
agentes estatais (SOARES, 1981, p. 142-151).
Mari de Nasaré Baiocchi, na pesquisa sobre Cedro, em Goiás,
discorre sobre a distinção que os moradores locais estabelecem
entre “preto de Cedro” (“negro diferente”), “preto de fora” (“negro
Alex Ratts | 185

como outro qualquer”) e “branco”. A auto-identificação como


“preto”, ou de “negro diferente” aparece combinada com a posse da
terra, relação que é caracterizada pela autora como “dominância do
econômico sobre o fenótipo”. Sobre os nativos de Cedro pesam
“estereótipos e preconceitos” semelhantes àqueles apostos aos
moradores de Bom Jesus (BAIOCCHI, 1983, p. 143-146).
É no plano do estigma que Renato Queiroz situa os
depoimentos captados entre moradores de Eldorado, que travam
relações com a população de Ivaporunduva, definida pelo autor
como “caipira” e “negra”. Nesse agrupamento, situado no Vale do
Ribeira em São Paulo, Queiroz considera que a cor é “critério de
mútua identificação, fator de integração mais profunda e de
solidariedade maior entre seus componentes, fonte de identidade do
bairro” (QUEIROZ, 1983, p. 31).
Ana Maria Monteiro, em sua monografia sobre Castainho,
Garanhuns – PE, identifica a oposição entre negros (a maioria da
localidade) e brancos (população regional). Nesse ponto a autora
enuncia a existência de “atitudes preconceituosas, noções
estereotipadas, entraves discriminatórios, que ‘fabricam’ uma imagem
de Castainho diferente da realidade, levando o grupo a se sentir
divergente, passando a ter comportamento diferente ou específico”
(MONTEIRO, 1985, p. 83-84). Nesse último aspecto o grupo de
Castainho ao procurar casamentos mistos e práticas católicas estaria
agindo “de maneira a se ajustar às expectativas dos brancos” (p. 84).
É com Maria de Lourdes Bandeira (1988) que a oposição
negros X brancos aparece de maneira frontal, tanto no espaço
quanto no tempo, e referida aos estudos de relações raciais. No
“retorno dos brancos” à cidade de Vila Bela dos Pretos, Mato Grosso,
Bandeira assinala que “a experiência da discriminação racial e social
tem sido dolorosa e confusa na violência com que atinge os
membros pobres da comunidade” que constituiu o lugar enquanto
“território negro” (p. 263). A oposição parentes X não parentes
também foi encontrada em Vila Bela. A autora aponta ainda que em
meio à convivência em diversos espaços públicos, “os brancos
186 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

porém tendem a recusar o convívio com os pretos e criar um meio


no espaço social negro” numa nítida estratégia de “separação” e
“segregação” (p. 304-305).
Para o caso que nos interessa aqui cabe reter que Maria de
Lourdes Bandeira enfatiza que é a “origem racial” e não a cor que
agrega os moradores de Vila Bela que se autodefinem como “pretos”.
Há contradições no texto da autora quando esta afirma que “na
esfera econômica das relações sociais, a raça não incide na projeção
horizontal das classes” (BANDEIRA, 1988, p. 304-305). Segundos
seus próprios dados, existe uma separação espacial entre grupos
negros e brancos (mesmo diferenciados economicamente entre si e
internamente), está sendo, então, uma “projeção horizontal” de
suma importância para a constituição da coletividade negra e das
suas relações com os “outros”.
Em sua tese de doutorado, e dando continuidade a uma
pesquisa iniciada nos anos 1970, Neusa Gusmão aborda a localidade
de Campinho da Independência em Paraty, Rio de Janeiro, a partir
do ponto de vista das dimensões políticas da cultura negra no meio
rural. A autora retoma o duplo estigma de “caipiras” e “negros”
(enunciado por Renato Queiroz, acima citado) na relação dos
moradores de Campinho com a população regional (GUSMÃO,
1990, p.171-179). A autora e seus entrevistados falam em
preconceito, sendo que um dos moradores da localidade aponta os
negros em geral como os primeiros homens do campo. Essa
“consciência histórica” dos moradores de Campinho em muito se
aproxima da associação entre memória coletiva e narrativas
adotadas pelos Caetano, compondo também uma “história”.

Conceição dos Caetano, pesquisadores e repórteres

Retornemos ao caso de Conceição, para perceber como a


visibilidade regional da localidade interferiu na auto-imagem dos
Caetano. Oswaldo Riedel (1988) escreve um capítulo sobre o local,
intitulado, de forma emblemática, “Cisto Racial Negro no Ceará”, e
Alex Ratts | 187

denomina Caetano e os primeiros ocupantes de “pseudo-


quilombolas”, posto que nem a topografia nem a historiografia
cearense assinalavam condições para a existência de quilombos no
Ceará. O autor continua, caracterizando o intuito de Caetano como
um projeto de “segregação racial” baseado no “preconceito de cor”,
propósito que ele considera dissolvido após alguns casamentos
mistos e a introdução do rádio, da escola e da televisão.
Geraldo Nobre (1991) segue em direção contrária e apresenta
a “República Negra dos Caetanos” que seria “ainda em 1965 um
agrupamento exclusivo de cerca de 1200 descendentes de africanos,
crioulos, sem mestiçagem” como uma das provas da existência de
quilombos no Ceará (p. 134).
Peter Fry e Carlos Vogt (1996) estiveram na localidade em 1979
e a descreveram como uma comunidade organizada, com cerca de
400 pessoas, proprietárias das terras que cultivavam, cujos
casamentos que tendiam a ser endogâmicos, pois “são poucos os laços
de parentescos com a sociedade envolvente” (VOGT & FRY, 1996, p.
212). Esses autores compararam Conceição dos Caetano com a
comunidade do Cafundó, acerca da qual realizaram pesquisa. Para
Vogt & Fry, enquanto no Cafundó a “negritude” é metafórica,
manifestada na “língua”, em Conceição: “essa ‘negritude’ tem um
pronunciamento absolutamente direto, sendo uma forma
característica a preservação através da regra de endogamia.” (p. 213).
Seja através de estigmas (Riedel), de uma supervalorização
(Nobre) ou de uma descrição mais cuidadosa (Vogt e Fry), os
Caetano de Conceição foram considerados como um grupo coeso e
portador de uma auto-imagem definida.
Ainda em relação ao contato com pesquisadores um fato
marcou a memória dos Caetano. Por volta de 1978, um grupo de
professores e alunos dos cursos de Ciências Sociais e Comunicação
Social da Universidade Federal do Ceará esteve na localidade
realizando o filme “Conceição dos Caetanos: um suposto reduto de
escravos”. Pode-se perceber na película a aposição do termo
“Caetanos” ao nome da localidade denotando um dos aspectos da
188 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

identidade do grupo. Além disso, havia entre os membros do grupo


universitário a suposição de que o local poderia ser um reduto de
escravizados fugitivos.
Sobre imagens do local, uma voz em off explica que os Caetanos
não se referiam à escravidão. Os realizadores do filme, então, levam a
cabo um plano alternativo (ou anterior) de tentar estimular a
memória de membros do grupo negro fazendo-os usar instrumentos
de suplício do período escravista. Se os Caetanos, como perceberam
os pesquisadores, não se referiam diretamente ao período escravista
– como fui constatar anos depois – era porque não se consideravam
descendentes de escravizados e sim de pessoas livres.
Em vez de estimular rememorações, as filmagens – sem
serem vistas pelos Caetanos depois de editadas – fomentaram ainda
mais a auto-imagem do grupo e seu silêncio acerca da escravidão.
Confundidos posteriormente com repórteres, esses pesquisadores,
antes mesmo do contato dos Caetanos com o movimento negro,
forneceram elementos para o grupo negro que passou a ser mais
seletivo com representantes das mídias impressa e televisiva.
Em reportagem de maio de 1981, Nonato Albuquerque aborda
a miscigenação e outras transformações verificadas na localidade:
“Em Conceição dos Caetanos o negro se distancia de suas raízes”
(Fortaleza, Jornal “O Povo”, 24.05.91). O repórter define o local
como tendo “90 anos de existência” e sendo “constituído quase que
exclusivamente por negros descendentes de escravos africanos”. Em
seu texto estão presentes o casamento entre primos, os problemas
com as secas, a falta de atendimento por parte dos políticos locais e
regionais, a introdução da TV e a afirmação de que no lugar não
existia “preconceito de cor”.
Em 1988, Conceição dos Caetano aparece na revista “Isto É”,
citada por Beatriz Nascimento, historiadora e militante do
movimento negro. A matéria inclui outros “resíduos de
quilombolas” como Isidoro (no Sul da Bahia) que seriam
“comunidades negras que, no lugar dos antigos quilombos,
permaneceram fiéis, depois da abolição, em 1888, aos rituais e aos
Alex Ratts | 189

meios de sobrevivência de seus ancestrais escravos fugidos”. Há


também a reportagem intitulada “Preto no branco: história da
escravidão começa a ser reescrita” (São Paulo, Isto é, 20.04.88) de
autoria de Marília Martins.
Numa longa seqüência de reportagens, realizadas em geral
por ocasião das datas de 13 de maio e 20 de novembro, reaparece
uma expressão que não se coaduna com a auto-representação dos
Caetano: aquela de “descendentes de escravos”. Em 1998, Paulo
Mota, um repórter cearense escrevendo matéria de capa para a
Folha de São Paulo (“Vilarejo rejeita união com brancos”.
05/04/1998), caracterizou o grupo de forma que ele também não se
vê: afirmando que “o patriarca do clã é ex-escravo Caetano José da
Costa”; e que a localidade é “uma comunidade negra que vive como
uma tribo endogâmica”, “assemelhando-se a um gueto étnico”.
Sendo o agrupamento negro rural mais visível no Estado do
Ceará, Conceição dos Caetanos influencia a visibilidade de outras
“comunidades negras” rurais e até mesmo do núcleos de migrantes,
que têm acesso a maior parte das reportagens. A relação entre
parentes e estranhos ficou marcada por essa frontalidade entre os
Caetanos e os “repórteres” ou “pesquisadores”. Praticamente não há
mediação entre os “repórteres” e os moradores pois, para os
Caetanos, aqueles “chegam de manhã e saem à tarde”, ou seja, pouco
se demoram para estabelecer um contato mais íntimo e denso.
Carlos Vogt e Peter Fry (1996) perceberam as implicações da
“descoberta” do Cafundó pelo movimento negro, pelos pesquisadores
e pela imprensa, em termos de propiciar a veiculação de ideologias e de
imagens estereotipadas. Essa “descoberta”, continuamente prolongada
no caso de Conceição dos Caetanos, à semelhança do Cafundó, “tece o
processo multiplicador de outras identidades”. (p. 36).

Conclusões e outras conexões

Cerca de vinte anos de visibilidade - entrevistas, fotografias,


vídeos, visitas, reportagens, pesquisas - sobrecarregam a localidade
190 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

de toda sorte de equívocos quando se trata de atribuir identidades.


O processo de se auto-identificar como negro e comunidade negra
levou os Caetano à ressignificação (ao menos parcial) das relações
sociais/raciais que experimentam e provocou o surgimento ou
acirramento de divergências internas. É nessa interação local e
demorada ou distanciada e eventual entre parentes, conhecidos e
estranhos que podemos chegar a algumas conclusões e conexões
(mais que generalizações) tendo em vista outros agrupamentos
negros no Ceará e, talvez, no sertão nordestino, mais precisamente
no espaço algodeiro-pecuário, onde uma historiografia tradicional
aponta a ínfima participação da mão-de-obra escravizada e a quase
inexistência de quilombos.
Em Conceição dos Caetanos e, mais precisamente, nos
agrupamentos urbanos contatados onde residem alguns Caetano
(Comunidade do Trilho e Jardim Iracema em Fortaleza, e Goiabeiras
em Aquiraz) a fronteira racial e étnica é demarcada e combina-se à
existência de uma auto-imagem positiva. A essa conjunção tem se
acrescentado o discurso antiracista oriundo do contato com o
movimento negro urbano. Mas a identidade negra não é somente
ideológica, enquanto composta relações políticas e econômicas como
afirma Kabengele Munanga (1990): a memória, enquanto
elaboração de um passado comum, passa a compor a identidade
negra (p. 113). É assim que os Caetano de Conceição adotam a figura
de Zumbi e fragmentos narrativos referentes a África, tráfico
negreiro e escravidão e os acrescentam criativamente às narrativas
do passado do grupo. Repetindo uma expressão popular que os
Caetano utilizam, esses temas “ficaram na história”.
Tanto em Conceição, quanto nos outros agrupamentos
referidos, às categorias de parente e estranho (ou não parente) se
sobrepõem aquelas de negros e brancos, o que coloca limites para o
mito da “democracia racial” com “ênfase na miscigenação, tida como
indicadora de tolerância racial” e com “apologia da mestiçagem”
(HASENBALG, 1996). Os Caetanos, tendo se adaptado à “mistura”
com reservas, não parecem veicular qualquer apologia à
Alex Ratts | 191

mestiçagem. Antes, demonstram admiração com o curso dessa


transformação. Em Goiabeiras acontece o mesmo.
Observo, entre os Caetanos: 1. uma experiência do racismo no
campo e na cidade, vivida por conta das migrações; 2. uma discussão
acerca de preconceito, racismo e discriminação, advinda do contato
com diversas mídias; 3. a formação de um discurso e uma postura
anti-racista oriundos, mas não somente, da interação com militantes
do movimento negro. O background da auto-imagem (e da
memória), modificada ao longo do tempo e das relações vividas é
“matéria-prima” para a adoção de uma identidade negra.
A intricada relação entre fontes escritas (de ordens diversas)
e fontes orais, que influenciam na configuração de identidades
raciais e étnicas, está por merecer maior reflexão. Mais que fazer a
exegese de categorias nativas, é possível observar em coletividades
que desenvolveram um modo de vida, quais são os enunciados e as
atitudes dos segmentos que interagem ao longo de mais de um
século. E este é o caso de grande parte dos “remanescentes de
quilombos”. Os quilombos, experiência coletiva dos descendentes de
africanos nas Américas (que contaram no passado, e contam
atualmente, com a presença de outros componentes étnicos da
população brasileira) podem ser propícios para a revisão das
relações raciais: há lugares onde nem tudo é ou está tão misturado
como a ideologia da mestiçagem propaga através de diversas vozes.

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Capítulo 10

Um olhar sobre a comunidade Bastiões (CE):


Das relações conflituosas as manifestações
cultuais e tradicionais

Samia Paula dos Santos Silva


Joselina da Silva

Introdução

Bastiões, distrito rural do município de Iracema, está


localizada no sudeste do estado do Ceará, no médio Jaguaribe.
Situada em uma região serrana o distrito é cercado por uma vasta
área verde, com vegetação predominante de Caatinga.
O Distrito desenvolve atividades de agricultura de subsistência
como o cultivo de milho, feijão e fava. Para tanto é utilizando o sistema
de meia, onde o dono da terra cede espaço para os agricultores
plantarem e recebem uma parte da produção. Outra atividade
desenvolvida na comunidade é o artesanato que é popularmente
chamado por “tela”, que são posteriormente vendidos e trabalhados
em outras comunidades, dando origens a diversos materiais de uso
cotidiano, como cortinas, toalhas de mesas e roupas.
A comunidade que tem como marca histórica, a resistência das
famílias negras, passou por conflitos intensos relacionados ao seu
reconhecimento, pelo estado brasileiro, como remanescente de
quilombos, fato que dividiu opiniões de moradores e criou um clima de
tensão, dificultando fortemente a construção da identidade quilombola.
196 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Nesse contexto, entendemos que o reconhecimento e valorização da


cultura afrocearense no seu próprio território sofre direta influência
dos diferentes modos de educação (escolar e não escolar) que são
responsáveis pela formação da personalidade do cidadão.
A dinâmica que o sujeito estabelece, quando se apropria dos
componentes de um determinado contexto social, interfere no
processo de construção de sua identidade e, sobretudo, lhe oferece a
possibilidade de autoconhecimento do seu grupo étnico/racial e de
outros grupos, que existem no seu meio social. Por conseguinte,
para entender o processo de formação de uma identidade negra,
precisamos observar a sociedade e as condições políticas/sociais e
históricas, nas quais esses sujeitos estão inseridos (GOMES, 2012).
Observamos que uma sociedade preconceituosa tem
influência determinante sobre a vida e a colocação social da pessoa
negra, e as diferentes formas de discriminar o negro (através da
negação cultural, da ridicularização através de piadas e
“brincadeiras”, nas representações inferiorizadas ou mesmo no
racismo aberto, etc.) objetiva minar as possibilidades de uma
identificação cultural do negro com sua própria cultura.
Como descendente desta comunidade narro alguns fatos
cotidianos vividos por mim e por minha família no território de nossas
origens. Do mesmo modo em que alguns dos moradores falam de suas
vivências e convivências nesse espaço, entre estes alguns jovens que
rememoram suas lembranças de infância, afim de mostrar como
funciona a organização social e os valores culturais e tradicionais da
comunidade Bastiões. Em síntese, nosso trabalho representa um
esforço de contribuir com a reflexão e a exposição de dados acerca da
realidade dessa comunidade negra, que resiste culturalmente
mantendo firmada sua identidade quilombola particular.
Para a realização deste trabalho, utilizamos como
metodologia, pesquisa bibliográfica com a utilização dos autores que
versam sobre a temática identidade negra. Como referencial teórico,
nos fundamentamos em autores como: Bezerra(1999),
Bezerra(2012),Mananga(2005), dentre outros. Bem como
Samia Paula dos Santos Silva; Joselina da Silva | 197

entrevistamos oito residentes da comunidade entre jovens e idosos.


Os primeiros foram escolhidos por desenvolverem na localidade
atividades relacionada a cultura e educação, os segundos por sua
participação na vida social do local estudado.

Bastiões: itinerários culturais a partir das minhas convivências

Considerando as necessidades do povo deste lugar, de suas


tradições e falando mais sobre o cotidiano, ao passo que alguns
costumes se modernizaram, outros ficaram mais fortes e presentes
na nossa cultura e em nossas tradições; observo que, dependendo
da época do ano, a forma de diversão dos jovens muda, assim como
a comida típica, o trabalho do roçado. A diversão é intercalada entre
banhos de riachos e cachoeiras nos meses chuvosos; as festas
juninas, a comemoração da tradicional festa da padroeira no meio
no primeiro semestre; e durante o restante do tempo, de forma
criativa, os jovens tentam sair da monotonia, reúnem-se na
pracinha, jogam futebol, fazem teatro de rua e ficam conectados à
internet sempre que podem.
Privilegiado com um clima bastante agradável, com
temperatura amena na maior parte do ano e frio durante os
períodos chuvosos, nos tornamos ainda mais criativos quando se
trata de aproveitá-lo. Em um ponto alto que fica acima da
comunidade de onde se tem uma vista privilegiada, denominamos
de Santo Cruzeiro, costuma-se fazer piqueniques. Consideramos
que é um ponto turístico do lugar, não há quem o visite e não tire
uma fotografia. Outro lugar bastante visitado por jovens no período
chuvoso é uma bica d’água na descida da serra.
Da serra vê-se o Vale do Rio Jaguaribe, e a comunidade rural
como foi dito anteriormente, pratica a agricultura de subsistência,
utilizando para isso o “sistema de meia”, que se realiza da seguinte
maneira: o proprietário da terra disponibiliza uma parte da mesma
para o arrendatário plantar e “cuidar” (limpar o terreno e deixá-lo
198 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

pronto para o plantio), na colheita os arrendatários precisam deixar


uma parte da produção para o proprietário.
O dia de quem trabalha nos roçados começa bem cedo, logo
de madrugada os trabalhadores, mulheres, homens, jovens e idosos
já estão de pé. As mulheres que além de trabalhar na roça também
são donas de casa precisam deixar tudo organizado para que as
crianças possam ir à escola. Por volta das quatro horas da manhã
elas iniciam a caminhada com destino ao trabalho. Se na casa há
muitos filhos, algumas mulheres são escolhidas para permanecerem
em casa e realizarem os afazeres domésticos. Práticas que
atravessaram gerações como observamos na fala da presidente da
associação dos afrodescendentes. “Quando eu era jovem eu não ia
para o raçado. Minha mãe ia pra roça e eu ficava em casa, fazia as
lutas de casa. Pilava milho, pilava arroz, moía, cozinhava feijão.
Fazia tudo da lida de casa”. (Z A, 2015)
A caminhada é longa, a maioria dos roçados é distante da
comunidade. Vestidos com camisas de mangas longas, calças jeans,
botas, e chapeis nas cabeças, para se protegerem do sol e dos
espinhos, eles seguem caminhando, carregando no corpo o bornó
(uma espécie de bolsa grande, feita de panos resistentes como o
jeans) por entre as matas, superando os espinhos e se equilibrando
nos desníveis presentes nos terrenos irregulares. Dentro dos
bornós, está alguns utensílios que auxiliaram os trabalhadores na
atividade como as sementes, os fósforos, o facão. Lá também são
carregadas duas garrafas, uma com água e outra com café, uma
merenda, o fumo e o papel para o cigarro, também, não podem
faltar. Nas mãos carregam outros instrumentos de trabalhos como
a enxada e a foice, importante dentre outras coisas para limpar o
mato que cresce em meio às plantações.
Chegando ao destino, procuram um lugar na sombra para
prender o jumento, e outro com uma distância razoável para deixar
o bornó com os utensílios para o consumo dos trabalhadores.
Durante as horas de trabalho pesado, eles dão pequenas pausas,
para isso aproximam-se do espaço onde haviam deixado a bolsa com
Samia Paula dos Santos Silva; Joselina da Silva | 199

os alimentos e objetos. Os intervalos são rápidos, porém regados de


muitas conversas, cafezinhos e tragadas em cigarros de palha.
A volta para casa acontece por volta das treze e quatorze horas
da tarde, com o sol em seu horário mais quente. No período da
colheita, o retorno para casa torna-se mais difícil ainda, pois, além
do cansaço físico resultante do trabalho pesado e do forte sol, os
trabalhadores precisam carregar sacas de feijão e milhos na cabeça,
pois o animal não consegue carregar tudo. Um jovem morador da
comunidade faz a descrição desse retorno para casa.

Aqui quando nós vinha do roçado, quando chegava debaixo desse


pé de mangueira era minha felicidade. Eu vinha do roçado dali,
vinha varado de fome, suor na cara e o sol quente pegando fogo.
Quando chegava naquela cancela eu renovava minhas forças,
corria e vinha comer manga aqui debaixo. (RM, 2015).

Como já relatamos o trabalho da agricultura de subsistência


da serra é realizado a partir do sistema de meia, em que o
proprietário da terra fica com uma parte da colheita e os agricultores
com a outra. A divisão da colheita na comunidade, Bastiões acontece
de duas formas diferentes de acordo com o produto produzido. No
caso do milho a cada três carreiras plantadas os donos da terra ficam
com uma carreira, nesse caso os proprietários têm que pagar
funcionários para colher seu produto, pois, agricultores só têm a
obrigação de colher a própria parte.
Em relação à divisão do feijão entre os agricultores e os
proprietários das terras é feita através da contagem de quilos: a cada
três quilos colhidos, um quilo é destinado ao dono da terra. Para ser
feita essa contagem os agricultores precisam colher toda a produção
nos pés dos legumes, e na volta da colheita levar tudo até ao
proprietário, assim, será feita a pesagem e a divisão.
Além de todo esse trabalho em alguns momentos surgem
problemas que dificultam ainda mais a vida dos agricultores da
comunidade, como nos períodos em que as plantações são invadidas
por pragas. Nessas ocasiões os moradores, mesmo que de forma
200 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

individual, porém organizada, conseguem combater as pragas


denominadas por eles de cascudos, usam venenos próprios para as
plantações de feijão. Esse material utilizado no combate às pragas
precisa ser comprado em outros municípios, pois, a comunidade não
está preparada para esse acontecimento. São dificuldades que sendo
superadas podem reter nas lembranças tempos bons ou maus como
a escassez de água
Outro problema que atinge os agricultores é o fato de muitas
vezes eles terem que retirar os produtos antes do tempo, por que os
proprietários das terras avisam que colocaram os seus animais
dentro da área que ficam os roçados dos meeiros. Desta maneira os
produtos são colhidos antes de estarem apropriados para o consumo
e toda a produção de quem trabalha na roça é perdida.

A busca por água: novas divisões e velhos conflitos

A vida na comunidade é regada por muitas dificuldades,


provocadas principalmente pela falta ou a escassez de serviços
básicos como o abastecimento de água, que influencia desde muitos
anos atrás a forma de vida dos Bastiões. O problema mudou apenas
a forma como se apresenta, mas permanece até os dias atuais. As
dificuldades para ter acesso à água são um problema para os
Bastiões há bastante tempo, a água encanada, por exemplo, só
chegou à comunidade há aproximadamente dez anos. Antes disso, a
comunidade teria que ir diretamente aos rios e açudes da região
para ter acesso à mesma.
Recordo que na infância e na adolescência para termos acesso
à água tínhamos que buscá-la nos rios ou no açude, dependendo da
utilidade que daríamos a ela. A comunidade, em virtude da
necessidade de beber, buscava água para o consumo no açude santo
Antônio, sitio pertencente aos Bastiões. Água para outras
necessidades era retirada principalmente do rio (intermitente) que
havia dentro do distrito.
Samia Paula dos Santos Silva; Joselina da Silva | 201

Nessa época lembro que meu avô tinha um jumento, que


batizamos de Juvinha. Ele foi essencial para a família, pois
possibilitava que nós tivéssemos acesso à água com mais rapidez,
era através dele que conseguíamos carregar o maior volume de água
para armazenar. Também era ele quem carregava a maior parte do
peso dos trabalhos no roçado.
Para conseguir água, a fim de atender às necessidades da
família, tínhamos que cumprir um processo longo e cansativo, que
começava quando íamos buscar o jumento próximo ao roçado onde
ele ficava, para que pudesse se alimentar. O caminho até lá era
distante e de difícil acesso como já relatamos, mas, como íamos em
grupo, brincávamos o caminho inteiro e essas dificuldades eram
mais facialmente superadas, observamos a representação desse
processo na fala do entrevistado.
Ao chegarmos a casa, meus tios deixavam o animal descansar
por aproximadamente vinte minutos para em seguida prepará-lo
para outra “viajem”, que era o percurso que se fazia para conseguir
água. A preparação do animal consistia em colocar sobre uma
cangalha, um instrumento feito de madeira que serve dentre outras
coisas para prender outros materiais no jumento, no caso do
transporte de água, é afixado junto a ele dois barris, feitos com
pneus de carros e madeira, que na comunidade recebe o nome de
ancoras ou ancoretas. Além do jumento, também, são preparados
outros instrumentos importantes para essas atividades como os
baldes e os galões, que são paus médios com uma corrente presa em
cada ponta e um gancho para prender os baldes.
A caminhada até o açude levava bastante tempo, por isso
meus tios não perdiam tempo com conversas prolongadas,
cumprimentavam rapidamente quem estava pelo caminho, mas
seguiam a passos firmes em direção a seu destino.
Quando lá chegavam, normalmente o mesmo já estava
repleto de pessoas com os mesmos objetivos. Eles então
posicionavam o jumento, pouco afastado da água para não a sujar,
e iam os dois enchendo as âncoras e eram necessários muitos baldes
202 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

de água para enchê-los, por completo. Quando isso acontecia meus


tios tampavam-no, cada um enchia seus dois baldes e prendia-os nos
galões, com os baldes sobre ombros e o Juvinha na frente, iniciavam
a caminhada de volta para casa. No retorno, os passos eram mais
lentos por causa dos pesos que carregavam, mas, não podiam
desviar a atenção do animal, pois, corria-se o risco de ele jogar todo
o trabalho fora se encrespasse com outro de sua raça. Podemos
observar parte desse processo na fala do jovem morado.

[...] antes, aqui na comunidade tínhamos que acordar 1:00 ou 2:00


da manhã para ''pastorar'' água da cacimba ou do
cacimbão(poço).Buscávamos água com à utilização do
jumento[...](AAM, 2015).

A água retirada do açude era utilizada para o consumo (beber)


e nas casas das comunidades ela era, em alguns casos, ainda,
armazenada em potes feitos de barro. Quando chegávamos, em casa
com a água, encontrávamos o pote já lavado e as âncoras eram
descarregadas. Para retirar as impurezas que por ventura tivessem
vindo junto, colocava-se um pano limpo na “boca” do pote antes de
colocar água em um processo de coar a água. Esses trabalhos
repetiam-se algumas vezes para atender às necessidades da família.
O clima na comunidade na maior parte do ano é frio. Por se
localizar em uma região serrana a água armazenada nos potes ficam
na maioria das vezes em uma temperatura agradável, nem muito
quente e nem muito gelada, por essa razão ainda hoje algumas
pessoas preferem beber a água dos potes do que as retiradas das
geladeiras.
Algumas atividades relacionadas à água movimentavam a
vida social da comunidade e davam um sentido cultural às atividades
cotidianas, no período em que não havia água encanada.
A lavagem das roupas é um exemplo disso: existia nessa época
todo um processo para que de fato fossem lavadas. Essa por sinal
era uma atividade esperada pela molecada, que aguardava o
momento para acompanhar suas mães até o rio e brincar a manhã
Samia Paula dos Santos Silva; Joselina da Silva | 203

inteira ao redor dele, principalmente os meninos, pois, só teria que


colocar água junto às mães, diferente das meninas que ajudavam na
lavagem por mais tempo.
Recordo que nos dias que antecediam ao dia da lavagem das
roupas, a expectativa que se formava junto às crianças era enorme:
os meninos iniciavam o processo de convencimento para que as
mães os levassem, mas certo mesmo é que as meninas iriam, então,
nós (as meninas), especulávamos e os deixávamos mais ansiosos.
Quando o grande dia chegava, acordávamos bem cedo, por
volta das quatro e meia da manhã, as mães preparavam o café.
Enquanto tomávamos o café, as mulheres pegavam uma colcha de
cama grande, estiravam no chão da sala e iam juntando ao centro
todas as roupas que seriam lavadas. Por fim, elas colocavam alguns
materiais de limpeza, como os sabões e fechavam a trouxa
amarrando as pontas.
Minha mãe colocava a trouxa de roupas na cabeça e saíamos
todos em direção ao rio da comunidade. No caminho encontrávamos
outras famílias que iriam fazer o mesmo, as mulheres então iam
conversando, cada uma com sua trouxa na cabeça, as crianças
caminhavam, corriam e cantavam na frente carregando baldes que
continham alguns materiais de limpeza e de consumo e junto às bacias.
Ao chegar ao rio cada mulher escolhia uma das muitas pedras
grandes que lá existiam, escolhiam a que considerassem melhor
para nela bater as roupas mais grossas. Ao redor dessas pedras elas
colocavam os materiais de limpeza necessários para lavar as roupas,
um pouco mais afastado alguns alimentos que foram levados para a
merenda, fumo e papel para fazer o cigarro.
Com o ambiente todo organizado pelas mães, as crianças
começam a pegar água no rio para encher as bacias. Depois de
fazerem parte de sua obrigação iniciavam as brincadeiras nas árvores
e em uma parte mais reservada do rio. Entre uma brincadeira e outra
as meninas tinham que parar para ajudar as colocar as roupas para
quarar ao sol, além de fazerem o primeiro enxágüe. Uma dessas
204 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

crianças da comunidade, hoje jovem morador, expõe em seus relatos


o significado desses momentos na sua história.

[...] chegava no dia de sábado, as mulheres iam lavar roupa no


açude, eu me lembro que tinham umas dez pedras, colocavam-se
as bacias em cima, e só podia tomar banho depois que todo mundo
tinha terminado de lavar roupa, porque senão as roupas iriam
ficam sujas. Ai, o pessoal ficava esperando o meu avó, ai quando
passava a última lavadeira, as crianças desciam para o açude, e
depois era só farra, o açude não era tão pequeno mais cabia todo
mundo, e todo mundo se divertia. Essa é uma história que eu me
lembro muito, e era bom demais![...]( GP, 2015)

Na volta para casa o cansaço já estava visível em todos, porém,


as crianças ainda tinham energia para colocarem-se a frente,
caminhando a passos largos e conversando sobre os acontecimentos
da manhã. Enquanto isso, as mulheres voltam com as trouxas nas
cabeças, conversando sobre o cotidiano.
Quanto aos jovens, muitos deles já eram casados, pois na
comunidade é comum o casamento na juventude. Os que não
haviam constituído família contribuíam com as atividades
familiares, as mulheres permaneciam em casa para realizar as
tarefas domesticas enquanto as mães lavavam as roupas e os
homens acompanhavam os pais no trabalho do roçado.
O dia de trabalho das mulheres da comunidade não terminava
aí. Quando chegavam a casa além de organizar as roupas que
haviam sido lavadas, as mulheres que não tinham filhas também
precisavam fazer atividades domésticas e fazer o almoço do dia. As
meninas, também, ajudavam nessas atividades enquanto os garotos
brincavam na rua ou assistiam tv até o almoço ficar pronto.
Por sinal, brincar de correr era a brincadeira preferida dos
garotos, e em quase todas as brincadeiras deles estava relacionada
às correrias. Enquanto isso no fim de tarde, as crianças brincavam
no quintal de casa de bonecas ou de pedrinhas, e os adolescentes
jogavam futebol ou carimba, no caso das garotas. Em todos os casos
Samia Paula dos Santos Silva; Joselina da Silva | 205

pela condição financeira os brinquedos ou brincadeiras eram


inventadas ou adaptadas a falta de recursos.

[...]Na época, como não havia brinquedo nós mesmos que


criávamos o nosso próprio brinquedo, eu recordo que antes
amassávamos a lata de óleo de cozinha, deixávamos ela no formato
de um quadrado, fazíamos ''buracos'' na frente e no verso da lata,
em seguida, colocava-se um pedaço de madeira entre os buracos
da lata, e a borracha das sandálias havaianas que as pessoas
jogavam no lixo, eram cortadas em formato circular para serem
feitas as rodas do carrinho. Esse era o nosso carrinho de
brincadeiras, quando havia algum tipo de obra na localidade
reaproveitávamos restos de madeira que era serrada na ponta, e
virava mais opção como brinquedo. [...] (AAM, 2015).

As bonecas que brincávamos na serra no período de infância


é outro elemento que recordo com carinho. Como não tínhamos
dinheiro para comprar brinquedos minha avó materna, Maria
Amaro, construía nossas bonecas e para isso ela utilizava como
matéria prima o milho e o barro. O trabalho com barro é prática
comum na comunidade, com esses materiais muitos moradores
fabricavam tijolos e utensílios domésticos, como potes e panelas.
Para fazer uma boneca de milho, minha avó pegava os milhos
verdes que não serviriam para comer, enfiava dois palitos, um de
cada lado na parte inferior do legume para representar as pernas e
outros pouco acima do meio do milho, representando os braços,
arrumava os pelos do próprio legume (cabelos de milho) para serem
os cabelos das bonecas, em seguida pegava os restos de retalhos que
sobravam de alguma roupa concertada e faziam vestidinhos para a
boneca e estava pronto, era só brincar. A bonequinha de milho só
poderia ser produzida em épocas de colheita, pois, sua matéria
prima só aparecia nesse período.
Em outros períodos do ano minha avó produzia bonecas
utilizando outras matérias primas como o barro, por exemplo, para
isso, ela juntava o barro um pouco avermelhado, molhava-o e
moldava-o em cima de um pedaço de tábua até ele ficar no formato
206 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

que ela desejava, depois, era só deixar secar no sol e estava pronta a
boneca para brincar.
Há aproximadamente dez anos a forma de ter acesso à água
na comunidade mudou, a partir desse período até os dias atuais, a
água passou a ser encanada, com isso, aconteceram também
algumas mudanças culturais, como toda aquela relação com o rio e
o açude, esta já não existe mais.
Apesar de ser encanada a água da comunidade não é fornecida
por nenhuma empresa de tratamento, ela continua vindo do mesmo
açude, Santo Antônio, que é um sitio pertencente à comunidade. A
encanação foi realizada pela prefeitura do município de Iracema e
funciona da seguinte maneira: próximo ao açude, foram construídas
duas cisternas que a população chama de caixas d’água, nas duas
foram instalados dois motores e uma encanação que distribui água
para todas as ruas dos Bastiões.
Existe um funcionário da prefeitura responsável por ligar os
motores das cisternas e destinar a água para a cada uma das ruas. A
encanação foi feita individualizando as ruas, cada uma só recebe
água duas vezes por semana e durante algumas horas. Esse por sinal
é um dos motivos da insatisfação e muitas vezes até de conflito na
comunidade. Muitos desencontros e falta de bom senso surgiram
com o novo sistema de distribuição de água e isso fez surgir alguns
atritos na serra.
Logo nos primeiros anos de instalação desse novo sistema de
acesso à água os moradores não tinham conhecimento dos dias que
estavam determinados para que suas ruas fossem contempladas
com o abastecimento de água. A surpresa da chegada da água nas
torneiras muitas vezes fazia com que eles não conseguissem
armazenar a água necessária para atender às necessidades das
famílias durante a semana e esse fato causava confusões entre as
pessoas responsáveis pela liberação da água e a população.
Com o tempo, a comunidade e a prefeitura entraram em
consenso, e encontraram uma solução razoável para ambas as
partes, ficando então, determinado para todos em quanto tempo e
Samia Paula dos Santos Silva; Joselina da Silva | 207

em quais dias cada rua receberia água. Essa organização, porém, só


resolveu os conflitos de forma temporária, pois, outros problemas
surgiram em torno da questão da água.
Mesmo com o “acordo” existente entre as partes, outros
desacordos apareceram dentro da mesma temática para atrapalhar
a calmaria que cerca a cidade, os problemas atuais sobre a temática
do acesso a água na comunidade surgiram em torno da diminuição
do tempo em que cada rua é abastecida.
Há aproximadamente dois anos atrás a água chegava às
torneiras das casas umas cinco horas da manhã, e permanecia quase
a manhã toda. Isso permitia que os moradores conseguissem
armazenar a água que necessitavam para a semana, pois, só teriam
acesso durante dois dias. As roupas por exemplo, eram lavadas
ainda com a água saindo das torneiras, e isso permitia que não
precisassem utilizar a água armazenada para esse fim.
Hoje esse acesso ocorre dois dias por semana, mas dura um
pouco mais de duas horas, por essa razão, nos dias da chegada da
água, é preciso deixar todos os recipientes prontos para conseguir
armazenar o maior volume possível. Ainda assim, a população sofre
com a escassez, pois, a água armazenada não tem suprido as suas
necessidades. Em muitas casas, com maior número de pessoas,
existe a dificuldade até para conseguir lavar as roupas, pois se
precisa dar prioridade a outras necessidades das famílias em relação
aos recursos hídricos.

Eu acho que até hoje, inclusive na rua onde eu moro, o maior


problema é a questão da água, porque ela não é encanada, e o
açude que abastece a cidade, devido à seca já não tem tanta água.
A distribuição da água é muito errada, porque na segunda e terça
feira ela é distribuída em algumas ruas, e assim vai, na minha rua
são duas vezes por semana, mas é tão fraca que não consegue
encher a caixa d'água, temos que ficar enchendo ''tambores'' e
enchendo essas coisas. (TM, 2015).
208 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

Diante dessa situação alguns moradores construíram em suas


casas caixas d’água com o sistema de encanação próximo do que
abastece a comunidade, e isso fez surgir é outro problema para o
restante da rua, pois, quando os motores das casas são ligados para
direcionar o recurso para a suas caixas d’águas, as famílias que moram
depois delas não conseguem pegar água, porque a vazão não tem
“força” para chegar até as casas que necessitam. Nessas ocasiões, o
mal-estar fica explícito entre os moradores. Muitas vezes, a água chega
a partir das vinte e três horas e permanecem duas horas somente.
As questões envolvendo os recursos hídricos da comunidade
estão sempre a movimentar a comunidade, pois, apesar das
instalações de todo o processo de encanação ter sido feito através da
prefeitura de Iracema, qualquer problema que por ventura venha
acontecer com relação a essas instalações, são resolvidos pela
comunidade.
Recordo de um momento em que um cano da instalação da
água quebrou e toda a comunidade ficou sem água por quase uma
semana. Como esperar que a prefeitura resolvesse o problema de
forma rápida? E qual forma seria racional? Os moradores se
reuniram, e em grupos saiam de porta em porta buscando
colaborações para o concerto e a resolução do problema.

Religiosidade: festas e tradições

O ambiente nos Bastiões é tranquilo, é uma comunidade


pacata, não se vê muitas discórdias, apenas alguns
desentendimentos comuns da convivência próxima entre os
moradores. Na maior parte do ano não existe muita movimentação
na serra, há uma circulação de pessoas em número razoável nos
encontros religiosos. Nas grandes festas, porém, esse panorama se
transforma e a comunidade entra em outro ritmo.
A religiosidade é algo que consegue movimentar e
transformar a rotina de vida dos moradores. São três as religiões
cultuadas, duas delas compõem a história dos Bastões: o catolicismo
Samia Paula dos Santos Silva; Joselina da Silva | 209

que, segundo relatos de moradores antigos, é presente desde o início


da comunidade; outra é religião de matriz africana que na serra é
chamada de Xangô, que também existente entre essa população há
bastante tempo, e o culto protestante dos evangélicos é parte da
comunidade há aproximadamente dez anos.
As manifestações religiosas voltadas para o catolicismo é um
dos símbolos da comunidade, que tem como padroeira/o, Nossa
Senhora do Carmo, e São Sebastião. Os dois grandes eventos do
distrito que os fazem ser reconhecidos nas cidades vizinhas são as
festas em homenagem a esses santos.
A festa de Nossa Senhora do Carmo que acontece no mês de
julho, é o principal evento religioso que exige dos moradores uma
preparação intensa. Nessa época do ano o ritmo dos Bastiões fica
frenético, pois, é o momento em que ela recebe um grande número
de visitantes.
Também conhecida na região do vale do Jaguaribe como Festa
de Julho dos Bastiões, os festejos de Nossa Senhora do Carmo duram
dez dias, pois, se inicia no dia sete de julho e termina no dia dezesseis
do mesmo mês. Durante esse período, a quantidade de gente
circulando pela cidade, noite e dia é incalculável.
Sons de carros ligados a toda hora e a toda altura, os barres
cheios, a praça e a rua (centro da comunidade) lotados de barracas
vindas de outras cidades para vender de imagens de santos a
calçados. A criançada correndo nas ruas, os jovens circulando com
suas melhores roupas, como pede o momento. Os idosos em
algumas calçadas de bares ou de casas observando o movimento.
Esse é o ambiente dos Bastiões durante os dias de festa.

É como se a gente vivesse em prou desse mês. Essa data


comemorativa passou à pouco tempo e agora que as pessoas
começaram à voltar para suas cidades, porque todo mundo sempre
vem passar as férias aqui. Agora nesse final de mês, o pessoal não
comenta tanto, quando vai aproximando-se do período de julho, as
pessoas começam a dizer:'' A Festa de Julho já está bem pertinho,
daqui a pouco chega de novo''. Tem gente que trabalha o ano
210 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

inteiro, mas no finalzinho de junho já quer ''tirar'' férias, já para


aproveitar a festa. Toda à noite, tem missa e novena, e essa
tradição existe até hoje, não sei há quanto tempo existe, mas
algumas pessoas falam que uns cem anos, tanto a festa como a
novena de Nossa Senhora do Carmo. Não existe referência do
tempo dessa cultura, mas, desde o tempo que foi criada essa festa,
ainda é preservada a novena em latim, a novena inteira é em latim,
a missa é depois e, em seguida, a queima de fogos, e as festas
acontecem todos os dias. De alguns anos pra cá, surgiram as
cavalgadas e, é o dia que mais têm pessoas aqui, a época em que a
nossa comunidade é mais visitada, e que mais vêm pessoas de
outros lugares. (TM, 2015).

Antes do início da festa e durante, os fiéis organizam a Igreja


e as procissões com o objetivo de arrecadar donativos para serem
leiloados durante. Essas procissões acontecem tanto na comunidade
como nos municípios e vilarejos vizinhos, da seguinte forma: um
grupo de pessoas saem nas ruas cantando as ladainhas religiosas
específicas para aquele momento, os moradores que desejam
contribuir, entregam objetos ou outros donativos para os fiéis e
religiosos que carregam grandes sacos. O dinheiro arrecadado é
destinado à festa.
Por volta de cinco horas da tarde as pessoas começam a se
arrumar para acompanhar as novenas e posteriormente a missa,
para só depois aproveitarem a noite de festa. Das nove noites de
festa (no dia dezesseis, último dia não tem festa é a missa da
padroeira que acontece às dez horas da manhã) durante oito dias
fazem homenagem a algumas famílias da região, algumas
tradicionais outras por poder político e/ou financeiro. A família
homenageada da noite é que organiza a festa e os festejos de sua
noite.
Dentro desse período festivo acontecem outras manifestações
culturais, também, em homenagem à Santa como a Moto Romaria,
que é uma passeata de moto e a cavalgada onde se reúnem vários
cavaleiros em Iracema com animais a cavalgar levando a imagem da
padroeira à frente. No dia quinze de julho acontece o leilão dos
Samia Paula dos Santos Silva; Joselina da Silva | 211

materiais que foram doados nas procissões. Após o dia dezesseis a


comunidade volta aos poucos à normalidade.
Outra manifestação religiosa que mesmo em menor proporção
chama bastante atenção da comunidade e de alguns municípios
vizinhos, é o xangô do pai de Santo Luiz, bastante conhecido na região
Jaguaribana (onde hoje morra). Mesmo sem data certa para
acontecer, a não ser na festa de Tia Maria, que acontece no dia vinte
e cinco de dezembro, a casa de Luiz, fica sempre lotada.
Os trabalhos de Luiz são conhecidos na região do Vale do
Jaguaribe, por essa razão, pessoas de toda a região sobem a serra
para pedir sua ajuda. Esse reconhecimento pelo seu trabalho levou-
o a fechar temporariamente sua casa na comunidade e mudar-se
para a cidade de Jaguaribe. Interrompendo os cultos de matriz
africana por um longo período, porém, quando retornava para
visitar a comunidade e a família, ele reabria sua casa espiritual.
Um dos momentos que mais movimenta a casa de Xangô de
Luiz, é na realização da festa de Tia Maria, que acontece no dia vinte
e cinco de dezembro. Nesse momento a casa fica lotada, os jovens
vão para dançar e comer, durante o ritual eles dançam cantam e a
entidade responde algumas perguntas dos visitantes e diz algo sobre
o ano que vai começar, também são distribuídos alimentos doces e
frutas. Caso seja solicitado os trabalhos também são realizados nas
casas dos moradores.

Na minha fia, eu vim andar na casa dela, a primeira vez depois que
ela morreu agora, porquê Luiz de mané véi fazer um trabalho, ai
e era preciso eu ir, no dia 29 de julho interou um ano que ela
morreu, ele vei fazer um trabalho porque a menina dela tava vendo
ela ai.( AA, 2015).

Outra religião com um número considerável de adeptos é de


cunho evangélico, essa que é relativamente recente, tem seus dias
de culto pelo menos duas vezes na semana, dependendo da época e
independente do que esteja acontecendo na cidade ele acontecerá.
212 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

A religiosidade do povo mostra-se, também, através de outros


fatores com a presença das parteiras que recebem o nome de
cachimbeiras e das rezadeiras. Há aproximadamente trinta anos
atrás com as dificuldades de locomoção e a ausência de médicos no
distrito, os problemas eram resolvidos, também, através da
espiritualidade.
Os partos na comunidade assim como em tantas outras, eram
realizados com a ajuda das parteiras, essas, durante os partos
realizavam rituais para tirar as dores das mulheres. Enquanto
faziam o parto fumavam um cachimbo, durante o trabalho soltavam
a fumaça sobre as mães, segundo as mesmas para tirar as dores. Por
essa razão, elas recebem o nome de cachimbeiras.Outro elemento
importante para o cotidiano e que é um símbolo da religiosidade e
da fé do povo, são as rezadeiras, mulheres que através da ritos e
preces, com algumas folhas de pinhão roxo (uma planta da região),
conseguem curar espiritual e fisicamente os moradores.
As reflexões desenvolvidas neste relato levam-nos a constatar
que ao falarmos de comunidades quilombolas, precisamos
considerar as particularidades de cada povo, cada lugar, visto que
cada uma delas guarda na sua história o que lhes torna diferente, o
que é particularmente seu.
Os valores sociais dessa comunidade foram construídos
através da ancestralidade e sobrevivem nos dias atuais e mesmo
sofrendo a concorrência desigual da tecnologia, as novas gerações
colocam suas novas experiências nesses valores, porém a essência
deles permanece. A valorização da família, do trabalho e a
manutenção dos rituais religiosos, são alguns desses ideais
facilmente observados.
As manutenções das suas tradições, de sua cultura foram e
continuam sendo a forma de resistência das comunidades negras,
especialmente através das tradições orais que permitem que essa
cultura perpasse às gerações futuras. Este relato é parte de minhas
relações e pertencimento com a terra em que tenho laços
indissolúveis, pois os elementos culturais e identitários estão
Samia Paula dos Santos Silva; Joselina da Silva | 213

enraizados a minha essência, e a formação do que sou como tratarei


no capitulo a seguir.

Considerações Finais

Diante da realidade narrada percebemos que há o desejo nos


jovens de tentar mudar uma realidade social que perdura dentro da
comunidade, a de que ao final da formação básica escolar ter que
sair do seu lugar em busca de emprego, melhor acesso à saúde, uma
formação acadêmica e mais comodidade em relação a tudo. E ainda
há casos de jovens que por terem que ajudar em casa, desiste dos
estudos e ficam desestimulados, sem haver, sequer algum tipo de
incentivo ou meio que os amparem.
Enfatizamos que a manutenção das comunidades
quilombolas não assume um caráter estático, pois as novas gerações
trazem consigo novos hábitos e/ou costumes, que são incorporados,
em um processo de constante recriação. No processo de recriação,
as atitudes e ações inovadoras das novas gerações são filtradas pela
tradição de resistência cultural e pela força identitária da
comunidade. Em geral, os mecanismos e/ou estratégias de
filtragem dos novos saberes e novos costumes não são explícitos, no
entanto, estão fundamentados em um substrato imaterial, que a
comunidade considera como identidade ancestral.
A identidade do sujeito é algo que está ligada ao seu
pertencimento, sendo parte do que lhe constitui socialmente e
individualmente, como os seus hábitos, tradições, cultura e
oralidade. Essa identidade se constitui a partir de diversos fatores,
entre esses, se destacam: os aspectos sociais, culturais e históricos
em que estão inseridos. Tais aspetos são determinantes para a
formação da personalidade individual e social.
Considerando que a identidade é parte de um sujeito social e que
esse é produtor de cultura, essa assim como as sociedades sofre
modificações de acordo com os novos aprendizados desses sujeitos que
a compõem como, por exemplo a juventude, temos que levar em
214 | Conhecimento Afrodescendente: Volume 1

consideração dentro das tradições este que traduz os hábitos e


costumes em confluência com a visão externa e interna da comunidade,
trazendo para o meio a influência da tradução de outros costumes.
Através do reconhecimento da identidade coletiva o indivíduo
identifica sua posição histórica e social, desenvolvendo uma
valorização maior em relação à sua cultura. Essa valorização
propicia a aceitação e o entendimento de sua autoimagem, ou seja,
no momento em que o sujeito compreende o significado histórico-
social das características em que está inserido, mais facilmente
poderá se compreender e se valorizar.
É a partir dessa análise geral da sociedade, assim como
especificamente da comunidade em que vive que os sujeitos poderão
ter condições de desenvolver a criticidade em relação ao meio social,
à cultura e assim desenvolver relações que estarão ligadas à sua
identidade.

Referências

BEZERRA, Ana Lúcia Sulina. Bastiões: uma comunidade de Origem Negra.


102f. Monografia de graduação. Curso de Ciências sociais, do
departamento de Ciências sociais, da UFC 1999.

BEZERRA, Ana Lúcia Sulina. Reconhecimento Étnico da comunidade de


Bastiões-Ceará(Brasil): Rumores e conflitos.rev. de ciências sociais,
Fortaleza,v.43,n.1,jan/jun,2012,p.50-65. Disponível em :<
http://www.rcs.ufc.br/edicoes/v43n1/rcs_v43n1a4.pdf> acesso em: 10 de
agosto de 2014.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre


relações raciais no Brasil: uma breve discussão, 2012. Disponível em:
http://www.acaoeducativa.org.br . Acesso em: 18-set-2015.

MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola, 2ª edição revisada,


brasileira: ministério da educação, secretaria de educação, 2005.

Fontes: Depoimentos e entrevistas, Bastiões/Iracema-CE, por Samia Paula dos


santos Silva, 2015.

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