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“TUDO QUE COUBER A GENTE PUBLICA”: PENSANDO EM OUTRAS

NARRATIVAS1
Nomes: Fabiano Cordeiro César.
Graduando em História pela
Unimontes; bolsista do CNPq
Fabianord@yahoo.com.br
Prof, Dr: Simone Narciso Lessa
Professora do Mestrado em Desenvolvimento Social
monelessa@uol.com.br
Grupo de trabalho: Populações Tradicionais e Processos Sociais

Uma das máximas que caracteriza o pensamento social dos finais dos oitocentos está contida
na frase de Euclides da Cunha ao referir-se que a civilização deveria sobrepor-se aos sertões.
Mas em que consistiria essa civilização e esse sertão? Percorrendo as leituras correntes do
final do século XIX, principalmente a literatura, (Ver, ALENCAR, 2007. TAUNAY, 1983.)
aquele representaria o progresso e o desenvolvimento cientifico, enquanto este seria marcado
por dois sentidos, sendo um deles o atraso e a tradição, tomada como a ignorância do homem
na sua relação com o meio, e o outro o sertão bucólico e romântico, onde se encontraria a
natureza intocada.
Na realidade, tanto um como o outro, representam a metáfora de vários brasis que não se
encontraram, ou que quando se encontram buscam destruir a alteridade. Internamente a
imprensa Norte Mineira dos finais dos oitocentos fez ecoar discursos que se encontravam
dispostos no tecido social brasileiro que identificavam sertão e o sertanejo, tanto de forma
subalternizada, quanto de forma bucólica. Todavia, o primeiro teve a força de construir
formas de falar e de ver o sertão, associadas às identidades ditas subalternas.
Segundo Marta Emisia Jacinto Barbosa (2004) existe uma memória sobre o sertão que foi
articulado historicamente ligando o mesmo à miséria e ao problema da seca, esses dois
agentes, tornados símbolos através das leituras de jornais, tanto os jornais do Rio de Janeiro,
quanto os do próprio Nordeste brasileiro, teriam a força de encobertar os verdadeiros
problemas sociais que agrediam as populações denominadas de sertanejas. Quando, na
realidade os problemas ambientais, que agrediam todo o país, não eram sequer, o motivo

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Esta pesquisa vem sendo desenvolvida com o apoio financeiro do CNPq, através da Bolsa de Iniciação
científica do Pibic/CNPq
causador de um terço dos males sociais. Estes eram uma derivação dos códigos de
sociabilidade e apropriação que prevaleciam nos territórios distantes do litoral, ou seja, da
exploração real e objetiva. Não obstante, acreditamos nessa pesquisa que o fato de tratar-se de
uma imprensa artesanal e local, alguns discursos fogem dessa lógica, ou se inserem na
mesma, mas demonstrando pontos de tensão que nos permitem pensar a construção das
identidades de uma outra lógica.
Ao contar a historia da imprensa (CÉSAR; LESSA. 2010) anteriormente salientamos a
dificuldade de se manter a imprensa funcionando devido a questões financeiras, salientamos
ainda a paralisação do Correio do Norte devido à falta de recursos. Isso nos leva a pontuar o
seguinte fator; era possível recusar publicações, mesmo que as noticias não fossem adequadas
ao projeto do jornal? Portanto, parece ser coerente afirmar, em relação ao Correio do Norte
que “tudo o que couber a gente publica”, e dentro disso constatamos outras vozes que também
construíram relações, com a imprensa, com o meio ambiente e a população norte mineira
através das folhas da imprensa, nesse sentido, possibilitaram pensar relações identitárias a
partir de uma lógica própria do saber local, diversa dos enunciados que geralmente
estereotipavam essas identidades que se constroem a partir de uma relação próxima com o
meio.
Sendo assim, acreditamos que as outras narrativas, não somente a do redator ou do seu
projeto, irão demonstrar o caráter conflituoso de uma identidade que surge de uma relação
contrastiva.
Portanto, acreditamos nessa pesquisa que narrativas diversas estão postas nas folhas dos
jornais do Correio do Norte. Nosso esforço, no presente artigo, irá se constituir em buscar
evidências que nos possibilite articular essas outras vozes, essas outras narrativas, com o que
justamente foi subalternizado pela imprensa, ou seja, a relação do homem com o meio, e a
partir daí pensar campos sociais diferentes produzindo identidades fragmentadas.
Por isso, nossa atenção se voltará para as duas últimas páginas do jornal, onde encontramos
notícias tecendo uma narrativa diversa da que constatamos em um trabalho anterior “A
imprensa no Sertão Norte Mineiro”, onde demonstramos como o programa do jornal imbutido
de uma idéia civilizadora construí uma narrativa que retirava o homem do campo do seu
tempo, o colocando em uma perspectiva anacrônica diante da civilização (CÉSAR; LESSA.
2010).
Portanto, buscamos nessas duas últimas páginas pensar em como se deu a relação do saber
local com o projeto civilizatório, é também questionar como se teceu uma memória que liga
sertão (a leitura corrente do final dos oitocentos, ou seja, lugar de miséria e seca, lugar do
“Outro”) a um espaço diferente, distante do Norte de Minas, posto isso, dentro da imprensa
“sertaneja” o sertão, também, era o “Outro”. O enunciado que se segue é elucidativo para
expor esse argumento, vejamos:

Secção Livre – Goyaz e Minas Geraes


As provincias de Minas e Goyaz, limitrophes, collocadas no centro e
afastadas do litoral do vasto Imperio brazileiro, são tão ligadas pela
semelhança de climas, planices e valles, riquezas e productos naturaes,
que parecem entre si irmãs mais germanas que com as demais
províncias do Imperio.

No enunciado exposto constatamos que o fator “afastadas do litoral” possibilitou que o


enunciado articulasse estar no centro, mas afastadas do litoral a um sentimento de
pertencimento entre as duas províncias, sendo assim, ambas pertencem ao centro geográfico
do país, todavia estão “afastadas” do centro simbólico do mesmo. Portanto, compreendemos
que o campo discursivo do enunciado não está presente no centro simbólico, o mesmo fala a
partir do “Outro”, mas qual a posição do mesmo frente aos “Outros”, aos outros “sertões”?

Entretanto, Goyaz, por sua posição topographica, mais distante que


Minas, do litoral e dos grandes commercios com as provincias que
ficão aos lados oriental e septentrional, tendo o viajante de atravessar
para o lado Oriental a provincia da Bahia, planices desertas e do mais
de 50 lequas em que e sujeito a ataques de feras bravias e toda sorte de
perigos que soltão a mente.
Para o norte, além de outros embaraços, arrisca-se o viajante a
diversas hordas de indios selvagens, que assaltão vezes até fazendas
habitadas, onde exercem toda sorte de cannibalismo. Estas
dificuldades depreciam os productos naturaes e industriaes da fertil
provincia de Goyaz.
(Correio do Norte. nº 06. 30 de março de 1884)

Apesar de ambas estarem distantes do centro simbólico do país, o fator de uma estar mais
distante é significativo. Observem que o enunciado “Sertão” não aparece discursivamente,
todavia, o mesmo está diluído no significado do “estar distante do litoral”. E ao criar essa
distância o enunciado dá voz ao imaginário do sertão como lugar de “feras bravias” e de “toda
sorte de perigo que soltão a mente”.
Ora, como é possível dentro de um discurso que constrói um enunciado que enaltece o
sentimento de províncias irmãs, ao mesmo tempo depreciar a localidade que faz referência
como irmã? O próprio enunciado nos dá a resposta, vejamos:

E de crer-se que a natureza, creando embaraços entre Goyaz e as


provincias dos lado oriental e septentrional (...), e offerecendo fácil e
feliz contacto com a província de Minas, quiz que estas irmãs sejam
sempre entrelaçadas em fraternal união e que se auxiliem mutuamente.
E, portanto de toda equidade que a provincia de Minas, em seus
limites, facilite os meios de comunicação para a provincia de Goyaz.
Antes, porém, do melhoramento da estrada da cidade de Januaria para
Goyaz, é de palpitante necessidade um linha de correio, que facilite as
relações de Januaria com as localidades de Formosa, Forte, Posse.
(Correio do Norte. nº 06. 30 de março de 1884)

Eis então o motivo de se associar a província de Goiás ao símbolo do sertão bárbaro, antes
primeiro que se instale um Correio, ou seja, antes é necessário fazer valer ‘nossos interesses’
os dos “Outros” mostramos que “nos” (mais uma vez a idéia do projeto civilizatória é
presente no discurso da imprensa) podemos levar quando forem facilitados os meios de
comunicação.
Fica em evidência que a qualificação do sertão enquanto símbolo, não surge somente da
relação contrastiva com o litoral, relação esta que qualifica o território e o espaço de forma
conflituosa, mas essencialmente de uma relação política. Está longe, implica está longe do
poder institucional, segundo Barbosa o que implica supor “um espaço de ‘não poder’ ou de
poder subordinado e periférico” (2000).
Ao deixar patente essa superfície discursiva temos como objetivo central demonstrar, não só
que a imprensa recria um discurso que subalternizava sujeito e espaço, mas articular essa
posição a uma fragmentação de uma identidade que homologavam como sertaneja, portanto,
buscando assim pensar em outras identidades, mesmo que por meio da relação de
contrastividade, uma vez que, ao fazermos isso demonstramos, como o conflito nessa relação
torna a identidade móvel.
Por isso, não é possível afirmar, no caso do Correio do Norte, que o discurso buscava
somente subalternizar o símbolo sertão, na realidade a própria imprensa compreendia que era
viável se relacionar tanto política, social, econômica, quanto culturalmente dentro de uma
relação conflituosa, trazendo a tona o símbolo sertão e mostrando as suas várias faces, dentro
desse relacionamento.

Correspondências

A análise de correspondências enviadas ao Correio do Norte, correspondências estas pautadas


nas mais diversas temáticas, proporciona pistas significativas em torno do público leitor do
Correio do Norte, e também da relação desse mesmo público com a imprensa e os seus
projetos.
Tomamos tanto a imprensa, quanto as correspondências, como mensageiras de novas relações
sociais estabelecidas a partir da imprensa, ou tendo a imprensa como pressuposto.
As correspondências enviadas ao jornal podem nos oferecer uma idéia do alcance do mesmo
em meio a uma sociedade extremamente analfabeta, tão quanto pode nos demonstrar se
existia uma reciprocidade por parte dos leitores correspondentes aos ideais da imprensa, ou
seja, entendemos que as correspondências são uma forma privilegiada de chegar mais perto
do leitor, a partir delas será possível alcançar novas narrativas. Haja vista que, partimos do
pressuposto que essas leituras ganhavam novos sentidos quando apropriadas pelos leitores,
como disse Natalie Zemon Davis; “Quando um camponês lia, ou ouvia a leitura, o que ocorria
não era como o carimbar de uma mensagem literal numa folha em branco, mas o movimento
variado de uma ‘estranha cobertura’, posta em funcionamento apenas pelos esforços
combinados do autor e do leitor”(DAVIS. 1990).
As correspondências leva-nos a questionar os significados das idéias recorrentes no final do
século XIX, como a idéia da civilização, progresso e da superioridade racial, mais ainda, leva-
nos a pensar a construção de uma identidade por meio de uma outra esfera discursiva, não
mais do redator ou o projeto político que representava, mas sim dos seus leitores. Por isso, as
correspondências nos permite respostas viáveis de como se deu à apropriação do discurso
posto na imprensa. Portanto, acreditamos que as pistas sobre os leitores do jornal, através das
correspondências, irão nos ajudar a compreender as relações estabelecidas entre alguns
setores da população e o jornal, fazendo isso, tornara-se viável pensar em como se deu a
construção de relações identitárias do outro lado da folha, uma vez que as correspondências
trazem novos sujeitos históricos, novas narrativas históricas.
No enunciado que se segue analisamos uma correspondência enviada ao jornal em 22 de
fevereiro de 1885, o qual faz alusão à cheia do rio São Francisco, tal enunciado tem uma
materialidade simbólica própria e significativa, haja vista que o mesmo constrói uma narrativa
diferente, ele não procura subalternizar, nem mesmo criar um ar bucólico em relação ao fato,
apenas “narrar” uma cotidiano alterado pela cheia do rio e a relação do homem com esse fato.
Vejamos:

Correspondência

A Cheia do Rio S. Francisco

Desde principio de janeiro, ribombão trovões, e não cessa de chover.


O rio S. Francisco agora é que tem-se tornado ainda mais majestoso.
Suas águas já transpozeram as barreiras e têm invadido os campos, por
mais de legoa de lado a lado.
Nas suas barrancas já não ha casas, que não estejam submersas. Aqui
mesmo, para mais de 50 casas situadas nas barrancas jazem todas
immersas. (...)
Quão imponente se torna o S. Francisco n´essa sua altitude, e que
vistas magnificas se desenrolam a nossos olhos, vendo-o pelo leito e
campos estendido, a precipitar-se com uma velocidade estupenda,
levando consigo annossas (sic) arvores desraigadas?! E tempos ha que
se vêm boiar centenares de animaes cavallares e vaccum já
intumecidos, e outros vivos, veados e as próprias emas, parecendo
navios, que vão levados pelas agoas, (sic) correndo abaixo!
(Correio do Norte: Semanario político, litterario e de noticias. Montes
Claros, 22 de Fevereiro 1885 nº 53)

Segundo Orlandi “ (...) os sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com a
exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não dependem só das intenções
dos sujeitos” (ORLANDI. 2001). O significado não está, somente no discurso, mas sim na sua
relação com a ‘exterioridade’, e esta, no caso do discurso do jornal, é estabelecida na relação
de apropriação. Encontra-se nos sentidos que os leitores atribuem às noticias. Ora, delimitar
os diversos sentidos possíveis dentro dessa apropriação é praticamente impossível, todavia,
dentro da nossa problemática, ou seja, a construção das identidades, é viável elaborar algumas
questões que nos remetem aos sentidos do discurso, qual seja, por que motivo a cheia do rio
São Francisco torna-se notícia de jornal através de correspondência? Que sentido faz narrar o
cotidiano de ribeirinhos que praticavam justamente uma agricultura não recomendável,
segundo o jornal? No enunciado que está à mostra notamos que a correspondência enfatiza,
primeiro; a grandiosidade do rio nos momentos de chuvas intensas, segundo, a
desestruturação na vida do ribeirinho com a água inundando suas casas e levando seus
animais. Apesar de narrar estes fatos o discurso não o faz carregado de sentidos negativos.

E esse o tempo em que os pobres ercadores (sic) ribeirinhos do S.


Francisco, em toda a sua extensão de mais de 300 legoas, passão dias
e noites tormentosas, na retirada de seus gados, todos elles, já
mudadas as famílias, para as longínquas retiradas nas catingas; elles,
em canoas e barcas com innumeros vaqueiros e aggregador, a
apaharem magotes de criação, quase afogada, aqui e alli ilhada, ou nas
immensas vasantes.
(Correio do Norte: Semanario político, litterario e de noticias. Montes
Claros, 22 de Fevereiro 1885 nº 53)

Neste momento se faz possível pensar a identidade do outro lado da folha. Como disse
Woodward “a identidade é relacional” e para existir ela “depende de algo fora dela: a saber,
de outra identidade” (SILVA, Tomas. (org) 2005).
Uma das identidades elaborada pelo jornal surgiu de forma contrastiva com os projetos que a
imprensa representava. O Correio do Norte atribuía significado a essa identidade que não
condizia com o seu programa de forma que a subalternizava, tomando-a como aquilo que a
civilização deveria “corrigir”, uma vez que essa identidade estaria em contramão com o
tempo do progresso. Quando na verdade, ela somente expressaria um modus vivendi, que
segundo Costa (2007) representaria uma cosmovisão de mundo dessas populações.
Ao enviar a correspondência, o autor da mesma, o qual é simplesmente descrito como “O
Correspondente” trás para o discurso o modo de vida do dito “homem simples” sem o rotular
de forma estereotipada. Mas sim, fazendo menção a sua forma de viver diante das
circunstâncias naturais. Ou seja, esse enunciado constrói um sentido de que os ribeirinhos
estão presentes no “seu tempo”. Não retira a especificidade histórica, a qual trás consigo uma
relação identitária, mesmo que conflituosa.
É interessante observar que, possivelmente, as pessoas que ele fez menção nem chegaram a
ler o Correio do Norte, apesar disso se tornaram objetos do discurso da imprensa, tornaram-se
notícias. Por isso, afirmamos ser possível ler, dentro do Correio do Norte, várias vozes. Não
somente a do discurso civilizatório, uma vez que, ao afirmar que a imprensa não passa de uma
representante, única, de uma dada elite Norte Mineira, estaríamos quebrando o conflito
existente no discurso entre diversos setores da população.
E isso, leva-nos a questionar as condições de produção desse discurso, trazendo a tona três
elementos constitutivos; quais sejam, o sujeito a situação e a memória. Quando nascemos os
discursos já estão em processo, e os sujeitos entram nesse processo através da socialização, e
os três elementos citados nos indicam os processos de socialização em que o sujeito
percorreu. Segundo Orlandi (2001) ao remeter o discurso a suas filiações de dizeres, uma
memória discursiva se põe em evidência, conseqüentemente, as relações sociais que pautaram
a formação do individuo.
Ao narrar que os ribeirinhos passaram “dias e noites tormentosas, na retirada de seus gados,
todos elles, já mudadas as famílias, para as longínquas retiradas nas catingas” esse enunciado
remete uma memória discursiva vivida ou narrada ao sujeito, ou seja, a condição de produção
do discurso evidencia um saber local baseado em relações sociais vivenciadas, ou como diz o
próprio enunciado; “ a nossos olhos, vendo-as”.

Entretanto o povo em geral, em logar de entristecer-se, é quando, com


prazer indizível, mostra-se activo n´essa forçada e, emigração, n´esses
trabalhos homericos!
E que a fartura extraordinária de tud, quanto é de primeira necessidade
para a vida. Milho verde, mandioca, feijão, batatas, e mais generos
alimentícios, que subtrahem-se á inundação, dão meios de subsistencia
facil e barata, que satisfazem ao povo.
(Correio do Norte: Semanario político, litterario e de noticias. Montes
Claros, 22 de Fevereiro 1885 nº 53)

O enunciado em questão nos demonstra algo significativo: ele mostra um outro lugar de fala
ao referir-se às populações do Norte de Minas não condizentes com o projeto civilizatório, o
qual esta bem distante daquele que dizia, “Não obstante as luzes do seculo que tem
esclarecido os vastos sertões de nossa província, ainda é preciso applicação de penas
correccionaes, em processo policial, contra os abusos incompatíveis com a civilisação actual”
(nº42. 7 de dezembro de 1884), tal enunciado faz referência a prática que denomina de
feitiçaria, e termina afirmando que tais práticas florescem devido “ser um lugar soturno e
próprio para nelle se exercer tal profissão”.
Apesar de parecerem coisas bem distantes, de um lado a relação do homem frente a cheia do
rio, de outro a relação do homem com o seu divino, o seu objeto sagrado, apesar de este ser
tomado pela imprensa como o profano. Todavia, os dois elementos trazem os costumes, os
lugares onde eram estabelecidos relações sociais, as formas de lidar com a natureza. Trás para
a narrativa histórica como os homens, que não eram representados pela imprensa, se
relacionavam, enfim, trás para o discurso aquilo que compõem a vida cotidiana dos homens.

Na cidade da Barra, por exemplo, é quando apparecem canôas


carregadas de filhotes de todas as aves aquaticas, desde os gigantes
jabirús até as cantadeiras airiris, bellos petiscos para aquelles povos,
que muito gostão d´essas golodices, com que promovem pandegas
interminaveis.
E neste sentido faremos, em tempo, uma especial descripção. Nas
povoações vê-se um bando de gente, dia a dia, hora a hora, ir visitar
o rio, a ver quantos palmos, quantas braças tem avançado por terra a
dentro.
Formão suas balisas, e as próprias familias achão deleite em seus
encontros pelas ragias, a conversarem sobre a impetuosidade da
cheia, e dizem mil prophecias, em referencia a sua continuação, e
ao contrario.
Divertem-se posi em virem lançar por toda a parte, tarrafas, anzoes,
(...) e verem sasahir do fundo das águas os surubins do tamanho de
um homem, grandes curimatas, mandis, (...) outras qualidades de
peixes de todas as dimensões. (...)
(Correio do Norte: Semanario político, litterario e de noticias. Montes
Claros, 22 de Fevereiro 1885 nº 53)

O enunciado a mostra é formado por dois centros simbólicos conflituosos. Percebam que o
enunciado nos permite compreender como os ribeirinhos reproduzem suas vidas a partir da
cheia do rio São Francisco; tanto o lado da festa, e ai os alimentos são trazidos pelo discurso,
nos indicando padrões alimentares e gostos que surgem pela disponibilidade da cheia do rio,
quanto pelos lugares de reprodução da sociabilidade.
Não obstante o enunciado também constrói a idéia da multidão. Isso denota uma forma de
sentir de quem está vendo o acontecimento. As duas expressões são significativas para a
análise do discurso: “aquelles povos” e “um bando de gente”, são elucidativas para pensar o
conflito. Ora a idéia de multidão não condiz com a subjetividade do sujeito, a qual foi exposta
pelo próprio enunciado. O próximo enunciado nos dá mais pistas sobre o conflito nessa
relação identitária:

Correspondencia da roça
As noticias da cidade sempre chegão tardias ao pobre roceiro,
principalmente a mim que, alquebrado pelos muito lustres que tenho
atravessado, vivo encerano no meu biombo quasi seguestrado do resto
do mundo, onde os vae-vens das novidades andão hoje n´uma correria
vertiginosa.
Hoje mais que nunca é necessario manter se a imprensa empregando-
se na sua manutenção ingentes esforços, porque é por meio della que
podemos fazer chegar ao conhecimento dos altos poderes do Estado
a quadra triste e calamitosa que atravessamos. O ano 1889, (...)
trouxe no seu bojo os males que outr´ora a conteve a beceta de
pandora.

O enunciado patente trabalha com duas referências discursivas conflituosas, e por isso,
significativas. Ao trabalhar com a idéia do “Eu” e ao mesmo tempo do “Nos”, os quais estão
sendo representados pelos termos “principalmente a mim” e pelos termos “que podemos”,
“que atravessamos” dentro de um mesmo discurso o enunciador constrói dois efeitos de
sentidos diversos, quais sejam; a do roceiro escondido do mundo, o que denota a idéia de uma
exclusão, e a do sujeito que procura se expressar por meio da idéia de uma coletividade,
retirando-se da idéia anterior, uma vez que “podemos”, por meio da imprensa, fazer falar os
nossos problemas, sendo assim, retirando-se da idéia de “sequestrado do mundo”, retirando-se
da exclusão.
Como se a posição geográfica em que se encontrava não permitia-lhe se relacionar com o que
ele chama de o “resto do mundo”. Tal efeito parece uma consonância do discurso do jornal
referente à sua posição de jornal de província do interior. Diversas vezes o jornal se
questionava se podiam fazer determinadas questões referentes ao cenário nacional e a sua
política. O seguinte enunciado nós da uma dimensão dessa atitude, vejamos; “Estará tudo
acabado, congraçados os adversários ante o especioso lemma do novo regimen?”
Tal questão está fazendo menção ao fim do bipartidarismo do império e a idéia de que foi
mencionada nos jornais do Rio de Janeiro que os conflitos entre os partidos conservador e
liberal iria acabar em prol do novo regime. Segue o enunciado; “eis tantas interrogações
quantas as duvidas que nos surgem no espírito. Poréem com que direito ou com que ttulo,
pobres e obscuros escriptores de uma folha sertaneja se julgarão competentes para
responder a taes perguntas?” (Correio do Norte:.Montes Claros, 23 de Fevereiro 1890. nº
290).
Na seqüência o enunciado, de certa forma, responde a autoridade que tem em fazer
determinadas questões, ou seja, ela demonstra que o cenário político da região não iria mudar
devido a uma troca de nomenclaturas partidárias, todavia, os efeitos de sentido estão dados,
não se apagam com essa constatação. Da mesma forma que o enunciado anterior, ao produzir
o sentimento de estar seqüestrado do mundo. Porém, ao estabelecer um enunciador
conflituoso essa identidade se move para um outro setor, vejamos:

Se na cidade, que é o centro dos recursos, não é raro ver-se crianças,


mulheres e decripitos vergados ao peso de feixes de lenha para darem
a troco de alguns rojoes que lhes possao matar a fome, segundo só
informado, qual não será o estado dos roceiros e creadores que só têm
a contemplar os destroços produzidos por uma tão prolongada seca?!!.
Consta-se que promoveo um pedido de socorro ao governo e que
este autorisou a distribuição de alimentos aos famintos até a
quantia de dois contos de reis. Porém, será isso sufficiente para
matar a fome aos indigentes de todo município que, com a noticia,
devem affluir para esta cidade? Duvido; dois contos para este
município é uma gota d´agua lançada ao S. Francisco; não lhes mitiga
a sede.
Zebedeu. Corôa do Frade, 3 de Novembro de 1889.
(Correio do Norte: Semanario político, litterario e de noticias. Montes
Claros, 10 de novembro de 1889 nº 275)
Onde está o conflito? No objetivo do enunciado ao criticar o governo. Quando assume a
posição de crítico a sua identidade de roceiro seqüestrado do mundo desaparece. Quando se
faz necessário ele nos demonstra um cotidiano vivido, tanto por quem mora nas cidades, por
quem mora nas roças. E toma uma posição frente à relação do Estado com as províncias do
norte. Percebam que o enunciado destrói uma dicotomia presente no pensamento social do
final do século XIX referente à cidade e ao campo, mesmo essa cidade sendo,
geograficamente, inserida no espaço do outro, do sertanejo, era corrente criar essa dicotomia.
E dentro dela o campo é tomado como o lugar da barbaridade e a cidade o lugar da
civilização. O enunciado nos demonstrou que essa civilização não passava de uma fala vazia
para as pessoas “simples” que apareciam nas linhas do jornal, como por exemplo “as crianças,
mulheres e decripitos vergados ao peso de feixes de lenha para darem a troco de alguns rojoes
que lhes possao matar a fome,” para esses o ideal de civilização tão defendido pelo programa
do jornal, não passava de uma retórica vazia.

Considerações

Essa identidade que surge de uma relação contrastiva e por excelência, conflituosa. E este
conflito não se encontra somente no discurso da elite norte mineiro para os outros setores da
população. Na realidade esse conflito se evidência entre as próprias elites e na sua relação de
interesses com o cenário nacional. Essa identidade é negociada, por isso seu caráter móvel,
permeável.
REFERÊNCIAS:
ALENCAR, José de. O Sertanejo. São Paulo: Martin Claret. 2007
BARBOSA, Ivone Cordeiro. Sertão; um lugar-incomum: o sertão do ceará na literatura do
século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2000
BARBOSA, Marta Emisia Jacinto. Famintos do Ceará: imprensa e fotografia entre o final
do século XIX e o início do século XX. São Paulo. Tese de Doutorado. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. 2004
CÉSAR, Fabiano Cordeiro; LESSA, Simone Narciso. A Imprensa no Sertão Norte
Mineiro: anúncios, práticas discursivas e visões contrastivas de sertões. Revista Intercâmbio.
Montes Claros. n. 1, p. 17-24. 2010
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo: sociedade e cultura no inicio da França moderna.
Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1990
ORLANDI, Eni. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes. 2006
SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
Rio de Janeiro: Vozes. 2005
SANTOS, Gilmar Ribeiro dos (org). Trabalho, Cultura e Sociedade no Norte/Nordeste de
Minas. Montes Claros: Best comunicação e marketing. 1997. Ver, Costa. Cultura Sertaneja:
conjugação de lógicas diferenciadas
TAUNAY, Visconde. Inocência. São Paulo: Ática. 1983

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