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Resumos de

Introdução ao Estudo do Direito II


Ano letivo: 2016/17

Conforme:
Aulas teóricas do Prof. Doutor Miguel Teixeira de
Sousa
SOUSA, MIGUEL TEIXEIRA DE, Introdução ao
Direito (Coimbra: Almedina 2012)

Por: João Alexandre


Título IV. Construção do Sistema Jurídico

1. Caraterísticas do sistema

• Um sistema é um conjunto de elementos que constituem um todo


organizado e consistente. Todo sistema: comporta um conjunto de
elementos; diferencia-se do meio ambiente e de outros sistemas através de
critérios próprios de pertença dos seus elementos; exige consistência
• O sistema jurídico é constituído por princípios e regras jurídicas,
distinguem-se de outros sistemas normativos por um critério próprio de
validade aplicável a esses princípios e a essas regras e, por fim, constitui
um conjunto consistente de princípios e regras

1.2. Pertença vs Aplicabilidade


o O conjunto dos princípios e das regras aplicáveis num sistema é maior do
que o conjunto dos princípios e regras que pertencem a esse sistema. Num
sistema podem ser aplicadas quer leis que já deixaram de vigorar nesse
sistema quer leis que pertencem a sistemas jurídicos estrangeiros

1.3. Importância do sistema


o O direito só pode ser compreendido e aplicado considerando o próprio
sistema jurídico

2. Caraterísticas do sistema (formação do sistema)

• Paradoxo: o sistema é composto por princípios e regras, mas, para que


estes princípios e regras sejam jurídicos, é necessário que o sistema já
exista
o Pode ser resolvido através de uma visão evolutiva do sistema
jurídico: os sistemas jurídicos não existem desde sempre e para
sempre- eles têm de ser criados e podem deixar de existir
o Para que se forme um sistema jurídico tem de haver uma regra de
produção desse sistema. Esta regra, denominada de regra de
produção, cria o sistema ao qual vão pertencer todos os princípios
e regras que forem aceites pelo próprio sistema. Esta função é
normalmente desempenhada por uma Constituição

1. Componentes do sistema (princípios jurídicos)

• Os princípios jurídicos podem ser programáticos, formais ou materiais

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1.2. Princípios programáticos
o Definem objetivos a alcançar e fins a atingir
o Função orientadora, procurando levar a que sejam alocados os meios
necessários para atingir determinados objetivos e fins, tais como a título
de exemplo, a construção da sociedade livre, justa e solidária a que se
refere o artigo 1º CRP
o Estes princípios indicam apenas que eles devem ser realizados na maior
medida possível (pro tanto)
o Tornam obrigatórias todas as medidas que favoreçam a obtenção desses
objetivos e fins e proíbem todas aquelas que impeçam vir a alcançá-los

1.3. Princípios formais


o São os princípios da justiça, da confiança e da eficiência
o O da justiça exige que o sistema jurídico seja justo e equitativo
o O da confiança jurídica requer que o sistema jurídico transmita
previsibilidade
o O da eficiência exige que o sistema jurídico procure obter os melhores
resultados com o menor dispêndio de recursos
o O sistema jurídico é tanto mais eficiente quanto menos complexo for
o A produção do direito não é possível sem atender aos princípios formais
o São simultaneamente constitutivos e regulativos

1.4. Princípios materiais


o Concretização dos princípios formais
o Mais ou menos contingentes
o Só realizam uma função regulativa
o Cada um dos princípios formais é concretizado em vários princípios
materiais (entre outros os seguintes):
• Justiça- princípio da igualdade (o que é igual deve ser tratado de
forma igual e que é desigual…)
• Justiça- princípio da proporcionalidade (os meios utilizados devem
ser adequados aos fins que se procura atingir ou realizar)
• Confiança- princípio de que a alteração da lei deve ser justificada
por razões objetivas
• Confiança- princípio de que a ignorância da lei não justifica a sua
violação (ignorantia iuris non excusat) (cf. Artigo 6º CC)
• Confiança- princípio da não retroatividade da lei nova, no sentido
em que esta não deve atingir factos, situações ou efeitos anteriores
à sua entrada em vigor (cf. Artigo 12º/1 CC)

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• Eficiência- princípio da alocação dos meios necessários/suficientes
para atingir os objetivos definidos, não menos do que os meios
necessários e não mais do que os meios suficientes

1.5. Critério de optimização


o Os princípios jurídicos só admitem uma medida de consagração possível:
o máximo que for compatível com os demais princípios
o No que toca aos princípios formais:
• Tem de ser consagrada a máxima justiça que for compatível com a
confiança e a eficiência; e vice-versa. Desta forma, temos os
princípios como «comandos de optimização»
o No que se refere aos princípios materiais:
• Devem ser consagrados na medida máxima que for compatível
com outros princípios materiais
o Através deste critério, é possível distinguir entre princípios materiais
absolutos e relativos
o Os absolutos são aqueles que não admitem nenhuma exceção segundo
outro princípio formal
• Exemplo: o princípio nulla poene sine lege (cf. artigo 29º/1 CRP)
concretiza o princípio formal de confiança e não admite nenhuma
exceção segundo outro princípio formal
o Os relativos são aqueles que admitem uma concretização segundo um
princípio formal e uma exceção segundo um outro princípio formal
• Exemplo: princípio da autonomia privada (cf. artigo 405º/1 CC)
concretiza o princípio formal da eficiência, mas admite exceções
com base nos princípios da justiça e da eficiência

2. Componentes do sistema (princípios e regras)

2.1. Critério comum


o Dworkin distingue os princípios das regras pelos seguintes aspetos:
• Os princípios têm «peso» e «importância», pelo que podem ser
aplicadas pelo juiz em diferentes medidas; já as regras são
totalmente aplicadas ou não aplicadas pelo juiz (critério do «tudo
ou nada»)
• Os princípios podem conflituar com outros princípios, pelo que
prevalece o princípio com mais peso ou mais importante, sem que
nenhum dos princípios conflituantes tenha de ser considerado
inválido; já as regras que entram em conflito não podem ser, todas
elas, regras válidas (orientação retomada por Alexy)

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2.2 Aplicação dos princípios
o Segundo a construção de Dworkin, os princípios, ao contrário das regras,
não fornecem uma razão conclusiva ou definitiva a favor de uma certa
solução ou decisão, mas apenas uma razão prima facie (à 1ª vista)
o Assim sendo, a crítica mais importante que pode ser dirigida à construção
de Dworkin é a de que o critério por ele proposto não é específico das
regras jurídicas, pois que também há princípios que estão submetidos a
esse critério
o A aplicação deste critério também se impõe quando houver a necessidade
de escolher, num caso concreto, a aplicação de um dos princípios
conflituantes. Nesta hipótese, o princípio que prevalece (mais
importante/pesado) afasta completamente o outro princípio conflituante
o Conclui-se assim que o critério do «tudo ou nada» não é suscetível de ser
utilizado para alicerçar uma distinção entre os princípios e as regras
jurídicas, pois que os princípios- como, aliás, as regras- só podem ser
aplicados na medida do «tudo». Deste modo se verifica que também os
princípios são totalmente aplicados (ou não)

2.3. Compatibilidade de regras


o Outra crítica à construção de Dworkin é a de que, tal como sucede com os
princípios, também as regras jurídicas podem conflituar sem que uma
delas tenha de ser considerada inválida. Para tal, basta que o conflito entre
as regras se resolva transformando uma delas numa regra especial ou
excecional da outra
o Tal como sucede com alguns princípios, também há regras jurídicas cuja
aplicação é afastada por outras regras
o Nem todos os princípios e nem todas as regras fornecem razões
conclusivas
o Assim sendo, alguns princípios e algumas regras fornecem apenas uma
razão pro tanto, isto é, uma razão que pode ser superada por outras
considerações

2.4. Axiologia dos princípios


o A distinção tem de ser feita através de um critério que não assente no «tudo
ou nada»
o Propõe-se a seguinte distinção: os princípios jurídicos referem-se a valores
estruturantes do ordenamento jurídico destinados a otimizar a efetividade
do direito na sociedade segundo os critérios de justiça, de confiança e de

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eficiência; as regras jurídicas são concretizações daqueles mesmos valores
ou são, certos casos, valorativamente neutras
o Há assim dois aspetos que distinguem os princípios das regras:
• Os princípios são sempre estruturantes e valorativos, visto que
permitem a produção de regras válidas ou determinam a invalidade
de regras com eles conflituantes; já as regras são sempre
instrumentais e podem não ser
o Por vezes os princípios são «abertos» e por vezes são «fechados»
o Os princípios e as regras são ambos elementos do sistema jurídico com
aptidão para servirem de critérios de decisão de casos concretos; esta
conclusão atenua a importância da sua distinção
o São apenas realidades axiologicamente distinta.
o A solução de um caso concreto tem exatamente o mesmo valor se for
fundamentada num princípio com uma grande dimensão axiológica ou
numa regra sem nenhuma carga valorativa; também enquanto critérios de
decisão, os princípios não se distinguem das regras

2.5. Resolução de conflitos


o Os princípios têm a hierarquia normativa das regras que os consagram ou
das regras dos quais eles são inferidos
o Deste modo, é pelo grau hierárquico atribuído pelo legislador ao princípio
que se descobre a sua hierarquia axiológica

3. Componentes do sistema (elementos inferidos)

• O sistema jurídico comporta regras e princípios, pelo que, nessa qualidade,


todos eles são dotados de um valor de positividade
• As fronteiras do sistema não são definidas pelo que seria necessário para
dar plena expressão aos princípios da justiça, da confiança e da eficiência,
mas pelo que é necessário para completar o sistema em função do que ele
mesmo regula

3.2. Elementos implícitos


o O grau de abstração dos princípios não facilita a sua consagração explícita
o Muito frequentemente os princípios só podem ser inferidos de
concretizações, necessariamente parcelares, em regras jurídicas
o Sem excluir que alguns princípios materiais estejam explicitamente
consagrados, o mais frequente é que os princípios sejam inferidos das suas
concretizações mais comuns, que são as regras jurídicas

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o A concretização legal de um princípio estende-se a todas as demais
possíveis do mesmo princípio

3.3. Elementos derivados


o Os princípios e as regras jurídicas vigentes num sistema jurídico não se
resumem àqueles que estão explicitamente consagrados: qualquer
princípio ou regra que possa ser inferido daqueles que estão consagrados
é também um elemento do sistema jurídico
o Os elementos derivados do sistema também podem ser inferidos com base
em argumentos jurídicos

1. Autonomia do sistema (pressupostos)

• Para que o sistema jurídico seja autónomo, é necessário que ele comporte
princípios e regras cuja validade seja aferida por ele próprio

2. Autonomia do sistema (validade e autonomia)

• Algumas orientações fazem assentar a validade do sistema jurídico numa


única regra, diferente de todas as demais. Destacam-se 2 versões desta
regra de validade

2.2. Norma fundamental


o Conceção apresentada por Kelsen (1881-1973)
o A construção desta assenta nas seguintes premissas:
• Toda a regra jurídica retira a sua validade de uma outra regra
jurídica de hierarquia superior
• A regra de hierarquia máxima num sistema jurídico só pode retirar
a sua validade de uma norma pressuposta e não escrita, que é a
norma fundamental
o Kelsen entende assim que a norma fundamental não é uma regra do próprio
sistema jurídico, mas uma «pressuposição lógico-transcendental»

2.3. Regra de reconhecimento


o Conceção apresentada por Hart (1907-1994)
o A construção desta assenta nas seguintes premissas:
• No ordenamento jurídico, existem regras primárias, que são
aquelas que impõem deveres de ação ou de omissão, e regras

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secundárias, que são aquelas que conferem poderes a determinadas
pessoas ou instituições. Estas regras secundárias permitem criar
novas regras primárias, determinar a sua incidência ou fiscalizar a
sua aplicação
• A regra de reconhecimento é uma regra secundária que permite
aferir a validade das outras regras do sistema e que decorre da
prática dos tribunais, dos funcionários e dos particulares
• Esta regra permite obviar à incerteza do regime das regras
primárias
o Ao contrário de Kelsen, a regra de Hart não é uma ficção, mas uma regra
do próprio sistema jurídico
o Diferente conceção da normatividade entre os 2 modelos teóricos:
• A norma fundamental é um pressuposto da validade das regras do
sistema, transmitindo ao sistema a validade
• A regra de reconhecimento reflete a aceitação social das regras do
sistema, fornecendo ao sistema a efetividade
• Enquanto a 1ª é necessária para justificar a validade das regras do
sistema jurídico, a 2ª limita-se a reconhecer como direito aquilo
que é aceite como direito

2.4. Apreciação cítica


o A autonomia e a validade do sistema são duas realidades distintas
o Se o sistema for autónomo, então só é válido o que ele próprio definir
como válido

3. Autonomia do sistema (construção da autonomia)

3.1. Regra de seleção


o Qualquer sistema tem de estabelecer as suas fronteiras perante o meio
ambiente e perante os outros sistemas
o Cada sistema normativo tem de possuir um critério próprio para
determinar o que nele é válido (para se autonomizar)
o A autonomia de um sistema normativo perante outros implica o
funcionamento de uma regra de seleção- uma regra que define o que
pertence ao sistema S₁, S₂ ou Sₙ
o Esta regra de seleção teria de ser concebida como uma regra «supra-
sistémica» que teria de ser colocada acima de todos os vários sistemas
normativos

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o A construção da autonomia de um sistema normativo não exige uma regra
de seleção exterior a esse sistema, basta uma regra de seleção do próprio
sistema
o Esta regra de seleção tem o seguinte enunciado:
• O que é válido num sistema normativo é definido exclusivamente
pelo próprio sistema, as fontes de um sistema são assim definidas
pelo próprio sistema
o Esta delimitação do sistema jurídico é incompatível com a atribuição do
caráter de fonte do direito ao costume
o A anterior afirmação não é considerada verdadeira pois que se o costume
é fonte do direito e se, portanto, as regras consuetudinárias pertencem ao
sistema jurídico, então este sistema comporta necessariamente uma regra
segundo a qual as regras de origem consuetudinária são regras válidas do
sistema jurídico. A referida regra é a regra de seleção

3.2. Função da regra


o A função primordial da regra de seleção é a de identificar o que pertence
a um sistema normativo
o A função de identificação que é realizada pela regra de seleção desdobra-
se num aspeto positivo e num aspeto negativo:
• Positivo (ou de inclusão) - refere-se à identificação do que pertence
ao sistema jurídico
• Negativo (ou de exclusão) – respeita à identificação do que é
excluído desse sistema
o Outra função primordial desta regra é a de assegurar a identidade do
sistema jurídico
o Enquanto a regra de seleção continuar a ser aplicável e enquanto só for
considerado válido o que for aceite por essa regra, o sistema permanece
inalterado, pese embora a criação e a extinção quotidiana de regras que
nele ocorre
o O sistema só se altera quando for considerado válido o que não puder ser
tido como válido segundo regra de seleção

3.3. Explicitação da regra


o Encontra-se a regra de seleção positivada no sistema jurídico português?
o Não existe no nosso ordenamento uma consagração expressa pelo que
existem afloramentos dessa mesma regra
o Um exemplo destes últimos é a regra que está contida no artigo 203º CRP,
segundo a qual os tribunais estão apenas à lei

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3.4. Limites da autonomia
o Entre os sistemas jurídicos também se pode verificar uma relação de
subordinação
o Nesta situação, um sistema encontra-se subordinado a um outro sistema, o
que implica duas consequências:
• As fontes que são válidas no sistema subordinante também são
válidas no sistema subordinado
• As fontes produzidas no sistema subordinado só são válidas se
forem aceites pelo sistema subordinante
o O sistema português- como, aliás, muitos outros- não é autónomo dada a
aceitação da prevalência das disposições do direito europeu e do direito
internacional público (ius cogens)

1. Funcionamento do sistema

• Este pode ser visto através de vários aspetos:


o Construção
o Consistência
o Abertura

2. Funcionamento do sistema (construção)

• Os sistemas sociais são sistemas autopoiéticos no sentido de que se


constroem a si próprios, sendo autorreferenciais
• O sistema jurídico também é um sistema autopoiético visto que ele se
produz, se mantém e se reproduz a si próprio
• O caráter autopoiético do sistema jurídico é uma consequência da regra de
seleção
• Este caráter decorre da circunstância de a competência para a formação de
fontes do direito ser definida por regras do próprio sistema e da validade
das regras jurídicas reveladas pelas fontes ser aferida em função de outras
regras jurídicas
• As relações de prevalência e de subordinação entre sistemas jurídicos
implicam que apenas sejam válidas as regras do sistema subordinado que
forem aceites pelo sistema subordinante
• Assim, o sistema subordinado, além de não ser autónomo, também não é
autopoiético

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3. Funcionamento do sistema (consistência)

3.1. Princípio da consistência


o O sistema jurídico, sendo um conjunto consistente de princípios e regras,
não só implica que este não possa comportar princípios e regras
contraditórias como também que os princípios e as regras têm de ser
consistentes com os seus semelhantes que constituem as suas fontes de
produção
o Princípio da consistência- princípio segundo o qual o sistema não pode
comportar elementos inconsistentes entre si e não pode admitir elementos
que não se baseiem em outros elementos do sistema

3.2. Tipos de consistência


o Um sistema jurídico é consistente quando qualquer obrigação pode ser
cumprida sem violar nenhuma obrigação (e vice-versa)
o Uma inconsistência é rara, atendendo que as regras jurídicas são sempre
hipotéticas, pelo que não há nenhuma contradição se algo for obrigatório
e não obrigatório em situações distintas
o A consistência do sistema não se resume àquela que respeita ao conteúdo
dos seus elementos:
• Consistência referida ao conteúdo
• Consistência respeitante à origem
▪ Esta falta quando um elemento do sistema for incompatível
com a sua fonte de produção

3.3. Conflito normativo


o Verifica-se quando um mesmo caso é subsumível a duas regras que geram
consequências incompatíveis
o Origina um dilema no destinatário das regras conflituantes quanto ao
comportamento a seguir
o Só há um verdadeiro conflito quando não for possível revogar ou invalidar
uma das regras conflituantes ou transformar uma destas em regra especial
ou excecional da outra
o Podem ser decididos quer ao nível da vigência das regras conflituantes (só
1 é vigente), quer ao nível da validade dessas regras (só 1 delas é válida)
quer ainda ao nível do âmbito de aplicação daquelas regras (apenas 1 delas
é aplicável)
o Em qualquer das hipóteses apresentadas um «conflito aparente»
transforma-se num falso conflito

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o Segundo Ross (1899-1979), existem 3 espécies de incompatibilidade entre
regras jurídicas:
• A incompatibilidade total-total- verifica-se quando nenhuma das
regras for aplicável, em nenhuma circunstância, sem conflituar
com uma outra
• A incompatibilidade total-parcial- ocorre quando uma das regras
não puder ser aplicada, em nenhuma circunstância, sem conflituar
com a outra, ao passo que esta tem um campo adicional de
aplicação que não entra em conflito com a primeira
• A incompatibilidade parcial-parcial- verifica-se quando uma das
regras tiver um campo de aplicação que não conflitua com o da
outra, mas também tiver um campo adicional de aplicação que é
conflituante com o daquela regra

3.4. Resolução do conflito


o Pode suceder que um conflito não possa ser resolvido nem através da
revogação ou da invalidade de uma das regras conflituantes, nem através
da harmonização dessas regras
o Tal acontece, por exemplo, quando as regras conflituantes pertencem ao
mesmo diploma legal e ambas possuem o mesmo campo de aplicação geral
ou específico
o Nesta hipótese, pode entender-se que se está perante um conflito
irresolúvel, conducente a uma «lacuna de colisão». Mas esta solução não
é a mais adequada: o mais acertado é invalidar (apenas) uma das regras
conflituante
o Para tal há que resolver o conflito através de uma ponderação de interesses,
sendo dada preferência à regra que proteger os interesses mais relevantes
o Esta solução tem uma fundamentação pragmática. Se o conflito fosse
resolvido através da invalidade de ambas as regras conflituantes, criar-se-
ia uma lacuna que deveria ser integrada através da regra que o intérprete
criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema (cf. artigo
10º/3 CC)
o Ora, sendo difícil que o intérprete não venha a construir uma regra
semelhante a uma das conflituantes, não tem sentido eliminar ambas as
regras para depois reintroduzir uma delas através da integração da lacuna
o O espírito do sistema deve assim orientar o intérprete desde logo na
escolha da regra que deve prevalecer e não na reintrodução de uma das
regras eliminadas
o Os conflitos normativos também se podem verificar entre regras de 2
sistemas jurídicos. Quanto à resolução deste tipo de conflitos, só importa
verificar a hipótese em que um sistema não é autónomo perante um outro

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(entre um sistema subordinado e um sistema superior). As regras do
sistema superior prevalecem sobre as do sistema subordinado

4. Funcionamento do sistema (abertura)

4.1. Necessidade da abertura


o Os sistemas sociais são sistemas autopoiéticos, mas não são sistemas
fechados em relação ao seu meio ambiente, pois que o caráter
autorreferencial destes não contradiz a sua abertura ao meio ambiente
o O sistema jurídico é igualmente um sistema aberto no sentido de que ele
comunica com outros sistemas, normativos (p.e. moral) ou não normativos
(p.e. política/economia)
o Nada obsta a que ele utilize conceitos próprios de outros sistemas nas suas
próprias operações
o Por vezes, a comunicação do sistema jurídico com outros sistemas realiza-
se através da receção de conceitos próprios destes últimos, sendo frequente
o recurso a conceitos indeterminados cuja valoração exige a consideração
de critérios específicos daqueles sistemas. Exemplos: boa fé e bons
costumes

4.2. Flexibilidade do sistema


o Quanto mais o sistema jurídico for aberto a conceitos próprios de outros
sistemas normativos, mais flexível ele se torna na solução de casos
concretos

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Título IV. Situações subjetivas

1. Enunciado das fontes

• Temos por situação subjetiva a estatuição das regras relativas a uma


conduta ou a um poder

2. Enunciado das fontes (concretização do objeto)

2.1. Conduta
o Se a regra jurídica tiver por objeto uma conduta, as hipóteses são as
seguintes:
o Se o operador deôntico for um comando uma proibição, a situação
constituída é um dever
o Se o operador deôntico for uma permissão, a situação jurídica
constituída é um direito
o Distinguindo entre situações subjetivas opostas, correlativas e
contraditórias, Hohfeld (1879-1918) apresenta, quanto às situações
relativas a condutas, a seguinte construção:

Direito (S₁) Não- direito (S₁)

Dever (S₂) Privilégio (S₂)

o Neste esquema as setas horizontais significam «oposição», as


verticais «correlatividade» e as cruzadas «contradição»

2.2. Poder
o Se a regra tiver por objeto um poder, os casos possíveis seguem-se:
• Se o operador deôntico for uma proibição, a situação jurídica
constituída é uma sujeição (ou uma incompetência)
• Se o operador deôntico for uma permissão, a situação jurídica
constituída é uma faculdade (ou uma competência)
o Com base na distinção entre situações subjetivas opostas, correlativas e
contraditórias, Hohfeld apresenta, quanto às situações relativas a poderes,
a seguinte construção:

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Faculdade (S₁) Não- faculdade (S₁)

Sujeição (S₂) Imunidade (S₂)

3. Enunciado das fontes (situações relativas e absolutas)

• As situações subjetivas podem ser relativas ou absolutas. A distinção faz-


se da seguinte forma:
o Há direitos que são correlativos de deveres (direitos relativos)
o Há direitos que implicam deveres (direitos absolutos)

1. Lógica da ação

• Uma ação introduz uma modificação no mundo e uma omissão não causa
nenhuma modificação no mundo. A lógica da ação refere-se às opções de
conduta (ação ou omissão) que, num certo momento, se abrem a um agente
• Os agentes podem confrontar-se com conflitos normativos (regras
contraditórias sobre direitos e deveres)
• Os agentes também podem confrontar-se com conflitos de situações
subjetivas, isto é, quando há direitos ou deveres cujo gozo ou cumprimento
impede o gozo ou o cumprimento de outros direitos ou deveres
• Estes conflitos não pressupõem nenhuma incompatibilidade entre regras
jurídicas
• Estes pressupõem apenas que, num caso concreto, se mostra impossível
gozar todos os direitos ou cumprir todos os deveres que constam de regras
válidas

2. Lógica da ação (incoerência pragmática)

• Mesmo que o sistema seja consistente, não é possível assegurar que todos
os direitos possam ser simultaneamente gozados e que todas as obrigações
possam ser simultaneamente cumpridas
• Mesmo o que é consistente no sistema, pode não ser consistente na prática
• Nunca é possível assegurar a consistência pragmática num sistema jurídico
• Nas situações abordadas vemos que se verifica uma colisão de deveres ou
de direitos. Casos mais frequentes:
o Os conflitos interpessoais de direitos- a impossibilidade de vários
titulares gozarem simultaneamente os seus direitos

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o Os conflitos unipessoais de deveres- a impossibilidade de uma
mesma pessoa cumprir simultaneamente todos os seus deveres

3. Lógica da ação (espécies de conflitos)

3.1. Colisão de direitos


o A colisão (interpessoal) de direitos ocorre quando vários sujeitos são
titulares de direitos incompatíveis entre si
o Colisão de direitos homogéneos- quando os direitos incompatíveis são
todos da mesma espécie
o Colisão de direitos heterogéneos- quando os direitos conflituantes
pertencem a espécies distintas

3.2. Conflito de deveres


o O conflito (unipessoal) de deveres ocorre quando, sobre um mesmo
sujeito, recaem deveres incompatíveis
o Conflito de deveres homogéneos- todos os deveres pertencem à mesma
espécie
o Conflito de deveres heterogéneos- os deveres pertencem a diferentes
espécies
o A análise dos conflitos de deveres implica uma referência aos atos supra-
rogatórios- aqueles cuja prática é louvada, mas cuja omissão não pode ser
censurada

4. Lógica da ação (solução dos conflitos)

4.1. Direito positivo


o O direito positivo fornece alguns critérios para solucionar o conflito de
direitos:
• A hierarquização dos direitos conflituantes
• A prioridade do direito ou do seu exercício (prior tempore, potior
iure)

4.2. Fórmula de ponderação


o Na falta de critério legal, a colisão de direitos e o conflito de deveres só
podem ser solucionados através de uma ponderação de interesses
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o Como se efetua esta ponderação:
• Todos os direitos e deveres têm uma medida ótima de serem
gozados ou de serem cumpridos
• Um direito ou um dever conflituante pode «sub-otimizar» ou
impedir o gozo de um outro direito ou o cumprimento de um outro
dever
• Prevalece o direito cujo gozo ou o dever cujo cumprimento
«derrotar» a contrarrazão fornecida por um direito ou por um dever
incompatível
• Os direitos ou deveres são equivalentes se a razão para o gozo ou
o cumprimento de um deles for igual à contrarrazão fornecida por
outro conflituante para o seu não gozo ou não cumprimento
• As razões e contrarrazões são aferidas pela importância dos
interesses a que eles respeitam, há que dar preferência ao direito
ou ao dever superior
• Esta prevalência pode originar duas situações (+ frequentes):
▪ Ou apenas o direito prevalecente pode ser gozado
▪ Ou o cumprimento do dever prevalecente não afasta o
cumprimento do dever inferior conflituante
• Se um direito ou um dever respeitar a um interesse equivalente dos
demais direitos ou deveres conflituantes, então nenhum prevalece
sobre os demais. Há assim que considerar duas situações:
▪ Apesar de conflituantes, todos os direitos podem ser
gozados, embora somente numa medida «sub-otimizada»
(artigo 335º/1)
▪ Outra situação (específica dos deveres) verifica-se quando,
apesar de equivalentes, não é possível cumprir todos os
deveres conflituantes: nesta hipótese, pode ser cumprido
qualquer dever

5. Lógica da ação (valor prima facie)

5.1. Condição pragmática


o Como já vimos, nenhuma situação subjetiva pode ser considerada absoluta
o As situações subjetivas valem apenas prima facie, elas podem ser
preteridas por outras situações subjetivas prevalecentes
o As situações subjetivas atribuídas pelo sistema jurídico estão submetidas
a uma condição pragmática, com um dos seguintes enunciados:
• O titular só pode gozar o seu direito se, na situação concreta, não
houver um direito de outrem que deva prevalecer

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• O titular só está obrigado a cumprir o seu dever perante alguém se,
na situação concreta, não houver um dever perante outrem que
deva prevalecer
o As situações subjetivas que cedem perante outras estão sujeitas a uma
pragmatic defeasibility
o No que se refere aos deveres prima facie, importa referir que se pode
entender que a prevalência de um deles torna inexistentes os deveres
conflituantes ou considerar que todos eles se mantêm existentes, embora
releve uma causa que justifica o não cumprimento de um deles

5.2. «Razões excludentes»


o Raz distingue entre razões para agir de primeira e de segunda ordem:
• Aquelas fornecem razões para agir ou não agir, estas fornecem
razões para agir ou não agir de acordo com outras razões
o As razões de segunda ordem que justificam a abstenção de agir de acordo
com uma razão são denominadas por Raz de «razões excludentes»
(exclusionary reasons)
o A diferença entre ambas as razões radica no facto de as razões de primeira
ordem poderem ser afastadas por uma razão com maior força e de as
«razões excludentes» prevalecerem sobre quaisquer outras razões
o As razões de primeira ordem cedem assim perante contrarrazões, ao passo
que as de segunda ordem não cedem

5.3. Defeasibility of duties


o Não são apenas os conflitos de deveres que originam deveres prima facie,
ou seja, deveres que podem ser «derrotados» (defeated) por outros deveres
o Girill fornece uma interessante e mais ampla análise, baseada em 3
hipóteses:
• Uma destas é a cancellation
• Outra, decorrente de um conflito de deveres, é a overriding
• Uma última é a mutification

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Título V. Direito Transitório Formal

1. Enquadramento geral (enunciado do problema)

• As fontes do direito são produzidas num determinado momento e entram


em vigor num certo momento. Quando ocorre o início de vigência da LN
verifica-se a revogação da LA (cf. art. 7º/2 CC). A revogação da LA pela
LN permite assegurar a consistência do sistema jurídico, visto que evita
que vigorem duas leis sobre a mesma matéria
• Há situações jurídicas (a tratar) que se constituíram na vigência da LA e
que transitam para a vigência da LN
• Uma solução possível é entender que as situações jurídicas constituídas
antes do início da vigência da LN continuam a ser regidas pela LA.
Conclui-se assim que o tempo de aplicabilidade das fontes nem sempre
coincide com o seu tempo de vigência

3. Enquadramento geral (princípios orientadores)

3.1. Referências da LN
o Existem duas possíveis referências da LN no que diz respeito à aplicação
da lei no tempo e à sucessão de matérias:
• Esta pode referir-se a factos jurídicos, i.e., a acontecimentos que
ocorreram num determinado momento e num determinado lugar.
Nestes há que distinguir 2 modalidades:
• Os factos instantâneos- os de verificação instantânea
• Os factos duradouros- os que perduram no tempo
• Estes pode também referir-se a efeitos jurídicos. Nestes importa
distinguir 2 modalidades:
• Os efeitos instantâneos- que são consequências
momentâneas de factos jurídicos
• As situações jurídicas- que são consequências duradouras
de factos jurídicos

3.2. Fundamentos dos princípios


o Há que escolher, no que respeita à resolução dos problemas relativos à
aplicação da lei no tempo há que escolher entre:
• Um «interesse na estabilidade» - aplicação da LA
• Um «interesse na adaptação» - aplicação da LN

18
3.3. Enunciado dos princípios
o A resolução dos conflitos de leis no tempo orienta-se pelos princípios da
não retroatividade da LN e da aplicação imediata da LN
• A não retroatividade da LN constitui um reflexo do interesse na
estabilidade e uma emanação do princípio da confiança,
significando o seguinte:
• A LN não se aplica a factos passados
• A LN não se aplica a efeitos passados
• A aplicação imediata da LN reflete o interesse na adaptação e
constitui uma exigência do Estado de direito e do caráter
tendencialmente abstrato e genérico das regras jurídicas:
• A LN aplica-se a todos os factos futuros que venham a
ocorrer na sua vigência
• A LN aplica-se a todos os efeitos futuros que venham a
ocorre na sua vigência
• A LN aplica-se a todos os factos jurídicos que se tenham
iniciado na vigência da LA e que ainda estejam em curso
no início de vigência da LN
• A LN aplica-se a todas as situações jurídicas que se tenham
constituído na vigência da LA e que não se tenham
extinguido antes da vigência da LN

1. Direito transitório
o O direito transitório resolve os problemas suscitados pelos conflitos de leis
no tempo

2. Direito transitório (modalidades)

2.1. Enunciado das modalidades


o O direito transitório pode ser material ou formal:
• O material fixa um regime específico para determinados factos ou
efeitos jurídicos, não coincide com o regime da LN nem com o da
LA
• O formal escolhe, de entre a LA e a LN, qual é a lei aplicável a um
certo facto ou a um determinado efeito jurídico
▪ Este comporta regimes específicos, um especial e um geral
▪ O regime especial encontra-se estabelecido no artigo 297º
CC e o geral nos artigos 12º e 13º CC

19
2.3. Regras de conflitos
o O direito transitório formal escolhe se a lei aplicável ao facto ou ao efeito
jurídico é a LA ou a LN
o Este direito é constituído por regras de conflitos- regras que determinam,
através de uma escolha entre a LA e a LN, qual a lei competente para
regular um certo facto ou um certo efeito jurídico
o Estas regras comportam uma previsão e uma estatuição:
• A previsão contém 2 elementos:
▪ O objeto de conexão- define o campo de aplicação da regra
de conflitos, servindo-se, para isso, de um conceito-quadro
(facto/situação jurídica/efeito jurídico que se procura se é
regulado pela LA ou pela LN
▪ O elemento de conexão- é o elemento utilizado pela regra
de conflitos para estabelecer a conexão com a LA ou com
a LN
o No caso das regras de direito transitório é a
ocorrência do facto, a existência da situação
jurídica ou produção do efeito na vigência da LA ou
da LN
• A estatuição é a determinação da lei competente para regular o
facto, a situação jurídica ou o efeito jurídico

1. Soluções do conflito (enunciado)

• A resolução de um conflito de leis no tempo pode ser obtida através da


aplicação imediata da LN, da sobrevigência da LA, da retroatividade da
LN ou da retroconexão da LN

2. Soluções do conflito (regime legal)

2.1. Análise geral


o As soluções possíveis distribuem-se da seguinte forma:
• A aplicação imediata da LN (art.12º/1 1ª parte e 2 2ª parte, CC)
• A sobrevigência da LA (art.12º/2 1ªparte, CC)
• A retroatividade da LN (art.12º/1 2ª parte e 13º/1, CC)
• A retroconexão da LN (art.12º/1 1ª parte, CC)

20
2.2. Título constitutivo
o É importante determinar se a situação jurídica tem um conteúdo que
depende do seu facto constitutivo ou se esse conteúdo é independente deste
facto. Devem assim admitir-se 2 hipóteses:
• Uma delas é aquela em que o título não modela a situação jurídica,
dado que a situação jurídica tem sempre o mesmo conteúdo,
qualquer que seja o título que a ela esteja subjacente (art.12º/2 2ª
parte, CC)
• Outra hipótese é aquela em que o título modela a situação jurídica,
i.e., em que o conteúdo da situação jurídica varia de acordo com o
respetivo título constitutivo (art.12º/2 1ª parte, CC)

2.3. Orientação metodológica


o Há uma alternatividade entre o que se dispõe na primeira (sobrevigência
da LA) e na segunda parte (aplicação instantânea da LN) deste preceito

1. Critérios subsidiários gerais (aplicação imediata da LN)

1.1. Factos jurídicos


o O princípio da aplicação imediata da LN aos factos jurídicos (art.12º/1 1ª
parte, CC) ao estabelecer que a lei só dispõe para o futuro
o Este preceito significa que a LN regula quer os factos jurídicos que
ocorram após a sua vigência, quer os factos duradouros que se iniciaram
na vigência da LA e que se mantenham no momento do início de vigência
da LN

1.2. Efeitos instantâneos


o Quando referida a efeitos jurídicos instantâneos, a aplicação imediata da
LN implica que sejam abrangidos pela LN os efeitos que se
produzam/modifiquem/extingam depois do seu início de vigência
o A constituição de um efeito jurídico pode decorrer da conjugação de factos
que ocorreram na vigência da LA e de factos que se verificaram na
vigência da LN

21
1.3. Situações jurídicas
o Para que se verifique a aplicação imediata da LN a situações jurídicas que
se constituíram na vigência da LA e que transitam para o domínio da LN
(art.12º/2 2ª parte, CC) é necessário que a LN disponha diretamente sobre
o conteúdo de certas situações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes
deram origem (título constitutivo). Nesta hipótese, o título não modela o
conteúdo da situação jurídica, pelo que nada obsta à aplicação imediata da
LN

2. Critérios subsidiários gerais (sobrevigência da LA)

• A sobrevigência da LA está prevista no art.12º/2 1ª parte, CC- verifica-se


que sempre que a LN se refira às condições de validade de um ato jurídico
ou ao conteúdo de situações jurídicas que não possam abstrair do seu título
constitutivo

2.2. Condições de validade


o A essas condições de validade aplica-se a LA

2.3. Conteúdo de situações


o Quando a LN disponha sobre o conteúdo de uma situação jurídica e não
abstraia do respetivo facto constitutivo, não pode verificar-se a aplicação
imediata da LN, pois que a hipótese não é enquadrável no disposto no
art.12º/2 2ª parte, CC)
o Logo, há que aplicar a essa hipótese o estabelecido no art.12º/2 1ª parte,
CC, pelo que o conteúdo da situação jurídica continua a ser regulado pela
LA, i.e., verifica-se a sobrevigência da LA se o título constitutivo dessas
situações tiver um efeito modelador sobre o seu conteúdo

3. Critérios subsidiários gerais (retroatividade da LN)


o A LN é retroativa quando ela se aplica a factos já ocorridos ou a efeitos já
produzidos antes da sua entrada em vigor
o A LN também é retroativa quando produz um efeito jurídico ou extingue
um efeito jurídico produzido com base num título modelador anterior à sua
vigência

22
3.2. Admissibilidade da retroatividade
o Existem duas exceções ao princípio da não retroatividade:
• A LN pode ter eficácia retroativa- (art.12º/1 2ª parte, CC)
• A lei interpretativa tem caráter retroativo- (art.13º/1, CC)

3.3. Limites à retroatividade


o Encontram-se na CRP as seguintes limitações:
• As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias não podem ter
efeito retroativo (art.18º/3, CRP)
• A lei penal incriminatória não pode ser retroativa (cf. art.19º/6,
CRP)
• A lei que regula a competência dos tribunais criminais não pode
ser retroativa (art.32º/9, CRP)
• A lei que cria impostos não pode ser retroativa (art.103º/3, CRP)

3.4. Lei retroativa


o Quando a LN tenha eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados
os efeitos já produzidos pelos factos que ela se destina a regular (art.12º/1
2ª parte, CC)

3.5. Lei interpretativa


o A lei interpretativa é a lei que realiza a interpretação autêntica de um ato
normativo, o que pressupõe o caráter interpretativo (não inovatório)
daquela lei. Segundo o art.13º/1, CC, esta lei integra-se na lei interpretada,
i.e., ficciona-se que o significado estabelecido pela lei interpretativa
coincide com o único significado que a lei interpretada sempre comportou
o Nos casos em que esteja constitucionalmente excluída a retroatividade não
pode haver lei interpretativa retroativa (só pode ser objeto de uma lei
interpretativa sem eficácia retroativa)
o A retroatividade da lei interpretativa não é irrestrita pois não atinge nem o
cumprimento da obrigação, nem a sentença que adquiriu força de caso
julgado por não ser impugnável (cf. art.677º, CPC), nem a transação (cf.
art.1248º/1, CC) e os atos análogos
o A lei pode ser qualificada pelo legislador como interpretativa e vir a
verificar-se que, afinal, tem um conteúdo inovador. Nesta hipótese, a lei é
falsamente interpretativa, mas, salvo exceções de inconstitucionalidade,
deve ser-lhe atribuída a retroatividade estabelecida no art.13º/1, CC

23
3.7. Graus de retroatividade
o Na ordem jurídica portuguesa, são admissíveis os seguintes graus de
retroatividade:
• Ordinária- é a que respeita todos os efeitos já produzidos antes da
entrada em vigor da LN (art.12º/1 2ª parte, CC)
• Agravada- “ “ “ “ determinados efeitos produzidos antes da
vigência da LN, mas que atinge outros (art.13º/1, CC)
• Quase-extrema- “ “ “ só respeita o caso julgado obtido antes da
vigência da LN
• Extrema- “ “ “ nem sequer respeita o caso julgado anterior à
vigência da LN

4. Critérios subsidiários gerais (retroconexão da LN)


o A retroconexão decorre do preenchimento da previsão da LN com factos
passados ou efeitos já produzidos. Esta não conduz a nenhuma alteração
do passado, mas à definição do presente em função de fatos ou efeitos do
passado

4.2. Modalidades da retroconexão


o Pode ser total ou parcial:
• Total- quando o facto ou o efeito que serve de previsão da LN já
se verificou totalmente no passado
• Parcial- quando a previsão da LN engloba quer factos que
ocorreram ou efeitos que se produziram na vigência da LA, quer
factos ou efeitos que se verificaram na vigência da LN

4.3. Limites da retroconexão


o Existem limites da retroatividade extensíveis à retroconexão:
• A proibição da aplicação retroativa da lei penal (cf. art.29º/4, CRP)
• A proibição da retroatividade das leis restritivas de direitos,
liberdades e garantias (cf. art.18º/3, CRP)
• A necessidade de a lei retroativa respeitar o caso julgado (cf.
art.282º/3, CRP)

4.4. Consagração da retroconexão


o A retroconexão conduz à aplicação imediata da LN

24
• Na total, a LN é aplicada imediatamente a factos ou a efeitos
totalmente passados
• Na parcial, a LN é imediatamente aplicada, em parte, a factos ou a
efeitos passados e, em parte, a factos ou a efeitos presentes

1. Critério supletivo especial

• O art.297º CC estabelece uma regra especial para a sucessão de leis sobre


prazos

2. Critério subjetivo especial (aplicação do regime)

2.1. Diminuição do prazo


o Se a LN estabelecer um prazo mais curto do que a LA, a LN é
imediatamente aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o
prazo só se conta a partir da entrada em vigor da LN, a não ser que,
segundo a LA, falte menos tempo para o prazo se completar (art.297º/1,
CC)
o Este regime traduz-se numa sobrevigência da LA e é justificado pela
necessidade de evitar que um encurtamento do prazo se viesse a traduzir
num aumento desse mesmo prazo

2.2. Aumento do prazo


o Se a LN fixar um prazo mais longo do que aquele que era definido pela
LA, a LN é imediatamente aplicável aos prazos em curso, mas computar-
se-á neles todo o tempo decorrido desde o seu momento inicial (art.297º/2,
CC)

3. Critério supletivo especial (campo de aplicação)

3.1. Extensão
o O art.297º/3, CC, determina que as regras relativas à sucessão de leis sobre
prazos são igualmente aplicáveis aos prazos fixados pelos tribunais ou por
qualquer outra autoridade

25
3.2. Restrição
o O disposto no art.297º/1 e 2, CC é aplicável a todos os prazos que sejam
fixados por uma LN? A resposta é negativa
o O artigo abordado não é aplicável quando os prazos tenham sido definidos
pelas partes ou quando estas não tenham estipulado quaisquer prazos e
tenham aceite os prazos legais supletivos
o Relativamente à aplicação do regime estabelecido no art.297º CC aos
prazos legais, há que considerar 2 situações:
• Se a LN aumentar o prazo que consta da LA, aplica-se sempre o
disposto no art.297º/2, CC
• Se a LN encurtar o prazo que consta da LA, importa distinguir 2
hipóteses:
▪ Se a aplicação imediata do prazo mais curto criar um
desequilíbrio entre as partes, o disposto no art.297º/1 CC,
acautela suficientemente os interesses de todas as partes
▪ Se a aplicação imediata do prazo mais curto não originar
nenhum desequilíbrio entre as partes, nomeadamente
porque qualquer delas pode beneficiar desse mesmo prazo,
a solução é a aplicação imediata da LN de acordo com o
disposto no art.12º/1 1ª parte CC, não havendo qualquer
necessidade de aplicar o art.297º/1 CC

26
Título I. Linguagem e Direito

1. Generalidades (regras e linguagem)


o O direito é construído por fontes que se exprimem através de enunciados
linguísticos, pelo que não há direito sem linguagem e fora da linguagem
o A linguagem também marca a fronteira do dever ser e do direito

2. Generalidades (dimensões da linguagem)

• A dimensão extensional/conceptual/classificatória e uma dimensão


intensional/tipológica/ordinatória. Esta dualidade parte da distinção entre
a extensão e a intensão
• A extensão de um conceito é determinada pela realidade extralinguística a
que ele se refere, i.e., pela sua referência
• A intensão de um conceito é o seu sentido, ou seja, é o que ele exprime ou
o seu valor informativo. Compreender um conceito é sempre compreender
a sua intensão

1. Dualidade da linguagem

• O legislador pode exprimir-se tanto numa dimensão conceptual ou


classificatória, como numa dimensão tipológica ou ordinatória
• A dimensão classificatória tem expressão nos conceitos jurídicos e a
dimensão ordenatória se reflete nos tipos legais
• Bentham (1748-1832) afirmou que o método per genus et differentiam
(método comum de definir), não responderá de modo algum ao propósito.
Assim sendo propõe o recurso à «paráfrase» para suplantar esta
dificuldade. Na realidade, a paráfrase consiste em descrever, por outras
palavras, a referência do que é definido
• Hart (1907-1992), pelo contrário, utiliza um método extensional de
definição com base no pressuposto de que, para determinar o significado
de uma expressão jurídica, é necessário recorrer às condições em que a
mesma é verdadeira, ou seja, de que o significado dessa expressão depende
das condições da sua verdade. Portanto, em vez de procurar enunciar as
caraterísticas do direito subjetivo, Hart prefere indicar a realidade a que
ele se refere

27
2. Dualidade da linguagem (conceitos determinados)

2.1. Noção
o Os conceitos determinados são conceitos que possuem uma extensão
determinada

2.2. Modalidades
o Estes podem ser normativos ou empíricos
o Os conceitos normativos são próprios de uma ordem normativa. Eles
englobam conceitos que só significam algo no âmbito de uma ordem
normativa
o Nos conceitos determinados normativos cabem também aqueles que têm
aceção extrajurídica, mas que, para o direito, só podem ser considerados
no seu sentido jurídico
o Os conceitos determinados empíricos são conceitos próprios de uma
realidade não normativa

3. Dualidade da linguagem (conceitos indeterminados)

3.1. Noção
o Os conceitos indeterminados são conceitos de extensão variável, ou seja,
são conceitos vagos. Estes comportam, quanto ao seu significado, um
núcleo e um halo ou uma zona iluminada e uma zona de penumbra. Estes
são próprios de uma fuzzy language, i.e., de uma linguagem na qual, em
certos casos, é claro a quê que ela se refere e, noutros, não é claro a quê
que ela não se refere

3.2. Preenchimento
o O conceito indeterminado está preenchido não só quando a situação
concreta se inclua no seu núcleo, mas também quando essa situação ainda
possa ser incluída no halo ou na penumbra desse conceito
o O juízo sobre um conceito indeterminado pode conduzir a um de 3
resultados:
• Este conceito é indiscutivelmente aplicável, porque a situação
concreta se integra no núcleo do conceito
• Este conceito é manifestamente não aplicável, porque a situação
concreta está para além do que pode ser abrangido pelo seu halo
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Este conceito não é como nenhum dos primeiros, sendo certo que
a situação concreta não cabe no núcleo do conceito, não é, no
entanto, certo que ela não possa ser abrangida pelo seu halo
o O que torna os conceitos indeterminados problemáticos é a circunstância
de eles poderem ser concretizados em diferentes medidas e de, portanto,
ser fluida a fronteira entre o seu preenchimento e o seu não preenchimento

3.4. Concretização
o Estes conceitos só podem ser compreendidos e aplicados através de uma
concretização pela qual se ajuíza o que neles é integrável e o que deles está
excluído

4. Dualidade da linguagem (tipos legais)

4.1. Noção
o A palavra «tipo» designa um arquétipo ou uma entelequia ou algo de
paradigmático, de exemplar ou de modelar

4.2. Classificação
o Pode distinguir-se entre um tipo médio e um tipo constitutivo
o O tipo médio ou tipo de frequência descreve o que se verifica com maior
frequência
o O tipo de totalidade ou constitutivo descreve uma realidade de acordo com
os seus traços caraterísticos, os seus elementos essenciais ou as suas notas
distintivas

1. Redução tipológica (Classificação vs. Ordenação)

• O conceito tem uma função classificatória, pelo que o tipo tem uma função
ordenatória
• O tipo é fluido e os tipos representam sempre ilustrações ou manifestações
de um conceito, podendo-se concluir que um tipo não pode ser definido,
mas apenas descrito
• Disto decorre que, enquanto o conceito é sempre (+/-) abstrato, o tipo é
sempre (+/-) concreto

29
2. Redução tipológica (Conceito vs. Tipo)

• O conceito é «fechado» - o conceito exige assim a verificação de todos os


seus elementos constitutivos; no conceito tudo é essencial
• O tipo é «vago» - o tipo está preenchido ainda que os seus elementos se
verifiquem em diferentes configurações ou ainda que esses elementos se
combinem com elementos acessórios ou mesmo com elementos atípicos;
num mesmo tipo pode conjugar-se algo que é essencial, algo que é
acessório e algo que é atípico

2.2. Prevalência do tipo


o Na linguagem quotidiano o tipo é muito mais relevante do que o conceito,
ao passo que mesmo a linguagem do quotidiano é fundamentalmente uma
linguagem tipológica
o Especificamente, no caso da linguagem jurídica, cabe ao legislador
escolher entre uma dimensão conceptual ou classificatória e uma dimensão
tipológica ou ordenatória
o A escolha frequente desta dimensão tipológica é tomada pelo legislador, o
qual procura normalmente fornecer o enquadramento jurídico de certas
matérias
o A previsão das regras relativas a condutas ou ao exercício de poderes é,
quase sempre, constituída por tipos
o O mesmo caráter tipológico pode ser atribuído às definições legais, porque
elas são descrições dos elementos típicos de certos conceitos
o A prevalência do tipo sobre o conceito mostra-se, com particular
evidência, no âmbito dos conceitos indeterminados. A indeterminação
destes conceitos é uma indeterminação quanto aos casos que eles
abrangem, pelo que esses conceitos são afinal tipos. O mesmo pode ser
dito dos conceitos determinados que são empregados numa dimensão
tipológica

1. Divisio e partitio (apresentação da distinção)

1.1. Termos da distinção


o A divisio consiste na divisão da extensão de um conceito, ou seja, na
divisão de um género nas suas espécies
o Já a partitio consiste na decomposição de um conceito nas suas notas
caraterísticas

30
1.2. Consequências da distinção
o A divisio é própria da dimensão conceptual da linguagem e de um sistema
fechado
o A partitio é própria da dimensão tipológica da linguagem e de um sistema
aberto

2. Divisio e partitio (relevância da distinção)

2.1. Apresentação
o A importância da distinção entre a divisio e a partitio resulta da
circunstância de que ela acompanha a diferença entre o conceito e o tipo.
A divisio é a divisão de um conceito mais extensão (género) em todos os
conceitos menos extensos (espécies) que aquele comporta
o A partitio é a decomposição de um conceito nos seus elementos
caraterísticos. É por isso que a partitio constitui a primeira operação que é
necessária para passar do conceito para o tipo

31
Título I. Hermenêutica e Direito

1. Hermenêutica normativa (normatividade da compreensão)

1.1. Premissas fundamentais


o Hermenêutica normativa- uma orientação cuja premissa essencial é a de
que não há significado, mas antes atribuições de significados com base em
certas regras
o Esta hermenêutica resulta quer do caráter prático da interpretação e da sua
ligação com o caso, quer da posição de que «o significado de uma palavra
é o seu uso na linguagem» e de que compreender uma regra é saber aplicá-
la
o Esta recolhe ainda contributos do neo-pragmatismo, em especial do
entendimento de que o significado do que se afirma explicitamente
depende do que está implícito numa prática social
o Interpretar uma fonte é determinar o seu significado, i.e., é inferir a regra
da fonte. A interpretação permite passar da fonte para a regra, pelo que se
pergunta: como se pode inferir a regra da fonte? Essa inferência só é
possível através da determinação dos casos, reais ou hipotéticos, a que a
fonte for aplicável. Assim, a regra explicita o que está implícito na praxis
da fonte
o A regra é o significado (prático) da fonte, pelo que a interpretação de uma
fonte pressupõe a sua aplicação
o O que está fora do campo de aplicação da fonte está igualmente fora do
resultado da sua interpretação. Esta orientação apresenta a vantagem de
poder ser utilizada em relação a qualquer fonte do direito
o A interpretação não visa traduzir um enunciado linguístico (a fonte) num
outro enunciado linguístico (a regra): a regra não é um enunciado, mas o
significado do enunciado que é a fonte. A interpretação da fonte termina
no momento em que se obtém a regra que é o seu significado prático
o Qualquer descrição de um significado também está sujeita a interpretação,
pelo que o significado de uma proposição jurídica só pode ser o próprio
significado descrito, i.e., a regra jurídica que é descrita nessa proposição.
Nesta perspetiva, atendendo a que o significado da proposição é igual ao
significado da fonte, a melhor definição de proposições jurídicas é a de
que elas constituem paráfrases de significados de fontes

1.2. Semântica inferencial


o Brandom propõe uma análise numa «pragmática normativa» e destinada a
tornar explícito o que está implícito nas práticas sociais

32
o São as normas que estão implícitas na prática que permitem compreender
as regras explícitas
o O que é dito torna explícito o que está implícito no que é feito, pelo que
de um knowing-how resulta num knowing-that
o Com base no pressuposto, de ordem pragmática, de que o que é importante
são as consequências de um enunciado, o conteúdo deste é determinado
pelo seu lugar numa rede de inferências materiais assumidas numa prática
discursiva
o Disto resulta que o significado de uma expressão decorre do papel
inferencial que ela pode desempenhar. Brandom fundamenta uma
semântica inferencial numa pragmática normativa
o Quanto ao «vocabulário normativo» e ao domínio do raciocínio prático, «a
sua função expressiva é tornar explícitos compromissos de inferências»
práticas, pelo que as regras tornam explícito o que está implícito numa
inferência prática

2. Hermenêutica normativa (relevância da pré-compreensão)

• A hermenêutica normativa aceita o papel da pré-compreensão. Toda a


compreensão tem como pressuposto uma pré-compreensão, pois que, sem
se formar um pré-juízo sobre o que se pretende compreender, nada é
possível compreender. Assim, antes de compreender algo é necessário
saber também como se quer compreender
• Na perspetiva de Gadamer a pré-compreensão é legitimada pela história e
pela tradição. A compreensão é condicionada por uma «fusão de
horizontes» entre o passado e o presente
• Já Wittgenstein serve-se dos «jogos de linguagem» para exprimir uma
ideia semelhante. A língua só compreensível por aquele que aceita
submeter-se às regras de um jogo de linguagem, porque «conceber uma
linguagem implica conceber uma forma de vida»
• Antes de compreender uma expressão, é necessário integrá-lo num jogo de
linguagem
• Já Brandom diz que o conteúdo dos conceitos é fornecido pelas normas
que estão implícitas nas práticas discursivas. Para compreender o explícito
no que é dito é necessário ter compreendido antes o que está implícito na
praxis que corresponde ao que é dito

33
1. Hermenêutica jurídica (enquadramento geral)

1.1. Função da interpretação


o A interpretação jurídica é a atividade através da qual se compreende uma
fonte do direito
o A interpretação é o meio através do qual se chega à regra contida na fonte
o A interpretação não é um ato, mas um processo: o intérprete vai
interpretando a fonte até conseguir inferir a regra
o A interpretação de uma fonte não visa determinar um qualquer significado,
mas apenas o seu significado prático, i.e., um significado que possa
constituir um elemento de um raciocínio prático
o Procura-se assim um conhecimento que possa fornecer a razão para uma
ação ou uma omissão
o Importa assim determinar o significado que permite ao destinatário saber
o que fazer com a fonte: o destinatário que sabe o que a fonte lhe permite
fazer ou não fazer já inferiu a regra da fonte

1.2. Interpretação e aplicação


o O conhecimento do sentido de um texto jurídico e a aplicação do mesmo
a um caso jurídico concreto é um processo unitário
o Para extrair a regra da fonte, é sempre necessário conhecer os casos a que
aquela fonte é aplicável
o A interpretação jurídica é sempre «operativa», pois que ela não é
explicatio, mas sim applicatio
o A circunstância de a interpretação da fonte exigir a determinação dos casos
a que ela é aplicável permite extrair vários corolários
• A fonte não contém nenhum significado em si mesma, é aquele que
lhe é dado pelo intérprete
• Entre a fonte e a regra só se interpõem os casos: a fonte é o modo
de revelação da regra e esta revela-se através da aplicação da fonte
a casos. A interpretação e a qualificação são assim correlativas
entre si. Conclui-se que os casos a que a fonte é aplicável não são
determinados depois da construção da regra, mas antes desta;
chega-se à regra através do mundo, não ao mundo através da regra
• Deste último decorre um outro: o conhecimento do que se pode
fazer com a fonte (prático), antecede o conhecimento do que a
fonte prescreve (teórico), pois que só é possível saber o que a fonte
prescreve conhecendo os casos a que ela é aplicável. Concluindo,
na interpretação da fonte, o knowing-how é anterior ao knowing-
that; compreender uma fonte é saber aplicá-la

34
1.3. Normatividade da interpretação
o A hermenêutica jurídica não pode dispensar um método na interpretação
das fontes do direito
o Na interpretação de uma fonte, o intérprete procura inferir qual a regra que
se contém nessa fonte, pelo que se conclui que «a interpretação jurídica
nunca é um fim em si mesmo, antes está ao serviço da aplicação do direito»
e que a hermenêutica jurídica «é aplicativa e nunca apenas reconstrutiva».
Nenhuma fonte assegura, ela mesma, a correção da sua interpretação: essa
correção só pode ser avaliada em função de elementos estranhos à fonte
interpretada. É por isto necessário recorrer a regras na interpretação das
fontes do direito
o A vinculação à lei abrange necessariamente uma vinculação ao método da
sua interpretação. Esta vinculação à lei vale para qualquer intérprete do
direito. A subordinação do intérprete ou aplicador à lei não pode deixar de
se refletir na atribuição de um caráter normativo aos critérios de
interpretação da lei (art.9º CC)

2. Hermenêutica jurídica (função da subsunção)

2.1. Papel da subsunção


o A subsunção é a relação que se verifica entre duas extensões quando uma
delas está incluída na outra
o A subsunção deve ser entendida como o juízo que permite determinar os
casos abrangidos pela fonte e que possibilita inferir a regra da fonte.
Assim, quando se chega à regra já se passou pela subsunção, pelo que esta
não é um elemento da aplicação da regra, mas antes um elemento da
construção da regra aplicável
o Esta levanta o problema da integração de um facto concreto na previsão
abstrata e geral da fonte. Algumas orientações negam a possibilidade de
subsumir um facto concreto a uma previsão legal abstrata e geral, por
haver um «abismo» (Kluft) entre o concreto e o abstrato
o Por isso, aplicação da lei traduz-se na criação de uma regra individual. O
problema não consiste, no entanto, em aceitar que existe um «abismo»
entre a previsão abstrata e geral da fonte e o facto concreto; o problema
reside antes em saber como é que esse «abismo» pode ser transposto

2.2. Operação de subsunção


o Esta implica uma comparação entre o facto concreto e o tipo legal utilizado
na lei, i.e., é analógica ou tipológica

35
2.3. Natureza da subsunção
o Esta não é uma atividade lógica ou conceptual e o juiz não é um «autómato
de subsunção»; é antes um juízo valorativo que utiliza como critério a
analogia, dado que a comparação entre a realidade que se procura subsumir
e o tipo a que se refere a fonte exige um raciocínio analógico
o O caráter analógico do raciocínio que permite a subsunção do caso à lei se
explica tendo presente que a interpretação de qualquer fonte do direito é
sempre pragmática, pois que a inferência de uma regra de uma fonte é
sempre determinada pelos casos aos quais essa fonte é aplicável
o Assim, de molde a ultrapassar a dificuldade de comparar um caso concreto
com o caso típico constante da previsão legal, o que há que fazer quando
se procura subsumir um facto a uma lei é comparar este facto com os factos
a que a lei é indubitavelmente aplicável.
o Se o facto for análogo aos factos aos quais a lei é aplicável, então aquele
facto é subsumível à lei. Como foi afirmado na «teoria da equiparação», a
«subsunção significa a equiparação do caso concreto em apreciação com
os casos indiscutivelmente abrangidos pela previsão legal. Assim a
subsunção não é a integração de um concreto num abstrato, mas a
comparação entre vários concretos

2.4. Subsunção e concretização


o O entendimento de que a subsunção é a comparação de um caso concreto
com outro caso concreto permite concluir que a interpretação de uma fonte
é uma atividade de concretização dessa fonte
o Esta atividade de concretização da fonte permite inferir a regra jurídica
que se encontra naquela fonte. As regras são assim construídas no plano
do caso, pelo que se pode concluir que sem o caso não é possível extrair a
regra contida na fonte

3. Hermenêutica jurídica (interpretação jurídica)

3.1. Perspetiva do intérprete


o A interpretação jurídica só pode ser realizada por quem adopte um ponto
de vista interno ao sistema em que se insere a fonte a interpretar

3.2. Objeto da interpretação


o É sempre possível imaginar circunstâncias que exigem a determinação do
significado de uma fonte do direito

36
o As dificuldades da interpretação não surgem normalmente quanto ao
significado deôntico da fonte, mas sim na previsão: o que pode ser
duvidoso é a que casos é que a fonte é aplicável

3.3. Assimetria do objeto


o De acordo com a verificação de que as dificuldades da interpretação recam
normalmente sobre a previsão legal é a de grande importância, a lei pode
ser decomposta, para efeitos de interpretação, num elemento com
significado determinado e num elemento com significado indeterminado:
o primeiro é a estatuição, o segundo é a previsão da lei
o O significado que deve ser atribuído à previsão só pode ser um significado
que seja compatível com o significado da estatuição
o Assim, a interpretação da previsão deve ser realizada em função da
estatuição, pelo que a interpretação deve ser efetuada no sentido inverso
ao da regra, i.e., da estatuição para a previsão

3.4. Necessidade da interpretação


o A interpretação nunca é dispensável, porque sem ela não é possível
nenhuma compreensão da fonte. Esta conceção parece ser contrariada
pelas orientações que pretendem dispensar a interpretação quando não
houver que resolver uma ambiguidade do texto ou quando o significado
da fonte for claro
o Estas orientações assentam no pressuposto erróneo de que a interpretação
se destina apenas a tornar claro o que é obscuro. Antes da interpretação da
fonte não é possível saber se o seu significado é claro: o que parece claro
pode tornar-se bastante obscuro
o Conclui-se que antes da interpretação da fonte do direito nada é claro; o
que pode ser claro ou indubitável é o resultado da interpretação. Só depois
da realizada a interpretação da fonte é assim possível saber qual a regra
jurídica que dela se infere de forma inequívoca
o A vigência de uma lei interpretativa não exclui a necessidade da
interpretação. Esta passa a incidir sobre a lei interpretativa e a lei
interpretada

3.5. Proibição da interpretação


o Ainda que a necessidade da interpretação constitua atualmente uma
evidência, a história demonstra que têm sido várias as tentativas de proibir
a interpretação dos textos legais

37
4. Hermenêutica jurídica (dificuldades da interpretação)

4.1. Generalidades (engloba 4.2. a 4.6.)


o Genéricas
o Ambiguidade sintática
▪ Quando a construção da expressão origina dúvidas sobre o
seu significado
o Ambiguidade semântica
▪ Quando a mesma palavra pode ter vários significados,
dependendo do contexto em que é aplicada
o Vagueza ou porosidade
▪ Quando as palavras possuem um significado
indeterminado, i.e., quando há objetos a que as palavras são
indiscutivelmente aplicáveis, objetos a que essas palavras
talvez sejam aplicáveis e ainda objetos a que aquelas
palavras não são indiscutivelmente aplicáveis
▪ A vagueza decorre da circunstância de que há factos ou
situações a que, simultaneamente, uma palavra se pode
referir e não referir
▪ Esta decorre de uma indefinição de limites ou fronteiras
distinguindo-se da ambiguidade, porque enquanto nesta há
um «excesso de significado», naquela há uma «falta ou
insuficiência na determinação do significado»
o Modificabilidade do significado
▪ As palavras podem variar de significado ao longo do tempo
o Específicas (complicações próprias da realidade jurídica)
o Proliferação legislativa
▪ A interpretação das fontes do direito é dificultada pela
enorme produção legislativa, porque nunca há certeza de
que, na interpretação de uma fonte, não seja descurada uma
outra fonte determinante para aquela interpretação
o Hermetismo da linguagem jurídica
▪ Por vezes, a linguagem que é utilizada nas leis dificulta a
sua compreensão por não juristas
4.7. Resolução das dificuldades
o As dificuldades da interpretação têm de ser vencidas através do recurso
aos elementos de interpretação enunciados no cf. art.9º CC

38
Título I. Interpretação da Lei

1. Generalidades (aspetos relevantes)

• A interpretação da lei desdobra-se nos seguintes aspetos:


o A escolha da finalidade da interpretação
▪ Se a interpretação visa descobrir a intenção do legislador
ou significado objetivo da lei
• A seleção dos elementos da interpretação
o Seleção dos elementos que vão ser usados para alcançar a
finalidade da interpretação
• A inferência da regra jurídica
o Conjugação dos vários elementos da interpretação para saber a que
casos é que a lei é aplicável

2. Generalidades (caráter normativo)


• A interpretação tem um caráter normativo ao procurar definir como uma
lei deve ser interpretada
• Ao caráter normativo da interpretação em geral acresce o recurso regras
específicas da interpretação da lei (art.9º CC)
• É por esta razão que conhecer com é que é a lei é interpretada nunca
prejudica saber como é que ela deve ser interpretada

1. Finalidade da interpretação (generalidades)

1.1. Subjetivismo vs. Objetivismo


o Subjetivismo- a finalidade da interpretação é a reconstituição da intenção
do legislador subjacente à produção da lei
o Objetivismo- a finalidade da interpretação é a determinação do significado
objetivo da lei, qualquer que tenha sido a intenção do legislador
o A dicotomia não se reveste de interesse prático quando a intenção do
legislador coincidir com o significado objetivo da lei
o Tem, no entanto, a máxima importância quando assim não suceder, pelo
que quando se verificar um conflito entre o legislador e o intérprete: na
orientação subjetivista prevalece o legislador, na objetivista o intérprete
o No passado prevaleceu a orientação subjetivista pelo que na atualidade são
as correntes objetivistas que tendem a prevalecer

39
1.2. Semântica vs. Pragmática
o O subjetivismo fica-se por aquilo que foi querido (pelo legislador) e, por
isso, esgota-se na dimensão semântica
o O objetivismo orienta-se por aquilo que pode ser feito (pelo destinatário
da regra) e, por isso, move-se numa dimensão pragmática
o Subjetivismo atribui à interpretação uma dimensão factual ligada à
determinação da vontade do legislador
o Objetivismo permite uma interpretação puramente normativa, já que não
importa determinar, como facto interpretativo, a intenção do legislador

2. Finalidade da interpretação (orientações objetivistas)

2.1. Justificação
o A favor das correntes objetivistas é frequente argumentar com a igualdade
perante a lei (cf. art.13º/1 CRP). Invoca-se também a impossibilidade de
determinar a intenção do legislador histórico, atendendo à
insusceptibilidade de definir uma vontade comum a todos os
intervenientes no processo legislativo. Aduz-se também a necessidade de
assegurar a integração da lei no ambiente social. A lei deve libertar-se do
legislador e passar a valer com um significado objetivo adequado às
circunstâncias existentes no momento da sua interpretação. Torna-se assim
necessário atender ao significado atual perante uma modificação do
significado da palavra. Esta é especialmente frequente em conceitos
indeterminados (ainda que também ocorra com conceitos determinados)
tais como os de alteração de circunstâncias, de boa fé, de bons costumes,
de censurabilidade ou de gravidade da violação
o A intenção relevante é, no entanto, aquela com a qual o legislador agiu,
isso sucede, no entanto, quase sempre a propósito da finalidade da lei, o
que muitas vezes está longe de poder desvendar a intenção do legislador
o A lei é um enunciado linguístico através do qual o legislador estabelece
um determinado dever ser para certos destinatários
o O parâmetro de interpretação da lei devendo ser objetivista, o
conhecimento da real intenção do legislador pelos destinatários da lei não
é um elemento que deva ser considerado na sua interpretação? A resposta
é negativa, pois que:
• Mesmo que os destinatários conheçam a real intenção do
legislador, isso não justifica nem que o legislador possa invocar
contra eles a sua intenção, nem que os destinatários possam utilizar
a seu favor a intenção do legislador

40
• A justificação da 1ª conclusão baseia-se na invocação da confiança
no sistema, não podendo ninguém ser prejudicado por uma
intenção do legislador que não encontra expressão no texto da lei
• Já a da 2ª conclusão tem por base que desde que todos os
destinatários fossem beneficiados com a intenção do legislador, o
caráter geral da lei seria respeitado
o A interpretação subjetivista encontra-se excluída no disposto no art.9º/2
CC, segundo o qual o que conta é o que está expresso na lei
o Este último aspeto marca a diferença fundamental entre a interpretação da
lei e a interpretação dos negócios jurídicos. Na 1ª, a intenção do legislador
não prevalece sobre o sentido objetivo da lei; na 2ª, a proteção do
declarante impõe a prevalência da sua vontade real

2.2. Consequências
o A prevalência das orientações objetivistas significa que o intérprete não
tem de procurar nem a intenção do legislador, nem sequer o significado
que um ficcionado ou suposto legislador teria querido exprimir numa certa
fonte. Consequentemente:
• A competência para interpretar não coincide com a competência
para legislar
• O poder jurisdicional prevalece sobre o poder legislativo, pois que
o direito não é o que o legislador quis que fosse, mas o que o juiz
considera que é
o Esta preferência objetivista não implica a irrelevância da intenção do
legislador pois que esta pode ser coincidente com o significado objetivo
da lei
o O intérprete não tem, em todo o caso, de procurar resolver as dúvidas sobre
a verdadeira intenção do legislador
o A «idade» da lei possui uma grande importância: quanto mais recente,
maiores são hipóteses de o seu significado objetivo coincidir com a
intenção do legislador; quanto mais antiga, menores são as hipóteses

3. Finalidade da interpretação (direito português)

• O art.9º/1 CC determina que a interpretação tem por finalidade a


reconstituição do pensamento legislativo a partir do texto da lei
• «Pensamento legislativo» - tanto pode significar o pensamento do
legislador (significado subjetivista), como o pensamento da lei
(objetivista). O Dto. Português apresenta uma ambiguidade ao comportar
elementos de cada uma das orientações

41
3.2. Tendências subjetivistas
o O art.9º/2 CC estabelece que não pode ser considerado pelo intérprete o
pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de
correspondência verbal

3.3. Tendências objetivistas


o Importa, para resolver a ambiguidade da expressão «pensamento
legislativo» (art.9º/2 CC), considerar a oposição entre o atualismo e o
historicismo. Enquanto que para o atualismo o que conta é o significado
atual da lei, para o historicismo o que conta é o significado que a lei tinha
aquando da sua criação. Cruza-se assim a oposição entre o atualismo e o
historicismo com a oposição entre o subjetivismo e o objetivismo:

Historicismo Atualismo

Subjetivismo 1 2

Objetivismo 3 4

•Orientação subjetivista historicista (1) - o significado da lei é


aquele que o legislador lhe deu no momento da sua elaboração
• Orientação subjetivista atualista (2) – o significado da lei é aquele
que o legislador lhe daria se tivesse de legislar na atualidade
• Orientação objetivista historicista (3) – o significado da lei é aquele
que ela tinha no momento da sua criação
• Orientação objetivista atualista (4) – o significado da lei é aquele
que ela tem na atualidade
o O atualismo pode ser entendido de 2 maneiras diferentes:
• O atualismo projetivo- o atualismo que implica a projeção na
atualidade da vontade do legislador histórico (versão subjetivista)
/ do significado objetivo histórico (versão objetivista)
• O atualismo prospetivo- o atualismo que implica a prospeção da
vontade do legislador atual (versão subjetivista) / do significado
objetivo atual (versão objetivista)

42
Atualismo
Historicismo Atualismo projetivo prospetivo
Projeção na
Subjetivismo Vontade do atualidade da Prospeção da
legislador histórico vontade do vontade do
legislador histórico legislador atual
Projeção na
Objetivismo Significado atualidade do Prospeção do
objetivo histórico significado objetivo significado objetivo
histórico atual

3.4. Conclusão
o O art.9º/1 CC manda atender, na reconstituição do pensamento legislativo,
às condições específicas do tempo em que a lei é aplicada. Este consagra
uma orientação atualista prospetiva: o significado que o intérprete deve
atribuir à lei é aquele que ela possui no momento da sua interpretação.
Sendo assim, conclui-se que o art.9º/1 CC ao referir-se ao «pensamento
legislativo» o considera como o complemento natural daquela orientação
atualista. Esta expressão deve ser entendida no sentido de pensamento da
lei. A interpretação é correta, não se ela estiver de acordo com a vontade
do legislador, mas antes se ela observar as regras definidas no art.9º CC
o A finalidade da interpretação não é explicar a lei, mas antes aplicá-la e
encontrar a sua razão de ser como elemento de um raciocínio prático. A
interpretação é assim realizada no sentido da fonte para a sua aplicação,
sendo assim atualista e objetivista

1. Elementos da interpretação (função)

• Interpretar uma fonte do direito é inferir, através da aplicação da fonte a


certos casos, a regra que nela se contém
• Esta aplicação tem de observar determinadas regras específicas da
interpretação jurídica, i.e., elementos de interpretação
o Estas possibilitam escolher entre várias interpretações possíveis da
fonte interpretada e determinar se a interpretação realizada é
correta ou incorreta
• Segundo Savigny existem 4 elementos:
o Gramatical (ou sentido literal da lei)
o Lógico (ou a construção lógica da lei)
o Sistemático (ou a conexão sistemática existente entre as diversas
regras que constam da lei)
o Histórico (ou a circunstância que motivou a elaboração da lei)

43
2. Elementos da interpretação (enunciado)

• Na atualidade, os elementos continuam próximos aos que Savigny definiu


• A interpretação da lei é realizada a partir da «letra da lei» (art.9º/1 e 2 CC),
com base nas «circunstâncias em que a lei foi elaborada» (art.9º/1 CC), na
«unidade do sistema jurídico» (art.9º/1 CC) e nas «condições específicas
do tempo em que [a lei] foi aplicada» (art.9º/1 CC)
• Em concreto, os elementos da interpretação são:
o Elemento literal- sentido da letra da lei
o Elemento histórico- momento em que a lei foi produzida
o Elemento sistemático- enquadramento sistemático da lei
o Elemento teleológico- finalidade da lei
• O elemento histórico e o sistemático são elementos de contexto, formando
com o teleológico, os elementos não literais da interpretação
• Observações de caráter terminológico:
o O que se dispõe no art.9º CC é aplicável a qualquer lei em sentido
material
o O que vale para a interpretação da lei vale, mutatis mutandis, para
a interpretação de cada um dos seus preceitos
o A regra jurídica é o resultado da interpretação, logo, não é correto
falar de interpretação da regra

2.2. Letra e espírito


o O que se pretende no artigo 9º/1 CC é que o intérprete encontre o espírito
da lei a partir da sua letra com base na sua história, na sua sistemática e
na sua teleologia

2.3. Hierarquia dos elementos


o No âmbito de um «sistema móvel», i.e., um sistema cujos elementos têm
uma importância distinta em situações diferentes, não há nenhuma
hierarquia rígida entre os elementos da interpretação
o No ordenamento português é indispensável distinguir entre uma hierarquia
relativa ao método da interpretação e uma hierarquia respeitante ao
resultado da interpretação
o Método- Como é dito no art.9º/1 CC: a interpretação deve
reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos, o que
permite concluir que o elemento gramatical tem primazia em
relação aos elementos não literais. Só depois de determinado o
significado literal da lei e de encontrada a sua dimensão semântica
é possível reconstituir o pensamento legislativo através dos
elementos não literais e procurar a dimensão pragmática da lei

44
o Resultado- Como se diz no art.9º/1 CC: o intérprete deve
reconstituir o pensamento legislativo a partir do texto da lei com
base nos elementos não literais e porque qualquer divergência entre
a letra da lei e o seu espírito é resolvida através da prevalência deste
último, os elementos não literais prevalecem sobre o elemento
gramatical
o Pode-se assim estabelecer uma hierarquia entre o elemento relativo
à letra da lei (gramatical ou dimensão semântica) e os elementos
relativos ao espírito da lei (não literais ou dimensão pragmática)

2.4. Meta-regra de prevalência


o Os vários elementos da interpretação possibilitam assim a construção de
uma meta-regra de prevalência: a dimensão pragmática da lei prevalece
sobre a sua dimensão semântica, prevalecendo o que o intérprete pode
fazer com a lei sobre o que a sua letra diz

3. Elementos da interpretação (valor dos elementos)

• Os elementos da interpretação que constam do art.9º CC têm um valor


próprio, devendo, na interpretação de qualquer lei, ser utilizados todos os
elementos já enunciados
• Enunciam-se por isso o princípio:
o Da exaustividade dos elementos da interpretação- o intérprete não
tem de justificar a aplicação de nenhum dos elementos da
interpretação
o Da exclusividade dos elementos da interpretação- na interpretação
da lei só podem ser utilizados os elementos dispostos no art.9º CC
• Da conjugação destes resulta que os elementos da interpretação que
constam do art.9º CC são critérios normativos
o Não têm, no entanto, necessariamente o mesmo peso em todas as
situações, a relevância é distinta na interpretação de cada fonte

4. Elementos da interpretação (modelos de interpretação)

• O intérprete tende a deixar-se convencer pelo argumento de autoridade e


a seguir o precedente jurisdicional ou a teoria elaborada pela doutrina

1. Significado literal

• Toda a interpretação da lei deve começar pela análise da sua letra e pela
tentativa da compreensão do seu significado.

45
• A letra da lei é assim a base textual da interpretação

2. Significado literal (historicismo vs. atualismo)

• A letra da lei pode ser interpretada numa perspetiva


o Historicista:
▪ O intérprete tem de atribuir à letra da lei o significado que
ela tinha no momento da formação da fonte
o Atualista:
▪ O intérprete tem de atribuir à letra da lei o significado que
ela possui no momento da interpretação
• A letra da lei deve ser interpretada de acordo com o seu significado atual
pois que só essa solução pode garantir que as leis permaneçam adequadas
ao tempo em que são aplicadas
• Esta necessidade é especialmente saliente no caso da interpretação de
conceitos indeterminados ligados a valorações sociais ou culturais

3. Significado literal (concretização do elemento)

• O elemento literal comporta uma dimensão sintática e uma semântica:


o Sintática- respeita à estrutura gramatical da lei e considera-a na
totalidade do seu enunciado
o Semântica- refere-se ao significado das palavras utilizadas na lei
no contexto da sua estrutura

3.2. Dimensão semântica


o A determinação do significado literal da lei depende das palavras que nela
são utilizadas. Regras a observar nesta determinação:
• O intérprete não deve deixar de atribuir um significado a todas as
expressões da lei
• Há que evitar a atribuição de significados incompatíveis, i.e., de
significados que não respeitem relações de implicação ou de
equivalência entre palavras ou expressões ou que são atribuídos a
palavras ou expressões iguais ou semelhantes
o São irrelevantes, em regra, quer o género (m ou f) quer o número (s ou p)
das palavras que constituem a letra da lei
o Quanto ao significado a atribuir às palavras utilizadas na lei, importa
distinguir as palavras da linguagem jurídica, da linguagem técnica e da
linguagem corrente. As palavras próprias da linguagem jurídica devem ser
interpretadas com o significado que elas possuem no direito em geral ou
no respetivo ramo do direito em que se insere a lei interpretada, sendo

46
relevantes as definições legais, pois que o intérprete está vinculado a
atribuir ao definido o sentido que resulta da definição
o Pode ainda suceder que haja diferentes aceções jurídicas para a mesma
palavra em distintos ramos do direito. Assim sendo, há que considerar
apenas o significado que for específico do ramo do direito a que pertence
a lei interpretada, valendo, por isso, uma regra de especialidade na
interpretação da lei
o As palavras técnicas devem ser interpretadas com o significado que elas
têm no respetivo ramo do conhecimento, salvo se houver que concluir que
elas são empregadas com o seu sentido mais corrente
• Ex. Uma lei considera justificadas as faltas ao trabalho motivadas
por doença do trabalhador- e se esta for a esterilidade?
o As palavras da linguagem corrente devem ser interpretadas com o
significado que possuem no seu uso quotidiano. Só assim não sucede se o
legislador tiver usado o termo de acordo com uma definição legal ou se a
palavra tiver um significado jurídico distinto daquele que ela possui no
quotidiano. Quando assim aconteça, a palavra deve ser interpretada
segundo a sua aceção jurídica

4. Significado literal (valor da letra)

4.1. Limites legais


o A letra da lei tem um valor próprio que não pode ser ignorado pelo
intérprete e que impõe 2 limites:
• Art.9º/3 CC- o legislador consagrou as soluções mais acertadas e
soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Assim,
todo o significado que corresponde à letra da lei tem de ser um
significado possível dessa lei
• Art.9º/2 CC- não pode ser considerado pelo intérprete um
significado que não tenha na letra da lei um mínimo de
correspondência verbal. Desta afirmação retiram-se 2 ilações:
▪ A letra da lei constitui um limite para todos os outros
elementos da interpretação, em especial, para o sistemático
▪ Não pode ser qualificada como interpretação a conclusão
do intérprete que não for compatível com a letra da lei

4.2. Limite mínimo


o A letra da lei nunca constitui um obstáculo a que se possa ir além dela:
exige-se uma correspondência mínima com a letra da lei, não que a letra
não possa ser ultrapassada pelo espírito da lei
47
o A correspondência exigida pelo art.9º/2 CC impõem um limite mínimo
(abaixo do qual o intérprete não pode passar), não um limite máximo. A
letra da lei não constitui assim uma fronteira inultrapassável pelo resultado
da interpretação, mas sim um ponto de partida
o Até onde se pode ir na interpretação? Pode ir-se até onde os elementos não
literais da interpretação o permitam, i.e., até à interpretação restritiva ou
até à interpretação extensiva

5. Significado literal (significado provisório)

• O significado literal é apenas o primeiro degrau na interpretação da lei,


pelo que ele é sempre algo de provisório ou de inacabado. Este fornece
apenas uma hipótese de interpretação, dado que, depois de obtido o
significado literal, o intérprete deve procurar a sua corroboração ou
infirmação através dos elementos não literais
• Há uma certa relação de circularidade entre o significado literal e os
elementos não literais da interpretação. A interpretação da lei parte da sua
letra para a consideração dos elementos não literais da interpretação e,
depois de os ter considerado, tem de regressar de novo àquela letra

1. Elemento histórico

• O elemento histórico respeita à justificação da fonte: trata-se de saber o


que é que motivou a produção da fonte, que factos levaram o legislador a
produzir uma lei sobre uma determinada matéria e que necessidades eram
satisfeitas pela fonte no momento da sua produção
• Neste elemento há que considerar aspetos:
o Objetivos- situação social e jurídica existente no momento da
formação da lei
o Subjetivos- intenção do legislador que produziu a lei
• Encontra-se consagrado na referência realizada no art.9º/1 CC às
«circunstâncias em que a lei foi elaborada»

2. Elemento histórico (aspetos objetivos)

• Como aspetos objetivos temos:


o Os precedentes normativos- antecedentes da lei
▪ Históricos- leis que antecederam a lei que se interpreta e
que esta substituiu
▪ Comparativos- leis vigentes em outros ordenamentos
jurídicos no momento da formação da lei

48
o Os precedentes doutrinários- para interpretar a lei é também
relevante conhecer o ambiente doutrinário que existia no momento
da sua elaboração
o A occasio legis- condicionalismo que rodeou a formação da lei, a
realidade política, social, económica, cultural ou outra; pelo que o
conhecimento desta realidade ajuda a compreender o seu
significado. Encontra-se no art.9º/1 CC quando neste se alude às
circunstâncias em que a lei foi elaborada

3. Elemento histórico (aspetos subjetivos)

• Estes referem-se à intenção do legislador. Como meios auxiliares para a


determinação desta existem:
o As exposições oficiais de motivos
o Os trabalhos preparatórios
o Os preâmbulos dos diplomas legais e os relatórios explicativos das
convenções internacionais
• Neste contexto, tem-se por intenção do legislador o que pode ser inferido
dos aludidos meios auxiliares como sendo a hipotética vontade deste

4. Elemento histórico (aspeto evolutivo)

• O elemento histórico tem também, apesar de não se encontrar referido no


art.9º CC, uma dimensão evolutiva: trata-se de saber qual a interpretação
que tem sido dada, pela jurisprudência e pela doutrina, a uma determinada
lei após o início da sua vigência, i.e., trata-se de averiguar que novas
necessidades têm sido entendidas como podendo ser satisfeitas pela lei.
Para isso é indispensável conhecer a aplicação da lei. É essa a base para a
interpretação evolutiva das fontes do direito
• A influência das aplicações anteriores da lei para a sua (re)interpretação é
um dos fatores que mais contribui para a diferença entre o direito tal como
ele resulta dos textos e o direito tal como ele é aplicado (entre a law in
books e a law in action)
• Dworkin enquadra assim num panorama que denomina «romance em
cadeia», i.e., de um romance que vai sendo escrito por vários autores em
cada um deles tem de considerar o que foi anteriormente escrito para poder
escrever a sua parte

1. Elemento sistemático

• Este decorre da orientação, já defendida por Savigny, de que os institutos


jurídicos constituem um sistema e apenas em conexão com este sistema

49
podem ser completamente compreendidos e baseia-se no pressuposto de
que o significado de uma lei resulta normalmente do seu contexto. Assim,
este é tanto uma consequência, como um postulado da unidade do sistema
jurídico pois que ele visa assegurar que nenhuma fonte seja interpretada
em divergência com esse sistema
• Este impõe uma interpretação sistemática, mas não garante que o resultado
seja uma interpretação conforme ao sistema, dado que é possível que o
intérprete conclua que nenhuma interpretação da lei é suscetível de
assegurar a conformidade com o sistema. Nesta hipótese torna-se
necessário resolver o conflito normativo através da revogação ou da
invalidade de uma das regras, da qualificação de uma das regras como
excecional ou especial perante a outra ou da escolha das regras
conflituantes através da ponderação dos respetivos interesses
• Este está consagrado no art.9º/1 CC, na parte em que este preceito impõe:
o Que, na reconstrução do pensamento legislativo, se considere a
unidade do sistema jurídico
o Que a lei seja interpretada no respetivo ambiente sistemático, i.e.,
que se passe do preceito para o texto legal que o contém, deste para
o respetivo subsistema e, finalmente, deste para o sistema jurídico.
o Nenhuma lei deve ser interpretada isolada de outras leis com as
quais apresenta uma conexão sistemática e que, de entre os vários
significados literais possíveis, há que preferir o que for compatível
com o significado de outras leis

1.2. Importância
o Este:
• Orienta-se pelo princípio da igualdade:
▪ Consagrado no art.13º CRP, onde se afirma que o que é
igual deve ser tratado de forma igual em todo o sistema
jurídico
• Permite resolver uma das principais dificuldades na interpretação
da lei: polissemia ou ambiguidade

2. Elemento sistemático (historicismo vs. atualismo)

• Perspetiva historicista:
o O intérprete tem de considerar a integração sistemática que existia
no momento da formação da lei
• Perspetiva atualista
o O intérprete tem de considerar a integração sistemática da lei na
atualidade

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• Embora o art.9º CC não forneça nenhuma resposta à questão de saber qual
destas orientações deve ser seguida, este deve ser entendido numa
perspetiva atualista
• Qualquer lei deve ser consistente com os princípios e as demais leis do
sistema jurídico durante toda a sua vigência, devendo ser interpretada de
acordo com as sucessivas integrações sistemáticas e segundo a aquela que
se verifique no momento da sua interpretação

3. Elemento sistemático (concretização do elemento)

• Expressa-se em 2 vertentes:
o Relação de contexto, pois que o intérprete só pode interpretar a lei
depois de a ter enquadrado no conjunto mais vasto em que ela se
integra
o Princípio de consistência, que é tanto uma consequência da
unidade do sistema jurídico, como um postulado da construção
dessa unidade
• Este traduz-se em 2 regras interpretativas:
o A regra positiva- impõe que o significado a atribuir à lei deve ser
o que melhor se harmoniza com outras fontes ou com outros
preceitos da mesma fonte
o A regra negativa- impede que o intérprete atribua à lei um
significado que não seja consistente com outras fontes ou com
outros preceitos da mesma fonte ou que seja redundante em relação
a outras fontes

3.2. Relação de contexto


o A lei deve ser interpretada no contexto do sistema jurídico
o Para tal releva o chamado «sistema externo», i.e., aquele que resulta de
uma «atividade ordenatória do investigador» através da «construção de
conceitos ordenatórios», de «divisões» e da «ordem do tratamento das
matérias». Trata-se de procurar encontrar o significado da fonte através do
seu enquadramento num conjunto mais geral
o No enquadramento sistemático da interpretação de uma lei há que
distinguir entre o contexto vertical e o contexto horizontal:
• Vertical- respeita à conexão da lei com outras leis de hierarquia
superior sobre a mesma matéria
• Horizontal- refere-se à conexão da lei com outras leis da mesma
hierarquia sobre idêntica matéria

51
3.3. Contexto vertical
o O contexto vertical implica que, na interpretação da lei, deve ser
considerada a sua coordenação com a respetiva fonte de produção
o Tomando como base a fonte de produção, há que considerar, como
modalidades da interpretação, a interpretação conforme:
• À Constituição- implica que o direito ordinário deve ser
interpretado de acordo com os respetivos preceitos constitucionais,
de molde a evitar interpretações inconstitucionais de leis
constitucionalmente válidas
▪ Através desta pode obviar-se à inconstitucionalidade da lei
a interpretar: «controlo antecipado de normas»
• Ao direito europeu- decorre do primado deste direito sobre o
direito dos Estados-membros. Dado que as diretivas europeias
devem ser transpostas para a ordem jurídica dos Estados-membros,
as leis que procedem a esta transposição devem ser interpretadas
de acordo com a respetiva diretiva. Esta interpretação pode evitar
uma violação desse direito pela lei interpretada
• Ao direito ordinário- a lei deve ser interpretada de acordo com a
respetiva fonte de produção ordinária

3.4. Contexto horizontal


o Este contexto implica que a interpretação da lei deve:
• Considerar outras leis da mesma hierarquia (contexto intertextual)
ou, se for esse o caso, outros preceitos da mesma lei (contexto
intratextual)
• Atender a todas as leis que, em conjunto com a lei interpretada,
contribuem para a solução do mesmo caso
• Ter presente o que se encontra disposto para os lugares paralelos,
i.e., considerar o significado das leis que regulam as mesmas
matérias noutros regimes jurídicos
o Este contexto é particularmente importante quando se trata de interpretar
uma lei especial ou excecional. A interpretação de uma lei especial deve
tomar em consideração a respetiva lei geral
o A interpretação da lei remissiva deve considerar o significado da lei para
a qual ela remete, pois que só assim está assegurada a harmonia entre
ambas as leis

52
3.5. Princípio da consistência
o Este decorre da unidade do sistema jurídico. Para este efeito revela o
chamado «sistema interno», ou seja, o sistema que corresponde às
«conexões materiais» e a uma «ordem imanente»
o Este vale num duplo sentido, sendo indispensável tanto para encontrar o
significado da lei na unidade do sistema jurídico, como para afastar
significados incompatíveis com essa unidade
o Assim, o elemento sistemático da interpretação funciona de uma forma
construtiva: ele impõe que a lei seja interpretada de molde a assegurar a
unidade do sistema jurídico, i.e., de molde a garantir uma harmonização
contextual da lei interpretada como todas as demais leis do mesmo sistema
o Conclui-se que a unidade do sistema jurídico não é uma realidade da qual
o intérprete se possa limitar a partir, mas algo que deve ser construído por
ele através da interpretação das fontes
• A construção dessa unidade implica que deve ser dada preferência
a uma interpretação que seja compatível com o maior número
possível de regras do mesmo sistema jurídico
o O que vale para o sistema jurídico considerado na sua globalidade vale
também para cada um dos seus subsistemas. Atendendo a um princípio de
proximidade, a lei a interpretar tem de ser integrada, antes do mais, no
respetivo subsistema

1. Elemento teleológico

1.1. Delimitação do elemento


o Respeita à finalidade da lei: através deste elemento procura determinar-se
quais são os objetivos que a lei pode prosseguir
o Distingue-se do histórico:
• O histórico procura a justificação para a produção da lei
• O teleológico procura a finalidade que justifica a vigência da lei
o Visa responder à pergunta «para que é que serve a lei?»
• Impõe assim que o intérprete procure descobrir a ratio legis,
estando-lhe vedado o entendimento de que a fonte não prossegue a
realização de nenhuns fins
o Está consagrado no art.9º/1 CC na referência constante às «condições
específicas do tempo em que [a lei] é aplicada»
o Importante dado que compreender uma lei é perceber a que situações ela
deve procurar dar uma resposta
o Permite descobrir e utilizar a ratio legis na determinação do espírito da lei

53
1.2. Relevância da estatuição
o Para determinar a teleologia da lei é necessário compreender, antes do
mais, a sua estatuição. Só percebendo o que é que a lei estatui- permite,
proíbe ou obriga- é possível determinar qual a finalidade por ela
prosseguida
o Para a compreensão desta pode ser necessário considerar o enquadramento
sistemático da lei, pois que, muitas vezes, o que a lei permite, proíbe ou
obriga só pode ser entendido no âmbito do seu contexto

2. Elemento teleológico (historicismo vs. atualismo)

• A teleologia da lei pode ser considerada numa perspetiva:


o Historicista- o intérprete tem de procurar encontrar a finalidade que
o legislador intentava prosseguir com a lei (subjetivista) ou a
finalidade que a lei podia realizar no momento da sua elaboração
(objetivista)
o Atualista- o intérprete tem de atribuir à lei um significado
correspondente à finalidade que ela pode realizar no momento da
sua interpretação

2.2. Direito positivo

• Este fornece, quanto à opção entre uma teologia historicista ou atualista,


uma resposta inequívoca: o art.9º/1 CC manda observar, na reconstituição
do pensamento legislativo a partir dos textos legais, as condições
específicas do tempo em que a lei é aplicada. Assim, para determinar a
finalidade da lei, há que analisar as circunstâncias políticas, sociais,
económicas e culturais ou outras existentes no momento da sua
interpretação, pelo que o direito positivo impõe a consideração de uma
teleologia objetiva e atualista

3. Elemento teleológico (concretização do elemento)

• A teleologia da lei não pode ser determinada em si mesma: a finalidade


que a lei realiza é aquela que pode prosseguir em função de fatores que lhe
são estranhos
• Para determinar a teologia da fonte é indispensável atender ao ambiente
socioeconómico, político e cultural em que a fonte é interpretada, mas é
também necessário considerar fatores jurídicos
• Há que procurar otimizar, através dos fatores enunciados, a teleologia da
lei

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3.2. Fatores sistémicos
o A interpretação da lei deve considerar os princípios do sistema jurídico e
do respetivo subsistema em que ela se insere
o Este elemento releva sobretudo na interpretação conforme aos princípios:
esta interpretação determina que a lei deva ser interpretada em
consonância com os princípios formais e materiais que ela concretiza
o O intérprete deve procurar descobrir o princípio formal ou o respetivo
princípio material que fundamenta a lei e visar a sua otimização através da
interpretação. A melhor interpretação é aquela que conseguir a melhor
otimização do princípio formal ou material que está subjacente à lei
o Pode suceder que o intérprete se defronte com a dificuldade de determinar
o princípio formal que o deve orientar na interpretação da lei, i.e., pode
acontecer que, antes de procurar interpretar a lei de acordo com um dos
princípios formais, o intérprete tenha de procurar o próprio princípio
formal que o deve orientar nessa tarefa
o A escolha deste exige uma ponderação entre os princípios de justiça, de
confiança e de eficiência, devendo o intérprete escolher o princípio formal
que melhor se adequar aos interesses que a lei visa proteger

3.3. Avaliação das consequências


o Para a determinação da tecnologia da fonte não pode deixar de se atender
às respetivas consequências. A interpretação que melhor se insere no
sistema é, muito frequentemente, uma interpretação que lhe acrescenta
algo, i.e., uma interpretação que permite proteger interesses que, antes da
lei interpretada, nele não se encontravam acautelados

3.4. Regras da experiência


o O elemento teleológico da interpretação exige frequentemente o recurso a
regras da experiência, i.e., ao acervo de experiência da vida quotidiana
o Estas são também importantes numa outra função. Elas atribuem ao
intérprete o indispensável background de vivência que lhe permite realizar
a interpretação da lei de acordo com parâmetros que melhor correspondam
à normalidade da vida em sociedade

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4. Elemento teleológico (importância do elemento)

4.1. Interpretação da lei


o O elemento em estudo possui uma grande importância na interpretação da
lei, pois que é ele que melhor permite controlar a correção dessa
interpretação
o É o elemento que menos provém do sistema e que mais apela ao intérprete,
pois que lhe permite utilizar valores éticos, políticos ou económicos na
procura da otimização do princípio que subjaz à lei que interpreta
o A teleologia da lei tem uma dimensão consequencialista, dado que a
finalidade da lei não é independente das consequências resultantes da sua
aplicação

4.2. Função específica


o Este elemento cumpre uma função específica: é por esse elemento que se
podem descobrir as situações de fraude à lei, ou seja, as situações que são
artificialmente criadas pelos interessados para evitar a aplicação da lei

1. Conjugação dos elementos

• Nenhum dos elementos da interpretação é suficiente, em si mesmo, para


determinar o significado da lei, mas cada um deles dá um contributo para
essa determinação
• Com respeito pela exigência da mínima correspondência da interpretação
com o texto da lei (cf. art.9º/2 CC), a interpretação da fonte resulta da
conjugação de cada um daqueles contributos
• O art.9º/1 CC, ao impor que o intérprete reconstitua o pensamento
legislativo a partir do texto da lei, mostra que pode haver oposição entre o
elemento literal e os vários elementos não literais, mas não entre cada um
destes últimos
• Em suma: o intérprete deve escolher a interpretação que, dentro dos limites
impostos pela correspondência mínima com a letra da lei e com apoio na
justificação histórica da lei, melhor se integrar no sistema jurídico e melhor
se adequar às necessidades sociais

56
Título I. Resultados da interpretação

1. Generalidades

• A interpretação da lei não se esgota no seu significado literal


• Como se dispõe no art.9º/1 CC, importa reconstituir o pensamento
legislativo a partir do texto da lei. Esta reconstituição é realizada através
dos vários elementos não literais da interpretação. O significado literal
desvenda a dimensão semântica do direito, mas são os vários elementos da
interpretação que possibilitam determinar a que casos a lei é aplicável, i.e.,
a sua dimensão pragmática
• Esta reconstituição pode originar situações de coincidência ou de não
coincidência entre o significado literal e o espírito da lei, i.e., entre a
dimensão semântica e a dimensão pragmática da lei:
o As situações de coincidência conduzem à interpretação declarativa
(ou confirmatória), pois que o intérprete se limita a atribuir à lei o
seu significado literal, não descobrindo nenhuma divergência entre
a sua dimensão semântica e a sua dimensão pragmática
o As de não coincidência determinam a interpretação reconstrutiva,
pois que o significado da lei (dim. pragmática) é reconstruído pelo
intérprete a partir do seu significado literal (dim. semântica)

1. Interpretação declarativa (noção)

• A interpretação declarativa é aquela que resulta da coincidência entre o


significado literal e o espírito da lei: a letra fornece um certo significado
literal e o espírito resultante dos elementos não literais da interpretação
mostra-se compatível com aquele significado (não ficando aquém, nem
indo além dele)
• Esta é uma interpretação secundum litteram e uma interpretação em que a
dimensão semântica coincide com a dimensão pragmática

2. Interpretação declarativa (modalidades)

• De acordo com a influência dos elementos não literais para a compreensão


do significado literal da lei, pode distinguir-se entre uma interpretação
declarativa lata, média e restrita:
o Lata: é aquela em que o significado literal é o mais extenso possível
o Restrita: é aquela em que o significado literal é o menos extenso
possível
o Média: é aquela em que o significado literal é o que corresponde
ao significado mais frequente da palavra

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1. Interpretação reconstrutiva

• O significado literal e o espírito da lei podem não coincidir: há pois que


reconstruir o significado da lei a partir do seu texto com apoio no seu
espírito (observando o limite imposto pela letra da lei: só pode valer como
espírito da lei aquele que tenha um mínimo de correspondência com a sua
letra, art.9º/2 CC). Trata-se de uma exigência mínima, nada impede que o
intérprete possa restringir ou alargar o significado literal da lei respeitada
essa exigência
• A letra pode levar a atribuir um significado à lei:
o O intérprete realiza uma interpretação extensiva
▪ O intérprete induz o campo de aplicação da lei para além
da sua letra
• Os vários elementos da interpretação podem impor a atribuição de um
significado mais amplo ou mais restrito à lei interpretada
o Uma interpretação restritiva
▪ O intérprete reduz o âmbito de aplicação da lei para aquém
da sua letra

2. Interpretação reconstrutiva (interpretação extensiva)

2.1. Configuração
o Na interpretação extensiva, o resultado da interpretação é mais amplo do
que o significado literal da lei: o espírito da lei vai além da sua letra, pelo
que essa fonte permite inferir uma regra que não está abrangida na sua letra
o Esta interpretação é uma interpretação prater litteram: a dimensão
pragmática da lei vai para além da sua dimensão semântica
o Nesta interpretação, há casos não abrangidos pela letra da lei que também
devem ser atingidos pela regra a inferir da lei
o A mesma ocorre sempre que a letra se refira à espécie e o seu significado
deva abarcar, por imposição dos elementos não literais da interpretação, o
género ou sempre que a letra de uma tipologia taxativa respeite a um ou a
alguns subtipos e o seu significado deva abranger, pelo mesmo motivo,
outros subtipos do mesmo tipo
o A esta interpretação está subjacente um juízo de agregação: o que vale para
a parte deve valer igualmente para o todo
o Nesta, a letra da lei comporta uma exceção implícita que não é admitida
pelo seu espírito
o Nada impede que as regras excecionais possam ser obtidas através de uma
interpretação extensiva das respetivas fontes

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2.3. Delimitação
o A interpretação extensiva não se confunde com a interpretação declarativa
lata. Enquanto na 1ª o significado da lei vai além do seu significado literal,
na 2ª o significado da lei é o seu significado literal mais extenso
o Esta não deve ser confundida com a situação em que a previsão da lei é
uma tipologia ou uma enumeração não taxativa e em que a lei é aplicada a
um subtipo ou a uma situação que não está prevista. Assim sendo, cabem
na previsão legal não só os casos tipificados ou enumerados, como também
os casos análogos a esses casos
o A aplicação da lei a um caso não previsto, mas análogo aos casos
tipificados ou enumerados, não decorre de nenhuma interpretação
extensiva, pois que ela está em completa correspondência com a previsão
aberta da lei

3. Interpretação reconstrutiva (interpretação restritiva)

3.1. Configuração
o Na interpretação restritiva, o resultado da interpretação é mais restrito do
que o significado literal da lei: o espírito da lei fica aquém da letra da lei,
pelo que não se justifica que se infira uma regra que seja aplicável a todos
os casos que são abrangidos pela sua letra
o Esta é uma interpretação citra litteram e baseia-se num princípio de
restrição, pois que a dimensão pragmática da lei fica aquém da sua
dimensão semântica
o Nesta, o mundo é mais pequeno do que a letra da lei, pois que há casos
abrangidos por esta letra que não devem ser abarcados pela lei
o Esta verifica-se sempre que a letra da lei respeite ao género e o seu
significado deva limitar-se, por imposição dos elementos da interpretação,
à espécie ou sempre que a letra da lei se refira a várias concretizações de
um tipo e o seu significado deva restringir-se, pela mesma, razão, a alguma
ou algumas dessas concretizações. Baseia-se assim num juízo de
desagregação, pois que o que está estabelecido para o todo só deve valer
para a parte
o Nesta interpretação, a letra da lei é «derrotada» pelo seu espírito, dado que,
apesar de essa letra não comportar nenhuma exceção, o espírito da lei
implica que ela seja interpretada como comportando uma exceção. Esta
constitui, neste sentido, exemplo de uma self defeasibility, pois que a lei
«derrota-se» a si própria

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3.3. Delimitação
o Esta interpretação é distinta da interpretação declarativa restrita
o Enquanto na interpretação restritiva o significado da lei fica aquém do seu
significado literal, na declarativa restritiva o significado da lei é o seu
significado literal menos extenso

3.4. Consequências
o Esta interpretação conduz à inaplicabilidade da lei a factos ou situações
que são abrangidos pela sua letra, o que implica que esses factos ou
situações vão ser regulados por um outro regime jurídico. A determinação
deste regime comporta várias hipóteses:
• Quando a interpretação restritiva implica que o caso não tem
relevância jurídica e pertence ao espaço livre do direito
• Quando a interpretação restritiva da lei deixa espaço para a
aplicação de uma outra lei também vigente no ordenamento
• Quando a interpretação restritiva da lei não conduz à aplicação de
uma outra lei vigente no ordenamento, porque este não comporta
nenhuma lei aplicável aos factos ou situações que não são
abrangidos pela lei interpretada. Nesta hipótese, a interpretação
restritiva tem como resultado a construção de uma regra
excecional, aplicável aos casos que não são abrangidos por essa lei.
Esta solução fundamenta-se no seguinte argumento: se a regra é
constituída com base numa interpretação restritiva da lei, então o
que não cabe nesta lei é regulado, na falta de qualquer outra regra
aplicável, por uma regra de significado contrário à lei, i.e., por uma
regra excecional

4. Interpretação reconstrutiva (síntese esquemática)

Sentido literal Regra inferida

Interpretação extensiva C₁ → p C₁ V C₂ → p

Interpretação restritiva C₃ V C₄ → q C₃ → q; C₄ → ~q

1. Desconsideração da regra (vinculação à lei)

• O art.203º CRP estabelece a vinculação dos tribunais à lei:

60
o Esta é uma importante garantia do Estado de direito e da separação
(cf. art.111º/1 CRP), porque ela não só assegura a prevalência da
lei sobre qualquer intuição ou sentimento do juiz, como obsta à
substituição do legislador pelo juiz
• A vinculação do juiz não é à letra da lei, mas ao resultado da interpretação
(interpretação declarativa/extensiva/restritiva)
• Em que condições o juiz- ou qualquer outro intérprete- pode não aplicar a
regra inferida da fonte? Isso implica a análise da interpretação ab-rogante
e da interpretação corretiva

2. Desconsideração da regra (interpretação ab-rogante)

2.1. Caraterização
o Esta é imposta por um ato de comunicação falhado e pode ser qualificada
como:
• Singular- quando a fonte não é inteligível em si mesma, i.e.,
quando o intérprete não lhe pode atribuir nenhum significado
• Sistémica- quando a fonte remete para um regime que não existe
no sistema jurídico; esta remissão é vazia de sentido, pois que a
fonte não tem nenhuma referência

2.2. Efeitos
o A interpretação ab-rogante da lei remissiva pode originar a chamada
lacuna oculta, porque, onde se pensava haver um regime jurídico, não há,
afinal, nenhum regime
o Há, então, que proceder à integração dessa lacuna (cf. art.10º CC)

3. Desconsideração da regra (interpretação corretiva)

• Esta pode manifestar-se tanto na aplicação da lei a um caso que ela exclui,
i.e., na eliminação de uma exceção prevista na lei, como na não aplicação
da lei a um caso que ela abrange, i.e., na construção de uma exceção não
prevista na lei
• Esta é justificada pela incompatibilidade da fonte com valores jurídicos
fundamentais, nomeadamente os que se referem aos princípios formais da
justiça, da confiança e da eficiência
• Esta não se confunde com a interpretação restritiva ou extensiva. Nestas,
os elementos não literais conduzem a uma restrição ou a uma extensão do
significado literal da lei. Já na corretiva, a letra e o espírito da lei são ambos

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desconsiderados, dado que essa interpretação implica que a lei deixa de
ser aplicada a um caso que ela abrange

3.2. Concretização
o Esta interpretação foi entendida por Aristóteles (384-322 a.C.) como
constituindo a base da equidade
o A generalidade das ordens jurídicas exclui a interpretação corretiva, não
admitindo sequer o recurso à equidade para evitar consequências legais
tidas por indesejáveis. É esse também o caso do direito português, onde se
expõe no art.8º/2 CC que o dever de obediência à lei não pode ser afastado
sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legal
o Neste contexto é importante fazer 2 observações, ambas visando
demonstrar que o rigor do estabelecido no art.8º/2 CC não é tão acentuado
como, à primeira vista, poderia parecer:
• Uma interpretação corretiva pode ter alguma justificação naquelas
ordens jurídicas em que a letra da lei ou a vontade do legislador
sejam os elementos determinantes para a interpretação da lei. Esta
não é a orientação do direito português. Acresce que, sempre que
a injustiça ou imoralidade da lei interpretada constitua igualmente
uma violação de preceitos ou princípios constitucionais, essa lei é
inconstitucional (cf. art.277º/1 CRP)
o A solução estabelecida no art.8º/2 CC encontra a sua justificação na
vinculação do decisor à lei. Esta vinculação fundamenta-se na falta de
legitimidade do decisor para se afastar da lei e para a substituir por
qualquer outro critério na solução de um caso concreto
o Ao aspeto relativo à separação de poderes acresce ainda um outro
respeitante ao estatuto do juiz. Este não pode ser responsabilizado pelas
suas decisões, salvo em termos disciplinares, civis ou penais (cf. art.216º/2
CRP). Esta responsabilidade é uma consequência da vinculação do juiz à
lei

62
Título I. Deteção de Lacunas

1. Determinação da lacuna (falta de regulamentação)

• A lacuna decorre da inexistência de uma regra para regular um caso


jurídico, existe uma lacuna quando há caso mas não há regra
• O que importa é que falte uma regra jurídica e não que falte uma regra
legal
• Não existe nenhuma lacuna se o caso puder ser resolvido por um princípio
implícito ou por uma regra derivada: a lacuna não é falta de uma
regulamentação expressa, mas a falta de qualquer regulamentação
• O art.10º CC fala de lacunas da lei, mas há que fazer uma interpretação
extensiva desse preceito
• As lacunas legais não devem ser confundidas com as insuficiências
axiológicas do sistema jurídico: algo deve estar regulado porque se
entende que, em nome de um qualquer valor, o sistema deve conter uma
solução para um caso ou não deve dar a um caso a mesma solução que
fornece a outro

1.2. Causas da falta


o A existência de lacunas é uma fatalidade- e, muitas vezes, uma vantagem-
em qualquer ordenamento jurídico, atendendo, aos seguintes fatores:
• O legislador pode não querer regular uma determinada matéria, por
entender que a solução está ainda insuficientemente amadurecida
para poder ser consagrada na lei
• A técnica legislativa pode ser deficiente, pois que o legislador pode
não ter previsto todas as situações que devia ter previsto
• A fonte pode não ter valor jurídico, porque a fonte é afinal
inexistente, inválida ou ineficaz
• A evolução social ou tecnológica pode abrir uma lacuna que não
existia anteriormente
o Existem formas de combater as lacunas (inevitáveis em qualquer ordem
jurídica). A mais adequada é a codificação, dado que o seu caráter
científico e sistemático evita, em grande parte, o surgimento de lacunas

2. Determinação da lacuna (incompletude no sistema)

• A lacuna é uma falta de regulamentação legal, mas nem toda a falta de


regulamentação implica uma lacuna. Esta só surge quando, sob o ponto de
vista jurídico, falta, para um caso com relevância jurídica, a respetiva
regulamentação

63
• A lacuna pressupõe uma incompletude no ordenamento jurídico quanto a
certos casos, decorrendo da conjugação de 2 fatores:
o Fator negativo- a ausência de uma regulamentação legal
o Fator positivo- a exigência dessa regulamentação

2.2. Possibilidade da incompletude


o A lacuna é uma incompletude no sistema jurídico, o que pressupõe que
esta incompletude seja possível
o Algumas orientações negam a possibilidade de o ordenamento jurídico ser
incompleto. Kelsen (1881-1973) defendeu a completude do sistema com
base no «facto de que, quando a ordem jurídica não estatui nenhum dever
de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta»;
a falta de uma proibição implica a permissão de realizar ou não realizar o
que não é proibido, pelo que o ordenamento jurídico é necessariamente
completo
o Contra este argumento pode ser aduzido que a circunstância de o sistema
jurídico não comportar a proibição de uma conduta não significa que ele
seja completo: existe uma incompletude no sistema se ele exigir uma
regulamentação diferente da não proibição da conduta, i.e., se ele requerer
que a conduta seja obrigatória ou não permitida
o Tal conclui-se pois que, na análise da completude do sistema jurídico, há
que distinguir entre:
• A hipótese em que o legislador estabelece que tudo o que não é
proibido é permitido- neste caso o legislador fechou o sistema, não
comportando este nenhuma lacuna
• A hipótese em que o legislador não se pronuncia sobre se o que não
é proibido deve ser considerado permitido- neste caso o sistema
não é completo e comporta uma lacuna se, apesar de não haver
nenhuma proibição de uma conduta, se conclui que o próprio
sistema exige que esse ato seja obrigatório ou proibido
o Conclui-se que a inexistência da proibição de uma conduta não garante
que não possa verificar-se uma lacuna quanto à obrigação ou proibição
dessa conduta

2.3. Sentido da incompletude


o A lacuna é uma incompletude no sistema jurídico. Recorrendo a uma
imagem, pode dizer-se que, se o sistema jurídico for equiparado a um
puzzle, a lacuna é a falta de uma peça desse puzzle. Primeiro há sistema;
só depois é que pode haver lacuna
o Tendo como parâmetro de análise o direito português, vemos que o art.10º
CC fornece os critérios para integração de lacunas: a analogia (art.10º/1

64
CC) e a regra hipotética criada dentro do espírito do sistema (art.10º/3 CC);
estes critérios apenas podem completar o sistema jurídico, nunca podendo
desconsiderá-lo ou, menos ainda, violá-lo
o Do afirmado conclui-se: os sistemas jurídicos podem ser incompletos ao
nível das fontes- possuindo lacunas-, mas são sempre completos ao nível
das regras quando admitem critérios de integração de lacunas extraídos
deles próprios. O sistema pode assim ser lacunoso ao nível das fontes, mas
é sempre completo ao nível das regras que fornecem as soluções para os
casos com relevância jurídica. Pode-se assim falar de uma incompletude
no sistema, mas não de uma incompletude do sistema

2.4. Deteção da incompletude


o Um caso concreto pode não encontrar nenhuma resposta no ordenamento
sem que isso indicie qualquer lacuna. Há que, antes do mais, procurar
delimitar o espaço livre (ajurídico) de direito perante a lacuna. Este espaço
engloba tudo o que seja indiferente para o direito, nomeadamente todo o
dever ser que pertença apenas a ordens normativas não jurídicas
o A lacuna pressupõe uma incompletude no ordenamento jurídico, é uma
«incompletude insuportável»
o A incompletude no sistema é uma insuficiência do mesmo para abranger
casos que ele deveria incluir. É o próprio sistema que se torna incompleto
a ele mesmo, pois que é incompleto em função do que regula
o Enquanto não houver sistema, não há nenhuma lacuna; só à medida que o
sistema se vai construindo é que as lacunas podem ir aparecendo

2.5. Indícios da incompletude


o A lacuna corresponde a uma falta de regulamentação que é contrária ao
ordenamento jurídico. Para determinar se este requisito está preenchido,
há que verificar se o ordenamento está incompleto pela falta de uma
regulamentação de casos análogos a outros que estejam previstos. A
regulamentação de casos semelhantes ao caso omisso constitui indício de
uma lacuna, pois que isso implica uma violação do princípio da igualdade
perante a lei (cf. art.13º/1 CRP)
o No ordenamento jurídico português, é indiscutível que a falta de regulação
de casos análogos a outros que são regulados é um indício de uma
incompletude no sistema, dado que a analogia constitui o primeiro critério
de integração de lacunas (cf. art.10º/1 CC). É assim necessário que haja
um caso análogo ao caso omisso que se encontre juridicamente regulado;
pelo que a analogia é critério de deteção e de integração de lacunas
o Porém, neste, a lacuna não é indiciada somente pela regulamentação de
apenas algum ou alguns dos vários casos análogos. O art.10º/3 CC mostra

65
que há lacunas que têm de ser detetadas sem haver um caso análogo
regulado na lei, pelo que também constitui indício de uma lacuna a
inexistência de regulamentação para um caso que não é análogo a nenhum
caso previsto. O que é relevante é que a regulamentação do caso seja
exigida pelo sistema jurídico

2.6. Exclusão da incompletude


o Se a analogia pode ser utilizada como indício de uma incompletude no
sistema, então um sistema que não admite a analogia não pode comportar
nenhuma incompletude
o São poucos os sistemas que a recusam, porém existem subsistemas que a
excluem
o A analogia também está excluída em relação às regras jurídicas cuja
previsão se refere a um facto que é o único que pode desencadear a
aplicação da sua estatuição. Para que a aplicação analógica de uma regra
seja admissível é necessário que outros factos, que não apenas aqueles que
constam da sua previsão, possam desencadear a aplicação da sua
estatuição
o Conclui-se que a incompletude no sistema está excluída:
• Quando o sistema é completo, i.e., quando não há nenhum caso que
não encontre solução. Neste sistema não há lacunas porque não há
casos não regulados. Este sistema é quase uma impossibilidade
prática, mas é possível, para tal basta que exclua a aplicação do
sistema aos casos não previstos
• Quando o sistema é fechado, i.e., quando o sistema comporta uma
regra que exclui a aplicação analógica das suas regras a casos
omissos. Neste sistema não há lacunas porque o sistema não admite
a sua aplicação a casos omissos. Neste sistema tudo o que não é
proibido é permitido, não existindo casos omissos

1. Classificações das lacunas

• As lacunas podem ser classificadas segundo vários critérios:


normativas/de regulação; intencionais/não intencionais;
iniciais/subsequentes; patentes/ocultas

66
2. Classificações das lacunas (concretização)

2.1. Normativas e de regulação


o Normativas- falta de uma regra jurídica ou uma incompletude numa regra
jurídica
o De regulação- falta de todo um regime jurídico

2.2. Intencionais e não intencionais


o Intencionais- o legislador não quis regular uma determinada matéria por
ter considerado que ela deve vir a ser regulada por soluções desenvolvidas
primeiro pela jurisprudência ou pela doutrina
o Não intencionais- o legislador, por equívoco ou imperícia, não regulou
uma determinada matéria

2.3. Iniciais e subsequentes


o Iniciais- verificam-se desde o início de vigência de um regime jurídico
o Subsequentes- sobrevêm, por razões de evolução social, técnica
económica ou outra, ao início de vigência de um regime jurídico

2.4. Patentes e ocultas


o Patentes- falta de uma regra ou de um regime jurídico que é imediatamente
detetada
o Ocultas- decorrem de uma interpretação ab-rogante, pois que, numa 1ª
análise, parece haver uma regra jurídica que regula a situação, mas, após
a interpretação ab-rogante, verifica-se que, afinal, não há nenhuma regra
aplicável a essa situação
o Nota: a interpretação restritiva não origina nenhuma lacuna oculta;
determina esta que, na ausência de qualquer outra solução, a aplicação ao
caso concreto de uma regra de sentido contrário à regra inferida da fonte
não havendo nenhuma falta de regra aplicável ao caso

67
Título I. Integração de Lacunas

1. Enquadramento geral (necessidade de integração)

• Perante a existência de uma lacuna, são possíveis, em teoria, duas


soluções:
o Ou o juiz considera que o caso não pode ser juridicamente
resolvido por falta de regulamentação aplicável e abstém-se de
proferir uma decisão- nesta hipótese, o tribunal verifica a situação
de non liquet e, por falta de regra aplicável, não está em condições
de proferir nenhuma decisão
o Ou o juiz tem, ainda assim, de proferir uma decisão sobre o caso
omisso: é a solução que, atendendo ao art.8º/1 C, vigora no
ordenamento jurídico português, bem como na generalidade das
modernas ordens jurídicas
o Qualquer destes preceitos tem de ser objeto de uma interpretação
extensiva, porque o que eles estabelecem não é o que o juiz, depois
de detetar a lacuna, decide como entender, mas o que o juiz, depois
de realizar aquela deteção, tem de integrar a lacuna e só depois
pode decidir
• A obrigação de decidir o caso omisso requer que o próprio sistema jurídico
faculte ao juiz os meios necessários para a integração da lacuna. A
obrigação de decidir casos omissos e a possibilidade de completar o
sistema são realidades correlativas, dado que aquela obrigação só pode ser
cumprida se esta possibilidade existir

2. Enquadramento geral (critérios de integração)

• Art.10º CC- critérios de integração de lacunas:


o A analogia jurídica- 1º pois que os casos omissos são regulados
segundo a regra aplicável a casos análogos (art.10º/1 CC)
o A regra hipotética- se a lacuna não puder ser preenchida através da
analogia procede-se à sua integração através de uma regra
hipotética: regra que o próprio intérprete criaria se houvesse de
legislar dentro do espírito do sistema (art.10º/3 CC)
• No direito português, não há nenhuma disposição legal que preveja o
recurso à equidade como critério de integração de lacunas, pelo que, nesta
matéria, nunca se preenche a condição estabelecida no art.4º/a) CC

68
1. Analogia jurídica (generalidades)

• A analogia foi entendida por Aristóteles (384-322 a.C.) no sentido de uma


comunhão de qualidades em dois particulares: ao contrário da igualdade,
a analogia assenta na partilha de, pelo menos, uma qualidade, pois que ela
exige que 2 coisas possuam «mais igual do que diferente»
• Art.10º/2 CC- Há analogia sempre que, no caso omisso, procedam as
razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei. Pressupõe-
se uma identidade de razões da regulamentação legal do caso previsto e do
caso omisso

2. Analogia jurídica (proibições da analogia)

2.1. Regras penais


o A proibição da aplicação analógica das regras penais baseia-se no
princípio nullum crimen sine lege do qual decorre que não é permitido o
recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado
de perigosidade ou determinar uma pena ou uma medida de segurança. Só
regimes totalitários se afastam deste princípio
o Fora do campo das regras penais positivas, a legislação penal recorre, por
vezes, à analogia

2.2. Regras fiscais


o Segundo o disposto no art.11º/4 LGT, as lacunas resultantes de normas
tributárias abrangidas na reserva da lei da AR não são suscetíveis de
integração analógica

2.3. Regras excecionais


o O art.11º CC dispõe que as regras excecionais não comportam aplicação
analógica, mas admitem interpretação extensiva
o A solução que decorre do disposto no art.11º CC poderia ser justificada
pela circunstância de o conjunto constituído pela regra geral e pela regra
excecional não poder admitir nenhuma lacuna, dado que o que não fosse
abrangido pela regra excecional seria necessariamente regulado pela regra
geral. Nem sempre, contudo, esta solução pode ser considerada
satisfatória, pois que o caráter excecional de uma regra pode resultar
apenas da formulação escolhida pelo legislador

69
o O exposto significa que há que encontrar um critério que permita justificar
a proibição da aplicação analógica das regras excecionais que consta do
art.11º CC. Esse critério assenta na distinção entre uma excecionalidade:
• Substancial- é aquela que constrói um ius singulare, i.e., um direito
que é introduzido por razões de utilidade particular contra a razão
geral
• Formal- é aquela que contraria uma regra geral sem contrariar
quaisquer valores fundamentais do sistema jurídico ou que, apesar
de contrariar os valores fundamentais da regra geral, se apoia em
outros valores fundamentais. Isto explica-se pelo facto de que se a
excecionalidade é justificada por valores fundamentais diferentes
daqueles que justificam a regra geral, há apenas uma escolha do
legislador entre dois valores fundamentais: um deles orienta a regra
e o outro subjaz à exceção
o Só a excecionalidade substancial é incompatível com a aplicação
analógica das regras excecionais. Já a formal é compatível com a aplicação
analógica a casos omissos
o Do exposto decorre que o art.11º CC deve ser objeto de uma interpretação
restritiva, dado que não são todas as regras excecionais que não podem ser
aplicadas analogicamente, mas apenas aquelas que contêm um ius
singulare

2.4. Tipologias taxativas


o As tipologias legais são concretizações, enunciativas ou taxativas, de um
tipo:
• Enunciativas- aquelas que podem comportar, além das previstas,
outras concretizações do mesmo tipo
• Taxativas- aquelas que só comportam as concretizações do tipo
que nela estiverem previstas
o A relação de cada uma destas modalidades das tipologias legais com a
analogia é bastante distinta. As tipologias enunciativas são tipologias
abertas, pelo que nelas nunca pode verificar-se nenhuma lacuna. É o
próprio legislador, ao estabelecer o caráter enunciativo da tipologia, que
determina que nela cabem todos os subtipos de um mesmo tipo. Assim, a
tipologia enunciativa engloba não só as concretizações que dela constam,
como também todos os demais subtipos que sejam concretizações do
mesmo tipo
o Já as tipologias taxativas são fechadas, pelo que não admitem a aplicação
analógica a subtipos não previstos, embora nada impeça, se os elementos
da interpretação assim o impuserem, a interpretação extensiva de um ou
de vários subtipos dela constantes

70
o O que foi explicado a propósito das tipologias também vale para as
enumerações, i.e., para um mero enunciado sem referência a um mesmo
tipo

3. Analogia jurídica (comunhão de qualidades)

• Art.10º/2 CC- há analogia sempre que, no caso omisso, procedam as


razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei. Isto sucede,
pois que a regra que regula o caso previsto não é aplicável ao caso omisso,
i.e., se a razão subjacente ao regime do caso previsto for igualmente
adequada para o caso omisso, então os casos são análogos

3.2. Analogia e tipo


o A relação de semelhança pressupõe que as realidades comparadas sejam
simultaneamente idênticas e diversas
o O critério que permite aferir as semelhanças entre o caso previsto e o caso
omisso é o seguinte: os casos são semelhantes se eles apresentarem as
mesmas caraterísticas essenciais
o A comunhão de caraterísticas essenciais entre os casos análogos também
pode ser vista de outra forma: o caso previsto e o caso omisso são análogos
se eles pertencerem a um mesmo tipo, i.e., se forem subtipos de um mesmo
tipo. Assim, o raciocínio analógico é igualmente um raciocínio tipológico
o A lacuna é preenchida através da aplicação analógica da regra que é
aplicável aos casos análogos. As lacunas são «auto-integráveis», é
aplicada a própria regra que mostra a existência da lacuna ao não prever
um caso análogo aos casos nela previstos

3.3. Analogia e valoração


o Na integração de lacunas a analogia jurídica tem de assentar num juízo
valorativo, não só porque a escolha entre o que é considerado essencial e
o que é tido por acidental no caso omisso e no caso previsto exige um juízo
valorativo, mas também porque a ponderação sobre se as caraterísticas
essenciais do caso omisso e do caso previsto são suficientemente próximas
para que os casos possam ser considerados análogos é igualmente
valorativa

71
3.4. Analogia e ratio legis
o A identidade de razões que integra a noção de analogia fornecida pelo
art.10º/2 CC leva a concluir que a consequência jurídica que é atribuída ao
caso previsto deve ser igualmente adequada para o caso omisso
o Assim, se a regra estabelecer a proibição, a obrigação ou a permissão de
uma conduta, de um poder ou de um efeito, essa proibição, obrigação ou
permissão tem de ser apropriada para o caso omisso; se a regra definir um
desvalor jurídico, este desvalor tem de ser apropriado para o caso omisso
o O caso omisso só é análogo ao caso previsto quando os princípios que
orientam a regulação do caso previsto puderem ser transpostos para a
solução do caso omisso

3.5. Analogia e interpretação


o Distingue-se entre a interpretação e a analogia tendo por base a diferença
entre a interpretação (da fonte) e a aplicação analógica (da regra):
• A interpretação destina-se a extrair a regra da fonte. Esta pressupõe
a subsunção dos casos a essa fonte, o que requer que estes casos
sejam análogos ao caso típico nela previsto
• A aplicação analógica consiste em aplicar a regra (que foi obtida
através da interpretação) a um caso que ela não prevê
o Distinção entre a interpretação extensiva da fonte a aplicação analógica da
regra:
• Mesmo com a interpretação extensiva da fonte imposta pelos
elementos não literais da interpretação, a fonte não abrange o caso
omisso; logo, este caso só pode ser resolvido através da aplicação
analógica da regra inferida da fonte
• A interpretação extensiva da fonte possibilita a construção de uma
regra para além do significado literal dessa fonte, a qual possui um
âmbito de aplicação
• A aplicação analógica da regra que foi inferida da fonte reporta-se
a um caso que está fora deste âmbito, i.e., é utilizada para integrar
uma lacuna
• Portanto, a analogia que se utiliza para integrar a lacuna começa
onde acaba a interpretação extensiva

3.6. Modalidades da analogia


o O princípio formal e o princípio material que orientam uma determinada
solução jurídica podem estar consagrados numa única regra ou ser
inferidos de uma pluralidade de regras jurídicas
o Existem assim 2 formas de descobrir esses princípios:

72
• Analogia legis
▪ Aquela em que se utiliza, na procura dos princípios
orientadores de um regime jurídico, apenas a regra jurídica
que regula um caso análogo
• Analogia iuris
▪ Aquela em que se utiliza, na busca desses princípios, uma
pluralidade de regras jurídicas
o A distinção entre estas não se resume à utilização de uma única regra
jurídica ou de uma pluralidade de regras jurídicas na procura dos
princípios que devem orientar uma solução jurídica. Esta passa também
pela existência ou inexistência de uma regra jurídica que regula um caso
semelhante: na analogia legis, essa regra existe; na analogia iuris, essa
regra não existe, mas decorre do ordenamento jurídico um princípio que
permite resolver o caso em apreciação

3.7. Crítica da analogia iuris


o Como essa analogia pressupõe que vigore, no ordenamento jurídico, um
princípio que seja aplicável ao caso em apreciação, não há sequer uma
lacuna que deva ser integrada, dado que afinal há um princípio que regula
aquele caso
o Nesta perspetiva, admissibilidade da analogia iuris como critério de
integração de lacunas implica negar que os princípios jurídicos possam ser
critérios de decisão de casos concretos
o Esta objeção permite concluir que a analogia iuris não pode ser incluída
na analogia prevista no art.10º/1 e 2, CC como forma de integração de
lacunas pois que, se há um princípio que abrange o caso, então o caso não
é omisso

1. Regra hipotética

• Na falta de um caso análogo ao caso omisso, a lacuna é preenchida através


da regra que o intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito
do sistema (art.10º/3 CC)
• Esta só é utilizada como modo de integração de uma lacuna quando esta
não possa ser preenchida através da analogia e quando a lacuna passa a ser
uma hard gap
• A construção da regra hipotética está excluída quando o sistema seja
fechado, i.e., quando ele não comporte nenhuma lacuna

73
2. Regra hipotética (construção da regra)

2.1. Abstração e generalidade


o A integração da lacuna através deste método deve orientar-se pelos valores
de abstração e generalidade que são caraterísticos das regras jurídicas; e
não a discricionariedade e a equidade

2.2. Espírito do sistema


o O intérprete (ou aplicador) tem de construir a regra hipotética com
observância do espírito do sistema (art.10º/3 in fine, CC): tem de
considerar os princípios formais e materiais que, na ótica do sistema,
devem orientar a integração da lacuna
o Esta observância implica uma atividade de prospeção

2.3. Comparação das soluções


o A construção da regra hipotética é, em relação à aplicação analógica de
uma regra, um critério subsidiário de integração de lacunas (cf. art.10º/3
CC)
o Esta subsidiariedade não significa uma diferença substancial entre os 2
critérios de integração, já que, em qualquer deles os princípios
desempenham uma função essencial: na analogia, esses princípios servem
para verificar se o regime previsto é adequado para regular o caso omisso;
na regra hipotética, aqueles princípios orientam a construção desta regra

2.4. Disposições especiais


o Este método encontra-se previsto em algumas disposições especiais. É o
caso do art.4º CPP, que estabelece que os casos omissos são regulados, em
última análise, pelos princípios gerais do processo penal

3. Regra hipotética (caraterística da regra)

• A regra hipotética não cria direito, porque não é uma fonte de direito
• Pode, no entanto, ser considerada como construção jurisprudencial do
direito quando realizada por um juiz

74
Título II. Critérios de solução

1. Generalidades (enunciado)

• Um caso com relevância jurídica pode ser resolvido através de critérios


normativos ou não normativos:
o Normativos- baseiam-se em leis abstratas e gerais e assentam num
princípio de universalização: todos os casos semelhantes devem
ser decididos do mesmo modo
o Não normativos- baseiam-se num princípio de especialidade: cada
caso deve ser decidido atendendo às suas particularidades

2. Generalidades (ponderação)

• A escolha entre os critérios é uma escolha entre 2 opções:


o Opção entre a prevalência da confiança ou da justiça
▪ A utilização de um critério normativo privilegia a
confiança em detrimento da justiça, dado que o recurso a
uma lei abstrata e geral torna previsível a solução do caso
concreto; em contrapartida, este critério não pode garantir
que a solução seja a mais justa
▪ A utilização de um critério não normativo garante uma
maior justiça, porque esta pode atender às particularidades
de cada caso concreto; em contrapartida, existe uma
diminuição da confiança, pois que envolve uma imprevisão
sobre a decisão que vai ser proferida pelo julgador
o Opção entre a aplicação automática da lei ou a intermediação de
um órgão decisório na solução de um caso concreto:
▪ Se um legislador estabelecer que um certo efeito decorre
diretamente da lei, então o caso concreto é solucionado sem
a intervenção de nenhum decisor
▪ Se o legislador pretender que a solução do caso seja obtida
através de critérios não normativos, isso implica a
intermediação de um órgão que aplique aqueles critérios

1. Critérios não normativos (discricionariedade)

• Esta atribui ao órgão decisório a possibilidade de decidir segundo o que


for mais conveniente e oportuno para a prossecução de um determinado
interesse

75
2. Critérios não normativos (equidade)

2.1. Noção
o Esta é a justiça do caso concreto

2.2. Antecedentes
o O primeiro teorizador da equidade foi Aristóteles (384-322 a.C.)
o Em contraposição ao caráter abstrato e geral da lei, a equidade atende às
especificidades do caso concreto e procura encontrar uma solução justa
considerando essas especificidades

2.3. Direito vigente


o O art.4º CC, relativo à relevância da equidade, encontra-se integrado nas
fontes do direito (cf. art.1º e 4º CC). Esta sistematização legal é discutível,
porque a equidade nunca possui as caraterísticas de abstração e
generalidade que são caraterísticas normais da lei

2.4. Critério de decisão


o Esta pode ser um critério exclusivo ou concorrente de solução de casos
concretos. As hipóteses em que a equidade pode ser o único critério de
solução constam do art.4º CC:
• Quando haja disposição legal que o permita
• Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja
indisponível, i.e., quando o direito ou a situação jurídica não
estiverem subtraídos à vontade das partes
• Quando as partes tenham convencionado que a apreciação da causa
seja realizada por um tribunal arbitral e que este tribunal julgue
segundo a equidade
o A equidade também pode concorrer com outros critérios para a decisão de
casos concretos
o O recurso à equidade só é permitido se houver uma disposição legal ou
negocial que o estabeleça, não o é fora do enquadramento do sistema
jurídico ou da vontade das partes

76
1. Critérios normativos (generalidades)

• Estes são aqueles que conduzem à aplicação de uma regra jurídica na


resolução de um caso concreto

2. Critérios normativos (determinação da regra)

• Se, no ordenamento jurídico, houver uma única regra que regula o caso, é
ela que vai ser aplicada na sua solução
• Pode, no entanto, haver uma pluralidade de regras potencialmente
aplicáveis ao caso, assim sendo:
o Ou todas as regras são aplicadas ao caso, porque elas definem
diferentes efeitos jurídicos que são compatíveis entre si-
cumulação de regras
o Ou qualquer das regras pode ser aplicada ao caso, porque todas elas
definem o mesmo efeito jurídico- concurso de regras
o Ou só umas pode ser aplicada ao caso, porque elas são
incompatíveis entre si- conflito (pragmático) de regras

2.2. Cumulação de regras


o Verifica-se quando várias regras são aplicadas em conjunto na decisão de
um caso concreto
o É bastante frequente, porque é uma consequência da circunstância de a
ordem jurídica analisar por diferentes ângulos uma única situação da vida
o Normalmente, há uma regra que fornece uma qualificação principal e
várias outras regras que atribuem qualificações acessórias

2.3. Concurso de regras


o Verifica-se quando um caso concreto é subsumível a uma pluralidade de
regras que definem um mesmo efeito jurídico, pelo que a decisão do caso
pode ser fundamentada em qualquer delas
o Implica uma relação de alternatividade entre as regras concorrentes

2.4. Conflito de regras


o Verifica-se quando um caso é subsumível a várias regras, mas só uma
delas pode ser aplicada na sua decisão
o A escolha da regra aplicável ao caso é realizada através dos critérios de
especialidade, de excecionalidade, de subsidiariedade e de consumpção:

77
• Se uma das regras for geral e outra for especial, prevalece a regra
especial sobre a regra geral
• Se uma das regras for geral e a outra regra excecional, prevalece a
regra excecional
• Se uma das regras for principal e outra subsidiária, a regra
subsidiária só pode ser aplicada quando a regra principal não for
aplicável ao caso
• Se uma das regras consumir uma outra regra, só se aplica a regra
consumptiva

3. Critérios normativos (princípios jurídicos)

• Os princípios jurídicos- sejam formais ou materiais- também são critérios


normativos de decisão de casos concretos
• Assim sendo, é mais comum o recurso aos (mais concretos) princípios
materiais do que aos (mais abstratos) princípios formais, mas não está
excluído que uma decisão se possa fundamentar nos princípios formais de
justiça, de confiança ou de eficiência

78
Título II. Teoria da argumentação jurídica

1. Função da argumentação

• A argumentação jurídica visa criar uma convicção num destinatário. Esta


provém de um interessado e tem, pelo menos, um destinatário, mas, muito
frequentemente, ela tem ainda um outro destinatário- o juiz com
competência para a decisão do caso concreto
o Nesta hipótese, os interessados procuram influenciar a construção
da decisão, recorrendo a argumentos que possam levar a formar no
julgador a convicção de que o caso deve ser resolvido pela regra
jurídica que pretendem que seja aplicada e da forma como
pretendem que seja aplicada
• Esta pode ser:
o Aberta- o interessado pode argumentar sobre qualquer tema
o Fechada- a lei limita os temos sobre os quais pode recair a
argumentação

1. Teoria processual

• Alexy construiu uma teoria processual da argumentação com base na


premissa de que as questões práticas (de âmbito valorativo ou normativo)
podem ser resolvidas através da argumentação, porque qualquer juízo de
valor ou de dever ser tem uma pretensão de correção e também porque,
nas discussões nos quais esta pretensão seja questionada e deva ser
fundamentada, é possível distinguir entre bons e maus fundamentos e entre
argumentos válidos e inválidos
• Este modelo assenta no pressuposto de que é possível argumentar
racionalmente no âmbito do raciocínio prático

2. Teoria processual (premissas da teoria)

2.1. Premissas gerais


o Alexy visa desenvolver uma teoria analítica e normativa do discurso
jurídico, começando por procurar estabelecer as condições (conjunto de
regras que devem ser observadas no discurso) que devem estar preenchidas
para que se possa verificar um discurso prático racional
o A racionalidade da argumentação é assegurada através da utilização de um
sistema de regras e de formas de argumentação próprias do discurso
prático

79
o Alexy entende que a razão prática é a faculdade de chegar a conhecimentos
práticos através do sistema de regras próprias do discurso. Este defende a
tese de que o discurso jurídico é um caso especial de discurso prático
o Apesar de entre o discurso prático e o discurso jurídico não haver nenhuma
diferença quanto ao objeto (ambos procuram determinar o que é correto e
permitem aferir o que deve ser realizado ou omitido), o discurso jurídico
ocorre num ambiente que limita os argumentos que podem ser utilizados
pelos seus participantes. O discurso jurídico é, por isso, um discurso
prático com uma racionalidade própria, nomeadamente ao nível da sua
justificação argumentativa

2.2. Relatividade da correção


o A correção de uma decisão pode ser obtida através de um discurso prático,
mas isso não significa que esse discurso conduza necessariamente à
obtenção de um consenso entre os participantes, nem da única decisão que
possa ser a correta
o Na opinião de Alexy, isso nem sequer sucede num discurso ideal:
• Tempo ilimitado
• Participação ilimitada e de completa falta de coerção
• Completa informação empírica
• Completa capacidade e disponibilidade para troca de papéis
• Completa liberdade perante pré-juízos
o Daí que qualquer correção que seja obtida num discurso seja
necessariamente relativa em função quer das suas regras, quer dos
participantes, quer ainda da ocasião em que ele ocorre

3. Teoria processual (condições do discurso)

• O ponto de partida do discurso prático é constituído pelas convicções dos


participantes sobre o modo como há que resolver uma questão prática, mas
todas essas convicções podem ser alteradas através de uma argumentação
racional desenvolvida durante a discussão
• A teoria processual pressupõe um discurso prático-racional, i.e., um
discurso no qual estejam preenchidas as condições da argumentação
prática racional

3.2. Regras do discurso


o Alexy distingue cinco tipos de regras do discurso:
• Básicas- condições prévias que possibilitam qualquer
comunicação

80
• Racionalidade- garantem a igualdade da posição dos participantes
no discurso, a universalidade da argumentação e a liberdade desses
participantes perante qualquer coerção
• Sobre o ónus da argumentação- de caráter técnico, que repartem,
pelos participantes no discurso, o ónus de argumentar e de
justificar
• De justificação- relativas aos argumentos utilizados no discurso
prático
• De transição- baseiam-se na circunstância de os resultados de um
discurso prático poderem depender dos resultados conseguidos
noutras espécies do discurso, nomeadamente, no discurso
linguístico-analítico e no discurso teórico sobre o discurso

4. Teoria processual (justificação do discurso)

4.1. Modalidades da justificação


o Alexy distingue entre a justificação interna e a justificação externa da
decisão:
• Interna- respeita à questão de saber se a decisão decorre
logicamente das premissas constantes da fundamentação
• Externa- tem por objeto a correção das premissas que constituem a
fundamentação

4.3. Justificação externa


o As regras que orientam a justificação (externa) são:
• A argumentação dogmática- argumentação com base em
proposições dogmáticas
• A argumentação empírica- aquela que é utilizada quanto a
afirmações empíricas
• As formas especiais de argumentação jurídica
• Os cânones da interpretação- os 4 cânones tradicionais (argumento
semântico, genético, sistemático e teleológico) e comportam ainda
o argumento histórico e o argumento comparativo
• A utilização de precedentes

81
Título II. Análise da argumentação jurídica

1. Elementos da argumentação (noção de argumento)

• O argumento é um meio de fundamentação da relação entre uma premissa


e uma conclusão, i.e., é algo que permite transferir a aceitabilidade de uma
premissa para uma conclusão
• Este pode ser visualizado no seguinte esquema:

Premissa P Conclusão C

Argumento A

2. Elementos da argumentação (estrutura do argumento)

• Toulmin distingue os seguintes elementos do argumento:


o A conclusão (C)
o Os dados que conduzem à conclusão (D)
o As razões que justificam a relação entre os dados e a conclusão (R)
o As exceções à relação entre os dados e a conclusão (E)
o O fundamento que alicerça as razões (F)

Dado D Conclusão C

Razão R Exceção E

Fundamento F

3. Elementos da argumentação (âmbito dos argumentos)

• A aplicação do direito num caso concreto é realizada através de uma


decisão, a qual, assenta em certas premissas de facto e de direito
• Os argumentos permitem quer construir essas premissas, quer passar dos
factos e do direito para a decisão

82
1. Matéria de direito (generalidades)

• Os argumentos de seguida referidos permitem descobrir no sistema


jurídico regras derivadas de outras regras

2. Matéria de direito (argumento a simile)

• Baseia-se na analogia entre os dois ou mais casos


• Alicerça-se na unidade do sistema jurídico e, em particular, no princípio
da igualdade (cf. art.13º CRP), segundo o qual o que é igual tem de ser
tratado de forma igual

2.2. Concretização
o Este permite integrar, através de um raciocínio por analogia, uma lacuna
(cf. art.10º/1 e 2, CC). Este só pode ser utilizado quando a analogia seja
admissível, o que o exclui sempre que a regra defina um ius singulare ou
contenha uma tipologia ou uma enumeração taxativa
o Este também pode ser utilizado pelo legislador para delimitar o campo de
aplicação de uma regra: nesta situação, o legislador previne a lacuna
através da inclusão dos casos análogos na previsão de uma mesma regra

3. Matéria de direito (argumento a contrario)

• Da interpretação de qualquer fonte resulta uma regra positiva (conjunto de


casos abrangidos pela regra) e uma regra negativa (conjunto de casos a que
a regra não é aplicável)
• O argumento a contrario sensu é aquele que permite concluir que a regra
negativa é uma regra de sentido contrário ao da regra positiva: se a regra
(positiva) só abrange um determinado caso, então pode concluir-se que
todos os casos que não sejam análogos ao caso regulado são abrangidos
pela regra (negativa) de sentido contrário
• O enunciado do princípio que está subjacente ao argumento a contrario
mostra a sua grande dificuldade: trata-se de saber se a regra, ao regular um
caso, exclui do seu âmbito todos os outros casos ou se a regra, apesar de
se referir apenas a um caso, deve ser aplicada a outros casos não previstas.
Esta dificuldade não deve ser aumentada com uma outra dificuldade: a de
determinar qual foi a intenção do legislador, isto pois que há que utilizar
parâmetros puramente objetivos
• O argumento a contrario pode ser entendido num sentido forte (se a sua
base for uma regra excecional) ou fraco (se a sua base for o silêncio legal)

83
3.2. Sentido forte
o Para se determinar se o argumento a contrario (no sentido forte) é
admissível, há que atender ao seguinte fator: a regra que o fundamenta tem
de ser uma regra insuscetível de aplicação analógica aos casos nela não
previstos, de molde a poder dizer-se que todos os casos que ela não
abrange são regulados por uma regra de sentido contrário
o Se a regra excecional constituir um ius singulare, a sua aplicação analógica
está necessariamente excluída (cf. art.11º CC), pelo que o argumento a
contrario é admissível
o Se a regra excecional não constituir um ius singulare, ainda há que
ponderar se, no caso concreto, se justifica a aplicação analógica dessa
regra ou a aplicação da regra contrária baseada no argumento a contrario
o As regras que contêm uma tipologia taxativa são insuscetíveis de aplicação
analógica e, por isso, também fundamentam o argumento a contrario. O
mesmo pode ser dito das enumerações taxativas
o O argumento a contrario também pode ter por fundamento a interpretação
restritiva de uma fonte, sempre que aquela não implique a aplicação de
outra regra do sistema jurídico

3.3. Sentido fraco


o O argumento a contrario também pode ser construído a partir do silêncio
de uma regra com fundamento na regra interpretativa segundo a qual
expressio unius est exclusio alterius ou inclusio unius est exclusio alterius
o Procurando explicitar a diferença entre o argumento a contrario em
sentido forte e em sentido fraco importa considerar o seguinte:
• Forte- baseia-se na inadmissibilidade da analogia
• Fraco- assenta numa relação de alternatividade entre dois
contrários

3.4. Delimitação do argumento


o Este argumento só pode ser utilizado quando não se possa recorrer ao
argumento a simile
o O argumento a simile exclui que a regra possa fundamentar o argumento
a contrario, dado que os casos que ela não prevê vão ser regulados pela
mesma regra, aplicada analogicamente

4. Matéria de direito (argumento a fortiori)

• Este pode revestir as modalidades de argumento a minori ad maius e de


argumento ad maiori ad minus
84
4.2. Concretização
o O argumento a minori ad maius comporta 2 formulações:
• Uma atende à previsão da regra- se o «menos» é suficiente para
produzir certos efeitos jurídicos, então o «mais» produz
necessariamente esses mesmos efeitos
• Outra considera a estatuição da regra e o efeito jurídico nela
definido. Se a regra proíbe o «menos», então também proíbe o
«mais»
o O argumento a maiori ad maius também comporta 2 formulações:
• Uma parte da previsão da regra- se o «mais» não produz certo
efeito jurídico, então também o «menos» não o pode produzir
• Outra parte da estatuição da regra- se a regra permite o «mais»,
então também permite o «menos»

4.3. Funções
o Estes dois argumentos constituem 2 dos principais elementos de que se
pode servir o aplicador para resolver as inconsistências valorativas que
existem no ordenamento jurídico

1. Matéria de facto (tipos de argumentos)

1.1. Base do argumento


o Num processo jurisdicional, o que é conhecido sobre a matéria de facto
pode ser quer uma premissa de facto, quer uma conclusão de facto.
• Se for conhecida uma premissa de facto, o argumento pretende
fundamentar a conclusão que pode ser extraída dessa premissa
• Se for conhecida uma conclusão de facto, o argumento pretende
determinar o facto que a ela conduziu

1.2. Presunção e abdução


o A distinção entre o conhecimento de uma premissa ou de uma conclusão
de facto permite enumerar dois tipos de argumentos:
• Quando for conhecida a premissa de facto, o argumento que pode
conduzir à conclusão de facto é de caráter presumptivo
• Quando for conhecida a conclusão de facto, o argumento que pode
conduzir à premissa de facto é de caráter abdutivo

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2. Matéria de facto (argumentos presumptivos)

• É aquele que, partindo de um facto, procura justificar uma conclusão de


facto, pelo que é aquele que procura estabelecer a relação entre um facto
(dado) e uma conclusão de facto (conclusão)

3. Matéria de facto (argumentos abdutivos)

3.1. Origem
o A abdução é o processo de formação de uma hipótese explicativa

3.2. Caraterização
o Por vezes, a dificuldade não reside em determinar o facto, mas em
encontrar a sua causa (ou explicação)
o O argumento abdutivo é aquele que, partindo de uma conclusão de facto,
procura encontrar o facto que a justifica da forma mais plausível possível.
Portanto, o argumento abdutivo visa determinar o facto que constitui a
causa (dado) de uma conclusão de facto (conclusão)

3.3. Importância
o Estes argumentos relevam:
• No âmbito da matéria de facto- perante uma conclusão de facto, há
que encontrar as suas causas, pois que estas condicionam a regra
aplicável ao caso concreto
• Pois que a dialética de argumentos abdutivos é frequente em
qualquer processo judicial

86
Título II. Construção da decisão

1. Generalidades (discovery vs. justification)


o No âmbito da filosofia da ciência, estabeleceu-se a distinção entre o
contexto da descoberta e o contexto da justificação:
• Contexto da descoberta- formulação de uma teoria
• Contexto da justificação- demonstração da teoria formulada
o No domínio da metodologia jurídica, esta distinção corresponde à mais
antiga distinção entre a ars inveniendi e a ars iudicandi
o A distinção entre o contexto da descoberta (ou ars inveniendi) e o da
justificação (ou ars iudicandi) é facilmente transponível para a decisão de
um caso concreto:
• O contexto da descoberta- decisão
• O contexto da justificação- fundamentação da decisão
o A descoberta e a justificação da decisão não podem ser vistas como
atividades separáveis, pois que a decisão não tem sempre de ser justificada.
Qualquer que tenha sido o modo de descoberta da decisão, para o direito
esta só pode ser considerada aceitável se puder ser justificada em termos
jurídicos

2. Generalidades (precedência da regra)

• Em teoria, a decisão só deve ser tomada depois de estarem apurados os


factos relevantes e de determinada a regra aplicável. Constitui, no entanto,
um fenómeno bem conhecido que, muito frequentemente, o aplicador do
direito (o juiz) começa por tomar a decisão e, só depois, procura
fundamentá-la, ou seja, esse aplicador antecipa a discovery à justification
• Esta inversão entre a decisão e a determinação da regra aplicável foi
mesmo considerada uma das vantagens do sistema anglo-saxónico
• A precedência da descoberta da decisão apenas implica que tem de ser
encontrada uma justificação para a decisão que foi construída pelo decisor
• A justificação da regra aplicável não pode ser influenciada pela descoberta
da decisão e só pode ser encontrada nos estritos parâmetros da
interpretação das fontes e da aplicação das regras
• Dado que a aplicação de uma regra a um caso concreto implica sempre a
conjugação de um ato de conhecimento (fatos relevantes), de um ato de
valoração (regra aplicável) e de um ato volitivo (pelo qual se constrói a
decisão), o apuramento daqueles factos e a extração da regra da sua fonte
não deve ser justificada pela vontade de proferir uma certa decisão
• O aplicador do direito não pode querer estabelecer os factos relevantes e
fazer uma certa interpretação da fonte

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3. Generalidades (fundamentação da decisão)

3.1. Necessidade
o As decisões dos tribunais aplicam uma regra a um facto, pelo que elas
conjugam matéria de facto (constituída pelos factos juridicamente
relevantes) e matéria de direito (constituída pela regra jurídica que é
aplicada a esses factos). É por isso que a decisão comporta premissas de
facto (relativas aos factos relevantes) e de direito (relativas à regra
aplicável)
• A matéria de facto deve ser alegada pelas partes do processo, i.e.,
pelo autor e pelo réu
• A matéria de direito é sempre conhecida oficiosamente pelo
tribunal

3.2. Importância
o Esta é essencial para o controlo da sua racionalidade, podendo dizer-se que
esta racionalidade é uma função da fundamentação da decisão
o Esta fundamentação é constitutiva dessa mesma racionalidade da decisão
pois que esta só pode ser aferida pela fundamentação

3.3. Tipos
o Os tribunais devem fundamentar as suas decisões (art.205º/1, CRP). Esta
exigência de fundamentação decorre da necessidade de controlar a
coerência interna e a correção externa da decisão:
• Coerência interna- coerência com as respetivas premissas de facto
e de direito
• Correção externa- correção da construção das suas premissas de
facto e de direito (as premissas têm de ser obtidas corretamente)
o A coerência interna só pode fornecer uma justificação ex post da decisão
o As dificuldades não residem na coerência interna da decisão, mas na sua
correção externa: extrair a conclusão adequada das premissas de facto e de
direito não é difícil; o que pode ser muito difícil é estabelecer essas
mesmas premissas
o Dificuldade de assegurar a correção externa da decisão: grande nos hard
cases e menor nos easy ou clear cases. Quanto maior for a dificuldade em
averiguar os factos relevantes, em interpretar a fonte ou em concretizar
efeitos indeterminados mais o caso se aproxima de um hard case

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1. Correção externa

• A justificação externa da decisão respeita à correção da construção das


suas premissas de facto e de direito. Como a regra jurídica comporta uma
previsão e uma estatuição, a correção externa da decisão refere-se quer à
determinação dos factos relevantes, quer à correspondência desses factos
com a previsão da regra escolhida, quer ainda à determinação do efeito
jurídico que decorre da estatuição da regra aplicável
• Este enunciado implica que, na construção da decisão, se conjugam
elementos cognitivos, valorativos e volitivos:
o Cognitivos- determinação das premissas de facto
o Valorativos- construção da regra aplicável e à concretização do
efeito que decorre dessa regra
o Volitivos- tomada da decisão

2. Correção externa (premissas de facto)

2.1. Necessidade da prova


o No âmbito dos processos jurisdicionais é frequente que cada parte forneça
uma diferente versão de um acontecimento
o Quando assim sucede, o facto é controvertido e a dúvida sobre a sua
veracidade só pode ser resolvida através da prova

2.2. Noção da prova


o As provas visam demonstrar a realidade dos factos (art.341º CC). A prova
recai sobre um determinado facto- o objeto da prova-, utiliza certos meios-
os meios de prova- e destina-se, depois da sua produção, a ser valorada
pelo tribunal

2.3. Procedural defeasibility


o Um argumento diz-se «derrotável» quando a sua força pode ser
questionada por factos que não põem em questão as suas premissas (ex.
argumento indutivo)
o A distribuição do ónus da prova pelas partes de uma ação baseia-se no
postulado de que é possível «derrotar» um argumento sem pôr em causa
as suas premissas

89
o Para aligeirar o ónus da prova do autor e a própria atividade dos tribunais,
o ónus da prova é distribuído de forma a evitar que o autor tenha de provar
todos os factos dos quais depende a procedência da sua ação
• O autor só tem de provar os factos constitutivos do direito de que
se arroga (cf.art.342º/1, CC)
• Ao réu incumbe provar qualquer facto impeditivo, modificativo ou
extintivo do direito invocado pelo autor (cf. art.342º/2, CC)
o O esquema de repartição do ónus da prova assenta, quando visto pela
perspetiva do autor da ação, numa distinção entre probanda e non-
refutanda:
• Probanda- factos que têm de ser provados pelo autor, i.e., factos
constitutivos
• Non-refutanda- factos que o autor não tem de provar, mas que, para
que a ação possa proceder, não podem ser refutados pelo réu; estes
podem ser refutados por factos impeditivos, modificativos ou
extintivos

2.4. Valoração da prova


o O valor da prova pode encontrar-se fixado pela lei: fala-se então de prova
legal ou prova tarifada- estes documentos fazem prova plena dos factos
que referem como praticados pela autoridade ou oficial público
o Também pode suceder que a prova não tenha nenhum valor pré-fixado:
fala-se então de prova livre, porque ela é livremente valorada pelo julgador
de acordo com a sua prudente convicção (cf. art.655º/2 CPC)
o Na valoração da prova livre relevam frequentemente regras da experiência
• Algumas destas permitem inferir resultados indiscutíveis:
• Outras apenas permitem inferir resultados prováveis

2.5. Resultado da prova


o Depois da realização da prova, são possíveis 3 hipóteses:
• Uma ocorre quando a prova realizada conduz a que se considere
que o facto foi provado
• Outra verifica-se quando a prova produzida leva a concluir que o
facto não foi provado
• Uma última ocorre quando a prova realizada for inconcludente ou
insuficiente, não se prova nem que essa convivência existiu, nem
que ela não se verificou
o Se o facto estiver provado ou não provado, não se levantam nenhuns
problemas quanto ao sentido da decisão:

90
• Estando provado- há um facto que pode ser integrado na previsão
de uma regra jurídica
• Não estando provado- não há qualquer facto que possa ser incluído
na previsão de uma regra
o Mais problemática é a situação em que se verifica a insuficiência de prova
e em que, portanto, não há motivos nem para avaliar o facto como
verdadeiro, nem para qualificar esse facto como não verdadeiro
o Dado que o art.8º/1 CC não permite que o tribunal deixe de se pronunciar
invocando uma dúvida sobre os factos relevantes, há que encontrar um
critério que permita ultrapassar essa dúvida
o No âmbito da generalidade dos processos judiciais, a solução baseia-se no
seguinte critério: o tribunal decide contra a parte sobre a qual recai o ónus
de provar o facto controvertido
o O critério de solução é distinto no âmbito do processo penal: neste
processo, em consequência da presunção de inocência do arguido (cf.
art.32º/2 CRP), vale o princípio in dúbio pro reo, pelo que a insuficiência
de prova sobre um facto desfavorável ao arguido é sempre resolvida a seu
favor

3. Correção externa (premissas de direito)


o A decisão é construída a partir da regra aplicável ao caso concreto. Assim,
a seleção da regra aplicável antecede necessariamente a construção da
decisão
3.2. Seleção da regra
o Nem todos os factos da vida têm relevância jurídica- esta seleção só pode
ser realizada através de critérios jurídicos (um facto só pode ser
juridicamente relevante se preencher uma previsão legal)
o Os factos são aquilo que os enunciados verdadeiros enunciam, pelo que
estes enunciados preexistem aos factos; os factos jurídicos são
subsumíveis às previsões legais: antes da sua qualificação como jurídicos,
os factos não são factos jurídicos ---» a determinação da relevância jurídica
do facto coexiste com a construção da regra que o inclui na sua previsão:
uma vez determinada a fonte que qualifica o facto como jurídico, está
também encontrada a regra que o regula

3.3. Formulação da ponderação I


o A decisão pode exigir uma aturada valoração recíproca de princípios e de
regras conflituantes
o Ponderar pressupõe, primeiro, comparar e, depois, escolher um dos termos
da comparação: a ponderação é uma comparação seguida de uma escolha

91
o Quando se trata de escolher entre 2 princípios ou 2 regras conflituantes
não pode deixar de se considerar a influência que cada um dos
princípios/regras exerce na aplicação do outro princípio/regra
o Esta influência é notória atendendo ao seguinte critério: compara-se a
razão que o princípio ou regra fornece para a sua aplicação com a
contrarrazão para a sua não aplicação que é fornecida pelo princípio/regra
conflituante
o Após esta comparação, prevalece o princípio ou a regra que «derrotar» a
contrarrazão fornecida pelo outro princípio/regra
o Verifica-se, assim, que o princípio/regra nunca são escolhidos pelo que
valem em si mesmos, mas pelo que eles valem no confronto com outros
princípios ou regras conflituantes ---» escolhe-se a opção que afastar (ou
«derrotar») todas as demais opções fornecidas pelo sistema

3.4. Fórmula de ponderação II


o A fórmula de ponderação que é utilizada para escolher um dos princípios
ou uma das regras conflituantes pode ser transposta para outras situações
que imponham uma ponderação do decisor
o É o que sucede quando há que optar por uma das várias alternativas
contantes da estatuição de uma regra jurídica
o Critério de escolha de uma das alternativas legais: compara-se a razão que
a alternativa fornece para a sua escolha com a contrarrazão para a sua não
escolha que é fornecida pelas demais alternativas legalmente
estabelecidas; após esta comparação, prevalece a alternativa que
«derrotar» a contrarrazão fornecida pelas demais alternativas
o Quando se trata de concretizar um conceito indeterminado, há que
comparar a razão que a concretização fornece para a sua escolha com a
contrarrazão para a sua não escolha que é fornecida pelas demais
concretizações possíveis do conceito indeterminado; depois desta
comparação, prevalece a concretização que «derrotar» a contrarrazão
fornecida por qualquer outra concretização possível daquele conceito

3.5. Ausência de regra


o A decisão também pode ser construída a partir da ausência de uma regra
aplicável ao caso concreto. Assim sendo, há que considerar duas situações:
• Uma é aquela em que o caso concreto tem relevância jurídica, mas
não há regra aplicável, i.e., o decisor tem de integrar uma lacuna;
nesta hipótese, a decisão é construída a partir da regra que é
analogicamente aplicada (cf. art.10º/1 CC) ou da regra hipotética
que é construída pelo próprio decisor (cf. art.10º/3 CC)

92
• Outra é aquela em que o caso é omisso, mas não tem relevância
jurídica e, por isso, pertence ao espaço livre de direito; nesta
hipótese, o decisor decide com base na falta de relevância jurídica
do caso, o que só lhe permite proferir uma decisão que rejeita o
pedido do autor da ação

4. Correção externa (determinação dos efeitos)

• Depois de o tribunal ter escolhido a regra aplicável através da seleção e da


subsunção dos factos, são conhecidos, através da estatuição dessa regra,
os efeitos jurídicos que decorrem daqueles factos
• Com isto o problema relativo à resolução do caso concreto só se deslocou
da previsão para a estatuição da regra aplicável: agora o problema é o da
aplicação desta estatuição ao caso concreto

4.2. Modalidade dos efeitos


o O efeito jurídico estabelecido na estatuição pode ser:
• Determinado - quando for completamente definido pela estatuição
da regra
• (Relativamente) Indeterminado - quando admitir uma
concretização pelo aplicador da regra
o Algumas regras jurídicas definem um efeito jurídico que tem de ser
concretizado em função de um critério de proporcionalidade do tipo
«quanto mais, tanto mais» e «quanto menos, tanto menos»
o Conclui-se que as regras que estatuem estes efeitos proporcionais também
atribuem ao decisor uma importante margem de apreciação

1. Coerência interna
o A coerência interna da decisão respeita à sua adequação com as respetivas
premissas de facto e de direito. Os efeitos jurídicos definidos nessa decisão
têm de ser coerentes com os factos apurados e com a regra aplicável

93
2. Coerência interna (silogismo judiciário)

2.1. Estrutura
o A aplicação da regra jurídica a um caso concreto costuma ser descrita
através do chamado silogismo judiciário, que tem a seguinte estrutura:
(1) A premissa maior é constituída por uma regra jurídica
(2) A premissa menor é integrada por um facto incluído na previsão
da regra jurídica
(3) A conclusão é constituída pelo efeito decorrente da aplicação da
regra jurídica ao facto

2.2. Consagração
o As decisões dos tribunais devem comportar os fundamentos de facto e de
direito e concluir pela decisão final (art.659º/2, CPC), pelo que essas
decisões devem ser estruturadas segundo o esquema do silogismo
judiciário, utilizando um método dedutivo na sua fundamentação e na
relação desta com a conclusão
o A falta de coerência entre a decisão e as suas premissas é um vício lógico
a que corresponde um desvalor jurídico específico: a contradição entre a
decisão e os fundamentos gera a nulidade da decisão (cf. art.668º/1 c),
CPC)

3. Coerência interna (esquema alternativo)

• Duas principais críticas dirigidas ao esquema do silogismo judiciário:


(1) Ele encerra uma inversão metodológica, porque o ponto de partida
de qualquer entidade ou órgão de aplicação jurídica não é a regra
jurídica, mas a situação da vida que lhe cabe apreciar
(2) A premissa menor não é apenas a descrição de um facto, antes
encerra um facto que é qualificado como juridicamente relevante
pela regra que é enunciada na premissa maior; assim, a premissa
menor já contém a integração do facto na regra e, por isso, não é
independente da premissa maior.
• Mais próximo da realidade é o seguinte esquema:
(1) Aconteceu o facto F
(2) O facto F integra a previsão da regra R
(3) A regra R estatui o efeito E
(4) Logo, o facto F produz o efeito E
• Resumido num enunciado de caráter dinâmico:
(1) Antecedente: verificação do facto F₁

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(2) Regra jurídica: aplicação da regra R₁ ao facto F₁
(3) Consequente: produção do efeito E₁

1. Aceitabilidade da decisão

• A decisão não pode abstrair do ambiente extrajurídico em que o caso


concreto é decidido. Aspetos éticos, culturais e sociais são alguns dos que
conformam o ambiente que pode influenciar a construção da decisão
• A consideração destes fatores externos permite assegura à decisão
aceitabilidade racional (otimização das suas consequências)

2. Aceitabilidade da decisão (caráter universalizável)

• Há inevitavelmente uma medida de subjetividade na construção de


qualquer decisão que não pode ser controlada por nenhum critério relativo
à interpretação da fonte ou à concretização do efeito indeterminado
• No entanto, há um fator objetivo que pode diminuir essa medida de
subjetividade: refere-se ele ao imperativo relativo à interpretação e
aplicação uniformes do direito aos casos análogos (cf. art.8º/3 CC)
• Esta uniformidade é ditada pelos critérios da confiança e da justiça
• Assim, qualquer decisão deve ser universalizável: o que ela impõe deve
poder valer para qualquer caso análogo. A observância de um critério de
universalização marca os limites da consideração das especificidades do
caso concreto pelo decisor, pois que a uniformidade na interpretação e
aplicação do direito implica que não podem ser consideradas as
particularidades que sejam irrelevantes nessa universalização

3. Aceitabilidade da decisão (critério de otimização)

3.1. Valoração das consequências


o A aplicação da estatuição de uma regra a um caso concreto determina a
produção de certos efeitos jurídicos. Quando a regra aplicável reconhecer
ao aplicador uma margem na concretização de efeitos indeterminados, a
construção da decisão não é pensável sem uma ponderação das suas
consequências
o Pode assim concluir-se que a aplicação da regra é consequencialista,
porque essa aplicação tem de tomar em consideração os efeitos que vão
ser desencadeados por aquela aplicação; há que procurar minimizar os
efeitos inconvenientes e maximizar os efeitos desejáveis

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3.2. Escolha do critério
o Perante o afirmado, coloca-se a questão de saber que critérios podem ser
utilizados na concretização de efeitos indeterminados
o Resposta mais óbvia- há que dar relevância aos princípios formais e aos
respetivos princípios materiais que estão subjacentes à regra aplicável. A
decisão deve otimizar o princípio de justiça, de confiança ou de eficiência
que subjaz à regra aplicável, pelo que tudo se resume a saber qual a decisão
que é (a mais) correta em termos de justiça, de confiança ou de eficiência
o Há casos nos quais a construção da decisão requer uma ponderação entre
vários princípios que fornecem soluções opostas (mais difíceis de resolver)

4. Aceitabilidade da decisão («no right answer?»)

4.1. Apresentação do problema


o Quando o efeito jurídico definido pela regra jurídica for indeterminado, o
aplicador dessa regra tem de o concretizar através de uma ponderação ou
valoração:
• Ponderação- coloca-se a questão de saber se o direito permite
concluir que há uma única resposta correta para cada caso
concreto. Dworkin, baseado no postulado de que o conteúdo do
direito não é indeterminado e de que, por isso, o juiz não exerce
qualquer discricionariedade, fornece uma resposta afirmativa a
esta questão, entendendo que cada aplicador é capaz de encontrar
a única resposta correta
o Num plano estritamente jurídico, basta discutir o problema numa
dimensão puramente metodológica. Nesta, só se pode aceitar que possa
existir uma única decisão correta de um caso concreto admitindo-se que o
método jurídico é capaz de fornecer um critério que permite controlar se a
decisão se afasta daquela que deveria ter sido proferida
o Dworkin entende que há um método que assegura uma única resposta
correta: cria Hércules- juiz imaginado por ele como sendo dotado de
capacidades sobre-humanas o qual não terá qualquer dificuldade em
acertar na única resposta correta- pelo que é muito duvidoso que algum
juiz desprovido destas capacidades possa alguma vez assegurar que
encontrou essa resposta

4.2. Certeza vs. razoabilidade


o O entendimento de que há uma única resposta correta mostra-se, nas suas
premissas essenciais, bastante próximo da orientação defendida pelo

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positivismo mais radical: o sistema já contém a resposta correta e o juiz só
tem de a descobrir
o A right answer thesis é ainda criticável numa outra perspetiva. Aceitando
que é possível atingir a única solução correta do caso, a discussão sobre a
correção de qualquer decisão fica restrita a uma opção entre uma resposta
favorável e uma desfavorável. Esta circunstância diminui a margem de
legitimação das decisões e aumenta as hipóteses de elas serem
consideradas incorretas, porque qualquer desvio da única solução correta
implica a sua qualificação como decisão incorreta
o Este inconveniente pode ser evitado se se utilizar um mais abrangente e
mais facilmente controlável critério de «aceitabilidade racional» ou de
razoabilidade da decisão

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