Professional Documents
Culture Documents
Abstract: In recent decades, within the field of study called the Science of Religion,
a topic of great interest has been the interaction and integration between Western
and Eastern religious values. Several studies have been conducted on this topic,
emphasizing the various elements that make up this process. In the present article,
we tried to reflect on the thesis of "orientalization of the West," which proposes that
beliefs and religious values of the West are in the process of replacement by religious
beliefs and values which are characteristic of the Eastern religions.
Key words: orientalization, teodicy, religious values, cristinianity, hinduism
Zimmer (2008, p. 19), numa série de conferências proferidas em 1942, afirmava que
“nós, ocidentais, estamos próximos da encruzilhada que os pensadores da Índia já havi-
am alcançado cerca de sete séculos antes de Cristo”. Com essa afirmação, esse autor
identificava os primórdios de uma mudança de atitude entre os ocidentais, quanto ao
que, de fato, devia ser o objeto e a finalidade do conhecimento humano. Em sua concep-
ção, apesar das filosofias ocidental e indiana investigarem os mesmos temas e fenômenos,
diferentemente dos ocidentais o objetivo fundamental dos mestres ou pensadores hindus:
[...] foi sempre a transformação e não a informação; uma mudança radical da natureza
humana e, com isto, uma renovação na sua compreensão não só do mundo exterior como
também de sua própria existência. (ZIMMER, 2008, p. 21)
Nossas profissões de fé já não encontram nenhuma afinidade visível com nossa conduta
pública ou com nossas esperanças mais íntimas. Em muitos de nós, os sacramentos não
operam sua transformação espiritual; estamos abandonados e sem saber a quem recorrer.
Entrementes, nossas filosofias acadêmicas e seculares importam-se mais com a informação
que com a transformação redentora exigida por nossas almas. E esta é a razão pela qual uma
olhadela na face da Índia pode nos ajudar a descobrir e recuperar algo de nós mesmos.
(ZIMMER, 2008, p. 26)
No entanto, o autor identifica, nesse mesmo momento em que faz essas afirmações,
a existência de pensadores que estão dispostos a procurar por um conhecimento que
avance além dos limites criados pelos métodos e regras tradicionais da ciência ocidental:
Este homem busca a resposta para uma indagação que os amigos cientistas parecem não
tratar e que os filósofos evitam de modo sistemático. O que ele necessita é algo além do
raciocínio crítico; algo que alguém de espírito adequado tenha compreendido intuitivamen-
te como uma Verdade (com V maiúsculo) sobre a existência do homem e a natureza do
cosmo; algo que rasgue o peito e penetre o coração com o que Baudelaire chamou de “a ponta
acerada do infinito” – la pointe acérée de l’infini. O que ele quer é uma filosofia que
confronte e resolva os problemas, tarefa antes desempenhada pela religião; e, por mais
cursos universitários que realize sobre a validade da inferência lógica, esta necessidade
subsiste. (ZIMMER, 2008, p. 27).
Postura similar a essa adotada por Zimmer, pode ser encontrada em Mircea Eliade
(1999), o qual, no prefácio à obra Mefistófeles et L’Androgyne, publicada originalmente em
1962, realiza algumas reflexões acerca da importância e das conseqüências do encontro –
naquele momento cada vez mais intenso – entre as culturas do Ocidente e do Oriente. A
seu ver, o futuro reservava ao homem ocidental a necessidade de conhecer e compreen-
der as culturas orientais, fato que o obrigaria a romper a barreira de seu mundo fundado
na tradição racionalista, para mergulhar no mundo dos símbolos e valores espirituais que
o ocidente cristão havia desprezado.
Para Eliade (1999), desse encontro nasceria um novo humanismo, agora capaz de
integrar toda a experiência humana como um conjunto de fato. Na sua visão:
Se, para esses pensadores, cujos nomes estão entre as principais referências quando
se trata de estudos sobre as religiões e filosofias orientais, o encontro entre o Oriente e o
Ocidente havia de trazer significativas transformações na visão de mundo ocidental. Déca-
das depois, já no final do século XX, o estágio desse processo de diálogo e interação levou
Colin Campbell (1997) a apresentar a tese da “orientalização do Ocidente”, que constitui
uma ousada perspectiva para o futuro da religião na sociedade ocidental. Seus argumentos
concentram-se também na possibilidade de uma profunda mudança na visão de mundo
ocidental quanto ao caminho para a solução de seus principais problemas éticos.
[...] a tese aqui proposta é nada menos do que a afirmação de que o paradigma cultural ou
teodicéia que tem sustentado a prática e o pensamento ocidental por cerca de dois mil anos
está sofrendo um processo de substituição – e com toda probabilidade terá sido substituído,
quando entrarmos no próximo milênio [milênio atual] – pelo paradigma que tradicional-
mente caracterizou o Oriente. Essa mudança radical tem sido, e continua sendo, ajudada
pela introdução de idéias e influências do Oriente no Ocidente, mas o que tem sido de muito
maior importância são os desenvolvimentos culturais e intelectuais dentro da própria civi-
lização ocidental, desenvolvimentos que têm sido grandemente responsáveis por apressar
essa mudança de paradigma. (CAMPBELL, 1997, p. 6)
Para fundamentar essa afirmação, Campbell (1997, p. 9-10) expõe diversos indícios
que, a seu ver, levam a esse desfecho. Primeiramente, baseado em pesquisas realizadas
na Inglaterra, aponta o declínio da crença no deus criador e pessoal, característico da
crença cristã, e o simultâneo crescimento – pequeno, porém constante – da crença em
algum tipo de espírito ou força vital. Associado a esse dado, ocorre também o crescimen-
to da crença na reencarnação e o decréscimo da crença no céu e no inferno. Para Camp-
bell esses dois aspectos são importantes indicadores da ocorrência de uma mudança nos
padrões do pensamento ocidental.1
Outra evidência levantada pelo autor refere-se ao florescimento de uma concepção
mística e imanentista da relação entre o ser humano, a natureza e o divino, em contrapo-
sição ao enfoque materialista presente na cultura ocidental. Essa concepção mística enfo-
ca a vida religiosa como a busca do auto-aperfeiçoamento – que substitui a idéia cristã de
salvação – e enfatiza a conquista de uma “consciência religiosa universal”, na qual todas
as formas de crença são respeitadas e tidas como legítimas, à medida que o indivíduo, na
busca pela verdade, pode integrar todos os ensinamentos religiosos dentro do preceito
que “tudo é parte do fundamento divino” (CAMPBELL, 1997, p. 12).
Esse florescimento do misticismo se expressa de forma ampla, não só pela importa-
ção de idéias e práticas orientais, mas principalmente pelos movimentos internos à pró-
pria cultura ocidental que assumem e manifestam uma visão claramente imanentista e
cósmica da existência humana no planeta. Como exemplos de movimentos que demons-
tram essa virada para o místico e o cósmico, Campbell aponta o Neopaganismo, a Nova
Era e os Movimentos Ambientalistas.
O Neopaganismo caracteriza-se pela recuperação do passado pré-cristão, tanto
europeu como americano, e valoriza, por exemplo, as culturas druídica, céltica e nórdica,
no caso da Europa, e as culturas asteca, maia e das diversas populações indígenas ameri-
canas. Todo esse movimento se faz como recusa ao Cristianismo tido como “essencial-
mente explorador, anti-natural e patriarcal” (CAMPBELL, 1997, p. 13).
[...] seria tolice assumir que, ao descrever as novas crenças que estão emergindo no Ocidente
como evidência de um processo de orientalização, se está assumindo que elas necessaria-
mente tomam a mesma forma das suas contrapartes nas religiões do Oriente. Isso é especi-
almente verdade para o caso da reencarnação onde indícios sugerem que aí não está envol-
vida a idéia de que se deve tentar escapar do ciclo dos renascimentos, diferentemente do
conceito tradicional hindu. Ao contrário, como vimos, a reencarnação foi posta em um
quadro ocidental de otimismo. Visto que a vida não é experimentada como fundamental-
mente uma questão de dor e de sofrimento, não há desejo de escapar da seqüência da morte
e do renascimento. (CAMPBELL, 1997, p. 16)
Isso está ocorrendo porque aquele paradigma dominante ou “teodicéia” que serviu tão
efetivamente ao Ocidente por dois mil anos finalmente perdeu seu controle sobre a maioria
da população na Europa Ocidental e na América do Norte. Essas não sustentam mais uma
visão de mundo dividido entre matéria e espírito e governado por um Deus criador, pessoal
e todo-poderoso, que tenha colocado suas criaturas acima do resto da criação. Essa visão foi
abandonada e, com ela, toda justificativa em favor do domínio do homem sobre a natureza.
Em seu lugar foi posta a visão fundamentalmente oriental da humanidade como parte da
entrelaçada teia de vida espiritual e sensitiva. (CAMPBELL, 1997, p. 20)
A teodicéia afeta diretamente o indivíduo na sua vida concreta na sociedade. Uma teodicéia
plausível (que, é claro, requer uma estrutura de plausibilidade apropriada) permite ao
indivíduo integrar as experiências anômicas de sua biografia no nomos socialmente estabe-
lecido e o seu correlato subjetivo na sua própria consciência. Essas experiências, por peno-
sas que possam ser, ao menos têm sentido agora em termos que são tanto social como subje-
tivamente convincentes. É importante salientar que isto de modo algum significa necessa-
riamente que o indivíduo esteja agora feliz ou mesmo satisfeito ao passar por tais experiên-
cias. Não é a felicidade que a teodicéia proporciona antes de tudo, mas significado. E é
provável [...] que, nas situações de imenso sofrimento, a necessidade de significado é tão
forte quanto a necessidade de felicidade, ou talvez maior. [...] Os “ganhos” da teodicéia
para a sociedade devem ser entendidos de um modo análogo aos que são proporcionados ao
indivíduo. Coletividades inteiras adquirem a possibilidade de integrar eventos anômicos,
agudos ou crônicos, no nomos estabelecido na sua sociedade. Esses eventos recebem agora
“um lugar” no esquema das coisas, que é conseqüentemente protegido da ameaça de desin-
tegração caótica sempre implícita em tais eventos. (BERGER, 1985, p. 70-71).
Aprofundando essa questão, Eliade (1992), no livro “Mito do eterno retorno”, mes-
mo não tratando especificamente do problema da teodicéia, apresenta uma interessante
perspectiva sobre as dificuldades criadas quando as experiências humanas são tratadas –
conforme vimos na última citação – tendo como referencial apenas o tempo histórico. Ele
indaga: “como pode o ‘terror da história’ ser tolerado a partir do ponto de vista do histo-
ricismo?” (ELIADE, 1992, p. 129)
Sua resposta, a nosso ver, fornece elementos importantes para uma interpretação
da crise de sentido que se abate sobre a sociedade ocidental moderna:
Podemos definir o misticismo, para os fins que agora temos em vista, como a atitude religi-
osa em que o homem visa a união com as forças ou seres sagrados. Na sua forma típica ideal
o misticismo se apresenta com a reivindicação de que tal união ocorreu, de fato, empirica-
mente – toda a individualidade se desvanece e é absorvida pelo oceano da divindade. Nesta
forma, o misticismo oferece a já mencionada teodicéia de forma quase perfeita. Os padeci-
mentos e a morte do indivíduo se tornam insignificantes trivialidades, fundamentalmente
irreais comparados com a esmagadora realidade da experiência mística da união, como
aliás tudo na vida terrena do indivíduo se torna fundamentalmente irreal, ilusório, verda-
deira miragem que só se toma a sério enquanto a visão dele é obscurecida pelo “véu do
maya”. A mesma trivialização se estende, naturalmente, à vida terrena dos outros, indivi-
dual e coletivamente considerados. (BERGER, 1985, p. 75 e 76).
Portanto, podemos considerar que a opção dos ocidentais pela mística produz o
efeito de desalienação que hoje se constata em relação às instituições da cultura Ociden-
tal, possibilitando aos indivíduos uma atitude reflexiva e autônoma diante das mesmas e
levando-os a se opor ao “dualismo”, “egoísmo”, “racionalismo” e “materialismo” que as
caracterizam (CAMPBELL, 1997, p. 11 e 12).
Dessa perspectiva da orientalização, defendida por Campbell, que procuramos apro-
fundar com as reflexões de Berger e Eliade, emerge o fato de que a teodicéia cristã ao
confundir-se e, cada vez mais, limitar-se ao plano da história, sofreu uma efetiva “perda
de plausibilidade”, como define Berger, proporcionando a ocasião para a profunda revi-
são que tem ocorrido no Ocidente quanto à busca de explicações e soluções para os prin-
cipais problemas éticos (individuais, sociais e globais).
Se, como afirmou Eliade, o “terror da história” não pode ser combatido senão por
um sentido “meta-histórico” para os acontecimentos, à medida que é incompreensível e,
até, inadmissível ao ser humano sentir-se apenas e simplesmente um “joguete” nas mãos
dos interesses políticos e econômicos, torna-se profundamente lógico o abandono das
explicações tradicionais, nesse caso, também insatisfatórias, e a busca por outras explica-
ções mais plausíveis.
No contexto do mundo ocidental, no qual o questionamento, a reflexão e o posicio-
namento individual constituem hoje valores fundamentais, nos parece natural que um
número cada vez maior de indivíduos se sintam insatisfeitos e desconfortáveis com o
sistema dualista/separatista que divide tudo em bem e mal, justo e injusto, castigo e
recompensa, etc., e que faz dessas separações motivo de persuasão e coerção.
Por outro lado, a opção oferecida pela ciência e pela tecnologia, que tem produzido
muito conforto e satisfação material, também frustra por não apresentar padrões éticos
aceitáveis, contribuindo decisivamente para a aceleração da destruição planetária, para
o aumento das injustiças sociais e da violência produzida pela marginalização e pela
ganância, ou seja, esta opção também conduz a uma sensação de que há uma profunda
irracionalidade e irrealidade por traz da atual sociedade ocidental.
Nesse sentido, é compreensível que a extrema racionalidade da teodicéia oriental,
fundada na lei de causa e efeito, e da mística – com seu poder de desalienação – se confi-
gurem como respostas bastante atraentes e plausíveis para os ocidentais sedentos de sen-
tido e significado, à medida que esta teodicéia e a mística que é sua essência, propõe a
integração de todos os acontecimentos numa ordem cósmica e aposta na experiência da
unidade de todas as coisas como solução para os atuais problemas humanos.
É preciso observar, porém, como afirma Campbell, que o ocidental não se transfor-
mou em oriental, mas redimensionou sua visão de mundo tornando-a mais próxima da
teodicéia oriental, porém compondo um quadro que integra valores, conhecimentos, prá-
ticas religiosas e tradições, tanto do Oriente como do Ocidente.
Nessa perspectiva, a tese da orientalização constitui um resultado possível quanto
ao processo de valorização do Oriente anteriormente anunciado por Zimmer e Eliade.
A partir das reflexões acima, podemos compreender porque uma das importantes
tendências do campo religioso ocidental nas últimas décadas é a que passou a reconhecer
o valor e a verdade contida nos ensinamentos espirituais de outras tradições religiosas e,
também, a admitir as próprias deficiências cristãs como caminho de realização espiritual.
Em relação à Índia e ao Hinduísmo, ocorreu a compreensão de que a essência da
espiritualidade hinduísta é um convite à ação correta (dharma) e ao mergulho na experi-
ência da unidade (mística). A esse fato podemos atribuir a atração pela teodicéia presen-
te na cultura indiana, cuja racionalidade estabelece o agir correto não pelo temor do
castigo ou pela coerção de uma suposta justiça implacável após a morte, mas pela res-
ponsabilidade diante da própria vida, isto é, pelas escolhas que o indivíduo faz cotidiana-
mente ao agir no mundo.
A aceitação dessa responsabilidade pelo próprio destino na terra e pela própria
salvação/libertação espiritual, se apresenta muito mais condizente com a atual perspec-
tiva de liberdade de consciência e de manifestação da individualidade que caracteriza o
homem ocidental.
Mesmo sem compreender devidamente o complexo “karma-sansara”, cujas implica-
ções totais na vida humana exigem um aprofundamento nos mistérios das escrituras sagra-
das do Hinduísmo, assim como sem compreender o significado das miríades de deuses do
panteão hindu, os ocidentais que se abriram ao diálogo conseguem apreender, porém, o
significado da presença divina na história (personificada pelo Avatar), dentro de si mesmo
(como Atman) e em tudo que existe (o ideal da unidade ou imanência). Pode-se dizer,
ainda, que os cristãos que procuram o hinduísmo sabem que na essência dessa religião está
o mesmo amor incondicional que é também a essência do Cristianismo.
Abre-se, a nosso ver, a partir de uma possibilidade de interação e integração entre o
Ocidente e o Oriente no campo das religiões, baseada em ações e valores comuns, uma
nova perspectiva e um novo significado para a formação da chamada “civilização glo-
bal”: na constituição de uma identidade planetária, as identidades culturais e religiosas
(para citar apenas essas) não podem se sobrepor à identidade humana, isto é, de todos os
seres humanos como um todo integrado.
Notas
1
É interessante observar que uma pesquisa realizada no Brasil, em 5/7/1988, indica alguns resultados
similares aos apresentados por Campbell. Como exemplo dos resultados dessa pesquisa realizada no
grupo dos católicos, podemos apontar o seguinte: dos 100% de católicos que responderam, 99,9% acreditam
em Deus, 80,5% acreditam no Céu, 55,6% acreditam no Inferno e 45,9% acreditam em reencarnação.
Conferir em Brandão (1994. p. 40).
2
Atualmente um dos textos sagrados mais importantes do Hinduísmo. Conferir Zimmer (2008).
Referências
BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A crise das instituições tradicionais produtoras de sentido. In: MOREIRA,
Alberto; ZICMAN, Renée (Orgs.). Misticismo e novas religiões. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Instituto
Franciscano de Antropologia da Universidade São Francisco, 1994.
CAMPBELL, Colin. A orientalização do ocidente: reflexões sobre uma nova teodicéia para um novo milênio.
Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n.º 1, 1997.
*
Este texto faz parte do trabalho de Pós Doutorado realizado junto ao Programa de Pós Graduação “Religiões
e Visões de Mundo” da UNESP – Campus de Assis.
**
O autor é Mestre e Doutor em História pela UNICAMP e, atualmente, é Professor de História Antiga,
História Medieval e História das Religiões na Universidade Estadual de Goiás (UEG).