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Desafios do currículo multicultural na educação

superior para indígenas

Moisés DavidI
Maria Lúcia MeloI
João Manoel da Silva MalheiroI

Resumo

O artigo avalia como a universidade brasileira está enfrentando


os desafios curriculares para atender à demanda de alunos índios
diante do recente acesso institucionalizado dos povos indígenas à
educação superior. Apresenta-se a trajetória da educação escolar
indígena até a universidade ocorrida nos primeiros anos da década
de 2000, após as mudanças promovidas pela Constituição Federal
de 1988, que reconheceu o direito indígena à alteridade. A questão
central levantada é: o currículo da educação superior está em con-
sonância com a perspectiva multicultural? Mostra-se um retrato da
situação brasileira, desenhado a partir de pesquisa documental feita
em sites governamentais e não governamentais, além de portais
de notícia. Com discussões teóricas em torno do que é o currícu-
lo multicultural, destaca-se que, devido aos problemas relatados, a
prática de ações afirmativas para promover o acesso de indígenas
ao ensino superior tem-se limitado a um multiculturalismo repa-
rador. Expõe-se também o resultado de pesquisa feita com discen-
tes indígenas de um dos cursos mais procurados da Universidade
Federal do Pará, que revelou contradições e resignação: os entre-
vistados apontam a existência de um etnocentrismo curricular, mas
dizem que a formação é satisfatória para o exercício da profissão
escolhida. Discute-se o fenômeno à luz da semelhança com o multi-
culturalismo curricular norte-americano. Os resultados indicam que
a igualdade no acesso à educação não é obtida simplesmente pela
igualdade de acesso a um currículo hegemônico. Sugere-se pensar
currículos que considerem as múltiplas identidades e diferenças de
nossa sociedade, bom como o modo como estas são produzidas e
reproduzidas constantemente por meio das relações de poder.

Palavras-chave

Educação superior – Indígenas – Currículo multicultural.

I- Universidade Federal do Pará, Belém, PA,


Brasil. Contatos: moisesdavidneves@hotmail.
com; luc_m@uol.com.br; joaomalheiro@ufpa.br;

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 39, n. 1, p. 111-125, jan./mar. 2013. 111


Challenges of multicultural curriculum in higher
education for indigenous people

Moisés DavidI
Maria Lúcia MeloI
João Manoel da Silva MalheiroI

Abstract

This article assesses how the Brazilian university is facing


curriculum challenges to meet the demands of indigenous students
in the face of the recently institutionalized access of indigenous
peoples to higher education. It presents the trajectory of
indigenous school education up to university in the early 2000s,
after the changes promoted by the Federal Constitution of 1988,
which recognized the indigenous’ right to alterity. The central
question raised is: is the higher education curriculum in line
with the multicultural perspective? The article shows a portrait
of the Brazilian situation, based on documentary research done in
governmental and nongovernmental sites, and news portals. With
theoretical discussions about what the multicultural curriculum is,
the paper stresses that, due to the problems reported, the practice
of affirmative actions to promote indigenous access to higher
education has been limited to remedial multiculturalism. The paper
also brings the results of a survey with indigenous students in one
of the most popular courses at the Federal University of Pará,
which has revealed contradictions and resignation: interviewees
indicate that there is curricular ethnocentrism, but they say the
training is satisfactory for the exercise of their professions. We
discuss the phenomenon in light of the similarity with North
American curricular multiculturalism. Results indicate that equal
access to education is not achieved simply by equal access to
a hegemonic curriculum. We suggest thinking curricula that
consider the multiple identities and differences in our society, as
well as how they are constantly produced and reproduced through
power relations.

Keywords

Education – Indigenous people – Multicultural curriculum.

I- Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brazil.


Contacts: moisesdavidneves@hotmail.com;
luc_m@uol.com.br; joaomalheiro@ufpa.br

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O Brasil tem atualmente uma população avaliadas: que desafios curriculares as institui-
de 896 mil indígenas, o que representa 0,47% ções de ensino superior no Brasil estão enfren-
da população nacional (IBGE, 2012a). De acor- tando para atender a essa nova demanda espe-
do com o Censo Escolar 2010, último que traz cífica? O currículo da educação superior está
dados da educação indígena, existem 246 mil em consonância com os princípios do multicul-
índios no ensino básico, da educação infantil turalismo? O discente indígena entende o que é
ao ensino médio, o que corresponde a 0,5% do um currículo multicultural e sente-se respeitado
total de matrículas nesse nível de ensino no quanto à sua indianidade?
país (INEP, 2011). Essa é uma conquista histó- Em busca de dados para subsidiar esta
rica das populações indígenas brasileiras, que reflexão, fizemos uma pesquisa em sites de ins-
estão adentrando também as universidades. tituições de ensino e pesquisa, governamentais
Segundo dados fornecidos pela e não governamentais. Devido ao fato de a pre-
Coordenação Geral de Educação Escolar sença indígena no ensino superior ainda ser re-
Indígena da Secretaria de Educação Continuada, cente e dispor de poucos trabalhos publicados,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão (CGEEI/ usamos também informações de portais de no-
SECADI/MEC), há 6.336 alunos indígenas em tícias. Apresentamos, ainda, a título de ilustra-
instituições de ensino superior, o que corres- ção, o resultado de uma entrevista semidiretiva
ponde a 0,1% dos 6,3 milhões de matrículas com os alunos indígenas de um dos cursos mais
em cursos de graduação no país. procurados da Universidade Federal do Pará
A proporção de 0,1% ainda é pequena, (UFPA), que, a partir de 2010, passou a oferecer
considerando-se que o percentual de índios duas vagas suplementares para indígenas em
entre o povo brasileiro é de quase 0,5%, mas cada um de seus cursos.
é uma demanda que aumenta gradativamente, Antes de prosseguirmos, porém, julga-
à medida que as novas gerações avançam nas mos oportuno revisar a trajetória da educação
séries básicas da educação escolar. Dos 246 mil escolar indígena para ajudar na compreensão
estudantes indígenas, 55 mil estão nos anos fi- do panorama atual.
nais do ensino fundamental e 27 mil estão no
ensino médio. Das primeiras letras à chegada
A primeira demanda indígena para o ao ensino superior
nível superior começou a ser atendida a partir
de 2001, com os cursos de licenciatura indíge- O contato de nossos primeiros habitan-
nas concebidos para formar professores índios tes com o ensino formal deu-se desde o pri-
que atuam nas escolas de suas aldeias. A se- meiro século da história do país, com a che-
gunda demanda surgiu com os progressos na gada dos jesuítas ao Brasil em 1549. Mas foi
escolaridade dessa população: jovens indígenas somente após a criação do Serviço de Proteção
que concluem o ensino médio e buscam forma- aos Índios (SPI), em 1910, que surgiu uma rede
ção profissional em áreas diversas, sobretudo de escolas para ensinar-lhes as primeiras le-
naquelas ligadas às suas lutas, como Direito, tras e algum ofício. Sob a gestão da Fundação
Medicina e Ciências da Terra. Essa clientela co- Nacional do Índio (FUNAI), órgão que substituiu
meçou a ser atendida a partir de 2003, por meio o SPI a partir de 1967, essa rede transformou-
do sistema de cotas ou vagas suplementares -se em rede de escolas bilíngues, com alguns
ofertadas em vestibulares exclusivos. professores índios ministrando aulas da língua
Diante do recente acesso institucionali- e tradições indígenas (SOUZA LIMA; BAROSO-
zado de indígenas às universidades brasileiras HOFFMAN, 2007).
– os registros anteriores à década de 2000 eram A partir de então, foram décadas de polí-
casos isolados –, algumas questões precisam ser ticas protecionistas e, sobretudo, integracionistas,

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resultando na imposição de valores alheios à o sistema regular de ensino brasileiro, às quais
cultura e ao modo de viver dos índios, bem eles deveriam agora ser submetidos. A CEB ha-
como na negação de suas línguas e de sua iden- via flexibilizado a exigência de diploma para
tidade. Porém, com a pressão feita por movi- contratação desses professores, mas estabeleceu
mentos de luta indígena, ONGs, universidades prazos para que eles fossem formados. Desde a
e intelectuais, as sociedades indígenas brasi- metade da década de 1990, vinham sendo em-
leiras conquistaram uma vitória histórica na preendidos esforços para concluir sua forma-
Constituição Federal de 1988: garantias a que ção em nível fundamental. Na sequência, veio
todo cidadão brasileiro tem direito, mas com o a necessidade da formação em nível médio. Ao
diferencial do respeito ao seu modo de ser, viver final de 1999, a CEB autorizou o funcionamen-
e organizar-se socialmente; ao uso de suas ter- to de magistérios indígenas, cursos intervalares
ras e de suas línguas; à sua diversidade cultural. nos períodos de férias das escolas indígenas. No
Em suma, direito à alteridade. início da década de 2000, concluintes do ma-
Essa conquista teve repercussões em gistério indígena formaram a primeira demanda
diversos aspectos da vida indígena, mas prin- para o nível superior.
cipalmente na educação escolar desses povos Em julho de 2001, foi implantada a
tradicionais. As mudanças foram acontecendo primeira licenciatura indígena do país pela
aos poucos, sempre fruto de movimentos rei- Universidade do Estado do Mato Grosso
vindicatórios organizados. Em 1991, surgiu o (UNEMAT), de forma intervalar. Em dezem-
primeiro marco legal: o Decreto Presidencial nº bro do mesmo ano, a Universidade Federal de
26/91, que atribuiu ao Ministério da Educação Roraima (UFRR) também implantou cursos es-
a competência para integrar a educação escolar pecíficos para formar professores índios, com a
indígena aos sistemas de ensino regular, coor- criação do Núcleo Insikiran.
denar as ações em todos os níveis e em todas as No âmbito do agora Ministério da
modalidades de ensino, além de delegar compe- Educação e Cultura (MEC), as primeiras ações
tências aos Estados e municípios, que assumi- se deram com o Programa Diversidade na
ram as escolas antes geridas pela FUNAI. Universidade, criado no final de 2002, com
Em 1996, a lei magna do país na área financiamento do Banco Interamericano de
educacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Desenvolvimento (BID), para elaborar e imple-
Educação (LDB), garantiu aos indígenas o di- mentar políticas públicas visando ao acesso das
reito a uma educação escolar específica, dife- populações afrodescendentes e indígenas ao
renciada e bilíngue, que respeite seus modos ensino superior. Executado pelo governo Lula a
de elaborar e transmitir conhecimentos, com partir de 2003, o programa inicialmente apoiou
objetivos, currículos e calendários escolares de- projetos diversos apresentados por ONGs, en-
finidos por cada sociedade indígena. Em 1998, tidades indígenas e centros universitários, in-
foi criado o Referencial Curricular Nacional cluindo cursos preparatórios para o vestibular
para as Escolas Indígenas. No ano seguinte, que não tiveram muito sucesso.
a Resolução nº 03/99 da Câmara de Educação Diante dos resultados preliminares e
Básica do Conselho Nacional de Educação com a contratação pela Secretaria de Educação
(CEB/CNE), fundamentada no Parecer nº 14/99 Superior (SESU) de uma consultoria via UNESCO,
do CNE, determinou que os professores das es- o Diversidade ganhou novos rumos. A ênfase foi
colas indígenas fossem, prioritariamente, indí- centralizada na melhoria do ensino básico, por
genas membros de suas próprias comunidades. meio da formação dos professores índios, sendo
Essa era uma reivindicação antiga, pois criado o Programa de Apoio à Formação Superior
muitos índios davam aulas de 1ª a 4ª séries e Licenciaturas Indígenas (PROLIND), com fi-
sem a formação exigida pelas leis que regem nanciamento para licenciaturas interculturais

114 Moisés DAVID; Maria Lúcia MELO; João Manoel da S. MALHEIRO. Desafios do currículo multicultural na educação...
indígenas. Nesse contexto, o organograma do 21% tinham curso superior e a maioria tinha o
MEC passou por uma mudança importante, fa- ensino médio (61%), sendo 33% com magisté-
vorecendo as novas políticas com a criação, em rio tradicional e 10% com magistério indígena.
2004, da Secretaria de Educação Continuada, O restante (18%) contava apenas com o ensino
Alfabetização e Diversidade (SECAD1), tendo fundamental. Apesar da defasagem – as esta-
em seu organograma a Coordenação Geral de tísticas sobre educação indígena no país ainda
Educação Escolar Indígena (CGEEI), entre outras. não acompanham o ritmo das estatísticas para
Vale registrar também a realização, em as demais modalidades, com dados frequente-
agosto de 2004, do Seminário Desafios para uma mente revisados pela CGEEI –, os números re-
Educação Superior para os Povos Indígenas no velam que há muito a ser feito.
Brasil, um marco nessa trajetória de inserção in- A outra demanda indígena por nível
dígena na universidade que reuniu os principais superior, formada por jovens que concluem o
atores do momento envolvidos com a questão. O ensino médio e tentam uma vaga na univer-
encontro foi promovido pelo Trilhas de conheci- sidade, cresce a cada ano. As reivindicações
mentos: o Ensino Superior de Indígenas no Brasil, por cotas étnicas, ocorridas principalmente
projeto realizado no período entre 2004 e 2007 por ocasião das comemorações dos 500 anos
pelo Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, do Brasil, foram lideradas pelas organizações
Cultura e Desenvolvimento (LACED), do Museu de afro-brasileiros, mas os indígenas acompa-
Nacional/UFRJ, com recursos do fundo Pathways nharam o movimento. As polêmicas discussões
to Higher Education Initiative, da Fundação Ford. começaram em 1999, quando a Universidade de
Os debates do encontro foram organizados em Brasília (UNB) apresentou seu projeto. A pro-
uma publicação que hoje é referência sobre o posta só passou a vigorar em 2004, destinando
tema (SOUZA LIMA; BAROSO-HOFFMAN, 2007), 20% das vagas para estudantes afrodescen-
sendo uma das fontes deste artigo. dentes e vinte vagas anuais a alunos indígenas.
O primeiro edital do PROLIND saiu em Depois de oito anos de debates jurídicos,
2005, numa ação conjunta SESU-SECAD da em 26 de abril de 2012, o Supremo Tribunal
qual participaram oito universidades ofertan- Federal decidiu que o sistema de cotas da UNB é
do licenciaturas interculturais indígenas com constitucional, decisão que cria jurisprudência.
habilitações em áreas como Línguas, Literatura O ministro relator do processo destacou que as
e Arte, Ciências da Natureza e Matemática, ações afirmativas têm o objetivo de superar dis-
Ciências Sociais e Humanidades. De acordo torções sociais historicamente consolidadas e
com dados da CGEEI,2 no ano de 2012, havia não ferem o direito de outros cidadãos, porque
2.938 professores-formandos em licenciaturas os meios empregados e os fins perseguidos são
indígenas de vinte instituições de ensino supe- marcados pela proporcionalidade e pela razoa-
rior de quinze Estados brasileiros. A instituição bilidade, e porque as políticas são transitórias.
é a responsável em implantar e manter os cur- Vale ressaltar que a pioneira na concreti-
sos e o governo federal arca com os custos de zação do estabelecimento de cotas para negros
hospedagem e alimentação dos índios nos perí- e índios no Brasil foi a Universidade Estadual
odos de aula presencial. do Mato Grosso do Sul (UEMS), que, no pro-
Um estudo com base nos dados do censo cesso seletivo de 2003, destinou 20% das va-
escolar de 2008 (INEP, 2009) informa que, dos gas para negros e 10% para índios, implantan-
cerca de 11 mil professores indígenas do país, do também um programa de sensibilização da
comunidade acadêmica para apoio aos novos
1- Hoje SECADI, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e calouros (CATANANTE, [2008]).
Inclusão, após nova reestruturação ocorrida no MEC em maio de 2011.
2 - Fornecidos em setembro de 2012 via e-mail, em resposta à consulta
Levantamento referente a 2007 infor-
feita pelos autores. ma que 20% das 213 instituições de ensino

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superior públicas, com base na autonomia ga- conflitos para regularizar suas terras, os pro-
rantida às universidades pela constituição bra- blemas na área da saúde e outras questões têm
sileira, já apresentavam alguma forma de ação ocupado sua pauta de lutas e reivindicações.
afirmativa para acesso diferenciado de indíge- Quanto a ações afirmativas, em 2010, a
nas ao seu corpo discente, incluindo sistema de UFPA passou a ofertar duas vagas extras em
cotas, reserva ou suplementação de vagas. A cada um de seus cursos, após começarem a ser
Região Norte liderava em número de cursos de feitas reivindicações de movimentos indígenas.
licenciatura intercultural, ofertados por univer- Nos dois primeiros processos seletivos, em 2010
sidades de Roraima, Amazonas, Acre e Amapá, e 2011, inscreveram-se 933 candidatos, resul-
mas aparecia em segundo lugar na oferta de va- tando no ingresso de 112 indígenas em cinco
gas em ações afirmativas, apesar de ter a maior campi da capital e do interior. Os cursos mais
população indígena do país (CAJUEIRO, 2008). demandados foram na área de saúde (Medicina
e Enfermagem), Direito, Educação, Ciências da
O ensino superior para indígenas Terra e Ambientais (UFPA, 2011), enquanto ou-
no Estado do Pará tros não tiveram procura.
Do total de inscrições, apenas 34% foram
O Pará tem a terceira maior população homologadas. Os candidatos precisavam apre-
indígena da Região Norte e a oitava mais nu- sentar documentos comprovando a conclusão do
merosa do Brasil, composta de 39 mil indiví- ensino médio e o pertencimento a uma comuni-
duos (IBGE, 2012a). De acordo com dados da dade indígena. Como as inscrições foram feitas
Secretaria Estadual de Educação3 referentes às somente pela internet, muitas fichas estavam in-
matrículas de 2010, havia 11.634 estudantes em completas ou continham erros de preenchimen-
escolas de ensino fundamental, 930 alunos no to, sendo que alguns casos sugeriam brincadei-
ensino médio em sistema modular e 220 alunos ras preconceituosas (BELTRÃO; CUNHA, 2011).
no projeto Ensino Médio Integrado Munduruku, As etapas seguintes consistiam de redação em
em parceria com a FUNAI e com a Associação língua portuguesa, com nota mínima estabeleci-
Pariripy, que oferta os cursos de Agroecologia, da em 4, e entrevista com o candidato.
Enfermagem e Magistério Indígena. Havia tam- O processo seletivo de 2012 surpreen-
bém 372 professores índios fazendo o curso de deu pela baixa procura: apenas 64 candidatos
Magistério Indígena em sete polos em diferen- se inscreveram. Ao final, 28 foram admitidos
tes regiões do Estado. em dezoito cursos diferentes (UFPA, 2012). Não
Quanto à formação em nível superior, houve manifestação oficial da universidade so-
a primeira licenciatura intercultural do Estado bre o fenômeno. Mas informações prestadas por
começou em julho de 2012, ofertada pela Beltrão e Cunha (2011, p. 34) sinalizam alguns
Universidade do Estado do Pará a professores dos problemas enfrentados pelos acadêmicos
dos povos Gavião, Tembé e Suruí, de acordo indígenas da instituição.
com dados da instituição. De cem vagas dispo-
nibilizadas, 91 foram preenchidas (UEPA, 2012). A UFPA conta com o Programa Bolsa
O atraso de pelo menos uma década Permanência – ainda muito pouco eficien-
em relação a outros Estados brasileiros pode te –, que se propõe a auxiliar economica-
ter várias causas, como o atraso nos cursos de mente estudantes que se encontram em
magistério indígena da Secretaria Estadual de risco de abandonar a graduação. Muito
Educação e a pouca mobilização dos movimen- embora os indígenas possam ser abran-
tos indígenas locais, considerando-se que os gidos pela Bolsa Permanência, urge re-
3- Fornecidos, em abril de 2012, pela Coordenação de Educação Escolar pensar o Programa e adaptá-lo aos novos
Indígena da Diretoria de Educação para Diversidade, Inclusão e Cidadania. sujeitos que ingressam na universidade,

116 Moisés DAVID; Maria Lúcia MELO; João Manoel da S. MALHEIRO. Desafios do currículo multicultural na educação...
que trazem demandas advindas das par- mudanças concretas na realidade das comuni-
ticularidades e discriminação de natureza dades indígenas, terão um caráter ilusionista.
cultural. A UFPA certamente não poderá A dificuldade de comprovar o pertenci-
ignorar o assunto porque tem ciência que mento a uma comunidade indígena também se
só o direito de ingresso não basta; perma- repete nacionalmente. Segundo Souza Lima e
necer é preciso! Barroso-Hoffmann (2007), a exigência de uma
carta comprovando o vínculo deixa alguns ín-
Em resposta à nossa solicitação, a dios desaldeados na dependência política das
Pró-Reitoria de Ensino de Graduação infor- lideranças de sua aldeia de origem. Por outro
mou que a UFPA ainda não dispõe de programa lado, as universidades precisam se resguardar,
acadêmico específico para o acompanhamen- pois houve um crescimento atípico da popu-
to do desempenho dos discentes indígenas em lação autodeclarada indígena: de 1991 para
seus cursos, mas que já foi aprovada a cria- 2000, eles passaram de 440 mil para 733 mil,
ção do Núcleo de Inclusão Social e designada o que consiste em um crescimento de 150%,
uma comissão para estudar sua formatação. chegando a 817 mil em 2010 (IBGE, 2012b). As
Inicialmente será feito o levantamento da situ- conquistas promovidas pela Constituição e os
ação acadêmica dos alunos e uma reunião com programas de assistência governamental fize-
os dirigentes dos cursos frequentados para serem ram com que muitos índios urbanos saíssem da
traçadas linhas de trabalho e ações específicas. invisibilidade. De acordo com Baniwa (2006),
os índios brasileiros vivem um fenômeno de
Retrato do panorama nacional franca recuperação da autoestima identitária,
buscando consolidar um espaço digno na histó-
O caso da UFPA não é um fato isolado, ria e na vida multicultural do país.
ainda que tenha suas peculiaridades. Problemas Entretanto, definir quem é e quem não
semelhantes são comumente relatados nos é índio constitui um fator jurídico importan-
encontros referentes ao ensino superior para te para a garantia dos direitos assegurados. A
indígenas. Um dos desafios refere-se às suas Convenção 169 da Organização Internacional do
dificuldades em permanecer nos cursos, prin- Trabalho, da qual o Brasil tornou-se signatário
cipalmente por falta de condições de moradia, em julho de 2002 e que entrou em vigor um ano
deslocamentos e compra de material didático. depois, preconiza a autodeterminação. Há dis-
Há programas de bolsas da FUNAI e de ou- cussões, porém, de que a interpretação não pode
tras fontes, mas eles não chegam a todos nem ser simplista por conta da grande miscigenação
existem na proporção suficiente. A faixa etá- brasileira. Por isso, tem sido usado também o cri-
ria de ingresso tem sido, em média, acima dos tério do vínculo com um povo indígena, consi-
25 anos. Em boa parte dos casos, trata-se de derado pela própria Convenção 169 como aquele
alunos casados que se deslocam com a família que descende de populações que habitavam o
inteira, o que amplia as dificuldades e as chan- país ou uma região geográfica pertencente ao
ces de desistência (SOUZA LIMA; BARROSO- país na época da conquista, da colonização ou
HOFFMANN, 2007). do estabelecimento das atuais fronteiras estatais,
Sobre esse aspecto, Garlet, Guimarães e e que conservem todas as suas próprias institui-
Bellini (2010) destacam que nenhuma política ções sociais, econômicas, culturais e políticas, ou
de acesso indígena à educação superior terá parte delas. O desafio consiste em fazer essa sele-
sucesso se não estiver inserida numa perspec- ção sem promover exclusões, o que requer tempo
tiva de intersetorialidade e interligada com po- e sensibilidade em análises criteriosas.
líticas de assistência, habitação e trabalho, en- Os processos seletivos apontam tam-
tre outras. Do contrário, em vez de promover bém uma barreira oriunda da formação desses

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candidatos na educação básica. Nas provas do sociais pretendidos e do perfil dos profissionais
ENEM, as escolas indígenas que participam vo- que deseja formar – ou identidades que serão
luntariamente têm ficado com os índices mais produzidas –, a abertura da universidade para a
baixos, o que demonstra que elas não estão pre- diversidade etnocultural brasileira implica tam-
parando o aluno para a universidade, mas têm bém a necessidade de abertura para se pensar e
como foco a preservação da cultura, da língua e construir currículos multiculturais.
das tradições de seu povo (CASADO; OLIVEIRA, Entendemos, juntamente com Silva (2003,
2010). Esse é um ponto polêmico, pois a LDB 2008), que a igualdade no acesso à educação não
estimula o resgate dos valores e saberes indíge- pode ser obtida simplesmente por meio da igual-
nas, mas ressalta também a interculturalidade. dade de acesso ao currículo hegemônico existen-
Aqui vemos o risco da guetização cultural de te. A real igualdade depende de uma modifica-
que fala Canen (2010), com propostas curricu- ção substancial desse currículo, principalmente
lares pautadas exclusivamente nos padrões cul- quando se considera que as ações curriculares e
turais do grupo social em questão, impedindo o suas dinâmicas de formação buscam, sutilmente,
diálogo entre padrões culturais plurais. homogeneizar e pasteurizar as culturas não ali-
Outro aspecto é o choque cultural e lin- nhadas aos centros políticos dominantes, como
guístico vivenciado pelos discentes indígenas. destaca Macedo (2007). Para ambos os autores,
Para enfrentar o problema, a Universidade apesar da atual sensibilidade dos documentos
Federal do Tocantins (UFT), por exemplo, im- oficiais em prol de uma educação indexada à
plantou um programa institucional de monito- cultura enquanto manifestação plural, a verdade
ria indígena, com bolsistas orientados a apoiar é que o habitus para se conquistar a eficiência
os novos colegas em suas dificuldades. As educacional ainda passa fortemente pela homo-
barreiras de adaptação ao mundo acadêmico, geneização dos saberes e inteligências. Com isso,
quando não trabalhadas, acabam reforçando são alimentadas perspectivas em que a diferença
preconceitos e o pensamento de que eles nunca é uma dificuldade a ser eliminada em nome da
deveriam ter saído de suas aldeias. eficiência burocrática dos currículos e de suas
A líder indígena Azelene Kaingang cha- obediências ideológicas.
ma atenção para a contradição de um Estado que O multiculturalismo, por sua vez, prega
se pretende multicultural, mas que na prática su- a coexistência enriquecedora de diversos pon-
prime as diferenças. “Não somos nós os únicos tos de vista e atitudes, provenientes de diferen-
que devemos nos preparar para entrar na univer- tes heranças culturais. “Seu conceito pressu-
sidade; ela também tem que se preparar para nos põe uma posição aberta e flexível, baseada no
receber e nos entender”. Azelene ressalta que a respeito dessa diversidade e na rejeição a todo
diversidade precisa fazer-se presente na univer- preconceito ou hierarquia” (MACHADO, 2002,
sidade porque, sendo esta um espaço de produ- p. 37). Em outras palavras, multiculturalismo,
ção de conhecimento, ela “é o espaço certo para ou pluralidade, passa pelo diálogo entre os di-
começar a mudar a cabeça das pessoas” (SOUZA ferentes grupos sociais e culturais; passa pelo
LIMA; BARROSO-HOFFMANN, 2007, p. 50). reconhecimento do outro, incluindo seus sabe-
res e valores.
Discussões em torno do currículo Tomando o caso da UFPA como ilustra-
multicultural ção, verificamos que a prática está mais pró-
xima da realidade de currículos homogeneiza-
Considerando que uma proposta curri- dores. Entrevistas semidiretivas feitas com os
cular engloba os aspectos políticos e filosófi- estudantes indígenas de um dos cursos mais
cos envolvidos na educação formal das novas procurados da instituição – um curso do cam-
gerações, incluindo a definição dos benefícios pus Belém que, por questões éticas, preferimos

118 Moisés DAVID; Maria Lúcia MELO; João Manoel da S. MALHEIRO. Desafios do currículo multicultural na educação...
não identificar – revelam que eles consideram o O perfil dos alunos desse curso asseme-
currículo do curso etnocêntrico, conservador e lha-se ao retrato dos universitários indígenas
inflexível. Como ponto positivo, os entrevista- em âmbito nacional: três são do sexo mascu-
dos apontaram a interdisciplinaridade, por con- lino; dois estavam na faixa etária de 30 a 35
siderarem que alguns professores conseguem anos, um tinha 26 e outro 23 anos, havendo,
desenvolver aulas estabelecendo ligações com portanto, defasagem em relação à idade média
outras disciplinas do curso.4 dos colegas de turma; dois são casados e têm
Embora as respostas às questões fecha- filhos pequenos em idade escolar; apenas dois
das e abertas dessa pesquisa de campo indiquem recebiam bolsa assistência e outros dois eram
que os entrevistados compreendiam os concei- mantidos em Belém com recursos da comunida-
tos investigados, quando solicitados a respon- de ou dos pais; todos cursaram o ensino médio
der diretamente sobre o que consideram como em escola pública urbana próxima à sua terra
currículo diferenciado, multicultural, interdis- indígena de origem.
ciplinar e flexível, apresentaram dificuldades: Apontando os principais problemas en-
apenas um entrevistado respondeu de forma frentados, eles destacaram que a universidade
pertinente, destacando ser aquele que atende às não conhece a realidade de cada povo e precisa
diversas culturas, com disciplinas interligadas conhecer o potencial e as dificuldades do aluno
e que permite mudanças; outro concebe currí- indígena, para assim criar possibilidades de os
culo multicultural como aquele que se adéqua professores se adaptarem a essa nova realida-
à realidade indígena; outro considera currículo de. Entre as sugestões feitas, está a criação de
como trajetória de vida, trabalho e formação; um grupo de monitores da própria turma para
e um entrevistado disse não ter um conceito ajudá-los em suas dificuldades. Outra ideia su-
formado sobre o assunto. Os dados mostram a gerida foi proporcionar uma carga horária a
existência de um entendimento que pensamos mais, como suporte em algumas disciplinas, ou
ser oriundo do senso comum, faltando, porém, a redução da carga horária destas. Nos dois ca-
a construção teórica e a problematização sobre sos, fica implícita a dificuldade dos alunos em
o tema currículo. acompanhar o ritmo das aulas.
Na ocasião das entrevistas – agosto e de- Quanto ao respeito aos seus valores ét-
zembro de 2011 –, o quadro discente do referido nicos, a maioria se disse respeitada, embora
curso era composto por quatro estudantes, dois com algumas ressalvas: um aluno se disse res-
ingressados em 2010 e dois em 2011. Além do peitado, mas ao mesmo tempo excluído; dois
fato de ser um dos mais concorridos da UFPA, afirmaram se sentirem respeitados e incluídos;
o curso foi escolhido por uma questão de aces- e um afirmou que se sente tanto desrespeita-
sibilidade aos discentes, em razão de dois de- do quanto excluído. Nesse aspecto, constata-
les serem ex-alunos de um dos autores deste -se um discurso contraditório: se, por um lado,
artigo, que trabalhou durante dezesseis anos a maioria deles afirma se sentir respeitada em
com educação escolar indígena no Estado, ten- sua indianidade, por outro, todos são unâni-
do exercido a função de professor e morado na mes em dizer que o currículo é etnocêntrico.
terra de onde os alunos são oriundos. Acreditamos que os entrevistados entenderam
respeito no sentido de elegância das relações
4- Resposta à questão fechada sobre como o aluno considera o atual humanas – ausência de preconceito declarado,
currículo do curso, sendo as opções de resposta para marcar agrupadas por exemplo –, e não quanto ao posicionamen-
em duas colunas: de um lado, conservador, etnocêntrico, com disciplinas
isoladas, inflexível; do outro, diferenciado, multicultural, interdisciplinar, to institucional da universidade. Isso porque a
flexível. A única resposta diferente do mencionado aqui foi a de um pesquisa revelou também que todos são da opi-
entrevistado que marcou diferenciado em vez de conservador. Os outros
três deram respostas iguais. Antes de as perguntas serem respondidas, nião de que o currículo do curso não atende às
explicou-se o sentido atribuído aos temos presentes no questionário. especificidades das sociedades indígenas.

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Com o relato feito até aqui, verificamos ou não indígena, e se declararam satisfeitos
que a abertura das instituições de ensino para com essa proposta. Um deles respondeu que ela
a realidade multicultural apresenta alguns ris- é indiferente às realidades multiétnicas, mas
cos que podem acabar promovendo um efeito não compromete sua formação.
contrário, perpetuando justamente as desigual- Verificamos nessas manifestações que,
dades e os preconceitos que se deseja combater, para o estudante indígena, é muito mais impor-
como destaca Canen (2010). O primeiro deles é tante ter a formação concluída, mesmo que nos
o multiculturalismo reparador, reduzido a ações moldes tradicionais, a partir de uma padroniza-
afirmativas: proporciona o acesso de grupos ção arbitrária, homogeneizadora e universal, do
marginalizados aos espaços educacionais, mas que questionar o status quo. Ele percebe que a
não avança no sentido de buscar transforma- formação atual não atende às suas especifici-
ções curriculares concretas. Normalmente esse dades culturais e não valoriza seus saberes tra-
perigo vem acompanhado de outro, o folcloris- dicionais, mas ainda assim a vê como boa para
mo: a diversidade é festejada nos seus aspectos entrar no mercado de trabalho, para exercer a
folclóricos e exóticos, principalmente em datas profissão que escolheu.
festivas, como o Dia do Índio e a Semana da Esse é um fenômeno que encontra para-
Consciência Negra, mas permanecem ocultas lelo no berço do multiculturalismo curricular.
discriminações veladas e relações desiguais. Iniciado nos EUA e em outros países do Norte,
Também real é o perigo do reducionismo nas últimas décadas do século XX, o multicul-
identitário, com o congelamento das identida- turalismo não se deu como dádiva, mas foi re-
des a partir de estereótipos. O conceito que se sultado de décadas de lutas dos negros contra o
tem de índio, por exemplo, é homogêneo, en- poder dos brancos, inclusive com certo radica-
quanto a diversidade indígena brasileira é con- lismo. Ainda assim, Apple (2006) faz uma cons-
siderada uma das maiores do mundo: 305 etnias tatação que serve de alerta. Apesar das grandes
e 274 línguas contabilizadas no último censo lutas, boa parte do multiculturalismo instituí-
nacional (IBGE, 2012b). Na maioria das vezes, do nas escolas norte-americanas é do tipo que
eles são vistos ou de forma idealizada, como os ele denomina seguro, pois enxerga o poder do
protetores da floresta, ou de forma preconcei- branco como comum e toma suas escolas como
tuosa, como preguiçosos ou violentos, embora referência e até mesmo como modelo. Ou seja,
seja crescente a tendência de enxergá-los como na prática, a dominação cultural não foi inter-
cidadãos. De modo geral, a sociedade brasileira, rompida, mas está inserida na lógica daqueles
permeada pelo evolucionismo social, continua movimentos que lhe fazem oposição. A isso o
considerando os povos indígenas como culturas autor denomina multiculturalismo contraditório.
em estágios inferiores, cuja única perspectiva é No caso da população indígena brasilei-
a assimilação à cultura global (BANIWA, 2006). ra, há exemplos de comunidades que preferem
adotar o modelo de escola tradicional do bran-
Multiculturalismo contraditório e co, na contramão do direito a uma formação
estratégias pedagógicas diferenciada e multicultural assegurada pela
LDB – a prerrogativa de escolha cabe aos povos
Há um aspecto revelado na pesquisa com indígenas. Outro exemplo é a ideia de algumas
discentes indígenas de um curso da UFPA que lideranças de ter escola privatizada na aldeia,
enseja outra discussão específica. Avaliando a porque se para branco essa é a melhor, assim é
proposta curricular do curso, em questões com bom para nós também.
respostas optativas, três entrevistados conside- Voltando ao exemplo dos EUA, McLaren
ram que ela é satisfatória, pois atende às neces- (2000) confirma que, se por um lado o mo-
sidades de formação do profissional indígena vimento negro por escolas multiculturalistas

120 Moisés DAVID; Maria Lúcia MELO; João Manoel da S. MALHEIRO. Desafios do currículo multicultural na educação...
contribuiu para os ideais democráticos, por Apple (2006) também fala de resigna-
outro, tem sustentado e reforçado a lógica do ção, afirmando que muitos afrodescendentes
capitalismo, oferecendo tipos desiguais de co- preferem resignar-se a perturbar a ordem, por
nhecimento e premiando com base em classe, acreditarem no mito da economia florescen-
gênero e raça. A ideologia da classe hegemôni- te. Não há questionamentos relevantes e o
ca é reproduzida inconscientemente. As escolas conflito é evitado. Ele considera que, do jeito
perpetuam ou reproduzem relações sociais, prá- como a ciência é apresentada na formação
ticas pedagógicas, formações culturais e atitu- básica, os alunos aprendem uma perspectiva
des; em resumo, reproduzem o habitus que sus- irreal e conservadora a respeito do conflito.
tenta os padrões de desigualdade na sociedade. Os conhecimentos quase nunca são examina-
Canadense radicado nos Estados Unidos, dos seriamente como uma construção dos se-
McLaren foi o grande responsável por atribuir res humanos, mas são tomados como prontos
ao multiculturalismo uma função revolucioná- e acabados.
ria, como movimento de resistência à domina- A educação escolar indígena também
ção do poder estabelecido. Numa frase emble- não escapou desse estigma. De acordo com
mática, proferida em entrevista no Brasil, ele Paes (2003), o processo escolar que os indíge-
disse que “o capitalismo precede o racismo” nas vieram a conhecer está baseado na cren-
(McLAREN, 1999, s/p). ça em uma suposta superioridade de um saber
Fazendo um paralelo entre o que aconte- verdadeiramente científico e confiável, crença
ce nos Estados Unidos e no Brasil, McLaren diz esta também reproduzida em nossas escolas e
que as pessoas, a fim de buscar uma posição no até mesmo dentro da academia.
topo da pirâmide social, têm de se resignar, di- Entendemos, ainda, conforme destaca
minuindo as demandas dos movimentos orga- Hage (2006), que ao difundir conhecimentos,
nizados. Ele cita o caso de pais de alunos negros valores, comportamentos, atitudes, normas e
nos Estados Unidos que “não querem saber de padrões culturais, atribuindo-lhes um caráter
papo de revolução”, demonstrando mais preo- oficial e tomando-os como fato natural, o cur-
cupação em ver os filhos progredir na escala rículo confere legitimidade ao projeto social
econômica do que em reivindicar mudanças dos grupos que apresentam maior poder na
que promovam a igualdade social multiétnica. sociedade. Assim sendo, acaba padronizando
Entusiasta e divulgador da pedagogia de o ideal de homem, de mulher, de professor, de
Paulo Freire, McLaren ressalta a necessidade de estudante, entre outros papéis na sociedade,
uma educação libertadora: “Os educadores têm incluindo o de índio.
um papel a desempenhar nesta tomada de cons- Por isso, um dos pontos relevantes a se
ciência por parte do aluno”. O autor não se diz considerar na construção de um currículo mul-
contra o fato de que pais de alunos negros norte- ticulturalista, na opinião de Silva (2008), é que
-americanos cobram muito mais o progresso do a diversidade, mais do que tolerada ou respeita-
que mudanças ideológicas: “É claro que temos da, deve estar permanentemente em questão e
de ajudá-los a ser bem-sucedidos, enquanto por ser problematizada. O autor sugere que é preci-
outro lado os capacitamos a estar dispostos a so acrescentar ao debate a teoria da identidade
mudar. [...] A consciência é imprescindível para a e da diferença, considerando que estas, embora
prática revolucionária”. Ele acrescenta que qual- tomadas como dados ou fatos naturais da vida
quer mudança estrutural deve partir da classe social, não são entidades preexistentes, que es-
oprimida. “Não tenho como falar por eles, mas tão aí desde sempre ou a partir de determinado
posso falar com eles. Isso é muito importante: fa- momento, mas sim constantemente produzidas e
lar em solidariedade com o oprimido e não falar reproduzidas por meio de relações de poder. Ele
por ele” (McLAREN, 1999, s/p). ressalta que essa discussão tem ficado de fora.

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Silva (2008, p. 73) diz ainda que, na mecanismos para disponibilizar vagas. Se, por
prática, o multiculturalismo apoia-se em um um lado, as ações afirmativas são vantajosas,
“vago e benevolente apelo à tolerância”, sendo pois representam uma oportunidade que de ou-
a posição socialmente aceita a de respeito para tra forma os índios, por exemplo, não teriam,
com a diversidade e a diferença. Ele classifica por outro, são insuficientes, restringindo-se a
essa posição como liberal entre as estratégias um multiculturalismo reparador.
pedagógicas. Outra estratégia apresentada é a É fundamental considerar que a igualdade
terapêutica, que considera a rejeição da dife- no acesso à educação não é obtida simplesmente
rença e do outro como distúrbio a ser tratado por meio da igualdade de acesso a um currícu-
psicologicamente. Numa posição intermediária lo hegemônico. É preciso que o currículo esteja
entre as duas está a estratégia pedagógica pos- orientado para a construção de políticas de igual-
sivelmente mais adotada: a que apresenta uma dade articuladas com políticas de identidade.
visão superficial e distante das diferentes cultu- O desafio posto para a universidade é for-
ras, sendo que o outro aparece sob a rubrica do mar profissionais e cidadãos – sejam eles índios
exótico e do curioso, de modo a não apresentar ou não índios – que, mais do que respeitar as
nenhum risco de confronto ou dissonância. diferenças, permitam que o outro seja o outro.
Uma abordagem alternativa sugeri- O desafio aplica-se também à formação conti-
da pelo autor trata a identidade e a diferença nuada dos professores universitários, visando
como questões de política, com ênfase no ques- à construção de um currículo que seja de fato
tionamento sobre como elas são produzidas. É multicultural e que atenda às especificidades dos
preciso considerar que tanto identidade quanto diferentes grupos étnicos e culturais, incluindo
diferença não existem por si só, mas apenas em aí as aspirações dos povos indígenas por uma
função uma da outra: só há o brasileiro porque educação superior diferenciada e de qualidade.
há o italiano; só há o homossexual porque há Uma educação diferenciada não por ofere-
o heterossexual; só existe o índio porque existe cer tratamento diferenciado entre indígenas e não
o não-índio. indígenas, mas por transcender os preconceitos,
o etnocentrismo, os obstáculos epistemológicos
Considerações finais da ciência ocidental e as ideologias de poder da
sociedade hegemônica. Diferenciada por formar
Diante do panorama apresentado, pa- profissionais com uma visão mais crítica sobre os
rece-nos que as instituições de ensino supe- fenômenos naturais, políticos, econômicos e so-
rior brasileiras perderam o timing da história, ciais, de forma a poder questionar e intervir, com
quando pouco fizeram, com algumas exceções, habilidade e competência, em sua realidade, como
para se preparar visando atender à deman- protagonistas ativos e reflexivos.
da de jovens indígenas, uma vez que esta já Quando se propõem a abrir suas portas à
se anunciava desde os anos 1990 com as mu- formação de profissionais indígenas, cidadãos
danças na educação básica desses povos tradi- de uma sociedade plural, a universidade pre-
cionais. Mesmo com atraso, tal demanda tem cisa trocar as lentes com as quais vê seu papel
chegado e cobrado seus direitos. Teriam nossas de promotora de ensino, pesquisa e extensão.
universidades acreditado que os índios iriam ou Segundo Paulo Freire (1988), só estranhamos
deveriam contentar-se com o ensino médio e aquilo que nos parece normal se usarmos lentes
acomodar-se em suas aldeias? diferentes daquelas a que estamos acostuma-
O papel da universidade para promover dos. E quem nos fornece essa lente diferente é
o acesso de indígenas à educação superior, as- somente o outro.
sim como de outros grupos étnicos e sociais em Os índios chegam ao ensino superior tra-
condições de desigualdade, precisa ir além dos zendo na bagagem valores culturais e histórias

122 Moisés DAVID; Maria Lúcia MELO; João Manoel da S. MALHEIRO. Desafios do currículo multicultural na educação...
de vida, códigos e simbologias de seus povos. curriculares visando à realização dos ideais de-
O intercâmbio entre as culturas poderia contri- mocráticos de liberdade e respeito, e não so-
buir, de um lado, para a renovação curricular da mente de tolerância ao outro.
universidade e, de outro, para habilitar os dis- Consideramos que passos importantes
centes indígenas a se apropriarem dos códigos foram dados; entretanto, a caminhada é longa e
da ciência produzida pela sociedade ocidental a demanda tende a crescer com os anos. O mo-
de modo a ressignificá-los e construir o novo, mento é o de a universidade transcender a fase
favorecendo a compreensão do mundo, de si de compreensão do fenômeno para entrar na
mesmo e das relações com o outro. No entan- fase da intervenção prática, de modo a promo-
to, aos poucos, o universitário indígena percebe ver estudos e debates necessários à reformula-
que a maioria dos conteúdos disciplinares ainda ção de suas políticas curriculares. Como viabili-
está desatrelada de sua realidade e da realidade zar, por exemplo, um currículo multicultural em
onde a própria instituição está inserida. cursos que tenham apenas um ou dois alunos
Temos uma universidade encarcerada? indígenas? Ou seria o caso de pensar em cur-
Essa é uma pergunta instigante, mas oportuna, rículos não destinados a inserir este ou aquele
considerando a forma como a realidade mul- grupo, mas que tenham a flexibilidade e a ca-
tiétnica e multicultural está sendo tratada na pacidade de estar em constante questionamento
maioria de nossas instituições de ensino supe- e construção, acompanhando a dinâmica que
rior. Estas ainda se encontram presas aos para- caracteriza as múltiplas identidades e diferen-
digmas de uma ciência que trata o conhecimen- ças de nossa sociedade?
to de forma compartimentada e padronizada. Essas são questões que entendemos como
O ponto não é apenas mudar a ordem vigente relevantes e merecedoras de futuras e aprofun-
quanto ao acesso, mas criar novas perspectivas dadas investigações.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 39, n. 1, p. 111-125, jan./mar. 2013. 123


Referências

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Recebido em: 21.06.2012

Aprovado em: 28.09.2012

Moisés David é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemáticas do Instituto de


Educação Matemática e Científica da Universidade Federal do Pará.

Maria Lúcia Melo é professora do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Pará.

João Manoel da Silva Malheiro é professor da Faculdade de Pedagogia (Campus Castanhal) e do Instituto de Educação
Matemática e Científica da Universidade Federal do Pará.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 39, n. 1, p. 111-125, jan./mar. 2013. 125

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