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descrigao de um quadro Uma paisagem entre estepe e savana, a cor do céu azul-da-Prissia, duas gigantescas nuvens navegando nele, como que suspensas de armagées de arame, de qualquer modo um estilo arquitecténico desconhecido, a maior & esquerda podia ser um bicho insuflavel de um parque de diversdes, que se soltou do fio que o prendia, ou um pedago da Antartida voando para casa, no horizonte uma montanha baixa, & direita na paisagem uma Arvore, vista mais de perto so trés arvores de alturas diferentes, em forma de cogumelo, os troncos alinhados, talvez de uma raiz, a casa em primeiro plano mais produto industrial que trabalho manual, Provavelmente betdo: uma janela, uma porta, o telhado encoberto pela folhagem da arvore que, em frente & casa, se Ihe sobrepuja, é de uma familia diferente da do grupo de érvores ao fundo, tudo indica que os frutos s4o comestiveis, ou ideais para envenener visitantes, uma taga de vidro em cima de uma mesa no jardim, ainda meio @ sombra da copa da arvore, oferece seis ou sete pecas da fruta citrina, da posigéo da mesa, uma peca feita por maos tudes, as pernas em cruz séo troncos de bétula jovem nao trabalhados, pode deduzir-se que © Sol, ou 0 que quer que seja que ilumina esta regido, esta no zénite no momento de fixacdo do quadro, talvez 0 SOL esteja ali sempre e PARA TODA A ETERNIDADE: observando 0 quadro nao se pode saber se ele se move, também as nuvens, se forem nuvens, navegam talvez sem sair do lugar, a armagao de arame é 0 que as prende a um plano azul as manchas a que _arbitrariamente se chama CEU, ha um passaro pousado num ramo de érvore, a folhagem “esconde a sua identidade, pode ser um abutre ou um pavéo ou um abutre com cabeca de avo, 0 olhar e 0 bico voltados para uma mulher que domina a metade direita do quadro, a sua cabega parte ao meio a cadeia de montanhas, o rosto é suave, muito jovem, o nariz muito grande, com um inchago na raiz, talvez de um murro, tem os olhos postos no chao, como se nao pudessem esquecer um quadro e ou nao quisessem ver outro, o cabelo comprido e em rripas, louro ou cinza claro, a luz crua nao permite distinguir, traz vestido um casaco de pele ssburacado, feito para ombros mais largos, sobre uma camisa no fio, provavelmente de linho, manga direita, muito larga e em parte franjada, um braco fragil levanta a mao até & altura coragao, ou do sei esquerdo, gesto de defesa ou da linguagem dos surdos-mudos, a lefesa entende-se em relagao a um terror conhecido, acontecou a pancada o golpe a ‘ocada, 0 tiro partiu, a ferida ja nao sangra, a repeti¢ao acerta no vazio, onde o temor nao Im lugar, o rosto da mulher torna-se legivel, se a segunda suposicao estiver certa é um rosto Tatazana, um anjo dos roedores, os maxilares moem cadadveres de palavras e lixo verbal, manga esquerda do casaco esté esfarrapada como depois de um acidente ou assalto por Juma coisa que rasga, bicho ou maquina, estranho o brago nao estar ferido, ou sero as ————e nédoas castanhas na manga sangue coalhado?, o gesto da méo direita de dedos esgui assinala uma dor no ombro esquerdo?, o braco esté assim pendurado e sem vida porque est partido, ou paralisado por uma ferida?, 0 brago é cortado pela margem do quadro no loc: onde se liga 4 mao, a mao pode ser uma garra, tim coto (talvez com uma crosta de sangu ou um gancho, a mulher esta até acima dos joelhos enterrada no nada, amputada pelé margem do quadro, ou seré que cresce do chao, como o homem sai da casa, e desaparece nele como © homem na casa, até que se inicie aquele movimento imparavel que rebenta co! ‘a moldura, 0 voo, a turbina das raizes fazendo chover grandes torrdes e 4guas subterranea: visiveis entre olhar e olhar, quando 0 olho VIU TUDO e piscando se fecha sobre o quadro, entr 4rvore e mulher, escancarada, a Unica janela grande, as cortinas esvoagando para fore © vendaval parece vir da casa, nas rvores nao hé sinal de vento, ou é a mulher que atrai a tempestade, ou a provoca com o seu aparecimento, ela estava & sua espera na cinza da chaminé, alguma coisa ou alguém se queimou, uma crianca, uma outra mulher, um amante, ou serd a cinza o resto real dela prépria, 0 corpo que foi buscar & reserva dos cemitérios?, © homem na abertura da porta, 0 pé direito ainda meio atravessado na soleira, o esquerdo ja todo pousado no chao castanho com manchas de erva, secando sob a acco de um sol desconhecido, segura na mao direita com 0 brago estendido e em jeito de cagador um passaro no ponto onde se pode arrancar @ asa, a mo esquerda, provida de dedos longuissimos ondeando tortos, acaricia as penas que o medo da morte erigou, o bico do passaro est aberto num grito cujo som o observador nao ouve, mudo também para o passaro na arvore, que néo se interessa por passaros, 0 esqueleto do seu irmao na parede interior de veios negros, visivel através do quadrado da janela, mas que ele ndo pode ver da sua drvore, nao conteria para ele qualquer mensagem, 0 homem sorri, o passo animou, um passo de danca, nao se pode dizer se jé viu a mulher, talvez seja cego, 0 seu sorriso é a providéncia do cego, vé com os pés, cada pedra em que tropega se ri dele, ou 0 sorriso do assassino a caminho do seu trabalho, que ird acontecer & mesa das pernas em cruz com a taca cheia de frutos e o copo de vinho tombado e partido onde ainda babuja o resto de um liquide negro que alastra sobre a mesa e goteja da borda para o chao formando ai uma poga grande, a cadeira de espaldar em frente da mesa tem uma particularidade: as suas quatro pernas esto ligadas a meia altura por um arame, como que para evitar que ela se desconjunte, hé uma segunda cadeira abandonada & direita atrés da drvore, as costas partidas, o reforgo de arame 6 apenas um Z, nao um quadrado, talvez uma tentativa anterior de fixagdo, que carga tera partido esta cadeira e tornado a outra insegura?, uma morte violenta talvez, ou um acto sexual desenfreado, ou as duas coisas juntas, o homem na cadeira, a mulher por cima dele, o seu membro na vagina dela, a mulher mais pesada ainda devido a terra do témulo de onde se escapou para vir visit ‘0 homem, & égua subterrénea que escorre do seu casaco de pele, o seu movimento a principio um suave baloigar, depois um cavalgar cada vez mais acelerado, até que orgasmo encosta as costas do homem as da cadeira, que cede com estrondo, as costas da mulher batem no. bordo da mesa, fazendo tombar o copo de vinho, a taga pesada de frutos comeca a resvalar e, quando a mulher se langa para diante, os seus bragos envolvem o homem, e os do homem a ela por baixo do casaco de pele, ele Ihe morde 0 pescogo e ela a ele, levantando-se com a mesa quase a tocar 0 bordo; ou a mulher na cadeira, o homem de pé atras dela, as maos de polegares unidos a volta do pescogo dela, a principio como num jogo, s6 os dedos médios se tocam, depois, quando a mulher se empina contra as costas da cadeira, crava as unhas nos misculos dos bracos dele, as veias do pescoco e da testa incham, a cabeca se Ihe enche de ‘sangue, dando ao rosto uma cor de vermelho azulado, as pernas estremecem batendo contra ‘0 tampo da mesa, 0 copo de vinho tomba, a taga comeca a resvalar, o estrangulador fecha 0 circulo. Polegar contra polegar, dedo contra dedo, até que as maos da mulher se soltam dos ‘seus bracos e o leve estalido da maga de adao ou da cervical anuncia o fim do trabalho, talvez seja agora, sob 0 peso de novo morto, quando o homem abre as méos, que as costas da cadeira cedem ou a mulher cai para a frente, com o rosto vermelho azulado sobre 0 copo de vinho a partir do qual o liquido escuro, vinho ou sangue, procura 0 seu caminho até ao chao, ‘ou vira a sombra franjada no pescoco da mulher, sob 0 queixo, de um corte de faca, as franjas ‘sangue seco da ferida a toda a largura do pescoco, negras também de sangue encrustado as farripas de cabelo do lado direito do rosto, indicios de que é canhoto o assassino na soleira da porta, a sua faca escreve da direita para a esquerda, vai voltar a precisar dela, faz-Ihe nfolar o tecido do casaco, se o copo partido voltar a recompor-se a partir dos cacos e a iulher se chegar & mesa, sem cicatriz no pescogo, ou seré a mulher, 0 anjo sequioso, que bre a garganta do passaro com uma dentada deixando correr 0 sangue do pescogo aberto Jara 0 copo, 0 alimento dos mortos, a faca no ¢ para 0 passaro, o rosto do homem tem até altura dos olhos a cor do chéo, a testa e a mao visivel, a outra esté escondida debaixo das nas, s4o brancas como papel, ao trabalhar ao ar livre ele parece ter posto luvas, e porque jo, no Momento do quadro?, e qualquer coisa como um chapéu para se proteger do astro juente que ilumina a paisagem e Ihe empalidece as cores, que trabalho pode ser o seu, para m do assassinio talvez diario da mulher talvez diariamente ressuscitada?, nesta paisagem, bichos sé surgem em forma de nuvem, no hé mao que os agarre, o passaro na drvore é Itima reserva, prende-o um canto-chamariz, é escusado arrancar a erva, o SOL, talvez um m numero de SOIS, queima-a, os frutos da arvore do passaro colhem-se depressa, foram os los esvoagantes do estrangulador que entrangaram a rede de aco a volta da cadeia de Intanhas baixas, de onde sé sobressai ainda desprotegido o cume branco co!

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