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1. Introdução
2
mais invasivas da medicina, com uma esfera reduzida
da privacidade pessoal, acontecendo habitualmente
fora dos contextos existenciais do indivíduo. Com fre-
quência, o paciente terminal encontra-se inconsciente
no momento em que é preciso tomar decisões rela-
tivas à sua saúde e está rodeado de um conjunto de
intervenientes que toma parte no processo delibera-
tivo: equipas médicas, familiares e pessoas afectiva-
mente próximas, profissionais de saúde.
2) A medicina adquiriu capacidade de manipular o pro-
cesso de morrer; não se limita a assumir um papel de
“acompanhamento” mas altera esse mesmo processo,
marcando os seus ritmos e determinando considera-
velmente a situação e condição da pessoa em fase
terminal.
3) O estado actual das ciências biomédicas põe à dispo-
sição de cada indivíduo um conjunto de possibili-
dades improváveis até há poucas décadas, abrindo
para uma multiplicidade de opções e de soluções,
para alternativas várias em que ganham peso dife-
rente os diversos interesses de cada pessoa. Há cada
vez mais meios de cuidar da saúde, há uma diversi-
dade cada vez maior de opções perante os mesmos
problemas. Torna-se, de facto, possível escolher a que
factor dar prioridade nas opções, como determinar a
fase terminal da vida, retardar ou apressar o momento
da morte.
4) As possibilidades das ciências e das técnicas biomé-
dicas são revestidas de uma ambivalência e ambi-
guidade que tornam complexas as decisões e reme-
tem para a subjectividade das perspectivas de vida a
valorização dos diversos aspectos em causa. Ou seja,
o facto de determinada intervenção médica abrir
ao mesmo tempo possibilidades novas mas também
novos problemas, faz com que a ponderação entre
benefícios e custos humanos não seja linear. O que
3
para uns pode ser uma vantagem a não desperdiçar,
para outros pode ser um fardo a dispensar. A tecno-
logia não traz apenas qualidade de vida, mas também
desumanização, despersonalização e conflitos morais.
Por outro lado, há opções extremamente dolorosas
que poucos quererão ter de suportar, mas que para
algumas pessoas podem fazer todo o sentido em vista
de algum objectivo que queiram conseguir. Neste
contexto deixa de ser óbvio qual é o melhor interesse
de cada indivíduo numa dada situação, já que muitas
opções médicas trazem consigo, simultaneamente,
um conjunto diversificado de vantagens e de inconve-
nientes, de qualidade de vida e de desumanização ou
despersonalização da vida.
5) Nas culturas ocidentais modernas, marcadas pela
valorização da autonomia moral do sujeito, torna-se
um imperativo que cada pessoa decida explicitamente
por si mesma relativamente ao que lhe diz respeito.
Do ponto de vista da ética, a convicção de que se
deve respeitar a autonomia moral de cada pessoa é,
sem dúvida, uma aquisição positiva. Menos consen-
sual será a forma de entender esta autonomia (pers-
pectiva mais individualista ou mais relacional) e o
peso que lhe deve ser atribuído no confronto com
outros valores morais e princípios éticos. Ao procurar
instrumentos que favoreçam o exercício de uma auto-
nomia relacional não podemos esquecer que, frequen-
temente, recai sobre o indivíduo o peso de uma soli-
dão angustiante quando se trata de tomar decisões
que são fundamentais para a sua própria vida.
4
pessoal que se venha a conseguir ou simplesmente porque
não há desejo de prolongar a vida em situações desumani-
zantes. Outras vezes porque não é subjectivamente possível
suportar determinado sofrimento ou porque não se quer
aceitar o fardo de uma hospitalização e tecnização que desper-
sonaliza a última fase da vida. A todas estas dificuldades
acresce a circunstância de o paciente não estar em condições
de poder tomar decisões no momento em que é necessário
tomá-las, por estar inconsciente ou com faculdades reduzidas.
3.1. O conceito
5
acordo com a intencionalidade do paciente, quando ele não
tiver capacidade de manifestar a sua vontade. Ainda que não
determinem exactamente todos os procedimentos a realizar ou
a evitar, podem, pelo menos, fornecer critérios sobre a forma
de actuar de acordo com a perspectiva pessoal do paciente.
As Directivas Antecipadas de Vontade têm diversas con-
cretizações:
6
opções em quatro cenários possíveis de doença. Uma directiva
assim expressada torna-se mais informativa e mais flexível.
7
6
President’s Commission for dos médicos em final de vida, no qual recomenda “que as
the Study of Ethical Pro-
blems in Medicine and Bio- directivas antecipadas devem ser expressamente dotadas de
medical and Behavioral Re-
efeito legal perante a Lei estadual. […] As pessoas devem ser
search, Deciding to Forego
Life-Sustaining Treatment: encorajadas a desenvolvê-las para seu uso individual, e os
A Report on the Ethical,
Medical, and Legal Issues
profissionais de saúde devem ser incentivados a respeitar e a
in Treatment Decisions, US cumprir as directivas antecipadas, sempre que razoavelmente
Printing Office, Washington,
1983, pp. 138-139. possível, mesmo sem autoridade legislativa específica”6. Em
7
1991, nos EUA é promulgada uma lei federal (Patient Self
Cf. P. Greco et al., “The Pa-
tient Self-Determination Act Determination Act) que obriga as instituições de cuidados de
and the Future of Advance
saúde a ter um papel activo na proposta aos pacientes de
Directives”, in: N. Jecker -
A. Jonsen - R. Pearlman (Eds.), preenchimento de formulários de DAV7. Na maior parte dos
Bioethics. An Introduction
to the History, Methods, and
países desenvolveram-se bases jurídicas para as DAV e muitas
Practice, Jones and Bartlett instituições apresentaram as suas propostas de formulários.
Publishers, Boston-London,
1997, pp. 324-330; I. Barrio Diversas instâncias internacionais e religiosas pronunciaram‑se
Cantalejo - P. Simón Lorda, também sobre este tema.
“Testamento vital”, in: Pas-
toral de la Salud y Bioética A Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina,
(Dir. J. C. Bermejo - F. Álva-
rez), San Pablo, Madrid,
adoptada pelo Conselho da Europa em 1996 e assinada em
2009, 1746-1762, p. 1748. Oviedo em 1997, declara no Art.º 9.º que “os desejos pre-
8
Conselho da Europa, Con- viamente expressos, relativamente a uma intervenção médica,
venção para a protecção por um paciente que não esteja, no momento da intervenção,
dos direitos do Homem e da
dignidade do ser humano em condições de exprimir a sua vontade, deverão ser tidos em
relativa às aplicações da consideração”8. O mesmo Conselho da Europa pronunciou-se
biologia e da medicina –
Convenção dos Direitos do noutras ocasiões sobre esta mesma temática. Em 1999, a Reco-
Homem e da Biomedicina
(Anotada por Paula Marti-
mendação n.º 1418 insistia no sentido de respeitar e proteger
nho da Silva), Cosmos, Lis- a dignidade dos doentes terminais ou moribundos, nomea-
boa, 1997. Foi ratificada por
Portugal em 2000: Decreto damente “protegendo o direito das pessoas na fase terminal
do Presidente da República ou moribundas à autodeterminação, adoptando as medidas
n.º 1/2001 de 3 de Janeiro,
in: Diário da República, necessárias para […] assegurar que se respeitará a recusa a
I Série A, n.º 2, 3 de Janeiro um tratamento específico recolhido nas directivas antecipadas
de 2001, pp. 14-36.
ou testamento vital de um doente terminal”9. Em 2012, o Con-
9
Council of Europe, Recom-
mendation 1418 – Protec-
selho da Europa na resolução n.º 1859, onde se manifesta a
tion of the human rights favor da proibição da eutanásia enquanto morte intencional,
and dignity of the termi-
nally ill and the dying, 25 por acção ou omissão, de um ser humano, recomenda a divul-
de Junho de 1999. gação das DAV para que se tenham em conta os desejos dos
10
Cf. Council of Europe, pacientes terminais10. Recomenda ainda a implementação das
Resolution 1859 – Protecting
human rights and dignity
declarações de poderes de representação, que se facilite a
by taking into account pre-
���� possibilidade de concretizar e legalizar as declarações de von-
8
tades antecipadas e que se encoraje os interessados a rever viously expressed wishes of
patients, 25 de Janeiro de
periodicamente as suas directivas. 2012.
A Igreja Católica apresenta uma base doutrinal que per-
mite enquadrar eticamente o uso de DAV ao defender a legiti-
midade de renunciar ao excesso terapêutico e a todas as inter-
venções consideradas extraordinárias ou desproporcionadas11. 11
Cf. João Paulo II, Evan-
gelium vitae, 1995, n. 65.
Em Portugal, a Igreja Católica manifestou-se em relação a este
tema dizendo que não há objecções éticas fundamentais em
relação às DAV e chamando a atenção para o facto de elas
não terem um peso absoluto no momento de decisão12. Na 12
Cf. Conferência Episcopal
Portuguesa, Cuidar da vida
Alemanha, a Igreja Católica e a Igreja Evangélica publicaram até à morte: Contributo para
em 1999 um documento, que foi revisto em 2003, no qual a reflexão ética sobre o mor-
rer, Fátima, 2009.
apresentam um conjunto de orientações para redigir um testa-
mento vital compatível com os princípios cristãos13. 13
Cf. Deutsche Bischofskon-
Tanto a este nível institucional como na generalidade ferenz – Rat der Evangeli-
schen Kirche in Deutschland,
dos autores de bioética, encontramos uma convergência que Christliche Patientenverfü-
aponta para um consenso na aceitação positiva das DAV. Natu- gung. Handreichung und
Formular, Bonn, 2012.
ralmente há diferenciações a fazer e pode haver divergências
na forma como são valorizados os diversos aspectos das DAV.
Estas divergências estão relacionadas, sobretudo, com pers-
pectivas culturais que entendem de diferentes modos a auto-
nomia pessoal e o seu papel no confronto com outros valores.
9
esforço terapêutico. Numa perspectiva ética são, portanto,
legítimas duas opções: escolher cuidados paliativos (analgé-
sicos e sedativos), mesmo que isso implique o risco de abre-
viar a vida; recusar ou suspender medidas de suporte vital que
não sejam consideradas proporcionadas ao bem-estar que o
14
Cf. João Paulo II, Evan- paciente possa vir a obter14. Concretamente, as DAV podem
gelium vitae, 1995, n. 65.
dar orientações sobre aceitação ou recusa de analgésicos,
reanimação cardiopulmonar, meios de suporte vital, ventila-
dores, ordens de não reanimação.
Não têm validade indicações que sejam consideradas
formas de eutanásia directa activa ou que contrariem princí-
pios fundamentais da deontologia médica.
10
como sujeito portador de uma autonomia moral. A autonomia,
enquanto categoria ética que exprime a dignidade do indi-
víduo como pessoa, representa a sua capacidade e necessi-
dade de se autodeterminar, de orientar o seu agir e de definir
um sentido à sua existência; revela que a pessoa humana é
um ser que se pertence a si mesmo, que não pode ser redu-
zido a algo distinto de si mesmo, não pode ser considerado
objecto nem instrumentalizável como mero meio. A autono-
mia é, assim, “a regulação pessoal de si mesmo, livre, sem
interferências externas que pretendam controlar, e sem limi-
tações pessoais. […] Uma pessoa autónoma age livremente
de acordo com um plano escolhido”15. Agir de acordo com 15
T. Beauchamp - J. Childress,
Principles of Biomedical
a vontade de um indivíduo, naquilo que lhe diz respeito e Ethics, Oxford Univ. Press,
que não viola valores superiores, é, portanto, exigência do Oxford, 2001, p. 58.
respeito da própria dignidade humana.
Esta exigência tem de ser, naturalmente, entendida no con-
texto de uma compreensão relacional, solidária ou dialógica
da própria autonomia, já que ela supõe uma abertura ao outro
e, portanto, a comunicação. “Na sua busca do bem e na sua
não-possessão da verdade, a autonomia lança precisamente
um apelo ao reencontro”16. Esta compreensão da autonomia 16
E. Gaziaux, “Le débat
decorre da própria concepção relacional da pessoa humana, sur l’autonomie en morale:
approche philosophique et
que não é considerada nunca desligada da sua rede de rela- théologique”, in: A. Holde-
regger - J.-P. Wils (Hg.), Inter-
ções e das implicações sociais da sua vida em comunidade.
disziplinäre Ethik. Grund-
Uma outra característica relevante da autonomia é o facto lagen, Methoden, Bereiche,
Herder, Freiburg, 2001,
de ela ser dinâmica: depende de factores circunstanciais, pp. 53-74, 71.
altera-se, aumenta e diminui, desenvolve-se ou desaparece.
Isto é determinante quando se trata, como no caso das DAV,
de aferir a vontade de uma pessoa que não tem condições
actuais de autonomia e cuja vontade foi expressa num passado
com outros contextos.
O dever moral de respeitar a autonomia pode também
entrar em conflito com outros valores morais igualmente
importantes. Levada ao extremo ou absolutizada, a autonomia
conduz certamente a situações imorais e aberrantes. Ela é limi-
tada pela exigência de beneficência, pelo bem comum, pelo
respeito de valores superiores e invioláveis, como por exem-
plo a consciência de terceiros.
11
4.2. A vida humana como valor moral
12
medicamente assistido, precisamente porque violam essa
fundamentalidade da vida, e permite-nos, por outro, excluir
opções de obstinação terapêutica, ou distanásia. Caso consi-
derássemos a vida um valor absoluto teríamos de concluir que
seria necessário prolongá-la em todas as situações a qualquer
custo. Se a víssemos apenas como um valor secundário, não
fundamental, ela poderia ser eliminada sempre que outros
valores ou interesses menores estivessem em jogo. A eutanásia
e o suicídio medicamente assistido, enquanto eliminação da
vida humana, são problemáticos do ponto de vista ético por
configurarem uma violação directa do valor da vida humana.
Esta só pode ser posta em causa perante outros valores que
englobem a totalidade da pessoa. Valores como o aspecto, a
produtividade do indivíduo, os custos de manutenção, etc.,
não podem concorrer com a própria vida. Aceitar que o valor
da vida humana dependa da realização de certos padrões,
poderia significar uma concepção utilitarista da própria vida.
13
lado, é deixar que uma doença irreversível e com morte
iminente siga o seu curso sem prolongar de forma despro-
porcionada esse processo de morrer. Neste sentido, “deixar
morrer” não é o mesmo que “fazer morrer”.
Para que esta distinção entre matar e deixar morrer possa
ter implicações éticas na justificação da limitação do esforço
terapêutico, necessita de um outro conceito: o de proporcio-
nalidade dos cuidados ou das intervenções médicas. Trata-se
de verificar se existe um equilíbrio entre os “custos” que uma
intervenção virá a causar no paciente e a estimativa dos seus
benefícios. Exige-se uma ponderação entre a situação presente
do paciente e a previsível situação após as intervenções em
causa. Há “intervenções médicas inadequadas à situação real
do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se
poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para
ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se
anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência renun-
ciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento
precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os
18
João Paulo II, Evange- cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes”18.
lium vitae, 1995, n. 65.
Talvez mais relevante do que a classificação de meios
fúteis ou meios extraordinários seja, precisamente, esta cate-
goria de proporcionalidade, que exige uma ponderação entre
benefícios e custos humanos. Esta ponderação só será etica-
mente aceitável se for fundada numa concepção abrangente
de beneficência que visa a globalidade da pessoa numa visão
holística do bem pessoal, envolvendo aspectos físicos, psí-
quicos, espirituais, materiais, sociais. Impõe-se, assim, superar
uma abordagem meramente clínica da beneficência. Só neste
enquadramento global e abrangente do bem da pessoa é pos-
sível falar de custos e benefícios sem adoptar perspectivas
marcadamente utilitaristas nem ceder a expressões de instru-
mentalização da pessoa ou reducionismos antropológicos.
O respeito pela dignidade da pessoa exige a inclusão, no pro-
cesso deliberativo, da sua perspectiva sobre o bem e da sua
percepção desse mesmo bem.
14
4.4. Integração pessoal da doença e da morte
15
sua existência que a vida humana é digna de ser vivida e que
mesmo os momentos finais podem ser providos de sentido.
16
bilidades, como já antes referimos. Contudo, mesmo reunindo
as melhores condições para termos garantias sobre a vontade
da pessoa que assinou um documento de DAV, do ponto de
vista da ética seria problemático reconhecer-lhes um carácter
vinculativo inquestionável.
Uma razão para esta reserva tem a ver com a compreen-
são da autonomia do paciente no contexto da relação clínica.
Como já referimos, não podemos esquecer que as expecta-
tivas e desejos do paciente não são o único factor relevante
nas tomadas de decisão em cuidados de saúde. Elas são con-
frontadas com os deveres dos profissionais de saúde e com a
sua competência específica. Não podemos esquecer também
as implicações sociais e familiares de determinadas opções. Se
tudo isto é relevante em toda a relação clínica, também o será no
momento de valorizar as orientações contidas num “testamento
vital” ou expressas por um “procurador de cuidados de saúde”.
Uma segunda razão está relacionada com a natureza das
DAV. Trata-se, como o próprio nome indica, de orientações
dadas previamente à situação em que deverão ser tidas em
conta. É legítimo ter dúvidas sobre a validade de orientações
assinadas quando não se conhecem todas as circunstâncias
em que elas serão solicitadas. Todos sabemos, por experiência
própria, que com frequência alteramos as nossas preferên-
cias, mudamos de opinião, aceitamos nalgumas circunstâncias
aquilo que noutras não admitíamos, recusamos opções que
em momentos anteriores da vida teríamos aceitado. Tendo
em conta esta realidade, a legislação prevê que as DAV não
devem ser respeitadas quando haja indícios de que não corres-
pondem à vontade actual do paciente ou quando as circuns-
tâncias presentes sejam significativamente diferentes daquelas
que foram previstas quando o documento foi assinado. Com
efeito, ao exigir o cumprimento rigoroso de orientações
que foram dadas previamente, poderíamos não estar a agir
de acordo com aquilo que seria a vontade do paciente no
momento actual em que é preciso tomar decisões.
Outro conjunto de motivos tem a ver com o próprio con-
teúdo das DAV. Na realidade, uma grande parte das pessoas
não está familiarizada com as circunstâncias de uma doença
17
terminal e com as opções terapêuticas mais usuais nessas
circunstâncias. Também sabemos que as situações concretas
não encaixam com frequência em tipologias pré-estabelecidas;
e não é possível antecipar os diversos cenários médicos possí-
veis na fase terminal da vida. Aquilo que é possível antecipa-
damente exprimir fica, por vezes, distante da realidade que se
irá encontrar.
Estas são razões que nos chamam a atenção para a dificul-
dade em reconhecer a um testamento vital ou a um procura-
dor de cuidados de saúde um carácter vinculativo absoluto.
Também aqui se confirma que seria uma irresponsabilidade
excluir os profissionais de saúde e os familiares da tomada de
decisão. Para além da vontade do paciente, há sempre outros
factores e valores a ter em conta; há indícios diversificados
daquilo que poderia ser a vontade do paciente na situação
presente; há dados clínicos que podem condicionar as opções
de forma imprevista. As DAV, como qualquer outro indicador
da vontade do paciente (conversas anteriores, conhecimento
da sua personalidade, desejos expressos, presunção dos
melhores interesses, etc.) são elementos úteis mas não absolu-
tamente determinantes para o processo de decisão.
Compreende-se, deste modo, que as normativas relati-
vas às DAV usem habitualmente expressões que fazem eco
desta realidade: dizem que a vontade do paciente deve ser
respeitada ou que deve ser tida em conta. Não há outra forma
de enquadrar adequadamente as expressões de autonomia de
uma pessoa, sem com isso negar o carácter relacional ou
dialógico dessa mesma autonomia.
Seria, contudo, eticamente questionável desvalorizar de
tal forma as DAV, que não lhes fosse reconhecido o devido
papel enquanto expressão legítima da autonomia do paciente,
que deve ser, em princípio, respeitada. E por “respeito” enten-
demos uma disposição para realizar o que é solicitado pelo
paciente ou para seguir os critérios por ele indicados, desde
que não violem princípios éticos e valores morais fundamen-
tais. Teremos de admitir que um documento desta natureza
não é assinado, habitualmente, de forma irreflectida e impon-
derada. Deve, portanto, ser adequadamente integrado no pro-
18
cesso de decisão. Pelas razões já mencionadas, tem de ser
confrontado com outros factores de cada situação concreta
e tem de ser lido à luz de outras manifestações pessoais dos
valores do paciente.
19
b) não acentua os procedimentos desejados, mas as pers-
pectivas e valores do paciente;
c) dinamiza os processos comunicativos com as pessoas
próximas e não apenas com os profissionais de saúde,
sobre os desejos do paciente e os diversos cenários da
fase terminal;
d) contribui para um acompanhamento das pessoas a
quem compete a decisão, de forma a diminuir a sua
carga emocional.
20
e juridicamente capaz, com capacidade adequada de
juízo moral.
21
6. Um médico que, em consciência, decida agir contra
indicações expressas em DAV deve fundamentar e
registar a sua decisão para posteriormente ser confron-
tada com interpelações dos familiares ou de instância
jurídicas.
8. Conclusão
22
sociedades em que a adopção de paradigmas contratualistas
deu lugar aos excessos de uma preponderância da autonomia
individualista nos cuidados de saúde, que em nada servem
os interesses da pessoa doente: por um lado, conduzem o
paciente a um isolamento no processo de decisão, na medida
em que tem de assumir por si só o peso da escolha entre
opções nas quais estão em confronto valores muito significati-
vos; por outro lado, fazem com que os profissionais de saúde
sejam forçados ao exercício de uma “medicina defensiva” –
para evitar recursos judiciais, os médicos optam geralmente
por estratégias terapêuticas mais conservadoras, não assumem
tratamentos de risco, procuram os procedimentos com maior
evidência científica, desenvolvem um excesso de prescrição,
solicitam com mais frequência exames complementares e,
sobretudo, tendem a ver o paciente mais como um cliente
e menos como uma pessoa com quem se estabelece uma
aliança terapêutica.
Tendo em conta as possibilidades e limites das DAV, bem
como o necessário enquadramento ético que lhes deve estar
subjacente e as diferenciações que as circunstâncias práticas
exigem, não podemos deixar de olhar para elas como uma
forma de expressão pessoal que é preciso acolher e interpretar.
Seria enganador pensar que a assinatura de documentos deste
tipo é suficiente para garantir o respeito da autonomia do
paciente. Dificilmente se pode considerar prioritário fazer cam-
panhas alargadas pela divulgação destes documentos, sem que
sejam acompanhadas de programas educacionais e de altera-
ções nos paradigmas das relações clínicas. Também não me
parece que se possa falar de um imperativo moral em assinar
declarações antecipadas de vontade, precisamente porque
elas são apenas instrumento de algo mais abrangente e deci-
sivo: de uma relação de confiança e responsabilidade com o
paciente em que é decisivo agir de acordo com o seu universo
de referências, tendo-o como centro dos processos delibera-
tivos e assumindo o seu bem global como objectivo das deci-
sões. Já me parece que se pode considerar, numa perspectiva
ética, um dever pessoal procurar as formas mais convenientes
23
a cada um de manifestar as suas perspectivas, transmitir os
valores pelos quais quer que as decisões se orientem, recorrer
aos recursos que estiverem ao seu alcance para que os médicos
e os familiares possam ter facilitadas as tomadas de decisão a
seu respeito.
A dificuldade em lidar com estes novos instrumentos dos
cuidados de saúde, a paixão ou desconforto que se associam
à discussão desta temáticas são comuns à questão da própria
morte. As DAV são um tema difícil porque também é difícil
aceitar que iremos morrer, porque é difícil encarar de frente
a realidade da nossa condição mortal, porque é difícil termos
certezas sobre esses últimos momentos da nossa existência
biológica, porque nos assusta a possibilidade de sofrermos e
de vermos sofrer, porque é difícil estar ao lado da morte dos
que nos são queridos, porque não sabemos como vamos viver
o nosso morrer.
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