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Seja feita a minha vontade

Enquadramento ético das


Directivas Antecipadas de Vontade Vítor Coutinho *

1.  Introdução

“Como gostaria de morrer?” – Esta pergunta, que integra o


conhecido questionário de Marcel Proust, é repetidamente
apresentada tanto em entrevistas superficiais e de entreteni-
mento como em contextos de reflexão séria sobre a morte.
Sendo uma questão de todos os tempos, e no nosso tempo
constantemente evitada, ela ganhou actualidade nas últimas
décadas, em que se multiplicaram as opções no processo de
morrer. A pergunta interpela e provoca porque nos projecta
para um confronto difícil, porque põe em causa os nossos
modelos de vida e de morte e porque nos convida a assumir
um papel na decisão sobre uma parte da vida que não nos
habituámos a prever nem a planear. A morte e o morrer foram
retirados do âmbito da nossa autodeterminação, apesar de os
contextos actuais em que se morre exigirem, cada vez mais,
decisões sobre aquilo que para cada pessoa é importante e
desejável.
“Seja feita a minha vontade” é uma formulação que pro-
cura, justamente, indicar a centralidade do sujeito a quem
dizem respeito as decisões, sem sugerir qualquer tipo de indivi-
dualismo autonomista. Perguntar sobre as vontades de alguém
para a fase terminal, sobre o que deseja para os momentos
que antecedem a morte e que cuidados de saúde quer receber

*  Padre da Diocese de Leiria-Fátima e Professor da Faculdade de Teologia da UCP.

Brotéria 179 (2014) 9-32 1


é uma forma de respeito pela pessoa que morre. É actual-
mente consensual que os desejos e vontades de uma pessoa
doente devem ser respeitados e tidos em conta nos processos
de decisão sobre aquilo que lhe diz respeito, nomeadamente
nas intervenções médicas em final da vida. É, portanto, de toda
a vantagem dispor de procedimentos e instrumentos capazes
de garantir, ou pelo menos de tornar bastante provável, que
as decisões tomadas relativamente a um paciente em estado
de inconsciência respeitem o seu direito à autodeterminação.
Isso implica não só que as decisões correspondam a vontades
expressas ou presumidas do paciente, mas também que pro-
curem realizar o melhor interesse da pessoa em causa, que
se orientem pelo seu conjunto de valores morais e pelas suas
perspectivas de vida.

2.  Contexto da questão

A saúde e a doença, a dor e o sofrimento, os cuidados de


saúde e a morte são campos em que a medicina nos abriu,
certamente, horizontes até há pouco tempo inimagináveis,
mas também questões inéditas. É comum afirmar que as ciên-
cias biomédicas e o desenvolvimento global das sociedades
modernas conseguiram dar mais anos à nossa vida, mas não,
necessariamente, mais vida aos nossos anos. Em muitos casos,
a fase final da vida representa apenas uma extensão do pro-
cesso de morrer, no qual se avolumam problemas complexos
e perante os quais necessitamos de encontrar procedimentos
que nos ajudem a tomar as melhores decisões. O objecto
de reflexão que aqui nos ocupa (Directivas Antecipadas de
Vontade) emerge da necessidade de procurarmos formas
adequadas para tomar decisões perante as opções médicas
no final da vida. Este imperativo resulta de um conjunto de
factores que condicionam de forma significativa a atitude da
sociedade perante o morrer humano.
1) Assistimos a uma nova configuração do processo de
morrer, que se torna mais longo, com intervenções

2
mais invasivas da medicina, com uma esfera reduzida
da privacidade pessoal, acontecendo habitualmente
fora dos contextos existenciais do indivíduo. Com fre-
quência, o paciente terminal encontra-se inconsciente
no momento em que é preciso tomar decisões rela-
tivas à sua saúde e está rodeado de um conjunto de
intervenientes que toma parte no processo delibera-
tivo: equipas médicas, familiares e pessoas afectiva-
mente próximas, profissionais de saúde.
2) A medicina adquiriu capacidade de manipular o pro-
cesso de morrer; não se limita a assumir um papel de
“acompanhamento” mas altera esse mesmo processo,
marcando os seus ritmos e determinando considera-
velmente a situação e condição da pessoa em fase
terminal.
3) O estado actual das ciências biomédicas põe à dispo-
sição de cada indivíduo um conjunto de possibili-
dades improváveis até há poucas décadas, abrindo
para uma multiplicidade de opções e de soluções,
para alternativas várias em que ganham peso dife-
rente os diversos interesses de cada pessoa. Há cada
vez mais meios de cuidar da saúde, há uma diversi-
dade cada vez maior de opções perante os mesmos
problemas. Torna-se, de facto, possível escolher a que
factor dar prioridade nas opções, como determinar a
fase terminal da vida, retardar ou apressar o momento
da morte.
4) As possibilidades das ciências e das técnicas biomé-
dicas são revestidas de uma ambivalência e ambi-
guidade que tornam complexas as decisões e reme-
tem para a subjectividade das perspectivas de vida a
valorização dos diversos aspectos em causa. Ou seja,
o facto de determinada intervenção médica abrir
ao  mesmo tempo possibilidades novas mas também
novos problemas, faz com que a ponderação entre
benefícios e custos humanos não seja linear. O que

3
para uns pode ser uma vantagem a não desperdiçar,
para outros pode ser um fardo a dispensar. A tecno-
logia não traz apenas qualidade de vida, mas também
desumanização, despersonalização e conflitos morais.
Por outro lado, há opções extremamente dolorosas
que poucos quererão ter de suportar, mas que para
algumas pessoas podem fazer todo o sentido em vista
de algum objectivo que queiram conseguir. Neste
contexto deixa de ser óbvio qual é o melhor interesse
de cada indivíduo numa dada situação, já que muitas
opções médicas trazem consigo, simultaneamente,
um conjunto diversificado de vantagens e de inconve-
nientes, de qualidade de vida e de desumanização ou
despersonalização da vida.
5) Nas culturas ocidentais modernas, marcadas pela
valorização da autonomia moral do sujeito, torna-se
um imperativo que cada pessoa decida explicitamente
por si mesma relativamente ao que lhe diz respeito.
Do ponto de vista da ética, a convicção de que se
deve respeitar a autonomia moral de cada pessoa é,
sem dúvida, uma aquisição positiva. Menos consen-
sual será a forma de entender esta autonomia (pers-
pectiva mais individualista ou mais relacional) e o
peso que lhe deve ser atribuído no confronto com
outros valores morais e princípios éticos. Ao procurar
instrumentos que favoreçam o exercício de uma auto-
nomia relacional não podemos esquecer que, frequen-
temente, recai sobre o indivíduo o peso de uma soli-
dão angustiante quando se trata de tomar decisões
que são fundamentais para a sua própria vida.

Estes e outros factores dificultam a tarefa de saber quais


são as intervenções médicas desejadas por determinada
pessoa, uma vez que, frequentemente, os pacientes preferem
abdicar de opções terapêuticas para privilegiar cuidados de
tipo paliativo. Muitas vezes, porque o sofrimento que o pro-
longamento da vida implica não é proporcional à realização

4
pessoal que se venha a conseguir ou simplesmente porque
não há desejo de prolongar a vida em situações desumani-
zantes. Outras vezes porque não é subjectivamente possível
suportar determinado sofrimento ou porque não se quer
aceitar o fardo de uma hospitalização e tecnização que desper-
sonaliza a última fase da vida. A todas estas dificuldades
acresce a circunstância de o paciente não estar em condições
de poder tomar decisões no momento em que é necessário
tomá-las, por estar inconsciente ou com faculdades reduzidas.

3.  Compreensão das Directivas Antecipadas de Vontade

3.1.  O conceito

A fim de facilitar as decisões relativas aos cuidados de saúde


de pacientes que já não podem expressar por si mesmos a
sua vontade, desenvolveu-se um conjunto de procedimentos
habitualmente designados por Directivas Antecipadas de Von-
tade (DAV). Consideram-se Directivas Antecipadas de Vontade
as formas pelas quais uma pessoa pode previamente deixar
indicadas instruções ou desejos sobre intervenções médicas
na fase terminal da vida humana, as suas opções, critérios a
seguir nas decisões, valores que deseja ver respeitados, inter-
venções que recusa ou que admite, pessoas a incluir no pro-
cesso deliberativo, orientações gerais sobre a forma de lidar
com o seu processo de morrer. Estas vontades ou desejos
devem ser tidos em conta quando o paciente não tiver condi-
ções suficientes de autonomia, isto é, quando estiver incapaz
de exprimir a sua vontade ou de tomar decisões.
As Directivas Antecipadas de Vontade permitem que os
indivíduos possam exprimir a sua concepção de saúde, as
suas perspectivas perante a vida e a morte, e determinar os
objectivos que consideram aceitáveis para os tratamentos
médicos, com base nos seus valores morais, na sua filosofia
de vida, nas suas convicções religiosas. São, portanto, mais
um meio para os médicos e familiares poderem decidir de

5
acordo com a intencionalidade do paciente, quando ele não
tiver capacidade de manifestar a sua vontade. Ainda que não
determinem exactamente todos os procedimentos a realizar ou
a evitar, podem, pelo menos, fornecer critérios sobre a forma
de actuar de acordo com a perspectiva pessoal do paciente.
As Directivas Antecipadas de Vontade têm diversas con-
cretizações:

•  Testamento vital, ou testamento biológico: declaração


escrita em que é expressa a vontade da pessoa relativamente a
cuidados médicos que deseja receber ou recusar em situação
de doença terminal.

•  Procurador de cuidados de saúde, constituído através


de uma declaração de poderes de representação: trata-se de
alguém de confiança, um terceiro competente, formalmente
encarregado de representar o paciente para tomar, em seu
lugar, as decisões relativas aos cuidados médicos. Pressupõe-se
que este “procurador” conhece de perto o paciente, nos seus
valores morais e referências éticas, ou recebeu dele indicações
específicas. Só assim poderá tomar decisões em seu nome,
interpretando as diversas manifestações de vontade nas circuns-
tâncias médicas que surgirem e agindo em concordância com
os valores com que se identificava e com os desejos que tenha
exprimido. A constituição de uma pessoa como “procurador
de cuidados de saúde” é registada em documento escrito com
as mesmas exigências formais do testamento vital.

•  Directivas médicas antecipadas: são documentos mis-


tos que recolhem as características do testamento vital e do
1
  Em inglês: advance medi- poder de representação, de forma a tornar mais operativas as
cal directives. Uma das pri-
meiras propostas deste tipo instruções previamente expressas1. Estes documentos registam
de documentos é feita por
L. Emanuel - E. Emanuel, “The
os desejos do próprio em relação a medidas de suporte vital,
Medical Directive. A New designam um terceiro que possa tomar decisões em seu nome,
Comprehensive Advance
Care Document”, in: Jour- indicam a sua vontade em relação à doação de órgãos e per-
nal of the American Medical mitem exprimir tomadas de posição em relação a questões
Association, 261/22 (1989),
pp. 3288-3293. diversas. É apresentado também um esquema com as diversas

6
opções em quatro cenários possíveis de doença. Uma directiva
assim expressada torna-se mais informativa e mais flexível.

Qualquer directiva antecipada de vontade deve ser regis-


tada em documento escrito, assinado pelo próprio e por teste-
munhas. Nalguns países são exigidas duas testemunhas; a Lei
portuguesa refere “funcionário devidamente habilitado do
Registo Nacional do Testamento Vital ou notário”2. Para lhe 2
  Lei n.º 25/2012 de 16 de
julho, in: Diário da Repú-
ser reconhecida mais força enquanto expressão da vontade blica, 1.a série, n.o 136, 16 de
do paciente, o documento que regista as DAV deve ser revisto julho de 2012, p. 3728.

e assinado periodicamente. Quanto maior for a proximidade


temporal entre a data de assinatura e a situação de doença
terminal, maior é a probabilidade de as directivas correspon-
derem à vontade do paciente.

3.2.  Desenvolvimento e acolhimento das Directivas Ante-


cipadas de Vontade

O primeiro registo de uma declaração antecipada de vontade


data de 1969, nos EUA. O advogado Luis Kutner publica o
modelo de um documento («Living Will») que permite mani-
festar a própria vontade relativamente a tratamentos não 3
  Cf. L. Kutner, “The Living
desejados em situações de doença terminal3. Nos anos que Will: a proposal”, in: Indiana
Law Journal, 44/1 (1969),
se seguem, mesmo sem enquadramento legal, a Euthanasia pp. 539-554.
Educational Council faz uma distribuição em larga escala de 4
  Cf. Euthanasia Educatio-
formulários de testamento vital4. Em meados da década de 70 nal Council, “A Living Will”,
in: T. Beauchamp - L. Walters
do século XX desenvolve-se o debate sobre as DAV e surgem (Eds.), Contemporary Issues
diversas propostas, sobretudo nos países anglo-saxónicos. in Bioethics, Wadsworth,
Belmont, 1978, p. 307.
A Califórnia foi o primeiro Estado a ter um enquadramento
5
legal para esta realidade. Em 1976 promulga uma lei na qual   Cf. State of California,
“Natural Death Act of Cali-
se garante que nenhum paciente terminal pode ser forçado fornia”, in: Source Book in
Bioethics: A Documentary
a aceitar procedimentos que prolonguem o seu processo de History, Georgetown Uni-
morrer5. Nos anos seguintes sucedem-se iniciativas legislativas versity Press, Washington,
1998, pp. 149-152; B. Towers,
semelhantes nos restantes estados norte-americanos. “The Impact of the Califor-
Em 1983 uma comissão presidencial norte-americana ela- nia Natural Death Act”, in:
Journal of Medical Ethics, 4
bora um extenso documento sobre questões éticas dos cuida- (1978), pp. 96-98.

7
6
  President’s Commission for dos médicos em final de vida, no qual recomenda “que as
the Study of Ethical Pro-
blems in Medicine and Bio- directivas antecipadas devem ser expressamente dotadas de
medical and Behavioral Re-
efeito legal perante a Lei estadual. […] As pessoas devem ser
search, Deciding to Forego
Life-Sustaining Treatment: encorajadas a desenvolvê-las para seu uso individual, e os
A Report on the Ethical,
Medical, and Legal Issues
profissionais de saúde devem ser incentivados a respeitar e a
in Treatment Decisions, US cumprir as directivas antecipadas, sempre que razoavelmente
Printing Office, Washington,
1983, pp. 138-139. possível, mesmo sem autoridade legislativa específica”6. Em
7
1991, nos EUA é promulgada uma lei federal (Patient Self
  Cf. P. Greco et al., “The Pa-
tient Self-Determination Act Determination Act) que obriga as instituições de cuidados de
and the Future of Advance
saúde a ter um papel activo na proposta aos pacientes de
Directives”, in: N. Jecker -
A. Jonsen - R. Pearlman (Eds.), preenchimento de formulários de DAV7. Na maior parte dos
Bioethics. An Introduction
to the History, Methods, and
países desenvolveram-se bases jurídicas para as DAV e muitas
Practice, Jones and Bartlett instituições apresentaram as suas propostas de formulários.
Publishers, Boston-London,
1997, pp. 324-330; I. Barrio Diversas instâncias internacionais e religiosas pronunciaram‑se
Cantalejo - P. Simón Lorda, também sobre este tema.
“Testamento vital”, in: Pas-
toral de la Salud y Bioética A Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina,
(Dir. J. C. Bermejo - F. Álva-
rez), San Pablo, Madrid,
adoptada pelo Conselho da Europa em 1996 e assinada em
2009, 1746-1762, p. 1748. Oviedo em 1997, declara no Art.º 9.º que “os desejos pre-
8
  Conselho da Europa, Con- viamente expressos, relativamente a uma intervenção médica,
venção para a protecção por um paciente que não esteja, no momento da intervenção,
dos direitos do Homem e da
dignidade do ser humano em condições de exprimir a sua vontade, deverão ser tidos em
relativa às aplicações da consideração”8. O mesmo Conselho da Europa pronunciou-se
biologia e da medicina –
Convenção dos Direitos do noutras ocasiões sobre esta mesma temática. Em 1999, a Reco-
Homem e da Biomedicina
(Anotada por Paula Marti-
mendação n.º 1418 insistia no sentido de respeitar e proteger
nho da Silva), Cosmos, Lis- a dignidade dos doentes terminais ou moribundos, nomea-
boa, 1997. Foi ratificada por
Portugal em 2000: Decreto damente “protegendo o direito das pessoas na fase terminal
do Presidente da República ou moribundas à autodeterminação, adoptando as medidas
n.º 1/2001 de 3 de Janeiro,
in: Diário da República, necessárias para […] assegurar que se respeitará a recusa a
I Série A, n.º 2, 3 de Janeiro um tratamento específico recolhido nas directivas antecipadas
de 2001, pp. 14-36.
ou testamento vital de um doente terminal”9. Em 2012, o Con-
9
  Council of Europe, Recom-
mendation 1418 – Protec-
selho da Europa na resolução n.º 1859, onde se manifesta a
tion of the human rights favor da proibição da eutanásia enquanto morte intencional,
and dignity of the termi-
nally ill and the dying, 25 por acção ou omissão, de um ser humano, recomenda a divul-
de Junho de 1999. gação das DAV para que se tenham em conta os desejos dos
10
  Cf. Council of Europe, pacientes terminais10. Recomenda ainda a implementação das
Resolution 1859 – Protecting
human rights and dignity
declarações de poderes de representação, que se facilite a
by taking into account pre-
���� possibilidade de concretizar e legalizar as declarações de von-

8
tades antecipadas e que se encoraje os interessados a rever viously expressed wishes of
patients, 25 de Janeiro de
periodicamente as suas directivas. 2012.
A Igreja Católica apresenta uma base doutrinal que per-
mite enquadrar eticamente o uso de DAV ao defender a legiti-
midade de renunciar ao excesso terapêutico e a todas as inter-
venções consideradas extraordinárias ou desproporcionadas11. 11
  Cf. João Paulo II, Evan-
gelium vitae, 1995, n. 65.
Em Portugal, a Igreja Católica manifestou-se em relação a este
tema dizendo que não há objecções éticas fundamentais em
relação às DAV e chamando a atenção para o facto de elas
não terem um peso absoluto no momento de decisão12. Na 12
  Cf. Conferência Episcopal
Portuguesa, Cuidar da vida
Alemanha, a Igreja Católica e a Igreja Evangélica publicaram até à morte: Contributo para
em 1999 um documento, que foi revisto em 2003, no qual a reflexão ética sobre o mor-
rer, Fátima, 2009.
apresentam um conjunto de orientações para redigir um testa-
mento vital compatível com os princípios cristãos13. 13
  Cf. Deutsche Bischofskon-
Tanto a este nível institucional como na generalidade ferenz – Rat der Evangeli-
schen Kirche in Deutschland,
dos autores de bioética, encontramos uma convergência que Christliche Patientenverfü-
aponta para um consenso na aceitação positiva das DAV. Natu- gung. Handreichung und
Formular, Bonn, 2012.
ralmente há diferenciações a fazer e pode haver divergências
na forma como são valorizados os diversos aspectos das DAV.
Estas divergências estão relacionadas, sobretudo, com pers-
pectivas culturais que entendem de diferentes modos a auto-
nomia pessoal e o seu papel no confronto com outros valores.

3.3.  Alcance do consentimento das Directivas Antecipadas


de Vontade

De um modo geral, as DAV dão indicações relativamente a


intervenções médicas que não são desejadas em situações nas
quais apenas prolongariam o processo de morrer para além
do razoável. Neste sentido elas são um indicador daquilo que,
na perspectiva do paciente, pode ser considerado despropor-
cionado, configurando, deste modo, um critério imprescin-
dível para decidir sobre as opções que podem ser aceites
ou recusadas quando uma situação clínica conduz de forma
iminente e irreversível à morte.
As DAV podem dar indicações em relação a medidas que
possam ser vistas como cuidados paliativos ou limitação do

9
esforço terapêutico. Numa perspectiva ética são, portanto,
legítimas duas opções: escolher cuidados paliativos (analgé-
sicos e sedativos), mesmo que isso implique o risco de abre-
viar a vida; recusar ou suspender medidas de suporte vital que
não sejam consideradas proporcionadas ao bem-estar que o
14
  Cf. João Paulo II, Evan- paciente possa vir a obter14. Concretamente, as DAV podem
gelium vitae, 1995, n. 65.
dar orientações sobre aceitação ou recusa de analgésicos,
reanimação cardiopulmonar, meios de suporte vital, ventila-
dores, ordens de não reanimação.
Não têm validade indicações que sejam consideradas
formas de eutanásia directa activa ou que contrariem princí-
pios fundamentais da deontologia médica.

4.  Fundamentos éticos das Directivas Antecipadas


de Vontade

A procura do enquadramento ético das situações e pro-


blemas não se pode limitar a analisar os diversos aspectos de
procedimentos nem a passar imediatamente para indicações
de carácter normativo sem questionar os valores e princípios
fundamentais que justificam e delimitam as opções morais.
Perguntar-se pelos fundamentos éticos significa procurar as
bases antropológicas e morais que podem sustentar a reflexão
argumentativa sobre determinada questão. No caso das DAV
está em causa fundamentar a questão do consentimento infor-
mado e a legitimidade da recusa de tratamentos. No horizonte
desta fundamentação situa-se também o valor moral atribuído
à vida humana e a concepção da doença e da morte como
elementos integrantes da vida pessoal.

4.1.  A autonomia pessoal como base do consentimento


informado

Mudanças culturais profundas, pelo menos nas sociedades


ocidentais, conduziram a uma centralidade da pessoa nos
processos de decisão e levaram a considerar cada indivíduo

10
como sujeito portador de uma autonomia moral. A autonomia,
enquanto categoria ética que exprime a dignidade do indi-
víduo como pessoa, representa a sua capacidade e necessi-
dade de se autodeterminar, de orientar o seu agir e de definir
um sentido à sua existência; revela que a pessoa humana é
um ser que se pertence a si mesmo, que não pode ser redu-
zido a algo distinto de si mesmo, não pode ser considerado
objecto nem instrumentalizável como mero meio. A autono-
mia é, assim, “a regulação pessoal de si mesmo, livre, sem
interferências externas que pretendam controlar, e sem limi-
tações pessoais. […] Uma pessoa autónoma age livremente
de acordo com um plano escolhido”15. Agir de acordo com 15
  T. Beauchamp - J. Childress,
Principles of Biomedical
a vontade de um indivíduo, naquilo que lhe diz respeito e Ethics, Oxford Univ. Press,
que não viola valores superiores, é, portanto, exigência do Oxford, 2001, p. 58.
respeito da própria dignidade humana.
Esta exigência tem de ser, naturalmente, entendida no con-
texto de uma compreensão relacional, solidária ou dialógica
da própria autonomia, já que ela supõe uma abertura ao outro
e, portanto, a comunicação. “Na sua busca do bem e na sua
não-possessão da verdade, a autonomia lança precisamente
um apelo ao reencontro”16. Esta compreensão da autonomia 16
  E. Gaziaux, “Le débat
decorre da própria concepção relacional da pessoa humana, sur l’autonomie en morale:
approche philosophique et
que não é considerada nunca desligada da sua rede de rela- théologique”, in: A. Holde-
regger - J.-P. Wils (Hg.), Inter-
ções e das implicações sociais da sua vida em comunidade.
disziplinäre Ethik. Grund-
Uma outra característica relevante da autonomia é o facto lagen, Methoden, Bereiche,
Herder, Freiburg, 2001,
de ela ser dinâmica: depende de factores circunstanciais, pp. 53-74, 71.
altera-se, aumenta e diminui, desenvolve-se ou desaparece.
Isto é determinante quando se trata, como no caso das DAV,
de aferir a vontade de uma pessoa que não tem condições
actuais de autonomia e cuja vontade foi expressa num passado
com outros contextos.
O dever moral de respeitar a autonomia pode também
entrar em conflito com outros valores morais igualmente
importantes. Levada ao extremo ou absolutizada, a autonomia
conduz certamente a situações imorais e aberrantes. Ela é limi-
tada pela exigência de beneficência, pelo bem comum, pelo
respeito de valores superiores e invioláveis, como por exem-
plo a consciência de terceiros.

11
4.2.  A vida humana como valor moral

As deliberações relativas às intervenções médicas na fase


terminal da existência pessoal são especialmente significativas
porque põem em causa essa mesma existência biológica e
afectam, de forma substancial, a vida dos indivíduos. É uma
aquisição civilizacional considerar que a vida humana tem um
valor moral peculiar. Com esta afirmação queremos dizer que
não se trata de um simples bem material ou espiritual de
que se possa livremente dispor, mas que a vida humana não
é totalmente disponível e exige um respeito superior, dado
que ela afecta directamente a existência pessoal de indivíduos
e a forma como lidamos com ela implica a moralidade dos
sujeitos agentes.
Pode ser aqui interessante evocar um personalismo de
inspiração bíblica que assume uma concepção da vida como
dom. Conceber a vida como dom significa antes de mais que
não estamos na sua origem, mas a recebemos. Enquanto dom,
a vida não é fim em si mesma, mas exige uma atitude de
acolhimento como realidade nunca totalmente objectivável.
Ao falar da vida como valor moral é importante clarificar
que tipo de valor lhe reconhecemos. A vida não pode ser
vista como valor absoluto, já que isso implicaria considerá-la
desvinculada de qualquer outro valor. Na realidade, a vida
pode estar subordinada a outros valores: ao bem de outras
pessoas, a convicções religiosas, à defesa de uma comuni-
dade. Dizer que a vida humana não é um valor absoluto,
não significa afirmar que ela é um valor secundário. Dizemos,
por isso, que a vida é um valor fundamental. No contexto
dos diversos valores ela tem um lugar central e está na base
de outros valores. A prioridade do valor vida não é de tipo
ontológico, mas estrutural. Torna-se necessário tratar e tutelar
prioritariamente esse valor, uma vez que essa é a condição
para realizar outros valores morais.
No contexto da fase terminal da vida humana, esta perspec-
tiva permite-nos, por um lado, rejeitar a eutanásia e o suicídio

12
medicamente assistido, precisamente porque violam essa
fundamentalidade da vida, e permite-nos, por outro, excluir
opções de obstinação terapêutica, ou distanásia. Caso consi-
derássemos a vida um valor absoluto teríamos de concluir que
seria necessário prolongá-la em todas as situações a qualquer
custo. Se a víssemos apenas como um valor secundário, não
fundamental, ela poderia ser eliminada sempre que outros
valores ou interesses menores estivessem em jogo. A eutanásia
e o suicídio medicamente assistido, enquanto eliminação da
vida humana, são problemáticos do ponto de vista ético por
configurarem uma violação directa do valor da vida humana.
Esta só pode ser posta em causa perante outros valores que
englobem a totalidade da pessoa. Valores como o aspecto, a
produtividade do indivíduo, os custos de manutenção, etc.,
não podem concorrer com a própria vida. Aceitar que o valor
da vida humana dependa da realização de certos padrões,
poderia significar uma concepção utilitarista da própria vida.

4.3.  A limitação do esforço terapêutico

A alternativa entre estratégias de eliminação da vida (eutanásia


e suicídio medicamente assistido) e estratégias de prolonga-
mento do morrer (obstinação terapêutica, ou distanásia) pode
encontrar-se naquilo que designamos por limitação do esforço
terapêutico associado a cuidados paliativos.
Levantam-se aqui duas questões éticas que são determi-
nantes para fundamentar estas opções: a distinção entre matar
e deixar morrer e a legitimidade moral da recusa ou suspensão
de terapias.
Embora alguns autores defendam que “não existe qual-
17
  P. Singer, Ética prática,
quer diferença moral intrínseca entre matar e deixar morrer”17, Gradiva, Lisboa, 2002, 229.
parece-nos que a distinção tem bases morais suficientes para
se lhe reconhecer relevância na argumentação ética. Matar
implica uma acção directa que visa, na sua intencionalidade
e na natureza dos meios usados, pôr fim à vida, antecipando
abruptamente o momento da morte. Deixar morrer, por outro

13
lado, é deixar que uma doença irreversível e com morte
iminente siga o seu curso sem prolongar de forma despro-
porcionada esse processo de morrer. Neste sentido, “deixar
morrer” não é o mesmo que “fazer morrer”.
Para que esta distinção entre matar e deixar morrer possa
ter implicações éticas na justificação da limitação do esforço
terapêutico, necessita de um outro conceito: o de proporcio-
nalidade dos cuidados ou das intervenções médicas. Trata-se
de verificar se existe um equilíbrio entre os “custos” que uma
intervenção virá a causar no paciente e a estimativa dos seus
benefícios. Exige-se uma ponderação entre a situação presente
do paciente e a previsível situação após as intervenções em
causa. Há “intervenções médicas inadequadas à situação real
do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se
poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para
ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se
anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência renun-
ciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento
precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os
18
  João Paulo II, Evange- cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes”18.
lium vitae, 1995, n. 65.
Talvez mais relevante do que a classificação de meios
fúteis ou meios extraordinários seja, precisamente, esta cate-
goria de proporcionalidade, que exige uma ponderação entre
benefícios e custos humanos. Esta ponderação só será etica-
mente aceitável se for fundada numa concepção abrangente
de beneficência que visa a globalidade da pessoa numa visão
holística do bem pessoal, envolvendo aspectos físicos, psí-
quicos, espirituais, materiais, sociais. Impõe-se, assim, superar
uma abordagem meramente clínica da beneficência. Só neste
enquadramento global e abrangente do bem da pessoa é pos-
sível falar de custos e benefícios sem adoptar perspectivas
marcadamente utilitaristas nem ceder a expressões de instru-
mentalização da pessoa ou reducionismos antropológicos.
O respeito pela dignidade da pessoa exige a inclusão, no pro-
cesso deliberativo, da sua perspectiva sobre o bem e da sua
percepção desse mesmo bem.

14
4.4.  Integração pessoal da doença e da morte

A reflexão e o debate sobre as questões éticas do final da vida


exigem sempre um confronto com o significado da doença na
existência humana e com as interpelações que a morte apre-
senta à nossa vida pessoal.
O enorme desenvolvimento que as ciências biomédicas
conheceram nas últimas décadas alimentou nas sociedades
a ilusão de que seria possível controlar todos os problemas
de saúde e melhorar todos os processos biológicos humanos.
Desenvolveram-se ideais de perfeição física, de saúde total,
de harmonia psicossomática e de beleza, dificilmente compa-
gináveis com uma convivência pacífica com a doença, a defi-
ciência, a desfiguração e o sofrimento. Tornou-se mais difícil
uma integração positiva destas expressões da vulnerabilidade
humana e o seu enquadramento num horizonte de sentido.
Também a forma como as sociedades modernas encaram
a morte e lidam com a fase terminal das pessoas, marcada
por uma medicalização excessiva dos cuidados do paciente,
conduziu a uma desapropriação do morrer, uma vez que os
indivíduos mais dificilmente conseguem ser sujeitos do seu
próprio morrer.
Não conseguiremos encontrar formas eticamente aceitá-
veis de lidar com os problemas do morrer humano se não
incluirmos a vulnerabilidade, com as suas diversas expressões,
como uma dimensão na qual se realiza a existência humana e
que pode ser provida de sentido. Tarefa de todos aqueles que
actuam no âmbito dos cuidados do doente terminal é garantir
que na fase final da vida o indivíduo tenha a possibilidade
de se sentir e de ser sujeito dessa parte da sua existência. Por
outro lado, é fundamental que tudo aquilo que seja expressão
exterior dessa vulnerabilidade derradeira, como a desfigu-
ração, a perda de capacidades, a perda de autodomínio, a
demência, não seja visto como humilhante nem degradante,
mas apenas como marca natural de uma etapa da vida bioló-
gica. Cada pessoa deveria poder experimentar até ao final da

15
sua existência que a vida humana é digna de ser vivida e que
mesmo os momentos finais podem ser providos de sentido.

5.  Limites das Directivas Antecipadas de Vontade


enquanto instrumento da autonomia do paciente

Quando um paciente se encontra incapacitado de exprimir


a sua vontade, a preocupação principal dos profissionais de
saúde e dos familiares ou de outras pessoas próximas é a de
tomar as decisões que melhor possam corresponder àquilo
que o paciente escolheria nessas circunstâncias. O testamento
vital surgiu como mais um instrumento para deliberar no
respeito pela autonomia da pessoa a quem se referem as deci-
sões. Mas, desde cedo, se verificou não ser fácil encontrar
formulações que, por um lado, indicassem as orientações
gerais da pessoa sem entrar numa casuística interminável, e
que, por outro, pudessem ser de real utilidade para os médicos
que têm de decidir em situações muito específicas, onde por
vezes é difícil aplicar concretamente orientações genéricas.
Formulários genéricos de testamento vital são considerados
pelos profissionais de saúde demasiado vagos e de difícil apli-
cação: ao introduzirem-se mais detalhes, com o maior número
possível de indicação de situações específicas, tornam-se
demasiado complexos e mais difíceis de serem percebidos por
pessoas sem formação médica. Acresce a isto a dificuldade
de as situações reais não se enquadrarem com frequência nas
tipificações documentais. É sempre possível usar as orienta-
ções e as perspectivas sobre valores que o paciente expressa
como chave de interpretação das indicações concretas e como
motivação para deliberar em situações não previstas. Este pro-
cedimento levanta outra dificuldade: a de saber quem pode
interpretar melhor o sentido das expressões do paciente.
Para obviar esta dificuldade surgem as declarações de
poderes de representação e a possibilidade de designar um
procurador de cuidados de saúde. Podem ser de maior utili-
dade as DAV que unam num só documento estas duas possi-

16
bilidades, como já antes referimos. Contudo, mesmo reunindo
as melhores condições para termos garantias sobre a vontade
da pessoa que assinou um documento de DAV, do ponto de
vista da ética seria problemático reconhecer-lhes um carácter
vinculativo inquestionável.
Uma razão para esta reserva tem a ver com a compreen-
são da autonomia do paciente no contexto da relação clínica.
Como já referimos, não podemos esquecer que as expecta-
tivas e desejos do paciente não são o único factor relevante
nas tomadas de decisão em cuidados de saúde. Elas são con-
frontadas com os deveres dos profissionais de saúde e com a
sua competência específica. Não podemos esquecer também
as implicações sociais e familiares de determinadas opções. Se
tudo isto é relevante em toda a relação clínica, também o será no
momento de valorizar as orientações contidas num “testamento
vital” ou expressas por um “procurador de cuidados de saúde”.
Uma segunda razão está relacionada com a natureza das
DAV. Trata-se, como o próprio nome indica, de orientações
dadas previamente à situação em que deverão ser tidas em
conta. É legítimo ter dúvidas sobre a validade de orientações
assinadas quando não se conhecem todas as circunstâncias
em que elas serão solicitadas. Todos sabemos, por experiência
própria, que com frequência alteramos as nossas preferên-
cias, mudamos de opinião, aceitamos nalgumas circunstâncias
aquilo que noutras não admitíamos, recusamos opções que
em momentos anteriores da vida teríamos aceitado. Tendo
em conta esta realidade, a legislação prevê que as DAV não
devem ser respeitadas quando haja indícios de que não corres-
pondem à vontade actual do paciente ou quando as circuns-
tâncias presentes sejam significativamente diferentes daquelas
que foram previstas quando o documento foi assinado. Com
efeito, ao exigir o cumprimento rigoroso de orientações
que foram dadas previamente, poderíamos não estar a agir
de acordo com aquilo que seria a vontade do paciente no
momento actual em que é preciso tomar decisões.
Outro conjunto de motivos tem a ver com o próprio con-
teúdo das DAV. Na realidade, uma grande parte das pessoas
não está familiarizada com as circunstâncias de uma doença

17
terminal e com as opções terapêuticas mais usuais nessas
circunstâncias. Também sabemos que as situações concretas
não encaixam com frequência em tipologias pré-estabelecidas;
e não é possível antecipar os diversos cenários médicos possí-
veis na fase terminal da vida. Aquilo que é possível antecipa-
damente exprimir fica, por vezes, distante da realidade que se
irá encontrar.
Estas são razões que nos chamam a atenção para a dificul-
dade em reconhecer a um testamento vital ou a um procura-
dor de cuidados de saúde um carácter vinculativo absoluto.
Também aqui se confirma que seria uma irresponsabilidade
excluir os profissionais de saúde e os familiares da tomada de
decisão. Para além da vontade do paciente, há sempre outros
factores e valores a ter em conta; há indícios diversificados
daquilo que poderia ser a vontade do paciente na situação
presente; há dados clínicos que podem condicionar as opções
de forma imprevista. As DAV, como qualquer outro indicador
da vontade do paciente (conversas anteriores, conhecimento
da sua personalidade, desejos expressos, presunção dos
melhores interesses, etc.) são elementos úteis mas não absolu-
tamente determinantes para o processo de decisão.
Compreende-se, deste modo, que as normativas relati-
vas às DAV usem habitualmente expressões que fazem eco
desta realidade: dizem que a vontade do paciente deve ser
respeitada ou que deve ser tida em conta. Não há outra forma
de enquadrar adequadamente as expressões de autonomia de
uma pessoa, sem com isso negar o carácter relacional ou
dialógico dessa mesma autonomia.
Seria, contudo, eticamente questionável desvalorizar de
tal forma as DAV, que não lhes fosse reconhecido o devido
papel enquanto expressão legítima da autonomia do paciente,
que deve ser, em princípio, respeitada. E por “respeito” enten-
demos uma disposição para realizar o que é solicitado pelo
paciente ou para seguir os critérios por ele indicados, desde
que não violem princípios éticos e valores morais fundamen-
tais. Teremos de admitir que um documento desta natureza
não é assinado, habitualmente, de forma irreflectida e impon-
derada. Deve, portanto, ser adequadamente integrado no pro-

18
cesso de decisão. Pelas razões já mencionadas, tem de ser
confrontado com outros factores de cada situação concreta
e tem de ser lido à luz de outras manifestações pessoais dos
valores do paciente.

6.  Para além das Directivas Antecipadas de Vontade:


a procura de estratégias abrangentes

As dificuldades e limites apontados a todas as formas de


directivas antecipadas de vontade põem em realce que elas
não são um fim em si mesmas, mas apenas um instrumento
para decidir no respeito pela autonomia da pessoa a quem se
referem as decisões. Neste sentido desenvolveram-se novas
abordagens que redimensionam a importância deste tipo de
documentos escritos e ampliam o papel dos processos comu-
nicativos entre pacientes, profissionais e familiares. Esta estra-
tégia alternativa, a que se deu o nome de “Planificação Ante-
cipada de Decisões” (Advance Care Planning), dá especial
atenção às referências contextuais da vida pessoal do paciente, 19
  Sobre este tipo de abor-
direccionando os esforços para a educação dos agentes envol- dagem cf.: I. Barrio Canta-
lejo - P. Simón Lorda, “Tes-
vidos nos cuidados de saúde, de modo a favorecer uma parti- tamento vital”, in: Pastoral
cipação de todos nos processos deliberativos sobre questões de la Salud y Bioética (Dir.
J. C. Bermejo - F. Álvarez), San
da saúde, da doença e da morte19. Pablo, Madrid, 2009, pp. 1746-
Este tipo de estratégias apresenta objectivos mais globais ‑1762, 1749 ss; L. Emanuel -
Ch. Gunten - F. Ferris, “Ad-
e exige procedimentos mais abrangentes. A planificação ante- vance Care Planning”, in:
Archives of Family Medicine,
cipada é um processo que, em caso de perda da capacidade 9 (2000), pp. 1181-1187;
de decidir, procura ajudar a tomar decisões sobre os cuidados D. Martin - L. Emanuel - P. A.
Singer, “Planning for the
de saúde de acordo com as vontades e valores do paciente. End of Life”, in: Lancet,
Distingue-se dos instrumentos anteriormente referidos porque 356 (2000), pp. 1672-1676;
J. Teno - J. Lynn, “Putting
não se limita a meios pontuais e isolados, nem se reduz a Advance-Care Planning into
documentação escrita ou a um representante formal. Algumas Action”, in: Journal of
Clinical Ethics, 7:3 (1996),
características desta planificação mostram que se trata de uma pp. 205-214; L. Emanuel - Ch.
Gunten - F. Ferris, Advance
abordagem mais ampla ao problema em causa: Care Planning. Project to
Educate Physicians on End-
a) prepara não tanto para a incapacidade de decisão, ‑of-life Care, Institute for
Ethics at the American Me-
mas sobretudo para a morte, procurando atenuar o dical Association, Chicago,
medo e a angústia do morrer; 1999.

19
b) não acentua os procedimentos desejados, mas as pers-
pectivas e valores do paciente;
c) dinamiza os processos comunicativos com as pessoas
próximas e não apenas com os profissionais de saúde,
sobre os desejos do paciente e os diversos cenários da
fase terminal;
d) contribui para um acompanhamento das pessoas a
quem compete a decisão, de forma a diminuir a sua
carga emocional.

Os procedimentos previstos são mais abrangentes e im-


plicam uma inter-relação maior: introdução desta temática
nos diálogos com o paciente, abordagem estruturada sobre as
questões do fim de vida, documentação adequada dos desejos
e perspectivas do paciente, revisão periódica das preferências
manifestadas.
Ainda que esta alternativa possa ser de difícil aceitação
porque implica alteração de mentalidades e de modelos nos
cuidados de saúde, ela tem pelo menos o mérito de chamar
a atenção para a necessidade de ter uma visão mais abran-
gente do problema e de não usar o testamento vital, ou outros
documentos, como álibi para descurar o questionamento sobre
os modelos de relação clínica e para adiar indefinidamente o
confronto com as questões do final da vida humana.

7.  Requisitos éticos

A reflexão apresentada permite-nos indicar, sumariamente,


algumas condições éticas que as DAV devem preencher.

1. Enquanto expressão da autonomia do paciente, as


DAV têm o mesmo enquadramento ético e jurídico
do consentimento informado: para serem validamente
expressas e serem de algum modo vinculativas,
devem ser manifestadas por uma pessoa moralmente

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e juridicamente capaz, com capacidade adequada de
juízo moral.

2. Sendo a vontade, ou intencionalidade, uma condição


fundamental do agir autónomo, é preciso estar seguro
de que as DAV são expressão da vontade do sujeito
em causa e haver a presunção razoável de que no
momento actual da decisão ele quereria o que nelas
fora antes declarado. Pela importância daquilo a que
se referem, são válidas apenas as directivas assinadas
por pessoas que não estejam substancialmente condi-
cionadas na sua liberdade em relação a este acto.

3. Para ser autónoma uma acção tem de ser adequada-


mente compreendida pelo sujeito agente. Uma vez
que as DAV se referem frequentemente a situações
complexas, é determinante o acompanhamento de
especialistas para que a assinatura destas directivas
seja fundada numa compreensão razoável do que está
em causa.

4. O conteúdo das DAV tem de ser aceitável de um


ponto de vista ético e jurídico. Não têm validade as
directivas que atentem contra o ordenamento jurídico
vigente ou que violem princípios éticos fundamentais.

5. As DAV devem poder ser revogáveis e alteradas sem-


pre que o próprio assim o desejar e devem ser corri-
gidas se o signatário deu sinais de que teria mudado
a sua vontade. O que está em causa é, precisamente,
a vontade actual do paciente no momento em que
é preciso tomar decisões. A existência de um testa-
mento vital ou de outro documento com directivas
deste tipo não dispensa os profissionais de saúde e
acompanhantes do paciente de procurar cuidadosa-
mente saber quais seriam os seus desejos na situação
presente.

21
6. Um médico que, em consciência, decida agir contra
indicações expressas em DAV deve fundamentar e
registar a sua decisão para posteriormente ser confron-
tada com interpelações dos familiares ou de instância
jurídicas.

7. As DAV não podem ser postas ao serviço de inte-


resses sociais ou institucionais, sejam económicos ou
ideológicos. Por exemplo, não podem ser instrumen-
talizadas no sentido de reduzir custos ou de favorecer
apoios à aceitação da eutanásia.

O enquadramento antropológico e ético exigido pela


reflexão sobre as DAV permite interpretar e desenvolver estas
condições, aqui meramente sumariadas, e procurar outras refe-
rências que a prática destes procedimentos vai fazer emergir.

8.  Conclusão

As DAV são, sem qualquer dúvida, um instrumento útil nos


processos de decisão em cuidados de saúde. Na medida em
que proporcionam mais dados sobre o percurso de convicções
e de valores da pessoa doente, podem ser um auxílio para
que, nas opções a tomar, seja respeitada a sua autonomia
na interacção com os restantes valores éticos em jogo. Em
sociedades como a nossa, onde a tradição hipocrática favo-
rece ainda atitudes marcadamente paternalistas nos cuidados
de saúde, pode ser vantajoso promover a implementação das
DAV como mais um meio para sublinhar a centralidade da
pessoa doente em todas as decisões que lhe dizem respeito.
O debate e a divulgação destes instrumentos justificam-se
antes de mais pela reflexão que provocam sobre o alcance e
limite da autonomia do paciente.
Não podemos, no entanto, ceder a uma euforia autono-
mista e ver nas DAV uma solução fácil e infalível para as toma-
das de decisão. Podemos tirar lições da experiência de outras

22
sociedades em que a adopção de paradigmas contratualistas
deu lugar aos excessos de uma preponderância da autonomia
individualista nos cuidados de saúde, que em nada servem
os interesses da pessoa doente: por um lado, conduzem o
paciente a um isolamento no processo de decisão, na medida
em que tem de assumir por si só o peso da escolha entre
opções nas quais estão em confronto valores muito significati-
vos; por outro lado, fazem com que os profissionais de saúde
sejam forçados ao exercício de uma “medicina defensiva” –
para evitar recursos judiciais, os médicos optam geralmente
por estratégias terapêuticas mais conservadoras, não assumem
tratamentos de risco, procuram os procedimentos com maior
evidência científica, desenvolvem um excesso de prescrição,
solicitam com mais frequência exames complementares e,
sobretudo, tendem a ver o paciente mais como um cliente
e menos como uma pessoa com quem se estabelece uma
aliança terapêutica.
Tendo em conta as possibilidades e limites das DAV, bem
como o necessário enquadramento ético que lhes deve estar
subjacente e as diferenciações que as circunstâncias práticas
exigem, não podemos deixar de olhar para elas como uma
forma de expressão pessoal que é preciso acolher e interpretar.
Seria enganador pensar que a assinatura de documentos deste
tipo é suficiente para garantir o respeito da autonomia do
paciente. Dificilmente se pode considerar prioritário fazer cam-
panhas alargadas pela divulgação destes documentos, sem que
sejam acompanhadas de programas educacionais e de altera-
ções nos paradigmas das relações clínicas. Também não me
parece que se possa falar de um imperativo moral em assinar
declarações antecipadas de vontade, precisamente porque
elas são apenas instrumento de algo mais abrangente e deci-
sivo: de uma relação de confiança e responsabilidade com o
paciente em que é decisivo agir de acordo com o seu universo
de referências, tendo-o como centro dos processos delibera-
tivos e assumindo o seu bem global como objectivo das deci-
sões. Já me parece que se pode considerar, numa perspectiva
ética, um dever pessoal procurar as formas mais convenientes

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a cada um de manifestar as suas perspectivas, transmitir os
valores pelos quais quer que as decisões se orientem, recorrer
aos recursos que estiverem ao seu alcance para que os médicos
e os familiares possam ter facilitadas as tomadas de decisão a
seu respeito.
A dificuldade em lidar com estes novos instrumentos dos
cuidados de saúde, a paixão ou desconforto que se associam
à discussão desta temáticas são comuns à questão da própria
morte. As DAV são um tema difícil porque também é difícil
aceitar que iremos morrer, porque é difícil encarar de frente
a realidade da nossa condição mortal, porque é difícil termos
certezas sobre esses últimos momentos da nossa existência
biológica, porque nos assusta a possibilidade de sofrermos e
de vermos sofrer, porque é difícil estar ao lado da morte dos
que nos são queridos, porque não sabemos como vamos viver
o nosso morrer.

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