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Loïc Wacquant
RESUMO
Prestar atenção aos primeiros estudos de campo de Pierre Bourdieu, conduzidos concomitantemente na
Argélia colonial e na sua aldeia natal no Béarn, no sudoeste francês, permite avaliar sua abordagem
sociológica e seus resultados científicos numa nova chave interpretativa. Eles revelam as raízes etnográficas
gêmeas da sua empresa teórica, dissolvem a figura caricatural do "teórico da reprodução", indiferente à
mudança histórica, e afastam a ficção acadêmica do "teórico da prática". Mostram como as inovações
conceituais de Bourdieu (como o conceito de habitus) eram guiadas por questões de pesquisa de campo
centradas na transformação social, na disjunção cultural e na divisão da consciência. A utilização de cada
local como um laboratório vivo para analisar de modo cruzado o outro local, permitiu a Bourdieu desco-
brir a especificidade da "universalmente pré-lógica lógica da prática" e levou-o a romper com o paradigma
estruturalista. Ligar seus estudos de juventude na Cabília e no Béarn revela ainda que pressagiando o
"repatriamento" da Antropologia depois do encerramento da era imperial, Bourdieu revogou a concepção
dominante da Etnografia como uma exploração heróica da alteridade, sendo o pioneiro no desenvolvimen-
to da Etnografia multissituada como um meio de controle da construção do objeto de pesquisa. Os estudos
de campo sobre a estrutura social e sobre o sentimento na colônia longínqua e na terra natal, não só
apagam na prática a divisão disciplinar entre Sociologia e Antropologia, como também demonstram que se
pode conduzir Etnografia “insider” e reconhecer a inserção social e a subjetividade dividida do pesquisa-
dor sem, para tal, reduzir a Etnografia ao ato de contar histórias e sem abandonar a teoria à poesia.
PALAVRAS-CHAVE: Pierre Bourdieu; etnografia; Argélia; Béarn; campesinato; habitus.
1 Produzir este número de Ethnography logo após a morte trabalho de Bourdieu contei com a Bibliographie des travaux
de Pierre Bourdieu, o qual ele mesmo havia concordado em de Pierre Bourdieu de Yvette Delsaut e Marie-Christine
contribuir, foi ao mesmo tempo uma provação e uma tarefa Rivière (2002). A primeira data refere-se à tradução em
redentora. Ele não teria sido feito sem o apoio de Jérôme e inglês. A data entre colchetes é a da edição original. Todas
Marie-Claire Bourdieu, Marie-Christine Rivière, Frank as citações de Bourdieu são traduções minhas do texto
Poupeau e Megan Comfort. As sugestões e observações de original francês para o inglês.
Javier Auyero, Philippe Bourgois, Michael Burawoy, 2 Traduzido para o português, a partir da versão inglesa,
Gretchen Purser, Nancy Scheper-Hughes e Florence Weber
por Helena Pinto, José Madureira Pinto e Virgílio Borges
foram particularmente úteis, como o foi o estímulo dado
Pereira. Revisão e adaptação para o português falado no
pelos acesos debates no Ethnografeast II, realizados na
Brasil: Fábia Berlatto e Bruna Gisi. Revisão técnica da tra-
École Normale Supérieure em Paris, entre 14 e 18 de se-
dução: Adriano Codato, Renato Perissinotto e José Szwako.
tembro de 2004. A assistência polivalente de Nicole de
Publicado originalmente como: Following Pierre Bourdieu
Pontes em Nova Iorque foi essencial. Para as referências ao
into the field. Ethnography, London, v. 5, n. 4, p. 387-414,
publicações facilmente revelará que o trabalho de rência se deu numa altura em que, para um alto
campo desempenhou um papel essencial nos seus diplomado da École Normale Supérieure, optar por
primeiros estudos, quer sobre a Argélia colonial, tornar-se sociólogo era equivalente a um voto de
quer sobre a sua terra natal, no Béarn rural, tanto adesão à intelectualidade marginal da França
quanto, já na maturidade, na dissecação do gosto (BOURDIEU, 2004a, p. 27-30, 51-53; 2004b). Foi
e em investigações mais recentes sobre novas for- na dura prova da Argélia que a libido philosophica
mas de dominação e desolação sociais causadas, de Bourdieu foi inesperadamente desviada e
nas sociedades avançadas, pela revolução irreversivelmente transformada na libido socioló-
neoliberal. Revelará ainda que as suas múltiplas gica que iria alimentar sua permanente busca de
investigações sobre educação, arte, classe, lingua- uma ciência da prática e do poder simbólico. A
gem, gênero, economia e sobre o Estado estão vocação antropológica de Bourdieu cristalizou-se,
carregadas de observações minuciosas, em tem- e a sua aprendizagem sobre pesquisa empírica foi
po e espaço reais (sem fazer, ainda, um exame literalmente gerada “no campo”, como a própria
sociológico de suas experiências pessoais); e que expressão indica. Ou seja, através da imersão con-
uma sensibilidade etnográfica anima até mesmo tinuada nas realidades diárias de uma sociedade
os seus escritos mais abstratos relativos aos inte- aflita, apanhada nas convulsões do colonialismo
lectuais, à razão e à justiça4. decadente, das vagas do nacionalismo e do caos
nascido da sua inevitável conflagração.
Uma leitura atenta dos escritos de juventude
de Bourdieu, tendo em conta os respectivos con- O retorno às primeiras incursões etnológicas
textos sociobiográfico e intelectual, revela muito de Bourdieu também sugere que a estranha “ex-
mais. Demonstra, em primeiro lugar, que foi a periência epistemológica” que ele levou a cabo em
exposição direta às horríveis realidades do domí- 1959-1961 (BOURDIEU, 1972, p. 222), a qual
nio imperial e do estado de guerra que fez com consistiu em conduzir um trabalho de campo con-
que Bourdieu se convertesse da grandiosa e soci- corrente e paralelo num mundo exótico e distante
almente anódina filosofia para uma humilde e po- – a Cabília da Argélia colonial – e num outro mais
liticamente arriscada ciência social. Essa transfe- próximo e mais familiar – a sua própria aldeia de
infância, no sudoeste da França –, foi crucial para
os dois movimentos que, subseqüentemente, aca-
Dec. 2004. A versão brasileira difere bastante da versão
portuguesa. baram por definir todo o seu projeto científico.
3 Um indicador entre muitos: Bourdieu não obtém uma
Primeiro, a utilização de cada situação como um
laboratório vivo para a análise cruzada lhe permi-
única referência em Van Maaen (1988) e Emerson (2001),
dois volumes amplamente usados para iniciar os sociólo- tiu descobrir a especificidade da “lógica univer-
gos no trabalho de campo nos Estados Unidos, ou em salmente pré-lógica da prática”, além de ter per-
Hammersley e Atkinson (1995), um livro muito difundido mitido iniciar o corte decisivo com o paradigma
no Reino Unido. No que diz respeito à Antropologia estruturalista, deslocando o seu foco analítico “da
estadunidense, Goodman (2003, p. 782) lamentou: “É de estrutura para a estratégia”, da álgebra mental me-
certa forma surpreendente que o seu trabalho [de Pierre
cânica das regras culturais para a fluida ginástica
Bourdieu] tenha permanecido muito longe do alcance da
literatura atenta às responsabilidades políticas e éticas da simbólica dos corpos socializados (BOURDIEU,
representação etnográfica.” Uma notável exceção a essas 1990 [1980], p. 37; 1990 [1985]). Segundo, o
omissões sistemáticas é Beaud e Weber (2003). Deve-se redirecionamento do olhar etnológico de volta ao
lembrar que os primeiros trabalhos de Bourdieu há muito seu mundo nativo estimulou Bourdieu a traduzir
são conhecidos e influentes em países como o Brasil e sua inquietação existencial em relação à “postura
Portugal, onde a “questão rural” foi central no estabeleci-
escolástica”, – inquietação enraizada em suas dis-
mento das Ciências Sociais contemporâneas (por exemplo,
cf. LOPES, 2003). posições anti-intelectualistas herdadas de sua cri-
ação numa classe e numa posição etno-regional
4 Ver, em particular, Bourdieu, 1979 [1977]; Bourdieu
subordinadas5 –, numa reflexão metódica sobre o
2002 sobre a transformação das sociedades camponesas da
Argélia e do Béarn; Bourdieu, 1984 [1979] sobre classe e
gosto; Bourdieu et al., 1998 [1993], sobre as bases e for-
5 Em 1990, em uma entrevista a Antoine Spire para a
mas de sofrimento social na sociedade contemporânea;
Bourdieu et al., 1990 [1965]; 1996 [1992], sobre os usos France Culture, Bourdieu observou: “Nas minhas pulsões
da fotografia e a invenção da contemplação artística; e originais, existe uma forma de anti-intelectualismo, de
Bourdieu, 1988 [1984]; 2000 [1997], especialmente p. 33- irritação face ao exibicionismo, ao narcisismo e à
48, “Confissões impessoais”, sobre os intelectuais. irresponsabilidade intelectuais. Eu disse freqüentemente
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próprio ato de objetivação, sobre suas técnicas e trutural em níveis que vão do individual ao social,
suas condições sociais, que preparou o caminho e em temporalidades que abarcam desde o bio-
para elaborar e concretizar a atitude de gráfico até o histórico. Os seus primeiros ensaios
reflexividade epistêmica que é a marca de seu tra- empiricamente orientados abordam “O choque das
balho e de seu ensino (BOURDIEU, 2003a; civilizações” e a “Guerra e mudança social na Ar-
BOURDIEU & WACQUANT, 1992, p. 36-47; p. gélia” na longue durée da colonização, assim como
202-215). a transição “Da guerra revolucionária à Revolu-
ção” (BOURDIEU, 1959; 1960; 1962a)
II. RUPTURA SOCIAL E DISJUNÇÃO CULTU-
desencadeada na Argélia no curto espaço de uma
RAL NA CABÍLIA E NO BÉARN
década dramática. Os seus dois primeiros gran-
Além disso, prestar atenção aos trabalhos de des livros, escritos quase simultaneamente depois
campo feitos na juventude permite colocar toda a de um intenso período de pesquisa, conjugando
abordagem intelectual de Bourdieu numa nova análise estatística e Etnografia, Le déracinement e
perspectiva. Dissolve definitivamente a imagem Travail et travailleurs en Algérie (BOURDIEU &
caricatural do “teórico da reprodução” (ainda SAYAD, 1964; BOURDIEU; DARBEL; RIVET &
corrente em alguns setores da Sociologia, e da SEIBEL, 1963), tratam dos dois lados da mesma
Sociologia da Educação, em particular, por exem- transformação cataclísmica. O primeiro – Le
plo, ARCHER, 1993; SAYER, 1999; KINGSTON, déracinement – descreve a destruição acelerada
2001), alguém indiferente à mudança histórica e do campesinato argelino sob a pressão da espoli-
incapaz de dar conta na sua grade conceitual da ação da terra, da mercantilização das relações so-
contradição social. De fato, o autor de Algérie 60 ciais e do assentamento forçado de milhões de
desenvolveu suas preocupações e noções centrais pessoas imposto pelo exército francês no seu es-
num esforço para descrever as forças dinâmicas forço estéril para conter a insurgência nacionalis-
que dilaceravam a estrutura social e mental da al- ta. O segundo – Travail et travailleurs en Algérie
deia comunitária na qual cresceu, e que confluí- – faz o levantamento da formação e do crescente
am na violenta transformação da sociedade de abismo entre o proletariado industrial estável e o
castas da Argélia colonial6. subproletariado sem iniciativa condenado à eco-
nomia de miséria das ruas e ao “tradicionalismo
As investigações de Bourdieu como aprendiz
do desespero”, que o torna suscetível a todas as
de etnólogo/sociólogo tratam claramente de
formas de manipulação política. Essas duas trans-
disjunção cultural, disrupção social e ruptura es-
formações convergem para a emergência de uma
“agricultura sem agricultores” e de “cidades sem
dos intelectuais que eles superestimavam-se individualmen-
habitantes”, deixando uma população inteira
te e subestimavam-se coletivamente. E o meu ‘trabalho’ – suspensa, como estava, nas fraturas da história,
entendida a palavra aqui no sentido que lhe dá a psicanálise “flutuando entre duas culturas” (BOURDIEU,
– consistiu, e isso nem sempre foi fácil para mim, em 1962a, p. 6; 2000b), numa sociedade mergulhada
reconverter essa pulsão anti-intelectualista”. em contradições e marcada pela ambigüidade, ins-
6 A idéia de produzir uma “Antropologia histórica do tabilidade e angústia7.
presente” (para reformular a expressão de Foucault) visan-
do lançar luz sobre as dificuldades políticas da
De fato, as três perguntas teóricas que preo-
descolonização da Argélia é clara desde Le déracinement: cupavam Bourdieu nas suas primeiras investiga-
“A observação estatística e etnográfica de um dos mais
brutais reassentamentos de população rural conhecidos da
7 Ver também Bourdieu, 1961, especialmente p. 34-39.
história permite-nos captar, no momento preciso em que
são abaladas, as estruturas fundamentais da economia e do Este ponto é devidamente acentuado por Hammoudi, 2000,
pensamento dos camponeses. Destruindo as organizações p. 15, que sugere que o modelo de Bourdieu sobre as con-
espaço-temporais [dos camponeses Argelinos], o tradições da fase final do colonialismo permanece apropri-
desenraizamento completa aquilo que a generalização das ado: “Os Magrebinos de hoje fariam bem em meditar sobre
trocas monetárias já havia começado. [...] Esta análise do esta reflexão que Bourdieu, já nos anos sessenta, lhes ofe-
processo social produzido pela pretensão de acelerar a receu. Pois ela pôde chamar a atenção, de uma forma sem
História através da violência e ignorando os mecanismos precedentes, para as novas correntes críticas batizadas de
desencadeados não seria totalmente inútil se pudesse con- ‘Islã radical’ […]. De fato, a ambivalência e ambigüidade
tribuir para assegurar que a História não se repete” notadas e analisadas [por Bourdieu, quatro décadas atrás]
(BOURDIEU & SAYAD, 1964, texto da quarta capa do caracterizam também adequadamente estes novos movi-
livro). mentos”.
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SEGUINDO PIERRE BOURDIEU NO CAMPO
ções sobre a Argélia eram: 1) quais são os meios, foram guiadas pelas questões práticas da pesqui-
mecanismos e efeitos da passagem de uma eco- sa de campo e não pelo desejo de resolver puzzles
nomia pré-capitalista para uma economia capita- escolásticos, tais como a consagrada antinomia
lista; 2) como essa passagem se manifesta na cons- da “estrutura e ação” ou a oposição análoga entre
ciência e nas categorias mentais dos que foram “estrutura e acontecimento”. E isto porque ne-
arrastados para esta situação e, em particular, na nhuma destas dualidades estava constituída como
sua concepção de tempo e na sua conduta emoci- tal no campo intelectual dos anos sessenta, quan-
onal; e 3) qual das duas classes populares, prole- do Bourdieu andava a procura das, e depois esta-
tariado industrial e campesinato, está preparada beleceu as grandes linhas da sua abordagem da
para atuar como uma força revolucionária no ce- prática9. O seu modo específico de argumenta-
nário (pós-)colonial; e será válida ali a clássica ção sociológica se cristalizou através da constru-
diferenciação entre proletariado e subproletariado? ção de objetos empíricos concretos. E não foi atra-
vés de uma espécie de partenogênese teórica ba-
As duas primeiras questões derivam do seu
seada em balanços retrospectivos, “inspirados por
permanente interesse pelo debate entre Weber e
objetivos mais pedagógicos do que científicos”,
Sombart sobre a emergência do capitalismo e a
em que se confundem as reais articulações do tra-
racionalização do comportamento a ele associa-
balho de pesquisa com a “reelaboração indefinida
do, e sobre a transposição desta problemática para
de elementos teóricos extraídos artificialmente de
o contexto imperial, assim como do seu entusias-
um corpo seleto de autoridades”, assimilando a
mo filosófico pela fenomenologia do tempo (an-
teoria social a uma descendência moderna das
tes de atravessar o Mediterrâneo, Bourdieu tinha
“compilações medievais” (BOURDIEU,
planejado fazer sua tese em história da ciência,
CHAMBOREDON & PASSERON, 1991 [1968],
sob orientação de Georges Canguilhem, sobre “as
p. 28). Além disso, quando se servia da sua baga-
estruturas temporais da vida afetiva”)8. A última
gem de ferramentas filosóficas ou reconvertia
interrogação visava responder com as frias ferra-
questões filosóficas em experiências
mentas da ciência à escaldante questão que ani-
observacionais, Bourdieu pensava tanto com as
mava a intelligentsia revolucionária durante os
principais correntes teóricas da sua juventude
anos sessenta. De Jean-Paul Sartre a Franz Fanon,
como contra elas, como é revelado, por exemplo,
a questão era a da escolha entre a via soviética ou
pela sua dupla relação com a fenomenologia e seus
chinesa para a revolução no Terceiro Mundo
usos 10.
(BOURDIEU, 1979 [1977], p. 1-7, 92-94; 2000a,
p. 7). Não estamos propriamente perante temas
típicos nem esquemas explicativos essenciais de
uma “teoria da reprodução”! 9 Isso é muito claro em Bourdieu, 1990 [1965], p. 1-5,
Bourdieu e Passeron (1967) e Bourdieu, 2000 [1997], p.
De modo semelhante, os estudos etnográficos 33-48 ; 2004a, p. 21-30, 36-45, 94-108. Para o jovem filó-
de Bourdieu dos inícios de 1960 afastam a ficção sofo virar antropólogo e daí sociólogo, as dualidades pri-
acadêmica do “teórico da prática” – muitas ve- mordiais àquela altura eram as que se verificavam, por um
zes visto à cavalo, como D. Quixote, com os com- lado, entre a filosofia e a ciência social e, por outro, entre a
panheiros Anthony Giddens, Marshall Sahlins e filosofia do sujeito (encarnada no existencialismo de Sartre)
e a filosofia do conceito (personificada pelos seus profes-
Michel de Certeau, em luta contra os moinhos de
sores Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e Jules
vento do estruturalismo, da fenomenologia e do Vuillemin). Sobre o trabalho de Bourdieu como uma adap-
marxismo (por exemplo, KNAUFT, 1996, p. 110- tação sociológica da “epistemologia histórica” de Bachelard,
115; ORTNER, 1996, p. 2-12) – ao revelarem a ler Broady (1990).
forma como as inovações conceituais de Bourdieu 10 Desde os seus primeiros trabalhos, Bourdieu opôs-se à
“Antropologia imaginária” de Sartre, que secularizou a vi-
são cartesiana de uma consciência auto-constituída e cria-
dora do mundo, recorrendo à concepção de Merleau-Ponty
8 “Durante o tempo todo em que escrevia Sociologie de de um corpo vivo como produto-produtor sintético da re-
l’Algérie, quando realizei meu primeiro trabalho de campo alidade social e receptáculo ativo de forças passadas. Mas,
etnológico [na Argélia entre 1957 e 1960], continuei, todas para isso, apoiou-se no Merleau-Ponty das Structures du
as noites, a escrever sobre a estrutura da experiência tem- comportement contra o Merleau-Ponty de La
poral segundo Husserl, com a esperança de regressar rapi- Phénoménologie de la perception, tentando sempre
damente a projetos filosóficos anteriores (BOURDIEU, decodificar questões empíricas, tais como a razão pela qual
2004b, p. 419). os camponeses argelinos que podiam antecipar as suas
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 13-29 JUN. 2006
Deste modo, Bourdieu (re)introduziu a antiga binada da guerra e do naufrágio das relações soci-
noção aristotélico-tomista de habitus num artigo ais estabelecidas.
de 1962, em que investiga “As relações entre se-
Em todos os domínios da existência, em todos os
xos na sociedade camponesa” do Béarn níveis da experiência encontram-se as mesmas
(BOURDIEU, 1962c), não para apresentar uma contradições sucessivas ou simultâneas, as mes-
peça-chave no processo de reprodução social, ou mas ambigüidades. Os padrões de comportamen-
para se libertar do jugo do estruturalismo (que ele to e o ethos econômico importados pela coloniza-
ainda iria utilizar abundantemente, cf. BOURDIEU, ção coexistem, em cada sujeito, com os padrões e
1968), mas para descrever a disjunção traumática ethos herdados da tradição ancestral. Daqui de-
entre as competências e expectativas incorpora- corre que esses comportamentos, atitudes ou opi-
das do homem rural e das mulheres locais, que, niões aparecem como fragmentos de uma lingua-
estando mais abertas à influência cultural da cida- gem desconhecida, incompreensível tanto àque-
de, tinham passado a perceber e avaliar esses ho- le que não conhece a linguagem cultural da tradi-
mens através de lentes urbanas que desvaloriza- ção, quanto àquele que se refere unicamente à
vam radicalmente os seus modos, tornando-os, linguagem cultural da colonização. Às vezes são
desse modo, “incasáveis”. Usou-o mais ou me- as palavras da linguagem tradicional que são com-
nos ao mesmo tempo em Le déracinement, para binadas de acordo com a sintaxe moderna; outras
se referir à “disposição geral e permanente em vezes, o oposto, e por vezes é a própria sintaxe
relação ao mundo e em relação aos outros” que aparece como o produto de uma combinação
(BOURDIEU & SAYAD, 2004 [1964], p. 102) que (idem, p. 464).
levava os fellahin’ deslocados a manterem-se fi- O conceito de habitus, integrando a noção de
éis aos seus valores em assentamentos onde os histerese (i.e., o intervalo temporal entre a incidên-
camponeses argelinos “já não tinham possibilida- cia de uma força social e o desenvolvimento dos
de de se comportarem como camponeses”, e para seus efeitos através da mediação retardadora da
transcrever a “linguagem do corpo”, na qual “o incorporação) e a de sedimentação seqüencial de
sentido de perda e de apagamento” de uma popu- capacidades e de disposições temporais, também
lação brutalmente arrancada dos seus “ritmos tem- permitiu a Bourdieu realçar como o sistema coloni-
porais e espaciais” encontrava a sua expressão al vive nas e pelas disposições discordantes e ex-
mais intensa (idem, p. 154-159). O habitus é a pectativas confusas que introduz nos sujeitos. E,
categoria mediadora, transcendendo a fronteira além disso, como o sistema colonial sobreviveria
entre o objetivo e o subjetivo, que permitiu a com o fim do domínio francês e com o estabeleci-
Bourdieu captar e descrever o agitado mundo du- mento de um estado argelino independente11.
plo da Argélia colonial em desagregação. Nesse
Se a Etno-Sociologia de Bourdieu sobre a “ci-
mundo conturbado, as estruturas sociais e men-
rurgia social”, experimentada pela França na sua
tais não só estavam funcionando mal umas em
colônia além-Mediterrâneo, destaca fundamental-
relação às outras, como formavam, elas próprias,
mente lógicas incongruentes de ação, isto é, os
uma mistura variada de tradição enraizada e de
múltiplos padrões e temporalidades através das
imposição colonial, com as estratégias dos autóc-
quais diversas comunidades e agentes responde-
tones predispostos a oscilar entre dois princípios
ram à incursão colonial e à guerra 12 , sua
antinômicos, a saber, por um lado a lógica da hon-
ra, parentesco e solidariedade de grupo e, por
outro, a pressão dos interesses individuais, rela-
11 “Os diferentes níveis de realidade social não se trans-
ções de mercado e ganhos materiais. Os campo-
formam, necessariamente, no mesmo ritmo”, e “as formas
neses desenraizados e os subproletários urbanos
de agir e de pensar podem sobreviver a uma mudança nas
eram, assim, encarados como seres bifurcados, condições de existência. O camponês pode ser libertado do
desorientados e aculturados pela experiência com- colono, sem se libertar das contradições que a colonização
incutiu nele” (BOURDIEU & SAYAD, 2004 [1964], p.
471-472).
12 Os autores de Le déracinement dedicam um capítulo
necessidades de plantio em mais de uma década, recusan- inteiro à exposição dos modos divergentes segundo os quais
do-se a planejar novas colheitas com mais de dois anos de duas regiões diferentes da Argélia responderam à penetra-
antecedência, como lhes era ensinado pelos agrônomos fran- ção colonial e à mobilização nacionalista: “Assim, grupos
ceses (BOURDIEU & SAPIRO, 2004). que diferem na sua história podem reagir de forma muito
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SEGUINDO PIERRE BOURDIEU NO CAMPO
monografia sobre a “mutilação social” do celibato dos em relações assimétricas de poder material e
forçado na sua terra natal, no sudoeste francês, simbólico. A intenção era contradizer a visão
tem analogamente como centro de interesse a crise hegemônica de desenvolvimento socioeconômico
histórica, a mudança estrutural e as discrepâncias no emergente Terceiro Mundo como um proces-
entre possibilidades objetivas e esperanças subjeti- so teleológico gradual, quase orgânico, impulsio-
vas que derivam e conduzem à dissolução do siste- nado principalmente pela difusão cultural – como
ma de trocas matrimoniais estabelecido. Enquanto na “teoria da modernização” de Daniel Lerner, se-
nas montanhas do Atlas é o imperialismo francês veramente criticada em Algérie 60 (BOURDIEU,
que põe fim à perpetuação relativamente autotélica 1979 [1977], p. 30-32; ver também BOURDIEU,
das resistentes comunidades da Cabília, no maciço 1975 para uma crítica ampla). Desde os seus pri-
dos Pirineus é a generalização da escolarização, o meiros escritos, Bourdieu opôs-se a uma noção
êxodo desproporcional das mulheres e a abertura de “aculturação” tão benigna e enfatizou que o
do campo à influência das cidades (impulsionada sistema colonial é fundado na “relação de força
pelo centro econômico-cultural, e mediada pelo mer- pela qual a casta dominante mantém a casta do-
cado local) que subverteu os padrões de honra nas minada sob o seu controle”, enclausurando-a numa
relações entre sexos tornando assim a “reprodução situação de “humilhação” coletiva (BOURDIEU,
impossível” – para invocar o incisivo título da 1962 [1958]; 1961, p. 28-29)14. Como os seus
revisitação analítica das pesquisas de juventude feita trabalhos posteriores sobre linguagem e identida-
por Bourdieu em 1989. de regional iriam esclarecer, na visão de Bourdieu
(1977a; 1991 [1982], p. 43-89, p. 220-228) uma
Surpreendentemente, tanto no Béarn como na
relação similar de ação [penetration] econômica e
Argélia, Bourdieu (1962b; 2002, p. 113) articula a
subordinação cultural entre o centro de Paris e a
mesma problemática do “choque de civilizações”
periferia da cidade foi conseguida na França atra-
e dos seus multifacetados impactos na estrutura
vés da intervenção do Estado. Ou seja, o desen-
social e na subjetividade, incluindo o “des-do-
volvimento multissecular do estado burocrático
bramento da consciência e do comportamento”
efetivou a unificação forçada dos usos lingüísticos
de acordo com os princípios conflitantes do sen-
e criou uma língua oficial utilizada como padrão
timento e do interesse, a erosão das hierarquias e
para expurgar não só os idiomas locais, mas to-
autoridades tradicionais (baseadas na linhagem,
dos os particularismos culturais. Isto resultou na
idade e gênero), e a relação recursiva entre a
desvalorização das “formas populares de falar”,
degenerescência de unidades sociais tradicionais,
influenciadas pela classe e pela etnicidade, e dos
a deflagração da competição individual e a distorção
estilos de vida a elas associados, através das san-
das estratégias sociais13. Na acepção primeira de
ções negativas do sistema de educação e do mer-
Bourdieu, “choque de civilizações” significava a
cado de trabalho nacionalizados, ampliadas por um
confrontação entre dois sistemas sociais fecha-
sentimento generalizado de indignidade cultural na
província (que Bourdieu sentiu intensamente en-
diferente perante situações muito similares, conferindo um quanto bearnês transplantado em Paris durante os
sentido vivido muito diverso a comportamentos idênticos seus tempos de estudante)15.
identicamente impostos pela situação objetiva”
(BOURDIEU & SAYAD, 1964, p. 110). Mas, nos dois
casos, é o Estado francês que determina “uma aceleração
patológica da mudança cultural” através do seu 14 “O sistema colonial é um sistema cujas lógica e neces-
“intervencionismo colonial”. Travail et travailleurs en sidade interna têm de ser imperativamente captadas. Às
Algérie termina igualmente com um “quadro de classes so- transformações inevitavelmente resultantes do contato en-
ciais” que realça a diferenciação do “sistema de modelos de tre duas civilizações, a colonização acrescenta as convul-
conduta” (BOURDIEU et alii, 1963, p. 382-389) próprio sões provocadas deliberada e metodicamente, de forma a
das quatro principais classes da sociedade argelina no limi- assegurar a autoridade do poder dominante e os interesses
ar da independência. econômicos dos seus compatriotas” (BOURDIEU, 1962
13 A segunda seção do artigo de 1962, Célibat et condition [1958], p. 106).
paysanne, intitula-se “Contradictions internes et anomie” 15 “Visível em todas as áreas da prática (esporte, canto,
(BOURDIEU, 2002, p. 55-85). É evocativo, no tom e na vestuário, moradia etc.), o processo de unificação da pro-
composição, do segundo capítulo de Le déracinement, que dução e circulação de bens econômicos e culturais veicula a
compara o impacto diferencial da penetração colonial em obsolescência gradual do modo inicial de produção do
“duas histórias, duas sociedades”, as das tribos das monta- habitus e dos seus produtos”. Bourdieu (1991 [1982], p.
nhas do Collo e do vale Chélif na Cabília. 50) menciona aqui, especificamente, “o descrédito dos ‘va-
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As análises de “O camponês e seu corpo” com a ecologia e morfologia sociais das suas co-
(BOURDIEU, 2004c) e “O camponês e a foto- munidades, a expropriação radical dos campone-
grafia” (BOURDIEU & BOURDIEU, 2004 ses das suas formas de produção simbólica os
[1965]), no Béarn, podem ser lidas como varia- prende a uma “identidade fundamentalmente
ções empíricas transmediterrâneas sobre os (e heterônoma” que os transforma em “classe obje-
variantes estruturais dos) temas da honra, moral to” prototípica. Ou seja, uma ‘classe-para-outros’,
e solidariedade que atravessam os clássicos en- obrigada “a formar a sua própria subjetividade”
saios de Bourdieu sobre a cultura cabila (1964; através “do olhar e do julgamento de estranhos”
1965; 1970). Ambos sublinham o enraizamento (BOURDIEU, 1977b, p. 4-5; 2002, p. 249-259),
social e os efeitos das categorias de julgamento, em vez de um mero agregado de famílias materi-
assim como a imbricação da ética e da estética na almente isoladas tal como aparecem no proverbial
vida quotidiana. Ambos realçam o papel da vergo- “saco de batatas” de Marx.
nha, essa emoção auto-destrutiva que surge quan-
A sociedade rural do sudoeste francês onde
do os dominados começam a observar a si pró-
nasceu Bourdieu revela-se não menos atingida pela
prios através dos olhos dos dominantes, ou seja,
ambivalência e oscilação entre sistemas antagôni-
quando são forçados a vivenciar os seus próprios
cos de valores do que as aldeias desertas e os
modos de pensar, de sentir e de se comportar como
bairros de lata superlotados de uma Argélia de-
degradados e degradantes.
vastada pela guerra. Bourdieu chega a usar o mes-
O juízo que o camponês faz sobre si próprio não é mo neologismo conceitual de “camponeses
menos ambivalente do que o que ele reserva para descamponeisados” e de “camponeses
o morador da cidade e para o funcionário público. encamponeisados” [“dispeasanted peasants” and
O orgulho de si, ligado ao desprezo pelo morador “empeasanted peasants”] – uma construção ana-
da cidade, coexiste dentro dele, senão com a ver- lítica derivada da noção popular do Béarn de
gonha de si, pelo menos com uma aguda consci- “paysanas empaysannit” (BOURDIEU, 1962b;
ência das suas deficiências e de seus limites. Se 2002, p. 53) – para caracterizar duas categorias
tomam o morador da cidade como alvo de ironia divergentes de agentes privados de ou patologica-
sempre que podem, isto é, quando estão num gran-
mente entrincheirados em formas culturais tradi-
de grupo, ficam embaraçados, incomodados e res-
cionais, tanto na distante colônia como na sua terra
peitosos quando se encontram com eles face a
natal17. E atribui à ciência social a mesma missão
face. Não será significativo que as piadas mais
apreciadas tenham como tema a falta de jeito e as
em ambos os projetos de investigação e nos dois
coisas ridículas do camponês e, sobretudo, do lugares. Na introdução da Parte 2 de Travail et
camponês entre os moradores da cidade? travailleurs en Algérie, Bourdieu faz uma defesa
(BOURDIEU, 1962b; 2002, p. 105-106). enérgica do trabalho de campo no contexto colo-
nial: “O que podemos exigir com rigor do antro-
A decrescente coesão da sociedade local de- pólogo é que ele se esforce ao máximo para resti-
termina e ao mesmo tempo exprime, no nível co- tuir às outras pessoas o sentido dos seus com-
letivo, a cisão da subjetividade camponesa. Essa
última explica, por exemplo, que embora sejam
largamente predominantes em termos de realidades sociais” pelo trator da guerra colonial: “Não
demográficos, os agricultores e trabalhadores agrí- existe ninguém que não esteja consciente de que um verda-
colas do Béarn elejam sempre para posições lo- deiro abismo separa a sociedade argelina do seu passado e
cais de autoridade médicos, professores, funcio- que um movimento irreversível foi feito. O que interessa
nários da cidade e grandes proprietários que pos- não é tanto a ruptura, mas o sentido de ruptura. Este deter-
mina uma suspensão e um questionar dos valores que cos-
suem exatamente as espécies de capital que lhes
tumavam dar à existência um significado. A experiência de
falta. A consciência encoberta sobre essa falta du- uma vida em suspensão, sempre ameaçada, faz com que
plica-a e aumenta o seu impacto16. Juntamente [os camponeses] se agarrem em vão às tradições e crenças
até então tidas como sagradas” (BOURDIEU, 1961, p. 38-
39).
lores camponeses’, levando ao colapso do valor do campo- 17 Sobre a revelação paradoxal da “camponesidade” atra-
nês” no espaço local da aldeia e, por isso, ao celibato força-
vés da “descamponeização” [“peasantness” by
do.
“dispeasantization”] nesses dois locais, comparar Bourdieu,
16 O mesmo mecanismo de separação entre estruturas 1962b; 2002, p. 53-54, 65-66, 78, 100-102, 107-108 com
sociais e mentais está em ação na Argélia com a “destruição Bourdieu & Sayad, 1964, p. 85-93, p. 165-168.
19
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No entanto, o seu regresso ao mundo de origem 259), bem distintos das celebrações programáticas
não se baseia na mera justaposição transcultural do “grande potencial do imaginário da pesquisa
de realidades estrangeiras e domésticas, como nos multi-situada” (MARCUS, 1998, p. 20; sem grifos
trabalhos clássicos da escola do culturalismo de no original), que podem apelar a uma colagem pre-
meados do século20, ou na tranqüilizante separa- cipitada de esboços baseados em diários de via-
ção das problemáticas (pós-)coloniais e metropo- gens mais do que em diários de campo, em apon-
litanas que têm caracterizado recentemente os “se- tamentos feitos às pressas, em vez de observa-
gundos projetos” dos acadêmicos que regressa- ções sistemáticas em primeira mão.
ram às suas sociedades nacionais por “indisfarçada
paixão, identificação ou alguma clara ligação pes- Quando estava na Cabília, desconfiava dos ve-
soal” (MARCUS, 1998, p. 239). Em vez disso, lhos cabilas, ao mesmo tempo que os admirava
ele se assenta na forte ligação e questionamento muito [risos], e pensava comigo mesmo: ‘Mas,
mútuo feito no momento mesmo da produção e o que ele está dizendo, este homem de idade,
com o seu bigode, sobre honra?’ quando os
interpretação dos dados do campo: Bourdieu le-
outros me diziam: ‘Sabe, ele está te contando
vou a cabo, conjuntamente, a sua observação ini- esta história, mas quando conseguimos dar um
cial da Argélia e do Béarn durante 1959-1961; tra- jeito nas coisas, damos mesmo. Qualquer regra
balhou sobre os materiais daí resultantes simulta- tem a sua saída (tabburt)’. E eu pensava comi-
neamente ao longo da década de sessenta; e rees- go mesmo: se fosse um velho camponês do
creveu-os conjuntamente, de forma a chegar à Béarn que estivesse contando esta história, que
primeira apresentação madura do seu trabalho te- faria eu dela? Levaria uma parte e deixaria ou-
órico, Le sens pratique (BOURDIEU, 1990 tra. Depois pensei comigo: estou usando estes
[1980], p. 145-199). camponeses do Béarn como um instrumento
de controle dos Cabilas, mas preciso controlar
Utilizando, assim, os mesmos instrumentos de
o meu instrumento de controle. Assim, realizei
observação e perseguindo questões da mesma um estudo sobre o Béarn durante o mesmo pe-
natureza em duas comunidades separadas por gran- ríodo. Sayad estava lá. À noite trabalhávamos
des diferenças culturais e de poder, Bourdieu pode em Le déracinement e, durante o dia, saíamos e
ser encarado como um precursor ímpar da fazíamos entrevistas nas aldeias do Béarn. A
etnografia “multi-situada” [“multi-sited” idéia era estudar o Béarn, mas também ser ca-
ethnography], décadas antes desta ser identificada paz de fazer uma comparação entre o Béarn e a
como um gênero metodológico distinto. Mas a Argélia e, especialmente, estudar-me a mim
sua concepção e prática da “multi-sidedness” di- mesmo, os meus preconceitos e os meus pres-
fere decididamente da orientação profissional con- supostos [...]. Foi a mesma coisa com o Homo
academicus, no qual estudei a Universidade,
temporânea que conduz um trabalho de campo
mas também estudei a mim próprio, já que sou
que tem em conta pessoas e símbolos ultrapas- produto da Universidade (BOURDIEU in
sando lugares e fronteiras, que estabelece cone- ADNANI & YACINE, 2002, p. 240).
xões ao longo de vastas escalas geográficas e
institucionais e que descreve fenômenos Em seguida, Bourdieu regressa à sua comuni-
transnacionais ou supostamente globais (para uma dade de infância nos Pirineus como “segundo lo-
visão mais ampla da questão, v. HANNERZ, 1998; cal” da sua etnografia sobre a estrutura e o senti-
FISHER, 1999; GILLE & Ó RIAIN, 2002). Para mento sociais, para elucidar o conhecimento táci-
começar, Bourdieu pratica uma etnografia multi- to (folk) da vida rural que ele percebeu estar in-
situada, solidamente fundamentada no trabalho de troduzindo na sua análise da Cabília. (BOURDIEU,
campo nos dois locais, e alimentada pela transfe- 2000b). A viagem para casa procura tornar explí-
rência metódica de esquemas conceituais e resul- citas as comparações implícitas que o etno-soci-
tados empíricos de um para o outro (v., especial- ólogo, em formação, estabelecia entre o seu meio
mente, BOURDIEU, 1966; 2002, p. 9-14, p. 257- originário e o campesinato argelino ao tentar dar
sentido aos problemas deste último. O princípio
de seleção aqui não é o da ligação entre os locais,
20 As afirmações e a carreira de Hortense Powdermaker
inscrita no objeto em si mesmo, mas sim o da
ligação de cada local com o investigador: o Béarn
(1966), levando-a da Nova Guiné ao Mississipi, e de
Hollywood à Rodésia, proporcionam uma imagem é o local em que Bourdieu melhor pode submeter
paradigmática dessa abordagem. ao escrutínio etnográfico e, desse modo, trazer à
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etnógrafo sem, para isso, reduzir a etnografia à nição de objetivação do seu professor Georges
evocação entusiástica da subjetividade e, a partir Canguilhem como “um trabalho incessante de des-
daí, trocar teoria social por poesia (BEHAR, 2003). subjetivação”23. E isso oferece uma justificação
De fato, a “objetivação participante” que Bourdieu experimental da visão de Bourdieu segundo a qual
procurou alcançar e exemplificar na sua etnografia
conhece-se melhor o mundo à medida que melhor
trans-mediterrânea, que liga a longínqua colônia à conhecemos a nós mesmos, que o conhecimento
terra natal, procura não enfraquecer, mas sim for- científico e o conhecimento de nós mesmos e da
talecer os fundamentos científicos do trabalho de nossa própria inconsciência social avançam de
campo: mãos dadas, e que a experiência primária trans-
Não se tem de escolher entre observação partici- formada em e através da prática científica modifi-
pante, uma imersão necessariamente ficcional num ca a prática científica e reciprocamente
meio estranho, e o objetivismo da “contemplação (BOURDIEU, 2003a, p. 289).
à distância” de um observador que permanece Em terceiro lugar, ao reexaminar a relação de
tão distante de si próprio como do seu objeto. A consangüinidade, gênero e classe, não apenas no
objetivação participante encarrega-se de explo- outro lado do Mediterrâneo, mas na mesma co-
rar não a “experiência vivida” do sujeito do co-
munidade aldeã, com intervalos de dez e trinta
nhecimento, mas sim as condições sociais de pos-
anos, Bourdieu (2002) concretiza uma “revisitação
sibilidade – e, dessa forma, os efeitos e limites –
reconstrutiva” rara, enriquecida por uma “atuali-
dessa experiência e, mais precisamente, do pró-
prio ato de objetivação. Visa objetivar a relação
zação etnográfica”, na qual o pesquisador de cam-
subjetiva com o próprio objeto, o que, longe de po regressa a um local já estudado para rever uma
levar a um subjetivismo relativista e mais ou me- teoria que inicialmente lá desenvolvida
nos anticientífico, é uma das condições da objeti- (BURAWOY, 2003, p. 653, 646). Essa revisitação
vidade científica genuína (BOURDIEU, 2003a, p. é duplamente rara, já que, diferentemente da re-
282). construção histórica feita por Oscar Lewis, da
Tepoztlán de Redfield, da reavaliação feminista de
Antropologizar nosso próprio mundo, ou seja, Annette Weiner sobre os Argonautas do Pacífico
a sucessão de matrizes sociais de que provimos, Ocidental de Malinowski, ou da reproblematização
como Bourdieu procurou fazer através dos estu- marxista de Michael Burawoy sobre a abordagem
dos da aldeia da sua infância, o sistema de ensino feita por Donald Roy da exploração fabril na pers-
superior que o moldou e o próprio cosmos inte- pectiva das relações humanas, Bourdieu recons-
lectual do qual se tornou protagonista central, trói, na sua aldeia de Lasseube, não as visões de
embora relutante, é a aplicação concreta da defi- um ilustre predecessor ou de um rival intelectual,
mas sim a sua própria teoria da prática. Ao
social que existe antes dele, que ele não criou, que ele tem (re)produzir duas vezes o mesmo objeto segundo
de aceitar mesmo que a desaprove ou se esforce para dela um conjunto de princípios mais condensados e
se libertar, e da qual se beneficia, mesmo no seu ofício gerais de cada vez, ele proporciona ao leitor uma
como antropólogo, já que a relação entre o etnógrafo e o janela excepcional para a fruição do seu modo de
informante, como qualquer relação interpessoal, é
pensar: uma oportunidade para registrar a emer-
estabelecida sobre o pano de fundo da relação de domina-
ção objetiva estabelecida entre a sociedade colonizadora e a gência e os efeitos da utilização de seu aparelho
sociedade colonizada.” Ou ainda: “A experiência de um conceitual específico; um pano de fundo concre-
estudo no campo conduzido no auge da crise da sociedade to contra o qual diferenciar o “núcleo duro” do
colonial põe em causa os discursos normativos e uma seu programa de investigação do respectivo
casuística abstrata. Porque o sistema colonial é o contexto “cinturão protetor”; e um referencial empírico para
de todas as ações, as relações entre as pessoas têm sempre
como pano de fundo a hostilidade que separa os grupos e
que constantemente ameaça ressurgir e alterar o sentido e a
própria experiência de comunicação” (BOURDIEU et alii, 23 A possibilidade e os proveitos de uma etnografia do
1963, p. 258, 264; sem grifos no original). Esta é uma endótico [“endotic” – por oposição a “exótico” – N. T.]
ameaça que Bourdieu procurou conter, ao planejar cautelo- como um recurso para o auto-controle científico é demons-
samente [a composição das] equipes de campo (que mistu- trado em e por Homo academicus (BOURDIEU, 1988
ravam entrevistadores europeus e argelinos bem como ho- [1984]) e o seu preâmbulo prático, Leçon sur la leçon,
mens e mulheres), a redação dos questionários, a seleção concebido e levado a cabo como uma “experiência crítica”
dos locais e situações de observação etc. Ver também [breaching experiment] à la Garfinkel (BOURDIEU, 1994
Bourdieu, 2004b, p. 424. [1982]).
23
SEGUINDO PIERRE BOURDIEU NO CAMPO
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 13-29 JUN. 2006
tórias, testemunharei sobre tudo o que têm passa- evidenciado na fotografia exposta na capa fran-
do” (BOURDIEU, 2003b, p. 28). Numa socieda- cesa de Algérie 60 (cujo subtítulo é “Structures
de marcada por divisões litigiosas de casta, re- économiques et structures temporelles”), que
gressar a uma aldeia de montanha ou às ruas de mostra um trabalhador anônimo argelino de Blida,
uma favela para entregar aos moradores fotogra- sentado na caixa de um velho caminhão com o
fias lá tiradas uns dias antes, era uma forma de seu traje e penteado tradicionais, segurando a cara
firmar contatos, estabelecer relações de confian- com a mão e olhando para baixo com preocupa-
ça e, eventualmente, ganhar direito de entrada [na ção. A fotografia concentra, num espaço visual
comunidade]. restrito, o período de tempo da crise colonial, e
cria uma sensação persistente de movimento in-
A fotografia desempenhava uma tripla função
terrompido e de desalento ao colocar o corpo ar-
no trabalho de campo de Bourdieu. Primeiro, ope-
queado e parcialmente escondido do trabalhador
rava como uma técnica eficiente de gravação e
entre o veículo, em primeiro plano, e o tranqüilo
armazenamento, que lhe permitia captar e guar-
fundo de uma rua bem arranjada onde está estaci-
dar grandes quantidades de informação em situa-
onado um carro moderno (o Dauphine do pró-
ções de tensão social e de risco temporário, onde
prio Bourdieu).
era simplesmente impossível demorar muito tem-
po e levar a cabo uma observação minuciosa. Por último mas não menos importante, a foto-
Muitas regiões da Argélia eram oficialmente grafia ancorava e facilitava o trabalho emocional
marcadas como “zonas proibidas”, onde só se en- necessário para levar a cabo a observação em pri-
trava correndo o risco de ser morto pelo exército meira-mão nas circunstâncias extremas de um
francês ou pelos rebeldes nacionalistas, e onde a conflito militar que contagiava todos os recantos
presença física era sempre frágil e problemática. da vida colonial. Ajudou Bourdieu a lidar com “o
Relações interpessoais nos bairros pobres urba- estado de exaltação afetiva” com que conduziu o
nos eram igualmente marcadas pela desconfiança seu trabalho de campo adotando uma postura ob-
e pelo perigo, devido à espionagem feita por in- jetiva de distanciamento, não sem expressar o seu
formantes da polícia e funcionários do governo, respeito pessoal e mantendo uma proximidade com
às incursões militares periódicas (e à tortura), aos os observados:
bombardeios intermitentes, de tal modo que até
Estava verdadeiramente perturbado, muito sen-
tirar notas era suscetível de levantar suspeitas até sibilizado com o sofrimento de todas aquelas pes-
que se fornecesse garantias que se estava ali de soas e, ao mesmo tempo, existia certa distância
boa-fé27. do observador, manifestada pelo fato de tirar fo-
Em segundo lugar, a fotografia servia para in- tografias. Pensei em tudo isso quando li Germaine
tensificar o olhar do sociólogo e para aguçar a sua Tillion, a etnóloga que trabalhou em Aurès, outra
sensibilidade para a dissonância e a discrepância região da Argélia, e que conta, no seu livro
que devastavam todos os setores da sociedade Ravensbruck (TILLION, 1975 [1946]), como via
pessoas morrerem no campo de concentração,
argelina durante esta turbulenta década. Isto é par-
fazendo ela uma marca sempre que havia uma
ticularmente visível na série de fotografias que
morte. Ela estava fazendo o seu trabalho como
Bourdieu tirou, em Argel e Blida (uma cidade co-
uma etnógrafa profissional e disse que isso a aju-
mercial situada a cinqüenta quilômetros para su- dava a agüentar a situação. E eu pensava nisso,
deste), da chocante chegada do vestuário Fran- dizia a mim mesmo que era um tipo estranho: ali
co-Europeu e Argelino-Árabe, dos sinais rodoviá- estava eu, nesta aldeia, debaixo de uma oliveira.
rios, comércio e objetos do quotidiano, e que ele [...] As pessoas começavam a falar, ‘Eu tinha isto,
selecionou pessoalmente da sua coleção tinha aquilo, eu tinha dez cabras, tinha três ove-
(BOURDIEU, 2003b, p. 176-202)28. É o que está lhas’, enumeravam todos os bens que tinham
25
SEGUINDO PIERRE BOURDIEU NO CAMPO
perdido e ali estava eu com mais três, tirava notas universo familiar e até familial, aponta para a úni-
sobre tudo o que podia. Registrava o desastre e, ca propriedade que explica a posição especial que
ao mesmo tempo, com uma espécie de o trabalho de campo ocupa na prática científica
irresponsabilidade – que é realmente de Bourdieu: é um potente instrumento de auto-
irresponsabilidade escolástica, percebi isto retros- conhecimento através do conhecimento íntimo do
pectivamente – tinha em mente estudar tudo isso, outro e, por isso, um meio para a auto-aceitação.
com as técnicas ao meu dispor. Estava constan- Ao revelar a necessidade social instalada no cora-
temente dizendo a mim mesmo: ‘Meu pobre ção das mais inefáveis maneiras de ser e de se
Bourdieu, com as tristes ferramentas que você
comportar, a ciência social em geral, e a etnografia
tem, não estará à altura da tarefa, precisaria co-
em particular, podem ajudar a adquirir esta cons-
nhecer tudo, entender de tudo, psicanálise, eco-
ciência do mundo e de si em sua rede completa de
nomia’ [...]. Era dramático, mas não da forma como
as pessoas diziam que era. E eu observei isso
determinações, que abre em direção a uma espé-
tudo, que era tão complicado, tão acima dos meus cie de sabedoria espinozista (acquiesentia)30 . Esta
meios! Quando estavam me contando suas his- virtude irradia no melancólico elogio de Bourdieu
tórias, por vezes demorava dois ou três dias até a Mouloud Mammeri, o poeta e “antropólogo
entendê-las, para desvendar os nomes complica- insider” que era seu amigo, informante e colega
dos de locais ou tribos, imaginar as perdas de do outro lado do Mediterrâneo (sob muitos as-
gado e de bens. Estava submerso e, por isso, tudo pectos, o seu alter-ego cabila):
servia para sentir, e a fotografia era isso: uma for- Não queria reduzir a um dos seus aspectos ape-
ma de tentar absorver o choque de uma realidade nas uma oeuvre que é fundamentalmente plural,
esmagadora (BOURDIEU, 2003b, p. 29-31) multifacetada, e ninguém está mais preocupado
Quer fosse fotográfico ou manuscrito, apoia- do que eu em protegê-la de todas as tentativas de
do em notas rabiscadas, instantâneos ou texto apropriação de que vai ser alvo. Contudo, acredi-
impresso, o frenético registro etnográfico era para to que a conversão pessoal que Mouloud
o jovem Bourdieu um componente essencial de Mammeri teve que fazer para voltar a encontrar a
um mecanismo cognitivo-emocional de adapta- “colina esquecida”, para regressar ao mundo na-
ção [coping]: uma forma de absorver a “realidade tivo, é sem dúvida aquilo que ele queria acima de
tudo, para partilhar com todos, não apenas com
tão urgente, tão opressiva” que constantemente
os seus concidadãos, os seus irmãos e irmãs na
ameaçava esmagar o etno-sociólogo iniciante (idem,
repressão, na alienação cultural, mas também com
p. 32) 29. Pelo prisma fotográfico, percebe-se
aqueles que, sujeitos a toda e qualquer forma de
melhor como o projeto de uma ciência total da dominação simbólica, estão condenados a esta
sociedade, capaz de abranger todos os aspectos suprema forma de usurpação, que é a vergonha
da realidade, visíveis e invisíveis, incorporada e de si (BOURDIEU, 2004 [1998]).
objetivada, e de expor as causas e as razões soci-
ais para o seu curso desregulado, não tinha ape- É impressionante que baste substituir Bourdieu
nas sentido intelectual. Cruzou-se com uma ne- por Mammeri e não alterar qualquer outra palavra
cessidade existencial vital e canalizou os impetuo- nesta meditação sobre “A odisséia da
sos anseios cívicos de Bourdieu, dando-lhe uma reapropriação” para fazer que ela encerre a pró-
tarefa concreta e uma missão premente em que pria viagem sociológica de Bourdieu de ida e volta
se pudesse envolver. à cultura e à sociedade do seu Béarn natal.
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 13-29 JUN. 2006
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SEGUINDO PIERRE BOURDIEU NO CAMPO
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 13-29 JUN. 2006
29
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 133-135 JUN. 2006
ABSTRACTS
133
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 139-141 JUN. 2006
RÉSUMÉS
139