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Sermão de Santo António, de Padre António Vieira

O sermão:

Constitui uma forma de oratória (arte de bem falar/ discursar em público)

Contextualização histórico-literária

O Padre António Vieira nasceu em Lisboa, em 1608 e faleceu na Bahia – Brasil,


em 1697. Viveu no período barroco português, caracterizado pelo excesso, pela
transformação da realidade, pela retórica, pelo sensorialismo e pela teatralidade.
O orador proferiu O Sermão de Santo António na cidade de São Luís do
Maranhão, em 1654, na sequência de uma disputa com os colonos portugueses
no Brasil.

Objetivos da eloquência: docere, delectare, movere

Este Sermão foi assim denominado por ter sido pregado no dia em que se
celebrava Santo António e pelo facto de o pregador se referir a este Santo como
modelo na sua pregação. Assim, o Padre António Vieira, à imitação de Santo
António que pregou aos peixes em Itália, pregou, alegoricamente, aos peixes/
homens em São Luís do Maranhão, fazendo considerações sobre as virtudes e os
vícios humanos, com o objetivo de alertar e educar o seu auditório para uma
mudança de comportamento. Este serviu-se do púlpito, não só para catequizar
os ouvintes mas também para tratar de assuntos sociais e políticos.
Cumprindo as funções da oratória (arte de bem falar em público), Vieira tinha
como objetivo:
 docere (educar / ensinar): usando argumentos de autoridade (da doutrina
cristã, de autores e obras clássicas), o pregador pretendeu transmitir
ensinamentos;
 delectare (agradar): o orador queria que os homens ouvissem o seu
sermão com prazer e para isso usou variadíssimos recursos estilísticos a
fim de prender a atenção do público, nomeadamente a antítese, a
interjeição, a metáfora, a comparação, o trocadilho, a enumeração e a
alegoria;
 movere (persuadir): com a intenção de levar os homens a mudar de
comportamento, o pregador profere um discurso apelativo com recurso à
apóstrofe, à interrogação retórica e às frases imperativas e exclamativas.
Intenção persuasiva e exemplaridade

O Sermão de Santo António é um longo discurso argumentativo, criado com a


finalidade de ser pregado.
A partir das propriedades do Sal (conservar o são e preservar da corrupção) e
características da pregação de Santo António (louvar o bem e repreender o mal),
o Sermão de Vieira assume uma dupla finalidade: louvar as virtudes e repreender
os vícios humanos.
Começando por referir as qualidades dos peixes, o pregador retira duas
conclusões: os peixes são melhores que os homens e, para evitar a maldade,
aqueles devem manter-se afastados dos homens. De forma semelhante, Santo
António, para se aproximar de Deus, afastou-se dos homens.
Pelo contrário, os vícios em geral, dos peixes, que se comem uns aos outros e em
que os grandes comem os pequenos, servem de pretexto para uma crítica e
exploração dos poderosos sobre os mais humildes. Além disso, os defeitos, em
particular, de certos peixes estão a serviço da denúncia dos vícios humanos. É o
caso do:
 Roncador - arrogância;
 Pegador - oportunismo;
 Voador - ambição desmedida e a vaidade;
 Polvo - hipocrisia e a traição.

Visão global do sermão e estrutura argumentativa

Segundo a retórica clássica, a estrutura do texto argumentativo organiza-se de


acordo com as seguintes partes:
 Exórdio – apresentação sumária da matéria que vai ser apresentada e
captação da atenção do auditório (introdução);
 Exposição e Confirmação – apresentação dos factos e defesa da tese com
argumentos e exemplos (desenvolvimento);
 Peroração – síntese do que foi dito e apelo à adesão dos ouvintes
(conclusão)
Capítulo I (exórdio)
Inicia-se com o conceito predicável – Vos estis sal terrae (= Vós sois o sal da terra).
A partir deste conceito (metáfora), e tendo como modelo Santo António (Santo
António foi sal da terra e foi sal do mar), o Padre António Vieira vai desenvolver
o seu sermão, provando que a «terra» está corrupta, mas que o mal não está só
do lado dos pregadores, pois os seres humanos também têm culpa.

Capítulo II (exposição e confirmação)


Procede-se aos louvores aos peixes, em geral. Começa pela referencia às
propriedades do sal que deve conservar o são e preservar a corrupção. De
seguida, a indicação das virtudes dos peixes:
 Ouvem e não falam;
 Vós fostes os primeiros que Deus criou;
 E nas provisões (...) os primeiros e os maiores;
 Aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de
vosso Criador e Senhor;
 Aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus
da boca do seu servo António;
 (...) Os homens perseguindo a António (...) e no mesmo tempo os peixes
(...) acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando
com silêncio (...) o que não entendiam;
 Só eles entre todos os animais se não domam nem domesticam
Estas virtudes dos peixes são, por contraste, a metáfora dos defeitos humanos e
os defeitos dos peixes o pretexto para criticar os vícios morais e sociais dos
homens.

Capítulo III (exposição e confirmação)


É consagrado aos louvores aos peixes em particular.
Em primeiro lugar, o Santo Peixe Tobias em que o seu fiel sara a cegueira e o seu
coração lança fora os demónios. Também Santo António, com as suas palavras
amargas, cura a cegueira dos homens e, com o seu bondoso coração, expulsa o
Demónio – encarnação do mal – da alma dos homens. Deste modo, critica-se a
heresia e a ausência da conversão por parte dos homens.
Em seguida, a Rémora, um peixe tão pequeno no corpo e tão grande na força e
no poder:
 (...) se se pega ao leme de uma nova nau da Índia (...) a prende e amarra
mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante.
De igual modo, a língua de Santo António, que é rémora, impede a destruição
das naus da Soberba, da Vingança, da Cobiça e da Sensualidade, evitando assim,
a perdição de muitos homens presunçosos, vingativos e ambiciosos. Santo
António evitou que muitos deles se desviassem ou, então, que recuperassem o
bom caminho. Critica-se, neste peixe, a fraqueza humana e a ausência da força
de vontade.
Posteriormente, o Torpedo que emite pequenas descargas elétricas que fazem
tremer o braço do pescador:
 Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a
água, e em lhe picado na isca o torpedo, começa-lhe a tremer o braço. Pode
haver maior, mais breve e mais admirável efeito?
Conclui que, na terra, também deveria haver muitos torpedos que despertassem as
consciências humanas, principalmente daqueles que exploram os mais fracos. Vieira
tinha como objetivo atingir os colonos que escravizavam os ameríndios. Critica-se,
assim, a exploração do próximo, a corrupção e a ambição desmedida.

E, por fim, os peixes Quatro-Olhos, pois:


 Como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as
sentinelas e deu-lhes dois olhos, que diretamente olhassem para cima,
para se vigiarem das aves, e outros dois que diretamente olhassem para
baixo, para se vigiarem dos peixes.
Também os homens deveriam ter quatro olhos: dois para olharem para o Céu
(Bem) e outro dois para olharem para o Inferno (Mal), uma vez que, só tendo
consciência do Mal que fazem, escolheriam o cominho do Bem. Desta forma,
critica-se a vaidade humana.

Capítulo IV (exposição e confirmação)


São feitas as representações aos peixes em geral.
Os defeitos dos peixes são vários:
 (...) é que vós comedes uns aos outros;
 Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os
pequenos.
Os peixes são ignorantes e cegos, pois facilmente se deixam enganar pela isca do
anzol. Também a vaidade, a ganância, a ambição, o desejo de poder e de ter cada
vez mais tiram a lucidez às pessoas, que se deixam enganar pelo materialismo, Os
mais poderosos «comem» (exploram) os mais pequenos, os mais desprotegidos
(os ameríndios). Neste capítulo critica-se a maldade dos homens na exploração
que fazem uns aos outros.

Capítulo V (exposição e confirmação)


Procede-se às repreensões aos peixes em particular.
Inicia-se com os Roncadores. Embora tão pequenos, roncam muito, daí que
representem a arrogância e a soberba dos homens.
 É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser os
roncas do mar?
 Critica-se a arrogância e a soberba.
Em seguida, os Pegadores, sendo pequenos, pegam-se aos maiores, não os
largando mais, razão por que simbolizam o parasitismo, a vivência à custa dos
outros:

 Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade,


porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas tal sorte
se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram.
 Critica-se o parasitismo e o oportunismo.
Os Voadores, apesar de serem peixes, também se metem a ser aves. Por isso,
simbolizam a presunção, a vaidade e a ambição:
 Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis
a ser aves? (...) Contentai-vos com o mar e com o nadar, e não queirais
voar, pois sois peixes.
 É criticada a ambição, a vaidade e o capricho dos homens.
Por fim, na figura do Polvo, com a sua aparência de santo, identifica-se com o
maior traidor do mar. Simboliza, pois a traição:
 E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...)
o dito polvo é o maior traidor do mar.
 Critica-se a falsa aparência dos homens, a traição e a hipocrisia.
Capítulo VI (peroração)
Neste último capítulo o Padre António Vieira conclui o sermão contando aos
peixes as razões para louvarem Deus. Começa por mostrar que os peixes devem
pedir a Deus por não serem escolhidos para os sacrifícios, pois os outros animais
podem chegar vivos e eles já chegam mortos. Mesmo alguns homens também já
chegam mortos ao altar, pois já vão em pecado mortal. Depois acaba por mostrar
que têm inveja dos peixes, pois os homens tomam Deus indignamente, os
homens ofendem Deus com as palavras, com a memória, com o pensamento e
com a vontade e os homens não cumprem o fim para que foram criados.
Enquanto os peixes não ofendem Deus e atingem o fim para que foram criados.
O orador conclui que os peixes podem sentir orgulho e satisfação e os homens
devem sentir culpa e vergonha.
Animais terrestes – sacrificam – sangue; vida
Peixes – sacrificam – respeito; reverência

Crítica social e alegoria

Em suma, o Sermão é uma sátira social em que o Padre António Vieira tece duras
críticas à exploração e à ganância humana, particularmente aquela que é exercida
pelos colonos sobre os índios. Por outro lado, o Sermão é uma longa alegoria (em
que se apresentam ideias através de imagens ou figuras concretas), funcionando
os peixes como uma metáfora dos homens. Deste modo, as virtudes dos peixes
são pretexto para denunciar os vícios humanos, da mesma forma que os defeitos
dos seres marinhos são motivo para criticar os defeitos morais e sociais dos
homens.
Contudo, pode-se afirmar que o Sermão aborda um assunto intemporal na
medida em que os homens procuram constantemente a ascensão social, ainda
que de forma imprópria, revelando atitudes normalmente condenáveis.
Linguagem e estilo

A fim de prender a atenção dos seus ouvintes e transmitir adequadamente a


mensagem, é natural que o orador tivesse recorrido a uma série de artifícios de
linguagem.
Alguns dos recursos estilísticos usados pelo pregador para cativar o auditório:
 Alegoria – é todo o sermão, na medida em que os defeitos dos peixes
personificam a maldade humana;
 Comparação – é permanente entre os peixes e os homens, pois os
homens, com as suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes;
 Metáfora – presente logo no conceito predicável, em que se identificam
os pregadores com o sal da terra;
 Apóstrofe – invocação de pessoas ou algo personificado
“Olhai, peixes, lá do mar e da terra (...) ”
“Vê, voador, (...) ”
“Peixes, dai muitas graças a Deus (...)
 Enumeração - Apresentação sucessiva de vários elementos
(frequentemente da mesma classe gramatical). (...) na terra pescam as
varas (...) pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões (...)
 Anáfora - Repetição de palavra ou expressão em início da frase.
“Quantos, correndo (...) quantos, embarcados (...) Quantos, navegando
(...)”
“Louvai a Deus, (...) louvai a Deus (...)”
 Antítese - Figura que põe, lado a lado, palavras ou ideias opostas.
Exemplo: Céu/ Terra; Bem/ Mal; Céu/ Inferno

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