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Diversidade e Unificação Religiosa

no Portugal Medieval1

Terminada a reconquista do seu território, com a tomada de Silves, Alvor e


Albufeira em 1249, Portugal deixava de ter o perigo islâmico a rondar-lhe as fronteiras,
mas continuava a ser confrontado no seu interior com a mesma realidade, agora
convertida em minoria étnica-religiosa, politicamente submissa. Aos muçulmanos
acrescentam-se os judeus presentes em território peninsular desde a dominação romana
e os fermentos de dissidência e heterodoxia com que se deparou entre a tolerância e
hostilidade a unificação religiosa da cristandade medieval portuguesa.

1. Tolerância e tensões entre cristãos e mouros


A situação dos muçulmanos em terras de cristãos, agora chamados mouros ou
mudéjares, era análoga à dos cristãos sob dominação islâmica, nos campos religioso,
económico, social e político:
− Se resistiam à conquista eram mortos ou reduzidos à escravatura;
− Se negociavam a rendição, podiam gozar de proteção régia e de um estatuto
que lhes garantia a liberdade de culto e a autonomia administrativa e judicial,
mediante o pagamento de impostos.
Assim se constituíram as comunas de mouros forros em diversas cidades do sul,
sediadas em arruamentos ou bairros fechados em zonas periféricas, onde os mouros
moravam, trabalhavam e praticavam a fé islâmica, no ambiente de discriminação que
convergiu na escolha entre a conversão ou expulsão mandada por D. Manuel em 1496.

1.1. O estatuto social, administrativo e judicial dos mouros


No início da reconquista, os mouros que não conseguiram fugir foram
sistematicamente passados ao fio da espada ou reduzidos à escravatura, não resistindo,
por vezes à desumanidade do trato:
− Ordonho I (850-866) das Astúrias e Leão poupava a vida dos civis, reduzindo-os
à escravatura. Afonso III (866-910) estendeu a escravatura também aos
inimigos, exigindo resgate pela libertação.
− Fernando Magno (1035-1065) de Leão e Castela poupou a vida dos vencidos,
ocupando-os em atividades economicamente mais rentáveis ou como moeda
de troca de cativos cristãos. O mesmo se passou com Afonso VI (1072-1109) e
com os reis portugueses que só reduziam à escravatura os muçulmanos que
atacavam a dominação cristã.
Estas atitudes brotavam mais da lei geral da guerra do que de motivações
religiosas. Sabemos pela documentação da época que os escravos eram comprados,
vendidos, trocados, doados como meros animais ou objetos inanimados. Os senhores

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Este esquema sintetiza sobretudo: a parte de Ana Maria S. A. RODRIGUES no capítulo A Dinâmica da
Cristianização e o Debate Ortodoxia/Heterodoxia, in HRP, I, 35-51; Maria José FERRO TAVARES, O Difícil
Diálogo entre Judaísmo e Cristianismo, in HRP, I, 53-89; Joaquim CHORÃO LAVAJO, Islão e Cristianismo: entre a
Tolerância e a Guerra Santa, in HRP, I, 91-133.
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podiam açoitá-los, mutilá-los, apedrejá-los ou aplicar-lhes outros castigos, exceto castrá-


los ou matá-los. Se um mouro fugisse, era-lhe cortada um pé; se falsificasse moeda,
perdia uma mão; se atacasse uma igreja, era queimado à porta dela.
Para fugirem à violência, os mouros recorriam a alguns meios:
A fuga para o estrangeiro, sobretudo para o norte de África.
− O refúgio em determinados concelhos (Freixo, Covilhã, Urros) que, para
fazerem face à falta de mão de obra e às necessidades de povoamento, lhes
concediam a alforria.
− A conversão ao cristianismo, quando eram escravos de judeus.
− A carta de ingenuidade, passada pelos senhores.
− A troca com cristãos cativos em terra de mouros. O movimento de resgate e
de troca de cativos era tão intenso na Idade Média que se institucionalizou a
figura do alfaqueque, resgatador de cativos, quer da parte cristã, quer da
islâmica.
Em tempos de paz, os que se sujeitavam aos conquistadores integravam-se na
colonização, gozando de especial proteção por parte dos monarcas:
− O foral dado por Afonso VI a Santarém em 1095 mostra que os muçulmanos,
que constituíam o grosso da população, continuavam a viver na cidade, tal
como os judeus e os moçárabes, e eram protegidos pelo rei: usufruíam de
liberdade social e religiosa, continuavam na posse dos bens e podiam
ausentar-se e regressar ao país. Em troca pagavam os impostos a que antes
estavam sujeitos pelos reis muçulmanos.
− O primeiro estatuto jurídico dos mouros portugueses, hoje conhecido, foi o
foral dado em 1170 por D. Afonso Henriques (1143-1185) aos mouros libertos
de Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer do Sal:
o Direitos:
 Eram-lhes oficialmente reconhecidos os direitos à convivência
pacífica com os cristãos e judeus, a viverem de acordo com as
suas próprias leis e costumes e a continuarem na posse dos bens.
 Era-lhes reconhecido também o direito a elegerem alcaides
próprios com jurisdição administrativa e judicial, apoiados por
outros funcionários próprios como tabeliães e escrivães.
o Deveres:
 Em contrapartida, eram obrigados a pagar ao rei anualmente um
maravedi, a tratar as suas vinhas e a vender os seus figos e o seu
azeite.
 Tinham ainda que pagar a décima dos gados (alfitra) e dos frutos
da terra (azaqui ou azoque).
− Estes direitos e deveres foram depois confirmados pelo foral de D. Afonso II
(1211-1223) em 1217 e estendidos por D. Afonso III (1245-1279) aos forais
concedidos aos mouros forros de Silves, Tavira, Loulé e Faro, em 1269; aos de
Évora, em 1273; e por D. Dinis (1279-1325) aos de Moura, em 1296.
Apesar da proteção dos monarcas, nunca deixaram de se fazer ouvir,
nomeadamente nas Cortes, os protestos da comunidade maioritária, sobretudo quando
os seus membros não tinham acesso aos mesmos direitos. A fundamentação consiste na
injustiça e no escândalo provocado pelo facto de os reis privilegiarem os infiéis em
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detrimento dos cristãos. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando os representantes do
reino se queixaram, nas Cortes de Lisboa de 1439, contra o facto de os cristãos terem de
pagar a dízima ao rei e à Igreja pelos bens comprados aos mouros, enquanto estes só
eram obrigados a pagar ao rei.
Os mudéjares estavam, contudo, sujeitos a muitas medidas discriminatórias, de
modo a impedir a contaminação dos cristãos através da promiscuidade com indivíduos de
outras raças e religiões:
− Os credos muçulmano e judaico eram considerados uma epidemia de que era
necessário preservar os cristãos, mediante medidas legislativas decalcadas na
legislação eclesiástica e hispânica, que determinavam o local de habitação, o
modus vivendi e o vestuário dos judeus e mouros.
− Apesar das interdições da Igreja e da legislação civil, nomeadamente as
Ordenações Afonsinas, realizaram-se por vezes casamentos e uniões entre
membros das duas comunidades, envolvendo mesmo figuras da monarquia: D.
Afonso Henriques envolveu-se com uma moura de que teve o filho Martim
Afonso; D. Afonso III teve a filha Urraca de uma relação semelhante.
Muitos cristãos, incluindo os reis serviam-se de judeus e mouros para punirem
outros cristãos. O papa, porém, através da 1ª concordata de D. Dinis com o clero, obrigou
o rei a não utilizar os mouros e outros agentes contra a vida e segurança dos bispos e
afins. Medida análoga ficou registada na 3ª concordata, proibindo mesmo rei de se servir
de judeus e mouros para violar o direito de asilo, obrigando os cristãos a saírem das
igrejas, para os prender.
A diferenciação nos mouros relativamente à maioria cristã também teve
consequências na organização administrativa e judicial:
− Organização administrativa:
o Sempre que os mouros atingiam um número razoável, organizavam-se
em comunas ou, como lhe chamavam as Ordenações Afonsinas,
communs dos mouros. Algumas obtiveram personalidade jurídica pelos
forais atrás mencionados. Não é, porém, fácil determinar o número e a
persistência das comunas ao longo dos tempos porque, em muitos
casos, os seus membros foram-se convertendo ao cristianismo ou
aculturando de maneira que os comprovativos da personalidade jurídica
se perderam.
o Mais do que uma forma de tolerância cristã para com os muçulmanos,
as comunas eram uma forma de simplificar a burocracia administrativa.
Aliás a pertença a um desses enclaves jurisdicionais não tornava
ilimitada a liberdade de atuação, como mostra a proibição do uso da
própria língua pelos tabeliães, segundo as Ordenações Afonsinas. A
prevaricação reservava-lhes a morte ou, em caso de ignorância ou erro,
açoites e privação do ofício.
− Organização judicial:
o Os contenciosos internos da comunidade islâmica eram julgados
segundo a lei islâmica, seguindo uma prática vinda do tempo de D.
Afonso Henriques, que os confiou à jurisdição dos alcaides dos mouros.
o Ao transitarem, porém, para a alçada dos juízes cristãos, começou a
haver abusos, dado que estes teimavam em julgá-los segundo a lei
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portuguesa. Os mouros protestaram, pois, no tempo de D. Afonso IV


(1325-1357), reclamando a reposição dos direitos que tinham vigorado
no tempo de D. Dinis (1279-1235) e dos seus antecessores. A
manutenção de tais abusos fez com que Afonso V (1438-1481) se visse
obrigado a determinar novamente os julgamentos dos mouros segundo
as próprias leis.

1.2. A segregação étnico-religiosa


As comunidades étnico-religiosas judaica, cristã e muçulmana sentiam
necessidade de viverem separadas umas das outras, não apenas para realizarem os seus
ritos e prevenirem a contaminação em resultado de relações ilícitas, mas também para
prevenir desconfianças e riscos de segurança, apesar da proteção garantida nas leis.
A separação dos mouros assumia várias formas, a mais importante das quais foi a
delimitação dos seus bairros dentro da estrutura física urbana:
− As mourarias:
o De acordo com o IV concílio de Latrão (1215) e as Cortes de Elvas (1361),
os mouros eram acantonados em zonas habitacionais urbanas,
chamadas mourarias ou aljamas, situadas no arrabalde e separadas por
um muro das zonas destinadas aos cristãos. Estavam obrigados a cerrar
as portas das mourarias ao cair da noite (toque das Trindades) e a abri-
las só de manhã (toque da 1ª missa). As Cortes de Elvas determinaram a
instituição destes bairros em todas as localidades com mais de dez
mouros.
o As mourarias eram geralmente dotadas das estruturas e serviços
necessários a um aglomerado populacionais: mesquita, escola, açougue
(mercado), padarias, tendas, banhos, cemitério ou almocávar, cadeia e
albergaria.
o A legislação refletia o objetivo de não contaminação que presidia às
mourarias. D. Pedro I (1357-1367), por lei de 19 de setembro de 1366,
produziu legislação nesse sentido: enforcamento para a mulher cristã
que entrasse só na mouraria, mesmo durante o dia; morte para o mouro
ou moura que recebesse ilegalmente em sua casa uma cristã; multa para
o mouro que fosse encontrado fora da mouraria depois da hora de
recolher. A reincidência aumentava a quantia ou dava lugar a açoites.
o A dureza da lei não impediu, porém, os abusos, como mostram as
insistências legislativas seguintes, nomeadamente de D. Afonso V, que
reiterou a lei do recolher obrigatório e mandou reduzir à servidão os
mouros que se disfarçassem de cristãos para mais facilmente seduzirem
e perverterem as cristãs.
− Vestuário e sinais distintivos:
o O IV concílio de Latrão, para evitar a promiscuidade, impôs aos
muçulmanos e judeus residentes em países cristãos o uso de distintivos
e obrigou-os a não aparecerem em público durante alguns dias da
Semana Santa (cân. 68). Eram simultaneamente um sinal externo de
inferioridade religiosa e uma expressão visível da separação.
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o Em conformidade com a legislação eclesiástica, os mouros portugueses


também foram obrigados a usar vestuários específicos. A primeira lei
conhecida remonta a D. Afonso IV e obrigava os mouros a usarem um
sinal branco no barrete e o corte do cabelo à navalha.
o As determinações relativas ao vestuário dos mouros nem sempre foram
consensuais para eles e para os cristãos. Para serenar os ânimos, D.
Afonso V voltou emanar algumas determinações, cuja não observância
seria punida com a perda da roupa e 15 dias de prisão: aljubas
acompanhadas de aljubetes e mangas largas; albernozes fechados e
cozidos com escapulários; balandraus (capotes) ou capuzes com
escapulário atrás.

1.3. O estatuto económico-profissional


Aos mouros estavam normalmente confiados os ofícios mais difíceis, um indicativo
da discriminação social a que eram votados:
− A maior parte dos que ficaram, após a reconquista, continuaram ligados às
atividades anteriores, nomeadamente à vida agrícola. O seu estatuto
socioprofissional foi-se depois degradando, passando a cultivar a terra na
maior parte dos casos como arrendatários ou enfiteutas. Noutros, porém,
mantiveram a plena posse das terras. Sobressaíram particularmente no
amanho das vinhas, ao ponto de D. Afonso Henriques ter confiado em 1170
aos mouros de Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer do Sal as próprias vinhas.
− Também se dedicaram a ofícios mecânicos, tais como sapateiros, ferreiros,
oleiros, carpinteiros, tapeteiros, pedreiros, albardeiros… Para suprir a falta de
artífices, os reis outorgaram-lhes frequentemente privilégios, que iam desde a
imunidade de tributos ao estatuto de vizinhos.
− Muitos mouros dedicavam-se ao comércio fixo ou ambulante, usufruindo
frequentemente de isenção de portagem. A proibição da usura pelas leis
cristãs tornou-a normal entre os membros das outras comunidades religiosas e
também entre os mouros.
− Não raramente acederam a cargos social e economicamente elevados, tanto
dentro como fora das comunas. Assim se compreende que encontremos
alguns na própria corte, como um de nome Maomé (colaborou na tradução da
Crónica do Mouro Rasis) no tempo de D. Dinis ou o físico Alle na corte de D.
Afonso V.
Os mouros estavam habitualmente sujeitos aos impostos que pendiam sobre a
generalidade da população, acrescidos de algumas tributações específicas:
− A capitação ou alfitra, que incidia sobre todos os mouros, logo a partir do
nascimento, e consistia em seis dinheiros pagos no primeiro dia de cada ano. A
quantia aumentava a partir do momento em que tinham idade para ganhar a
vida.
− A dízima anual (azaqui) do pão, vinho, leite, legumes, figos passos, uvas, mel,
cera e crias do gado cavalar e asinino, a que estavam sujeitos todos os mouros
a partir dos 15 anos, paga à medida que se faziam as colheitas ou recebiam os
rendimentos.
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− O azaqui ou quarentena (2,5% ou 1/40), ou a respetiva percentagem em


dinheiro (se tratava de quantias baixas), das crias dos gados bovino, ovino,
caprino e dos camelos e de todos os outros bens a que estavam sujeitos os
varões com capacidade para ganhar a vida. Era pago no dia 1 de maio de cada
ano.
− A quarentena da compra e venda de bens de raiz, cabendo outro tanto ao
interlocutor no negócio.
− A dízima do trabalho, que onerava os mouros jornaleiros do sexo masculino
não sujeitos ao azaqui.
− A dízima do resgate e da alforria.
− A dízima dos bens móveis e de raiz deixados em herança, quando os herdeiros
só os reclamavam depois de inventariados pelas autoridades.
− As prestações em espécie, que recaíam sobre os que cuidavam das vinhas do
rei.
− Derramas extraordinárias.
Analisados cumulativamente e tendo em conta que incidiam sobre todas as
atividades e produtos, estes impostos tornavam-se demasiado pesados para as
populações mouriscas.
A legislação do reino isentava os mouros da obrigação de aposentadoria
relativamente aos senhores cristãos e do serviço militar. Mesmo assim houve abusos por
parte daqueles que exigiam a hospedagem nas suas casas.

1.4. A tolerância religiosa


O direito eclesiástico sempre distinguiu o estatuto dos judeus do dos muçulmanos,
enquanto os primeiros não possuíam a sua própria pátria e os segundos a possuíam,
ainda que conquistada aos cristãos e a outros povos. Assim pressupunha-se um clima de
guerra, apelidada de santa pelas suas conotações religiosas. Para os cristãos tratava-se
duma guerra justa pela reconquista dos territórios que já lhes pertenceram. Aliás o
Decreto de Graciano integra uma carta de Alexandre II aos bispos da Hispânia (1063) em
que sublinha a diferente posição de judeus e sarracenos: «Contra estes temos
legitimamente um direito de guerra porque perseguem os cristãos e os expulsam das suas
cidades e reinos». É com base nestes pressupostos que se proibia o comércio de armas
com os mouros, pois favorecia indiretamente os inimigos na guerra contra os cristãos.
Apesar desta mentalidade, os cristãos e os mudéjares viviam em contacto uns com
os outros no intervalo das guerras e estes podiam dispor de elementos essenciais à sua
vida religiosa islâmica:
− Chefes religiosos (imãs), pregadores (cátibes), teólogos (mutakalim-s), juristas
(alfaquis), sábios e doutores (ulemás).
− Mesquitas, onde realizavam o culto, e de cujos minaretes os muezins
chamavam à oração. É certo que o concílio de Vienne proibiu este costume em
terras cristãs, mas esta proibição só foi aplicada em Portugal a partir das
Cortes de Coimbra de 1396.
− Liberdade para observarem os preceitos morais islâmicos, nomeadamente a
poligamia, a interdição de carne de porco e do vinho, a observância ritual da
sexta-feira em vez do domingo, a circuncisão, o jejum no mês do Ramadão.
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Esta tolerância da religião islâmica era uma exigência da doutrina eclesiástica, que
proibia oficialmente a conversão forçada dos muçulmanos. Tal não significava que a Igreja
não se preocupasse com a conversão dos muçulmanos através da persuasão e que os reis
não os submetessem a constrangimentos tributários, enquanto cumulavam de privilégios
os que se convertiam à fé cristã ou cristãos que se casavam com mouras convertidas ao
cristianismo.
Apesar dos princípios serem claros relativamente a rejeição da conversão forçada,
houve sempre abusos a motivar a legislação dos reis portugueses. Os privilégios
concedidos aos mouros convertidos também desencadearam polémicas e desacatos
sociais. Os neoconvertidos eram apelidados pelos cristãos de tomadiços, termo com uma
conotação ofensiva tão grave que chegou a ser proibido por D. Duarte e passível de pena
civil.

1.5. A expulsão de 1496


Terminada a reconquista, os mouros foram escasseando cada vez mais em
território português, como se infere da decrescente presença de referências
documentais. A partir de finais do séc. XV, os documentos referem-se, sobretudo, aos
mouros emigrados do Norte de África, que entraram em Portugal por motivos
económicos ou como resultado das campanhas marroquinas e das expedições
esclavagistas.
Apesar da crescente rejeição, a vida intercomunitária processava-se calmamente,
pelo que nada fazia prever o decreto de D. Manuel do início de 5 de dezembro de 1496,
que colocou os mouros e os judeus diante da alternativa da conversão ou da expulsão.
Atendendo ao espírito tolerante de D. Manuel, que após a ascensão ao trono,
concedeu nas Cortes de Montemor a alforria aos judeus emigrados de Castela, que D.
João II reduzira à escravatura, como explicar a decisão do monarca? A razão prioritária foi
a cláusula imposta pela princesa Isabel, filha dos reis católicos e viúva do malogrado
príncipe D. Afonso, de que só casaria com o monarca português, se este não permitisse
no reino «a gente judaica, cega e em cegueira obstinada». D. Manuel optou então pela
voz do coração e pela unificação religiosa do reino.
Como consequência da lei manuelina, os judeus e os mouros que não quisessem
ser batizados deviam abandonar o reino até ao final de outubro de 1497, levando consigo
os respetivos bens. Em caso de desobediência seriam mortos e os bens entregues aos
denunciantes. As consequências, porém, foram diferentes para os judeus e para os
mouros:
− Quanto aos judeus, foram-lhes retirados os filhos para serem batizados.
− Quanto aos mouros, o rei, talvez movido pelo receio de que os muitos
portugueses cativos ou residentes em países islâmicos fossem alvo de
represálias, não os obrigou a receberem o batismo, nem lhes retirou as
crianças, mas até facilitou aos que não quisessem ser batizados a partida para
África.
A lei manuelina não tinha como objetivo a expulsão dos judeus e mouros, mas
pressioná-los ao batismo, assegurando assim a unificação religiosa e política do reino. Foi
essa a razão pela qual dificultou ao máximo a saída aos judeus, negando-lhes os barcos
inicialmente prometidos. Houve, de facto, muitas conversões de judeus e mouros ao
cristianismo, recebendo com o batismo um nome cristão, por norma o dos senhores ou
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padrinhos. A partir da conversão de judeus e mouros, passou a haver oficialmente em


Portugal dois tipos de cristãos: os cristão-velhos ou simplesmente cristãos e os cristãos-
novos ou mouriscos.
Os protestos contra a política de conversão forçada fizeram-se sentir um pouco
por toda a parte, também nos setores eclesiásticos. Nota-se, porém, que eram sobretudo
os judeus que estavam em causa. Os pareceres seguintes mostram não ter havido
consenso em torno da medida:
− O bispo de Silves, D. Fernando Coutinho (1501-1538), informa ter visto muitos
judeus a serem levados pelos cabelos à pia batismal e critica duramente o
batismo forçado dos judeus, apelando para a invalidade do sacramento
recebido por coação.
− D. Jerónimo Osório, também ele futuro bispo do Algarve (1564-1580), invocou
razões de ordem jurídica, ética e teológica para condenar o batismo forçado de
judeus.
− Damião de Góis, apesar do seu humanismo, pactuou com a imposição do
batismo de judeus, branqueando a atitude de D. Manuel.
Para obter a plena integração na sociedade dos neoconvertidos, D. Manuel
outorgou-lhes muitos privilégios, nomeadamente o acesso à nobreza, a cargos e
dignidades eclesiásticas, às ordens militares, às universidades, à magistratura, às câmaras
e a receberem direitos de vizinhança, cidadania e outros.
A partir de D. João III (1521-1557), os mouriscos e cristãos-novos de origem
judaica tornaram-se terreno fértil para a atuação da Inquisição portuguesa. Apesar do
batismo, da mudança de nome e da aceitação exterior dos ritos cristãos, muitos
continuavam a praticar na clandestinidade os ritos e tradições anteriores. Os processos da
Inquisição referentes aos mouriscos manifestam a sua fidelidade à profissão de fé na
unicidade de Deus, à profecia de Maomé, à oração ritual, à esmola legal e ao jejum do
Ramadão. Também não comiam carne de porco, não bebiam vinho, guardavam a sexta-
feira e observavam várias tradições islâmicas. Boa parte praticava um sincretismo
religioso, uma espécie de religião mista, passando do cristianismo ao islamismo e vice-
versa, ao sabor do ambiente sociorreligioso em que se situava.
Alguns mouros conseguiram furar as malhas da Inquisição e continuaram a viver
em Portugal sem serem batizados e sem mudarem de nome. A sua presença foi-se,
todavia, esvaindo lentamente até desaparecer, assimilada pela maioria cristã.

2. Tolerância e tensões entre cristãos e judeus


Na Península Ibérica a presença de judeus encontra-se assinalada desde o período
imperial romano. Sob o domínio visigodo, a sua situação era de tal modo precária que
não fugiram à suspeita de terem acolhido de braços abertos os invasores muçulmanos. A
reconquista encontrou-os implantados nos centros urbanos, talvez já agrupados nos
locais onde depois surgiriam as judiarias.
Apesar da legislação civil transpor desde cedo as diretivas canónicas que
impunham a segregação dos judeus, eles gozavam duma efetiva proteção régia e de
grande autonomia, manifestada na liberdade de culto e no foro próprio, no pagamento
de tributos e na prestação de serviços ao monarca. O seu relacionamento com a Igreja
também parece ter sido pacífico.
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A mesma atitude tolerante caracterizou, durante séculos, a população em geral,


embora a crise de finais do século XIV tenha acentuado a rivalidade económica entre os
comerciantes e artesãos judeus e cristãos, suscitando um clima de tensão que levou os
soberanos a legislar no sentido da separação física entre as duas comunidades. O ódio ao
judeu usurário e cobrador de impostos, personificação do mal foi crescendo, ao ponto de
degenerar em violência aberta em assaltos frustrados ou conseguidos a diversas judiarias
do país. Em finais do século XV, a chegada de numerosos conversos e judeus castelhanos,
fugidos da Inquisição espanhola, exacerbou as tensões, reforçadas pelas pressões
políticas dos reis católicos sobre D. Manuel, ao ponto dele ter assinado o édito de
expulsão de 1496, a que só escapariam os que se convertessem ao cristianismo.

2.1. Da tolerância do judaísmo à crescente animosidade


Judeus e cristãos conviveram na Península Ibérica desde a dominação romana,
como confirmam alguns testemunhos arqueológicos dos séculos I e II d.C. Não é, todavia,
possível reconstruir a relação entre ambas as comunidades ao longo de séculos. Os
judeus, porém, não foram assimilados, procurando a legislação eclesiástica e civil
defender deles os cristãos.
Os nossos monarcas puderam, contudo, apresentar-se como soberanos de
súbditos pertencentes às três religiões – cristianismo, islamismo e judaísmo – sendo a
convivência baseada na tolerância.
Escassos no início do reino português, habitando os concelhos mais populosos,
como Lisboa, Santarém, Coimbra e Évora, os judeus residiam nos seus bairros, sem que
isso significasse que não se encontrassem também dispersos entre a população cristã. A
efetiva separação espacial foi tardia e só se generalizou ao reino durante o séc. XV.
Desconhecemos se a comuna, entidade paralela ao concelho para judeus (e
muçulmanos), com magistrados próprios, remontaria aos alvores da nacionalidade ou
seria um privilégio posterior. O mesmo se passa com o cargo de rabi-mor, ocupado por
um judeu da confiança do monarca, que tinha a função de superintender em seu nome na
justiça destes súbditos. Apesar da função se encontrar documentada desde o reinado de
Afonso III (1248-1279), só foi definida em finais do séc. XIV, como o corregedor na corte
para os judeus, não tendo paralelo na minoria muçulmana, que estava dependente na
corte do corregedor cristão.
Os judeus eram tratados como um corpo social, religioso, judicial e tributário
autónomo da maioria, regido internamente pela Torá e pelo Talmude, embora estivessem
submetidos às ordenações gerais do reino e tivessem como juiz supremo o monarca. Os
judeus possuíam chancelarias próprias, mantendo nos documentos a língua hebraica até
ao reinado de D. João I, e mantiveram-se autónomos dos concelhos, a quem, todavia,
pagavam certos impostos. As relações com a Coroa e com a Igreja e os cristãos foram
habitualmente tranquilas:
− A relação da minoria judaica com o soberano foi perfeito até à expulsão, tendo
ele mantido os privilégios e a proteção pessoal para com os seus judeus – os
monarcas referiam-se aos judeus como meus judeus – quando a agressividade
dos cristãos e dos municípios, contra a autonomia das comunas, se começou a
manifestar e a crescer. Havia, todavia, contrapartidas nos inúmeros impostos
que entregavam à Coroa.
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− Parece também ter sido pacífica a relação com a Igreja, a quem os judeus
pagavam o dízimo, apesar do mesmo ser contestado pelas comunas. Embora
alguns bispos procurassem que fossem cumpridas as normas conciliares contra
os judeus, essa preocupação refletiu-se mais na luta entre a Igreja e o poder
régio do que no incentivo ao desenvolvimento do antijudaísmo entre os
cristãos.
− O relacionamento da minoria com a maioria foi estável, se bem que com
alguns sobressaltos. Não houve em Portugal a agressividade dos
levantamentos populares contra os judeus sentido no resto da Península e da
Europa. Não se pode, todavia, ignorar a supremacia de um povo eleito sobre
outro, tendo a discussão sobre a primazia marcado o posicionamento social da
maioria sobre a minoria e da constante tentação de afirmação desta sobre
aquela. A minoria judaica acabava, contudo, por privar de perto com o poder
através da riqueza, da cultura e do saber.
As tensões entre a maioria cristã e a minoria judaica foram-se acentuando com o
passar dos séculos, motivadas particularmente por questões económicas:
− O século XIII atesta uma relação de igualdade entre pessoas de credos
diferentes, nomeadamente no que se refere à administração da justiça, onde
os testemunhos de cristãos, judeus e muçulmanos tinham habitualmente o
mesmo valor. Os foros de Santarém, do tempo de Afonso III (1248-1279),
prescreviam a igualdade testemunhal das três religiões no quadro de uma luta
entre indivíduos da maioria e das minorias. Houve, contudo, algumas notas de
tensão:
o Este período não esteve imune a medidas proselitistas, como uma
ordenação de Afonso II (1221-1223) em que o apelo à conversão era
corroborado pela posse imediata dos bens (um terço se houver mais
irmãos e metade em caso de ser filho único ou um dos cônjuges).
o As preocupações legislativas começaram a incidir na questão da usura,
reflexo do aumento da circulação monetária e do investimento de
capital. Concretizam-nas, por exemplo, uma medida de Afonso III de
1266, que proibia que o juro ultrapassasse os 100% do empréstimo.
Acrescentava também outra ordenação de idêntico teor, justificada pela
malícia dos judeus contra os cristãos.
− No século XIV acentuou-se o problema da usura, devido às crises agrícolas e
monetárias, que geraram o empobrecimento de muitos estratos da população.
Esta teve mais dificuldade em adaptar-se aos movimentos de capital do que a
minoria judaica que, desde tempos remotos, vivia do investimento da riqueza
móvel. A queda em pobreza dos grupos sociais de gente honrada, nobre ou
não, conduziu ao endividamento por hipoteca dos bens móveis ou imóveis
junto dos credores que, nos protestos dos procuradores dos concelhos nas
Cortes, eram identificados com os judeus.
o Os textos legislativos de D. Afonso IV testemunham o crescimento duma
atitude económica antijudaica por parte de certos setores da população
cristã, ao mesmo tempo que se forjava a ideia de que o judeu era rico,
sendo-o à custa dos cristãos.
11

o Nas Cortes de 1352, os procuradores dos concelhos requereram ao rei a


proibição dos judeus realizarem contratos com cristãos e com mouros,
procurando limitar-lhes a liberdade contratual ao interior das judiarias, e
propuseram que os membros da minoria se tornassem agricultores.
Noutros momentos, porém, como nas Cortes de Lisboa de 1331, os
procuradores contestaram a aquisição de herdades pelos judeus,
opondo-se a que investissem na posse da terra, à semelhança da
burguesia cristã.
− À usura, juntou-se em finais do século XIV a concorrência nos lanços das
rendas reais, municipais e da Igreja.
o Estas estiveram nos séculos XIII e XIV predominantemente nas mãos de
judeus ricos, que subarrendavam a correligionários seus parcelas do
arrendamento geral do reino ou de uma ou várias comarcas. Tal facto
revelava-se como uma atitude de domínio da minoria sobre a maioria, o
que ia contra as determinações da Igreja e se traduzia numa opressão
sobre os cristãos, fomentadora do antagonismo social pelo ódio ao
coletor de impostos, identificado com o judeu.
o O domínio dos judeus nos arrendamentos foi quebrado com os
acontecimentos de 1383-1885 e com a subida ao trono do candidato do
povo de Lisboa (D. João I), depois dos dois grandes rendeiros do reinado
de D. Fernando (1367-1383), David Negro e Juda Aben Menir, terem
seguido o partido de Leonor Teles e de Castela. Durante os reinados de
D. João I (1385-1433) e de D. Duarte (1433-1438), os monarcas
proibiram aos judeus o exercício de funções que se traduzissem em
opressão sobre os cristãos, se bem que a constituição de sociedades
mistas de cristãos e judeus tenha permitido iludir as ordenações reino e
as determinações canónicas.
− No século XV a função capitalista desempenhada pelos judeus expandiu-se de
tal maneira que financiaram as empresas régias ou os casamentos da família
real. Este período conheceu diversos nomes de mercadores-banqueiros como
Abravanel, Guedelha Palaçano, Moisés Latam, Judas Toledano.
o A família Abravanel, de origem sevilhana, começou a sua atividade de
banqueira da família real ao serviço do infante D. Fernando, que viria a
morrer em Fez, passando pouco depois a credora de D. Afonso V (1438-
1481), a quem concederam empréstimos avultados para o casamento de
D. Leonor, imperatriz da Alemanha, ou para a guerra contra Castela, em
defesa dos direitos de D. Joana.
o A preponderância dos empréstimos judaicos foi bem visível nas quantias
concedidas a D. Afonso V para a guerra contra Castela, em 1478.
Enquanto Guedelha Palaçano e Isaac Abravanel emprestaram quantias
na ordem dos quase dois milhões de reais, o mercador cristão que mais
se lhe aproximava era Fernão Gomes da Mina, com 900.000 reais.
o Os cristãos, desagradados com o poder económico judaico, que colocava
os judeus numa posição de domínio contra as ordenações canónicas e
do reino, manifestavam-no nas Cortes, alargando o seu protesto a toda
a comunidade judaica. Os procuradores dos concelhos aproveitaram
12

assim as Cortes para extravasar, ao longo da segunda metade do século


XV, a rivalidade económica rumo a uma animosidade religiosa contra os
judeus, que foi crescendo no inconsciente coletivo da maioria cristã.
o No reinado de D. João II (1481-1495) alteraram-se as condições de
predomínio económico. Notou-se, por um lado, um recuo na concessão
de cartas aos grandes mercadores judeus e na permissão de poderem
fazer lanços nas rendas eclesiásticas. Por outro, nas Cortes, os
procuradores dos concelhos protestavam contra o luxo excessivo do
vestuário dos judeus mais ricos e pretendiam confinar os mesteirais
judeus ao interior da judiaria, para irradiar a sua concorrência aos
artesãos cristãos. A rivalidade económica centrava-se agora no
artesanato.
A animosidade contra os judeus foi acompanhada pela interiorização crescente do
arquétipo do judeu como símbolo da riqueza, do infiel e do mal. A associação da ideia do
mal resultava da sua riqueza ser entendida como indevida, porque obtida à custa do fiel
cristão, que ele oprimia e explorava como usurário e coletor de impostos.
− Ainda no século XIV, em dezembro de 1383, a ideia de riqueza desencadeou a
tentativa abortada de assalto à Judiaria Grande de Lisboa após o assassinato
do conde Andeiro pelo mestre de Avis. Só a pronta intervenção deste
dissuadiu o povo.
− Em 1449 foi consumado um assalto à mesma Judiaria, onde os gritos de matar
e roubar as gentes da minoria se associaram ao primeiro e único levantamento
antijudaico com derramamento de sangue e perda de vidas anterior à
expulsão.
O mal que o judeu infiel podia causar no cristão esteve ligado a medidas e
comportamentos segregacionistas a partir do século XIV:
− D. Pedro I (1357-1367), na sequência das Cortes de Elvas de 1361, obrigou que
os judeus, nos concelhos mais populosos como Lisboa, residissem em bairros
apartados, que se encerravam ao toque das Ave-marias e se abriam ao nascer
do sol.
− A legislação segregacionista foi confirmada e intensificada por D. João I nos
anos noventa do século XIV. Em 1412 atenuou-a, porque era atentatória da
sobrevivência económica da minoria judaica, admitindo a exceção dos judeus
em trânsito que entrassem na localidade depois do toque do sino da oração.
Medida semelhante foi aprovada por D. Duarte (1433-1438) para os que
tivessem de abandonar a judiaria antes do nascer do sol.
− A segregação espacial, reduzida a Lisboa no século XIV, alargou-se a outros
concelhos com forte densidade populacional judaica no final do reinado de D.
João I. A incomunicabilidade a partir de determinadas horas foi estendida a
Santarém, Évora, Porto, Coimbra, Beja, Elvas e Estremoz.
− A circulação de pessoas e os contactos estavam legalmente restringidos
sobretudo às mulheres: as mulheres cristãs não podiam deslocar-se à judiaria
sem irem acompanhadas por cristãos adultos; os judeus estavam impedidos de
entrar nas casas de cristãs, sem que nelas estivessem também cristãos adultos;
excluía-se a convivência entre judeus e cristãos em bodas, festas e tabernas; o
13

cristão não devia estar submetido ao judeu trabalhando nas suas propriedades
ou nas suas casas.
− No seguimento das prescrições canónicas do século XI retomadas no IV
concílio de Latrão (1215), o século XIV conheceu também em Portugal a
segregação física, com a imposição do uso do sinal diferenciador ao judeu. D.
Afonso IV (1325-1357) determinou que os judeus usassem uma estrela
amarela de seis pontas, que seria mudada por D. João I para vermelha e do
tamanho do selo real. O sinal devia ser usado no exterior do vestuário, em
local bem visível sobre o estômago. Havia, contudo, exceções ao uso,
nomeadamente em viagem, para evitar assaltos às pessoas e fazendas.
A diferença levava a identificar o judeu como ser impuro que conspurcava tudo
em que tocava, nomeadamente os adros das igrejas ou os alimentos. Este modo de
pensar exteriorizava-se em comportamentos xenófobos sobretudo em determinados
períodos do calendário litúrgico, como a Semana Santa, onde alguns cristãos faziam
extravasar a sua revolta no ódio ao judeu deicida.

2.2. O apelo à conversão e a apologética antijudaica


Como consequência desta animosidade crescente contra os judeus e da
interiorização do mal por eles representado, o apelo à conversão foi estando subjacente à
legislação promulgada por D. Afonso II e ampliada por D. João I e D. Afonso V. Em finais
do século XV tornaram-se mais nítidas as medidas de incentivo à conversão judaica ao
cristianismo:
− Em 1492, na sequência da entrada em massa em Portugal de judeus, expulsos
de Castela pelos reis católicos, D. João II escreveu no preâmbulo da ordenação
de apelo à conversão livre da minoria, que aos príncipes era lícito usar
qualquer processo que levasse à conversão dos infiéis. Ao mesmo tempo dava
amplos privilégios sociais e fiscais aos que abjurassem o judaísmo.
− Esta ordenação foi contemplada por D. Manuel, no apelo à apostasia
voluntária dos judeus, após a promulgação do édito de expulsão de dezembro
de 1496.
Subjacente a estas medidas está um apelo à conversão voluntária e não a
imposição do poder real ou do poder religioso, tanto mais que a conversão forçada estava
proibida pela legislação geral do reino. É neste sentido de apelo à conversão voluntária,
efetuado pela Igreja e pelos monarcas, que temos de entender a literatura de apologética
produzida. Destinava-se a instruir os pregadores e o clero secular, formando, todavia,
ideologicamente a mentalidade da sociedade cristã.
Sabemos que circularam em Portugal algumas obras apologéticas:
− Adversus Hebraeos, de Santo Isidoro
− Dialogus contra Judaeos, de Pedro Afonso (judeu converso do séc. XI/XII)
− Disputatio Cristiani et Judei, de Gilberto Crispino (judeu converso do séc. XII)
− Speculum Disputationis contra Hebraeos, de Frei João, monge de Alcobaça
(início do séc. XIV).
− Contra Infideles e De Regimine Judaeorum, de São Tomás de Aquino.
− Dialogo entre Um Filósofo Gentil e Um Grande Mestre de Teologia, anónimo
(provavelmente cópia da obra de Ramon Llull)
14

− Livro da Corte Imperial, autor anónimo do séc. XIV, possivelmente de


proveniência catalã
− Secunda et Tertia Partes Pugiones Jugulantis Perfidiam Judaeorum, de
Raimundo Martí
− Ajuda da Fé, escrito a pedido de D. João II, por mestre António, seu cirurgião-
mor e afilhado e ex-rabi de Tavira.
A escassa produção que chegou até nós não nos permite falar propriamente duma
literatura apologética nacional. Permite-nos, contudo, integrar essa produção na
apologética peninsular. As atitudes proselitistas de algumas cortes ibéricas dos séculos XII
a XV beneficiaram do apelo à abjuração do judaísmo por parte de alguns neófitos de
origem judaica. Foram estes e os mendicantes que marcaram o pensamento apologético
das cortes peninsulares, nomeadamente as de Aragão e Castela. Tais comportamentos
parecem não ter sucedido em Portugal ou, se existiram, foram menos agressivos do que
nos outros reinos ibéricos onde as conversões forçadas, provocadas por disputas
religiosas, pregações e levantamentos populares foram frequentes, na segunda metade
do século XIV e na primeira do século XV.
A apologética peninsular girou em torno de alguns textos, autores e disputas
fundamentais:
− Pedro Afonso, ex-Moisés ha Sefardí, natural de Huesca, que no início do século
XII se converteu ao cristianismo, tendo por padrinho Afonso I de Aragão. O seu
texto – Dialogus contra Judaeos – é um diálogo entre o seu passado e o seu
presente (Moisés e Pedro), em que afirmava o cristianismo diante do
judaísmo, sem, contudo, utilizar o argumento de que a literatura talmúdica
difamava Cristo e o cristianismo.
− As disputas religiosas entre teólogos de diferentes religiões, frequentes nos
reinos peninsulares e em França, patrocinadas pelos próprios soberanos e pela
Igreja, no paço, nos mosteiros e na praça pública. A disputa de Barcelona de
1263, patrocinada por Jaime I, com o apoio dos mendicantes, marcou o
diálogo judeo-cristão aragonês e peninsular do século XIII. Nesta disputa, o
cristão Paulo Cristiano, um dominicano de origem judaica, utilizava os
argumentos do Talmude para provar a verdade do cristianismo. Os erros não
eram atribuídos ao Talmude, mas ao povo judeu que não o interpretava
corretamente.
− Raimundo Martí, proveniente da escola dominicana, marcado pela escolástica,
destacou-se no séc. XIII com a sua obra Pugio Fidei adversus Maurus et Iudeos.
Contemporâneo da disputa de Barcelona, Martí escrevia para os seguidores
das outras religiões, que não a cristã, e nomeadamente para os judeus. Fazia
eco da ideia que começava a ser interiorizada na cristandade cruzadística: o
judeu era o inimigo que residia no interior da cristandade e, por isso, o mais
perigoso. Declarava que os judeus estavam em cativeiro por causa da morte de
Cristo e atacava-os por não aceitarem que Cristo era o Messias predito pelos
profetas.
− Ramon Llull, franciscano, também marcado pela escolástica, escreveu o Libre
del Gentil e los Tres Savis, escrita em 1272 em árabe e depois em catalão. Llull
disserta sobre Deus e a ressurreição, pondo depois, em paralelo, um judeu, um
cristão e um muçulmano a defender a respetiva religião. Escreveu também o
15

De Erroribus Judeorum (1305) e De Adventu Messiae, em que combatia a


recusa dos judeus em aceitarem o dogma da Trindade, a encarnação e Cristo
como Messias.
− Frei Bernardo Oliver, monge agostinho valenciano, depois bispo de Tortosa,
que escreveu na primeira metade do séc. XIV, o Tractatus contra Coecitatem
Judeorum, em que refere o pecado daqueles que condenaram injustamente à
morte Jesus Cristo, o filho de Deus; a superação da lei de Moisés pela nova lei;
Cristo como Messias prometido e a recusa dos judeus em o aceitarem; a
contestação à posição judaica sobre a circuncisão e a Trindade; a atribuição do
cativeiro judaico, que durava há 1247 anos, aos pecados dos judeus e
sobretudo ao facto de terem atentado contra Cristo.
− Os séculos XIV e XV conheceram vários conversos que se tornaram apologistas
cristãos contra o judaísmo: contemporâneos de Oliver, temos Afonso de
Valladolid, ex-Abner de Burgos, que escreveu Moré Sedeq, e Jerónimo de
Santa Fé, ex-Joshua ha-Lorqui, que integrou a disputa de Tortosa; já no séc. XV
podemos encontrar, Paulo de Burgos ou Paulo de Santa Maria, que escreveu o
Scrutinium Scripturarum, um dos mais famosos textos da apologética
peninsular. Em Tortosa Jerónimo de Santa Fé serviu-se sobretudo da
argumentação de Martí no Pugio Fidei e as suas alegações deram origem ao
Tractatus contra Perfidiam Judeorum e De Judaeis Erroribus ex Talmuth.
Jutaram-se-lhe em Aragão e Castela as pregações de Vicente Ferrer.
Em Portugal, sabemos pouco sobre a influência destas obras, assim como das
disputas e das pregações nas conversões de judeus ao cristianismo. Sabemos da entrada
de alguns neófitos nas ordens religiosas, nomeadamente em Alcobaça, mas o seu escasso
número garante-nos serem voluntárias e não em resultado da pressão emocional das
disputas ou das pregações. Sabemos aliás que, para impedir as pregações forçadas, D.
João I proibiu que nas terras da Ordem de Santiago, onde se procurava pregar aos judeus,
estes fossem obrigados a assistir aos sermões. Teria também, segundo a tradição,
impedido Vicente Ferrer de vir pregar a Portugal pelo mesmo motivo.
É provável que em Portugal também sucedessem disputas religiosas, referidas
aliás por D. Duarte no Leal Conselheiro ou por Álvaro Pais no seu Colírio da Fé contra as
Heresias, de meados do séc. XIV. Essas disputas, assim como a literatura apologética
estavam marcadas por dois princípios antagónicos, à semelhança do que se passava no
resto da península:
− Para os judeus, Cristo não era o Messias e este ainda não tinha vindo para
conduzir o seu povo, de novo, à terra prometida e para estabelecer o reino
universal com sede em Jerusalém.
− Para os cristãos, Cristo era o Messias prometido pelos profetas.
Das obras escritas em português, apenas chegaram até nós as seguintes:
− O Tratado Teológico em Que se Prova a Verdade da Religião de Jesus Cristo, a
Falsidade da Lei dos Judeus e a Vinda do Messias, o Speculum Disputationis
contra Hebraeos ou Speculum Hebraeorum de Frei João de Alcobaça, em
resposta à disputa de Barcelona.
o Segundo Frei João os seguidores da lei mosaica encontravam-se nas
trevas, porque não entendiam a verdade anunciada pelos profetas.
Recorria também ao argumento do cativeiro em que eles permaneciam
16

em virtude dos seus pecados, nomeadamente a não aceitação da vinda


do Messias.
o A fonte de Frei João é catalã e refletia o clima de controvérsia religiosa,
desenvolvido pelos dominicanos e pela corte de Jaime I de Aragão, que
presidiu e ordenou a redação latina da disputa e que institucionalizou os
sermões nas sinagogas.
o Ignora-se se a finalidade de Frei João era criar um instrumento que
permitisse aos pregadores nacionais doutrinar publicamente os judeus
no seu próprio terreno religioso. Estamos, contudo, mal informados
sobre esta prática para períodos anteriores ao reinado de D. João I, que
acabou por proibir as pregações nas sinagogas.
− Livro da Corte Imperial, uma obra apologética, provavelmente com origem na
Catalunha e com entrada em Portugal por ocasião do casamento de Isabel de
Aragão com D. Dinis, traduzida para português no séc. XIV (contemporânea do
texto de João de Alcobaça e das obras latinas de Álvaro Pais) e com grande
divulgação em Portugal.
o A Igreja apresenta-se como uma rainha resplandecente que defende as
verdades do cristianismo contra os gentios, judeus e muçulmanos, numa
corte imperial presidida pelo imperador supremo, que mais não é que a
corte celeste. Nela decorre uma disputa religiosa, à semelhança das
disputas teológicas feitas em Aragão sob o patrocínio do rei e da Igreja,
onde a rainha que identifica a Igreja discute sobre a verdadeira religião,
o cristianismo, com diversos interlocutores: diversos rabis judeus, um
filósofo gentio e um alfaqui.
o Na polémica com o judaísmo foram discutidas a Trindade, a encarnação
e a vinda do Messias. Os judeus aparecem sem argumentos suficientes
para vencer as asserções da rainha, acabando por se calarem vencidos
mas não convencidos, pois não se converteram, ao contrário do gentio.
− Ajuda da Fé, única obra de apologética portuguesa, escrita em 1486 por
mestre António, um convertido do judaísmo aos 40 anos depois de ter sido
rabi em Tavira, cirurgião-mor de D. João II.
o A obra foi escrita a pedido do rei, que talvez procurasse colher o impacte
do batismo dum importante rabi junto dos judeus portugueses.
o A argumentação centrava-se à volta do Messias e pretendia provar a
vinda deste aos seus antigos companheiros, usando os próprios escritos
judaicos. Ao longo de 12 capítulos, mestre António dialoga com um
judeu amigo, procurando convencê-lo que Cristo é o Messias prometido
na lei judaica.
o Mestre António conhecia as disputas peninsulares, nomeadamente a de
Tortosa e a obra de Jerónimo de Santa Fé, sobretudo no livro I, assim
como a Pugio Fidei de Martí, que já fora a obra que mais marcara
Jerónimo. Ao contrário de Martí, mestre António não procurava
condenar o Talmude como livro herético que atacava Cristo e o
cristianismo, utilizando-o antes para argumentar em favor da lei nova
contra a cegueira dos judeus.
17

o Ao expurgar do seu manuscrito os capítulos sobre os erros do Talmude,


mestre António identificava-se com uma corrente proselitista menos
agressiva contra os judeus, tal como sucedera com Pedro Afonso. Tal
como o texto deste converso, a obra de mestre António era um diálogo
entre o cristão mestre António e um judeu amigo, entre o seu presente
e o seu passado.
o A Ajuda da Fé foi depois copiada por Cristóvão Rodrigues Acenheiro, a
pedido de Pedro Magalho, pregador de D. João III (1521-1557). A
preocupação com este texto, em véspera da entrada da Inquisição em
Portugal, refletia a necessidade de converter os cristãos-novos à causa
do cristianismo, quando circulava entre os ex-judeus a ideia de um rei
dos judeus que lhes daria a libertação do cativeiro e os conduziria a Sião.
Este estilo de apologética desapareceria no período moderno, onde a
argumentação com base nos comentários bíblicos e nos textos rabínicos deu lugar a
estereótipos distorcidos sobre os judeus, como a semelhança com Satanás, que nada
tinham a ver com a apologética medieval e que assentavam num imaginário popular,
talvez com raízes no exterior da Península.
O anticristianismo também existia, mas mais escondido do que o antijudaísmo.
Sendo o judaísmo minoritário não convinha aos seus seguidores dar sinais de hostilidade
para com a religião maioritária. Estando o judeu sob a alçada das ordenações gerais do
reino, todo o crime de blasfémia contra o cristianismo devia cair sob a jurisdição régia.
Não estando muito documentado nos textos oficiais, não é de excluir a hipótese da alçada
eclesiástica. Também é um facto que o equilíbrio das relações entre a maioria e a minoria
prevaleceu durante três séculos, não tendo havido entre nós o ambiente propício à
escrita de textos teológicos contra o cristianismo e a favor do judaísmo, como ocorreu em
Aragão. Por isso a agressividade judaica não se exteriorizava, a não ser excecionalmente
por atos meramente individuais contra a religião maioritária e, sobretudo, contra os
apóstatas, que tinham abandonado o judaísmo.
Em conclusão, a história do relacionamento dos cristãos com os judeus em
Portugal, durante a Idade Média, até à sua expulsão pelo édito de D. Manuel (1495-1521)
de 5 de dezembro de 14962, foi caracterizada pela convivência e pela estabilidade, sem os
sobressaltos dos demais reinos peninsulares. Apesar da tolerância existente não podemos
esquecer que todo o diálogo se reveste de um substrato ideológico de dois vetores que,
em circunstâncias de crise, se afirmam de sinais contrários. Estes antagonismos foram
particularmente visíveis no último quarto do século XV e prepararam com outros fatores
externos a expulsão.

2
Pelo decreto de D. Manuel, todos os judeus e mouros que não quisessem receber o batismo deviam
abandonar o reino no prazo de dez meses, sob pena de confisco e morte, podendo levar consigo os seus
bens e facultando-lhes o monarca navios em três portos do país (Porto, Lisboa e Faro) para que pudessem
partir. Antes de terminado o prazo, o rei ordenou, no início de abril de 1597, que no domingo de Pascoela
se lhes tirassem os filhos para serem educados a expensas do soberano, antecipando, todavia, a data para
evitar que os pais acautelassem o destino dos filhos. Quando se aproximava o final do prazo só do porto de
Lisboa foi autorizada a saída. À chegada dos judeus à capital foi-lhes dada a notícia de que se esgotara o
prazo e de que se tornaram escravos do rei. Foram coagidos com violência à conversão ao ponto de só oito
terem embarcado. Para evitar que os conversos à força saíssem do país, foram publicados os alvarás de 20
e 21 de abril de 1499, que proibiam câmbio em dinheiro ou terras com os cristãos-novos e a perda dos bens
para os que saíssem do país.
18

3. O confronto ortodoxia/heterodoxia
A unificação religiosa do Portugal Medieval processou-se no confronto com
aqueles que se encontravam fora do cristianismo (mouros e judeus), mas também
convergiu no combate às correntes dissidentes e heterodoxas. É certo que não
encontramos, a partir da Idade Média central, grandes surtos heréticos em território
português. Permanecem, contudo, alguns testemunhos sobre divergências doutrinais e
de comportamento moral social, a partir do séc. XII e mais significativamente a partir de
meados do séc. XIII, marcados sobretudo pela vertente disciplinar e pelo reforço da via
punitiva.

3.1. As correntes milenaristas e a pobreza voluntária na Idade Média


Na parte do território que viria a ser Portugal, liberta da dominação islâmica,
também assistiu à imposição por meios violentos da nova ordem feudal e vivenciou a
mesma expectativa milenarista que a Europa conheceu como inquietação espiritual pela
iminência do fim dos tempos e como consequência material das novas clivagens sociais
trazidas pelo feudalismo. Não se conhecem, todavia, no séc. XI manifestações heréticas
neste território. A dureza da luta contra um inimigo de fé diversa terá porventura
contribuído para prevenir divergências religiosas, embora o débil enquadramento
eclesiástico da zona e a escassez de fontes também possam explicar a ausência de
notícias.
O novo surto herético que atingiu a cristandade a partir do século XII resultou da
crise espiritual da passagem duma sociedade eminentemente rural, cuja economia
assentava na pilhagem e na troca, para uma sociedade urbana assente na procura do
lucro. Esse surto girava, por isso, em torno de dois elementos fundamentais:
− A crítica à riqueza do clero num tempo em que se acentuava o total
desamparo de muitos.
− A reivindicação do direito à proclamação da palavra de Deus por parte dos fiéis
que seguiam um estilo de vida apostólica.
As diversas heresias nascidas neste contexto também tiveram destinos diferentes:
− Umas – caso dos valdenses e dos humilhados, cujo maior pecado consistia na
desobediência à interdição de pregar feita aos leigos e religiosos não
autorizados – foram parcialmente recuperadas, através da transformação dos
grupos menos radicais em ordens religiosas com formas de vida própria.
− Outras, cujo exemplo mais relevante se encontra nos cátaros, ao
apresentarem diferenças doutrinais inconciliáveis (dualismo), foram
perseguidas, através da inquisição episcopal e das cruzadas contra os
heréticos.
Ao mesmo tempo surgiu dentro da instituição eclesial um movimento de reforma,
que valorizava a pobreza voluntária, como resposta eclesial à fermentação herética.
Se o movimento herético do século XI não encontrou ressonâncias em território
português, este segundo deixou alguns vestígios, mesmo se de impossível filiação nas
correntes espirituais da época:
− Em 1211, D. Afonso II emanou a primeira medida legislativa secular que
preconizava o confisco dos bens daqueles que o tribunal episcopal condenasse
por heresia.
19

− Entre 1218 e 1220, D. Afonso II insurgiu-se contra uns decretos que o prior dos
dominicanos, Frei Soeiro Gomes, promulgara para punição de delinquentes,
ordenando que não fossem aplicados por atentarem contra o direito exclusivo
da realeza de criar novas leis. Alguns historiadores têm interpretado esses
decretos, cujo conteúdo se ignora, como repressores da heresia.
− D. Afonso II também emanou a primeira lei conhecida a reprimir a vadiagem,
visto que o desenraizamento e a mobilidade propiciavam uma divulgação mais
rápida e alargada das ideias perigosas, suscitadas pelo crescente afastamento
entre ricos e pobres.
A partir de meados de trezentos, os vestígios deram lugar a testemunhos mais
consistentes da presença heterodoxa em território português, suscitando um reforço da
legislação civil e canónica, a redação de tratados de apologética e a nomeação de
inquisidores. Esta alteração pode encontrar justificação nalguns motivos:
− A fundação do Estudo Geral em Lisboa (1290). A criação da universidade
portuguesa abriu novos locais ao debate doutrinal e atraiu a Lisboa e depois a
Coimbra mestres estrangeiros portadores das ideias desviantes que corriam
nos centros de saber. Reflexo disto pode ser o primeiro tratado escrito em
Portugal sobre a heterodoxia – Collyrium Fidei adversus Haereses, escrito por
Álvaro Pais, bispo de Silves (1333-1350), depois de 1344:
o A obra suscitou opiniões desencontradas nos especialistas:
 Para Morais Barbosa, o autor limitou-se a «contrapor, a cada
preceito canónico uma heresia que dele se afastasse»3 e, por
isso, não nos aproxima da realidade social portuguesa do século
XIV.
 Para outros, as palavras do bispo de Silves merecem algum
crédito, nomeadamente no que se refere às controversas que diz
ter tido, em Coimbra e Lisboa, com alguns religiosos e com um
judeu, reveladoras, segundo Gama Caeiro, do «clima de
liberdade de pensamento e expressão» vigente em Portugal, pois
era «possível a um opositor defender num templo ou numa
universidade proposições que são para a Igreja manifestamente
heréticas»4.
o As heresias em debate:
 O aristotelismo averroísta de Tomás Escoto, originário
provavelmente das ilhas britânicas: afirmava que a fé se provava
melhor pela filosofia do que pela Bíblia e pelo direito canónico;
proclamava que Moisés tinha enganado os judeus, tal como
Cristo os cristãos, Maomé os muçulmanos, o Anticristo havia de
enganar todos os homens, incluindo os próprios servidores de
Deus; defendia que a graça de curar passava de pais para filhos;
negava a imortalidade da alma, a divindade de Cristo, a
virgindade de Maria e a castidade de São Bernardo e Santo

3
João MORAIS BARBOSA, O “De Statu et Planctu Ecclesiae”. Estudo Crítico, Lisboa: [?], 1982, 107.
4
Francisco DA GAMA CAEIRO, Heresias e Pregação em Portugal no Século XIV, in ENCONTRO SOBRE HISTÓRIA
DOMINICANA, Atas, II, Porto: [?], 1989, 302.
20

António. Tomás Escoto foi condenado eclesiasticamente e


encerrado numa prisão.
 A heresia encontrada nas escolas lisboetas que defendia que os
decretos dos concílios e as constituições papais não tinham a
mesma autoridade que o Antigo e o Novo Testamento.
 O questionamento do poder pontifício por mendicantes,
presente no seu De Statu (1344), num contexto que pode indicar
tratar-se duma situação vivida em Portugal. A prática da pobreza
evangélica e a condenação do enriquecimento do clero podem
ter levado alguns leigos e franciscanos mais radicais a passar a
fronteira estabelecida pela Igreja entre o seu ideal de vida
ascética e a heresia.
 A controvérsia com um seguidor do culto mosaico. Judeus e
mouros não eram considerados hereges e o culto de ambas as
religiões era respeitado, desde que exercido nos limites da lei.
Parece, todavia, que então se deu um esforço de conversão,
testemunhada por várias obras apologéticas. Para além do
Collyrium, podem referir-se: Speculum Disputationis contra
Hebraeos de Frei João de Alcobaça; Livro da Corte Imperial.
− Os movimentos de revolta antissenhorial e anticlerical, que na segunda
metade de trezentos assolaram a cristandade sujeita à fome, à peste e à
guerra, suscitados por pregadores itinerantes que proclamavam a igualdade de
todos os homens perante Deus e fustigavam a riqueza e vida dissoluta da
hierarquia eclesiástica, com repercussões nos camponeses esmagados pelo
contribuições exageradas exigidas pelos senhores e no proletariado urbano
sujeito ao desemprego e à miséria. Manifestações em Portugal:
o Uma ordenação imediatamente posterior à peste de 1349 compelia ao
trabalho manual não só os que, tendo recebido heranças, já não
queriam exercer os ofícios, mas também os homens e mulheres válidos
que viviam a pedir, mandando que fossem açoitados e expulsos das
povoações se não quisessem trabalhar. Os desocupados e errantes
continuaram, porém, a multiplicar-se nas cidades.
o A lei das Sesmarias (1375) do tempo de D. Fernando, que fixava os
trabalhadores rurais às terras e promovia o povoamento num contexto
de crise económica, refere que muitos dos pedintes andavam com
hábitos religiosos «não entrando nem sendo professos em nenhuma das
ordens estabelecidas e aprovadas pela santa Igreja, não fazendo nem
usando fazer alguma obra proveitosa ao bem comum». Arrastavam
antes consigo homens que se perdiam para a agricultura e para os
ofícios, constituindo focos subversivos.
o As revoltas rurais e urbanas por ocasião do casamento entre D.
Fernando e D. Leonor Teles e aquando da morte do rei, perante a
ameaça de invasão castelhana. Às motivações sociais e políticas, parece
que se juntou também uma inspiração religiosa de fundo heterodoxo,
num ambiente de acolhimento das teses milenaristas e das doutrinas
sobre a pobreza evangélica.
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o A vinda da Itália à Península Ibérica, entre 1350 e 1380, dum grupo de


portugueses, espanhóis e italianos, chefiados por um tal Vasco de
Portugal, discípulos de Tomasuccio da Foligno, um eremita próximo dos
círculos franciscanos radicais. Vinham esperar a descida do Espírito
Santo prevista pelo mestre e participar na fundação duma nova ordem
religiosa que havia de reformar o mundo antes do fim dos tempos.
o Os entusiasmos messiânicos em torno do mestre de Avis,
testemunhados por Fernão Lopes na Crónica de D. João I, ao ponto dos
seus partidários usarem as moedas com a sua efígie ao pescoço, como
medalhas. É reconhecido o papel dos círculos franciscanos na criação de
condições propícias à união do povo em torno do monarca.
Como reação às inclinações heréticas presentes na sociedade, acentuou-se
também o clima repressivo, mediante uma legislação mais abundante e precisa:
− No início do século XIV, D. Dinis (1279-1325) mandou que àquele que descrer
de Deus e da Virgem «lhe tirem a língua pelo pescoço e o queimem», pena
preconizada desde 1224 pela Igreja para os hereges.
− D. Afonso V (1438-1481) separou as situações de blasfémia e de heresia,
mantendo para a segunda as penas de morte e de confisco de bens já
decretadas por Afonso II (1211-1223) e João I (1385-1433), e estipulando para
a primeira castigos menos rigorosos: pecuniários (nobres) ou corporais (povo)
– açoites com uma agulha de albardeiro espetada na língua ou deambulações
em torno da igreja com uma silva ao pescoço. A blasfémia podia resultar da ira
momentânea e não significar rutura religiosa.
O julgamento cabia aos juízes eclesiásticos e a aplicação das penas, por serem de
sangue, ao braço secular. As atas dos sínodos, porém, praticamente não testemunham o
crime de heresia, ficando-se sobretudo pelo de superstição, concubinato e feitiçaria, e
não existem as sentenças dos tribunais episcopais.
O mesmo se passa com as sentenças dum possível tribunal inquisitorial. Aliás
sobre a Inquisição medieval portuguesa e sobre o seu combate aos heréticos são parcas
as informações:
− Foram nomeados inquisidores para Portugal desde a segunda metade do
século XIV, escolhidos entre os mendicantes: Martinho Vasques, franciscano,
em 1376; Rodrigo de Sintra, franciscano, em 1394; Vicente de Lisboa,
dominicano, em 1399; Afonso de Alprão, em 1413; Gonçalo Mendes,
dominicano, em 1438.
− Não restam vestígios da sua atuação concreta contra os heréticos, mas não
deixa de ser significativo que as referências à sua existência coincidam com o
período de mais intensa agitação social e espiritual no país.
O restante século XV não foi, todavia, isento de contestação doutrinal em
Portugal. A abertura a influências além-Pirenéus, devido às alianças matrimoniais e
diplomáticas estabelecidas pela nova dinastia e à circulação mais alargada de homens e
mercadorias, não deixou o país à margem das propostas reformistas que se difundiam na
Europa, nomeadamente as de Wyclif e de Hus:
− No Leal Conselheiro, D. Duarte (1433-1438) mostra ter plena consciência dos
perigos que acarretava a interpretação pessoal da Bíblia, recomendada por
Wyclif, aconselhando uma leitura das Escrituras e dos livros piedosos
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exclusivamente orientada pela Igreja e por homens sábios e virtuosos. Insurge-


se também contra os hereges que não acreditavam na vida eterna e os erros
dos discípulos de Ramon Llull (a obra deste autor acusado de magia foi
declarada herética em 1376 por Gregório XI e reabilitada em 1419).
− Afonso V, num alvará de 1451, refere-se aos que se agrupavam para ler e
comentar Frei Gáudio, João Cristóvão – heresiarcas portugueses de que
nenhum outro testemunho perdurou –, Wyclif e Hus, cujas obras, estando
proibidas, não deixavam certamente de circular no país. Os livros deviam ser
queimados e os que os liam e comentavam, levados a tribunal, perdiam todos
os seus bens.
Encontramos também legislação relativamente aos cristãos que regressavam ao
judaísmo ou à fé muçulmana:
− As Ordenações Afonsinas (Afonso V, 1438-1481) penalizavam com a morte os
judeus e mouros que, convertidos ao cristianismo, regressassem à fé original.
Em compensação D. João I protegera os conversos castelhanos, fugidos à
perseguição no seu país, impedindo que fossem igualmente molestados em
Portugal sob pretexto de abjuração.
− No tempo de D. João II (1491-1495), todavia, face a nova vaga de judeus e
cristãos-novos castelhanos, recrudesceu o sentimento antijudaico e
anticonverso. Foi então criado um corpo de inquisidores e efetuados os
primeiros autos de fé de que há memória em Portugal, antecipando em meio
século cenas que depois se tornaram correntes.

3.2. As superstições e a feitiçaria tardo-medievais


O conceito de heresia abarcava essencialmente questões dogmáticas e
disciplinares. Com o passar dos séculos foi-se alargando, contudo, aos desvios morais e de
comportamento como o adultério, a sodomia, o incesto, e ainda crenças e práticas
supersticiosas, mágicas e divinatórias, incluindo a feitiçaria, os sortilégios, a astrologia, a
necromancia…
No que toca a estas últimas a evolução não foi pacífica. Durante muito tempo o
recurso às artes mágicas foi considerado um pecado e não um crime de fé. Só quando a
obsessão pelo diabo, nascida nos mosteiros do séc. XII, se estendeu a toda a sociedade
através de pregadores e teólogos, é que os feiticeiros e as bruxas começaram a ser
acusados de obterem os seus poderes através da invocação dos demónios e de pactos
com o maligno, permitindo que os inquisidores estendessem as suas competências a
esses delitos:
− Embora em 1270 a Summa de Officio Inquisitoris já tenha apontado o caminho
da fogueira às feiticeiras, foi a bula Super Illius Specula, de 1320, que deu
poder à Inquisição para intervir sobre a bruxaria. O século XIV conheceu, por
isso, um grande número de processos por feitiçaria, atingindo mesmo as altas
esferas da Igreja, o mais célebre dos quais o dos Templários.
− Foi, contudo, a partir duma bula de Inocêncio VIII de 1484 que se desencadeou
de forma generalizada no centro da Europa a caça às bruxas, que depois teve
plena expressão na época moderna.
Em Portugal também houve repressão da magia ao longo da Idade Média, mas
com menos violência que noutras paragens. A coexistência de comunidades étnico-
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religiosas distintas deu lugar a um trabalho de pregação e de debate teológico com o


islamismo e judaísmo, que retirou importância às práticas religiosas marginais ou
desviantes. Esta atitude mudou, contudo, um pouco em quinhentos, por influência dos
modelos europeus, mas sem consequências radicais.
No contexto do ressurgimento e atenção às práticas mágicas do século XIII,
notamos algumas manifestações em Portugal, umas como permanências pagãs e outras
como interpretações desviantes do maravilhoso cristão:
− Algumas superstições remetem para as formas de culto cujas origens se
perdem no tempo, como é o caso das procissões e missas realizadas em plena
natureza – montes, campos e outros «lugares desonestos» (sínodo de Braga
de 1477, constit. 44) – típicas das sociedades agrárias tradicionais.
− Outras parecem mais ligadas ao passado romano, como o uso do prantear os
mortos, as festas das Janeiras e das Maias e as práticas divinatórias.
− Outras só têm razão de ser numa sociedade já cristianizada, que acredita na
eficácia simbólica dos objetos sagrados. As recomendações dos sínodos para
que a eucaristia e os santos óleos fiquem bem fechados e para que a pia
batismal seja devidamente guardada revelam receios de que o seu uso fosse
desviado para fins sacrílegos.
As acusações recaíam não só sobre o laicado, mas também sobre os eclesiásticos.
O sínodo de Braga de 1281, por exemplo, condenava os que, clérigos ou leigos,
consultassem agoureiros ou feiticeiros. O Tratado de Confissão de 1489 referia-se ainda
ao lançamento de sortes por clérigos. Ignorantes das letras e habituados a partilhar a vida
com as populações, os clérigos comungavam também das suas crenças erróneas. Não nos
chegaram, todavia, notícias de condenações de clérigos por magia.
Conhecemos, porém, condenações de leigos, especialmente mulheres, que nos
permitem conhecer um pouco mais as superstições medievais:
− No caso das mulheres, era comum a acusação de feitiçaria associada à de
prostituição e alcovitaria e mais raramente à de violência e roubo. Elas
praticavam sobretudo uma magia destinada a favorecer as uniões amorosas,
elaborando alimento que davam a ingerir às vítimas ou fazendo
representações destas em cera, barro e metal para as submeterem a
manipulações diversas.
− Os feiticeiros masculinos ocupavam-se sobretudo da restauração da saúde dos
homens e dos animais, através de bênçãos e de orações e ocasionalmente de
ervas e de outras matérias naturais. Faziam ainda práticas mágicas nas
estradas e encruzilhadas, talvez destinadas a afastar dos campos circundantes
os caprichos meteorológicos ou a assegurar a proteção dos viandantes.
Estas práticas mágicas, conhecidas pelas cartas de perdão do séc. XV, eram
punidas com penas de prisão, remíveis a dinheiro.
Outras fontes, porém, testemunham-no várias práticas submetidas a penas
espirituais ou corporais:
− O Livro das Confissões de Martim Pérez, escrito no início do séc. XIV e copiado
para português no fim do mesmo, refere um rol extenso de superstições
(crença em estrelas e signos, fadas, esconjuros, malefícios…), aplicando-lhes
um número variável de anos de penitência.
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− O Estatuto aprovado pela Câmara de Lisboa em 1385, cumprindo uma


promessa feita para propiciar a vitória em Aljubarrota, vitupera práticas como
feitiços, ligamentos, encantamentos, olhados, adivinhações, chamamento do
diabo, prantos pelos mortos, Janeiras e Maias. Tais condenações, reafirmadas
em legislação subsequente, nomeadamente nas Ordenações Afonsinas, eram
puníveis com açoites públicos, sendo a morte reservada aos que empregassem
a feitiçaria para causar o falecimento, a desonra ou algum dano à pessoa,
estado e fazenda de alguém.
A lei portuguesa fazia, pois, a distinção entre uma feitiçaria malévola, diabólica,
sujeita à pena capital e uma magia ilegítima mas que não tendia para o mal, condenando-
a a castigos mais ligeiros. Daí que os modelos de feitiçaria presentes no imaginário
popular, pelo menos desde o século XIV, não cobrissem todos os praticantes, poupando a
grande maioria à violenta perseguição que conheceram noutras paragens.

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