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no Portugal Medieval1
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Este esquema sintetiza sobretudo: a parte de Ana Maria S. A. RODRIGUES no capítulo A Dinâmica da
Cristianização e o Debate Ortodoxia/Heterodoxia, in HRP, I, 35-51; Maria José FERRO TAVARES, O Difícil
Diálogo entre Judaísmo e Cristianismo, in HRP, I, 53-89; Joaquim CHORÃO LAVAJO, Islão e Cristianismo: entre a
Tolerância e a Guerra Santa, in HRP, I, 91-133.
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detrimento dos cristãos. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando os representantes do
reino se queixaram, nas Cortes de Lisboa de 1439, contra o facto de os cristãos terem de
pagar a dízima ao rei e à Igreja pelos bens comprados aos mouros, enquanto estes só
eram obrigados a pagar ao rei.
Os mudéjares estavam, contudo, sujeitos a muitas medidas discriminatórias, de
modo a impedir a contaminação dos cristãos através da promiscuidade com indivíduos de
outras raças e religiões:
− Os credos muçulmano e judaico eram considerados uma epidemia de que era
necessário preservar os cristãos, mediante medidas legislativas decalcadas na
legislação eclesiástica e hispânica, que determinavam o local de habitação, o
modus vivendi e o vestuário dos judeus e mouros.
− Apesar das interdições da Igreja e da legislação civil, nomeadamente as
Ordenações Afonsinas, realizaram-se por vezes casamentos e uniões entre
membros das duas comunidades, envolvendo mesmo figuras da monarquia: D.
Afonso Henriques envolveu-se com uma moura de que teve o filho Martim
Afonso; D. Afonso III teve a filha Urraca de uma relação semelhante.
Muitos cristãos, incluindo os reis serviam-se de judeus e mouros para punirem
outros cristãos. O papa, porém, através da 1ª concordata de D. Dinis com o clero, obrigou
o rei a não utilizar os mouros e outros agentes contra a vida e segurança dos bispos e
afins. Medida análoga ficou registada na 3ª concordata, proibindo mesmo rei de se servir
de judeus e mouros para violar o direito de asilo, obrigando os cristãos a saírem das
igrejas, para os prender.
A diferenciação nos mouros relativamente à maioria cristã também teve
consequências na organização administrativa e judicial:
− Organização administrativa:
o Sempre que os mouros atingiam um número razoável, organizavam-se
em comunas ou, como lhe chamavam as Ordenações Afonsinas,
communs dos mouros. Algumas obtiveram personalidade jurídica pelos
forais atrás mencionados. Não é, porém, fácil determinar o número e a
persistência das comunas ao longo dos tempos porque, em muitos
casos, os seus membros foram-se convertendo ao cristianismo ou
aculturando de maneira que os comprovativos da personalidade jurídica
se perderam.
o Mais do que uma forma de tolerância cristã para com os muçulmanos,
as comunas eram uma forma de simplificar a burocracia administrativa.
Aliás a pertença a um desses enclaves jurisdicionais não tornava
ilimitada a liberdade de atuação, como mostra a proibição do uso da
própria língua pelos tabeliães, segundo as Ordenações Afonsinas. A
prevaricação reservava-lhes a morte ou, em caso de ignorância ou erro,
açoites e privação do ofício.
− Organização judicial:
o Os contenciosos internos da comunidade islâmica eram julgados
segundo a lei islâmica, seguindo uma prática vinda do tempo de D.
Afonso Henriques, que os confiou à jurisdição dos alcaides dos mouros.
o Ao transitarem, porém, para a alçada dos juízes cristãos, começou a
haver abusos, dado que estes teimavam em julgá-los segundo a lei
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Esta tolerância da religião islâmica era uma exigência da doutrina eclesiástica, que
proibia oficialmente a conversão forçada dos muçulmanos. Tal não significava que a Igreja
não se preocupasse com a conversão dos muçulmanos através da persuasão e que os reis
não os submetessem a constrangimentos tributários, enquanto cumulavam de privilégios
os que se convertiam à fé cristã ou cristãos que se casavam com mouras convertidas ao
cristianismo.
Apesar dos princípios serem claros relativamente a rejeição da conversão forçada,
houve sempre abusos a motivar a legislação dos reis portugueses. Os privilégios
concedidos aos mouros convertidos também desencadearam polémicas e desacatos
sociais. Os neoconvertidos eram apelidados pelos cristãos de tomadiços, termo com uma
conotação ofensiva tão grave que chegou a ser proibido por D. Duarte e passível de pena
civil.
− Parece também ter sido pacífica a relação com a Igreja, a quem os judeus
pagavam o dízimo, apesar do mesmo ser contestado pelas comunas. Embora
alguns bispos procurassem que fossem cumpridas as normas conciliares contra
os judeus, essa preocupação refletiu-se mais na luta entre a Igreja e o poder
régio do que no incentivo ao desenvolvimento do antijudaísmo entre os
cristãos.
− O relacionamento da minoria com a maioria foi estável, se bem que com
alguns sobressaltos. Não houve em Portugal a agressividade dos
levantamentos populares contra os judeus sentido no resto da Península e da
Europa. Não se pode, todavia, ignorar a supremacia de um povo eleito sobre
outro, tendo a discussão sobre a primazia marcado o posicionamento social da
maioria sobre a minoria e da constante tentação de afirmação desta sobre
aquela. A minoria judaica acabava, contudo, por privar de perto com o poder
através da riqueza, da cultura e do saber.
As tensões entre a maioria cristã e a minoria judaica foram-se acentuando com o
passar dos séculos, motivadas particularmente por questões económicas:
− O século XIII atesta uma relação de igualdade entre pessoas de credos
diferentes, nomeadamente no que se refere à administração da justiça, onde
os testemunhos de cristãos, judeus e muçulmanos tinham habitualmente o
mesmo valor. Os foros de Santarém, do tempo de Afonso III (1248-1279),
prescreviam a igualdade testemunhal das três religiões no quadro de uma luta
entre indivíduos da maioria e das minorias. Houve, contudo, algumas notas de
tensão:
o Este período não esteve imune a medidas proselitistas, como uma
ordenação de Afonso II (1221-1223) em que o apelo à conversão era
corroborado pela posse imediata dos bens (um terço se houver mais
irmãos e metade em caso de ser filho único ou um dos cônjuges).
o As preocupações legislativas começaram a incidir na questão da usura,
reflexo do aumento da circulação monetária e do investimento de
capital. Concretizam-nas, por exemplo, uma medida de Afonso III de
1266, que proibia que o juro ultrapassasse os 100% do empréstimo.
Acrescentava também outra ordenação de idêntico teor, justificada pela
malícia dos judeus contra os cristãos.
− No século XIV acentuou-se o problema da usura, devido às crises agrícolas e
monetárias, que geraram o empobrecimento de muitos estratos da população.
Esta teve mais dificuldade em adaptar-se aos movimentos de capital do que a
minoria judaica que, desde tempos remotos, vivia do investimento da riqueza
móvel. A queda em pobreza dos grupos sociais de gente honrada, nobre ou
não, conduziu ao endividamento por hipoteca dos bens móveis ou imóveis
junto dos credores que, nos protestos dos procuradores dos concelhos nas
Cortes, eram identificados com os judeus.
o Os textos legislativos de D. Afonso IV testemunham o crescimento duma
atitude económica antijudaica por parte de certos setores da população
cristã, ao mesmo tempo que se forjava a ideia de que o judeu era rico,
sendo-o à custa dos cristãos.
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cristão não devia estar submetido ao judeu trabalhando nas suas propriedades
ou nas suas casas.
− No seguimento das prescrições canónicas do século XI retomadas no IV
concílio de Latrão (1215), o século XIV conheceu também em Portugal a
segregação física, com a imposição do uso do sinal diferenciador ao judeu. D.
Afonso IV (1325-1357) determinou que os judeus usassem uma estrela
amarela de seis pontas, que seria mudada por D. João I para vermelha e do
tamanho do selo real. O sinal devia ser usado no exterior do vestuário, em
local bem visível sobre o estômago. Havia, contudo, exceções ao uso,
nomeadamente em viagem, para evitar assaltos às pessoas e fazendas.
A diferença levava a identificar o judeu como ser impuro que conspurcava tudo
em que tocava, nomeadamente os adros das igrejas ou os alimentos. Este modo de
pensar exteriorizava-se em comportamentos xenófobos sobretudo em determinados
períodos do calendário litúrgico, como a Semana Santa, onde alguns cristãos faziam
extravasar a sua revolta no ódio ao judeu deicida.
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Pelo decreto de D. Manuel, todos os judeus e mouros que não quisessem receber o batismo deviam
abandonar o reino no prazo de dez meses, sob pena de confisco e morte, podendo levar consigo os seus
bens e facultando-lhes o monarca navios em três portos do país (Porto, Lisboa e Faro) para que pudessem
partir. Antes de terminado o prazo, o rei ordenou, no início de abril de 1597, que no domingo de Pascoela
se lhes tirassem os filhos para serem educados a expensas do soberano, antecipando, todavia, a data para
evitar que os pais acautelassem o destino dos filhos. Quando se aproximava o final do prazo só do porto de
Lisboa foi autorizada a saída. À chegada dos judeus à capital foi-lhes dada a notícia de que se esgotara o
prazo e de que se tornaram escravos do rei. Foram coagidos com violência à conversão ao ponto de só oito
terem embarcado. Para evitar que os conversos à força saíssem do país, foram publicados os alvarás de 20
e 21 de abril de 1499, que proibiam câmbio em dinheiro ou terras com os cristãos-novos e a perda dos bens
para os que saíssem do país.
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3. O confronto ortodoxia/heterodoxia
A unificação religiosa do Portugal Medieval processou-se no confronto com
aqueles que se encontravam fora do cristianismo (mouros e judeus), mas também
convergiu no combate às correntes dissidentes e heterodoxas. É certo que não
encontramos, a partir da Idade Média central, grandes surtos heréticos em território
português. Permanecem, contudo, alguns testemunhos sobre divergências doutrinais e
de comportamento moral social, a partir do séc. XII e mais significativamente a partir de
meados do séc. XIII, marcados sobretudo pela vertente disciplinar e pelo reforço da via
punitiva.
− Entre 1218 e 1220, D. Afonso II insurgiu-se contra uns decretos que o prior dos
dominicanos, Frei Soeiro Gomes, promulgara para punição de delinquentes,
ordenando que não fossem aplicados por atentarem contra o direito exclusivo
da realeza de criar novas leis. Alguns historiadores têm interpretado esses
decretos, cujo conteúdo se ignora, como repressores da heresia.
− D. Afonso II também emanou a primeira lei conhecida a reprimir a vadiagem,
visto que o desenraizamento e a mobilidade propiciavam uma divulgação mais
rápida e alargada das ideias perigosas, suscitadas pelo crescente afastamento
entre ricos e pobres.
A partir de meados de trezentos, os vestígios deram lugar a testemunhos mais
consistentes da presença heterodoxa em território português, suscitando um reforço da
legislação civil e canónica, a redação de tratados de apologética e a nomeação de
inquisidores. Esta alteração pode encontrar justificação nalguns motivos:
− A fundação do Estudo Geral em Lisboa (1290). A criação da universidade
portuguesa abriu novos locais ao debate doutrinal e atraiu a Lisboa e depois a
Coimbra mestres estrangeiros portadores das ideias desviantes que corriam
nos centros de saber. Reflexo disto pode ser o primeiro tratado escrito em
Portugal sobre a heterodoxia – Collyrium Fidei adversus Haereses, escrito por
Álvaro Pais, bispo de Silves (1333-1350), depois de 1344:
o A obra suscitou opiniões desencontradas nos especialistas:
Para Morais Barbosa, o autor limitou-se a «contrapor, a cada
preceito canónico uma heresia que dele se afastasse»3 e, por
isso, não nos aproxima da realidade social portuguesa do século
XIV.
Para outros, as palavras do bispo de Silves merecem algum
crédito, nomeadamente no que se refere às controversas que diz
ter tido, em Coimbra e Lisboa, com alguns religiosos e com um
judeu, reveladoras, segundo Gama Caeiro, do «clima de
liberdade de pensamento e expressão» vigente em Portugal, pois
era «possível a um opositor defender num templo ou numa
universidade proposições que são para a Igreja manifestamente
heréticas»4.
o As heresias em debate:
O aristotelismo averroísta de Tomás Escoto, originário
provavelmente das ilhas britânicas: afirmava que a fé se provava
melhor pela filosofia do que pela Bíblia e pelo direito canónico;
proclamava que Moisés tinha enganado os judeus, tal como
Cristo os cristãos, Maomé os muçulmanos, o Anticristo havia de
enganar todos os homens, incluindo os próprios servidores de
Deus; defendia que a graça de curar passava de pais para filhos;
negava a imortalidade da alma, a divindade de Cristo, a
virgindade de Maria e a castidade de São Bernardo e Santo
3
João MORAIS BARBOSA, O “De Statu et Planctu Ecclesiae”. Estudo Crítico, Lisboa: [?], 1982, 107.
4
Francisco DA GAMA CAEIRO, Heresias e Pregação em Portugal no Século XIV, in ENCONTRO SOBRE HISTÓRIA
DOMINICANA, Atas, II, Porto: [?], 1989, 302.
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