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UM MOTIM E UMA POLEMICA: A Propésito da “Bernarda’’ de Francisco Inicio Nanci Leonzo* Por iniciativa de Antonio de Toledo Piza, segundo diretor da Reparticdo da Estatfs- tica e do Arquivo do Estado, teve inicio, em abril de 1894, a publicagio da série Documentos Interessantes para a Histéria e Costumes de Sao Paulo, em cujo primeixo volume yeio a luz um manuscrito intitulado “© Governo Provisério ¢ a ‘Bernarda’ ”, de autoria de Paulo Anto- nio do Valle (1824-1886), lente de Retérica do curso anexo A Academia de Direito de Sao Paylo 1, de pose de Lafaiete de Toledo, historiador ¢ Intendente municipal de Casa Bran- ca, Toledo Piza, todavia, nfo se limitou a divulgar o escrito, anotou-o e cuidou, assim, de anexar ao texto de Paulo Antonio do Valle documentos que, em sua opinido, contribufam para o esclarecimento do assunto, documentos esses, uns extrafdos de obras ja conhecidas, outros, inéditos'e pertencentes 20 acervo do Arquivo do Estado. E, na oportunidade, pro- curou pronunciar-se sobre a “‘bernarda” paulista, Um folheto anénimo, editado pela Imprensa Régia, em 1821, intitulado “Dialogo Politico, e Instructivo, entre os dous homens da Roca, Andre Rapozo, e seu Compadre Bolonio Simplicio, & cerca da Bernarda do Rio de Janeiro, e novidades da mesma”, define a expresso “bernarda” como “novidades e mudangas que se fazem no Rocio, juntando-e as Tropas ¢ © Povo” 3, Tobias Monteiro, na Historia do Império — A Elaboracdo da Independéncia oferece-nos, todavia, uma explicagdo mais ampla sobre o denominado “parto da bernarda”, ou simples- mente, “bernarda”. Era este o nome dado pelas tropas portuguesas aos pronunciamentos re- *Professora Assistente Doutora da FFLCH-USP. A 1 Nogueira, José Luis de Almeida —.A Academia de Sao Paulo: tradig6es e reminiscéncias. ‘Sa0 Paulo, Saraiva, 1977, vol. 3, pp. 74-75. 2 Amaral, Antonio Barreto do — O Departamento do Arquivo do Estado e a sua hist6ria. $30 Paulo, Depto, do Arquivo do Estado/Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo, 1974, Pp. 54-55. 3 Instituto de Estudos Brasileiros-USP, Cédice 2, 6, 37. Rey. Inst. Est. Bras, (24) 1982, 182 NANCI LEONZO sultantes de eqnspiragdes militares, Com o tempo, completa o historiador, a expressdo “ber- narda” com b, minfisculo generalizou-se e passou a significar qualquer movimento politico promovido pelas armas 4. A “bemarda” ocorrida em 23 de maio de 1822, na cidade de So Paulo, precederam duas “‘bernardas"” irrompidas no Rio de Janeiro, uma a 26 de fevereiro e outra, a 5 de junho de 1821, levadas a efeito pela Divisio Auxiliadora Portuguesa, com a finalidade de, em pri- meiro lugar, exigir o juramento, no Brasil, da Constituicfo a ser elaborada em Portugal pe- las Cortes e, em segundo, obter do Principe Regente D. Pedro manifestacdo de fidelidade is Bases constitucionais recentemente chegadas de Portugal. Propésito diverso assumju a “‘bernarda” de Sio Paulo. A custa da deposigao de dois membros do Governo Provis6rio, Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Manoel Rodrigues Jordiio, decidiram, sous cabegas impedir que o Presidente do mesmo Governo, Jodo Carlos Augusto de Ocynhausen,/e 0 Ouvidor da Comarca de Séo Paulo, José da Costa Carvalho, deixassem seus cafgos e partissem para o Rio de Janeiro, em obediéncia ao Ministro José Bo- nifécio que, em nome do Principe, os chamava a Corte. O relato de Paulo Antonio do Valle sobre os acontecimentos que abalaram a Provincia de Sio Paulo, em maio de 1822, & resumido e parcial. Enquanto retrata Martim Francisco como patriota ¢ verdadeiro “martyr de civismo”, seus opositores, no seio do Governo Provi- srio, Oeynhausen e 0 Coronel de Milicias Francisco Indcio de Sousa Queiroz, sio apontados como intrigantes e demagogos. A revolta militar ocorrida em Santos, a 28 de junho de 1821, que teria proporcionado a Francisco Indcio ‘‘meios faceis de conjurar os Paullistas contra Martim Francisco”. Com a convocagio, @ Corte, de Oeynhausen e de Costa Carvalho, “superiores, iguaes, subaltemos, amigos ¢ inimigos” haviam sido “aliciados, seduzidos, intimidados ¢ ameacados” a fim de se manifestarem contra aquele ato do Governo. Os sediciosos, para justificar o motim, exibi- ram uma “diatribe” escrita contra Martim Francisco, “que o povo e a tropa foram assinando”, uns por capricho, outros vencidos pela forca das circunstincias, e todos sem crengas ¢ opi- nides formadas sobre os factos nella exarados”. A devassa promovida nos meses de setembro ¢ outubro de 1822, em que prestaram depoimento os “mais conspicuos cidadios”, encarregara-se, segundo, ainda, Paulo Antonio do Valle, de comprovar a inocéncia de Martim Francisco, membro atuante do “‘nascente par- tido brasileiro”, e a culpabilidade de Ocynhausen, Costa Carvalho e Francisco Inécio 5. Toledo Piza endossou o relato de Paulo Antonio do Valle. Atribuiu ao motim o cariter de uma “conspiracio” tramada pelos membros do partido “‘portugués ou retrogado”. Os soldados brasileiros integrados ao 19 ‘batalhdo de cagadores saquearam a vila de Santos, jus- tificou, em razio dos “mdus tratos” ¢ da “uzura’” do governo colonial. Os “conspiradores” atrafram 0 “odio popular” contra os irmfos Andrada, pelo “ta- lento ¢ caracter” os membros mais influentes do Gover, imputando, indevidamente, a Mar- tim Francisco a execucdo, em praca piiblica, de um dos chefes dos revoltosos santistas, conhe- ido pelo apetido de Chaguinhas. O governo “anarchico” instalado 2 23 de maio de 1822, entendeu Toledo Piza, fora dissolvido por nfo se ter acomodado as exigéncias das “idéias liberais que dominavam a opi- nifo publica”, A “bemarda”, concluiu, fora esmagada porque representava “uma’tendencia para a volta ao antigo regimen e porque o elemento brasileiro preponderava nos Conselhos da Corda”, Para reforgar ‘seus argumentos, procurou, ainda, relacionar os membros do partido “portugues” ¢ os do partido “liberal ou paulista”, acompanhando alguns deles, em sua traje- t6ria politica, nos anos posteriores a Independéncia, — Histéria do Império — A Elaborazéo da Independéncia. Rio de , 1927,p.411. 4 Monteiro, Tobias Janeiro, F. Briguiet & Ci: 5 Documentos Interessantes para a Histéria e Costumes de Séo Paulo, vol. 1, pp. 5-15. Rev, Inst. Est, Bras, (24) 1982. UM MOTIM E UMA POLEMICA: 183 Qualificando Wirt Francisco e o Brigadeiro Jordao como “homens de acco e re- EEN genuinos dos sentimentos paulistas” finalizou este comentdrio sobre a ““bernarda” paulista 6, Paulo Antonio do Valle e, principalmente, Antonio de Toledo Piza foram de imediato contestados, Um cidadao, oculto sob as iniciais E.R., utilizando-se do periédico O Comercio de Séo Paulo, dirigiu-se de forma critica a Toledo Piza, dando, assim, infcio ao debate 7, Estevéo Ribeiro de Sousa Rezende, Bardo de Rezende (1840-1909), 0 E.R, das co- lunas do O Commercio de Sto Paulo, era bacharel em Ciéncias Juridicas e Sociais, pela Aca- demia de Si0 Paulo. Dedicava-se a politica e as atividades agricolas de grande porte 8, Apre- ciava os “estudos histéricos” 9, E mais, Era Parente préximo do Coronel Francisco Inacio de Sousa Queiroz. A controvérsia teve inicio, 6 que tudo indica, no segundo semestre de 1901 e se pro- Jongou até o ano seguinte. Cada um dos polemistas manifestou-se quatro vezes, Ignorou, Rezende, j4 no seu primeiro artigo sobre a “‘bernarda” paulista, a narrativa de Paulo Antonio do Valle, um “energumento” endo um “‘historiador”, em sua opiniao. Era de admirar, comentou, que uma publicagdo oficial acolhesse, logo nas suas primeiras pé- ginas, to “‘apaixonada exposicao”, Apreciagées minuciosas' mereciam, contudo, algumas afirmagdes de Antonio de To- ledo Piza, entre as quais, a da existéncia, em Sio Paulo, no ano de 1822, de dois partidos politicos e a de que a deposicao de Martim Francisco fora, justamente, ato de um destes parti- dos politicos, isto , o “portugués e retrogado” 10, Estas duas questdes estiveram presentes, de maneira implicita ou explicita, em todos os artigos pertinentes ao debate. Suscitaram discussdes sobre diversos temas relacionados com 0s acontecimentos de 23 de maio de 1822, em Sio Paulo, como o episédio do enfor- camento do Chaguinhas, o grau de envolvimento no motim de Francisco Indcio, o “patrio- tismo” de Oeynhausen e 0 desempenho polftico dos Andradas antes e depois da Indepen- déncia, Rezende, naturalmente, ao mesmo tempo em que se preocupou em refutddas, procu- rou reabilitar a figura de seu ilustre antecessor, Para tanto serviu-se da ‘‘descripgdo viciada” da “‘bernarda” contida nos Apontamentos Historicos de Manuel Eufrisio de Azevedo Marques (12 ed., Rio de Janeiro, Instituto Histérico e Geogrifico Brasileiro, 1879) e de obras como a Histéria do Brazil de John Armitaga (12 ed, Rio de Janeiro, 1837) e aHistoria da Fundagao do Imperio Brasileiro de Pereira da Silva (19 ed, Rio de Janeiro, 1864-1868. 7 yols.). Dois depoimentos foram, para ele, valiosos: 0 de Diogo Antonio Feijé (quando Ministro da Justiga, na Cimara dos Deputados, em 1832) e o de Evaristo Ferreira da Veiga (no periédico Aurora Fluminense, em particular, no exemplar que circulou em 30 de dezembro de 1831), ambos, como € notério, desfavordveis aos Andradas, Antonio de Toledo Piza, para reafirmar suas conviccdes, optou pelo ataque pessoal ,20 Barfo de Rezende, seu velho conhecido, o qual, cerca de vinte anos antes, publicara os Estudos Historico Politicos eivados de opinides contrarias aos Andradas 11, 6 DL, vol I, pp. 17-30. 7 O debate foi transcrito na Revista do Instituto Histérico e Geografico de Sao Paulo, vol. VII (1902), pp. 1-144. 8 Nogueira, José Luis de Almeida — Op. cit., vol. 5, pp. 273-275. , vol. VII, (1902), p. 87. 9 E.R. — “A bernarda de Francisco Indcio". R.1.H. 10 Jdem, pp. 1-20. 411 Rezende, Estevao Ribeiro de Sousa — Estudos Histéricos-Politicos, 19, 22 e 32 séries: ‘As Reformas Constitucionaes; 49 série: Preliminares da nossa Indpendéncia politica; 5A sé- tie: Aclamagao do Senhor Dom Pedro 1, Imperador do Brasil, 0 ministério de 1822-1823 a politica dos Andradas; 68 série: Os Andradas. Sto Paulo, Typ. Correio Paulistano, 1879- 1880. Rey, Inst. Est. Bras. (24) 1982.

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