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ISSN 0101 - 4366

Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.


Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178, n. 475, pp. 11-356, set./dez. 2017.


INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Considerado de utilidade pública:
Estadual: Lei nº 1.068, de 14-9-1966 (Diário Oficial do Estado, parte I, de 20-9-1966)
Federal: Decreto nº 61.251, de 30 de agosto de 1967
Av. Augusto Severo, 8, Rio de Janeiro, CEP 20021-040

Fundado em 21-10-1838, em plena Regência, por 27 sócios da prestigiosa Sociedade


Auxiliadora da Indústria Nacional, o IHGB originou-se de proposta anterior do marechal de
campo Cunha Matos e do cônego Januário da Cunha Barbosa. Pedro II logo o tomou sob seus
auspícios.
Os objetivos estatutários eram, entre outros: coligir, metodizar, publicar ou arquivar
documentos, promover cursos e editar a Revista Trimestral de História e Geografia ou o
Jornal do IHGB.
O Arquivo é hoje um dos melhores do Brasil, graças a sucessivas doações de papéis de
estadistas e historiadores, como José Bonifácio, o marquês de Olinda, Varnhagen, Cotegipe, o
conde d´Eu, o visconde de Ouro Preto, Prudente de Morais, Rodrigues Alves, Epitácio Pessoa,
Manuel Barata, Wanderley Pinho, Hélio Viana e Jackson de Figueiredo, entre outros.
A Biblioteca, por compra, doações e permutas, ultrapassa de 500 mil volumes, de grande
interesse para os estudos brasileiros.
A Mapoteca dispõe de cerca de 12 mil cartas geográficas, referentes, sobretudo, ao
território brasileiro.
O Museu, criado em 1851 para guardar a memória de varões ilustres em máscaras
mortuárias, retratos e lembranças pessoais, exibe hoje peças, como a espada de campanha de
Duque de Caxias (modelo dos espadins dos cadetes do nosso Exército) ou a cadeira em que
Pedro II, durante 40 anos, presidiu a 508 sessões do Instituto.
A Pinacoteca é rica, abrangendo desde a imensa tela da Coroação de Pedro II, de autoria
do sócio Araújo Porto-Alegre, até a impressionante galeria de retratos (e bustos) de monarcas,
nobres e personalidades da Colônia à República.
Os sócios, eméritos, titulares, honorários e correspondentes, no país e no estrangeiro, são
eleitos vitaliciamente. O corpo social promove conferências, congressos e cursos, anunciados
com antecedência, e realiza reuniões acadêmicas, de março a dezembro, todas as quartas-
-feiras. As atas são publicadas pela Revista no último número do ano.
R IHGB
a. 178
n. 475
set./dez.
2017
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
DIRETORIA – (2015-2016)
Presidente: Arno Wehling
1º Vice-Presidente: Victorino Chermont de Miranda
2º Vice-Presidente: Affonso Arinos de Melo Franco
3º Vice-Presidente: José Arthur Rios
1º Secretário: Lucia Maria Paschoal Guimarães
2º Secretário: Maria de Lourdes Viana Lyra
Tesoureiro: Fernando Tasso Fragoso Pires
Orador: Alberto da Costa e Silva

CONSELHO FISCAL
Membros efetivos: Antonio Izaias da Costa Abreu, Luiz Felipe de Seixas
Corrêa, Marilda Correia Ciribelli
Membros suplentes: Marcos Guimarães Sanches, Pedro Carlos da Silva Telles,
Roberto Cavalcanti de Albuquerque

CONSELHO CONSULTIVO
Membros nomeados: Carlos Wehrs, Célio Borja, José Pedro Pinto Esposel e
Miridan Britto Falci.

DIRETORIAS ADJUNTAS
Arquivo: Jaime Antunes da Silva
Biblioteca: Claudio Aguiar
Cursos: Antonio Celso Alves Pereira
Iconografia: Pedro K. Vasquez
Informática e Dissem. da Informação: Carlos Eduardo de Almeida Barata
Museu: Vera Lucia Bottrel Tostes
Patrimônio: Guilherme de Andrea Frota
Projetos Especiais: Mary del Priore
Relações Externas: Maria Beltrão
Relações Institucionais: João Mauricio de A. Pinho
Coordenação da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal
Guimarães (subcoord.)
Editor do Noticiário: Victorino Chermont de Miranda

COMISSÕES PERMANENTES
ADMISSÃO DE SÓCIOS: CIÊNCIAS SOCIAIS: ESTATUTO:
Alberto da Costa e Silva Antônio Celso Alves Pereira Affonso Arinos de Mello Franco
Alberto Venancio Filho Cândido Mendes de Almeida Alberto Venancio Filho
Carlos Wehrs Helio Jaguaribe de Matos Célio Borja
Fernando Tasso Fragoso Pires José Murilo de Carvalho João Maurício A. Pinho
Maria Beltrão Victorino Chermont de Miranda

GEOGRAFIA: HISTÓRIA: PATRIMÔNIO:


Armando de Senna Bittencourt Eduardo Silva Afonso Celso Villela de Carvalho
Cybelle Moreira de Ipanema Guilherme de Andrea Frota Antonio Izaías da Costa Abreu
José Almino de Alencar Lucia Maria Paschoal Guimarães Claudio Moreira Bento
Miridan Britto Falci Marcos Guimarães Sanches Fernando Tasso Fragoso Pires
Vera Lúcia Cabana de Andrade Maria de Lourdes Vianna Lyra Roberto Cavalcanti de Albu-
querque
REVISTA
DO
INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178, n. 475, pp. 11-356, set./dez. 2017.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 178, n. 475, 2017.

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Sumários Correntes Brasileiros – Google Acadêmico

Correspondência:
Rev. IHGB – Av. Augusto Severo, 8-10º andar – Glória – CEP: 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
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Tiragem: 300 exemplares
Impresso no Brasil – Printed in Brazil
Revisora: Sandra Pássaro
Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) -


Rio de Janeiro: O Instituto, 1839-
v. : il. ; 23 cm

Quadrimestral
ISSN 0101-4366
Ind.: T. 1 (1839) – n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) – 449 (2010) em n. 450
(2011)

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Maura Macedo Corrêa e Castro – CRB7-1142
CONSELHO EDITORIAL
António Manuel Dias Farinha – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal

Arno Wehling – Universidade Veiga de Almeida – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Carlos Wehrs – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

José Murilo de Carvalho – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Manuela Mendonça – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal

Maria Beatriz Nizza da Silva – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

COMISSÃO DA REVISTA: EDITORES


Lucia Maria Bastos Pereira das Neves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ-Brasil

Eduardo Silva – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Esther Caldas Bertoletti – Ministério da Cultura – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Maria de Lourdes Viana Lyra – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Mary del Priore – Universidade Salgado de Oliveira – Niterói-RJ – Brasil

CONSELHO CONSULTIVO
António Manuel Botelho Hespanha – Universidade Nova Lisboa – Lisboa – Portugal

Edivaldo Machado Boaventura – Universidade Federal da Bahia – Salvador-BA-Brasil

Fernando Camargo – Universidade Federal de Pelotas – Pelotas-RS – Brasil

Geraldo Mártires Coelho – Universidade Federal do Pará – Belém-PA – Brasil

Guilherme Pereira das Neves – Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ – Brasil

José Marques – Universidade do Porto – Porto – Portugal

Junia Ferreira Furtado – Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte-MG – Brasil

Leslie Bethell – Universidade de Oxford – Oxford – Inglaterra

Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos – Ministério das Relações Exteriores – Brasília-DF – Brasília

Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – Universidade Federal de Pernambuco – Recife-PE – Brasil

Maria de Fátima Sá e Mello Ferreira – ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa – Lisboa – Portugal

Mariano Cuesta Domingo – Universidad Complutense de Madrid – Madrid – Espanha

Miridan Britto Falci – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Nestor Goulart Reis Filho – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

Renato Pinto Venâncio – Universidade Federal de Ouro Preto – Ouro Preto-MG – Brasil

Stuart Schwartz – Universidade de Yale-Connecticut – EUA

Ulpiano Bezerra de Meneses – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

Victor Tau Anzoategui – Universidade de Buenos Aires – Buenos Aires – Argentina


SUMÁRIO
SUMMARY
Carta ao Leitor 11
Lucia Maria Bastos P. Neves
I – DOSSIÊ
DOSSIER
Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos 15
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817
In times of Constitution making: Perspectives and paradoxes of the
organic Law of the Republican Revolution of 1817
Marcelo Casseb Continentino
Tradição e inovação no discurso político-jurídico 43
da Revolução de 1817
Tradition and innovation in the political-legal discourse
of the Revolution of 1817
Arno Wehling
A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido
luso-brasileiro 65
The Pernambucan Revolution of 1817 in the context of the luso-
brazilian United Kingdom
Maria de Lourdes Viana Lyra
Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia 95
Making the 1817 Uprising a Revolution: The Role
of Historiography
Guilherme Pereira das Neves
Os embates pela história da 115
Revolução Pernambucana de 1817
The struggles for the history of the
pernambuco revolution of 1817
George F. Cabral de Souza
1817: Ideário Liberal Pernambucano 131
1817: Liberal Ideas in Pernambuco
Leonardo Dantas Silva
A Vila do Recife, em 1817 149
Vila do Recife in 1817
José Luiz Motta Menezes
Breves considerações sobre as ideias 165
de Simón Bolívar na Revolução Pernambucana de 1817
Brief considerations on the ideas of Simón Bolívar in the
Pernambuco Revolution of 1817
Cláudio Aguiar
Bicentenário da Diplomacia Brasileira 185
Bicentenary of brazilian diplomacy
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão
Revolução Republicana em Pernambuco de 1817 197
burguesia e maçonaria versus aristocracia
The Republican Revolution of 1817 in Pernambuco
bourgeous and masonry versus aristocracy
Reinaldo Carneiro Leão
A Revolução de 1817 e a unidade nacional do Brasil 207
The Revolution of 1817 and the national unit of Brazil
Vamireh Chacon
II – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS
A igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso 217
e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho
The Matrix church of our Lady of Good Success and the retables
attributed to Aleijadinho
Aziz José de Oliveira Pedrosa
Moradas de engenho e arte: as casas do Conde 253
da Barca no Novo Mundo
Manor houses and art: the houses of the Count of Barca in the
New World
Ana Pessoa
Ana Lucia V. Santos
III – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS
Visconde do Uruguai: realismo periférico, construção 281
do Estado e geopolítica na América Ibérica Oitocentista
Visconde de Uruguay: peripheral realism, construction
of the State and geopolitics in nineteeth-century Iberian America
Christian Edward Cyril Lynch
Reconfiguração regional e disputa oligárquica 297
no Sudeste brasileiro no final do Império: imigração,
ensino agrícola e o projeto da Província do Rio Sapucaí
Regional reconfiguration and oligarchic dispute in southeast
Brazil at the end of the Empire: immigration, agricultural
education and the project of the Province of Rio Sapucaí
João Eduardo de Alves Pereira
IV – DOCUMENTOS
DOCUMENTS
Direito e feitiçaria na América portuguesa 311
do século XVIII: a devassa movida contra Maria do Gentio
da terra da Vila de Paranaguá
Law and witchcraft in portuguese America in the 18th century:
the criminal proceeding conducted against Maria de Gentio da
Terra from Vila de Paranaguá
Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira
V – RESENHAS
REVIEW ESSAYS
Doze capítulos sobre escravizar gente e governar 343
escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX
Luiz Fabiano de Freitas Tavares
• Normas de publicação 351
Guide for the authors 353
Carta ao Leitor

É tradição estabelecida do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro


revisitar eventos e personagens do passado em datas como centenários,
sesquicentenários e bicentenários. Em 2017, comemoraram-se os 200
anos da Revolta de Pernambuco, fazendo com que o acontecimento mere-
cesse um olhar especial por meio do Seminário – “Revolução Pernambu-
cana de 1817” –, que, nos dias 5 e 6 de abril de 2017, reuniu especialistas
de diversas áreas, vindos inclusive da antiga capitania de Duarte Coelho.
Ainda tendendo a ser encarado, nos dias que correm, por visões diver-
gentes, o movimento sempre foi objeto de grandes polêmicas entre histo-
riadores, juristas e outros estudiosos. Na realidade, estes podem mesmo
considerá-lo segundo uma ampla gama de perspectivas, que se estendem
desde um dos momentos fundadores da História nacional, precursor da
Independência de 1822 – a versão dominante, às vezes ufanista –, até
um olhar crítico, cético talvez em demasia, que o reduz a uma explosão
local, manifestação de autonomia da província, insatisfeita com a política
adotada pelo governo de D. João no Rio de Janeiro.

Assim sendo, este último número de 2017 da Revista centrou-se,


portanto, na organização de um dossiê sobre Pernambuco em 1817, cujos
artigos foram fruto das reflexões e discussões que ocorreram ao longo da-
quele evento. Proposto com o objetivo de repensar o acontecimento his-
tórico, em busca de novas interpretações e do estabelecimento de relações
entre a historiografia e a memória do evento, o Seminário possibilitou
o amadurecimento de trabalhos diversos, que, ampliados e aprofunda-
dos, constituem o núcleo central desta publicação. Em seu conjunto, a
despeito de também comemorar os 200 anos de Pernambuco 1817, os
autores dos artigos aqui incluídos realizaram não só um balanço geral da
memória que o acontecimento deixou na historiografia, mas procuraram
igualmente avaliar o potencial desse passado para discutir o presente e
averiguar, ainda, as ligações simbólicas do poder, da sociedade e da eco-
nomia na formação do futuro Império do Brasil.
O dossiê contou com 11 artigos. Abre-se com uma discussão jurídica
sobre a conceituação da Lei Orgânica da Revolução Pernambucana de
1817, e segue com o debate sobre a dialética entre tradição e inovação no
discurso político presente neste processo histórico. Mais adiante, busca
inserir o movimento de 1817 no contexto do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves, passando, em seguida, para uma discussão historiográ-
fica sobre o “fazer-se (de 1817) uma revolução”. Encontram-se também
presentes análises sobre o ideário liberal na revolta, as relações de 1817
com as ideias de Simon Bolívar, as tentativas diplomáticas que o mo-
vimento encetou e ainda as configurações espaciais que este tomou na
vila do Recife. Se as conclusões podem se mostrar diversas, numa leitura
final, apesar da variedade dos temas, o conjunto permite não só exumar
homens, heróis e correntes de pensamento bem conhecidas, como ampliar
ainda mais um corpus, hoje na ordem do dia dos trabalhos historiográfi-
cos, de fenômenos relacionados à difusão e à recepção de ideias. Como
resultado, são novos olhares sobre a Revolta Pernambucana de 1817, que
buscam, no fundo, como se espera, a forma como homens de determinada
época pensavam sua própria vida.

Este número, contudo, não se limita ao dossiê. Completam-no dois


artigos inéditos, que se ligam pela análise da cultura material, em épocas
distintas. No século XVIII, o primeiro diz respeito a retábulos atribuídos
a Aleijadinho, enquanto, no século XIX, o segundo trata das moradas do
Conde da Barca no Rio de Janeiro.

Na seção de comunicações, contempla-se novamente o século XIX


com mais dois estudos: um sobre as ideias políticas do Visconde do Uru-
guai e a construção do Estado no Império; o outro acerca da imigração, o
ensino agrícola e o projeto da Província do Rio Sapucaí.

A seção de Documentos traz a transcrição de manuscrito funda-


mental para os estudos sobre feitiçaria na América portuguesa do século
XVIII. Ecoando a célebre publicação de 1978 que J. R. Amaral Lapa fez
da visita da Inquisição ao Pará entre 1763 e 1769, constitui-se de devassa
criminal com o propósito de investigar o delito de feitiçaria cometido por
indígenas na primeira metade daquele século, mas no outro extremo da
América portuguesa, ou seja, na Ouvidoria de Paranaguá. Para melhor
situar o documento, um texto introdutório curto, mas aprofundado, apre-
senta as principais características arquivísticas do documento, explicando
algumas particularidades da feitiçaria e categorias jurídicas encontradas
na fonte. Diante de seu ineditismo e originalidade, torna-se desnecessário
enfatizar sua relevância.

Completa a Revista uma resenha a respeito dos modos sobre escravi-


zar gente e governar escravos entre Brasil e Angola, séculos XVII-XIX.
Como o resenhista afirma, a partir da visão de Sergio Buarque de Ho-
landa, uma das funções sociais do historiador consiste “em exorcizar os
fantasmas do passado”. Entre aqueles que ainda rodam e assombram o
Brasil, até os dias de hoje, encontra-se sem dúvida a experiência histórica
da escravidão.

Aproveitem!
Lucia Maria Bastos P. Neves
Diretora da Revista
Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

15

I – DOSSIÊ
DOSSIER

TEMPOS DE CONSTITUIÇÃO: PERSPECTIVAS E PARADOXOS


DA LEI ORGÂNICA DA REVOLUÇÃO REPUBLICANA DE 18171
IN TIMES OF CONSTITUTION MAKING: PERSPECTIVES AND
PARADOXES OF THE ORGANIC LAW OF THE REPUBLICAN
REVOLUTION OF 1817
Marcelo Casseb Continentino2
Resumo: Abstract:
O presente artigo objetiva examinar, à luz da In the present article we examine the constitutional
dicotomia conceitual entre “Lei Orgânica” e dimension of the Pernambuco Revolution of 1817
“Constituição”, a dimensão constitucional da in the light of the conceptual dichotomy between
Revolução Pernambucana de 1817. Com base “Organic Law of 1817” and “Constitution”.
na história conceitual de Reinhart Koselleck, Departing from Reinhart Koselleck’s history of
defendemos que a “Lei Orgânica de 1817” concepts, we argue that the “Organic Law of
aproxima-se semanticamente do moderno con- 1817” is, on one hand, very semantically close
ceito de “Constituição”, já que contém diversos to the modern concept of “Constitution”, since
elementos comuns, a exemplo do caráter legiti- both contain several common elements, such as
mador e transformador das relações sociais bem the legitimating and transformative character
como da inovação na ordem jurídica e política. of social relations and the innovation in the
No entanto, a própria Lei Orgânica de 1817 não legal and political order. On the other hand,
se autorreconhece como uma legítima “Consti- the Organic Law of 1817 does not recognize
tuição”, porquanto se reveste de caráter provisó- itself as a legitimate “Constitution”, due to its
rio, tendo em vista que a Revolução Republica- provisional character, and also due to the fact
na necessitava, desde os primeiros momentos, that the Republican Revolution would have had
consolidar-se territorialmente e legitimar-se to consolidate itself territorially right from the
politicamente. beginning in order to be politically legitimate.
Palavras-chave: Lei Orgânica de 1817; Consti- Keywords: Organic Law of 1817; Constitution;
tuição; Revolução Republicana. Republican revolution.

1  –  O presente artigo corresponde à versão escrita e ampliada da Comunicação apre-


sentada no “Seminário Revolução Pernambucana de 1817”, realizado nos dias 5 e 6 de
abril de 2017, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no Estado do Rio
de Janeiro. Na oportunidade, agradeço a todos os participantes do citado Seminário, em
especial aos professores e pesquisadores Arno Wehling, Vamireh Chacon, José Luiz Mota
Menezes, George Cabral, Maria de Lourdes Viana Lyra, Margarida Cantarelli, André
Mello, Lúcia Bastos, Cláudio Aguiar, Gonçalo de Barros C. e Mello Mourão e Reinaldo
Carneiro Leão, que com suas críticas e sugestões colaboraram com o autor na elaboração
do presente artigo.
2 – Professor Adjunto de Direito Constitucional da Faculdade de Direito do Recife
(FDR-UFPE). Líder do Grupo de Pesquisa Teoria e História Constitucional Brasileira

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):15-42, set./dez. 2017. 15


Marcelo Casseb Continentino

Introdução

A Constituição é um conceito que se liga a diversas tradições históri-


cas, cujos influxos conduziram ao que modernamente se reconhece como
norma jurídica, elaborada inicialmente no âmbito dos processos revolu-
cionários burgueses, destinada a limitar o exercício do poder estatal e a
defender as liberdades individuais dos membros da comunidade política.3

Não há necessariamente um sentido único para o vocábulo, tampou-


co um único percurso de reconstrução de sua história semântica, con-
soante já advertiu Maurizio Fioravanti4. Consciente da realidade multi-
facetada do conceito de Constituição, Nelson Saldanha5 ressaltou que a
teoria constitucional contemporânea formou-se, sobretudo, da aquisição
acumulativa de três experiências revolucionárias fundamentais, quais se-
jam: a inglesa, a francesa e a norte-americana. É verdade que outras exis-
tiram e, a depender dos laços políticos existentes e da história, cada país
tenha sido influenciado com maior ou menor intensidade pelas principais
vertentes do constitucionalismo ocidental.

No caso do Brasil, defende-se que sua história constitucional tem um


importante capítulo com a Revolução Republicana de 1817, ocorrida na
Capitania de Pernambuco, oportunidade em que uma espécie de “Consti-
tuição Provisória” foi editada pelo “Governo Provisório da República de
Pernambuco”. A denominada “Lei Orgânica”, que neste ano (2017) co-
memora o bicentenário de sua existência, ainda hoje, ressente-se de maior
estudo sobre seu significado, usos e dimensão constitucional no âmbito
dos acontecimentos relacionados à Revolução Republicana de 6 de março
de 1817 e da história nacional.

(Lattes/UFPE). Procurador do Estado de Pernambuco. Sócio efetivo do Instituto Arque-


ológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).
3  –  Cf. GRIMM, Dieter. Constitucionalismo e derechos fundamentales. Trad. Raúl Sanz
Burgos. Madrid: Trotta, 2006, pp. 28 e ss.
4  –  Cf. FIORAVANTI, Maurizio. Costituzione. Bologna: Il Mulino, 1999, pp. 7-9.
5  –  Cf. SALDANHA, Nelson Nogueira. Formação da teoria constitucional. Rio de Ja-
neiro: Forense, 2000, pp. 49-91.

16 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):15-42, set./dez. 2017.


Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

Desse modo, no presente artigo, nosso objetivo se fixa sobre os con-


ceitos de “Constituição” e de “Lei Orgânica”, expressão utilizada pelo
monsenhor e revolucionário Francisco Muniz Tavares para referir-se ao
“Projecto de Constituição” elaborado pelo Governo Provisório6, os quais
estiveram presentes na linguagem dos revolucionários de 1817 e, embora
guardassem certa sinonímia, eram semanticamente diversos à época.

Diante da complexidade histórica e constitucional que o desenvolvi-


mento deste capítulo da história constitucional pernambucana e brasilei-
ra exige, estruturamos a presente pesquisa em dois eixos principais. No
primeiro, realizamos uma aproximação histórico-conceitual sobre “Lei
Orgânica”, “Lei Fundamental” e “Constituição”, inspirada na metódica
da história conceitual de Reinhart Koselleck; em seguida, adotamos a
perspectiva histórico-social, tentando intuir algumas conclusões sobre o
sentido e o alcance da Lei Orgânica de 1817 e sobre por que ela é, e ao
mesmo tempo, não é uma “Constituição”.

I. Conceitos e palavras: “Lei Orgânica” e “Constituição”


“Lei Orgânica” e “Constituição” são dois conceitos fundamentais da
Revolução Republicana de 1817, que estiveram presentes na linguagem
política dos revolucionários e oferecem um promissor caminho para com-
preender os limites e os paradoxos desse movimento emancipacionista.

Na esteira da perspectiva da história conceitual de Reinhart


Koselleck7, firma-se na ideia de que os conceitos, que não se confundem
com simples “palavras”, trazem em sua estrutura semântica o peso do
tempo, as marcas do ferro e do sangue, dando ensejo a verdadeiros cam-
pos de batalha onde se buscam sua definição de conteúdo e estabilização
de sentido. Envolvem historicidade, reflexividade e mutabilidade.

6  –  Cf. TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco em 1817. 3.


ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917, pp. CCII-CCIV.
7 – Sobre os elementos básicos da distinção entre conceitos e palavras, ver:
KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estu-
dos Históricos: vol. 5, n. 10, 1992, pp. 134-146.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):15-42, set./dez. 2017. 17


Marcelo Casseb Continentino

Os conceitos revelam outra propriedade fundamental. Mais do que


indicarem uma realidade, constituem-na. Em um contexto sóciopolítico
específico, integram uma linguagem política determinada e traduzem
pautas de ações políticas bem específicas, configurando-se verdadeiras
“armas de combate”, de modo que revelam poderosos elementos da com-
preensão histórica, por meio do diálogo intertemporal com as gerações
passadas.

Por outro lado, os conceitos e sua história configuram elemento es-


sencial ao conhecimento da história social e suas especificidades, con-
forme exposto por Koselleck8; por conseguinte, o estudo específico dos
conceitos de Lei Orgânica e Constituição auxilia-nos para melhor com-
preensão das potencialidades e dos limites da própria Revolução Repu-
blicana de 1817.

Perante esse quadro teórico, podemos refletir sobre a noção de “Lei


Orgânica de 1817”, de “Constituição” e de tantos outros conceitos (re-
pública, igualdade, cidadão, patriotismo etc.) que, na transição do século
XVIII para o XIX, efervesceram no cenário político brasileiro e nos dis-
cursos dos revolucionários e contrarrevolucionários de 1817.

É, nesse sentido, forçoso perguntar: O que significa “Constituição”


ao final do Setecentos e início do Oitocentos? O que, em verdade, preten-
diam os revolucionários quando pronunciavam “Constituição”? E “Lei
Orgânica”?

Teria razão o monsenhor Muniz Tavares9, testemunha ocular e re-


volucionário de 1817, quando, em parte, atribuiu o fracasso da Revo-
lução Republicana à não imediata convocação da “Assembleia Consti-
tuinte” para elaborar a “Constituição”? Teriam seus líderes incorrido em
erro grave e manifesto ao optarem por decretar a “Lei Orgânica”, em vez
8  –  Cf. KOSELLECK, Reinhart. Storia sociale e storia concettuale. In: Il Vocabolario
della Modernità. Trad. Carlo Sandrelli. Bologna: Il Mulino, 2009, pp. 3-25.
9  –  Conforme ponderou Muniz Tavares: “Hum grande erro dos directores da revolução
tinha sido a negligência do primeiro dever dos Governos livres, isto he, a reunião dos es-
colhidos do povo em corpo constituinte, e legislativo.” Cf. TAVARES, Francisco Muniz.
Op. cit., p. CCIII.

18 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):15-42, set./dez. 2017.


Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

de uma “Constituição”? Teria razão o primeiro presidente do Instituto


Pernambucano (IAHGP), quando achou que tal postergação configuraria
traição aos princípios norteadores da Revolução de 1817?

Sua crítica a 1817, como se vê, releva nosso ponto de partida. Lei
Orgânica e Constituição não eram sinônimos.

Parece-nos razoável presumir que o campo semântico de “Lei Orgâ-


nica” aproximava-se ao de “Lei Fundamental” e de “Lex Salica” do An-
tigo Regime francês10, significando o conjunto de normas que “regulava
o exercício dos direitos políticos do Estado”11. Eram as leis que definiam
as atribuições dos diversos poderes políticos do Estado”12. Limitavam-se
à estruturação orgânica do governo e, por isso, não continham a previsão
de um rol de direitos e garantias individuais13.

10  –  Segundo Mario Dogliani, as “Leis Fundamentais” são integradas por ordenanças
referentes à forma de governo e de sucessão da coroa bem como por convenções entre
governantes que regulam os modos de governo e impõem limites à autoridade soberana.
Cf. DOGLIANI, Mario. Introduzione al diritto costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1994,
pp. 161-163.
11  –  Cf. MOHNHAUPT, Heinz & GRIMM, Dieter. Costituzione. Trad. Simona Rossi.
Roma: Carocci, 2008, pp. 55 e ss e pp. 111 e ss; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite.
Notas sobre a constituição do direito público na idade moderna: a doutrina das leis funda-
mentais. Revista Sequência: n. 53, dez. 2006, pp. 197-232.
12 – Cf. VEIGA, Gláucio. História das ideias da Faculdade de Direito do Recife. Vol. I.
Recife: Universitária, 1980, p. 281.
13 – Nos dicionários da época (Bluteau, Antonio de Moraes e Silva Pinto), pode-se
encontrar a palavra “constituição”, cujo sentido genérico era o de “estatuto”, “lei fun-
damental” com sentidos próximos a “lei”, “orgânico” e “corpo”. Sobre o tema, ver:
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico.
Vol. 2. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, p. 486 e p. 455
e p. 557 e ss; PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da lingua brasileira. Ouro Preto:
Typographia de Silva, 1832, pp. 283 e ss; SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua
portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, p. 316 e p. 297. Sobre a semântica dos
conceitos “lei fundamental” e “constituição”, ver em especial: MOHNHAUPT, Heinz &
GRIMM, Dieter. Op. cit. pp. 55 e ss. Poderíamos ainda destacar, na esteira de Nelson Sal-
danha, tendo em vista a semântica de “leis do rei e leis do reino”, que ambos os conceitos
visavam à “fixação de um cerne inviolável no cerne do Estado, em sua base normativa”.
Cf. SALDANHA, Nelson Nogueira. Formação da teoria constitucional. Rio de Janeiro:
Forense, 2000, pp. 33-37.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):15-42, set./dez. 2017. 19


Marcelo Casseb Continentino

Nelson Saldanha14, por sua vez, destacou que “Lei Fundamental” ad-
quiriu sentido relativamente próximo à noção de “Constituição”, uma vez
que aquele conceito teria permitido a transição, através da Idade Média,
da “ideia essencial” da “submissão da ação estatal a uma norma positiva
que deve vincular a existência mesma dos poderes e garantir a subsistên-
cia de previsões e certezas para o convívio com o poder”.

A “Constituição”, por sua vez, é um conceito eminentemente mo-


derno essencialmente ligado às Revoluções Liberais, cujo léxico sofreu
um sem-número de rupturas, retrocessos e aquisições evolutivas, desde
a Antiguidade Clássica e o Medievo, passando a comportar, pelo menos,
duas tradições semânticas, que não são necessariamente antagônicas.
A “Lei Orgânica” parece instrumentalizar a transição entre os dois mun-
dos (antigo e moderno) e os dois conceitos “Lei Fundamental” e “Consti-
tuição”, como será visto nos itens subsequentes.

Constituição, assim, tanto pode associar-se a uma acepção empírica


e não normativa – que remete ao modo de ser de um Estado – quanto pode
significar norma ou ato fundamental, cujo sentido se liga à noção de lei15.

No primeiro aspecto que se deixa reconduzir à vertente da tradição


grega (Politeia, termo traduzido pelos romanos como constitutio), o con-
ceito é utilizado para indicar o ordenamento jurídico fundamental que
toda coletividade política necessariamente possui; significa ordem jurídi-
ca em sentido amplo.

Relaciona-se com a construção lenta e gradual da autoridade políti-


ca (e sua estabilização) e opõe-se à radicalidade da revolução e ao con-
tratualismo jacobino que clama pelo poder constituinte. Trata-se de uma
“constituição-ordem”.

O conceito de Constituição, no sentido de “constituição-ordem”, re-


presenta importante ferramenta metodológica para compreender a forma

14 – Idem, p. 33, p. 31-91 e pp. 111 e ss.


15  –  Cf. FIORAVANTI, Maurizio. Stato e costituzione: materialli per una storia delle
dottrine costituzionali. Torino: Giappichelli, 1993, pp. 107-149 e pp. 187-213.

20 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):15-42, set./dez. 2017.


Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

como a administração colonial no Brasil se desenvolveu, particularmen-


te na Capitania de Pernambuco, onde seu percurso histórico-político foi
marcado pela guerra de expulsão dos holandeses. Por força de tal feito he-
roico, os pernambucanos autocompreenderam-se detentores do legítimo
direito à autoadministração da própria Capitania sem interferências ex-
ternas, isto é, da Coroa Portuguesa. Tratava-se de sentimento forjado em
raízes profundas que, na opinião de Amaro Quintas16, deixava-se recon-
duzir a tempos remotos17, desde as sesmarias, os quais teriam ensinado
aos nativos do norte noções elementares de autogoverno e de autonomia.

Em sua segunda acepção, de “constituição-norma”, Constituição


tem o significado de “ato fundamental”; é a norma por meio da qual seus
autores imaginavam poder limitar o exercício dos poderes públicos, ga-
rantindo-se o primado da lei geral sobre as vontades particulares, bem
como assegurar o respeito aos direitos e às liberdades fundamentais.

É norma orientada ao futuro com pretensão de eternidade18, cuja es-


sência é o estabelecimento de uma utopia, a qual – graças à marcha do
progresso e da filosofia da história que a acompanham – realizará a fe-
licidade dos cidadãos com pleno respeito às suas liberdades e garantias
individuais.

Foram as Revoluções Francesa e Americana as grandes precursoras


do significado específico e moderno de Constituição, do qual hoje somos
herdeiros. Sentido esse que, de tão fundamental no horizonte daquela ge-

16  –  Cf. QUINTAS, Amaro. A Revolução de 1817. In: Amaro Quintas: o historiador da
liberdade. 3. ed. Recife: CEPE, 2011, pp. 85-118. O historiador pernambucano, a propó-
sito, afirmou: “A guerra holandesa provocou o desabrochar do espírito nacional. O Arraial
do Bom Jesus vai ser ‘o berço da nacionalidade brasileira’. Na capitania acostumada,
desde o primeiro donatário, a uma vida autônoma, a luta contra o flamengo desperta-lhe
a ideia, embora velada, de emancipação. A sua expulsão definitiva, obra exclusiva dos
pernambucanos, aguça-lhe ainda mais este sentimento” (Idem, p. 156).
17  –  Essa identidade pernambucana, forjada ao longo de conflitos nos séculos, faria re-
pousar a paz interna da Capitania num fino e instável equilíbrio, que terminou rompido
por uma série de fatores, que, como se verá, teriam implicado a quebra dos “pactos” entre
a administração portuguesa e a Capitania, precipitando a eclosão da Revolução de 1817.
18  –  Cf. ZAGREBELSKY, Gustavo. Storia e costituzione. In: Intorno alla Legge. Tori-
no: Einaudi, 2009, pp. 189 e ss.

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Marcelo Casseb Continentino

ração revolucionária, chegou a ser expressamente positivado na Declara-


ção de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que racionalmente a
definiu:
Art. 16. Qualquer sociedade, na qual uma norma não tenha estabe-
lecido a garantia dos direitos nem a separação dos poderes, não tem
Constituição.

Assentada a dicotomia entre “constituição-ordem” e “constituição-


-norma”, torna possível verificar como os revolucionários de 1817, mes-
mo sem haver editado uma “Constituição”, mas preventivamente em seu
lugar uma “Lei Orgânica”, foram vanguardistas, radicalizaram e efetiva-
ram propostas iluministas tão em voga naquele tempo. Em contrapartida,
na fundação do Império do Brasil, a Constituinte de 1823 e o Conselho
de Estado, instituído por Dom Pedro que elaborou a Carta de 1824, per-
filharam caminho diverso, cujo rumo limitava-se à ideia de consolidar as
formas e as estruturas de poder então vigentes, paradoxo esse precisa-
mente sintetizado por Nelson Saldanha19: “Aquele Guilherme de Orange
às avessas pretendia adequar a ele o nosso Bill”.

A Lei Orgânica de 1817, que estabelecia profunda ruptura com o


sistema político colonial português e também, ao menos em tese, com as
relações de poder e de sociabilidade então vigentes, tinha outro horizonte
de expectativa no domínio político.

O ano de1817, portanto, produziu uma encruzilhada temporal de frá-


gil equilíbrio para a estabilização da Constituição.

II. O drama constitucional: Pernambuco, seus vizinhos e os sinais do


tempo
Estudiosos do constitucionalismo têm mostrado que as Consti-
tuições ao longo da história destinavam-se a resolver algum “drama
constitucional”20 concreto. Pernambuco vivia o seu.
19  –  Cf. SALDANHA, Nelson Nogueira. História das ideias políticas do Brasil. Brasí-
lia: Senado Federal, 2001, pp. 105.
20 – Cf. GARGARELLA, Roberto. Latin American Constitutionalism, 1810-2010: the
engine room of the constitution. New York: Oxford Press, 2013, pp. 1-19.

22 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):15-42, set./dez. 2017.


Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

Nações vizinhas também enfrentavam seus desafios políticos, de


modo que havia a troca de experiências, a circulação das ideias políticas
e, por que não reconhecer, o compartilhamento de sonhos e expectativas
que terminaram por influenciar o rumo dos ventos que no Nordeste so-
pravam. O próprio Muniz Tavares registrou como essas ondas constitu-
cionais, vindo de todos os lugares, ressonaram entre os revolucionários
de 181721.

a) Estados Unidos, França e América Latina


Nos Estados Unidos, na América Latina e na Europa, vê-se um des-
pertar constitucional. Não por outra razão, Frei Caneca22 observou com
sua peculiar astúcia, no periódico Typhis Pernambucano, de 13 de maio
de 1824: “O princípio deste século tem sido empregado em política:
constituições e seus projetos ocupam todos os espíritos.”

Era tempo de Constituição.

E as Constituições foram pensadas e elaboradas à luz dos dramas ex-


perimentados por cada nação, para cuidarem de dois pontos fundamentais
em jogo: de um lado, a questão relativa aos direitos individuais (envol-
vendo liberdade e escravidão, igualdade, propriedade etc.); de outro lado,
a questão do autogoverno, da república ou monarquia.

Nos Estados Unidos23, os ingleses americanos concluíram que o


grande inimigo a ser combatido era a Coroa Britânica, que insistia em ig-
norar sua autonomia política, aprovando medidas que lhes contrariavam
os interesses, a exemplo da sobretaxação do comércio exterior por força
do Stamp Act, o estopim da Revolução, cujo lema se deixa apreender a
partir da expressão no taxation whithout representation. Não se pretendia
ruptura radical com a forma de organização social ou com os direitos,

21 – Cf. TAVARES, Francisco Muniz. Op. cit., pp. LXXXIII-LXXXVIII.


22  –  Cf. CANECA, Frei. Typhis Pernambucano XVIII. In: Frei Joaquim do Amor Divi-
no Caneca (Org. Evaldo Cabral de Mello). São Paulo: Editora 34, 2001, p. 439.
23  –  Cf. FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia dele costituzioni moderne (la liber-
tà fondamentali). 2. ed. Torino: Giappichelli, 1995, pp. 74-98.

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transmitidos culturalmente pelos ingleses; apenas o respeito à soberania


política dos americanos.

Tanto que a Constituição dos Estados Unidos de 1787 não previu


inicialmente os direitos fundamentais dos cidadãos, o que só veio a acon-
tecer, anos depois, com a promulgação da Bill of Rights.

Na França24, a questão fundamental dos revolucionários estava en-


raizada nas estruturas sociais e políticas do Antigo Regime. A pauta prio-
ritária era o exercício arbitrário do poder real e de sua concentração nas
mãos do monarca (tirano), as violações aos direitos dos súditos e o esfa-
celamento do modo de produção feudal. A solução divisada era romper
com o passado governamental e autocrático para inaugurar uma nova era
e um novo sistema político de governo, que atendesse às legítimas expec-
tativas dos cidadãos. Eis o papel principal das Constituições que se se-
guiram a 1789. A própria Declaração dos Direitos do Homem é elaborada
sobre duas ideias-força principais: o indivíduo e a lei como expressão da
soberania da nação.

No Haiti, por exemplo, em 1801, editou-se uma primeira Constitui-


ção antes mesmo de os haitianos obterem a efetivação de sua indepen-
dência. Seu drama era, sobretudo, a escravidão. Inspirados pela Revolu-
ção Americana, contando inclusive com aconselhamentos de Alexander
Hamilton para a elaboração da Constituição, acreditavam que ela seria a
resposta para os males do povo, já que aceleraria o processo de emanci-
pação política e faria ver ao mundo o grau de civilidade e de capacidade
de autogoverno dos haitianos.

A Constituição figuraria como instrumento de garantia da liberdade


(isto é, assegurar o fim da escravidão) e dos direitos de igualdade, pro-
priedade e segurança. Observemos, contudo, que a independência política
só veio em 1804, e a ela seguiu a segunda Constituição do Haiti, de 1805,
que instituiu o Império25.
24 – Idem, pp. 53-74.
25  –  Sobre Revolução do Haiti, à luz da história constitucional, ver: GAFFIELD, Julia.
Complexities of Imagining Haiti: A Study of National Constitutions, 1801-1807. Journal

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Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

Em 1811, veio à luz a Constitución Federal para los Estados de Ve-


nezuela, a primeira da América Hispânica, fruto da deposição do governo
colonial forçada pela Revolução de Caracas de 181026. Reconheceu-se a
independência dos venezuelanos, convocou-se uma Constituinte e se pro-
mulgou a “Declaração de Direitos do Povo e do Homem”, de 1º de julho
de 1811. A Constituição estabeleceu um governo federal, republicano,
assegurando a inviolabilidade dos direitos individuais civis (igualdade,
propriedade e liberdade) e políticos. A Constituição, porém, mal comple-
tou seu primeiro ano de vida e saiu da cena política.

Inegável reconhecer que a Constituição Federal da Venezuela ado-


tou os princípios básicos do constitucionalismo moderno, chegando até
mesmo à Declaração de Direitos (na esteira da Revolução Francesa de
1789), e lançou as bases da evolução constitucional daquele país, além
de influenciar outros processos de independência na América.

Essas experiências constitucionais, cujo aprofundamento extrapola o


objeto do presente artigo, desde logo, autorizam-nos a reconhecer a exis-
tência de tempos e espaços inter-relacionados em torno da Constituição.
A partir dos exemplos referidos e outros como Cádiz (1812) e México
(1814), vemos claramente que a “Constituição” foi compreendida como
ponto de partida para a solução dos graves problemas de cada sociedade,
pois, dada sua perspectiva fundacional orientada para o futuro, configu-
rava a possibilidade de ordenação racional e legítima da vida política em
sociedade bem como a realização da felicidade dos povos.

A edição da Lei Orgânica de 1817, a nosso ver, inseria-se nesse ob-


jetivo geral e constituía uma espécie de lei preparatória para a “Consti-
tuição” vindoura, a ser elaborada pela Assembleia Constituinte27. Por ela,
of Social History: Vol. 41, n. 1, Fall, 2007, pp. 81-103.
26 – Uma visão panorâmica sobre a história constitucional venezuelana pode ser encon-
trada em BREWER-CARÍAS, Allan R. Sobre el inicio del constitucionalismo en América
hispana en 1811, antes de la sanción de la Constitución de Cádiz de 1812. Pensamiento
Constitucional: n. 17, 2012, pp. 45-78.
27  –  Essa solução, que atribuía caráter provisório à Lei Orgânica (ou Fundamental), não
representou a rigor uma novidade no cenário político oitocentista, vez que, como nos es-
clarece M. C. Mirrow, a utilização de “lei orgânica” como norma constitucional provisória

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Marcelo Casseb Continentino

seria construído social e juridicamente o fundamento de legitimidade da


nova ordem política.

b) O drama pernambucano e a Lei Orgânica de 1817


A situação, em Pernambuco, era delicada.

A recessão econômica enfrentada pelo Nordeste foi agravada com a


seca de 1816, o que comprometeu a produção dos alimentos de subsis-
tência e impôs a importação de gêneros alimentícios, aumentando o custo
de vida.

A produção do açúcar estava em declínio. As receitas em geral des-


pencavam. Os problemas sociais se agravavam, a exemplo da falta de
segurança, higiene pública e do abandono dos prédios e equipamentos
públicos.

Havia desagrado geral com a administração do governador Caetano


Pinto de Miranda Montenegro (de quem se dizia “Caetano no nome, Pinto
na falta de coragem, Monte na altura e Negro nas acções”28), considerado
submisso aos interesses reinóis, responsável pela crise econômica e inca-
paz de propor alternativas aos problemas surgidos.

Também sobre ele pesou a culpa por não haver resistido ao agrava-
mento do ônus fiscal. Especificamente, em relação ao novo tributo criado
pela corte, destinado a custear a iluminação pública do Rio, e segundo
Evaldo Cabral de Mello29 “o símbolo da expoliação fiscal aos olhos da
gente da terra”. Atribuíam a ele, ainda, a crescente intervenção nos negó-
cios e na administração da Capitania de Pernambuco30, desde a mudança
ao Brasil de Dom João, em 1808.
até que fosse promulgada a Constituição ocorreu em outras regiões, a exemplo do México.
Cf. MIRROW, M. C. Latins American Constitutions: the Constitution of Cadiz and its
legacy in Spanish America. New York: Cambridge University Press, 2015, pp. 145-200.
28 – Cf. TAVARES, Francisco Muniz. Op. cit., p. 23.
29 – Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência (o federalismo pernambu-
cano de 1817 a 1824). São Paulo: Editora 34, 2004, p. 30.
30  –  Cf. LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco 1817: estrutura e comportamentos so-
ciais. Recife: Massangana, 1988, pp. 133-145.

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Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

O impacto nas relações políticas e sociais, oriundo da “interioriza-


ção” da Metrópole, foi sensível e não pode ser menosprezado. Com a
chegada de D. João e da família real para a Colônia do Brasil, elevada
à categoria de Reino Unido a Portugal em 1815, assistiu-se à gradual
transformação na condução político-administrativa das capitanias, o que
afetou significativamente os diferentes graus de autonomia existente.

No caso especial de Pernambuco, que enfrentara a guerra de expul-


são contra os holandeses, conforme já mencionado no item anterior, a
identidade pernambucana sedimentou-se sobre o ideário da autossufi-
ciência e da relativa independência da Capitania em relação ao Reino.
Segundo a professora Maria de Lourdes Viana Lyra31, a vinda da família
real modificou essa lógica administrativa, ocorrendo maior centralização
administrativa e fiscalização das atividades comerciais desenvolvidas nas
capitanias, para não mencionar o aumento das despesas para manutenção
da corte e de suas regalias. Devido à relativa autonomia, em parte fruto
de um pacto que remonta à expulsão dos holandeses32, a Capitania de
31  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A transferência da corte, o Reino Unido Luso-
-Brasileiro e a ruptura de 1822. Revista do IHGB: a. 168, n. 436, pp. 45-73, jul.-set., 2007.
32 – DOCUMENTOS HISTÓRICOS. A Revolução de 1817. Vol. CIII. Rio de Janei-
ro: Biblioteca Nacional, 1953, pp. 109-112. Conforme apontado, com o apoio de Amaro
Quintas, a expulsão dos holandeses sedimentou um sentimento patriótico e autonomista
muito forte entre os pernambucanos. De tal modo que se verifica, em proclamações dos
revolucionários, a ativação da memória dos mártires que lutaram na guerra contra os
holandeses, motivando e legitimando a própria Revolução, em andamento, de 1817. Na
“Proclamação” aos “Honrados Patriotas Pernambucanos”, de 15 de março de 1817, pode-
-se inferir o sentimento patriótico cujas raízes remontam ao período em questão: “Escutai
as vozes da Pátria, que fala ao vosso coração. Os grilhões do nosso antigo cativeiro estão
quebrados, nós somos já livres, e metidos de posse da herança de nossos legítimos direitos
sociais. Mas isto ainda não é tudo o que havemos mister para consumar a grande obra da
nossa independência. Falta-nos levantar e ter prestes um exército com que possamos fazer
cara ao nosso comum inimigo. Pois eia, Filhos da Pátria, herdeiros naturais da bravura e
da glória dos Vieiras e Vidais, dos Dias e Camarões vinde sem perda de tempo alistar-vos
debaixo das bandeiras da nossa liberdade. Pais e mães de famílias, lançai mão da ocasião
que se vos oferece de aproveitar os brios de vossos filhos, mandai-os para o campo da
honra, e vós os vereis brevemente coroados pelas mãos da pátria dos mesmos louros que
ganharam os heróis de Tabocas e Guararapes. Mocidade de Pernambuco, não degenereis
do caráter dos vossos avós se êles ficaram tão famosos, e honrados na memória dos sécu-
los pelos feitos que obraram em serviço de um tirano, quanto mais o sereis vós, seguindo
o seu exemplo na defesa de uma causa em que só se trata de nos dar a todos um novo ser,
a alta dignidade de um povo livre.” Cf. DOCUMENTOS HISTÓRICOS. A Revolução de

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Marcelo Casseb Continentino

Pernambuco sentiu mais fortemente o peso da mão direta do monarca em


seus negócios.

O sentimento de injustiça, de tirania e de opressão se enraizou no


norte, em cenário traduzido na precisa descrição de Evaldo Cabral de
Mello: “Lisboa já não estava em Lisboa, mas no Rio.”33 O desgosto com
os portugueses se agravou mais ainda em decorrência das tensões exis-
tentes entre os proprietários brasileiros e os comerciantes lusitanos, o que,
desde a Guerra dos Mascates, melindrava as relações sociopolíticas na
Capitania de Pernambuco, evidenciando a necessidade de ruptura dos la-
ços políticos entre Brasil e Portugal.

Ao lado de tudo isso, as ideias, muitas ideias novas, que em Pernam-


buco encontraram campo fértil. Voavam de vários lugares: o Areópago de
Itambé, fundado por Arruda da Câmara34; o Seminário de Olinda, inaugu-
rado por Azeredo Coutinho35; a maçonaria; a França, os Estados Unidos,
a Espanha, a América Latina36. Alimentava-se o sonho da liberdade, da

1817. Vol. CI..., pp. 27-28.


33  –  Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit., p. 35.
34  –  O Areópago de Itambé era uma sociedade secreta, cujo funcionamento iniciou em
1796, onde se discutia livremente a situação da Europa e da América bem como as ideias
políticas e as revoluções. O sr. Manuel Arruda da Câmara, ex-frade carmelita, estudou
em Coimbra e em Montpellier, nos idos de 1790, sob os cuidados de Lavoisier, onde tes-
temunhou o curso da Revolução Francesa e a decapitação de seu mestre nela envolvido.
Na Devassa da Revolução de 1817, foi citado pelo juiz responsável como “figura-chave
na formação das ideias revolucionárias”. Foi o mentor intelectual do Padre João Ribeiro,
um dos principais pensadores da Revolução de 1817. Cf. ARAÚJO, Maria de Betânia
Corrêa de (Org.). ABCdário da Revolução Pernambucana de 1817. Recife: CEPE, 2017,
pp. 26-29.
35  –  O Seminário Nossa Senhora da Graça, fundado por Dom José Joaquim da Cunha
d’Azeredo Coutinho, na cidade alta de Olinda, começou suas atividades em 1800 com a
finalidade de promover a educação teológica e civil. Tornou-se “o maior centro difusor
das ideias das luzes no Nordeste colonial”. Cf. ARAÚJO, Maria de Betânia Corrêa de
(Org.). Op. cit., pp. 93-95.
36  –  Cf. TAVARES, Francisco Muniz. Op. cit., pp. LXXXIII-LXXXVIII. Em relação
às origens intelectuais da Revolução de 1817, dentre outros, ver: SIQUEIRA, Antônio
Jorge. Os padres e a teologia da ilustração: Pernambuco 1817. Recife: UFPE, 2009, pp.
119-151 e pp. 213-216; QUINTAS, Amaro. Op. cit., pp. 91-94; LEITE, Glacyra Lazzari.
Op. cit., pp. 192-200; MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência..., pp. 25-63;
CABRAL, Flavio José Gomes. Os homens, as ideias, os escritos e os projetos políticos
no Norte da América portuguesa oitocentista. Revista Brasileira de História & Ciências

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Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

independência, do autogoverno; parecia o alvorecer de uma época em


que se pretendia a hegemonia da razão, da liberdade, da igualdade e da
república em detrimento das crenças, dos costumes e da vassalagem ao
rei e à monarquia. Esse contexto de agitação ideológica propiciou que a
linguagem dos direitos individuais, perfilhada nas luzes europeias e ame-
ricanas, tivesse boa acolhida entre os pernambucanos.

Autores como Condorcert, Voltaire, Rousseau, Sieyès, Mably, Mon-


tesquieu eram bem conhecidos àquele tempo na Capitania de Pernambu-
co37. E, a partir deles, é que os revolucionários de 1817 tentaram consti-
tuir sua linguagem própria e realizar suas pretensões políticas bem como
formular o projeto constitucional para Pernambuco, para as capitanias do
Norte e, no segundo momento, para o Brasil.

Romper com o sistema colonial e com o governo tirano foi a saída


vislumbrada. Mas, o ponto de partida para lidar com os “dramas” de cada
nação era a “Constituição”; e, em seu lugar, veio a “Lei Orgânica”. Por
quê?

III. Pernambuco de 1817: entre “Lei Orgânica” e “Constituição”


Convém mirar sobre alguns dos desdobramentos do 6 de março que
indicam a dimensão constitucional transformadora da Revolução, bem
como a tradição semântica em que se insere um dos seus decretos mais
fundamentais, o da Lei Orgânica de 1817: se aquela da “constituição-
-norma” ou a da “constituição-ordem”.

Logo nos primeiros dias, em uma das mais simbólicas medidas do


Governo Republicano, editou-se o Decreto de 18 de março de 181738,
estabelecendo a forma de tratamento entre os cidadãos, que passaria a se

Sociais: Vol. 7, n. 14, Dezembro de 2015, pp. 267-289.


37  –  Cf. TOLLENARE, Louis François de. Notas dominicais: tomadas durante uma
viagem em Portugal e no Brasil em 1816, 1817 e 1818. 2. ed. Trad. Alfredo de Carvalho.
Recife: EDUPE, 2011, pp. 174-175. Ver, ainda: VILLALTA, Luiz Carlos. Pernambuco,
1817, “encruzilhada de desencontros” do Império luso-brasileiro. Revista USP: n. 58, pp.
58-91, junho/agosto, 2003, p. 61.
38  –  Cf. DOCUMENTOS HISTÓRICOS. A Revolução de 1817. Vol. CI..., p. 34.

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dar pelo pronome “vós” e pelo apelativo “patriota”. Havia alguma seme-
lhança com o ato dos franceses que, no esforço consciente de destruir o
contínuo da história, criaram novo calendário e, ao final do primeiro dia
de luta, dispararam contra os relógios de várias torres em Paris, tentando
a refundação de uma “nova era”, de um “novo tempo”, conforme nos
ensina Walter Benjamin em sua 15ª Tese sobre o conceito de história39.

Obrigar ao tratamento de “patriota” e “vós” simbolizava o propósito


de acabar com as classes sociais, com a oligarquia nobiliárquica, com os
privilégios, conforme pauta da igualdade liberal. Antevia-se uma nova
sociabilidade.

Tal qual os franceses, registre-se, os patriotas republicanos também


aderiram à adoção de um novo calendário. Desde o 6 de março de 1817,
muitos documentos foram assinados, tendo por marco inicial a nova tem-
poralidade afirmada por força da Revolução40.

Deu-se a criação da Bandeira da República41. Outro elemento a indi-


car a profunda ruptura com o governo anterior. Destaque-se que o arco-
-íris da Bandeira representava, para além dos valores da concórdia, paz e
união com os povos que quisessem juntar seus destinos ao dos pernambu-
canos e de sua república. O começo de um novo tempo, um novo estado.

O movimento não se resumiu à estética da Revolução. Antes, ganhou


concretude, dimensão burocrática e aparato estatal específico. Pôs-se em
movimento. Iniciou-se a execução de um conjunto de medidas no âmbito
interno e externo que visavam consolidar a República recém-instaurada.

Já no dia 7 de março foi formado o Governo Provisório com com-


posição heterogênea, em formato inspirado no Diretório da Constituição

39 – Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: O Anjo da História. 2. ed.
Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, pp. 15-16.
40  –  Cf. DOCUMENTOS HISTÓRICOS. A Revolução de 1817. Vol. CI..., pp. 129-130
e p. 136.
41  –  Sobre o tema, ver: SILVA, Leonardo Dantas. A bandeira de Pernambuco. In: A Re-
pública em Pernambuco. Recife: FUNDAJ/Massangana, 1990, pp. 31-52.

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Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

Francesa de 1795, que determinou a extinção de vários impostos42, o au-


mento dos soldos dos oficiais e soldados, para cuidar das questões relati-
vas à segurança e fronteiras. Criou facilidades para pagamento das dívi-
das junto à extinta Companhia de Comércio de Pernambuco e da Paraíba,
beneficiando em especial os grandes proprietários da mata sul43.

Formou-se o germe de um “corpo diplomático”, responsável pelas


“relações internacionais” da República. Foram enviadas cartas e emissá-
rios para o Ceará, Bahia, Rio Grande do Norte, Estados Unidos, Inglater-
ra, dentre outros. Destaca-se, nesse contexto, a figura de Antônio Gonçal-
ves da Cruz, o “Cabugá”, cuja missão foi obter armamentos, soldados e
apoio formal do governo norte-americano44.

Ainda, um dos pontos mais controvertidos na historiografia da Re-


volução, a pauta sobre a “escravidão”. Se na narrativa de Tollenare45 e
de Evaldo Cabral de Mello46, dentre outros, o tema ficou apenas restri-
to a uma meia dúzia de letrados e foi evitado sempre que possível, a
fim de não gerar dissenso entre os grandes proprietários e apoiadores do
Governo Republicano, recentes pesquisas históricas têm proposto novas
leituras sobre a questão, valorizando não só a ação e a participação dos
escravos nos eventos, mas, também, seus projetos ao aceitar lutar em de-
fesa da Revolução.

Embora essa bicentenária polêmica mereça melhor análise, parece


razoável reconhecer que parcela dos escravos lutava pela liberdade jurí-
dica, ao passo que afrodescendentes libertos e pardos, que já eram livres

42  –  Cf. DOCUMENTOS HISTÓRICOS. A Revolução de 1817. Vol. CI..., p. 13 e p.


126.
43  –  Cf. VILLALTA, Luiz Carlos. Op. cit., pp. 71-72.
44  –  Sobre o tema, ver: MOURÃO, Gonçalo de B. C. e Mello. A Revolução de 1817 e a
história do Brasil: um estudo de história diplomática. Belo Horizonte: Itatiaia, 1996, pp.
130 e ss; CABRAL, Flavio José Gomes. Independências: os Estados Unidos e a Repú-
blica de Pernambuco de 1817. Locus: Revista de História, v. 23, n. 1, 2017, pp. 149-165.
45  –  Tollenare registrou uma das proclamações do Governo Provisório, na qual declarou
que “não se tocará ainda no regime de escravidão, menos por aprovar-lhe a justiça, do
que em respeito aos proprietários”. Cf. TOLLENARE, Louis François de. Op. cit., p. 171.
46  –  Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência..., pp. 49 e ss.

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e que representavam a maioria da população revolucionária, pleiteavam a


igualdade civil e política em relação aos brancos47.

A escravidão – que, talvez, do ponto de vista do ideário da Revolu-


ção, tenha sido um dos pontos mais tormentosos para o Governo Provi-
sório – obrigou-o, em decorrência das tensões e rumores provocados, a
editar a Proclamação de 15 de março de 181748 com o objetivo de abran-
dar a “suspeita dos proprietários rurais”49, assim vazada:
Elles crêem que a benéfica tendencia da presente liberal revolução
tem por fim a emancipação indistinta dos homens de côr, e escravos.
O Governo lhes perdôa huma suspeita, que o honra.

É verdade que havia uma singela ambivalência entre igualdade e


propriedade. Consagravam-se, ao mesmo tempo, o princípio da igualdade
(civil e política) e a proteção ao direito de propriedade. Os membros da
Junta de Governo, dizia a Proclamação, “não podem jámais acreditar que
os homens por mais, ou menos tostados degenerassem do original typo de
igualdade”. Porém, na mesma Proclamação, contemporizavam: “... mas
[o Governo] está igualmente convencido que a base de toda a sociedade
regular he a inviolabilidade de qualquer especie de propriedade”.

Finalmente, costurando a solução compromissória entre os interes-


ses dos grandes proprietários e os direitos individuais que inspiravam a
Revolução, a referida Proclamação concluía: o Governo Provisório “de-
seja huma emancipação”, para que não mais se pudesse lavrar o “cancro
da escravidão”; no entanto, a emancipação haveria de ser “lenta, regular,
e legal”50.

47  –  Cf. SILVA, Luiz Geraldo. Igualdade, liberdade e modernidade política: escravos,
afrodescendentes livres e libertos e a Revolução de 1817. In: SIQUEIRA, Antônio Jorge;
WEINSTEIN, Flávio Teixeira & REZENDE, Antônio Paulo (Orgs.). 1817 e Outros En-
saios. Recife: CEPE, 2017, pp. 189-224.
48  –  Cf. TAVARES, Francisco Muniz. Op. cit., p. CCV.
49  –  Cf. RODRIGUES, José Honório. Explicação. In: DOCUMENTOS HISTÓRICOS.
Revolução de 1817. Vol. CIII. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1954, pp. V-VI.
50  –  Cf. TAVARES, Francisco Muniz. Op. cit., p. CCV.

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Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

Em outras palavras, a igualdade (em sentido mais universalizante e


radical) era uma das pautas centrais da Revolução. Ela somente poderia
ser realizada por meio da ruptura com o governo monárquico, que era in-
justo e tirano. A solução era a República, em que todas as pessoas seriam
iguais em direitos e deveres, sem distinções de classe, origem e etnia.

A propensão à radicalidade se revelou em episódios concretos. Dian-


te da alternativa moderada em manter-se uma monarquia constitucional
defendida por José Luiz de Mendonça, o capitão da artilharia, o pardo
Pedro Pedroso, precipitou-se na tentativa de matá-lo com sua espada. Isso
porque “monarquia” era sinônimo da estrutura jurídica, política e social
contra a qual os revolucionários combatiam.

Ou mesmo a Carta de 29 de março de 1817, escrita por Antonio


Carlos Ribeiro de Andrada51 a seu irmão Martim Francisco Ribeiro de
Andrada, a quem, em tom de despedida, relatou:
Já saberás a estas horas o sucesso de Pernambuco. Fui chamado pelo
novo governo, e cheguei no dia 9, e tenho assistido a mor parte dos
Conselhos. Este sucesso tem sido aplaudido por todo o povo; eu tenho
porém um grande desgosto com ele, que é o nos vermos separados,
talvez para sempre. O destino assim o quer, que remedio. Particula-
res e autoridades tudo tem reconhecido o novo governo, e a forma
republicana. Participa a nossa mãe estas notícias, tem porém cuidado
em tranquiliza-la a meu respeito. Tu bem sabes quanto geito é preciso
para que estas novas a não acabem, visto a sua grande idade. Adeus,
saudades aos amigos Mariano, Belchior e Rodrigues. (grifou-se)

A radicalidade revolucionária também se expressou em documento


solene, que foi a “Declaração dos Direitos Naturais, Civis e Políticos do
Homem”52, que foi enviada para publicação na Officina Typographica da
Republica de Pernambuco, mas não chegou a ser distribuída nem alcan-
çou seus destinatários por força da repressão reinol empreendida.

51  –  Cf. DOCUMENTOS HISTÓRICOS. A Revolução de 1817. Vol. CI..., p. 68.


52  –  ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Brasil – Pernambuco, cx. 278, doc.
18736 (post. 1817, março 4) [AHU_ACL_CU_015, Cx. 278, D. 18736].

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Sua análise, no entanto, oferece importantes indícios da amplitude


da concepção de igualdade que se pretendia implantar no Governo Re-
publicano, o que sugere uma ruptura com as relações de sociabilidade
anteriores. No preâmbulo da Declaração dos Direitos, lemos:
Sendo o fim de toda a reunião dos homens em sociedade a conserva-
ção dos Direitos Naturaes, civis e politicos; estes Direitos devem ser
a base do pacto social, e o seu reconhecimento e declaração devem
preceder a constituição, a qual lhe serve de fiador.

O art. 6º da Declaração, elaborada pelos revolucionários de 1817,


previa que “Liberdade consiste em que cada hum possa gozar dos mes-
mos Direitos”. Já o art. 8º da Declaração assegurou: “Todos os cidadãos
são admissíveis a todos os lugares, empregos e funções públicas”; que as
preferências se dariam em virtude dos “talentos e virtudes”.

Pretendia-se a igualdade social de todos os patriotas, e era em bus-


ca dela mesma que muitos escravos lutavam. Tais aspectos nos levam a
compreender 1817 como movimento que perfilhava a tradição semântica
da “constituição-norma”, no sentido em que se destinava a promover a
ruptura com a ordem social anterior.

Finalmente, a Lei Orgânica de 181753, que, no dia 29 de março, teve


determinada sua distribuição para todas as Câmaras da República para
ser apreciada e aprovada. Esta Lei foi muito além dos limites semânticos
expectados por uma “Lei Orgânica”, para aquela época.

A “Lei Orgânica”, por definição, já o dissemos, destinava-se a esta-


belecer as regras, atribuições e limites dos poderes políticos constituídos.
Não era conceitualmente uma “Carta de Direitos”, tampouco uma “Cons-
tituição”.

Assim como o Statuto Albertino – promulgado a 4 de março de 1848,


pelo Rei Carlos Alberto de Savoia, do Reino de Sardenha – valeu como
Constituição Nacional após o processo de unificação da Itália (em 1861)
até o ano de 1944, também a Lei Orgânica de 1817 pode ser compreendi-

53  –  Cf. DOCUMENTOS HISTÓRICOS. A Revolução de 1817. Vol. CIV..., pp. 16-23.

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Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

da como equivalente funcional da “Constituição” (sem com ela confun-


dir-se), pois, segundo seu próprio art. 28, estava prevista a convocação de
uma Assembleia Constituinte exclusiva para elaborar a “Constituição” da
República 54.

Se, de um lado, a Lei Orgânica de 1817 tratou predominantemen-


te da estrutura e das atribuições dos poderes políticos, a exemplo das
funções do Governo Provisório (art. 1º), da atribuição do exercício da
legislatura pelo Conselho de seis membros (arts. 2º, 6º e 7º), do processo
legislativo (arts. 4º e 5º), do Poder Executivo (arts. 8º a 12) e do Poder
Judiciário (arts. 13 a 20); de outro lado, avançou em temas de direitos e
garantias individuais, próprios de uma “Constituição”, ao estabelecer a
liberdade de imprensa (art. 25), a tolerância religiosa em relação às seitas
cristãs (art. 23) além da igualdade entre patriotas e europeus/estrangeiros
naturalizados, que poderiam ocupar todos os cargos da República (arts.
26 e 27).

Mesmo sem se autorreconhecer “Constituição”, a Lei Orgânica de


1817, de acordo com a definição do art. 16 da Declaração dos Direitos
de 1789, poderia sim enquadrar-se como “Constituição”, tendo inclusive
antecipado muitas das garantias e estruturas hoje presentes na Constitui-
ção Federal do Brasil, de 1988, consoante já examinado pelo professor
Nilzardo Carneiro Leão55 e pela professora Margarida Cantarelli56.

54  –  O art. 28 da Lei Orgânica de 1817 previa: “O presente govêrno e suas formas du-
rarão sòmente enquanto se não ultimar a Constituição do Estado. E como pode suceder
o que não é de esperar, e Deus não permita que o Govêrno para conservar o poder de
que se acha apossado frustre a justa expectação do povo, não se achando convocada a
Assembléia Constituinte dentro de um ano da data dêste ou não se achando concluída a
Constituição no espaço de três anos, fica cessado de fato o dito Govêrno, e entra o povo
no exercício da soberania para o delegar a quem melhor cumpra os fins da sua delegação.”
55  –  Cf. LEÃO, Nilzardo Carneiro. Revolução Republicana (XVI). Folha de Pernambu-
co: Seção Artigos, edição de 16 de junho de 2016.
56  –  Cf. CANTARELLI, Margarida. Raízes do constitucionalismo moderno na Lei Or-
gânica. Palestra proferida no “Seminário Revolução Pernambucana de 1817”, realizado
nos dias 5 e 6 de abril de 2017, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no
Estado do Rio de Janeiro.

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A Lei Orgânica de 1817 marcava a ruptura política com o status quo


colonial, com o Antigo Regime e com as instituições monárquicas por-
tuguesas, revelando o intento do Governo Provisório de criar do zero (ex
nihil) o governo, autônomo e independente. Um novo pacto social seria
reescrito, sob a linguagem e os fundamentos políticos do liberalismo.

Só não tinha o nome. E por que a “Lei Orgânica” não tinha o nome
“Constituição”? O que há em um nome? Em nossa visão, há dois pontos
conexos que impediram de denominar “Constituição” a “Lei Orgânica”,
o que foi apontado por Muniz Tavares como “erro” dos líderes da Revo-
lução.

Eram eles o horizonte territorial da Revolução de 1817 e a questão


do povo, cuja aceitação constituía condição de legitimidade do pacto so-
cial a ser celebrado.

Não poderia a Lei Orgânica de 1817 ser naquele momento uma


“Constituição”, porque, tal qual histórica e positivamente definido no art.
16 da Declaração de 1789, a Constituição pressupunha uma “sociedade”.
E qual seria a extensão territorial da Pátria de 1817? Quais ex-capitanias
comporiam a pátria republicana no pós-6 de Março?

Não havia ainda a configuração do povo nem a delimitação do ter-


ritório. Apenas, a expectativa de um horizonte territorial, o que, a consi-
derar as comunicações e as proclamações realizadas pelos líderes do mo-
vimento57, acreditava-se que, mais cedo ou mais tarde, envolveria todo o
Reino do Brasil. Faltava, portanto, a “sociedade”, pressuposto inarredável
para a Constituição formal e escrita, característica dos tempos modernos.

Em segundo lugar, a urgência dos líderes residia na necessidade de


possibilitar a mínima estruturação orgânico-política de Governo Provi-
sório, o que realmente foi atingido com relativo êxito pela Lei Orgânica
de 1817. Aspecto esse, inclusive, que foi ponderado pelo próprio Muniz

57  –  Cf. DOCUMENTOS HISTÓRICOS. A Revolução de 1817. Vol. CIV..., pp. 95-96.

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Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

Tavares58, mas que, no entanto, não foi suficiente para demovê-lo do juízo
refratário à solução da “Lei Orgânica” como “erro” dos líderes de 1817:
O novo Governo de Pernambuco logo que foi nomeado, estava na
rigorosa obrigação de publicar hum regulamento provisório, que mar-
casse o modo das eleições, e de ajuntamento dos eleitos com indicação
do respectivo lugar, convidando as outras Provincias a concorrerem
contemporaneamente com os membros correspondentes á sua popu-
lação.

Para criar-se a legítima “Constituição”, no entanto, segundo a li-


nhagem ideológico-filosófica de Rousseau e Sieyès (que perpassa pelas
noções de soberania do povo, poder constituinte e pacto social), era in-
dispensável a participação do povo no processo de elaboração da Consti-
tuição. É suficiente lembrarmos, nesse contexto, que justamente esse foi
o primeiro e mais fundamental argumento de que se valeu Frei Caneca59
para votar contra a aprovação e o juramento da “Constituição” do Império
de 1824 pela Câmara do Recife.

A Lei Orgânica, se Constituição fosse, sofreria dessa mácula. Tanto


que, a rigor, a Lei Orgânica de 1817 é de Pernambuco, não englobando,
em princípio, a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Não por outra razão,
Muniz Tavares afirmou que o “Federalismo”, a “liga federal”, em 1817,
não se formou, embora esse constituísse um dos seus principais objetivos,
razão por que Oliveira Lima60 entendia que a Revolução de 1817 foi um
movimento nacional que objetivava à ampla adesão das demais capita-
nias, sem o que seu êxito estaria comprometido61. Faltava o território e,

58  –  Cf. TAVARES, Francisco Muniz. Op. cit., p. CCIII.


59  –  Ressalte-se que Frei Caneca recusou denominar “Constituição” a “Constituição do
Império”. Para o carmelita e mártir da Confederação do Equador, tratava-se aquele do-
cumento jurídico de uma “Carta”, porquanto não tinha sido aceita pelo povo; faltava-lhe,
pois, legitimidade democrática para se tornar uma “Constituição”. Cf. CANECA, Frei.
Crítica da constituição outorgada (1824). In: Ensaios Políticos. Rio de Janeiro: Documen-
tário, 1976, pp. 67-75.
60  –  Cf. LIMA, Oliveira. Centenário da Revolução de 1817. Revista do Brasil: n. 15, a.
2, março, 1917, pp. 247-259.
61  –  Veja-se, por exemplo, o Preciso, de 10 de março de 1817, documento valioso por
meio do qual podemos perceber o esforço incansável dos revolucionários para obter a
adesão e a participação de outras regiões do Brasil.

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por conseguinte, a delimitação do próprio povo, que seria o detentor do


título para legitimar a vindoura Constituição.

Mesmo assim, 1817 legou-nos uma “Constituição”. Porque se reves-


tia de um sentido de ruptura política mais profundo, havia a perspectiva
temporal orientada para o futuro, a pauta de direitos e o sentido de trans-
formação social; elementos, portanto, configuradores do moderno concei-
to de Constituição.

A considerar as duas dimensões básicas do conceito “Constituição”,


“constituição-ordem” e “constituição-norma”, vemos que, por mais breve
que tenha sido a experiência republicana de 1817, na representação dos
revolucionários, estava-se inaugurando uma nova era, um novo tempo.
E esse dado não pode ser desconsiderado. Era nítido o esforço por cons-
tituir a identidade republicana mediante a contestação e a rejeição da
identidade monárquica; bem como por legitimar a nova ordem política
e jurídica que seria inaugurada pela promulgação da nova Constituição.

Conclusão
Ao longo do presente artigo, nosso objetivo consistiu em examinar
os limites e as possibilidades da Revolução Republicana de 1817, em Per-
nambuco, a partir da dicotomia histórico-conceitual entre “Lei Orgânica”
e “Constituição”, cuja acepção se distingue em duas tradições específicas,
a da “constituição-ordem” e “constituição-norma”.

Vimos, nesse contexto, que a Lei Orgânica de 1817, sem se con-


fundir integralmente com a noção moderna de Constituição, guardou
significativa aproximação com o conceito de “constituição-norma”, pois
projetava no horizonte de expectativas dos revolucionários a ruptura com
o Antigo Regime, a nova Constituição e o novo regime republicano de
governo de pessoas livres e iguais, pretensamente fundado no ideário da
justiça social, pondo fim ao jugo da ilegítima subordinação aos reinóis.

Constatamos, de igual modo, que o projeto republicano revolucioná-


rio não se realizou em toda a sua dimensão, apresentando, inclusive, limi-

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Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos
da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817

tes de difícil conciliação, a exemplo da questão da escravidão e da própria


institucionalização e consolidação, como se verificou com a dificuldade
de formar-se a federação republicana.

Contudo, se o projeto constitucional republicano não se consumou


em sua integralidade, sendo interrompido em breve espaço de tempo após
sua eclosão, o fato de hoje comemorarmos seu bicentenário evidencia
que sua memória e seu legado têm muito a ensinar à atual e às futu-
ras gerações, já que essa rica experiência jurídico-política, conforme já
destacamos62, é constitutiva do longo percurso constitucional brasileiro,
no qual, desde a geração dos revolucionários de 1817, revela-se nossa
luta pela implementação dos princípios da igualdade e da liberdade, que
configuram o núcleo essencial de todas as Constituições que o Brasil co-
nheceu nesses últimos 200 anos. Por essa razão, o estudo da Lei Orgânica
de 1817 configura capítulo imprescindível da história e da tradição cons-
titucional pátria.

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62  –  Cf. CONTINENTINO, Marcelo Casseb. A Revolução Republicana de 1817: em
busca de uma cultura constitucional brasileira. Revista Jurídica da UFERSA: v. 1, n. 2,
ago./dez. 2017, pp. 57-67.

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Marcelo Casseb Continentino

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Texto apresentado em maio/2017. Aprovado para publicação em se-


tembro/2017.

42 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):15-42, set./dez. 2017.


Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

43

TRADIÇÃO E INOVAÇÃO NO DISCURSO


POLÍTICO-JURÍDICO DA REVOLUÇÃO DE 1817
TRADITION AND INNOVATION IN THE POLITICAL-LEGAL
DISCOURSE OF THE REVOLUTION OF 1817
Arno Wehling1
Resumo: Abstract:
A par da influência ilustrada e das práticas das Alongside the manifest influence and practices
Revoluções Americana e Francesa, o discurso of the American and French Revolutions, the
politico-jurídico da Revolução de 1817 e mes- political-legal discourse of the Revolution of
mo algumas manifestações concretas do movi- 1817, and even some concrete manifestations of
mento apontam para uma forte presença do pac- the movement, point to a strong presence of the
tismo ibérico tradicional. Podemos encontrar traditional pactism on the Iberian Peninsula.
assim tanto permanências do discurso do Antigo We can thus detect both the continuity of the
Regime, inclusive na utilização de conceitos, discourse of the Old Regime, including in
quanto metamorfoses que atribuem a antigas ex- its use of concepts, and metamorphoses that
pressões novos significados, evidenciando desta add to existing expressions new meanings,
forma um misto de tradição e inovação no dis- thus highlighting a mixture of tradition and
curso político-jurídico da Revolução de 1817. innovation in the political-legal discourse of the
Revolution of 1817.
Palavras-chave: Constitucionalismo; Antigo Keywords: Constitutionalism; Old Regime;
Regime; Liberalismo; Codificação; Poder. Liberalism; Codification; Power.

Há vasto consenso em considerar a Revolução Pernambucana de


1817 como resultado ideológico do liberalismo e das Revoluções Ameri-
cana e Francesa2. Os “sediciosos princípios” criticados pela retórica ofi-
cial portuguesa teriam penetrado a colônia desde o final do século XVIII,
inclusive mas não apenas pela via da maçonaria. No mapa das “causali-
dades”, aparecem também na historiografia os fatores propriamente mate-
riais, como os políticos e econômico-sociais. O “despotismo ministerial”
e do governo local, os novos impostos ditados pela Corte no Rio de Ja-
neiro, a antiga rivalidade proprietários rurais exportadores versus comer-
1  –  Membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro. Professor titular da UFRJ e emérito da UNIRIO. Professor da PPGD da Universi-
dade Veiga de Almeida..
2  –  VEIGA, Glaucio. História das ideias da Faculdade de Direito do Recife, Recife,
UFPE, 1980, vol I, p. 175ss. PEREIRA, Nilo. Ensaios de história regional, Recife: UFPE,
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R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):43-64, set./dez. 2017. 43


Arno Wehling

ciantes ou fração do corpo de comerciantes do Recife ou simplesmente o


conflito entre mazombos brasileiros e portugueses natos são os principais
aspectos mencionados para explicar o desencadear do movimento. Não
trataremos aqui diretamente da segunda ordem de fatores, embora este-
jam presentes em nosso tema.

A questão aqui discutida compreende uma dúvida e uma hipótese.


A dúvida é: deve-se fazer tabula rasa de toda uma tradição político-ju-
rídica ibérica sobre o estado, o governo e a justiça para considerar que a
partir de determinado momento, por um leque de injunções materiais e
ideológicas da colônia, adotou-se pura e simplesmente o padrão liberal-
-revolucionário da virada do século XVIII, como se tivesse sido objeto de
uma súbita revelação? A hipótese consequente é a de que houve um misto
de tradição (no sentido da permanência da vertente ibérica) e inovação
(no sentido do Iluminismo além-Pirineus) no discurso político-jurídico da
Revolução de 1817, restando saber, se ela estiver correta, de qual tradição
e de qual inovação se trata.

Consideraram-se as manifestações ocorridas a partir de março de


1817: as atas, decretos e proclamações do Governo Provisório, o Preciso,
a Lei Orgânica, as pastorais e proclamações do bispado e atas das câma-
ras do Recife e Limoeiro, que constituem o corpus da cultura político-ju-
rídica da Revolução Pernambucana. A perspectiva utilizada corresponde
em grande parte à adotada por Skinner e Poccock, percebendo as ideias
menos em função de grandes pensadores e mais em função dos temas fun-
damentais debatidos em diferentes momentos tanto por atores principais
como secundários3. Com isso espera-se recuperar na análise do discurso
político-jurídico de 1817 as categorias que mobilizavam e justificavam
suas opções.

Há duas vantagens evidentes nesse procedimento. A primeira, re-


cuperar ainda que parcialmente o processo pelo qual foram concebidas

3 – POCOCK, John Greville Agard. Virtues, rights and manners: a model for historians
of political thought. In: POCOCK, John Greville Agard, Virtue, Commerce, and History,
Cambridge: CUP, 2002, p. 37ss.

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Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

muitas das ideias políticas e jurídicas, considerando cumes e vales, pensa-


dores eminentes e autores de escassa memória, já que todos se revelaram
importantes para a construção do pensamento e da linguagem de uma
época, por participarem de um debate cada vez mais perdido no tempo.
A esse argumento de Skinner e Pocock pode ser acrescentado outro, o
de que a rica tradição ibérica do tema pode ser mais bem percebida se
procurarmos reconstituir, a partir do que disseram os revolucionários de
1817, os elementos que a desnudam. Não é algo autoevidente, porque
frequentemente mesclam-se os discursos franco-anglo-saxão e ibérico,
como também se misturam os argumentos do Antigo Regime e os do
nascente mundo liberal.

Antes de avançar no assunto, é importante lembrar que o discurso


político-jurídico dos revolucionários de 1817, reflexo da difusa cultura
política e jurídica existente em Pernambuco, e provavelmente no Brasil
daquele momento, era marcado por algumas características determinan-
tes e limitativas:

– A existência de uma rebelião contra o governo do Rio de Janeiro,


cuja prioridade era evidentemente sua consolidação política, no início e
logo a sobrevivência, com a rápida repressão a partir da Corte e da Bahia.
A discussão político-jurídica e a questão constituinte estiveram presentes
e se exteriorizaram em atos, porém não podiam ser o foco preferencial
dos revoltosos.

– A ausência de liberdade para a discussão de temas políticos no


Brasil não havia facilitado o surgimento de uma cultura política e jurídica
mais elaborada, como a existente nas colônias norte-americanas antes de
1776 ou nos centros hispano-americanos que possuíam universidades.

– A repressão governamental e a censura política, agravadas após


os movimentos anteriores na colônia e a radicalização jacobina da Revo-
lução Francesa, tornavam em tese qualquer debate de natureza política
suspeito de inconfidência e passível do respectivo processo.

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Não obstante, o mapeamento resultante da análise do discurso políti-


co-jurídico de 1817 mostra resultados interessantes para a reconstituição
dos parâmetros ideológicos do movimento.

As ideias-força: duas classificações


A leitura dos mencionados documentos da Revolução permite identi-
ficar algumas ideias-força, no sentido dado pelo filósofo Alfred Fouillée4,
que podemos classificar em concepções que dizem respeito à organização
político-institucional e jurídica do estado e da sociedade e à dinâmica
sóciopolítica e ideológica naquela conjuntura.

Quanto aos o primeiro aspecto, encontramos as menções, todas fre-


quentes, a liberdade, soberania, propriedade, constituição, segurança,
ordem, direitos, leis e povo.

Quanto aos segundo, pátria/patriotismo, restauração, religião, des-


potismo/tirania, honra, ordens/classes, escravidão, revolução e brasilei-
ros/portugueses.

À distinção temática deve ser acrescentada outra, que diz respeito ao


que era tradicional e ao que era moderno nessas concepções, entendendo-
-se por “tradicional” o que pertencia ao universo de referências do Antigo
Regime e “moderno” aquilo que se fundamentava nas premissas ilumi-
nistas e das Revoluções Americana e Francesa.

A dicotomia tradicional-moderno, discutível como toda polari-


zação, tem a vantagem neste caso não propriamente de opor conceitos
Antigo Regime a conceitos iluministas, mas de perceber quais foram os
que no processo revolucionário permaneceram inalterados e quais os que
se modificaram ao impacto das novas concepções. Uns mantiveram seu
significado tradicional, unívoco em relação ao que expressavam, outros

4  –  O conceito de Alfred Fouillée consistia na identificação de ideias ou forças morais


capazes de fixar valores e produzir autorreflexão; não era apenas uma tese acadêmica, mas
uma forma de combater o determinismo oitocentista e a concepção que subordinava as
ideias ao mundo material.

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Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

sofreram mutação semântica e o velho substantivo passou a ter nova co-


notação, sem necessariamente excluir a antiga.

Procuraremos distinguir portanto entre permanências e metamorfo-


ses.

Permanências do discurso Antigo Regime


Talvez a expressão mais simbólica de um discurso à moda do Anti-
go Regime seja a introdução do Preciso da Revolução Pernambucana5.
Elaborado por José Luís de Mendonça e datado de 10 de março de 1817,
quatro dias após o início do movimento, dizia em suas primeiras linhas:
“Depois de tanto abusar da nossa paciência...”

Vários dos participantes da Revolução, a começar por aqueles que


tinham algum tipo de formação jurídica – como era o caso de Mendonça
– ou eclesiástica, continuavam formados na velha retórica ciceroniana,
dominante desde o Renascimento. Começar o Preciso pela evocação da
primeira Catilinária era assim expediente oratório nada surpreendente.
Essa retórica aliás não se limitava à forma de expressão, mas correspon-
dia praticamente a uma das concepções da história vigentes – a de mestra
da vida, cujos ensinamentos apareciam sob a forma de argumentos da
retórica forense.

Indo-se da simbologia à prática do discurso revolucionário, surge


logo a ideia de restauração. É utilizada correntemente nos meses revolu-
cionários a expressão nova restauração pernambucana, para sublinhar
o caráter altivo e libertário de Pernambuco, que na primeira restauração
expulsara os holandeses e agora derrubava a tirania. O movimento de
1817 foi parte importante naquele momento e posteriormente na edifica-
ção do “panteão restaurador” estudado por Evaldo Cabral de Mello6. Os
documentos oficiais da Revolução, impressos na “Oficina Tipográfica da

5  –  Foi utilizada a transcrição de PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Anais Per-


nambucanos. Recife: Fundarpe, 1983, vol. VII, p. 387.
6  –  MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O imaginário da restauração pernambuca-
na, Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 195.

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Arno Wehling

República de Pernambuco” terminavam invariavelmente com expressões


como “segunda vez restaurado” ou “segunda Restauração de Pernambu-
co”.

Poderia ser mera afirmação da vontade de estabelecer uma filiação


com as lideranças da época da expulsão dos holandeses, acentuando o pa-
pel dos pernambucanos em relação aos portugueses. Ou poderia se tratar
da afirmação de um princípio político-jurídico, pelo qual os pernambu-
canos, adquirindo a liberdade, se puseram voluntariamente sob o rei de
Portugal. Pelo menos é o que consta de um dos documentos da devassa,
registrado pelo desembargador João Osório de Castro Sousa, funcionan-
do como escrivão da Alçada. Segundo ele, os insurretos afirmavam que
... esta terra, sendo conquistada pelos seus antepassados aos holande-
ses, ficou sendo propriedade sua e que a doaram a el-rei nosso senhor
debaixo de condições que ele não tem cumprido, pela imposição de
novos tributos e que os europeus que têm vindo aqui estabelecer-se
têm enriquecido à custa deles patrícios e se têm feito senhores do país,
e eles escravos...7

Os pernambucanos, tendo lutado e adquirido sua liberdade, seriam


assim detentores de um justo título ante o monarca, cujo afastamento dos
princípios tradicionais do bom governo autorizava a rebelião para – e aí
entra um segundo sentido da palavra restauração – restabelecer a ordem
perturbada por más políticas e maus agentes.

Claro está que, como na sucessão de acontecimentos da Revolução


Francesa, cujos episódios os revolucionários de 1817 conheciam bem,
a julgar pelo testemunho de Tollenare, a “revolução” no sentido tradi-
cional de restauração poderia transformar-se na “revolução” do sentido
de ruptura com a ordem anterior. Hannah Arendt estudou como se deu a
passagem do movimento para “restaurar uma ordem de coisas que fora
perturbada e violada pelo despotismo dos monarcas ou por abusos do
governo colonial”8 para um movimento dominado pelo espírito revolu-
cionário propriamente dito. Acresce que, no caso pernambucano, havia o
7 – Documentos Históricos, Biblioteca Nacional, CIII, p. 127.
8  –  ARENDT, Hannah. Da Revolução. Brasília: UNB, 1988, p. 23.

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Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

conhecimento prévio do que ocorrera em dois paradigmas, as Revoluções


Americana e Francesa, e alguns de seus participantes mais entusiásticos,
como o padre João Ribeiro, já eram “alucinados” (expressão de Tollena-
re) pelos filósofos franceses9.

As proclamações e pastorais do bispado de Pernambuco e de vigá-


rios de vários lugares dão não apenas a narrativa do apoio ao movimento
e depois sua negação, como deixam entrever uma espécie de teologia
política em que se misturam as tradicionais justificativas religiosas para
o poder político com novas tendências de afastamento entre ambos, que
todavia não chegam à secularização.

O apoio à Revolução e o apelo para o congraçamento de pernambu-


canos e portugueses sob o manto da catolicidade comum apareciam junto
a afirmações como a feita pelo Deão de Olinda três dias após o início da
Revolução, de que
devemos obedecer às Autoridades Constituídas, não tanto pelo medo
do castigo como pelo grito da consciência [...] a falta deste sagrado
dever é um dos maiores atentados que se pode cometer contra Deus
e a Pátria10.

Era a afirmação da doutrina cristã tradicional ancorada no tomismo


em relação ao comportamento em face do poder e permitia uma dupla lei-
tura, tanto no sentido revolucionário quanto no do rei, já que mencionava
apenas as “autoridades constituídas”. No caso, porém, o Deão Bernardo
Luís Ferreira Portugal se assina como o “Patriota Vigário Geral” e se
dirige aos “católicos patriotas”, sublinhando assim sua adesão à revolu-
ção. Em 2 de abril, na cerimônia de benção das bandeiras, o deão intro-
duziu um novo argumento à sua teologia política, a de que Deus fizera
os homens livres e “o espírito das trevas introduziu gás infernal na alma
dos malvados”, que constituíram os príncipes absolutos. Em consequên-
cia, “Nós não elegemos Príncipes, nós o combateremos o perseguiremos

9  –  MELO, Evaldo Cabral de. Um imenso Portugal. História e historiografia. São Pau-
lo: Editora 34: 2002, p. 172.
10  –  Manifesto do patriota vigário-geral Bernardo Luís Ferreira Portugal. In: Documen-
tos Históricos, CI, pp. 12-13.

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Arno Wehling

até que entre no Inferno, donde o antigo inimigo do gênero humano o


extraiu.”11

Era uma leitura do direito de resistência tradicional, que admitia a


reação violenta ao tirano e não uma crítica à aliança entre o trono e o altar,
do discurso revolucionário.

Em sentido semelhante, de vincular obrigações religiosas a compor-


tamento político, os governadores do bispado de Olinda dirigiram-se aos
párocos do bispado, para afirmar três graus decrescentes e interdependen-
tes de obrigações deles, para com Deus, para com eles mesmos e para com
a sociedade. A tripartição fazia parte da teologia católica e tinha evidente
inspiração tomista, aparecendo igualmente nos três capítulos iniciais da
segunda parte dos Estatutos do Seminário de Olinda, onde estudaram tan-
tos futuros participantes do movimento12. Introduziram ademais aqueles
governadores do bispado uma tese de inspiração mercantilista, que reme-
te ao “estado de polícia” setecentista, curiosamente argumento repetido
pelos burocratas do absolutismo no século XVIII em diferentes países:
A prosperidade nacional está no aumento de sua população; a Igreja
está no Estado e é obrigada a promover pelos meios que lhe são pró-
prios ao incremento da população por ser fiel companheira do melho-
ramento da cultura, indústria e comércio13.

Do ponto de vista dos rebeldes, a posição da Igreja católica conti-


nuava preeminente: um de seus membros, o padre João Ribeiro, fazia
parte do governo provisório, na condição de representante eclesiástico;
o Preciso afirmava que a revolução tinha sido “obra da Providência” e
abençoada por Deus14; e o projeto de Lei Orgânica previa a gestão do cul-
11  –  PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Anais Pernambucanos. Recife: Fundar-
pe, 1983, vol. VII, p. 419.
12  –  Estatutos do Seminário Episcopal de Nossa Senhora da Graça da cidade de Olinda
de Pernambuco, ordenados por D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho XII bispo
de Pernambuco. In: ALVES, Gilberto Luiz. Azeredo Coutinho, Recife: Massangana, 2010,
p. 96ss. O autor agradece ao prof. Guilherme Pereira das Neves a lembrança da menção
das obrigações nos Estatutos, por ocasião do Seminário sobre a Revolução Pernambucana
realizado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em abril de 2017.
13  –  Carta Pastoral de 24 de março de 1817; Documentos Históricos, vol. CIII, p. 60.
14  –  PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Op. cit., vol. VII, p. 389.

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Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

to por uma secretaria de Estado, o catolicismo como religião oficial, com


tolerância para “as demais seitas cristãs” e o sacerdócio católico mantido
pelo poder público15.

Essa preeminência não se deu apenas pela mentalidade religiosa ar-


raigada na população, mas porque o movimento foi “quase... uma revolu-
ção de padres”, expressão utilizada por Oliveira Lima, nos comentários à
obra de Muniz Tavares sobre a Revolução16. E, podemos acrescentar, da
primeira geração formada pelo Seminário de Olinda.

A vitória do governo real determinou logicamente mudança no dis-


curso da Igreja local. Uma de suas expressões sintomáticas, reafirmando
a antiga teologia política do absolutismo, foi a pastoral do bispado de
Olinda, de 1 de agosto de 1818, na qual após dizer que agora era “o pastor
livre dos lobos famintos”, reconstruía-se o discurso tradicional. Segundo
ele, Adão fora criado por Deus como soberano e os que depois o represen-
taram, também. Não foram os filhos de Adão que lhe deram o poder para
governar, mas Deus, a eles só competindo obedecer. Desse fundamento
partia-se para chegar ao presente:
Não são os povos que elegem os reis, sim é Deus que elege os repre-
sentantes de nosso primeiro pai [...] o mistério da soberania de Nosso
Rei e Senhor D. João VI não é menos respeitável que os mistérios
profundos que venera a nossa Religião cristã17.

Tudo o mais, continuava a pastoral, nada mais era do que conspira-


ção das “grandes potências da Europa” e dos “pedreiros livres e liberti-
nos” contra Portugal e seu supremo monarca.

A preocupação com a propriedade era outro exemplo de permanência


do status quo, como aliás acontecia nos modelos revolucionários que os
pernambucanos tinham diante dos olhos. As teses liberais e racionalistas
deram-lhe uma relevância ainda maior do que a que tinha no Antigo Re-
15  –  Lei Orgânica, art. 23. In: Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, org. Evaldo Cabral
de Mello, São Paulo: Editora 34, 2001, p. 444.
16  –  Anotações. In: TAVARES, Francisco Muniz. História da revolução de Pernambuco
em 1817, Recife: Cepe Editora, 2017, p. 116.
17  –  Carta Pastoral de 1º de agosto de 1818, Documentos Históricos,vol. CIII, p. 260.

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Arno Wehling

gime, valorizando o individualismo e a liberdade contratual e isso se re-


fletia, a partir da filosofia política iluminista, nas construções ideológicas
e nas revisões da legislação feitas por toda a Europa centro-ocidental18.

Na primeira proclamação do governo provisório, logo após a posse


no dia 7 de março, não se falava na propriedade, mas a promessa de paz,
concórdia entre brasileiros e portugueses, prosperidade e busca da felici-
dade – este objetivo expresso da Declaração de Independência dos Esta-
dos Unidos que reaparecia no Recife revoltoso – tornava-a um pressupos-
to óbvio19. Três dias depois era o Preciso que afirmava, agora de modo
explícito, ter sido o primeiro cuidado do governo provisório a garantia da
segurança das “famílias, pessoas e propriedades”20.

Se houvesse dúvidas quanto à extensão do direito de propriedade,


particularmente em relação à escravidão – o espectro da revolução do
Haiti era moeda corrente no Brasil joanino e fora objeto de pelo menos
um memorial entregue a D. João VI no Rio de Janeiro21 –, elas foram
dirimidas pela proclamação de 15 de março. Ela reafirmava um ponto de
equilíbrio e opunha dois valores cujo confronto era o principal desafio
da época revolucionária do ponto de vista político e também jurídico: a
liberdade e a propriedade.

O governo revolucionário defendia a igualdade, mas estava “igual-


mente convencido de que a base de toda sociedade regular é a inviolabi-
lidade de qualquer espécie de propriedade”. Entre essas duas forças, dizia
a proclamação, o governo desejava a emancipação, mas que fosse “lenta,
regular e legal”. E repetia de modo quase didático: “Patriotas, vossas pro-

18  –  “O Código [Napoleão] fala ao coração dos proprietários, é sobretudo a lei tutela-
dora e tranquilizadora da classe dos proprietários, de um pequeno mundo dominado pelo
“ter” e que sonha em investir as próprias poupanças em aquisições fundiárias...”; Paolo
Grossi. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p.
130.
19  –  Proclamação de 7 de março de 1817. In: PEREIRA DA COSTA, Francisco Augus-
to, op. cit., vol. VII, pp. 385-386.
20 – Idem, vol. VII, p. 389.
21  –  WEHLING, Arno, As dificuldades de um Império luso-brasileiro. Silvestre Pinhei-
ro Ferreira. Brasília: Senado Federal, 2012, p. 15.

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Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

priedades, ainda as mais opugnantes ao ideal da justiça, serão sagradas;


o Governo porá meios de diminuir o mal, não o fará cessar pela força”22.

Outro ponto de inspiração claramente tradicional era a manifestação


contra o despotismo e a tirania. O direito de resistência à tirania vinha da
tradição tomista e foi reafirmado na segunda escolástica ibérica, o que
geraria polêmicas como a dos monarcômacos, que propunham o regicídio
como solução política. Autores como Vieira manifestaram-se contra a ti-
rania e pelo direito de resistência, e o ideal do príncipe cristão continuou
a ser o rei benévolo, paternal e justo.

A Realpolitik do século XVIII entretanto dispôs diferente. A trans-


formação da monarquia absoluta em absolutismo fez surgir novidades
como as secretarias de estado, ministérios que logo se tornariam mais
poderosos do que os antigos conselhos do reino, uma nascente burocracia
racionalista e profissional e uma política pública de polícia da sociedade
que atribuía ao Estado um papel planejador e ordenador impensável na
monarquia tradicional. Essas novidades chegaram à Península Ibérica, à
América espanhola e ao Brasil ao longo do século XVIII.

Quando o movimento republicano se insurgiu contra o governo joa-


nino, muitas das críticas se voltaram para este pano de fundo absolutista e
se encarnaram na figura antipazada do governador capitão-general, visto
como um sátrapa que tiranizava os habitantes das capitanias em nome
de um governo central tirânico. Silvestre Pinheiro Ferreira, no relatório
solicitado pelo ainda príncipe-regente, lamenta expressamente o “despo-
tismo dos governadores capitães-generais”, tidos como arbitrários e des-
conectados com os interesses locais, mesmo quando competentes e bem
intencionados.

Caetano Pinto de Miranda Montenegro encarnou, para os pernam-


bucanos, essa figura do déspota local que age em nome do despotismo
central. Na proclamação do governo provisório anunciando sua posse, a

22  –  PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Op. cit., vol. V II, p. 392.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):43-64, set./dez. 2017. 53


Arno Wehling

tirania e o direito de a ela resistir foram pontos destacados pelos revolu-


cionários:
Mas o espírito do despotismo e do mau conselho recorreu às medidas
mais violentas e pérfidas que podia excogitar o demônio da persegui-
ção. [...] A natureza, o valor, à vista espantadora da desgraça, a defesa
natural reagiu contra a tirania e a injustiça23.

O Preciso, poucos dias depois falava de um “sistema de adminis-


tração” voltado para “sustentar as vaidades de uma Côrte insolente” que
oprimia os “legítimos direitos” dos pernambucanos, o que justificava a
desobediência, que “tem todo o preço do heroísmo em certos casos, e é
quando com ela se salva a causa da pátria”24. E no dia 9 de março sob o
mesmo argumento era baixado o decreto abolindo os impostos determi-
nados pelo alvará de 181225.

Longe de estimular atos violentos ou o antagonismo luso-brasileiro,


o novo governo apressou-se em assegurar que restabelecia a ordem, num
espírito de “concórdia e pacificação geral”26, a fim de “precaver as de-
sordens da anarquia no meio de uma povoação agitada e de um povo
revoltado”27. Esse traço “antigo regime” da revolução no qual se combate
o “mau governo” mas rapidamente se restabelece a “ordem”, se acentua
quando atentamos para as referências estamentais.

O ato de instalação do governo provisório, de 7 de março, fala que


os cinco patriotas nomeados para o governo da república o faziam “da
parte” do eclesiástico, militar, magistratura, agricultura e comércio. Que
“partes” eram essas? Certamente as ordens ou estados tradicionais, ci-
tados no documento na sequência estabelecida pelas normas do Antigo
Regime: clero (eclesiástico), nobreza (militar) e povo (letrados, produ-
tores e comerciantes). O Preciso se referiria aos “brasileiros de todas as
classes”28, mas querendo referir-se às ordens, pois na proclamação fala-
23 – Idem, op. cit., vol. VII, p. 385.
24 – Idem, op. cit., vol. VII, pp. 388-389.
25 – Idem, op. cit., vol. VII, p. 395.
26 – Idem, op. cit., vol. VII, p. 389.
27 – Idem, op. cit., vol. VII, p. 386.
28 – Idem, op. cit., vol. VII, p. 388.

54 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):43-64, set./dez. 2017.


Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

-se no governo “iluminado, escolhido entre todas as ordens do Estado”29.


Aqui sintomaticamente na mesma sentença mesclam-se o novo e o antigo
discurso, da referência às Luzes à reafirmação da hierarquia social. Mas
não se chegara, apesar da abolição das antigas formas de tratamento, à
eliminação das diferenças estamentais, um dos primeiros atos da Revo-
lução Francesa.

A ordem que o governo provisório preocupava-se em restaurar tinha


como pressuposto, no Antigo Regime, o respeito a direitos, dos quais em
princípio o rei era o principal fiador. Direitos naturais da tradição teológi-
ca, mas também direitos e garantias oriundas do direito comum (o direito
romano recebido) e do direito consuetudinário, tudo reunido pelos juris-
tas reais, no caso ibérico, em Recopilaciones e Ordenações. O dever do
rei, desde a recopilação das Sete Partidas, de Afonso X o Sábio – também
fonte das Ordenações portuguesas – era proteger e honrar os súditos, o
que incluía respeitar suas liberdades e propriedades e certo grau de tole-
rância com reivindicações e críticas ao “mau governo”30.

Quanto à questão das liberdades e bens, um recorrido pelas Ordena-


ções Filipinas encontrará várias delas enunciadas e vigentes no âmbito
forense:

– direito a bens/ propriedade: que os senhores de terras não tomem


mantimentos, carretas etc. sem autorização da justiça e com indeniza-
ção em dinheiro (L II, t. L); que ninguém seja constrangido a vender seu
herdamento e cousas que tiver contra sua vontade (L IV, t. XI); dos que
tomam forçosamente a outrem... (L IV, t. LVIII – refere-se ao esbulho
possessório);

– direito à liberdade: proibição de cárcere privado (L V, t. XCV);


que não sejam constrangidas pessoas a morarem em algumas terras (L
IV, t. XLII).

29 – Idem, op. cit., vol. VII, p. 386.


30 – LYRA, Bernardino Bravo. Poder y respecto a las personas en Iberoamerica, siglos
XIX a XX, Valparaiso: Universidad Católica de Valparaiso, 1989, p. 50.

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Arno Wehling

– direito ao sigilo de correspondência: dos que abrirem as cartas


d’El Rei, ou da Rainha, ou de outras pessoas (L V, t. VIII) – as penas eram
cominadas de acordo com o critério estamental (“qualidade das pessoas
que ouviram, que receberam e que abriram”).

– direito à imagem: contra os autores de cartas difamatórias (L V, t.


LXXXIV).

– direitos relativos à presença em juízo: direito de apresentar querela


(L V, t. CXXII); admissibilidade da ação em juízo ou sentença condena-
tória somente com prévia citação (L III, t. I); recusar (o réu) o juiz por
suspeição (L III, t. XXI).

A crítica liberal sempre procurou desconsiderar a enunciação das li-


berdades e o direito à crítica, considerando-os mero exercício retórico
para justificar o poder real, mas no caso colonial brasileiro são vários os
exemplos – no Maranhão, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e no
próprio Pernambuco – de manifestações dessa natureza, com a afirmação
de direitos perante atitudes arbitrárias, seja de potentados locais, seja de
funcionários reais, com o rei funcionando como instância que restabele-
cia a ordem e a justiça.

Claro está que no século XVIII o quadro muda: muda pela ótica do
Estado, com a centralização absolutista; muda pela ótica da sociedade,
quando a concepção de um indivíduo diluído na vida comunitária – no
caso, da societas christianae – é gradualmente substituída no Iluminismo
pelo individualismo moderno, que concebe o indivíduo como detentor de
direitos subjetivos contra o Estado.

No Preciso e na Lei Orgânica nota-se também neste aspecto um mis-


to de antigo e moderno. Não são apenas as ideias ilustradas e maçôni-
cas que se expressam, mas também as antigas concepções de liberdades
locais. Naquele documento falava-se que “um imenso povo entrava na
posse dos seus legítimos direitos sociais”. A retórica soa ilustrada e revo-
lucionária, embora os direitos proclamados não fossem ali explicitados.
Poucos dias depois do Preciso, o decreto de 15 de março tranquilizando

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Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

os proprietários de escravos falava no liberalismo da revolução e que ela


buscava sopesar dois valores, o da igualdade e o da inviolabilidade da
propriedade. Argumento de juristas, afirmava a coerência das propostas,
diferindo a segunda para outro momento.

Na Lei Orgânica o art. 11 menciona os “direitos dos homens” acom-


panhando a retórica revolucionária (que se expressava desta forma e não
como “direitos humanos”), mas não os discrimina. A liberdade de religião
era restrita às confissões cristãs (art. 23), proibindo-se a perseguição “por
motivo de consciência” – embora esta expressão pareça referir-se apenas
à consciência religiosa. Eram afirmadas ainda a liberdade de imprensa
(art. 25) e a igualdade de direitos entre naturais e europeus estabelecidos
ou naturalizados por ato do governo (art. 26 e 27)31.

Os conceitos de honra e liberdade aparecem com frequência nos


documentos da Revolução Pernambucana e têm passado despercebidos,
entendidos como mera retórica antiportuguesa: a honra dos pernambuca-
nos, ultrajada pelos abusos do governo português. A liberdade dos per-
nambucanos, tolhida pelo governo despótico. Mas ambos os conceitos
têm uma carga semântica muito forte no Antigo Regime. Já se afirmou
na historiografia hispano-americana que isso se vincula à tradição ibérica
das garantias32, de modo que a honra é o valor mais alto, seguido de modo
decrescente pela vida e pelos bens. E ela só poderia ser exercida em liber-
dade. É conveniente aclarar o sentido tradicional de ambas as palavras,
de que ainda existem fortes traços na virada do século XVIII para o XIX.

A honra é associada no pensamento espanhol e português a partir do


século XVII com a liberdade: o comportar-se com dignidade de acordo
com o livre arbítrio, no quadro do que Francisco Suarez chamava “obe-
diência ativa” sob a dependência divina. Dessa forma o homem indivi-
dual, em sociedade, cooperava “com o agente principal [o rei] para reali-
zar sob suas ordens ações que sobrepassam sua capacidade individual”33.
31 – Lei Orgânica, op. cit., p. 441ss.
32  –  LYRA, Bernardino Bravo. Op. cit., p. 55.
33  –  MARAVALL, José Antonio. Teoria del Estado em España em el siglo XVII, Madri:
Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 323.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):43-64, set./dez. 2017. 57


Arno Wehling

Era uma concepção pragmática, concebida não de forma abstrata, mas


relacionada com a natureza humana (na acepção da segunda escolástica
ibérica) e concretizada na sociedade34, diferente daquela que se definiria
na Ilustração.

Não é diferente o afirmado pelo Padre Antonio Vieira, quando diz


que a honra é um permanente esforço de realização e que o homem é livre
para consegui-la: as ações e feitos honrosos se podem esperar mais dos
que querem adquirir honra dos que os que dizem que já a têm (Sermão
da 22ª Dominga após Pentecostes) 7;358). Aliás, os reis não podem dar
honra (Sermão da Terceira 4ª feira), 1:319), mas apenas ratificar o que foi
conseguido na vida em sociedade.

Fiel à concepção dominante em sua época na península, afirma que


“maior martírio é o que tira a honra do que o que tira a vida” (As cinco
pedras da funda de Davi)14:129)35.

Dessa forma, é razoável não fazer uma leitura excessivamente “mo-


derna” dos textos revolucionários e considerar a hipótese de que quando
defendem sua honra e criticam o despotismo do governador e da Corte es-
tão utilizando argumentos que tanto podem ser da tradição ibérica quanto
da Ilustração – na primeira proclamação do governo provisório a crítica
é ao “mau governo” e se afirma que não haveria revolução se os abusos
fossem eliminados por “uma hábil mão”, pois os conflitos entre brasilei-
ros e portugueses “nunca cresceram a ponto de se não poderem extinguir
se houvesse um espírito conciliador, que se abalançasse a esta empresa,
que não era árdua”36.

Essa percepção explica as diferentes posições pessoais quando ao se


desencadear o movimento, com alguns revoltosos francamente favorá-
veis à proclamação de uma república, como Domingos Teotônio Jorge e

34 – Idem, p. 325.
35  –  VIEIRA, Antonio. Sermoens do P. Antonio Vieira, da Companhia de Jesu, Prega-
dor de Sua Alteza, Lisboa: João da Costa, 1679 ss (respectivamente vol. VII, p. 358; vol.
I, p. 319 e vol. XIV, p. 129).
36  –  PEREIRA DA COSTA, F. A. Op. cit., vol. VII, p. 385.

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Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

o Padre João Ribeiro e outros defendendo a simples deposição do gover-


nador Miranda Montenegro.

Metamorfoses no discurso revolucionário


O conceito de liberdade é o primeiro a adquirir um novo sentido para
os revolucionários de 1817. Não é mais a liberdade nos limites do livre-
-arbítrio tomista e neoescolástico, ou pelo menos não é este o seu único
sentido. Agora se afirma a liberdade como expressão da plena realização
das potencialidades individuais que, para existir, precisa restringir ao má-
ximo a ação do Estado. O ensaio sobre a liberdade para os antigos e os
modernos, de Benjamim Constant, que seria exposto pela primeira vez
em conferência em 1819, constatou a nova realidade do processo revolu-
cionário, que ele contrapunha ao que admitia ser a liberdade concebida na
Grécia antiga. Não precisaria ter ido tão longe, pois a contrafação com o
modelo ibérico seria igualmente eloquente.

Em que consistia a liberdade para os pernambucanos de 1817? Na


faculdade de eleger um governo escolhido por todas as “ordens” do Es-
tado, dizia a primeira proclamação do governo provisório. Em se opor
à “tirania real”, dizia o Preciso. Em exercer a liberdade de expressão,
notadamente a de imprensa, dizia a Lei Orgânica. Quando se dirigiram
aos baianos e paraibanos, os revolucionários pernambucanos falaram
em nome da religião, da pátria e da liberdade, como se estas categorias
fossem autoexplicativas. Mas eles próprios vivenciavam uma transição,
cujos contornos não lhes eram ainda totalmente claros.

De todo modo, havia algo de novo a acrescentar ou substituir. As


liberdades ibéricas metamorfoseavam-se agora na liberdade negativa de
Isaiah Berlin37: era a afirmação do indivíduo ante o Leviatã, não mais as
liberdades empíricas das pessoas nos limites dos estamentos a que perten-
ciam. Mas a ambiguidade permanecia no discurso como nas práticas re-
volucionárias, já que ninguém sabia, em março de 1817 em Pernambuco,

37  –  BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: Isaiah Berlin, Quatro ensaios
sobre a liberdade. Brasília: UNB, 1981, p. 136ss.

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aonde chegaria o processo nem qual seria a reação do Rio de Janeiro. Um


governo escolhido pelas ordens lembrava as Cortes do Antigo Regime; a
oposição à tirania tanto podia significar o velho como o novo discurso;
apenas a liberdade de imprensa era a plena afirmação de uma liberda-
de negativa do novo modelo, já que pressupunha a ausência de censura,
substituída pela responsabilização legal.

Metamorfose semelhante deu-se com os conceitos de povo e pátria.


O conceito de povo no Antigo Regime – e não apenas em Portugal – tinha
variada semântica, sendo utilizada normalmente a expressão povos para
referir-se ao conjunto dos diferentes tipos de “povo”38. Já no processo
revolucionário norte-americano e francês aparece intimamente associado
ao de nação, para definir o amálgama populacional que possui uma ex-
pressão política e uma identidade cultural.

No discurso político da Revolução de 1817 a contrafação aparece


em vários momentos. Por exemplo, na resposta de Domingos Teotônio
Jorge, já no final do movimento, em 18 de maio, quando se dirige ao co-
mandante Rodrigo Lobo, que sitiava Recife, falando em nome do “povo
e exército”, enquanto este em sua proclamação falara dos “povos e fiéis
vassalos de El Rei Nosso Senhor”39. O que não significa que os revoltosos
sempre utilizassem o novo sentido. Na instrução a Miguel Joaquim Cezar
e ao Padre José Martiniano de Alencar para a adesão do Ceará ao movi-
mento, assinada pelo Padre João Ribeiro e por Domingos José Martins,
usa-se “povos”, embora pela redação se permita dupla leitura, tanto a de
“povos”– população quanto a de “povos” – povoados, núcleos populacio-
nais, no sentido mais comumente usado em espanhol40.

Pátria por sua vez, no Antigo Regime, correspondia à identidade lo-


cal, no sentido de que poderia haver uma “pátria” pernambucana, baia-

38  –  WEHLING, Arno. O conceito jurídico de povo no Antigo Regime – o caso luso-
-brasileiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 421, out.-dez. 2003,
p. 39ss.
39  –  PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Op. cit., pp. 458-459.
40  –  TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco de 1817. Re-
cife: Cepe, 2017, p. 237.

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Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

na, fluminense, alentejana ou minhota, o que não impedia a percepção


de uma identidade mais ampla, como ao se falar em “pátria comum”.
Com efeito, os bacharéis brasileiros formados em Coimbra quando se
apresentavam ao concurso público de ingresso à magistratura, as leituras
de bacharéis, entravam com pedido de “pátria comum” de forma que as
testemunhas que os conhecessem e às suas famílias fossem residentes em
Portugal, pois assim se poderia abreviar e tornar mais barata a inquirição,
que de outra forma teria de ser feita no Brasil41.

Já na retórica revolucionária pernambucana, o governo se define


como “patriótico”, os revoltosos são “patriotas honrados e beneméritos”
e todos agem com “prudência e patriotismo”. A proclamação aos baianos
dá vivas à pátria, à religião e à liberdade42. O novo sentido do concei-
to, mais amplo do que a raiz local ganha outro cognato, “patriotismo”.
Agora, “pátria” terá uma acepção política que não possuía antes e fará
pendant com a nova palavra “patriotismo”. Pouco anos depois também
no Brasil se falará em nação.

Desdobramento da ideia de um substrato comum que transforma


“povos” e “pátrias” regionais no povo e pátria nacional é a do recruta-
mento em massa. Diferente das convocações do Antigo Regime, em que
o recrutamento, aliás muito impopular, era restrito de diferentes formas, o
momento revolucionário pernambucano viu pela primeira vez algo que
lembrava, pelo menos na intenção de seus agentes, a “levée em masse” da
época jacobina da Revolução43. Pelos dois lados, observe-se: o edital do
“governo patriótico” convocava o “povo de Pernambuco” ao alistamento
no exército rebelde44 e um decreto do governo provisório da Paraíba re-
petia o gesto, convocando os “cidadãos” a pegar em armas durante cinco
anos45; do lado oficial, o conde dos Arcos, numa proclamação, informava

41  –  WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José, Direito e Justiça no Brasil colonial –
o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 1751-1808. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.
249ss.
42  –  PEREIRA DA COSTA, F. A. Op. cit., p. 396.
43 – Documentos Históricos, vol. CI, p. 27 e 39.
44 – Idem, vol. CI, p. 27.
45 – Idem, vol. CI, p. 35.

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que “cada cidadão” (sic) da Bahia seria “leal soldado de El-Rei”; em ou-
tra dava ordem para fuzilar a quem se negasse a pegar em armas contra
os rebeldes46.

Que o vocabulário político flutuava ao sabor dos acontecimentos, é


um fato. O ponto crucial da definição de onde se encontrava a raiz da sobe-
rania encontra duas versões opostas no mesmo momento. Enquanto a Lei
Orgânica da Revolução dizia em seu preâmbulo que o governo provisório
da república exercia o poder soberano por outorga do povo, “em quem ela
só reside”47, pouco depois, vencido o movimento, a câmara do Recife em
ofício ao rei voltava ao discurso tradicional, afirmando que tinha ocorrido
a “usurpação [ao rei] dos direitos de soberania”48. A própria concepção
de “lei” no documento revolucionário aparece como norma emanada da
assembleia legislativa, em boa lógica constitucional moderna, enquanto
na concepção monárquica ela é fruto da decisão discricionária – quando
não arbitrária, já que o que se criticava era a “tirania”– do rei.

Da mesma forma, “constituição” aparece de forma moderna no dis-


curso dos rebeldes, quando se projetou a Lei Orgânica como uma decla-
ração de “bases constitucionais”, o mesmo que viriam a fazer os vintistas
portugueses logo depois. Já a própria ideia de “revolução”, embora afir-
mada na acepção americana e francesa “moderna”, mostrava no processo
revolucionário certa indefinição, com os rebeldes por um lado acenando
com a criação de uma república e por outro deixando claro que o movi-
mento se fazia esgotados todos os recursos para tirar o governo central do
“mau conselho”. O que permitia dupla leitura: por um lado, a de ruptura
com o status quo do Reino Unido recém-estabelecido; por outro, o de
uma recomposição em seu seio, à medida que as reivindicações fossem
atendidas. Ambas as leituras dependiam da composição dos diferentes
setores rebeldes, da disposição do governo real de negociar ou esmagar o
movimento e do desenrolar dos acontecimentos.

46 – Idem, vol. CI, p. 39.


47  –  PEREIRA DA COSTA, F. A. Op. cit., vol. VII, p. 441.
48 – Documentos Históricos, vol. CI, p. 251.

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Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817

Sentido moderno também possuem os gentílicos. Capistrano de


Abreu na conclusão de seu clássico fala que, antes de se considerarem
brasileiros, os súditos deste lado do Atlântico se consideravam filhos das
respectivas capitanias, com pouco ou nenhum sentimento comum, para
depois comentar, em estudo sobre o período joanino, que após este pe-
ríodo já se delineava um sentimento de brasilidade, mercê da atuação
centralizadora da Corte. O próprio discurso oficial desde fins do século
XVIII falava em “portugueses de todos os hemisférios”, como fizera D.
Rodrigo de Sousa Coutinho, forma de abrandar a relação centro-periferia
colonial. A primeira proclamação do governo provisório avança no es-
forço de diminuir as áreas de atrito entre portugueses e pernambucanos,
e conclui com uma sucessão de gentílicos como se fossem sinônimos:
“A pátria é nossa mãe comum; vós sois seus filhos, sois descendentes
dos valorosos Lusos, sois Portugueses, Americanos, sois Brasileiros, sois
Pernambucanos”49.

Por último, mas não menos importante, aparece nessas metamorfo-


ses a felicidade. Trazida do âmbito individual para o social pela crítica
ilustrada, a felicidade se transformou em desiderato político na Revolu-
ção Americana, numa mistura de elementos laicos e messianismo religio-
so dos colonos ingleses. Tomou o mesmo sentido na Revolução Francesa
e apareceria na mesma proclamação do governo provisório de Pernambu-
co: superada a tirania absolutista, o povo pernambucano teria um governo
que “presidiria” sua felicidade.

Podemos concluir que à luz dos documentos da Revolução de 1817,
não se pode fazer tabula rasa da tradição político-jurídica ibérica e con-
siderar tão somente como presentes no movimento as correntes ilustradas
da Europa além-Pirineus. Por maior que fosse o entusiasmo do Padre João
Ribeiro e outros revoltosos pelo pensamento de Condorcet e dos ilustra-
dos, havia todo um substrato político, ideológico e jurídico presente no
movimento e que remontava à tradição ibérica. Não há como considerá-lo

49  –  PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Op. cit., vol. VII, p. 386.

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Arno Wehling

ausente da Revolução de 1817; basta lembrar que os próprios paradigmas


revolucionários norte-americano e francês tiveram em seus primórdios
remissões ao pensamento político pré-ilustrado.

Constata-se portanto um misto de tradição e inovação no discurso


político-jurídico da Revolução de 1817. A exiguidade das fontes, moti-
vada pelas condições concretas do processo revolucionário, decorrido em
poucos meses e com fragilidade evidente, permite apontá-lo mas dificulta
o rastreamento de seus fundamentos. Na vertente da tradição, os traços
que surgem como as críticas ao “mau governo” e à “tirania” e as menções
às ordens remetem para as antigas concepções pactistas ibéricas, segundo
as quais o governo da societas christianae seria resultado de um pacto
entre o rei e seus súditos, pautado pela lei. Esta última, com um sentido
bastante diferente do que teria no mundo do constitucionalismo e das co-
dificações criado pelas revoluções dos Estados Unidos e da França. Grei,
rei e lei formavam um corpus politicum que periodicamente se renovava
com a aclamação do novo monarca.

Na vertente da inovação dá-se no discurso revolucionário de 1817


a confluência da prática concreta das revoluções na América e na Eu-
ropa com as concepções político-filosóficas e jurídicas da Ilustração. Aí
aparecem expressos ou difusos, a soberania popular, o contrato social, a
liberdade de expressão, os direitos do homem, a tripartição dos poderes, o
individualismo jurídico, a igualdade jurídica, a nova força dos contratos,
a busca da felicidade e, como não nos deixa esquecer o padre João Ribei-
ro, a ideia de progresso. A revolução era então percebida como um passo
adiante do progresso do gênero humano, deixando para trás um passado
de obscurantismo.

Tradição e inovação em 1817, mas não apenas aí. As ideias políticas


e jurídicas e as práticas sociais do século XIX no Brasil conviveram quase
sempre com essa bipolaridade.

Texto apresentado em maio/2017. Aprovado para publicação em se-


tembro/2017.

64 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):43-64, set./dez. 2017.


A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

65

A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817 NO CONTEXTO


DO REINO UNIDO LUSO-BRASILEIRO
THE PERNAMBUCAN REVOLUTION OF 1817 IN THE CONTEXT
OF THE LUSO-BRAZILIAN UNITED KINGDOM
Maria de Lourdes Viana Lyra1
Resumo: Abstract:
A Revolução Pernambucana de 1817 é um tema The Pernambuco Revolution of 1817 is
ainda controverso na historiografia brasileira e still a controversial subject in Brazilian
desde o início abordado com reserva, em face historiography, having been approached with
da reação existente ao sentido de revolução reserved from the outset in view of the polemic
about the meaning of “revolution” which was
atribuído ao acontecimento no primeiro estudo
attributed to it in the first comprehensive study
elaborado posteriormente e publicado em 1840. published on the matter in 1840. We focus our
A análise aqui apresentada centra a atenção no analysis here on the chain of events that took
encadeamento dos fatos ocorridos no quadro place in the conjunctural context of 1808, and
conjuntural iniciado em 1808 e se atém ao de- on identifying the position of the captaincy
senrolar dos interesses em jogo, com o objetivo of Pernambuco in the context of the United
de identificar a posição da capitania de Pernam- Kingdom of Portugal and Brazil which had been
buco no contexto do Reino Unido de Portugal institutionalized in 1815. We aim to deepen our
e Brasil, institucionalizado em 1815. E, assim, understanding about the local particularities in
ampliar o conhecimento sobre a particularidade relation to the causes that led to the movement
of rejection of the political model of the Luso-
local em relação às causas que levaram à eclo- Brazilian unity as a monarchical government,
são do movimento de rejeição ao modelo polí- and reflect on the cherished ideal of a republic
tico de unidade luso-brasileira, sob a forma de that was adopted by revolutionary means on
governo monárquico, refletindo sobre o ideal de March 6, 1817.
República ali acalentado, e revolucionariamente
adotado, em 6 de março de 1817.
Palavras-chave: Brasil; Historiografia; Reino Keywords: Brazil; historiography; United Luso-
Unido luso-brasileiro; Revolução Pernambuca- Brazilian Kingdom; Pernambuco revolution.
na.

Eventos organizados para celebrar datas históricas significativas,


como esse que ora se realiza, estimulam a pesquisa e propiciam a retoma-
da da reflexão sobre o acontecimento referente, resultando na ampliação
do seu conhecimento e sobre o quadro geral do tempo enfocado.

O que vem ocorrendo com frequência nas últimas décadas, e promo-


vendo uma salutar revisão nos estudos da Historiografia brasileira. Prin-
1  –  Historiadora – mestra, doutora e professora do Departamento de História da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; sócia titular do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro – IHGB, da Academia Portuguesa da História – APH, e do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio de Janeiro – IHGRJ.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017. 65


Maria de Lourdes Viana Lyra

cipalmente, a partir de 2008 – com a mobilização em torno da celebração


pelo Bicentenário da Transferência da Corte monárquica portuguesa, de
Lisboa para o Rio de Janeiro, instigando os historiadores a centrarem a
atenção nessa conjuntura específica, levantando questões essenciais so-
bre as razões que levaram à decisão extrema de transferir a sede da mo-
narquia portuguesa para o Brasil e sobre as consequências desse ato. Ao
realçar a importância desse fato extraordinário e sem precedente na cena
política europeia – a interiorização da metrópole portuguesa em terras,
até então, de seu domínio colonial –, além de ressaltar o significado polí-
tico da introdução da forma de governo monárquico no Novo Mundo, que
se encontrava em processo de adoção da forma de governo republicano.
Ou seja, um acontecimento que resultou no encaminhamento de forma
completamente diversa o processo de libertação da submissão colonial do
Brasil, convertendo-o em sede do império português, com poder abran-
gente a todos as partes do mundo luso, inclusive o Reino na Europa.

O evento seguinte, em comemoração ao Bicentenário da elevação do


Brasil a Reino Unido a Portugal – curiosamente ou significativamente,
pela primeira vez celebrado no Brasil e em Portugal –, instigou a con-
tinuidade da análise aprofundada sobre as ocorrências marcantes dessa
quadra inicial do século XIX, com a atenção centrada no encadeamento
entre elas. Isto que levou ao tardio, mas necessário, conhecimento histó-
rico sobre a importância da Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815 que
legitimou o Brasil na condição de Reino Unido a Portugal e ratificou a
preeminência da ex-colônia no império português, de fato já usufruída
desde 1808, mas só então legitimada. Ao mesmo tempo ficou ressaltado o
fato de que tal condição adquirida foi continuamente relegada, ou mesmo
omitida, pela historiografia e, par cause, não mencionada nos manuais
escolares. Essas omissões evidenciam a urgente necessidade de retomada
da pesquisa e a elaboração de novos estudos levando em conta a aceitação
e a aplicação, ou não, da Carta de Lei de 1815, na época, para melhor
entender a razão do descaso da historiografia, em relação à existência do
Reino Unido luso-brasileiro2.

2  –  Sobre a temática do Reino Unido luso-brasileiro, consultar os textos resultantes das

66 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017.


A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

No ano em curso, as atenções se voltam para outro acontecimento


marcante dessa mesma conjuntura inicial do século XIX, a Revolução
Pernambucana de 1817, induzindo à reflexão sobre as razões do movi-
mento revolucionário. Logo nos deparando com questões fundamentais
ainda pouco esclarecidas, mas extremamente necessárias à ampliação do
conhecimento sobre o que realmente aconteceu e por que ocorreu. E em
que medida, implicou o processo de formação do Estado independente
monárquico e imperial do Brasil, após a ruptura da unidade luso-brasilei-
ra, em 1822?

É nesse sentido que apresento a reflexão que venho elaborando há


anos, focada no encadeamento dos fatos – 1808, 1815, 1817, 1822 –,
atenta ao desenrolar das ações e dos interesses a serem estabelecidos na
cena política correspondente. E, no caso da Revolução de 1817, buscando
identificar o lugar ocupado pela capitania de Pernambuco no quadro geral
dessa conjuntura histórica e em relação às transformações ocorridas no
Brasil, após 1808. Focada, principalmente, no contexto do Reino Unido
luso-brasileiro (1815–1822), para melhor apreender as razões que leva-
ram os “patriotas” de 1817 a se rebelarem contra o Estado monárquico,
centrado no Rio de Janeiro. E, ao mesmo tempo, buscar maior esclare-
cimento sobre a particularidade da capitania de Pernambuco, quanto ao
ideal de República ali acalentado e adotado como forma ideal de governo
do Estado independente, revolucionariamente ali instalado, em 6 de mar-
ço de 18173.

A ampliação do campo de pesquisa e análise da documentação levan-


tada vislumbrou um cenário ainda pouco explorado, mas de fundamental
importância à compreensão da problemática ali vivenciada. E, provoca-
dora da mobilização em torno do movimento ali desencadeado contra o
modelo vigente de autonomia adquirida, pautada na unidade luso-brasi-
apresentações de diversos especialistas no “Congresso Internacional Brasil como Reino
Unido: 200 anos depois”, publicados na R. IHGB, a. 177, n. 470, jan. / mar. 2016
3  –  Entre as inúmeras obras referentes ao tema da Revolução Pernambucana de 1817,
destaca-se a primeira – História da Revolução em Pernambuco em 1817 –, publicada no
Recife em 1840 e escrita no decorrer da década de 1830 por Francisco Muniz Tavares, um
ex-revolucionário que dela participou.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017. 67


Maria de Lourdes Viana Lyra

leira com poder de mando centrado no Rio de Janeiro, com a proposta de


outro modelo de Estado independente para o Brasil a ser adotado, sob a
forma de governo republicano. Vejamos então!

A preeminência da capitania de Pernambuco no período colonial


Desde o início da colonização portuguesa em terras da América, a
antiga capitania geral de Pernambuco era uma das mais promissoras, em
decorrência da notável expansão da produção açucareira e de sua rápi-
da disseminação por todo o litoral nordestino. Carro-chefe da economia
agroexportadora constituiu uma das principais áreas de concentração
das relações de produção colonial com base no plantio da cana e na co-
mercialização do açúcar girando em torno do porto do Recife, principal
via de escoamento da produção da banda Norte do Rio São Francisco,
exercendo o papel de centro aglutinador daquele espaço e definidor de
interesses comuns. A produção açucareira figurava como o “negócio co-
lonial-agrícola mais rentável de todos os tempos”, até meados do século
XVII, quando a capitania começou a enfrentar um período prolongado de
queda do preço do açúcar ali produzido no mercado externo, provocada
pela concorrência da produção antilhana. A crise levou os senhores dos
engenhos situados na faixa litorânea ao sul do Recife – área de terras mais
propícias à cultura da cana-de-açúcar e chamada zona da mata úmida –,
a expandir o plantio, avançando pelo interior, como meio de aumentar o
volume da produção para compensar a baixa do preço e assegurar o lucro
sobre o montante de venda no mercado externo. Os demais engenhos,
em menor número e situados ao norte do Recife – área de terras de baixa
qualidade, pela aridez do solo, por isso chamada zona da mata seca e
caracterizada pela diversificação da produção, compartilhada com o setor
de subsistência –, foram aos poucos substituindo o plantio da cana pelo
cultivo do algodão. Essa cultura, já ali existente, valorizou-se em decor-
rência da expansão industrial inglesa, carente de matéria-prima, na época,
em face da diminuição do comércio com a América do Norte causada
pela guerra da Independência. Nas décadas finais do século XVIII, já pro-

68 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017.


A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

liferavam núcleos algodoeiros às margens do médio Capibaribe, logo se


expandindo rumo às capitanias da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará4.

Nas primeiras décadas do século XIX, um novo cenário delineava-se


em Pernambuco caracterizado pelo fim da hegemonia açucareira e o sur-
gimento de um setor dinâmico, protagonizado em maior número por ho-
mens livres dedicados ao cultivo e à comercialização do algodão, desen-
volvendo uma atividade econômica praticamente não vinculada ao traba-
lho escravo e diretamente ligada ao mercado da indústria têxtil britânica.
Uma obra de autor desconhecido, intitulada Revolução do Brasil – Ideia
Geral de Pernambuco em 1817 é preciosa em informação sobre o que
representou na época o incremento da cultura do algodão na capitania:
Continuavam os rotineiros pernambucanos, sem jamais se lembrarem
de que fosse possível, serem mais sábios nem mais ricos do que seus
décimos avós! Senão quando uma nova planta, nova pelo apreço, e
estima que começou a merecer, veio acordá-los de sua longa letar-
gia. Foi esta planta, a árvore, que produz o algodão, árvore admirável
à cultura da qual se entregaram avidamente os pernambucanos, logo
que as primeiras experiências lhes mostraram o pouco trabalho, as
módicas despesas e extraordinários lucros que deste ramo podiam e
deviam esperar. Abandonaram-se, portanto, os engenhos e correram-
-se para o algodão5.

No ano anterior, 1816, o inglês Henry Koster – que chagara em Per-


nambuco em 1809 e ali permaneceu por cerca de seis anos, convivendo
com autoridades do governo local e agentes ligados ao cultivo e ao co-
mércio do algodão –, publicara na Inglaterra o livro, sob o título Travels
in Brazil, relatando que:
Pernambuco, alusivamente à sua importância política e com referên-
cia ao governo português, goza o terceiro lugar entre as províncias do
Brasil; mas no ponto de vista comercial e em relação à Grã-Bretanha,
creio não me enganar dando-o em primeiro plano. Suas exportações

4  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. Centralisation, sistème fiscal et autonomie pro-
vinciale dan´s l`empire brésilien: la province de Pernambuco 1808-1832. Université de
Paris X – Nanterre, 1985 (Tese doctorat – mimio); MELLO, Evaldo Cabral de. A outra
Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2004
5  –  Cf. Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. 1883, p.60

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Maria de Lourdes Viana Lyra

principais são algodão e açúcar. O primeiro vai, em sua maioria, para


a Inglaterra e pode ser calculado em 80.000 ou 90.000 sacos anual-
mente, pesando em média 160 libras o saco. O segundo é quase intei-
ramente embarcado para Lisboa6.

Uma visão mais precisa sobre esse cenário descortinado pode ser
avaliada por meio dos dados demonstrados abaixo, no quadro 1, revelan-
do que: entre 1796 e 1816, enquanto o valor das exportações do algodão,
pelo porto do Recife, subiu de 37% para 83%, no mesmo período, o valor
das exportações do açúcar declinou vertiginosamente, de 54% para 15%7.
Isso, ao lado de um fator relevante: enquanto a produção do açúcar em
Pernambuco continuou comercialmente ligada a Portugal e atada à arcai-
ca estrutura colonial, absorvendo cerca de 35% do valor da exportação,
contra 7% com a Inglaterra, a produção do algodão se desenvolveu sob
influência direta da liberdade de comércio adotada pela Inglaterra, absor-
vendo cerca de 60% do valor das exportações, contra 1,5% com Portugal.
Quadro 1

Percentual sobre Exportações Gerais Destino das Exportações no Período 1796


- 1816
Ano 1796 1816 Portugal Inglaterra

Açúcar 54% 15% 35% 7%

Algodão 37% 83% 1,5% 60%

Outro aspecto de real importância à reflexão aqui desenvolvida é o


fato de que a dinamização da zona da mata seca, devido ao incremento da
produção algodoeira e de sua comercialização, em aliança com a pecuá-
ria em franca ascensão no Agreste e no Sertão, estimulava o crescimento
dos centros urbanos, traçando uma feição nova à economia nordestina.
Nesse sentido, igualmente ilustrativos são os dados exibidos no quadro 2
(abaixo) elaborado a partir de informações colhidas em interessante estu-

6  –  Cf. KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. 2ª ed. Recife: Sec. Educ. e
Cult. – Pe. 1978.
7  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. Centralisation, sistème. Op. cit. p.106; MELLO,
Evaldo Cabral de. “Aproximação a alguns temas da história de Pernambuco”. R. IAHGP.
Vol. 48, 1976, pp.171-184.

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A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

do publicado no Diário de Pernambuco sobre a demografia da capitania,


depois província, por demonstrar o lento crescimento que vinha ocorren-
do nas vilas da mata úmida, em comparação ao das vilas da mata seca,
possivelmente em razão da dinamização da atividade algodoeira e baixa
da produção açucareira. Mesmo tendo em vista a precariedade dos núme-
ros apresentados, em face dos desencontros dos mesmos encontrados nas
variadas listas apresentadas – como relatórios de governo, levantamentos
eclesiásticos, recrutamento militar –, e à insuficiência administrativa em
assuntos estatísticos, aliado ao fato do estudo só apresentar dados refe-
rentes ao período seguinte a 1817, o documento possibilita traçar o ce-
nário da época, demonstrando um crescimento significativo dos núcleos
urbanos situados na mata seca, em comparação aos mais proeminentes da
zona da mata úmida8.

Tomando como parâmetro de análise os marcos – 1817 e 1826 –, ob-


serva-se que os núcleos urbanos mais proeminentes da zona da mata úmi-
da – Recife e Cabo – cresceram 140% e 28% respectivamente, enquanto
vilas equivalentes, situadas na mata seca – Olinda e Goiana – cresceram
926%, 125%. Isto revelou uma surpreendente defasagem no crescimento
do Recife – centro político/administrativo e principal porto de importa-
ção/exportação –, em relação à Olinda, o que pode indicar a existência de
um clima de tensão interna, antes e depois de 1817. E, talvez, ser conside-
rado um dos fatores provocadores de outro movimento revolucionário ali
rebentado, em 1824, a Confederação do Equador, cuja bandeira figurou,
significativamente, um ramo de açúcar e um de algodão.
Quadro 2

1817 1826 Crescimento de 1817 a 1826 (%)


Z. mata úmida
Recife 16.675 40.846 145%
Cabo 21.307 27.167 28%
Z. mata seca
Olinda 989 10.145 926%
Goiana 9.316 21.012 125%

8  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. Centralisation, sistème. Op. cit. p.106.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

Outro fator a ser levado em conta nessa conjuntura é a sobrecarga de


impostos que passou a incidir sobre a população local, após 1808, com o
aumento dos encargos e custeios governamentais, além dos já existentes,
sob forma de novos tributos destinados a reconstruir em Portugal os es-
tragos da guerra contra os franceses e arcar com as despesas de instalação
e de manutenção da Corte centrada no Rio de Janeiro. Essa situação cau-
sava constrangimento e provocava desgaste nas relações entre a capitania
mais proeminente do Brasil e o poder da Corte monárquica ali interioriza-
da. Citando apenas alguns, entre tantos novos ônus, foi estabelecida uma
taxa anual de 120 mil cruzados, a ser paga no “espaço de quarenta anos”,
sobre as rendas produzidas na alfândega; outra, de 600 reis por escravo,
a ser paga mensalmente pelos habitantes do Recife e destinada ao paga-
mento das despesas com a guarda de polícia e com a iluminação da cida-
de do Rio de Janeiro; mais outra, de 80 réis por tonelada de cada navio
que aportasse em Recife, destinado aos trabalhos de melhorias do porto9.
E, além da sobrecarga de impostos, a população urbana enfrentava um
fato novo que abalava ainda mais o ânimo: os portugueses que ali chega-
vam em levas, fugindo da miséria decorrente da guerra na Europa, tinham
preferência no preenchimento dos cargos públicos10.

O depoimento de um contemporâneo – feito após a ruptura da


unidade luso-brasileira – sobre o passado recente e discutindo a
possibilidade de “tornar o Brasil a ser parte da monarquia portuguesa”
–, expõe com clareza a questão nodal que levou Pernambuco a se
posicionar contra o encaminhamento da política em prol da unida-
de luso-brasileira, reagindo com determinação à continuidade da
prática de exploração colonial, tanto em relação à sobrecarga dos
impostos que recaíam sobre a capitania quanto no âmbito geral da
orientação política centralizadora do governo monárquico:
A passagem de Sua Majestade para o Brasil fez da Corte do Rio de
Janeiro o receptáculo de todas as riquezas do Império português [...].

9  –  Cf. PEREIRA DA COSTA, F.A. Anais Pernambucanos. 2ª Ed. Recife: Sec. Tur.
Cult. Gov. Pe. 1983. Vol. 7, p. 374; LYRA, Mari de Lourdes Viana. Centralisation, sistè-
me. Op. cit.
10 – Idem, Ibidem.

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A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

As províncias do Brasil sofriam umas, saques de 400 contos, outras


mais, outras menos [...]. Os saques feitos sobre as diversas provín-
cias do Império puseram em movimento a um grau sumo o comércio
d’aquela Corte [...]. Não entra em dúvida que o Rio de Janeiro veio a
ser o parasito do Império [...] atraindo-se por isto o ódio de todas as
províncias11.

Procuramos então observar o que havia mudado após a promulgação


da Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815, que legitimava o Brasil na
condição de Reino e, portanto, requeria a equiparação da estrutura admi-
nistrativa entre o novo e velho Reino europeu. O que não ocorreu, como
veremos a seguir.

Pernambuco no contexto do Reino Unido luso-brasileiro


Situando a capitania no quadro geral do Brasil como Reino Unido
a Portugal, por sua vez instituído em decorrência da instalação da Corte
monárquica no Rio de Janeiro, observa-se que, tanto em 1808 como em
1815, ambos acontecimentos foram aplaudidos com entusiasmo pelos
agentes sociais pertencentes às camadas urbanas letradas, os proprietá-
rios de terras e os comerciantes de todas as partes do Brasil. Inclusive
os pernambucanos reconheciam todos que o estabelecimento da Corte
monárquica e dos órgãos de administração da metrópole portuguesa no
Rio de Janeiro, a abertura dos portos ao comércio exterior e a criação
posterior do Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves, significavam
a anulação de fato do status colonial e libertava o Brasil da submissão a
Portugal. E que a Carta de Lei de 1815 também confirmava a opção da
monarquia pela permanência de sua sede no Brasil. Constatação declara-
da em escritos da época, como na obra de Luiz Gonçalves dos Santos, o
Padre Perereca, Memórias para servir à História do Reino, ao saudar o
acontecimento como: “O início de um novo tempo [...]. Logo que o Príncipe
Regente Nosso Senhor felicitou a grande e abençoada terra do Brasil e nela esta-
beleceu seu trono, este país deixou de fato de ser colônia”12.
11  –  SIERRA Y MARISCAL, Francisco. “Ideias Gerais sobre a Revolução do Brasil e
suas consequências”. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 1831, pp. 58 e 60.
12  –  Cf. SANTOS, Luiz Gonçalves dos (Pe. Perereca). Memória para servir à História
do Reino do Brasil. Rio de Janeiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Liv. Edt. Zelio Valverde. 1943.

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Liberdade que fora sacramentado pela “Memorável Carta de Lei de


16 de dezembro de 1815 (que) de um só golpe desfez a anomalia política
e irregular do antigo regime colonial”.

Expressando o regozijo por não serem mais:


Os portugueses da América inferiores em graduação e direitos aos
portugueses da Europa [...] os filhos da nova Lusitânia tomam assento
igual com os filhos da antiga; posto que distantes uns dos outros pela
sua situação geográfica são, contudo, um mesmo povo e uma mesma
nação identificada13.

Além de descrever as “Festas que, desde o Amazonas até o Prata, se


fizeram em todas as cidades e vilas do Brasil”, e comentar sobre os atos
de júbilo expedidos pelos Senados das Câmaras Municipais do Rio de
Janeiro, da Bahia, de Minas Gerais, de São Paulo, de Pernambuco, todos
reconhecidos de que: “O ato desta união será objeto de uma brilhante
página da nossa história [...] os dias 7 de março e 16 de dezembro, rivais
em celebridade, vão ser consagrados igualmente nos anais do Brasil”14.

Registros semelhantes são encontrados no texto da representação


enviada, em 1808, pelo Senado da Câmara do Recife ao Rio de Janeiro,
felicitando o príncipe regente D. João e prestando-lhe as homenagens dos
habitantes da capitania: “Pelo bem que nos é dado [...] com o bem funda-
do pressentimento da nossa futura felicidade (por ser) V.A.R. o fundador
de um grande império, do qual Pernambuco, minha pátria, é uma das
principais províncias”15.

E, ao tomarem conhecimento da Carta de Lei de 1815, as autorida-


des de Pernambuco celebraram o fato com missas, Te-déum em ação de
graças, realizadas nas igrejas do Recife e Olinda, iluminação das ruas e

Tomo II, p. 465.


13 – Idem. Ibidem, p. 469.
14  –  Cf. Fala do Presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, aos 28 de dezembro
de 1816. Transcrito em: MELLO MORAIS, A. J. de. História do Brasil-Reino e Brasil-
-Império. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. USP, 1982. Tomo I, p. 526.
15  –  PEREIRA DA COSTA. Anais Pernambucanos. Op. cit., p. 227.

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A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

praças por três noites, sendo o nome da Praça do Polé no Recife mudado
para Praça da União, e ali edificadas:
Duas figuras, da Lusitânia e do Brasil, dando-se as mãos, e apertando
os vínculos indissolúveis com a benéfica e alta sabedoria de Sua Ma-
jestade que uniu seus reinos do antigo e novo mundo16.

Ora, a evidência de que havia na época pleno reconhecimento de que


os acontecimentos extraordinários de 1808 e 1815 legitimavam a liberta-
ção do Brasil do sistema de dominação colonial contradiz a versão histo-
riográfica que entende o movimento revolucionário de 1817 como uma
reação direta e objetiva contra o jugo colonial português e reivindicador
da Independência do Brasil. E, igualmente, contradiz a interpretação de
que o Brasil permaneceu na condição de colônia de Portugal até a 1822,
quando a Independência foi finalmente proclamada pelo príncipe regente
D. Pedro, em terras paulistas e às margens do riacho Ipiranga, na tarde do
7 de setembro!

Daí a pertinência da revisão do conhecimento sobre tais ocorrências


nessa conjuntura específica. E, em relação ao acontecimento revolucioná-
rio de 1817, liderado por Pernambuco, a necessidade de centrar a atenção
sobre a particularidade do tempo em que ocorreu, ou seja, o da vigência
do Reino Unido luso-brasileiro. Isso requer o entendimento das questões
correlatas ao passado histórico, para melhor apreender a existência de
um projeto político anterior de construção de uma unidade luso-brasílica,
ideal traçado pelo reformismo ilustrado luso e acalentado pela monarquia
portuguesa, desde finais do século XVIII, quando se buscou meios de re-
forçar os laços de união entre a metrópole lusa e seus domínios colônias
mais importantes – as terras do Brasil –, de onde provinha a riqueza do
Reino. Unidade a ser alcançada pela inovadora relação de reciprocidade,
entre o centro – O Reino de Portugal e entreposto comercial – e a vasta
possessão de terras da América, que passariam a ser classificadas como
províncias da monarquia. Nessa perspectiva, então, apreende-se que a
criação do Reino Unido luso-brasileiro, em 1815, representou o coroa-
mento do ideal de unidade luso-brasílica, formulado em finais do século
16 – Idem. Ibidem. p. 358.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

anterior e com igual premissa, ou seja, que fosse feita a indispensável


reforma na estrutura administrativa por meio da qual, as capitanias colo-
niais do Brasil seriam transformadas em províncias da monarquia portu-
guesa, com direitos iguais às existentes no Reino europeu. Providência
entendida como indispensável, apontada desde o início e reforçada, mais
tarde, pelo ilustrado Silvestre Pinheiro, sob a argumentação de que: “Em
circunstâncias críticas [...] são necessárias grandes e extraordinárias pro-
vidências, para assegurar a integridade da monarquia”17.

Aconselhando ao rei providenciar a imediata reformulação adminis-


trativa do Estado monárquico, ou seja, decretar:
A divisão do Reino de Portugal e suas dependências, como o império
do Brasil e domínios da Ásia e da África, em províncias, comarcas,
distritos e freguesias; a fim de se estabelecerem em ambos os Estados
correspondentes os tribunais ou estações de governo [...] abolindo a
odiosa distinção de colônias e metrópole [...] e sem distinção alguma
de países18.

Recomendação feita igualmente pelo jornalista Hipólito José da


Costa, em artigo publicado no Correio Brasiliense, ao transcrever texto
da Carta de Lei para o Reino do Brasil, advertindo sobre o significado da
nova denominação:
Com a mudança do nome daquele Estado do Brasil, para Reino do
Brasil, necessariamente deveria haver melhoramento da forma de go-
verno, ou da administração interna (ou seja) graduais melhoramentos
nas leis (como a) mudança total dos governos militares das capitanias
e de todas as mais instituições que se possa deduzir do princípio de ad-
ministração [...] longe de ser uma revolução ou convulsão moral, não
será outra coisa mais do que uma consequência natural (da circuns-
tância) a louvável resolução de elevar o Brasil à dignidade de Reino19.

17  –  Cf. FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Proposta autografada sobre o regresso da Corte
para Portugal e providências convenientes para evitar a revolução e tomar a iniciativa na
reforma política. Documentos para a História da Independência. Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, pp. 129-134.
18 – Idem. Ibidem, p.132
19  –  Cf. COSTA, Hipólito José. Correio Brasiliense ou Armazém Literário. São Paulo,
SP: Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio Brasiliense, 2001 “Edição fac-
-similar”. Vol. XVI, pp. 187-190.

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A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

O que não foi feito. Talvez por faltar ao monarca a necessária força
política para executar a medida, ou mesmo em razão da prática usual de
postergar até o limite as decisões de Estado. Isso resultou na desastrosa
indefinição sobre a real condição das unidades administrativas do novo
Reino, ora referidas como capitanias ora províncias na documentação da
época, mesmo permanecendo todas sob o comando de capitães-generais,
indicando a continuidade da prática administrativa, segundo os ditames
do Ancien Régime, caracterizada pela subordinação das instâncias do po-
der local aos governos militares, nomeados pelo rei absolutista. O que,
sem dúvida, constituiu uma das razões mais forte da reação de 1817, ao
modelo de autonomia adquirido pelo Brasil em 1808 e legitimado em
1815. – quando a população das capitanias distantes da Corte do Rio de
Janeiro passaram de fato se sentir completamente alijada das perspectivas
promissoras da condição de Reino que estava sendo usufruída pela área
sede de poder – o Rio de Janeiro e capitanias circunvizinhas –, e começa-
ram a protestar contra a permanência do status quo.

Principalmente os habitantes de Pernambuco, capitania mais desen-


volvida na época e onde setores importantes da sociedade local – pro-
prietários de terras e produtores de algodão da zona da mata seca, co-
merciantes, magistrados, militares, membros esclarecidos do clero e das
camadas urbanas, em geral –, vendo-se excluídos das benesses previstas
da condição de Reino Unido luso-brasileiro, sentirem-se explorados pelo
considerável aumento da carga tributária que recaia sobre eles, além de
se verem repelidos, em favor dos portugueses, dos cargos públicos, en-
tão posicionaram-se contra a ordem vigente. E, em nome da “restauração
da pátria”, reagiram contra a prática política arcaica e opressora da mo-
narquia instalada no Rio de Janeiro, revolucionariamente reivindicando
outro modelo de autonomia e instituindo um governo republicano para
comandar o novo Estado independente do Brasil. A reação ao modelo de
Reino unido luso-brasileiro era direta e objetiva como pode ser anotada,
por exemplo, na proclamação que o governador capitão-general, Caeta-
no Pinto de Miranda Montenegro, dirigiu à população da capitania, na
véspera do 6 de março – dia em que rebentou a Revolução, ante a reação

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Maria de Lourdes Viana Lyra

impetuosa do militar José de Barros Lima, o Leão Coroado, transpassan-


do com a espada o corpo do comandante que lhe dera a ordem de prisão,
decidida na reunião do Conselho, convocado pelo governador, para dis-
cutir sobre o clima de tensão reinante:
Alguns partidos fomentados talvez por homens malvados com a louca
esperança de tirarem alguma vantagem das desgraças alheias sem se
lembrarem de que somos todos portugueses, todos vassalos do mesmo
soberano; todos cidadãos do mesmo Reino Unido; e que nesta feliz
união, igualando e ligando com os mesmos laços sociais aos de um
e outro continente, só deve dividir e separar aos que fomentam tão
perniciosas rivalidades20.

A questão posta, então, naquele momento era a divergência de inte-


resses e de posicionamentos na sociedade entre a população nativa e os
nascidos em Portugal que ali chegavam e, principalmente, a forte rejeição
de parte da população ao modelo de autonomia sob o comando do poder
monárquico absolutista centrado no Rio de Janeiro.

O impacto da Revolução
Nesse sentido, cabe anotar que a indignação e a consequente revolta
liderada pelos pernambucanos contra as diretrizes do Reino Unido luso-
-brasileiro representava um fortíssimo abalo à orientação política refor-
mista comandada pelos ilustrados, e em prol da unidade luso-brasílica,
posta em prática desde finais do século XVIII. Política que fora traçada
justamente traçada para fortalecer a monarquia portuguesa e, sobretudo,
preservar o mundo lusitano do horror da “abominável revolução” – que
havia rebentado no mundo luso, com a Revolução eclodida em Pernam-
buco, causando também grande preocupação aos monarquistas em geral,
esperançosos de que a consolidação de um Estado monárquico no Novo
Mundo resultasse no fortalecimento dessa forma de governo na Europa,
onde se encontrava bastante enfraquecida desde a Revolução Francesa
de 178921. Esse é um aspecto ainda pouco explorado, mas necessário à

20  –  Cf. MUNIZ TAVARES, Francisco. História da Revolução em Pernambuco em


1817. 5ª Edição Comemorativa 1817-1917-2017. Recife: CEPE Editora, p. 129.
21  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império. Op. cit., p.

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A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

reflexão sobre as análises elaboradas e ao amplo entendimento sobre as


questões então levantadas em torno do confronto criado entre as propos-
tas de Estado independente, monárquico ou republicano.

Deve também ser ressaltado que, sem dúvida, os “patriotas” de 1817


atuaram sob inspiração direta dos ideais de liberdade e o da efetiva parti-
cipação do homem na sociedade, ambos emanados da Revolução France-
sa de 1789 e claramente demonstrado no vocabulário então utilizado. Ao
se voltarem contra a “tirania real” de uma “Corte insolente sobre toda sor-
te de opressão” e requererem a adoção de instituições representativas da
sociedade, proclamando que “o povo entrava na posse dos seus legítimos
direitos sociais”, por sentirem-se “revestidos da soberania pelo povo em
que ela só reside”. Elaboraram os princípios gerais de uma “Lei Orgâni-
ca” para regulamentar a atuação do novo governo adotado – composto de
cinco membros, representantes da agricultura, do comércio, dos militares,
do clero e da magistratura –, conscientes da responsabilidade de garantir
com “prudência” e “patriotismo”, a “felicidade” dos cidadãos na nova or-
dem estabelecida – enquanto se aguardava a elaboração da Constituição
de direito a ser escrita por uma Assembleia Constituinte, que deveria ser
convocada para formatar o novo Estado independente e republicano22.

A proclamação dos “patriotas” à população, explicando os motivos


da Revolução, deixa patente a intenção de apaziguar a discórdia reinante
entre “brasileiros e europeus”, que frutificara com a elevação do Brasil
à categoria de Reino Unido a Portugal, por faltar: “uma mão hábil, que
tinha o poder de sufocá-las na sua origem [...] se houvesse um espírito
conciliador”, em vez de prevalecer “o espírito do despotismo e do mau
conselho (que) recorreu às medidas mais violentas e pérfidas”, agravando

149; e da mesma autora: “O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de eman-
cipação colonial”. R. IHGB, 2016. Op. cit., pp. 149-172.
22 – CF. MUNIZ TAVARES, Francisco. História da Revolução Pernambucana em
1817. Op. cit., pp. 333-341.

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muito o antagonismo entre eles23. Tornava-se necessário, portanto, escla-


recer os compatriotas sobre o que estava acontecendo:
Habitantes de Pernambuco! A Providência Divina, que pelos seus
inescrutáveis desígnios sabe extrair das trevas a luz mais viva e pela
sua infinita bondade não permite a existência do mal [...] ciúme e ri-
validade entre os filhos do Brasil e de Portugal [...]. Estais tranquilos,
apareceis na capital, o povo está contente, já não há distinção entre
brasileiros e europeus; todos se reconhecem irmãos, descendentes da
mesma origem, habitantes do mesmo país, professores da mesma reli-
gião [...]. Um governo provisório iluminado, escolhido entre todas as
ordens do Estado, preside a vossa felicidade; confiai no seu zelo e no
seu patriotismo [...]. Vós vereis consolidar-se a vossa fortuna, vós se-
reis livres do peso de enormes tributos que gravam sobre vós; o vosso
e o nosso país subirá ao ponto de grandeza que há muito o espera [...]
A pátria é nossa mãe comum, vós sois seus filhos, sois descendentes
dos valorosos lusos, sois portugueses, sois americanos, sois brasilei-
ros, sois pernambucanos24.

Note-se que o enfrentamento era objetivo e ideologicamente claro


contra o modelo político do Reino Unido luso-brasileiro sob governo
monárquico absolutista em vigor, mas não a favor do rompimento com
os irmãos portugueses, considerados igualmente vítimas do despotismo
real, portanto era fundamental a preservação dos interesses recíprocos
entre eles, para evitar a desorganização do comércio e das finanças locais.
Além de demonstrar que o chamamento à unidade de todas capitanias, em
outras bases, constituía o objetivo a ser alcançado pela revolução decreta-
da. Ou seja, outro modelo de independência para o Estado do Brasil, sob
governo republicano – inicialmente proclamado em Pernambuco, mas
com o propósito imediato de atrair as capitanias vizinhas –, intenção cla-
ramente comprovada pela documentação da época, como por exemplo,
na carta enviada aos paraibanos, esclarecendo que “Pernambuco, Paraí-
ba, Rio Grande e Ceará devem formar uma só República”, e solicitando
a adesão imediata da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Havia também
presteza em logo substituir a bandeira do Reino Unido por outra toda

23  –  Cf. MUNIZ TAVARES, F. Op. cit.


24 – Idem. Ibidem.

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branca, até que fosse confeccionada a definitiva, apresentada em menos


de um mês depois, no dia 3 de abril, em cerimônia pública e solene. Um
texto explicando o significado do desenho confirma o propósito de anga-
riar o apoio das capitanias vizinhas: “Azul e branca, em cores horizontais;
no azul o sol circundado pelo arco-íris e uma estrela, junto a qual espera-
mos ver enfileirar-se muitas outras”25.

Anseio de anexação, também explicitado no texto anexado ao exem-


plar da nova bandeira – já acrescido de duas estrelas –, para ser entregue
ao governo dos Estados Unidos da América em caráter oficial, enviado
pelo emissário Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, incumbido de ob-
ter o reconhecimento formal da República do Norte da América à Repú-
blica proclamada no Norte do Brasil:
As três estrelas representam os Estados de Pernambuco, Paraíba e Rio
Grande do Norte, os quais compunham a confederação em prol da
liberdade e independência. Logo que outras províncias do Reino do
Brasil tiverem aderido à confederação, outras estrelas serão colocadas
em volta do íris26.

Esses fatos contradizem o caráter “separatista” muitas vezes erro-


neamente atribuído ao movimento revolucionário de 1817, que, desde o
início, apregoou a intenção de incorporar as demais unidades adminis-
trativas do Brasil para fortalecer o Estado republicano instalado inicial-
mente no Recife, como vem sendo aqui apontado, além de constituir uma
visão anacrônica, uma vez que naquele momento ainda não existia uma
unidade brasileira27. Com o mesmo empenho que procurou incorporar as
capitanias vizinhas, os revolucionários buscaram o apoio de outros países
estrangeiros a sua causa. Após o contato com Washington, foi enviado à
Inglaterra “um certo Kesner, negociante inglês estabelecido no Recife”,
com a missão de oferecer ao brasileiro, ali radicado, Hipólito José da
25  –  Cf. TOLLENARE, F.L. Notes Dominicales. Prises pendant um Voyage em Portu-
gal et au Brésil, em 1816, 1817, 1818. Édition et commentaire par Léon Bourdon. Paris:
Presses Universitaires de France, 1972. Tomo II, p. 545.
26  –  Cf. PEREIRA DA COSTA. F.A. Anais Pernambucanos. Op. cit., vol. VII, p. 420.
27  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império. Op. cit., p.
164; e O Império em Construção: Primeiro Reinado e Regências. Op. cit., p. 14; MELLO,
Evaldo Cabral de. A outra Independência. Op. cit. p. 44.

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Costa, o cargo de “Ministro Plenipotenciário da República junto a Sua


Majestade Britânica”. Oferta prontamente recusada pelo jornalista, um
reformista ilustrado, que reagiu com veemência à “desastrosa revolução”,
argumentando que o mais sensato teria sido:
Demonstrar ao povo do Brasil que as reformas nunca se devem procu-
rar por meios injustos, quais são os da oposição de força ao governo e
efusão de sangue (acrescentando) ser absurdo supor que as revoluções
são o meio de melhorar a nação28.

Nesse meio tempo, foram enviados representantes dos revolucioná-


rios “patriotas” às capitanias circunvizinhas da parte banda Norte do Bra-
sil, para firmar a aliança que vinha sendo já há algum tempo articulada.
Ao Ceará, foi enviado o cônego José Martiniano de Alencar, membro de
família destacada do município do Crato. Ele, inicialmente, conseguiu o
apoio necessário, chegando a proclamar uma junta de governo revolu-
cionário e hastear, em cerimônia pública, a bandeira republicana, poucos
dias depois derrubada. José Martiniano foi preso junto a outros familia-
res, inclusive sua mãe, Bárbara de Alencar, e enviados todos aos cárceres
da cidade de Salvador29.

Para a Bahia, seguiu outro religioso ilustre, José Ignácio Ribeiro de


Abreu e Lima, mais conhecido como Padre Roma, que iniciou o percurso
por terra, sendo bem recebido na comarca das Alagoas e obtendo adesão
por onde passava. Dali seguiu de barco em direção a Salvador, sendo
preso logo que desembarcou, por ordem do governador capitão-general
da Bahia, e sumariamente fuzilado.

Fatos graves que anunciavam o início da derrocada da temida revo-


lução, sob o ideal de República, que aportara no mundo luso-brasileiro,
causando verdadeiro pavor aos reformistas ilustrados, ardorosos defen-
28  –  Cf. COSTA, Hipólito José da. Correio Brasiliense. Vol. XIX, p. 616. Ver também,
VARNHAGEN. F. A. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. 10ª ed. Integral. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP. 1981. Vol.
3. Tomo V. p. 168.
29  –  Cf. BARROSO, Oswald. Tristão Araripe: alma afoita da revolução. Fortaleza: Se-
cretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 1993; GIRÃO, Raimundo. Pequena
História do Ceará. Fortaleza: Ed. Univ. Fed. do Ceará, 1984.

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sores da preservação da monarquia lusa e do fortalecimento da forma de


governo monárquico em geral, além da consolidação da unidade luso-
-brasílica – tanto que, ao tomar conhecimento da “estranhíssima rebelião”
que rebentara em Pernambuco, a consternação da Corte do Rio de Janei-
ro, segundo John Luccock – comerciante inglês que chegou ao Brasil em
1808, aproveitando a abertura do mercado ao comércio estrangeiro –, foi
“indubitavelmente enorme”30.

A vigorosa oposição, liderada pela capitania de Pernambuco, à exis-


tência do Reino Unido, horrorizou a Corte monárquica centrada no Rio
de Janeiro, pela possibilidade de colocar em risco o projeto reformista
da Ilustração que vinha sendo perseguido desde final do século anterior,
como já foi acima apontado, justo no momento em que as perspectivas
se mostravam promissoras ao êxito da política em prol da consolidação
do poder monárquico no Novo Mundo, e do consequente revigoramento
da Monarquia na velha Europa. A morte da rainha demente, D. Maria I,
no ano anterior, levara o príncipe regente a ocupar o trono monárquico
e assumir o título de D. João VI, como rei do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves, possibilitando-lhe tomar medidas mais efetivas para
barrar a pressão cada vez mais forte dos portugueses, em aliança com os
ingleses, pelo retorno do rei e da sede de Corte, para Lisboa. A negocia-
ção diplomática em prol do casamente do filho primogênito, o príncipe D.
Pedro, com a arquiduquesa da Áustria, Leopoldina de Habsburgo, havia
sido exitosa e possibilitara ao Reino Unido luso-brasileiro a conquista do
precioso apoio do imperador Francisco II da Áustria – membro destacado
uma das dinastias mais tradicionais da Europa e poderoso chefe da San-
ta Aliança –, no enfrentamento da pressão pelo seu retorno a Portugal.
Portanto, era imperativo a Corte do Rio de Janeiro concentrar esforços
na arregimentação das tropas militares e na mobilização de recursos fi-

30  –  CF. LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil
tomadas durante uma residência de dez anos nesse país, de 1808 a 1818. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975.

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nanceiros para derrotar os revolucionários de 1817. Como foi claramente


explicitado na proclamação dirigida “Aos habitantes de Pernambuco”:
É do decoro e dever de Sua Majestade empregar todas as forças que
a Providência depositou em sua autoridade para destruir com a maior
brevidade possível o gérmen da guerra civil, cuja ideia consterna o es-
pírito do nosso Soberano e de tal maneira horroriza todos os seus fiéis
vassalos, a quem tem chegado a notícia desta mancha na fidelidade
nacional ainda não vista na Monarquia portuguesa31.

O movimento era depreciativamente rotulado de “motim” ou “re-


belião atroz”, com o alerta de que poderia se transformar em “furor re-
volucionário” contra os “sagrados direitos de El-Rei nosso senhor e a
integridade da nação”. O que revela o início de uma imediata ação con-
trarrevolucionária, mobilizada a partir do Rio de Janeiro, mas contando
com o apoio imprescindível do governador da capitania da Bahia, sob o
comando do Conde dos Arcos e da maioria dos senhores de engenho si-
tuados na zona da mata úmida de Pernambuco – aqueles mais ligados aos
interesses mercantis com Portugal –, no combate a “qualquer patriota, ou
infiel vassalo, que são sinônimos”32.

Já em meados do mês de maio, o periódico A Gazeta do Rio de Janei-


ro informava a saída de um “poderoso comboio”, preparado sob as vistas
diretas do monarca, composto de uma nau, dez navios e três mil homens,
em direção ao porto do Recife para desbaratar os revolucionários e de-
molir o Estado republicano ali instalado33. Isso dá a dimensão do aparato
bélico empreendido pelos defensores do Reino Unido, sobretudo quando
se leva em conta as anotações registradas por Luccock: “somente a cidade
do Rio de Janeiro forneceu uns sete mil voluntários e 200:000$000, ou
seja, £ 60.000 esterlinas”34. A força das tropas ofensivas, por terra e por
mar, aniquilou o Estado independente e republicano do Nordeste do Bra-
sil, pouco menos de três meses após de ter sido proclamado. Os principais
líderes, acusados do crime de lesa-majestade, foram presos e condenados
31 – Proclamação aos habitantes de Pernambuco. Cf. Muniz Tavares. Op. cit., p. 309.
32 – Idem. Ibidem.
33  –  Cf. SANTOS, Luís Gonçalves dos. Op. cit., p. 96.
34 – LUCCCOK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro ... Op. cit.

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A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

à morte cruel – as cabeças e mãos decepadas e espetadas em mastros es-


palhados por diversos municípios da capitania e os corpos arrastados por
cavalos, até os cemitérios – para ninguém mais se atrever a falar em re-
volução, nem tampouco duvidar da validade da forma de governo monár-
quico para o Brasil35. Inicialmente, três deles foram executados em Salva-
dor e três em Recife, além de desenterrarem o corpo do padre suicida João
Ribeiro e pendurarem as partes esquartejadas em postes da cidade. Outros
inúmeros revolucionários, também presos, foram enviados em condições
degradantes aos cárceres de Salvador, ali permanecendo longos anos, até
serem libertados por resolução das Cortes Gerais e Constitucionais de
Lisboa, convocadas em decorrência da Revolução do Porto de 182036.

A ação disciplinadora da Corte do Rio de Janeiro, no entanto, não


foi suficiente para impedir que novos focos de reação ao poder absolu-
to da monarquia ressurgissem poucos anos depois, desta vez, no velho
Reino europeu, reivindicando modificações profundas na composição do
governo monárquico, isto é, na composição do Estado luso sob a forma
de Reino Unido luso-brasileiro, e em relação à participação do homem na
sociedade. O momento era de reacomodação de forças no cenário euro-
peu, o que favorecia a discussão contra as instituições arcaicas do Ancien
Régime. O tempo marcado pela guerra expansionista do Império francês
desestruturara as bases das instituições ali estabelecidas e consagrara o
princípio da liberdade política, com as atenções centradas na definição
das novas formas de poder do Estado monárquico, em contraposição ao
ideal de República defendido pelos “radicais”.

É, portanto, nesse contexto de reafirmação da forma de governo mo-


nárquico, desde que com base no princípio constitucional de poder, que
se situa o movimento revolucionário rebentado em agosto de 1820, na
cidade do Porto, liderado pela burguesia mercantil do Reino de Portugal
que via na constitucionalidade da Monarquia uma forma de atuação mais
segura de se fazer representar nas decisões políticas relativas à recom-

35  –  Cf. COSTA. F.A. Pereira da. Anais Pernambucanos. Op. cit., vol. VII, p. 478.
36  –  Cf. MONTEIRO, Tobias. História do Império: a elaboração da Independência.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. USP. 1981. Tomo 1, pp. 204-209.

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posição do Estado. Sob o lema da “salvação da pátria”, arregimentaram


forças no movimento reivindicatório de convocação das Cortes Gerais e
Constitucionais, como “o órgão da nação”, para elaborarem “uma Consti-
tuição que segure os nossos direitos”; confirmando fidelidade ao rei, “D.
João VI [...] amante de um povo que o idolatra” e exigindo seu retorno a
Lisboa37. Este acontecimento marca o início de um período conflituoso,
caracterizado pelo confronto de interesses divergentes entre os dois Rei-
nos e encerrado com a ruptura de 1822 – com a declaração da Indepen-
dência do novo Estado monárquico e imperial do Brasil que assinalou a
falência do modelo de Reino Unido luso-brasileiro até então vigente.

A memória da Revolução
Apenas em 1840, seria publicado no Recife, o primeiro relato sobre
o acontecimento revolucionário de 1817, sob o título História da Revolu-
ção de Pernambuco em 1817, escrito pelo padre Francisco Muniz Tava-
res, um dos patriotas participantes da revolução republicana que perma-
necera encarcerado por quatro anos em Salvador. Declarando no Prefácio
que escrevera com o propósito de “narrar o que vi, e o que pessoas de
suma probidade referir-me-ão”, ciente de que “A História é a experiência
das nações, é a conselheira mais sábia dos reis (e) aquele que bem a es-
creve, presta mui relevante serviço; desejava prestá-lo; eis a razão desta
obra”38. E, por ter dela participado, afirmava que, apesar da curta duração:
A Revolução de Pernambuco em 1817, se bem que muito pouco du-
rasse, fará sempre época nos anais do Brasil; tempo virá talvez, em
que o dia 6 de março será para todos os brasileiros um dia de festa
nacional.

Asseverando em seguida:
Não foi só a divergência das províncias brasileiras que malogrou os
nobres esforços dos pernambucanos; foram também vários erros da-
queles, que se puseram a sua frente. Tais erros são do domínio da

37 – CF. Proclamação lida pelo coronel Cabreira. Transcrita em SANTOS, F. Pitei-


ra dos. Geografia e Economia da Revolução de 1820. Lisboa: Public. Europa-América,
1962, p. 152.
38  –  Cf. MUNIZ TAVARES, Francisco. Op. cit., p. 93.

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A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

História; é indispensável divulgá-los para lição da posteridade; o mal


não se cura sem ser conhecido39.

Na década seguinte, seria publicada no Rio de Janeiro, entre 1854 e


1857, a alentada obra História Geral do Brasil, dedicada ao imperador
Pedro II, e escrita por Francisco Adolfo Varnhagen, sócio do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, considerado o pai da Historiografia
brasileira. Ao analisar o período Joanino e abordar o tema da Revolução
pernambucana de 1817, o autor inicia o capítulo afirmando que:
O reino de novo criado – pelo benéfico rei D. João, era nada menos
que o centro e cabeça de um grande império, maior que os dois roma-
nos [...]. Eis que uma revolução, proclamando um governo absoluta-
mente independente da sujeição à Corte do Rio de Janeiro, rebentou
em Pernambuco em março de 181740.

Confessando, ao mesmo tempo, seu desagrado por ter que abordar:


“Um assunto para o nosso ânimo tão pouco simpático que, se nos fora
permitido passar um véu, o deixaríamos fora do quadro que nos propuse-
mos traçar”41.

E, objetivamente declarando que:


Cabe desde já dizer que a revolução pernambucana de 1817 não se
recomenda [...] pelas suas peças oficiais, nem pelos seus atos ou pro-
jetos. Nada próprio a inspirar sentimentos de heroísmos e de justiça, a
entusiasmar e engrandecer o povo42.

Negando, portanto, o caráter revolucionário do movimento e enten-


dendo que em 1817 ocorrera uma “insurreição”, contra a “integridade do
Império”, logo devidamente debelada pelo governo monárquico centrado
no Rio de Janeiro, para assegurar a necessária paz interna. Deixa implíci-
to que, na qualidade de representante do corpo diplomático do Império e
de político engajado no processo de consolidação e do pleno desenvolvi-
mento do Estado imperial brasileiro – por meio da luta empreendida em

39 – Idem. Ibidem.
40  –  Cf. VARNHAGEN, F. A. Op. cit. Tomo V, p.149 Cf. Op. cit., p. 149.
41 – Idem. Ibidem.
42 – Idem. Ibidem, p. 165.

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prol de uma nova configuração geopolítica do Império, com a mudança


da localização da capital, do litoral para o interior central, que julgava
mais apropriada –,43 não lhe cabia registrar nos anais da História um fato
do passado ameaçador da unidade territorial do Brasil, absolutamente ne-
cessária à existência do Estado imperial. Dispondo-se, então, a diminuir,
ou mesmo anular, a possibilidade de idealização do movimento revolu-
cionário liderado por “patriotas” em luta pela criação de outro Estado
independente do Brasil, sob a forma de governo republicano, tendo sido
vencidos pela forte reação da Corte monárquica e condenados à morte
cruel, pelo crime de lesa-majestade, conforma o relato de Muniz Tavares,
um dos “patriotas” condenados. Exemplo que poderia, talvez, reacender a
luta das províncias contra a centralização do Estado monárquico, ocorrida
em passado recente, iniciada no decorrer da década de 1830 e prolongada
até 1845, com o fim da Farroupilha44.

Pouco tempo depois, entre 1864 e 1868, seria publicada, também


no Rio de Janeiro, a obra História da Fundação do Império Brasileiro,
em sete volumes, escrita por João Manuel Pereira da Silva – um político
ativo que, membro do Partido Conservador, ocupara o cargo de deputado,
senador e conselheiro, do Império, além de historiador e romancista –
igualmente negando a importância histórica do movimento que ocorrera
em Pernambuco em 1817, afirmando que tudo “procedeu por acaso”, sob
a liderança de sonhadores “fugazes”, que pensavam “honrar a sua pátria”,
e que: “Não tinha a revolução nem razões e fundamentos na sua origem,
nem bases que se escorasse, nem raízes que a firmassem”45.

Demonstra, assim, a existência de interpretações completamente


divergentes na produção do conhecimento histórico sobre um mesmo
acontecimento – o movimento revolucionário de 1817 –, desde o início e

43  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. Brasília, a longa história de um projeto de
capital. Série Ciências na Missão Cruls. Vol. 1. Org. Pedro Jorge de Castro. Brasília:
Animatógrafo, 2010.
44  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. Centralisation, sistème fiscal ... e O Império
em Construção ... Op. cit.
45  –  Cf. PEREIRA DA SILVA, J. M. História da Fundação do Império brasileiro. Rio
de Janeiro: Garnier Ed. 1864-1868.

88 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017.


A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

permanentes ao longo do tempo. Uma, seguindo a concepção da época e


endossada por Muniz Tavares, entendia que ocorrera de fato uma Revo-
lução, “se bem que muito pouco durasse”. Outra, seguindo a visão da
historiografia oficial, iniciada por Varnhagen, entendia que não houvera
revolução e que apenas ocorrera uma “insurreição”, deflagrada por “um
motim militar”.

Anos depois, em 1884, objetivando contrapor a interpretação ne-


gativista da historiografia oficial, o Instituto Arqueológico, Histórico e
Geográfico Pernambucano, fundado em 1862 com o objetivo de contar a
história local, providenciou a reedição do livro de Muniz Tavares, acres-
cido de uma introdução com notas explicativas elaboradas pelo historia-
dor paraibano e sócio do IAGP, Maximiliano Lopes Machado, realçando
o caráter do autor e do valor da obra –“o testemunho de um homem hon-
rado, presente aos fatos sobre os quais depõe” –, e questionando “as ine-
xatidões e novidades introduzidas” nas obras de Varnhagen e Pereira da
Silva, ao afirmarem que não houvera revolução em 1817, que fora mera
obra do acaso e fruto de uma sedição militar. Com base em documen-
tação anexada e reveladora da articulação anterior ao 6 de março, entre
lideranças de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Bahia,
preparando a eclosão da Revolução “para as solenidades da aclamação”,
Lopes Machado conclui com ironia:
É notável como Varnhagen e o Sr. Conselheiro Pereira da Silva ne-
gam todos esses antecedentes para afirmar que a revolução nunca
foi premeditada [...]. Negar tudo isso, para tirar daquele memorável
acontecimento a sua importância histórica, foi um desserviço ao país,
privando-o das lições do passado para melhor dirigir-se no futuro [...].
Não foi tão simples nem de tão pouca posteridade o que ocorreu em
Pernambuco naquela época de dolorosa recordação46.

A divergência entre versões opostas sobre um mesmo fato históri-


co era explícita e continuou persistente na Historiografia, mesmo após a
proclamação da República Federativa do Brasil, em 1889, fato histórico
que finalmente realizava a aspiração dos revolucionários de 1817. O reco-

46  –  Cf. MUNIZ TAVARES, F. Op. cit. p. 66.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017. 89


Maria de Lourdes Viana Lyra

nhecimento, pela intelectualidade brasileira, de que realmente acontecera


uma Revolução em 1817, foi oficialmente demonstrado na Sessão Solene
Especial Comemorativa do Centenário da Revolução Pernambucana de
1817, promovida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e endos-
sada pelo governo republicano, realizada em 6 de março de 1917, na pre-
sença de ilustres personalidades – o representante oficial da presidência e
o vice-presidente da República, o prefeito da capital, o chefe da Polícia,
ministros de Estado e “mais pessoas gratas” – para celebrar a data cente-
nária47. Ocasião em que o presidente do IHGB, o conde de Afonso Celso,
abriu a sessão, declarando o objetivo exclusivo da mesma, o da:
Comemoração do movimento revolucionário que, há exatamente um
século depôs o regime absolutista da metrópole e organizou o primei-
ro governo autônomo da nossa pátria, o qual exerceu a sua autoridade
em três dos atuais Estados da União, revelou altos desígnios, procedeu
energia, bravura e honestidade, pagando com holocausto de muitas
preciosas vidas e aspirações de ver o Brasil independente e livre48.

Passando, em seguida, a palavra ao “orador incumbido da rememo-


ração”, Alexandre Barbosa Lima, pernambucano e político, governador
do Estado entre 1892 e 1896, depois deputado federal –, que se apresen-
tou como um “rebelde e obscuro inconfidente de 15 de novembro” e “um
devoto do heroísmo lendário do incomparável Pernambuco”. Iniciando o
discurso com a evocação dos:
Mártires confessores da fé republicana, os paladinos da independência
brasileira, por igual inconfidentes e rebeldes que a legalidade de há
um século declarou infames! Essa infâmia é a que nós proclamamos
hoje! Esse crime é o que lhes dá aos heróis de 1817, a auréola máxima
da virtude cívica! Quem diria brasileiros!49

Prosseguindo, recorreu a narrativas de escritores franceses para ba-


sear sua crítica às análises tendenciosas sobre 1817 e argumentar sobre a
necessidade de uma escrita “sem parti pris”, “sem predileção”, buscando

47  –  Cf. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 82. 1917. Ata da
Sessão. p. 617.
48 – Idem. Ibidem.
49 – Idem. Ibidem, p. 624.

90 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017.


A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

a “verdade histórica” dos fatos”. Objetivamente criticando os “postulados


da historiografia seca” que alimentara a incerteza sobre o real significado
do acontecimento, com uma escrita que transformara:
O 6 de março, ainda hoje, em curioso tema de erudição esteril, relem-
brado e discutido apenas pelos brasileiros doutores [...] os áulicos,
certos historiógrafos que floreceram no Império, os reacionários que
veem o argueiro nos olhos da República e não enxergam a trave mas-
siça nos olhos da realeza, os utilitários que não creem no ascendente
progressivo da virtude, da abnegação e do heroísmo, teem pretendi-
do tendenciosamente reduzir a proporções de um motim vulgar sem
ideais de uma forma de sedição de quartéis sem importância, de um
episódio mais que secundário na história local de uma pequena pro-
víncia turbulenta, a gloriosa insurreição que levantou o pavilhão hoje
duas vezes vitoriosos, da Independência e da República50.

Citando o texto do documento intitulado Preciso, escrito pelos re-


volucionários, em reação às acusações de serem contra os portugueses,
lançadas pelos opositores monarquistas:
Depois de tanto abusar da nossa paciência por um sistema de admi-
nistração, combinado acinte para sustentar as vaidades de uma Corte
insolente sobre toda a sorte de opressão de nossos direitos –, restava
caluniar agora a nossa honra com o negro labéu de traidores dos nos-
sos amigos, parentes e compatriotas naturais de Portugal51.

E concluiu o discurso significativamente valendo-se de uma frase


do Padre Muniz Tavares, escrita no prefácio do seu livro, almejando que
a Revolução de Pernambuco em 1817 fosse reconhecida e sua data co-
memorada em todo Brasil como “festa nacional”. Por fim, proclamando:
“Meus compatriotas: Le jour de gloire est arrivé”! 52

Vale ainda anotar que, além da Sessão Solene promovida pelo IHGB,
aconteceram cerimônias cívicas comemorativas na cidade do Recife e o
Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano promoveu uma nova
edição do livro de Muniz Tavares. Nela incluiu outro texto introdutório e

50 – Idem. Ibidem, p. 625.


51 – Idem. Ibidem, p. 652.
52 – Idem. Ibidem, p. 675.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017. 91


Maria de Lourdes Viana Lyra

alentadas notas complementares, desta vez, elaboradas pelo consagrado


historiador e diplomata Manuel de Oliveira Lima, pernambucano e tam-
bém sócio do IAGP. Sem dúvida, uma significativa contribuição ao tema,
pelo levantamento documental então indicado e consequente ampliação
da pesquisa sobre questões fundamentais ainda pouco explicadas. Oli-
veira Lima considera a reedição da obra do “cronista da revolução de 6
de março de 1817” a maneira mais acertada que o IAHGP entendeu de
comemorar:
O primeiro centenário da Revolução de 1817, a única revolução bra-
sileira digna deste nome e credora de entusiasmo pela feição idealista
que a distinguiu e lhe dá foros de ensinamento cívico, e pela realiza-
ção prática que por algum, embora pouco tempo lhe coube [...]. Foi
um movimento a um tempo demolidor e construtor, como nenhum
outro entre nós, e como nenhuma outra, em grau superior, na América
Espanhola [...]53.

Objetivamente explicitando não haver dúvidas sobre a relevância da


Revolução Pernambucana de 1817 no desenrolar do processo histórico de
formação do Estado independente do Brasil e demonstrando, por meio da
documentação complementar por ele levantada e indicada nas substan-
ciosas notas explicativas, a importância do que ocorreu e as consequên-
cias resultantes.

Não cabe, no espaço desse artigo, elencar as obras nem comentar


as análises elaboradas posteriormente sobre o acontecimento de 1817,
em Pernambuco. Apenas certificar que a apreciação divergente sobre o
significado desse fato histórico continua presente ainda hoje na produção
historiográfica brasileira. Mesmo após a comprovação documental de que
existiu uma fase de articulação anterior ao incidente da insubordinação
militar de 6 de março e que a consequente insurreição rebentada naquele
dia fora ultrapassada pela ação prática – com a destituição das autorida-
des locais, a mudança nas relações políticas e no ordenamento jurídico/
constitucional da sociedade, com a criação de um Governo Provisório,
regido por uma Lei Orgânica, a primeira carta de lei escrita para o Brasil,

53  –  Cf. MUNIZ TAVARES, F. Op. cit., p. 29.

92 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017.


A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro

que implicava em nova forma de poder de mando e de participação do


cidadão na nova sociedade. Essa lei foi escrita para vigorar até que fosse
elaborada a Constituição da República, por uma Assembleia Constituinte
a ser convocada pelos revolucionários. Ações que, sem dúvida, qualifi-
cam a ocorrência de uma revolução, mesmo não tendo havido tempo há-
bil para consolidar as mudanças propostas e adotadas54.

Essa questão centrou a atenção dos especialistas participantes do Se-


minário, organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro com
apoio do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano
e realizado em abril último, para celebrar o Bicentenário da Revolução
Pernambucana de 1817. Evidenciou-se, na ocasião, a necessidade de que
seja ultrapassada a barreira dessa visão divergente, pela superação de sen-
timentos de simpatia ou de aversão regionais, por parte de historiadores e
analistas em geral, para que se atinja um grau de maior clareza no conhe-
cimento do processo histórico de formação do Estado Nacional brasileiro
e da nossa própria nacionalidade!

Por fim e para tanto, vale realçar a iniciativa do Instituto Arqueoló-


gico Histórico e Geográfico Pernambucano, em reeditar a obra pioneira
de Francisco Muniz Tavares, “absolutamente indispensável para a com-
preensão do movimento” – segundo o organizador da nova edição, o his-
toriador George Cabral de Sousa –, como ato louvável de celebração do
Bicentenário da Revolução de Pernambuco em 181755. Providência, sem
dúvida, valiosa aos jovens historiadores e demais estudiosos interessados
no desenvolvimento de novos trabalhos de pesquisa e de reflexão sobre
a primeira revolução ocorrida no século XIX em Pernambuco a adotar a

54  –  Cf. BOBBIO, Norberto, MATEUTEUCCI, Nicola, PAQUINO, Gianfranco. Dicio-


nário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2ª edição, 1986, pp. 631,
1121.
55  –  Trata-se da 5ª edição do livro História da Revolução de Pernambuco em 1817, de
Muniz Tavares acima citado, reeditado com os comentários e as notas complementares
dos historiadores Maximiano Lopes Machado e Manuel Oliveira Lima, e acrescida de
excelente introdução escrita pelo atual presidente do IAHGP, o historiador George Cabral
de Sousa.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017. 93


Maria de Lourdes Viana Lyra

República como forma de governo e a instituir um Estado independente


e republicano no Brasil.

Texto apresentado em junho/2017. Aprovado para publicação em se-


tembro/2017.

94 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):65-94, set./dez. 2017.


Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia

95

PARA FAZER DE 1817 UMA REVOLUÇÃO:


O PAPEL DA HISTORIOGRAFIA
MAKING THE 1817 UPRISING A REVOLUTION:
THE ROLE OF HISTORIOGRAPHY
Guilherme Pereira das Neves1
Resumo: Abstract:
Do livro de 1840 do rebelde monsenhor Muniz From the 1840 book written by the rebellious
Tavares, passando pelas notas de Oliveira Lima monsignor Muniz Tavares, along with the notes
em 1917 sobre o acontecimento e pelos docu- Oliveira Lima wrote in 1917 and the documents
mentos da devassa que J. H. Rodrigues publicou about the event published by J. H. Rodrigues at
pela Biblioteca Nacional na década de 1950, até the Brazilian National Library in the 1950s, to
os estudos posteriores, o movimento de 1817 the subsequent studies on the topic, the 1817
viu-se predominantemente tratado como uma movement has been mainly regarded as a
revolução, sinal das crescentes tensões na colô- revolution, as a sign of the mounting unrest in
nia a caminho da Independência. Este trabalho the colony marching toward Independence. This
dirige o olhar em direção diversa. Pretende des- paper takes a different approach. It highlights
tacar os constrangimentos em que os agentes da the restraints the historical agents faced when
época estavam envolvidos, seja em termos dos dealing with the mental instruments at their
instrumentos mentais que tinham à disposição, disposal, as well as the discontent that arose
seja por efeito da insatisfação gerada pelos agra- from the grievances they suffered. To do so, it
vos que sofriam. Para tanto, apoia-se no Rubro relies on Evaldo Cabral de Mello’s Rubro veio
veio de Evaldo Cabral de Mello e em outras and other works; returns to a previous study of
obras; vale-se da experiência adquirida ao tra- the 1801 conspiracy; draws on a few documents
tar, no passado, da suposta conspiração de 1801; from the enormous 1817 investigation; and,
recorre eventualmente à considerável documen- above all, examines unpublished ones collected
tação da devassa; e, mais importante, lança mão by the late David Higgs, intended to foster a
de alguns documentos inéditos ou pouco co- joint research about Bernardo Luís Ferreira
nhecidos, coletados pelo saudoso David Higgs, Portugal, the dean of Olinda’s cathedral, but
tendo em vista uma investigação conjunta, que never fully realized.
nunca chegou ao cabo, sobre Bernardo Luís Fer-
reira Portugal, o deão da sé de Olinda.
Palavras-chave: 1817; Revolução; Clero; Inde- Keywords: 1817; Revolution; Clergy;
pendência do Brasil; Historiografia. Independence of Brazil; Historiography.

Ao redor de 1980, durante o mestrado, interessei-me por Pernambu-


co. Levavam-me tanto a inquietação de professor, que nascera do contato
direto com as notórias deficiências educacionais do país, quanto o fascí-
nio que a atuação de Rodrigo de Sousa Coutinho – enquanto secretário
da marinha e do ultramar (1796-1801) – tinha despertado, ao lidar, pela
primeira vez de maneira sistemática, com documentos de época. Afinal,
em 1800, o bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho inaugu-
1  –  Doutor em História. Professor do Departamento de História da UFF. Pesquisador do
CNPq. Sócio honorário do IHGB.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):95-113, set./dez. 2017. 95


Guilherme Pereira das Neves

rara o Seminário de Olinda, ambiciosa tentativa de estender as Luzes da


metrópole à colônia e assegurar a formação de uma elite para o império
imaginado2.

Alguns anos mais tarde, em São Paulo, conferência de David Higgs


(1939-2014) revelou o potencial da intrigante figura de Bernardo Luís
Ferreira Portugal, deão da Sé de Olinda em 1817 e implicado na revolta,
para a elaboração de uma microbiografia, como dizia Andrée Mansuy-Di-
niz Silva3. A essa altura, começava a delinear-se projeto, jamais levado a
cabo, de um estudo comparativo de tais movimentos rebeldes de finais
do período colonial4. Dessa maneira, em 1999, nas águas das comemora-
ções para os quinhentos anos das descobertas portuguesas, Maria Beatriz
Nizza da Silva, minha ex-orientadora, assegurou a publicação de artigo
sobre a chamada conspiração dos Suassunas, ocorrida em 1801, envol-
vendo destacados pernambucanos5.
As inconfidências do século XVIII causavam-me um duplo incômo-
do. Numa das faces deste, aparecia-me um anacronismo; na outra, uma
teleologia. Supostas manifestações do sentimento nacional de população
majoritariamente analfabeta e cativa antecipavam-se à independência de
1822, que veio a ser realizada por ninguém menos do que o príncipe her-
2  –  NEVES, Guilherme Pereira das. O Seminário de Olinda: educação, cultura e política
nos Tempos Modernos. Dissertação de Mestrado História. Niterói: UFF. 1984, datilogra-
fada, 2 v.
3 – SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Une voie de connaissance pour l’histoire de la soci-
été portugaise au XVIIIe siècle: les micro-biographies (sources, méthodes, étude de cas).
Clio – Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa. Lisboa, v. 1, 1979, pp.
21-65. Ver também HIGGS, David & NEVES, Guilherme Pereira das. Microbiografias e
mentalidades: venturas e desventuras do padre Bernardo Portugal antes de 1817. In: Anais
da IX Reunião Anual da SBPH. São Paulo: Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica,
1990, pp. 92-97, e HIGGS, David & NEVES, Guilherme Pereira das. O oportunismo da
historiografia: o padre Bernardo Luís Ferreira Portugal e o movimento de 1817 em Per-
nambuco. In: Anais da VIII Reunião Anual da SBPH. São Paulo: Sociedade Brasileira de
Pesquisa Histórica, 1989, pp. 179-184.
4  –  A título de exemplo, ver NEVES, Guilherme Pereira das. “O Rio de Janeiro de 1794
no tribunal das Luzes de R. Koselleck”. In: História, teoria e variações. Rio de Janeiro:
Contra Capa / Companhia das Índias, 2011, pp. 255-279.
5 – NEVES, Guilherme Pereira das. A suposta conspiração de 1801 em Pernambuco:
idéias ilustradas ou conflitos tradicionais? Revista Portuguesa de História. Coimbra, v.
33, n. 1, 1999, pp. 439-481.

96 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):95-113, set./dez. 2017.


Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia

deiro do trono português. Ao liberar-me da ideia de determinação pela


estrutura econômica e social, que um marxismo rasteiro tinha implantado
em minha vista, evidenciava-se, de um lado, a especificidade do ambiente
cultural da América, não só em relação à França, à Inglaterra e mesmo à
Itália, quanto à própria Península Ibérica. De outro, estava o lugar que a
historiografia atribuíra a esses movimentos. Ao final da “Introdução” que
escreveu para o penúltimo volume dos Documentos Históricos, em 1955,
José Honório Rodrigues traduz fielmente a percepção que me desagrada-
va. Para ele, na Inconfidência Pernambucana de 1801,
não se descobre uma arma, e tudo não passa de conversas e deba-
tes sobre as ideias de liberdade e independência. Por isso não foi um
fato como 1798 e 1817. Foi um pensamento sem ação, e como tal
pertence à História das ideias formadoras da consciência nacional.
Atos ou pensamentos rebeldes filiam-se num nexo íntimo: a expulsão
dos holandeses [1654], a revolta de Beckman [1684], os Emboabas e
Mascates [1710], a Inconfidência Mineira [1789], a Revolução dos
Alfaiates [1798], a Conspiração dos Suassunas [1801] e 1817 têm sua
conclusão em 1822.

E não hesitava em arrematar: “A inconfidência dos Suassunas é mais


um elo na cadeia da conspiração nacional contra o domínio colonial.”6

Apesar das dissonâncias, a historiografia soube aproveitar para tan-


to o elo que unia 1801 a 1817. Em ambos os acontecimentos estiveram
envolvidos membros da família Cavalcante de Albuquerque, uma das
mais importantes da capitania, proprietária do engenho Suassuna e que,
na década de 1840, inspirou a trova: “Quem viver em Pernambuco, há
de estar desenganado; ou há de ser Cavalcanti, ou há de ser cavalgado.”7
Em 1818, o desembargador João Osório de Castro Sousa Falcão escrevia
a Tomás Antônio de Vila Nova Portugal, ministro e secretário de Estado
de D. João VI no Rio de Janeiro, para informar-lhe o andamento da de-
vassa. Aproveitava para tecer suas considerações sobre o episódio que

6 – RIO DE JANEIRO. Biblioteca Nacional. Documentos Históricos [Devassa de 1801].


Rio de Janeiro, 1955, v. 110, p. 14, grifo meu.
7 – CARVALHO, Marcus J. M. de. Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças
políticas em Pernambuco, 1817-1824. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 18, n.
36, 1998, pp. 331-366, p. 331.

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Guilherme Pereira das Neves

eclodira há mais de um ano. Para ele, “o projeto da revolução era antigo


em Pernambuco, a explosão porém em seis de março foi intempestiva e
obra do acaso”. Ideias revolucionárias haviam sido transmitidas em 1801
de Lisboa por um dos Cavalcante de Albuquerque aos outros dois irmãos
em Pernambuco, do que houvera denúncia e prisão, mas a falta de provas
fizera encerrar a investigação. Ao mesmo tempo, de Goiania, ao norte,
fronteira do estado da Paraíba, Manuel de Arruda Câmara teria divulgado
concepções semelhante por meio de lojas maçônicas. A motivação devia
buscar-se no “ódio geral, antigo e entranhável dos filhos do Brasil, contra
os europeus”, ampliado por inversão dos “fatos da história da restauração
passada sobre os holandeses”, pois, a partir dela, deduziam-se “direitos
de propriedade, doação [da capitania] a Sua Majestade, com exclusão de
qualquer [sic] impostos”8.

Com os devidos ajustes, tal foi o caminho percorrido pela historio-


grafia pernambucana e paraibana do século XIX. O primeiro trabalho de
todos coube a um dos participantes, o padre Francisco Muniz Tavares.
Apesar de comedida e escrupulosa, a História da revolução de Pernam-
buco em 1817 surgiu dois anos depois da fundação do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, em 1838 no Rio de Janeiro, que tinha a incum-
bência de escrever a história capaz de unir a jovem nação, dilacerada
por lutas regionais após a abdicação de Pedro I em 1831. Confirmando
o lugar de onde falava, seu autor, em 1862, tornou-se o primeiro presi-
dente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano,
instituição destinada a enaltecer as glórias da província, sobre as quais
Evaldo Cabral de Mello debruçou-se9. Assim, enquanto se consolidava
em Pernambuco a interpretação que valorizava 1817, na capital do impé-
rio – mostrou-o George Félix Cabral de Souza (2017) –, o espírito centra-

8 – RIO DE JANEIRO. Biblioteca Nacional. Ofício, 17 mar. 1818, de João Osório de


Castro Sousa Falcão. In: Documentos Históricos [Devassa de 1817]. Rio de Janeiro, 1954,
v. 103, pp. 109-112. É José Honório Rodrigues quem alude ao documento e traça sua
divulgação na “Explicação” para o volume, desde PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernan-
des (cônego). Luiz do Rego e a posteridade. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 61, n. 3, 1861, pp. 353-490.
9 – Cf. Rubro veio: o imaginário da Restauração pernambucana. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1997.

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Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia

lizador insistia em desqualificar o movimento, com as obras de Francisco


Adolfo de Varnhagen (1854-1857) e João Manuel Pereira da Silva (1864-
1868), entre outras10.

Em 1889, a queda da monarquia e a implantação do sistema fe-


derativo não lograram dissolver as tensões regionais, mas a unidade do
país estava assegurada e mostrava-se difícil contestar a hegemonia que
o centro-sul, envolvendo Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, ti-
nha alcançado. Depois de dedicar um livro extraordinário a D. João VI
no Brasil, episódio decisivo para a criação do sistema imperial e para a
preponderância do Rio de Janeiro em relação às demais províncias, as ex-
tensas notas do monarquista Manuel de Oliveira Lima à terceira edição da
obra de Muniz Tavares, a do centenário da revolta, em 1917, abriu, de cer-
to modo, o caminho para incorporar o movimento ao panteão nacional11.
De insubordinação, 1817 convertia-se em etapa para a formação, em seu
sentido moderno, do ideal republicano entre os brasileiros. Décadas de-
pois, a organização da pós-graduação e da pesquisa nas universidades
possibilitou o aparecimento de trabalhos especializados sobre o período
ou a região12. Não obstante, nesse domínio, o livro de interpretação do
movimento mais conhecido recorreu a um referencial teórico confuso,
apresentou uso inconsistente da documentação e, claro produto do mo-
mento em que surgiu, buscava atribuir a 1817 outro papel de precursor
– desta feita, o da revolução, que o golpe militar de 1964 tinha abortado13.

10 – Cf. SOUZA, George Félix Cabral de. Apresentação. In: Francisco Muniz TAVA-
RES. História da revolução de Pernambuco em 1817 [1840]. 5ª ed. Recife: Cepe, 2017,
pp. 5-33. E também VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Rio
de Janeiro: E. e H. Laemmert / Madrid: Imprensa de J. del Rio, 1854-7, 2 v., como SILVA,
João Manuel Pereira da. História da fundação do Império do Brasil. Rio de Janeiro: B.
L. Garnier, 1864-8, 7 v.
11 – LIMA, Manuel de Oliveira. Dom João VI no Brasil [1908]. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2006.
12  –  Ver, por exemplo, LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco, 1817. Recife: Massan-
gana, 1988; SIQUEIRA, Antônio Jorge de. Os padres e a teologia da Ilustração: Per-
nambuco 1817 [1981]. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009; e RIBEIRO Jr., José.
Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro. São Paulo: Hucitec, 1976.
13 – Trata-se de MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817. São Paulo: Perspectiva,
1972. Mais recentes, os trabalhos de ANDRADE, Breno Gontijo. Brevíssima biografia do
governador José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. Temporalidades – Re-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):95-113, set./dez. 2017. 99


Guilherme Pereira das Neves

Na argumentação de 1999, atuando como uma espécie de agente


provocador, mas tendo por aliado, em alguns aspectos, ninguém menos
que José Antonio Gonsalves de Mello, procurei questionar a prolepse, di-
ria John Pocock, embutida no pressuposto de tomar participantes de 1817
como revolucionários de 180114. Despertava assim, implicitamente, dúvi-
das sobre o movimento posterior. Na realidade, continuo a acreditar que o
estudo das inconfidências na América portuguesa não se desvinculou do
mencionado viés anacrônico e teleológico de que elas se viram revestidas
por força da associação à nacionalidade. Uma história das ideias políticas
e dos movimentos sociais, tal como hoje se concebe, pelo contrário, exige
situá-las de maneira mais adequada no ambiente de antigo regime em que
vieram à luz e também esclarecer, em igual medida, de que instrumentos
mentais dispunham os diversos agentes envolvidos15. Não obstante, além
de concordar com a observação de Míriam Halpern Pereira de que a his-
tória total é meta estimulante, mas utópica, permaneço ainda desprovido,
infelizmente, dos elementos para tratar de maneira satisfatória do tema
nessas duas direções; e tudo que as linhas a seguir podem fazer restringe-
-se à indicação de dúvidas e suspeitas, a partir de algumas situações que
se encontram na limitada documentação que conheço16.

vista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. Belo Horizonte,


v. 6, n. 1, 2014, pp. 202-208; A carta de amor extraviada ou sobre a conspiração episto-
lar desencontrada: indagações sobre a existência da suposta conspiração dos Suassuna
ocorrida no memorável ano de 1801. SÆculum – Revista de História. João Pessoa, v. 28,
2013, pp. 295-310; e A guerra das palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817.
Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: FAFICH, UFMG. 2012. Um outra abordagem
pode ser encontrada em LYRA Jr., Marcelo Dias. Arranjar a memória, que ofereço por
defesa: cultura política e jurídica nos discursos de defesa dos rebeldes pernambucanos
de 1817. Dissertação de Mestrado. Niterói: PPGH, UFF. 2012.
14  –  Refiro-me a MELLO, José Antonio Gonsalves de. “Manuel Arruda da Câmara: es-
tudo biográfico”. In: IDEM (org.). Manuel Arruda da Câmara: obras reunidas. Recife:
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1982, pp. 11-74. Ver igualmente POCOCK, John
G. A. Quentin Skinner: a história da política e a política da história. Topoi, Revista de
História do PPGHIS da UFRJ. Rio de Janeiro, v. 13, n. 25, 2012, pp. 193-206.
15 – Cf. DUNN, John. The Identity of the History of Ideas. Philosophy. Cambridge, v.
43, 1968, pp. 85-104.
16  –  A observação encontra-se em PEREIRA, Míriam Halpern. O gosto pela história.
Lisboa: ICS, 2010, p. 20.

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Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia

Começo então pela suposta conspiração de 1801. O enredo é sim-


ples. Em 21 de maio deste ano, o juiz de fora do Recife comunicou ao go-
verno interino da capitania denúncia de José da Fonseca Silva e Sampaio
contra os Suassunas Francisco e Luís, envolvendo cartas de um tercei-
ro irmão, José, que estava em Lisboa. Imediatamente abriu-se devassa e
prenderam-se os acusados locais, com os quais encontrou-se um conjunto
de dez cartas (entre originais e rascunhos); ainda que outra, segundo o
denunciante, houvesse sido queimada por Francisco. Em 8 de junho, após
ouvir mais de 80 testemunhas, o juiz de fora do Recife, auxiliado pelo
ouvidor da Paraíba, não encontrou provas comprometedoras e concluiu
pela inocência dos acusados17. No início de dezembro, aviso de Lisboa
mandava soltar os presos.

Sem dúvida, para os padrões da época, a velocidade com que o pro-


cesso foi conduzido mostra-se excepcional. A devassa de 1794 no Rio
de Janeiro arrastou-se por dois anos, sem chegar a sentença alguma, en-
quanto os suspeitos padeciam na prisão. Alguns fatores podem justificar
a celeridade: a importância dos acusados, a conhecida atividade do bispo
Azeredo Coutinho, autêntico motor do governo interino da capitania des-
de o final de 1798, até mesmo a inconsistência da denúncia e o conteúdo
inócuo das cartas apreendidas. Contudo, certamente a partir de rumores
que circulavam por via oral, na citada carta a Vila Nova Portugal de 1818,
o desembargador Falcão já creditava a rapidez ao suborno de um escri-
vão – cujo nome confundia com o do denunciante –, responsável pelo
desaparecimento das provas comprometedoras. Retomada a versão pelo
padre Joaquim Dias Martins – esse manual do Pernambuco revolucioná-
rio segundo Oliveira Lima –, a plausibilidade da explicação parece ter
convencido os historiadores posteriores, que pouco a questionaram18.

17  –  Informação de uma estudante, Carolina Lucena Rosa, à qual mais uma vez agrade-
ço, revelou-me que o ouvidor da Paraíba também enviou a Lisboa carta em que manifes-
tava sua concordância com o resultado da devassa. Veja-se LISBOA. Arquivo Histórico
Ultramarino. Carta do ouvidor-geral da Paraíba, Gregório José da Silva Coutinho de 20
jul. 1801. Caixa 37, doc. 2692, documento disponível no Projeto Resgate na página da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
18 – MARTINS, Joaquim Dias. Os mártires pernambucanos vítimas da liberdade nas
duas revoluções ensaiadas em 1710 e 1817. Pernambuco: Tip. de F. C. de Lemos e Silva,

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Guilherme Pereira das Neves

Apesar disso, está bem documentada a verdadeira ojeriza que Aze-


redo Coutinho nutria em suas obras pelas ideias francesas, como as que
supostamente veiculavam as missivas, enquanto o mais velho dos Suas-
sunas, Francisco, uma vez solto, voltou a gozar do prestígio local que
sempre tivera, não deixando de aumentar sua honra perante as autorida-
des régias nos anos seguintes19. Ainda menos congruente com a versão
estabelecida da rebeldia da elite pernambucana no período encontra-se a
surpreendente trajetória do irmão mais novo. José Francisco Cavalcan-
te de Albuquerque, que enviava as cartas de Lisboa para o Recife em
1800-1801, tornou-se em 1806 governador da capitania do Rio Grande
do Norte, onde atuou com desenvoltura até 1810, a despeito dos pedidos
de transferência, motivados pela falta de recursos locais. Em seguida, em
data ainda desconhecida, assumiu o posto de capitão militar na ilha de
São Miguel, nos Açores20.

Em 22 de setembro de 1818, pouco antes de seu falecimento em 12


de novembro, José Francisco agradeceu ao soberano ter recebido “Carta
Régia de 2 de Julho do corrente ano”, que aprovava seus procedimen-
tos. E acrescentava: “Silenciosa e humildemente beijo mil vezes a Real
Mão de Vossa Majestade por este benefício que me confere; protestando
a Vossa Majestade que todos os meus esforços desde que principiei a
servir nesta honrosa Carreira foram, são e serão para merecer sempre
de Vossa Majestade tais distinções”21. Mais de ano depois de sufocado o
movimento do 6 de março de 1817, apesar da prisão ou morte de paren-
1853, p. 12.
19  –  Para o bispo, veja-se HOLANDA, Sérgio Buarque de. Apresentação. In: Rubens
Borba de Moraes (ed.). Obras econômicas de J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho. São
Paulo: Ed. Nacional, 1966. pp. 13-53.
20 – Cf. COSTA, Ricardo Manuel Madruga da. Os Açores em finais do regime de Capi-
tania-Geral, 1800-1820. Horta (Ilha do Faial, Açores): Núcleo Cultural da Horta / Câmara
Municipal da Horta, 2005, v. 1, pp. 524, 539 e 576; e NEVES, Guilherme Pereira das.
De infâmia e honra: a trajetória de José Francisco de Paula Cavalcante de Albuquqerque
(c. 1773-1818). In: Rodrigo Bentes Monteiro et al. (org.). Raízes do privilégio: mobili-
dade social no mundo ibérico do Antigo Regime. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011, pp. 456-482. A documentação sobre o governo da capitania do Rio Grande do Norte
encontra-se também no mencionado Projeto Resgate.
21 – LISBOA. Arquivo Histórico Ultramarino. Correspondência do governo de Mo-
çambique. Caixa 159, 1818, docs. 36 e 46.

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Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia

tes, o agradecimento de setembro de 1818 soava como suspiro de alívio.


Nessa ótica, uma leitura desarmada das cartas de 1801 passa a sugerir
com ênfase os equívocos, intencionais ou não, do denunciante a respeito
do conteúdo delas, como procurei mostrar em 1999, ao mesmo tempo que
torna plausível a explicação que lhes dá o irmão Luís de que “continham
negócios particulares da sua casa, que pela sua qualidade exigiam todo o
segredo, como várias pretensões de hábitos e foros e outras desta natureza
pelo capricho dele respondente e dos seus irmãos não quererem se publi-
car senão depois de conseguidas”22.

O universo mental dos Suassunas transparece ainda de curioso epi-


sódio, posterior à revolta e à repressão, ocorrido na cadeia da Bahia, con-
servado em anexo a partir da terceira edição da obra de Muniz Tavares23.
Em sua nota CXIX, Oliveira Lima explica tratar-se de manuscrito atribuí-
do a Basílio Quaresma Torreão, um dos encarcerados. Diante de repetidas
queixas de maus-tratos, o governador da Bahia indicara um jovem oficial
para cuidar da alimentação e, a fim de organizar o serviço, o oficial pediu
que os presos se distribuíssem em “classes”. Como resultado, o “bilhete
passou de mão em mão até que chegou ao domínio dos senhores Caval-
cantes [Suassunas], que não sabendo dar o verdadeiro valor à palavra
– classes”, convocaram um conselho dos personagens mais eminentes.
Neste “Areópago”, a matéria foi então “renhidamente discutida” e votada.

A conclusão consistiu no entendimento “que a palavra – Classes


– equivalia a Jerarquia [sic]”, dividindo-se os presos, por isso, em três
classes, ao que o manuscrito acrescentava, ao pé de página, com ironia:
“À guisa das Cortes de Lamego – Clero Nobreza e Povo!” A primeira
compreendia os militares com patente de major para cima, os “desembar-
gadores, magistrados, letrados, cônegos e vigários”; a segunda, militares
de cadete até capitão, “clérigos simples, magistrados não letrados e algum
22 – RIO DE JANEIRO. Biblioteca Nacional. Documentos Históricos [Devassa de
1801]. Rio de Janeiro, 1955, v. 110, p. 129. Sobre o papel do segredo nos negócios fami-
liares, ver MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma fraude genealógica no
Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
23  –  Cf. Francisco Muniz TAVARES. História da revolução de Pernambuco em 1817
[1840]. 5ª ed. Recife: Cepe, 2017, pp. 415 e 473-484.

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Guilherme Pereira das Neves

oficial da Fazenda”; finalmente, a terceira, aquele que escrevia e “todo


bicho careta que não cabia nas duas primeiras”. Superados alguns em-
baraços que surgiram, a relação foi encaminhada ao oficial. No entanto,
este se desesperou, pois o que desejava era apenas organizar o conjunto
de 103 presos em grupos de quatro ou cinco, de modo a melhor fazer a
distribuição das refeições24!

A menção aos religiosos presos na Bahia ressalta a importância que


a categoria teve em 1817. Segundo Muniz Tavares, o “liberalismo está
sempre na razão direta da instrução: o clero secular e regular de Per-
nambuco não era ignorante”. Por isso, ensinava “o perfeito acordo que
reina entre a Religião de Jesus Cristo e a bem entendida liberdade”25.
Parece difícil duvidar que a principal razão disso tenha sido a criação do
Seminário de Olinda em 180026. Na “Oração acadêmica” que proferiu na
inauguração da instituição, o professor de retórica, Miguel Joaquim de
Almeida e Castro, conhecido como padre Miguelinho, secretário do go-
verno rebelde de 1817, condenado e executado em seguida, não destoava
dessa opinião. Na ocasião, ele justificava e exaltava a iniciativa por que
foi a ignorância a que abortou, nos tristíssimos dias de nossos maiores,
esses dias horrendos, informes monstros do fanatismo e da supersti-
ção, que tanto tempo enlutaram o brilhante esplendor da religião e
subministraram a seus inimigos ocasiões para bem fundadas queixas
contra o cristianismo [...]27

Ao contrário, às ciências e belas artes


pertence ensinar aos homens o que eles devem ser; elas os unem, elas
lhes fazem conhecer os prazeres e delícias da paz, levam a luz a todas
as ordens, prescrevem a cada um os seus direitos e os seus deveres,

24  –  Comparar com a análise que MOTA, Nordeste 1817, cit., p. 132ss, faz do episódio
25 – TAVARES. História da revolução ..., cit., p. 210.
26 – Não obstante, MOTA, Nordeste 1817, cit., pp. 20 e 49, refere-se ao Seminário de
maneira perfunctória.
27 – CASTRO, Miguel Joaquim de Almeida e. Oração acadêmica que na abertura do
Seminário Episcopal de Olinda recitou o reverendo padre ..., natural da cidade do Natal do
Rio Grande do Norte, professor de retórica do mesmo Seminário, ano de 1800. Revista do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Recife, v. 35, 1937-1938,
pp. 172-189, p. 181.

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Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia

riscam-lhes a esfera impreterível em que se devem conter e formam


de uma nação uma assembléia de filósofos, que têm aprendido como
deixar as suas paixões e a viverem felizes em uma comunidade doce
e pacífica, onde não são admitidos, nem lícitos, senão os inocentes
combates de uma emulação louvável e onde a vitória só àqueles se
concede que têm com maiores fadigas e mais ativo zelo trabalhado
para a felicidade pública dos seus amados concidadãos28.

Quatro décadas depois, Muniz Tavares concordava: “acanhada em


todo o Brasil”, a instrução pública, “por uma combinação rara, difundia-
-se em Pernambuco com glória e utilidade geral”, uma vez que a provín-
cia tivera “a ventura de possuir na qualidade de bispo e governador civil
D. José Joaquim de Azeredo Coutinho”, cujo “axioma incontrastável”
dizia “que quanto mais sábio é o homem, menos sujeito [está] a vícios
ou delitos”29.

Nas sociedades de antigo regime, de cultura majoritariamente oral,


o clero ocupava importante papel de intermediário entre as autoridades
– cujas determinações cada vez mais transmitiam-se por escrito –, e a
grande massa da população iletrada30. Em Pernambuco, nos inícios do sé-
culo XIX, porém, também parece ter atuado como núcleo irradiador para
as novidades ilustradas junto às elites locais. Confirma-se, dessa forma,
outra vez, o lugar central que a religião continuava a manter na socieda-
de luso-brasileira31. Tal situação encontra-se na contramão, portanto, do
28 – CASTRO, Oração acadêmica ..., cit., p. 175. Quando consultado em 1981, o ma-
nuscrito autógrafo encontrava-se no arquivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geo-
gráfico Pernambucano, Estante A, Gaveta 9, e serviu, conforme recomendação do Pro-
fessor José Antonio Gonsalves de Mello, a quem agradeço, para corrigir as numerosas
gralhas da publicação.
29 – TAVARES. História da revolução ..., cit., p. 98.
30 – Veja-se FURET, François & Jacques OZOUF. “Trois siècles de métissage culturel”.
In: Lire et écrire: l’alphabétisation des Français de Calvin à Jules Ferry. Paris: Minuit,
1977, v. 1, pp. 349-69.
31  –  Cf., entre muitos outros, CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombali-
nas da instrução pública. São Paulo: Saraiva / EDUSP, 1978; ARAÚJO, Ana Cristina.
A cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003,
p.p 17-18; HIGGS, David (org.). O Santo Ofício da Inquisição de Lisboa e a ‘Luciferina
Assembléia’ do Rio de Janeiro na década de 1790. Revista do Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 162, n. 412, 2001, pp. 239-384; VILLALTA, Luiz
Carlos. O Brasil e a crise do antigo regime português (1788-1822). Rio de Janeiro: FGV,

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Guilherme Pereira das Neves

movimento de saída da religião que Marcel Gauchet identifica em direção


à modernidade. De fato, para este autor, como modo de estruturação da
sociedade, a religião assegurava a manutenção da coesão entre os indiví-
duos “por força de uma ordem exterior, anterior e superior à vontade de-
les”, mas é quando o poder dos homens toma “o lugar da ordem definida
pelos deuses ou desejada por Deus” que se torna possível falar em política
moderna e em democracia32. Ou seja, quando uma autonomia sucede à
heteronomia. Haveria aí algum ponto de contato com aquilo que monse-
nhor Muniz Tavares compreendia como o acordo entre a religião e a “bem
entendida liberdade”?

Certa ambiguidade envolve igualmente o já mencionado Bernardo


Luís Ferreira Portugal, personagem que aguarda um estudo mais amplo33.
A sua vida estende-se de 1762 a 1832, pontuada por vários episódios
curiosos. Aos 7 anos de idade, foi morar com um tio em Portugal, onde se
gradua em cânones por Coimbra em 1784 e retorna a Pernambuco. Em-
bora se torne comissário do Santo Ofício em 1788, desde o ano anterior,
passara a ter problemas com o tribunal, que tinha na capitania uma das
maiores redes de agentes na América, denunciado por negar a doutrina do
pecado original e por ler o Emílio, de “Ruseu” [sic]. Em 1795, atua como
defensor jurídico do marido numa rumorosa questão de casamento movi-
da pela família da mulher, atitude que parece relacionada ao degredo para
o Pará a que se vê condenado logo em seguida. De lá, provavelmente no
intuito de recuperar as boas graças das autoridades, escreve duas memó-
rias, uma sobre o aproveitamento das madeiras e a outra sobre a Ilha de
Fernando Noronha. Por essa altura novamente denunciado à Inquisição,
viaja para Portugal, mas em 1799 já está de volta a Pernambuco, sendo
escolhido, de maneira um tanto surpreendente, pelo bispo Azeredo Cou-
tinho, que aportara de Lisboa no Natal do ano anterior, promotor e de-

2016, p. 51ss.
32 – GAUCHET, Marcel. Un monde désenchanté? Paris: Les Éditions de l’Atelier / Édi-
tions Ouvriéres, 2004, p. 183. Ver também, do mesmo autor, La condition historique.
Paris: Gallimard, 2005.
33  –  A documentação por enquanto reunida sobre o padre Portugal está indicada nos dois
artigos mencionados acima, nota 2, em parceria com David Higgs.

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Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia

fensor justamente dos matrimônios. Em 1802, ao responder a diligências


anteriores, um dos mais ativos comissários do Recife, Joaquim Marques
de Araújo, considerava-o “um homem desprezador das leis da Igreja e da
Nossa Santa Religião”, que não temia a Deus e exibia “uma moral rela-
xada e infernal”, não havendo “vício algum que o não persiga”, pois che-
gara a pôr a própria mãe para fora de casa por causa de uma concubina,
sua escrava. Em suma, tratava-se de “um grande Libertino e um famoso
Heresiarca”34.

Apesar dos tropeços e deste juízo adverso, Bernardo não deixou de


galgar posições na hierarquia eclesiástica. Em 1802, na sé de Olinda, tor-
na-se doutoral do cabido, colegiado famoso pelas intrigas que gerava. Em
1808, dirige-se ao Rio de Janeiro para beijar a mão do príncipe regente
em nome da corporação e assume o lugar de vigário-geral do bispado. Em
1815, ascende a deão, o que, com o prelado na Corte, tornava-o respon-
sável pela diocese35. Nesta condição, encontra-o o movimento de 1817.
Como tal, assina pastorais, toma parte no conselho do governo e conduz a
célebre cerimônia de benção das novas bandeiras no início de abril. Acu-
sado pela devassa, defende-se com a alegação de que agira para preservar
a vida diante das imposições de rebeldes alucinados e apresenta a me-
mória, que depositara num convento de Olinda, em que fazia de D. João
VI seu herdeiro, a fim de comprovar sua fidelidade à Coroa. Poupado da
pena de morte e livre da cadeia na Bahia, retoma seus cargos, abandona
o sobrenome “Portugal” por ocasião da Independência de 1822, defende
em nome do cabido a manutenção da ordem nos tumultos de um pouco
depois e, antes de morrer, torna-se vice-presidente da província.

Muniz Tavares admite que o comportamento de Bernardo possa ter


sido motivado pelo “receio de maus-tratos”. Oliveira Lima fala de sua

34 – Para Joaquim Marques de Araújo, ver também WADSWORTH, James E. The


Agony of Decay: Joaquim Marques de Araújo, a Brazilian Comissário in the Age of In-
quisitional Decline. In: Ana Isabel López-Salazar, Fernanda Olival & João Figueirôa-
-Rego (coord.). Honra e sociedade no mundo ibérico e ultramarino: Inquisição e ordens
militares, séculos XVI-XIX. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2013, pp. 207-225.
35 – Ver RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil: expansão territorial e absolutismo esta-
tal (1700-1822). Santa Maria (RS): Pallotti, 1988, pp. 73 e 297-8.

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adesão “temerosa e espalhafatosa” a 1817. Curiosamente, porém, nin-


guém assinala o oportunismo que essa trajetória deixa transpirar. Ao in-
vés – sem muita ênfase, é verdade –, a historiografia tradicional preferiu
acreditar nas incriminações da devassa e incluí-lo entre os que partilha-
vam dos ideais da revolta desde muito cedo, seguindo o que deixou regis-
trado o padre Joaquim Dias Martins36.

Na realidade, como em outras capitanias nesse início do século XIX,


já se haviam consolidado dinâmicas sociais em Pernambuco que defi-
niam grupos poderosos e influentes, como o dos Suassunas; esquemas de
proteção e de antagonismo, evidenciados por vezes por meio de curio-
sos episódios – como a interminável e confusa disputa entre o pároco
e a irmandade do Santíssimo Sacramento pela posse da chave da ma-
triz de Santo Antônio do Recife37; e, também, mecanismos de fraude e
de corrupção. Ao chegar a sua diocese, munido da autoridade adicional de
diretor dos estudos, Azeredo Coutinho encontrou a administração do sub-
sídio literário malbaratada e deparou-se com 30 das 59 cadeiras de aulas
régias irregularmente vagas38. Sem dúvida, 1817, 1822, a Confederação
do Equador de 1824 e outros movimentos posteriores fizeram vir à tona
aquela “aversão ou deprezo” ao natural da metrópole que Capistrano de
Abreu apontara como um dos resultados de três séculos da colonização
portuguesa na América39. Ao mesmo tempo, o nativismo desenvolvido
após a expulsão dos holandeses emprestava à capitania uma tonalidade
própria, mais intensa, quanto a este aspecto40. Contudo, para as elites,
o soberano em Lisboa ou no Rio de Janeiro continuava a personificar a
ordem e representava sobretudo a possibilidade de distinção social, que
os tortuosos mecanismos das mercês promoviam, ainda que a formação
em Coimbra já pudesse representar também uma fratura cultural signifi-

36 – MARTINS, Os mártires pernambucanos ..., cit., pp. 328-331.


37 – NOGUEIRA, Severino L. (mons.). O Seminário de Olinda. Recife: FUNDARPE,
1985, pp. 149-184.
38  –  Ver NEVES, O Seminário de Olinda ..., cit., p. 345.
39 – ABREU, João Capistrano de. “Três séculos depois”. In: Capítulos de história co-
lonial [1907]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / MEC, 1976, pp. 189-213, p. 213.
40 – MELLO, Rubro veio ..., cit.

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Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia

cativa, que viria a acentuar-se na época da Independência41. A tudo isso,


somava-se o lugar preeminente ocupado pela religião e a predominância
da oralidade, que favorecia a calúnia e a intriga, configurando uma típica
sociedade de antigo regime, que a presença da escravidão estava longe de
descaracterizar.

Nesse ambiente, apesar do evidente apego do bispo Azeredo Couti-


nho à ordem estabelecida, sua curta atuação entre o final de 1798 e mea-
dos de 1802 em Pernambuco, com iniciativas como a criação do Seminá-
rio de Olinda, representou a difusão das ideias reformistas de Rodrigo de
Sousa Coutinho enquanto secretário de Estado da Marinha e Ultramar a
partir de 1796 e pode ter servido de elemento desestabilizador42. Se, em
Lisboa, para desenvolver algumas das atividades que julgava indispensá-
veis, D. Rodrigo conseguiu atrair à sua volta um grupo de letrados que
compreendia bom número de naturais da América, nas capitanias do Bra-
sil não foram poucos os indícios do entusiasmo que também despertou43.
41  –  Sem alongar a lista, ver: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia.
São Paulo: UNESP, 2005; OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado moderno:
honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar / FCT, 2001; MELLO,
O nome e o sangue ..., cit.; MELLO, José Antonio Gonsalves de. Um mascate e o Recife:
a vida de Antônio Fernandes de Matos, 1671-1701 [1957]. 2ª ed. Recife: Fundação de
Cultura Cidade do Recife, 1981; e NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas
e constitucionais: a cultura política da Independência, 1821-1823. Rio de Janeiro: Re-
van, 2003. Para o período como um todo, ver ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do
império: questão nacional e questão colonial na crise do antigo regime português. Porto:
Afrontamento, 1993.
42  –  Para D. Rodrigo, antes de mais nada, ver os magníficos dois volumes de SILVA,
Andrée Mansuy-Diniz. Portrait d’un homme d’État: D. Rodrigo de Souza Coutinho,
Comte de Linhares, 1755-1812 – L’homme d’État, 1796-1812. Lisbonne / Paris: Centre
Culturel Calouste Gulbenkian, 2006 e Portrait d’un homme d’État: D. Rodrigo de Souza
Coutinho, Comte de Linhares, 1755-1812 – Les années de formation, 1755-1796. Lisbon-
ne / Paris: Commission Nationale pour les Commémorations des Découvertes Portugaises
/ Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2002. Para Pernambuco, veja-se também SILVA,
Maria Beatriz Nizza da. Pernambuco e a cultura da Ilustração, Recife: Ed. da Univ.
Federal de Pernambuco, 2013, e MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência: o
federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.
43 – Cf. MAXWELL, Kenneth R. The Generation of 1790 and the Idea of Luso-Brazilian
Empire. In: Dauril ALDEN (ed.). Colonial Roots of Modern Brazil. Berkeley: Univ. of
California Press, 1973, pp. 107-144 e DIAS, Maria Odila da Silva. Aspectos da Ilustração
no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 278,
1968, pp. 105-170.

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Guilherme Pereira das Neves

Uma Elegia a ele endereçada “em testemunho de obséquio, venera-


ção e cordial respeito” por professor régio de língua latina na cidade da
Bahia foi traduzida para o português por Manuel Maria de Barbosa du
Bocage44. Pela mesma época, também na Bahia, um dos três professores
régios de grego da colônia, Luís dos Santos Vilhena, natural de Portugal,
dava os últimos retoques em suas cartas sobre o Brasil45. As vinte primei-
ras vinham dedicadas ao príncipe regente e endereçadas a um “Filopono”
– quer dizer, àquele que é capaz de reconhecer o esforço do trabalho. No
entanto, as quatro últimas, incluindo a importantíssima vigésima quarta,
de pensamentos políticos sobre a administração da colônia, dedicou-as
a D. Rodrigo, alterando o destinatário para “Patrífilo”, ou seja, amigo
da pátria. Do Rio de Janeiro, escreveu-lhe em 1799 o professor régio de
retórica Manuel Inácio da Silva Alvarenga, acusado e preso de fomentar
uma conjuração em 1794.
Tendo eu a felicidade e honra de ser contemporâneo de V. Exª. na
Universidade de Coimbra, devia ser o primeiro que destas remotas
províncias mostrasse a V. Exª. o justo prazer que senti na minha alma,
sabendo que Sua Majestade confiara das brilhantes virtudes de V. Exª.
a administração dos importantes negócios ultramarinos; mas a intriga
e a calúnia, que me sepultaram incomunicável na mais obscura prisão,
deram motivo a que eu não pudesse expressar a minha alegria, sem
que fosse acompanhada de sincero agradecimento que devo a V. Exª.
pelo benefício da minha liberdade [...].

Por isso,
o fiel vassalo, a mil e mil léguas distante do Real Trono, conhece cheio
de amor e gratidão que a sua fortuna, o seu estado e a sua vida não são
objetos indiferentes na balança do vigilante Ministro. Levantado, ou
para melhor dizer ressucitado por V. Exª., tenho todo o direito de me
julgar criatura sua [...].46

44 – CARDOSO, José Francisco. Elegia. Lisboa: na Oficina de Simão Tadeu Ferreira,


1800, 35 p.
45 – VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII [c. 1800]. Salvador: Itapuã,
1969. 3 v.
46 – ALVARENGA, Manuel Inácio da Silva. Capitania do Rio de Janeiro: correspon-
dência de várias autoridades e avulsos. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-
leiro. Rio de Janeiro, v. 65, n. 105, 1902, pp. 71-335, pp. 291-292.

110 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):95-113, set./dez. 2017.


Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia

Em Pernambuco, enfim, o naturalista Manuel Arruda da Câmara,


médico por Montpellier e indigitado como maçom e inspirador da conju-
ração dos Suassunas e de 1817, viajou pelos sertões nordestinos por conta
de comissões determinadas por D. Rodrigo, a quem considerava “meu
grande protetor”. Em 1799, tendo descoberto uma planta, “cujo fruto dá
excelente tinta amarela, que se fixa tenazmente nos panos de algodão, por
meio só da pedra-ume”, pretendia, se autorizado, a “condecorá-la com o
nome de V. Excia.”. Além disso, as quatro cartas suas ao ministro termi-
nam: “Deus guarde a V. Excia., como o Brasil e eu havemos mister.”47

Esse reformismo ilustrado contrapunha-se às rotinas locais e pro-


curava impor uma nova ordem, mais racional, em detrimento dos inte-
resses privados, a fim de ampliar a esfera de poder da Coroa, em parale-
lo a processos semelhantes anteriores em outras monarquias, que foram
característicos do século XVIII, como argumenta Franco Venturi48. Não
obstante, para implementá-lo, era reduzida a elite dispondo da formação
cultural adequada e, mais importante, nela avultavam os eclesiásticos, si-
nal, novamente, da dimensão ocupada pela religião no império português.
Eis o motivo, com toda a probabilidade, de sua introdução em Pernambu-
co ter tomado a forma de um seminário; e pelas mãos de um bispo. Por
outro lado, se tanto a ordem régia para que Azeredo Coutinho retornasse
a Lisboa, contestado por grupos locais e incompatibilizado com algumas
autoridades metropolitanas, quanto o afastamento de Rodrigo de Sousa
Coutinho do gabinete do príncipe regente, cerca de um ano depois, po-
dem ter desestimulado os ânimos dos mais afeitos às novidades, as espe-
ranças devem ter renascido com a instalação da Corte no Rio de Janeiro
e o retorno de D. Rodrigo ao poder em 1808, logo agraciado com o título
de conde de Linhares. Ao falecer em janeiro de 1812, porém, o ministro
ilustrado não chegou a levar adiante a ideia de um império em que, como
pretendia em 1797, cumpria “conservar com o maior ciúme” o
inviolável e sacrossanto princípio da unidade, primeira base da mo-
narquia […], a fim de que o Português nascido nas quatro partes do
47 – MELLO, “Manuel Arruda da Câmara: estudo biográfico” ..., cit., pp. 237-243.
48 – Ver VENTURI, Franco. Utopia and Reform in the Enlightenment. Cambridge:
Cambridge University Press, 1971.

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Guilherme Pereira das Neves

mundo se julgue somente português, e não se lembre senão da glória


e grandeza da monarquia a que tem a fortuna de pertencer, reconhe-
cendo e sentindo os felizes efeitos da reunião de um só todo composto
de partes tão diferentes que separadas jamais poderiam ser igualmente
felizes [...].49

Até a eclosão do movimento liberal de 1820, superada a ameaça na-


poleônica e consolidada a posição do Rio de Janeiro como nova metrópo-
le, exacerbaram-se as tensões, não só em relação ao reino, mas igualmen-
te em relação às demais províncias da América.

Nessa perspectiva, o movimento de 1817 em Pernambuco nasce cer-


tamente de uma insatisfação, apurada no caldeirão do nativismo que re-
sultou da luta contra os holandeses, mas associa-se com dificuldade seja
a alguma aspiração de independência nacional por parte de elites sociais
mergulhadas num universo mental tão arraigado às tradições do antigo
regime, seja a ideias liberais ou radicais de um clero mais instruído que
alhures, mas nem por isso descompromissado com a velha ordem hete-
ronômica ditada pela religião. Assim, ao fim e ao cabo, o que se revela é
um certo oportunismo da historiografia dominante, que fez de 1817, no
século XIX, ora o exorcismo contra qualquer ameaça à situação vigente,
ora a afirmação de uma identidade regional; e, no XX, a projeção do
anseio da mudança que não fora capaz de realizar. Num caso como no
outro, ignorou o espírito crítico que justifica a prática da disciplina para
além do âmbito exclusivamente acadêmico. Nesse sentido, a questão que
se impõe é: haverá, no Brasil atual, condições e interesse para adquiri-lo
e praticá-lo? A pergunta talvez se revele de maior alcance do que possa
parecer à primeira vista50.
49 – COUTINHO, Rodrigo de Souza. Textos políticos, económicos e financeiros (1783-
1811). Org. de Andrée Mansuy-Diniz Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, v. 2, 48-49,
grifo meu.
50  –  Este texto beneficiou-se da apresentação no “Colóquio Internacional do Bicente-
nário: Gomes Freire e as Vésperas da Revolução de 1820”, com organização de Miriam
Halpern Pereira (CIES/ISCTE-IUL) & Ana Cristina Araújo (FLUC/CHSC), realizado na
Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, em 18 de outubro de 2017; no “Colóquio 1817,
Revolta e Revolução no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”, sob a responsabili-
dade de Ana Cristina Araújo, em 20 de outubro de 2017, na sala Silva Dias da Falculdade
de Letras da Universidade de Coimbra; e no “Seminário A Revolução de 1817, as Luzes

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Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia

Texto apresentado em junho/2017. Aprovado para publicação em se-


tembro/2017.

e a Contemporaneidade”, realizado por Luiz Carlos Villalta na FAFICH da UFMG, Belo


Horizonte, entre 4 e 5 de dezembro de 2017. Uma versão ligeiramente diferente deverá
sair publicada futuramente no volume das atas do primeiro evento.

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Os embates pela história da revolução pernambucana de 1817

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OS EMBATES PELA HISTÓRIA DA REVOLUÇÃO


PERNAMBUCANA DE 1817
THE STRUGGLES FOR THE HISTORY OF THE PERNAMBUCO
REVOLUTION OF 1817
George F. Cabral de Souza1
Resumo: Abstract:
A Revolução Pernambucana de 1817 suscitou Over time, the Pernambuco Revolution of 1817
ao longo do tempo um debate sobre suas dimen- has brought about a debate about its dimen-
sões, seu caráter revolucionário e sua importân- sions, its revolutionary character and impor-
cia no contexto da história do Brasil. Diversos tance in the context of Brazilian history. Several
fatores interferiram na forma como o movimen- factors played a role in the way the movement
to foi interpretado durante o período imperial was interpreted during the imperial period and
e nas mudanças de perspectivas operadas por in the changes of perspectives that took place at
ocasião da instalação do regime republicano em the time of the establishment of the republican
1889. O texto propõe uma aproximação inicial regime in 1889. The paper proposes an initial
aos embates pela história e pela memória de approach to the struggles for history and memo-
1817 durante os primeiros cem anos que suce- ry of 1817 during the first hundred years which
deram a insurgência pernambucana. succeeded the Pernambuco insurgency.
Palavras-chave: Pernambuco; Revolução de Keywords: Pernambuco; Revolution of 1817;
1817; historiografia; Instituto Arqueológico; historiography; Archaeological Institute; Fran-
Francisco Muniz Tavares. cisco Muniz Tavares.

O principal objetivo deste texto é realizar uma aproximação a algu-


mas leituras e posturas relativas ao acontecimento ao longo dos cem anos
que lhe sucederam. Não trataremos aqui, portanto, sobre a história de
1817 propriamente dita. A pesquisa, ora em curso, foi instigada pela pas-
sagem do bicentenário do movimento pernambucano. A efeméride nos
motivou, junto ao historiador e confrade Dirceu Marroquim, a iniciar um
estudo sobre a memória da Revolução de 1817 e os seus usos políticos. O
presente texto é devedor de muitas da ideias apresentadas pioneiramente
por Manoel Salgado, José Murilo de Carvalho, Ângela de Castro Gomes,
Lúcia Guimarães e Marina dos Santos Ribeiro.

Tomamos como marco inicial aqui a publicação d’A História da Re-


volução de Pernambuco de 1817, de Francisco Muniz Tavares, surgida
originalmente em 1840, numa edição patrocinada pelo próprio autor. A

1  –  Presidente do IAHGP. Doutor em História pela Universidade de Salamanca. Profes-


sor do Departamento de História da UFPE. Pesquisador do CNPq.

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George F. Cabral de Souza

redação do livro fora iniciada por Muniz Tavares em 1832, após uma
longa temporada em Roma, onde desempenhou funções na legação diplo-
mática brasileira junto à Santa Sé. O Império do Brasil enfrentava tempos
agitados. O ensaio de descentralização realizado nos primeiros anos do
período regencial abriu brechas para uma série de convulsões políticas e
sociais de norte a sul do país.

Em 1840, já o Regresso centralizador se consolidara, mas ainda san-


gravam feridas. O Rio Grande do Sul, onde se proclamara uma república,
se encontrava separado do Império, situação que se manteve até 1845.
O Golpe da Maioridade entregara o cetro a Pedro II (1825-1891), mas a
unidade imperial perigava.

O jovem Império teve de consolidar seu território impondo a paz dos


canhões. Não obstante, superar os localismos exigia também a construção
de uma ideia de nacionalidade, de um passado comum, de um sentimento
de pertença que seria a garantia da unidade nacional e do reconhecimento
e aceitação do modelo estatal altamente centralizador desenhado na Carta
Constitucional de 1824.

Nesse contexto surgiu em 1838 o Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro (IHGB). Sua principal meta era pensar o país segundo pontos
de vista próprios, construindo uma narrativa histórica dedicada a desven-
dar a gênese do país, bem como estabelecer um perfil do Brasil como na-
ção que daria continuidade à obra civilizatória iniciada pela colonização
portuguesa.

No entanto, que papel caberia a Pernambuco nesta história pátria?


Como enquadrar nesse projeto uma capitania (e depois província) com
numerosos episódios de relevante importância histórica, pioneira no Bra-
sil em tantos aspectos e com uma impregnada tradição de contestação
aos poderes centrais? Não foi por acaso, portanto, que Muniz Tavares
publicou em 1840 sua História da Revolução de Pernambuco em 1817.
A narrativa de Muniz Tavares foi construída em 21 capítulos curtos, apre-
sentados na ordem cronológica dos acontecimentos.

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Os embates pela história da revolução pernambucana de 1817

Longe de ser um discurso panegírico sobre o movimento e seus


principais condutores, o texto de Muniz Tavares relata com franqueza os
acertos e erros dos revolucionários. A probidade e o idealismo dos seus
principais próceres são realçados, fazendo frente às acusações de levian-
dade que lhes foram imputadas pelos vencedores da hora.

Ainda em vida de Muniz Tavares, seu relato e a própria memória da


Revolução sofreram duros ataques. Entre 1854 e 1857, Francisco Adolfo
Varnhagen (1816-1878, Visconde de Porto Seguro) publicou sua História
Geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal.
É muito bem conhecida a animosidade daquele historiador em relação à
Revolução: “é um assunto para o nosso ânimo tão pouco simpático que,
se nos fora permitido passar sobre ele um véu, o deixaríamos fora do qua-
dro que nos propusemos a traçar.”

Para Varnhagen a Revolução não teria sido planejada, sendo fruto


de um motim militar cujo insucesso foi crucial para que se garantisse
a “integridade do Império”. A participação de alguns dos mais destaca-
dos cidadãos no movimento – como o Ouvidor Antônio Carlos Ribeiro
de Andrada (1773-1845) e o homem de negócio Gervásio Pires Ferreira
(1765-1836) – teria sido fruto de coerção, e não de adesão sincera e idea-
lista. Para o Visconde, o movimento pernambucano não mereceria sequer
ser incluído como um dos predecessores da independência. O autor da
História Geral do Brasil também não poupou esforços para desqualificar
as lideranças do movimento, mormente Domingos José Martins (1781-
1817). O capítulo dedicado por Varnhagen à Revolução se encerra com
uma louvação pela superação das ameaças à unidade territorial do Impé-
rio, cuja grandeza e paz interna seriam as melhores garantias do respeito
das outras nações.

Em 1861 a memória da Revolução sofreu outro revés. Em artigo


publicado na Revista Trimestral do IHGB, o cônego Fernandes Pinheiro
(1825-1876) empreendeu uma reabilitação da figura do general Luiz do
Rego. O militar português havia sido alvo de severo julgamento por parte
de Muniz Tavares nas Cortes de Lisboa em 1821 e em sua História da

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George F. Cabral de Souza

Revolução. Em seu texto, Pinheiro reprocha a “inadequada forma de que


se revestira” o governo estabelecido pela Revolução de Pernambuco ao
mesmo tempo em que afirma não ser apropriado igualar Luiz do Rego a
outras figuras da repressão ao movimento, tais como o Conde dos Arcos
(Dom Marcos de Noronha e Brito, 1771-1828) e o presidente do Tribunal
da Alçada, Bernardo Teixeira Coutinho Álvares de Carvalho.

A opinião de Pinheiro sobre as proclamações do Governo Provisório


não é tão negativa como as de Varnhagen. Afirmou o Cônego: “parece-
-nos o programa da República de Platão, que alguns utopistas planejavam
transplantar para as margens do Beberibe [...].” Não obstante, considera
injustas as ponderações feitas por Muniz Tavares em relação à atuação de
Luiz do Rego, procurando realçar as virtudes do oficial português apre-
sentando testemunhos contemporâneos sobre seu histórico de serviços
em Portugal e sobre as medidas que tomou para aliviar os rigores com que
agia o Tribunal de Alçada no Recife.

Também negativa foi a leitura de João Manuel Pereira da Silva


(1817-1898) sobre a Revolução em sua História da Fundação do Império
Brasileiro, publicada entre 1864 e 1868 em sete tomos. Pereira da Silva
dedicou quase todo o livro 8º do quarto tomo aos acontecimentos de 1817
em Pernambuco. Para ele “não tinha a revolução nem razões e fundamen-
tos na sua origem, nem bases que se escorasse, nem raízes que a firmas-
sem.” Sua opinião é peremptória: a insurgência pernambucana “procedeu
do acaso”. Pereira da Silva desqualifica os participantes do movimento,
mas reconhece que alguns possuíam caráter honrado e honesto.

Quanto à memória da Revolução, reputa que os atos dos seus parti-


cipantes foram “gloríolas fugazes com que pensam alguns honrar a sua
pátria”, e que não seriam adequados aos “voos da musa épica” e sim
mais apropriados para serem “descritos em simples e mediana lingua-
gem”. Nesse ponto o autor reagia à recente constituição do Instituto Ar-
queológico e Geográfico Pernambucano (IAGP), que despontava como
um contraponto ao discurso historiográfico oficial construído e emanado
pelo IHGB. Pereira da Silva encerra a parte de sua obra dedicada a 1817,

118 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):115-129, set./dez. 2017.


Os embates pela história da revolução pernambucana de 1817

fazendo um balanço dos prejuízos causados pela Revolução a Pernambu-


co e destacando as medidas de misericórdia instadas por Luiz do Rego
e adotadas por Dom João VI para evitar que fossem mais numerosas as
prisões e execuções de envolvidos na trama.

Num aparente paradoxo, o posicionamento francamente negativo da


historiografia da corte e as exortações do Imperador Pedro II durante sua
visita a Pernambuco em 1859 foram cruciais para que, em 1862, se con-
cretizasse a fundação de uma sociedade dedicada aos estudos da história
da província.

Com a criação do Instituto Arqueológico, Pernambuco passava a


contrapor sua opinião à do IHGB. Os pernambucanos reclamavam tam-
bém sua centralidade histórica e cultural no contexto daquilo que cha-
mamos hodiernamente nordeste oriental. Observe-se que em seu brasão
figura um mapa com toda sua antiga área de influência desde o período
colonial. Essa área de influência foi paulatinamente desarticulada com a
retirada do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba da jurisdição de Per-
nambuco. Mas o vigor dessa articulação regional pode ser demonstrado
pelas efêmeras convergências ao seu centro político e sobretudo econô-
mico, o Recife, em 1817 e 1824.

O IAGP teria como primeiro presidente justamente o autor da His-


tória da Revolução de Pernambuco em 1817. Muniz Tavares ocupou o
cargo até falecer em 1875. O velho monsenhor deixou em testamento
para o IAGP os exemplares restantes da edição de 1840 e os direitos sobre
a obra.

Como a primeira tiragem se esgotou, surgiu em abril de 1876 a pro-


posta para que o IAGP viabilizasse uma segunda edição. A venda dos di-
reitos foi anunciada aos possíveis interessados, bem como se encarregou
o dr. Machado Portela (1827-1907) de tentar negociar com casas editoras
no Rio de Janeiro. Nenhum dos cinco editores consultados na sede da
Corte manifestou interesse em publicar uma nova edição da obra. Quase
dois anos depois, em janeiro de 1878, o IAGP continuava na busca de

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George F. Cabral de Souza

financiamento para a impressão do livro, desta vez com a subscrição de


assinantes. Seria necessário esperar até 1884 para que finalmente surgisse
a desejada segunda edição.

O volume saiu acrescido de uma introdução e 57 notas elaboradas


pelo historiador paraibano Maximiano Lopes Machado (1821-1895),
membro efetivo do IAGP. A impressão ficou a cargo da Tipografia In-
dustrial, do Recife. Na abertura de seu texto introdutório, Machado in-
forma que como estava esgotada a primeira edição e muitos volumes de
documentos relativos à Revolução haviam desaparecido das repartições
públicas onde estavam depositados, a história do movimento republicano
corria o risco de ser vilipendiada pois
não seria estranho que futuros escritores, devido à falta de outras fon-
tes, seguissem o caminho apontado pelos senhores Conselheiro J. M.
Pereira da Silva e Visconde de Porto Seguro, F. A. Varnhagen, pelo
qual se vai à transformação completa daquela página da história pá-
tria.

Machado se empenhou em contrapor os principais argumentos de


desqualificação usados por Pereira da Silva e Varnhagen. Diante da acu-
sação de que 1817 havia sido uma quartelada que se transformou num
movimento de contestação política, elencou contraprovas indicando que
a insurgência, a despeito de ter eclodido inesperadamente, havia sido pla-
nejada e se inseria numa grande articulação entre grupos de Pernambuco,
Bahia e Rio de Janeiro, com conexões europeias, mormente com elemen-
tos ligados ao bonapartismo. Os principais canais de difusão das ideias
libertárias e de urdidura dos planos revolucionários eram, como é bem co-
nhecido, as diversas lojas maçônicas em funcionamento nas localidades
mencionadas. Demonstra também que não era verdade que algumas das
principais figuras haviam participado da Revolução sob pressão e sim por
genuíno ímpeto próprio, como foi o caso do ouvidor Antônio Carlos de
Ribeiro Andrada, apesar da tibieza de suas declarações durante a devassa.

Saindo em defesa do autor da História da Revolução de Pernambuco


de 1817, Machado aponta vários erros factuais, de identificação de per-

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Os embates pela história da revolução pernambucana de 1817

sonagens e de lugares na narrativa de Pereira da Silva, e reafirma o valor


do trabalho de Muniz Tavares, testemunha ocular de muitos dos fatos nar-
rados. Não obstante, o comentador tece crítica ao monsenhor no que diz
respeito a algumas falhas de seu método de abordagem do episódio his-
tórico, que resultou num texto voltado para quem já conhecia os antece-
dentes do 6 de março, ficando o leitor menos informado sem “a necessária
conexão de causas e efeitos”. Para Machado, “não bastava dizer como a
Revolução de 1817 se passou; era ainda necessário apontar as causas que
a produziram, penetrando no passado pela ordem dos fatos até descobri-
-las”. Ainda segundo o comentador, essa lacuna teria sido preenchida por
Varnhagen e Pereira da Silva com uma versão equivocada dos fatos.

A memória de 1817 já começara a ser exaltada pelo IAGP de forma


discreta a partir do final da década de 1860. Em 1868, por exemplo, o dis-
curso de Regueira Costa enaltece 1817, mas num tom conciliatório com
a monarquia. À medida que o fim do regime monárquico se aproximava,
os posicionamentos se tornaram mais incisivos. Cada vez mais os sócios
do IAGP defendiam maior reconhecimento dos eventos republicanos de
Pernambuco. O 15 de novembro de 1889 deu uma nova perspectiva aos
olhares lançados sobre 1817.

A chegada da República agravou a concentração política e econômi-


ca no eixo centro-sul, processo que começou a se desenhar já no século
XVIII, mas que se acelerou no século XIX. Os estados do norte do país
passaram a competir entre si para garantir algum espaço nas negociações
realizadas no plano federal. Da mesma forma que ocorrera no Império,
como bem apontou Evaldo Cabral de Mello, na República as condições
continuaram adversas para o fortalecimento e a modernização econômica
do norte. Às interferências do eixo centro-sul somava-se o conservado-
rismo político das elites locais do norte, que em sua extremidade orien-
tal eram quase todas diretamente relacionadas com as velhas oligarquias
canavieiras. O que se fez em termos de modernização da agro-indústria
local não teve paralelo em termos de mudança social, como ressaltaram
em seus estudos Peter Eisenberg e Robert Levine.

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George F. Cabral de Souza

Nesse contexto de declínio político e econômico, restava bater-se


pelo reconhecimento dos pioneirismos históricos pernambucanos. Se por
um lado a emergência do novo regime abria finalmente uma brecha para
a celebração dos heróis e dos eventos republicanos de Pernambuco, por
outro lado, os estados vizinhos do nordeste oriental também passaram
a batalhar por suas identidades, desidratando as vinculações históricas
com o grande Pernambuco do passado colonial, apesar da continuidade
dos laços culturais que naquela altura ainda continuavam a ser tecidos,
entre outras razões, pela convergência de jovens bacharelandos para a
Faculdade de Direito do Recife, e pela prevalência do velho Diario de
Pernambuco como veículo de notícias na região.

Os traços pioneiros de republicanismo em Pernambuco passaram a


ser inseridos no encadeamento histórico de fatos que conformaram a tão
celebrada pernambucanidade, reivindicando-se ainda a sua precedência
na construção histórica da nação brasileira. Veja-se, por exemplo, o tre-
cho do discurso de João José Pinto Júnior, então presidente do IAGP pu-
blicado na RIAP, n. 37, em 1890:
Se tem dito com bastante fundamento que o dia 6 de março de 1817
foi o desenvolvimento da primeira tentativa ou do primeiro movimen-
to ocorrido em novembro de 1710, o qual movimento era, por sua vez,
corolário do dia 27 de janeiro de 1654, que como fica dito, fez cessar
para sempre as invasões holandesas, dando aos cidadãos esse espírito
de autonomia que em 1822 se traduziu em fato pela Independência
nacional.

Após a proclamação da República, o IHGB necessitou realizar ajus-


tes nos seus posicionamentos para se adequar aos novos ventos da políti-
ca. A República em nossa história finalmente passava a ser objeto de um
olhar mais simpático. Não obstante, não foram os eventos pernambuca-
nos aqueles levados ao proscênio, e sim, como é sobejamente conhecido,
o episódio da Conjuração Mineira, com seu mártir, Tiradentes.

De todas as maneiras, apesar de não serem contemplados com os


louros do pioneirismo, os pernambucanos e sua história recheada com tão
significativos episódios republicanos começaram a ter mais espaço. Por

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Os embates pela história da revolução pernambucana de 1817

ocasião do 15 de novembro, os republicanos históricos em Pernambuco


constituíam um grupo visivelmente minoritário e eclipsado pelas figuras
políticas ligadas ao regime monárquico, entre elas o barão de Lucena e
o conselheiro Rosa e Silva, que acabaram se metamorfoseando politica-
mente para se manter no poder. O IAGP, não obstante, passou a enaltecer
a mudança de regime, entre outras razões em virtude de poder finalmente
fazer justiça histórica aos seus mártires e, por outro lado, afirmar o lugar
do estado na organização federativa, buscando compensar a decadência
econômica com os fastos históricos do Leão do Norte.

Em texto publicado na RIAP em 1890 afirmava Maximiano Lopes


Machado:
A Restauração, cujo aniversário hoje nos inebria, e a província do Nor-
te como consequência dela, deveriam ser motivos da maior considera-
ção e benevolência da parte dos poderes constituídos. Consolemo-nos
com as recompensas dos fuzilamentos e cadafalsos erguidos em 1817
e 1824, [...] com o abandono e miséria em que vivemos [...] Acabe a
República com a origem de todos os males, conhecidos e remediáveis,
procure extirpá-los pela raiz, auxiliando a atividade industrial, procure
lançar suas vistas patrióticas para o Norte, e principalmente para esta
terra de legendário heroísmo que regula o seus destinos pelas lições
da história.

Infelizmente as esperanças do historiador paraibano não se concre-


tizaram, entre outras razões, pela própria atuação das elites políticas dos
estados do Norte.

Outra demonstração do bom ânimo com que a República foi recebi-


da pelo IAGP foi a cunhagem, em 1890, de uma medalha comemorati-
va do segundo ano da abolição da escravidão que destacava as datas de
1817 e 1824, bem como de outra peça relativa ao primeiro aniversário da
proclamação da República. Ao longo das décadas seguintes, com desta-
que para o momento da comemoração do centenário da independência, o
IAGP empenhou-se em associar o movimento de 1817 como verdadeiro
precursor de 1822, exculpando os revolucionários pernambucanos da pe-
cha de separatistas.

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George F. Cabral de Souza

O advento da república permitiu que os revolucionários de 1817 e


1824 pudessem ser finalmente reabilitados e considerados também pelo
IHGB como construtores da nacionalidade, embora tenha cabido a Tira-
dentes o papel de grande herói nacional. Ao remontar a escolha do herói
nacional a um passado mais remoto, a nascente República evitava um
confronto direto com a memória de Pedro II – um monarca que contava
com a simpatia da população – bem como evitava as complicações polí-
ticas que nomes como Deodoro, Floriano ou Constant poderiam ensejar.
O processo de construção do herói mineiro foi exemplarmente estudado
por José Murilo de Carvalho em um texto que já nasceu clássico e que é
de todos conhecido.

A figura de Pedro II continuou a ser tratada com respeito pelas ins-


tituições de memória do país, entre outras razões, porque a manutenção
da unidade territorial representava um elemento pelo qual o país devia
gratidão ao velho monarca. Essa mesma questão, a da unidade, também
acabava por pesar para que Tiradentes suplantasse alguns dos pernam-
bucanos do primeiro quartel do XIX, mormente a figura de Frei Caneca.

Apesar do reconhecimento do valor dos movimentos republicanos


de Pernambuco, manteve-se certa retranca com a possibilidade de que
provocassem um esfacelamento territorial do país, caso tivessem triunfa-
do. Por outro lado, a memória de Tiradentes ligava-se a um movimento
que não chegou às vias de fato, e logo, que não destampou a caldeira das
tensões sociais existentes em sua época, algumas delas ainda latentes na
passagem do XIX para o XX, e, no limite, pulsantes até os dias de hoje.
Tiradentes nunca ameaçou efetivamente a ordem e a hierarquia; os per-
nambucanos sim, ainda que enviesadamente.

Tanto o pernambucano major José Domingues Codeceira quanto o


cearense Capistrano de Abreu protestaram contra a escolha de Tiraden-
tes. Codeceira mediante publicação de conferência na qual reivindicava a
precedência de Pernambuco e Capistrano pelo silêncio em relação ao mo-
vimento mineiro em seus Capítulos de História Colonial, bem como pela
denúncia de que a conjuração das gerais advogava o desmembramento do

124 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):115-129, set./dez. 2017.


Os embates pela história da revolução pernambucana de 1817

território, ao passo que 1817 estendia o convite para uma independência


republicana e unitária.

Para os intelectuais que atuavam no IAGP, os eventos de 1817 me-


reciam mais do que ser reconhecidos como componentes da história do
Brasil. Deveriam passar a ter a sua primazia ressaltada, pelo menos com-
partilhando o mesmo lugar de memória do movimento mineiro, e não
ocupando o segundo posto atrás dele. Nessa peleja pela memória, chega-
mos às celebrações do centenário.

O centenário da Revolução Pernambucana de 1817 chegou num mo-


mento de muitas dificuldades para o IAGP. O Instituto encontrava-se sem
sede própria e parte de seu acervo havia se perdido, pois o sodalício foi
sumariamente despejado do edifício onde funcionava desde 1879. O epi-
sódio se deu em virtude das contendas políticas entre Dantistas e Rosistas
– quando o general Dantas Barreto, veterano da Guerra do Paraguai, foi
imposto como presidente do estado de Pernambuco pelo Marechal Her-
mes da Fonseca no âmbito de sua pugna contra as oligarquias estaduais,
no caso daquele estado, contra Rosa e Silva.

Essa crise institucional impedira que o Arqueológico tivesse tido


atuação mais forte contra os verdadeiros atentados que foram perpetrados
contra o patrimônio histórico do estado, seja no bairro do Recife durante
a reforma do porto, quando se demoliu o Corpo Santo – o mais antigo
templo da capital pernambucana; seja na trágica reforma empreendida
na Sé de Olinda, quando azulejos e talhas seculares foram simplesmente
descartados como velharia inútil e a catedral foi horrendamente decorada
em estilo neogótico. Conseguiriam os confrades celebrar dignamente o
centenário da mais importante insurgência anticolonial jamais realizada
em toda a história da monarquia portuguesa? A resposta é sim.

O Arqueológico, com o apoio do sucessor do general Dantas Bar-


reto, o dr. Manuel Borba, e com o infatigável trabalho do seu primeiro-
-secretário, Mário Melo, realizou uma série de eventos para celebrar a
memória da Revolução. Os trabalhos da comissão instituída para tal fim

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):115-129, set./dez. 2017. 125


George F. Cabral de Souza

foram presididos pelo historiador Oliveira Lima, já então retirado do ser-


viço diplomático. O Teatro de Santa Isabel foi cenário para uma sessão
solene na qual os discursos ressaltaram a grandeza do movimento e uma
missa campal foi celebrada pelo arcebispo na Praça da República, local
diretamente ligado aos acontecimentos da revolução e onde foram execu-
tados alguns de seus heróis.

Mas não ficou nisso. Escolas foram batizadas com os nomes dos
mártires de 1817, os correios lançaram selo postal alusivo à efeméride e
uma exposição de flores e frutos foi realizada. Apesar da conhecida repul-
sa de Mario Melo ao futebol, organizou-se um campeonato com equipes
dos estados nortistas e promoveu-se a articulação com outros institutos
históricos estaduais para a realização de atos comemorativos. Por iniciati-
va do Arqueológico, a bandeira revolucionária de 1817, com uma peque-
na alteração, foi oficializada pelo governo do estado como símbolo maior
de Pernambuco, sendo hoje talvez a mais querida e cultuada bandeira
estadual no país.

A imprensa local deu grande destaque às celebrações, embora tenha


sobrado espaço também para dissensões derivadas dos choques políticos
entre os dantistas e os correligionários de Manuel Borba. A despeito de
ter sido ungido sucessor pelo General, a criatura rebelou-se contra o cria-
dor e o clima político voltou a azedar. Ao mesmo tempo, os maçons não
ficaram satisfeitos, pois se sentiram esquecidos nas comemorações, e aca-
baram se desvinculando do programa oficial. Os jornais como o Diário
de Pernambuco e o Jornal do Recife foram os veículos para estas rusgas.

Além dos festejos, o Arqueológico empreendeu grandes esforços


para concretizar aquela que foi, talvez, a mais perene das ações comemo-
rativas do centenário: a preparação da terceira edição da obra do monse-
nhor Muniz Tavares.

Ela deveria ser acrescida de mais notas e documentação, comple-


mentando aquelas que já haviam sido oferecidas por Maximiano Lo-
pes Machado na edição de 1884. O IAGP encarregou da tarefa um dos

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Os embates pela história da revolução pernambucana de 1817

seus mais brilhantes sócios, o historiador e bibliófilo Alfredo de Car-


valho. Não obstante, seu falecimento prematuro em meados de 1916
obrigou uma mudança de planos. O encargo passou para as mãos
de Oliveira Lima. Em carta lida na sessão do IAGP de 13 de julho de
1916, Oliveira Lima lamentava a morte de Carvalho e aceitava a honrosa
tarefa de o substituir.

Era naquela altura um historiador já consagrado por obras como


Pernambuco, seu desenvolvimento histórico (1895) e Dom João VI no
Brasil (1908), e lançou mão de toda a sua pujante erudição para produzir
um conjunto de 133 notas que praticamente supera em extensão o texto
de Muniz Tavares. Nelas, Oliveira Lima se propôs a ampliar o conjunto de
informações já reunidas pelo autor e por Machado, aproveitando-se
de nova documentação disponibilizada em arquivos brasileiros e estran-
geiros, nestes últimos, especialmente a correspondência diplomática. Fi-
guram também referências a outros textos de observadores contempo-
râneos, sendo o mais mencionado, as Notas Dominicais do comerciante
francês Louis-François de Tollenare. Na solicitação de recursos feita pelo
IAGP ao Legislativo estadual para a produção da nova edição, informava-
-se que muitos destes documentos haviam já sido divulgados pela revista
do sodalício e que, a exemplo do que havia feito Capistrano de Abreu
com a obra de Varnhagen, seria melhor acrescentar os dados novos ao
escrito original de Muniz Tavares do que escrever uma nova história de
1817.

Apesar de ser incluído por Evaldo Cabral de Mello no conjunto de


historiadores que reforçaram o discurso unitário e centralista da consti-
tuição política do Império do Brasil, o posicionamento de Oliveira Lima
em relação a 1817 é bastante mais simpático do que o de Varnhagen. Para
ele, teve
[...] a Revolução pernambucana, e bem saliente, a sua formosa feição,
pois que cativa e fascina quanto representa nobre aspiração de liber-
dade, a qual sabemos não vicejara no Brasil, nem mesmo depois que a
transplantação da coroa determinara a mudança climatérica.

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George F. Cabral de Souza

Além da produção dos textos complementares, Oliveira Lima tam-


bém deu sugestões para a própria composição do volume:
[...] entendo, outrossim, que a edição comemorativa deve ser ilustrada
de maneira discreta, inteligente e sugestiva, com vistas e retratos de
época, fac-símiles, reprodução da bandeira, etc., para o que o Instituto
já se acha em parte aparelhado com o material de anteriores publica-
ções [...].

Dadas as dificuldades das imprensas locais, Oliveira Lima chegou a


cogitar imprimir a obra em gráficas da Europa, mas “em Londres, tudo
é difícil com a guerra. Em Lisboa seria menos difícil, mas a correspon-
dência é muito demorada para a revisão de provas.” A edição de 1917,
acabou sendo produzida mesmo no Recife, nas oficinas da Imprensa In-
dustrial, onde Alfredo de Carvalho já havia iniciado parte do trabalho.
Mantiveram-se as notas de Lopes Machado, o que faz da terceira edi-
ção a mais completa das três primeiras reimpressões tendo sido tomada
como base para a quinta edição comemorativa do bicentenário, lançada
em março de 2017 pela Companhia Editora de Pernambuco, com um pri-
moroso projeto gráfico elaborado por Ricardo Melo.

Em 1917, o IHGB rendeu um pleito de homenagem ao movimen-


to pernambucano que seria impensável décadas antes. Na noite de 6 de
março realizou-se uma sessão solene que contou inclusive com a partici-
pação do presidente da República, Wenceslau Brás. Embora o pleito do
Arqueológico de tornar o 6 de março feriado nacional permanentemente
não tenha sido aceito pelo governo federal, naquele ano de 1917 o dia
foi feriado. O orador principal da noite foi o ex-presidente do estado de
Pernambuco, José Alexandre Barbosa Lima.

O centenário de 1817 contou ainda com solenidades em diversos


estados da federação. Mesmo o distante Acre rendeu suas homenagens.
Curiosamente, a revista do IAGP de 1917, que registra todos os atos rea-
lizados, não menciona celebrações no Rio Grande do Sul, outra unidade
da federação com um histórico de descompassos políticos com os poderes
centrais.

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Os embates pela história da revolução pernambucana de 1817

A redenção de 1817 no seu centenário não evitou que a memória


da Revolução passasse por muitos altos e baixos ao longo das décadas
seguintes. Dentro e fora de Pernambuco surgiram vozes e leituras contrá-
rias à valorização do movimento. Pretendemos Dirceu Marroquim e eu
apresentar em breve essa história da história de 1817.

Texto apresentado em maio/2017. Aprovado para publicação em


agosto/2017.

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1817: Ideário Liberal Pernambucano

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1817: IDEÁRIO LIBERAL PERNAMBUCANO


1817: LIBERAL IDEAS IN PERNAMBUCO
Leonardo Dantas Silva1
Resumo: Abstract:
O ideário liberal da República de Pernambu- The liberal ideas in the Republic of Pernambuco
co de 1817 tem sua origem nas ideias do Ilu- in 1817 have its roots in the ideas of the
minismo do século XVIII, particularmente nas Enlightenment of the 18th century, especially
obras dos filósofos franceses propagadas pelos those rooted in the works of the French
estudantes da Universidade de Coimbra e semi- philosophers that were propagated by students
naristas do Seminário de Olinda (1799). Uma of the Coimbra University and the seminarians
consulta aos Arquivos da Inquisição Portuguesa of the Olinda Seminary (1799). A consultation
revela alguns nomes que vieram a ter destaque of the archives of the Portuguese Inquisition
no movimento republicano de 1817 e deixaram reveals some names that played an important
suas marcas no ideário liberal posto em prática role during the republican movement of 1817
nos últimos duzentos anos neste Estado. and contributed to the liberal ideas put into
practice in the state of Pernambuco in the past
two hundred years.
Palavras-chave: Iluminismo no século XVIII; Keywords: Enlightenment of the 18th century;
Inquisição Portuguesa; República de Pernambu- Portuguese inquisition; The Republic of Per-
co de 1817; Duzentos anos de ideário nativista nambuco in 1817; Two hundred years of nativist
em Pernambuco. ideology in the state of Pernambuco.

O século XVIII, também conhecido como o Século do Iluminismo,


teve a sua segunda metade tomada por uma total revisão no âmbito social
das ideias, a partir da Declaração de Independência das treze colônias
inglesas, que vieram constituir-se nos Estados Unidos da América, em 4
de julho de 1776, com repercussões nos movimentos que antecederam a
Revolução Francesa de 1789.

Autores de várias nacionalidades propagavam os seus princípios de-


mocráticos, pondo em discussão o direito divino dos reis e despertando a
burguesia para os conceitos da Igualdade, Liberdade e Fraternidade, mais
tarde consagrados na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789).

Filósofos, como o suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que


em 1762 fez publicar Du Contrat Social (Do Contrato Social), formu-
lando uma nova teoria do Estado, com suporte no princípio da soberania
popular, e Charles Louis de Secondat Montesquieu (1689-1755), autor
1 – Do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Leonardo Dantas Silva

De L’ Esprit des Lois (O Espírito das Leis), eram lidos e discutidos não
somente na França, mas, também, em outros países.

As obras poéticas e filosóficas de Voltaire (1694-1778), pseudônimo


de François Marie Arouet, autor do Dicionário Filosófico, junto às de
Denis Diderot (1713-1784), editor da Enciclopédia Diderot e do italiano
Cesare Beccaria (1738-1794), autor do clássico Dos delitos e das penas
(1764), despertavam a juventude para um novo comportamento.

A esse movimento de ideias não ficaram alheios os estudantes da


Universidade de Coimbra que, levados pela atuação das Lojas Maçônicas
presentes em Portugal desde 1740, tornaram-se ávidos leitores daqueles
filósofos, cujas obras eram proibidas em Portugal.

O ambiente em que viviam os estudantes daquela universidade por-


tuguesa e as discussões motivadas pela influência das diversas correntes
de ideias se depreendem das páginas do Processo n.º 8094 da Inquisição
de Coimbra. Nele foram denunciados nove estudantes daquela cidade,
dentre os quais Antônio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro, que
vem a ser o primeiro dicionarista da Língua Portuguesa e que, em 1817,
seria nomeado membro do Conselho de Estado da “República de Per-
nambuco”. O Processo é fruto da denúncia do estudante de Geometria
Francisco Cândido Chaves, 23 anos, perante o Tribunal da Inquisição de
Coimbra em 17 de maio de 1779, onde afirma que na casa do também es-
tudante Antônio de Moraes Silva, “se discutiam pontos de religião e eram
citados autores como Helvécio, Voltaire e Rousseau, a quem chamavam
de profundíssimos filósofos” e dizia-se que alguns estudantes “eram ali-
ciadores da seita dos Pedreiros Livres” (maçons)2.

Ao depor em sua defesa, no processo movido contra si e mais oito


colegas, Antônio Moraes Silva, na audiência de 28 de maio, declarou es-

2  –  “Pedreiros livres; membros de uma sociedade secreta, espalhada por todo o globo, e
que se supõe ter principiado por uma associação de arquitetos de diversas nações, na idade
média, outros pretendem que teve origem na construção do templo de Salomão”; SILVA,
Antônio de Moraes. Diccionário da Língua Portugueza. Lisboa: Typ. de Antonio José da
Rocha, 1858. 6ª ed.

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1817: Ideário Liberal Pernambucano

tar cursando o quinto ano do curso jurídico, sendo filho de Antônio de


Moraes e Silva e de Rosa Maria de Carvalho, com idade de 23 anos,
morador da Rua do Loureiro, Freguesia do Salvador, naquela cidade. Nas
audiências de 12 e 18 de junho, 6 e 7 de julho, disse ainda ser aplicado
no estudo das línguas francesa, inglesa e italiana, sendo leitor de obras do
Conde de Mirabeau (Honoré Gabriel Riqueti, 1749-1791), de quem lera
o Sistema da Natureza e Instituições Políticas, bem como das obras de
Montesquieu, Cavaleiro de Milagan (sic) e Quadro da História Moderna
(sic), Beccaria, Tratado dos delitos e das penas, Voltaire, Obras poéticas,
e Rousseau.

Defendendo-se, em seu depoimento, diz “não entender, nem enten-


de, que toque ao Santo Ofício o punir por essa razão, pois que o conheci-
mento [de tal matéria] está reservado à Real Mesa Censória”. Disse ainda
ter emprestado a obra de Mirabeau a José Antônio de Mello, que tinha o
apelido de “Misantropo”, o qual afirmara ser “a dita obra perigosíssima
e capaz de enganar a todos que não soubessem Filosofia, mas que ele
não deixara de achar alguma preciosidade”. Concluindo o curso de Me-
dicina, em 1778, José Antônio se transfere para Pernambuco, no mês de
novembro daquele ano, levando consigo a obra de Mirabeau. (Processo
n.º 8094/ ANTT.)3

Mas a Inquisição do final do século XVIII não era a mesma de tem-


pos passados. Os seus segredos já vazavam para o mundo exterior...

Sabedor por um informante da sentença do inquisidor José Antônio


Ribeiro de Moura, prolatada em 20 de julho de 1779, condenando a si e a
todos os demais companheiros por crime de heresia e apostasia, Antônio
de Moraes Silva fugiu com destino a Lisboa, escondido numa carroça de
feno. Dias depois, contando novamente com o concurso de amigos, trans-
3  –  Antônio de Moraes Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1º de agosto de 1755, trans-
ferindo-se para Portugal, em 1774, onde matriculou-se no Curso de Leis da Universidade
de Coimbra, tendo concluído em 1779. Em 1789 publica o primeiro Dicionário da Língua
Portuguesa, cujos direitos autorais vendera aos livreiros Borel & Cia. por 2.000 cruzados,
recebendo ainda uma gratificação de 600.000 reis. Vem a falecer no Recife, em 11 de
abril de 1824, sendo o seu corpo sepultado na Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos
Militares, na Rua Nova.

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Leonardo Dantas Silva

fere-se para Londres onde permaneceu sob a proteção do embaixador de


Portugal na Grã-Bretanha, tenente-general Luís Pinto de Souza Coutinho,
futuro Conde de Balsemão, a quem ele dedica a primeira edição do seu
Diccionário da Língua Portugueza (1789).

No mesmo processo, o também estudante Vicente Júlio Fernandes,


filho de Júlio Fernandes, 25 anos de idade, natural da Ilha da Madeira, en-
tão condenado por heresia e apostasia, depondo em 30 de agosto de 1779,
afirma que seu colega Francisco de Mello Franco “levara de sua casa
dois ou mais tomos das Cartas do Marquês d’ Argent para ler, os quais
lhe emprestara Antônio de Moraes Silva, que lhe disse ter lido o Sistema
da Natureza”, obtido por empréstimo a José Antônio da Silva Mello a
quem tratava por “Misantropo”.

Depois de exercer atividades diplomáticas em Londres, Roma e Pa-


ris, Antônio de Moraes e Silva regressa a Portugal. Em Lisboa, nova-
mente comparece ao Tribunal do Santo Ofício, em 21 de janeiro de 1785,
Processo n.º 2015, apresentando atestado de ter procedido como bom ca-
tólico, assinado pelo padre Ricardo a Sto. Silvano, vice provincial dos Car-
melitas Descalços na Inglaterra, datado de 23 de novembro de 1784. Em
sua confissão diz que, quando estudante em Coimbra, discutia com vários
colegas acerca de matérias da religião, “reduzindo todos os dogmas aos
ditames da razão, desprezando as verdades reveladas pelo lume da fé”;
que lera livros anticatólicos, como Emile, de Rousseau. Absolvido, em 23
de dezembro de 1785, teve como pena de levi a de confessar-se nas quatro
festas do ano – Natal, Páscoa da Ressurreição, Pentecostes e Assunção de
Nossa Senhora – e o preceito de certas e determinadas orações.

Novamente indiciado pela Inquisição de Lisboa (Processo n.º


14.215), Antônio de Moraes Silva se vê compelido a retornar ao Brasil
e assim tentar nova vida. Já casado com Narcisa Pereira da Silva, filha
do tenente-coronel José Roberto Pereira da Silva, transfere-se para Per-
nambuco (Paranambuco), em 30 de abril de 1788, segundo denúncia de
Escolástica Maurizia4.
4  –  Inquisição de Lisboa Processo n.º 14. 215/1788 – ANTT (Lisboa).

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1817: Ideário Liberal Pernambucano

Estabelecido no Recife, morador da Rua Nova, a partir de 1796, se


transforma em proprietário do Engenho Novo da Muribeca, que recebera
de seu sogro, onde veio a escrever a segunda e mais importante edição do
seu Dicionário da Língua Portuguesa (1813) – “recompilada, emendada
e muito acrescentada” –, a partir da qual passa o seu nome a figurar como
autor.

O poder das ideias


Com a chegada do século XIX as ideias liberais, introduzidas em
Pernambuco pelos estudantes e bacharéis da Universidade de Coimbra,
alguns deles simpatizantes da maçonaria e outros pertencentes ao clero
regular e secular, começaram a despertar na população antigos sentimen-
tos nativistas.

A fundação do Seminário de Olinda, em 16 de fevereiro de 1800 pelo


bispo Dom José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, em muito con-
tribuiu para que as ideias liberais republicanas, divulgadas pelos teóricos
da Revolução Francesa (1789), fossem debatidas nos púlpitos e entre os
alunos do novo centro de estudos.

O antigo Colégio dos Jesuítas foi logo transformado em um Seminá-


rio cuja finalidade era “dar instruções à mocidade em todos os principais
ramos da literatura, própria não só de um eclesiástico, mas também de um
grande cidadão que se propõe a servir ao Estado”.

Quando da abertura dos portos às nações amigas pelo Príncipe Re-


gente dom João em 1808, o Recife, que possuía uma população de cerca
de 25 mil habitantes, veio a se transformar no porto de maior movimento
comercial da colônia, chegando a exportar no ano seguinte 12.801 caixas
de açúcar. Os altos preços obtidos por este produto, que em 1817 atingiu
a quantia de 17 francos a arroba, e também pelo algodão, “então com um
aumento de 500 por cento”, fez surgir na província grandes fortunas e
um maior intercâmbio com os Estados Unidos e a Europa.

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Leonardo Dantas Silva

As sociedades secretas continuavam sua marcha doutrinária, “a fim


de tornar conhecido o estado geral da Europa, os estremecimentos e des-
troços dos governos absolutos, sob os influxos das ideias democráticas”,
tornando-se verdadeiros celeiros de liberais.

Paralelamente os lentes e seminaristas do Seminário de Olinda se en-


carregavam de difundir os princípios dos filósofos franceses, particular-
mente Jean Jacques Rousseau e Montesquieu, junto ao preceitos da Cons-
tituição dos Estados Unidos da América e da Declaração Francesa dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, fermentando assim princípios
liberais que viriam mudar o cenário político dos anos que se seguiram.

Em 1801, fora sustada a misteriosa conspiração dos Suassunas – que


tinha por fim transformar Pernambuco em uma República sob a proteção
de Napoleão Bonaparte – com a prisão dos irmãos Francisco de Paula,
Luís e José Francisco Cavalcanti de Albuquerque.

Quando da deflagração da República de Pernambuco, em 6 de março


de 1817, os sentimentos nativistas, forjados por ocasião da Restauração
Pernambucana de 1654, continuavam bem presentes nos pronunciamen-
tos dos “patriotas” de então. Assim é que O Preciso etc., o primeiro jornal
a circular nesta província, redigido por José Luiz de Mendonça,5 narrando
os fatos acontecidos quando da eclosão do movimento, tem como impres-
sor “a Off. da República de Pernambuco, 2ª vez restaurado”, numa alusão
clara à Restauração Pernambucana de 27 de janeiro de 1654.

No meio da populaça ainda permanecia o espírito nativista difundido


pelos Restauradores de Pernambuco, em 1654, e posto em prática na de-
5  –  Ao depor no Processo n.º 7.058, Inquisição de Lisboa, em que figura como denun-
ciado o padre Bernardo Luiz Ferreira Portugal, diz ser “advogado dos Auditórios Eclesi-
ástico e Secular, tenente do Regimento de Cavalaria de Olinda, casado, natural de Porto
Calvo (Alagoas), morador na Vila de Santo Antônio do Recife, 31 anos de idade”. No
“Livro [1º] dos Termos das Entradas de Irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento
do Bairro de Santo Antônio 1791-1833”, o seu nome aparece nas fls. 36: “13 de abril de
1799, José Luiz de Mendonça e sua mulher D. Vitoriana Pereira da Silva”. Condenado
por sua participação na República de Pernambuco veio a ser arcabuzado, em 12 de junho
de 1817, juntamente com os patriotas Domingos José Martins e o padre Miguel Joaquim
de Almeida e Castro, no Campo da Pólvora da cidade do Salvador (Bahia).

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1817: Ideário Liberal Pernambucano

posição do Xumbergas (Jerônimo de Mendonça Furtado) em 1666, e na


chamada Guerra dos Mascates, movimento republicano de caráter sepa-
ratista encabeçado por Bernardo Vieira de Melo em 1710. Escrevendo em
20 de janeiro de 1818 o desembargador escrivão do Tribunal da Alçada no
Recife, João Osório de Castro Souza Falcão, enfatiza:
Que todos os filhos do país, ricos, e com postos de ordenanças e mi-
lícias, que não estavam doentes até o bloqueio, com exceção, de bem
poucos, que talvez não chegassem a dez nas duas comarcas do Recife
e Olinda, foram rebeldes mais ou menos entusiasmados, dos quais
muitos escaparam à formação da culpa, pelo que as testemunhas pela
maior parte vêm prevenidas como vêm ainda ocupando os mesmos
postos; testemunhas, porém apontadas além das que se pedira, aos
ouvidores e estes aos juízes têm declarado fatos e feito referimentos
que têm estendido a diligência.
[...]
A idéia que os rebeldes fizeram ter aos seus chamados patrícios ig-
norantes da história de que esta terra, sendo conquistada pelos seus
passados aos holandeses, ficou sendo propriedade sua e que a doaram
a El-Rei nosso senhor, debaixo de condições que ele não tem cumpri-
do, pela imposição de novos tributos e que os europeus que têm vindo
aqui estabelecer-se têm enriquecido à custa deles patrícios e se têm
feito senhores do país, e eles escravos; [...]6

Nos cenáculos das cinco Lojas Maçônicas, principalmente as loca-


lizadas nas residências de Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, e de
Domingos José Martins, se conspirava com banquetes “estritamente na-
cionalistas” contra o governo de Dom João, “a tirania real”, e a influência
dos portugueses, “marinheiros”, no comércio e nas forças armadas, ao
mesmo tempo em que o governador Caetano Pinto de Miranda Montene-
gro era tachado de fraco e irresoluto. Segundo testemunho do monsenhor
Francisco Muniz Tavares, autor do clássico História da Revolução de
Pernambuco em 1817, editada pela primeira vez em 1840:
Entre os amantes da república, figuravam alguns mações, ou pedreiros
livres. Esta sociedade secreta respeitada por ser misteriosa, e conde-

6 – Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: MEC, 1954, v. 103,


p. 127.

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Leonardo Dantas Silva

nada cegamente como tal, disse que em tempo assaz remoto fora ins-
tituída com o louvável fim de confraternizar os homens, e excitá-los à
prática das virtudes morais: concedendo aos seus membros plena ga-
rantia de pensar, oferecendo mútua comunicação de ideias, e socorros,
facilitando a correspondência por todos os lugares, e exigindo invio-
lável segredo do seu procedimento, a concessão do projeto, que ali é
julgado vantajoso, prossegue com perseverança o seu curso. Nenhuma
instituição apresentando melhores vantagens ao trabalho da regene-
ração nacional, aqueles mações principalmente em 1809 a organizar
cada um na cidade de seu domicílio várias lojas, e erigiu o Grande
oriente, ou Governo Supremo da Sociedade, na Bahia, residência do
maior número dos sócios que tenham sido iniciados, e elevados aos
altos graus na Europa7.

Nos púlpitos das igrejas, espalhadas por toda a província, as novas


ideias eram debatidas e exaltadas pelos padres recém-saídos do Semi-
nário de Olinda, alguns com estudos na Europa, criando um clima por
demais favorável à revolta, que a tradição popular veio denominar Revo-
lução de Padres8.

“O capitão-general, escreve Muniz Tavares, pouca ou nenhuma aten-


ção prestava aos intrigantes, e se algum procurava indispô-lo falando das
Lojas Maçônicas, respondia: se divertem, nada poderão fazer.”

Em março de 1817, o ouvidor da Comarca do Sertão, magistrado


José da Cruz Ferreira, comparece perante o governador Caetano Pinto
de Miranda Montenegro, a fim de narrar a denúncia, recebida da parte
do português Manuel de Carvalho Medeiros, sobre a nova conspiração
encabeçada pelo padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro, por
Domingos José Martins e Antônio Gonçalves da Cruz, além de alguns
oficiais dos regimentos de 1ª linha”.
7  –  TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco de 1817. Re-
cife: Imprensa Industrial, 1917. 3ª ed., p. 37. Oliveira Lima, comentando na nota XXIII,
desta mesma edição, afirma que “as ideias republicanas no Brasil são, pode dizer-se sem
risco de incorrer em inexatidão, o resultado direto de suas sociedades secretas...” (p. 274).
Ver também: PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Anais Pernambucanos, vol. VII,
p. 92.
8  –  Segundo se depreende dos Autos da Devassa de 1817, nada menos de 73 padres
aparecem como simpatizantes da causa republicana.

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1817: Ideário Liberal Pernambucano

Imediatamente foram convocados os oficiais generais Portugueses,


que se encontravam no Recife, e determinada a prisão dos civis e mili-
tares envolvidos, entre eles os capitães de Artilharia Domingos Teotônio
Jorge Martins Pessoa, José de Barros Lima e Pedro da Silva Pedroso,
tenente-secretário do mesmo Corpo, José Mariano de Albuquerque, e a
do ajudante de Infantaria, Manuel de Souza Teixeira.

A prisão dos implicados dar-se-ia no dia seguinte, 6 de março, tendo


sido destacado o marechal José Roberto Pereira da Silva para efetuar a
dos civis e o comandante de cada um dos Corpos a dos militares.

Na mesma ocasião o brigadeiro Manuel Joaquim Barbosa de Castro,


chefe da Artilharia, “português, orgulhoso, altivo, violento e severo”, no
dizer de Muniz Tavares, reuniu a tropa e resolveu desacatar os oficiais
suspeitos acusando-os de agitadores. Domingos Teotônio Jorge o repeliu,
tendo o brigadeiro, imediatamente, ordenado ao capitão Antônio José Vi-
toriano que efetuasse a sua prisão na Fortaleza das Cinco Pontas.

De maneira diferente procedeu o capitão José de Barros Lima, co-


nhecido pela alcunha de Leão Coroado, que ao ser intimado com voz de
prisão desembainhou a sua espada e desferiu-a contra o brigadeiro portu-
guês, dando assim início à revolta.

A República de 1817
Dos quartéis às ruas, foi apenas questão de minutos...

Os sinos tocavam rebate [som de sino tocado com golpes apressados


e redobrados, para soar o alarme]; o enviado do governador foi morto a
tiros; um jovem tenente de Artilharia, Antônio Henriques, dirigiu-se à
cadeia a fim de libertar Domingos José Martins e demais presos comuns
que ali se encontravam, enquanto o capitão Manuel D’Azevedo entrava
em negociações para soltura dos oficiais recolhidos à Fortaleza das Cinco
Pontas. O governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro recolheu-se
ao Forte do Brum, junto aos seus familiares e demais oficiais, enquanto
caíam os últimos redutos da resistência, com a rendição das tropas co-

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Leonardo Dantas Silva

mandadas pelo marechal José Roberto Pereira da Silva que guarneciam o


Campo do Erário (hoje Praça da República), às 16h do mesmo dia.

Destacamento comandado pelo tenente José Mariano foi enviado à


Olinda e no dia seguinte os 800 milicianos de Domingos Teotônio Jorge
fizeram o cerco da Fortaleza do Brum. Um ultimato, assinado por Do-
mingos Teotônio Jorge, padre João Ribeiro e Domingos José Martins, foi
levado pelo advogado José Luiz de Mendonça ao governador Caetano
Pinto de Miranda Montenegro exigindo, de logo, a rendição.

As condições foram imediatamente aceitas pelos oficiais portugue-


ses e pelo governador, ali recolhidos, e a rendição foi de pronto assinada,
enquanto os revoltosos providenciavam o transporte dos presos e familia-
res para o Rio de Janeiro.

Com gritos de regozijo pela vitória, os oficiais revoltosos retiraram


das barretinas e dos pavilhões as insígnias do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarve, sendo o gesto seguido pela soldadesca.

Uma bandeira toda branca veio a surgir, no meio da tropa, substi-


tuindo a real.

As tropas e o povo marcharam para o Campo do Erário, onde foram


escolhidos os eleitores para a nomeação do novo governo, sendo poste-
riormente lavrado o seguinte termo:
Nós abaixo assinados, presentes para votarmos na nomeação de um
governo provisório para cuidar na causa da pátria, declaramos à face
de Deus que temos votado e nomeado os cinco patriotas seguintes: da
parte do eclesiástico, o Patriota João Ribeiro Pessoa de Melo Monte-
negro; da parte militar, o patriota capitão Domingos Teotônio Jorge
Martins Pessoa; da parte da magistratura, o patriota José Luís de Men-
donça; da parte da agricultura, o patriota coronel Manuel Correia de
Araújo; e da parte do comércio, o patriota Domingos José Martins e ao
mesmo tempo todos firmamos esta nomeação, e juramos de obedecer
a este governo em todas as suas deliberações e ordens. Dado na Casa
do Erário, às doze horas do dia 7 de março de 1817. E eu Maximiano
Francisco Duarte escrevi. Assinados – Luis Francisco de Paula Ca-

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1817: Ideário Liberal Pernambucano

valcanti – José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima – Joaquim Ramos


de Almeida – Francisco de Brito Bezerra Cavalcanti de Albuquerque
– Joaquim José Vaz Salgado – Antônio Joaquim Ferreira de S. Paio
– Francisco de Paula Cavalcanti – Felipe Néri Ferreira – Joaquim da
Anunciação e Siqueira – Tomás Ferreira Vila Nova – José Maria de
Vasconcelos Bourbon – Francisco de Paula Cavalcanti Júnior – To-
más José Alves de Siqueira – João de Albuquerque Maranhão – João
Marinho Falcão.

A essa junta agregou-se um Conselho, formado pelos notáveis da


nova república, que incluía o desembargador Antônio Carlos de Andrade
e Silva9, o dicionarista Antônio Moraes Silva e o Deão da Sé, Dr. Bernar-
do Luís Ferreira Portugal.

Imediatamente concedeu-se aumento de soldo aos militares e abo-


liram-se alguns impostos. Proclamações e pastorais impressas, além de
cerimônias públicas, procuraram evitar os choques dos nativos com os
europeus e conquistar a confiança da população de Pernambuco, Paraíba,
Rio Grande do Norte e Comarca das Alagoas, capitanias que tinham es-
pontaneamente aderido à República Pernambucana.

Estava, pois, consolidado o movimento que Manuel de Oliveira Lima


veio denominar “a única revolução brasileira digna deste nome, instrutiva
pelas correntes de opinião, que no seu seio se desenharam, atraente pelas
peripécias, simpática pelos caracteres e tocante pelo desenlace”.

De logo foram enviados emissários ao Ceará (subdiácono José Mar-


tiniano de Alencar e Miguel Joaquim César) e à Bahia (padre José Inácio
Ribeiro de Abreu e Lima, Padre Roma), enquanto o governo provisório

9  – Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (1773-1845). Irmão de José


Bonifácio Andrada e Silva, na época ouvidor e corregedor em Olinda (PE), tendo sido
preso após participar da República de Pernambuco de 1817. Levado a ferros para a Bahia,
permanece encarcerado até ser eleito deputado das Cortes de Lisboa em 1821. Em Portu-
gal revela-se notável orador parlamentar, defendendo a autonomia brasileira e recusando-
-se a assinar a Constituição que recolocava o país em situação colonial. Em seguida à
Independência do Brasil torna-se líder da Assembleia Constituinte de 1823, que vem a ser
dissolvida por dom Pedro I no ano seguinte.

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Leonardo Dantas Silva

ganha popularidade com apoio do clero e de nomes de grande expressão


na vida da província10.

O nativismo pernambucano
Em todos os movimentos emancipacionistas, originários de Per-
nambuco, o que se vislumbra é o orgulho nativista dos Restauradores de
1654. Uma mesma ideologia, a de que os antepassados pernambucanos
conquistaram esta terra aos holandeses e que a doaram a El-Rei de Portu-
gal debaixo de certas condições, se repete ao longo de todas as revoluções
e vem explicar o ideal republicano da gente de Pernambuco. Esse com-
portamento é uma constante em quase todos os movimentos revolucioná-
rios e é, como bem observou Evaldo Cabral de Mello, “uma espécie de
doutrina das relações entre a Capitania e a Coroa”.

Na interpretação de Evaldo Cabral de Mello, passou a ser doutrina


entre os pernambucanos, ao longo dos séculos que se sucederam, o en-
tendimento de que
a gente da terra deveria à Coroa não a vassalagem ‘natural’ a que es-
tariam obrigados os habitantes do Reino e os demais povoadores da
América Portuguesa, mas uma vassalagem de cunho contratual, de
vez que restaurada a capitania, haviam-na espontaneamente restituído
à suserania portuguesa11.

Em 1824, era frei Joaquim do Amor Divino Caneca quem relem-


brava os feitos dos restauradores de Pernambuco ao conclamar as novas

10  –  “No dia 8 confirmou o governo no mesmo caráter de secretário, que exercia, a José
Mairinck da Silva Ferrão, e reconhecendo que o expediente seria muito, nomeou, para
melhor ordem dos trabalhos, um outro secretário, que foi o padre Miguel Joaquim de Al-
meida e Castro; e criou um Conselho de Estado, para auxiliar o governo em suas delibera-
ções, para o qual foram nomeados os seguintes patriotas: desembargador Antônio Carlos
Ribeiro de Andrade Machado e Silva, doutor Antônio de Morais Silva, doutor José Pereira
Caldas, deão doutor Bernardo Luís Ferreira Portugal e o comerciante Gervásio Pires Fer-
reira” (Pereira da Costa ob. cit., vol. VII, p. 382) “O Conselho Consultivo organizado pela
junta governativa constituía um verdadeiro senado, um senado, bem entendido, como o
ideado por Bolívar nas suas várias constituições, congregando o escol da inteligência, da
ilustração e do prestígio”[...], Oliveira Lima notas LIV (54) e seguintes (ob. cit.).
11  –  MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. Rio: Nova Fronteira, 1986. p. 124; 2. ed.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

142 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):131-148, set./dez. 2017.


1817: Ideário Liberal Pernambucano

gerações por meio do seu jornal, O Thyphis Pernambucano. Mais tarde,


já quando o Brasil se apresentava no consórcio das nações como país
independente, Gervásio Pires Ferreira (1765-1836) chamava a atenção
dos seus contemporâneos salientando que os interesses da Província de
Pernambuco não coincidiam nem com os de Lisboa, nem com os do Rio
de Janeiro, chegando o editorialista do Diario de Pernambuco, de 3 de
janeiro de 1865, a comentar: [...] “ele aceitava a idéia de independência
nacional, mas quanto a nossa união com o Rio de Janeiro ele opunha sisu-
das ponderações, demonstrando que nos cumpria estabelecer condições”.

Não podendo exterminar o nativismo dos pernambucanos, sem for-


ças para domar a sua insubserviência, o Poder Central vem, ao longo
dos anos, empobrecendo a heroica Província: com a cobrança de tribu-
tos, como aquele que em 1817 era destinado à iluminação das ruas do
Rio de Janeiro. Posteriormente, com a Revolução Republicana de 1817,
Pernambuco teve o seu território mutilado com a perda da Comarca das
Alagoas, e, pela sua participação na Confederação do Equador de 1824,
lhe foram suprimidos os 130 mil quilômetros quadrados da Comarca do
São Francisco, até hoje anexados “provisoriamente” ao território da anti-
ga Província da Bahia.

Não somente mutilaram o seu território, mas também suas rendas,


no firme propósito de empobrecer toda uma região, conforme demonstra
os editoriais do Diario de Pernambuco de 11 de dezembro de 1845 –
“Apreciação de Pernambuco em sua relação com o Império”; 3 de março
de 1846 – “Renda de Pernambuco apuradas e como se vão”; 29 de agosto
de 1859 – “Editorial”; 3 de janeiro de 1865 – “Pernambuco e Rio de Ja-
neiro”; 3 de agosto de 1884 – “Interessante. Um curioso remeteu-nos as
seguintes linhas”; 10 de julho de 1878 – “O Sul e o Norte do Império”
(continua em 19 de agosto e 18 de outubro de 1878), só para citar esses12.

12  –  MELLO, José Antônio Gonsalves de. (Org.). O Diario de Pernambuco e a História
Social do Nordeste. Recife: Diario de Pernambuco, 1975. 2 v.; MELLO, Evaldo Cabral
de. O Norte Agrário e o Império 1871-1889. Rio: Topbooks, 1999. 299 p.

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Leonardo Dantas Silva

Tais expedientes e retaliações vieram contribuir para a aversão dos


de Pernambuco a qualquer poder centralizador que viesse de encontro à
sua autonomia.

A centralização de um governo no Rio de Janeiro, sem ouvir os in-


teresses das demais províncias, insuflava os brios dos pernambucanos e
provocava temores, anos mais tarde, em Joaquim Nabuco, o nosso mais
brilhante pensador da segunda metade do século XIX e início do século
XX. Confidenciava ele, em artigo publicado no jornal O Paiz (Rio de
Janeiro), edição de 16 de dezembro de 1888, transcrito por Fernando da
Cruz Gouvêa, que o espírito do pernambucano era, ao mesmo tempo,
republicano e separatista:13
As notícias que nos chegam de Pernambuco, a respeito do movimento
republicano, são notícias más para quem toma interesse pela causa
liberal em nosso país. Eu conheço bem o caráter dos meus coprovin-
cianos para afirmar que, sem uma esperança razoável de conseguir
uma medida decisiva de autonomia, a Província de Pernambuco estará
republicana dentro de pouco tempo. A sua tradição é republicana: ela
fez-se por si, defendeu-se sozinha contra a Holanda, quando Portugal
estava em poder dos espanhóis: conquistou a sua independência por
suas próprias mãos, e nada deve ao Império senão a centralização,
que já a teria morto, como as suas irmãs do Norte, se não fosse a sua
vitalidade extraordinária, alguma coisa no seu clima e na sua luz que
impede a decadência talvez a consciência da sua identidade histórica.
Em política, a principal ciência é ver as coisas como elas são. Eu
concordo que o espírito pernambucano é republicano, mas é também
separatista. Se a República fosse proclamada amanhã, seria quase im-
possível continuar o Norte a ser governado do Sul.

E, mais adiante, adverte o mesmo Joaquim Nabuco:


Eu quero fazer duas ou três observações a esses nossos antigos ca-
maradas. A primeira é esta: se estás pronto, se esta é a vossa inten-
ção, a ir até a separação, até a destruição disto que se chama Brasil, a
constituir um Pernambuco independente, com uma política interna e
externa exclusivamente sua, se esse é o vosso sonho, podeis continuar

13  –  GOUVÊA, Fernando da Cruz. Joaquim Nabuco entre a Monarquia e a República.


Recife: Editora Massangana, 1990.

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1817: Ideário Liberal Pernambucano

a vossa agitação. Mas se querem manter a integridade da pátria brasi-


leira, não vos iludais pensando que podeis servir a dois fins, para atear
e para apagar o incêndio; para acordar e para adormecer as tradições
pernambucanas; para criar e para destruir a força revolucionária. Para
fazerdes Pernambuco republicano um nome de suas tradições, para
colheres a seara da liberdade pernambucana em torno dos cadafalsos
dos seus mártires, não vos iluda precisais reconstituir esse passado tal
qual foi ressuscitar esses sonhos patrióticos exatamente como eram,
e então ser-vos-á impossível soldar de novo ao pescoço do Leão do
Norte a corrente que o houverdes quebrado do governo sulista. Ser-
-vos-á impossível restaurar historicamente, como quereis, o Pernam-
buco dos holandeses, o de 1817, de 1821 e de 1824, para o fazerdes
governar do Rio de Janeiro. Não tenhais dúvidas a esse respeito. Essas
tradições são maiores que toda a vossa eloquência, e quando depois
de destruída a Monarquia as quisésseis deixar de lado como armas
inúteis ou perigosas, veríeis logo outros correrem a apossar-se delas,
porque esse grandioso arsenal no nosso passado está aberto a todos os
patriotas, e não poderíeis fechar.

E concluindo, afirma com esperança no futuro de sua Província na-


tal:
Eu acredito conhecer bem o entusiasmo pernambucano, mas o povo
pernambucano, como diz Curtius do povo ateniense, só foi grande
porque achou sempre nos momentos do seu maior arrebatamento al-
gum homem que falasse à sua razão calma e lhe mostrasse o seu ver-
dadeiro caminho.

Em nossos dias, ainda permanece o mesmo ranço de tempos passa-


dos. Dirigido por um sistema centralizador, que tem como sede o Centro-
-Sul do país, o Nordeste Brasileiro, não somente Pernambuco, paga caro
por ser parte integrante desta Federação. Todo o sistema de produção de
bens foi instalado nos estados do Centro-Sul, consequentemente todo o
sistema fiscal vem carreando recursos para essa região, em prejuízo dos
estados do Norte-Nordeste, o que em muito contribuiu para o empobreci-
mento regional e para o desnível nacional que caracteriza o nosso quadro
socioeconômico.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):131-148, set./dez. 2017. 145


Leonardo Dantas Silva

Denuncia o economista Clóvis Cavalcanti14 que, apesar de o terri-


tório do Nordeste Brasileiro reter 29% da população nacional, 14,7% da
população da América do Sul, com uma das menores rendas per capita
do planeta e de todas as mazelas de semelhante quadro social, a região é
responsável apenas por 12% do montante da tal propalada dívida externa
brasileira: “Na hora de contrair o endividamento externo, a região nor-
destina foi sempre uma parceira ausente, conhecida como é a hegemonia
centro-sulina no comando da política econômica brasileira.”

O sentimento republicano, em Pernambuco, tem se mantido uma


constante ao longo de sua história.

Um mesmo ideário nativista, o de que esta terra fora conquistada


por seus antepassados e doada a El-Rei de Portugal debaixo de certas
condições e a de que fora o povo pernambucano o único responsável pela
fixação de suas próprias fronteiras, tem estado presente em todos os mo-
vimentos emancipacionistas.

O imaginário popular se encarregou de criar um Panteão Pernam-


bucano, inicialmente com uma tetrarquia de heróis, os chamados Pais da
Pátria – João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, Henrique Dias
e Felipe Camarão –, depois acrescido com os nomes de todos os márti-
res e ideólogos dos movimentos revolucionários de 1710, 1817, 1824,
1848, além de outros que integram a legião dos chamados Grandes de
Pernambuco. Todos eles, como vimos, vinculados por uma mesma raiz
ideológica e dedicados a manter acesa a chama da autonomia da gente
pernambucana15.

Logo após a proclamação da República, quando foram mantidas as


mesmas punições e retaliações feitas no Império contra a província de
Pernambuco, a partir dos pronunciamentos dos seus principais líderes, a
insubserviência do povo pernambucano continuou a ser uma constante.
Como se depreende do manifesto de José Mariano Carneiro da Cunha
14 – Revista Ciência e Trópico. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, junho de 1988.
15  –  MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio – o imaginário da Restauração Pernam-
bucana. op. cit.

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1817: Ideário Liberal Pernambucano

hipotecando seu apoio à Revolta da Armada, publicado na edição de


A Província de 5 de novembro de 1893, em que ressalta: “É preciso que
a Nação inteira se levante fazendo uma última intimação ao marechal
Floriano Peixoto para que deixe o poder, pelo bem da paz e salvação da
República”. O manifesto custou, em 14 de novembro do mesmo ano, a
prisão do seu autor, em 14 de novembro. Depois de recolhido ao Forte do
Brum, foi transferido para a Fortaleza da Laje, no Rio de Janeiro, onde
permaneceu até 19 de setembro de 1894.

Em 18 de maio de 1922, foi a vez do então senador Manuel Antô-


nio Pereira Borba denunciar uma tentativa de intervenção federal no seu
Estado em enfático e exaltado telegrama dirigido ao presidente Epitácio
Pessoa, onde concluía de forma inflamada: Pernambuco não se deixará
humilhar.

Surgia assim a campanha autonomista que veio mobilizar todo o


Estado contra as manobras de intervenção postas em prática, naqueles
tumultuados dias, pelo Governo Federal, que, mais uma vez, se levantava
contra a autonomia de Pernambuco.

O imaginário nativista chega até aos dias atuais, com os pernambu-


canos praticando, no seu simpático caminhar, de que fala Oliveira Lima,
a “insubserviência de quem já foi mais”, da imagem do poeta João Cabral
de Melo Neto, que assim vislumbrou o seu Pernambuco, “nos mapas que
o mutilaram”.
Só vai na horizontal
nos mapas em que o mutilaram;
em tudo é vertical:
dos sobrados aos bueiros da Mata.

Até o mandacaru
que dá a vitalícia banana
a todos que do Sul
olham-no do alto da mandância.

Aquela horizontal
é enganosa, está só nos mapas:

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Leonardo Dantas Silva

não diz de sua história


e muito menos de sua casta.

Texto apresentado em maio/2017. Aprovado para publicação em


agosto/2017.

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A Vila do Recife, em 1817

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A VILA DO RECIFE, EM 1817


VILA DO RECIFE IN 1817
José Luiz Motta Menezes1
Resumo: Abstract:
Na Vila do Recife, em 1817, no dia 6 de março, On March 6, 1817, a revolt took place at the
uma revolta no Quartel do Regimento de Arti- artillery garrison in Vila do Recife and victo-
lharia, vitoriosa contra o governo absolutista ry was won against the absolutist government
instalado no Brasil com a corte portuguesa, ins- established in Brazil by the Portuguese court,
talou um governo republicano. A comunicação leading to a republican government. The paper
descreve aquela vila, suas ruas, praças e edifica- describes the village, its streets, squares and
ções onde ocorreram tais lutas onde patriotas se buildings in which the libertarian struggles led
envolveram naquelas lutas libertárias. Por meio by patriots were fought. We retrace the urban
de mapas, imagens e descrições reconstitui-se o spaces of the village through maps, images and
espaço urbano do lugar. descriptions.
Palavras-chave: Pernambuco, História, Recife, Keywords: Pernambuco, History, Recife, Liber-
lutas libertárias. tarian struggles.

Em 1817 uma revolta em um Quartel do Regimento de Artilharia,


situado na Rua do Rosário e junto ao Pátio do Hospital de Nossa Senhora
do Paraíso, acordou assustados os moradores das proximidades. Um de-
les assim expressou a surpresa:
No Recife. Domingo, 9 de março de 1817. A 6 deste mês teve lugar
uma revolução bem inesperada.
O estandarte da independência foi levantado; as tropas colocaram-se
em volta dele.
O governador, assim traído, viu-se forçado a refugiar-se em um forte,
ali capitular e acaba de embarcar para o Rio de Janeiro2.

Desse quartel, o movimento revolucionário estendeu-se para o res-


tante da Vila do Recife de Pernambuco. Os revoltados tomaram o Erário
Real, onde instalaram um governo provisório e assumiram, com portarias
e outros atos, as funções antes exercidas pelo governador Caetano Pinto
de Miranda Montenegro.

1  –  Arquiteto e sócio do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano.


2  –  TOLLENARE, L.F. Notas Dominicais. Coleção Pernambucana – Volume XVI. Go-
verno do Estado de Pernambuco. Secretaria de Educação e Cultura. Departamento de
Cultura Recife, 1978. p. 136.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017. 149


José Luiz Motta Menezes

Os episódios dessa revolução republicana, em seus principais mo-


mentos, foram descritos, contemporaneamente, por um negociante fran-
cês, Louis – François Tollenare – Gramez, e pelo padre Francisco Muniz
Tavares. Em um tempo mais próximo dos citados, o historiador Vanhar-
gen não deu maior atenção a tal revolução:
Ao sensato leitor brasileiro que tenha refletida no estado próspero do
Brasil, que se colige de quanto fica referido nas precedentes seções,
deixamos que sinta e decida em consciência se lhe parece que haveria
motivos para que, em alguma extensão maior do Brasil, se intentasse
uma revolução contra o benéfico Sr. D. João, e contra a integridade
do seu predileto reino de novo criado, – então verdadeiramente centro
e cabeça de um grande império, maior que os dois romanos, que es-
tendia seu poder, na atual Oceania, ás ilhas de Solor e Timor; na Ásia,
aos estados de índia portuguesa e a feitoria de Macau; em África, aos
terrenos de Moçambique e dependências, ao reino de Angola, e ás
ilhas de S. Thomé e de Cabo Verde; e na Europa, ao reino de Portugal,
com as ilhas adjacentes de Madeira e Açores, – se é que estas e sobre
tudo aquela se devem considerar como da Europa.
Entretanto uma revolução, proclamando uma republica absolutamen-
te independente da sujeição à corte do Rio de Janeiro, rebentou em
Pernambuco em março de 1817. E um assunto para o nosso animo tão
pouco simpático que se nos fora permitido passar sobre ele um voo, o
deixaríamos fora do quadro que nos propuseram os traçar3.

O nosso propósito, diante da ausência editada, de textos que nos per-


mita saber as dimensões daquela vila do Recife, em 1817, é tentar re-
compor tal aspecto do Recife, e mais ainda mostra suas imagens, as com-
parando com as descrições de alguns visitantes que na vila estavam ou
estiveram nos anos próximos à referida revolta. A revolução republicana
de 1817 caiu no esquecimento da história oficial e, mais ainda, no próprio
lugar onde aconteceram aqueles episódios. Ao absolutismo, reinante até a
república de 1889, não cabia ressaltar momentos de oposição a esse tipo
de governo. Após a república, o assunto foi secundarizado. Restou na me-

3  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História Geral do Brasil, em dois volumes –


1854-1857. Em edições recentes foram retiradas certas frases da 1ª edição. (Frases críti-
cas, em relação a 1817, do autor em face do seu relacionamento com a corte.)

150 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017.


A Vila do Recife, em 1817

mória do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano,


mas não nas escolas de formação de Pernambuco.

L-F. Tollenare, em seu manuscrito, atualmente arquivado na Biblio-


teca de Santa Genevieve, em Paris, França, desenha, em esboço, para sua
memória um mapa da vila ao tempo em que nela permaneceu como ne-
gociante. Sendo o documento mais próximo aos acontecimentos de 1817,
acreditamos deva ser comentado. Depois, fez também em esboços, inspi-
rados no modelo de cidade de perfil, adotado pelo artista Franz Post, duas
vistas panorâmicas da vila.

A confiabilidade em termos do que ele percebeu da vila é muito boa,


inclusive ele junta uma escala gráfica, o que parece ter diante dele mapa
anterior do lugar. Anota aquelas informações necessárias a sua memória
do lugar. Não nos parece que Tollenare tivesse o interesse de editar os
seus manuscritos. Seus esboços deveriam servir talvez apenas para avivar
sua memória dos lugares, necessária para o entendimento do que tinha
escrito. Situação distinta de outros visitantes da vila em tempos diferentes
desse.

O mapa esboçado pelo francês pode ser comparado com um anterior,


datado de 1808, talvez conhecido do negociante e de autoria do engenhei-
ro José Fernandes Portugal. (Nas Notas Dominicais ele nos informa que
obteve as informações sobre o Recife em uma bela carta manuscrita, que
teria copiado em Lisboa.) Tal carta poderia ser inclusive a que estamos
usando e do engenheiro José Fernandes Portugal. O mapa de Portugal nos
serve na comparação, uma vez que data de um momento anterior à vinda
do francês e naturalmente em Lisboa poderia existir dela uma cópia.

O valor do desenho de Tollenare está também centrado no caráter


particular de suas observações, as quais ampliam o entendimento de suas
anotações dominicais. Quanto às vistas panorâmicas, estas definem bem
o perfil de uma vila, onde dominavam as edificações religiosas em altura,
por sobre as destinadas a uso enquanto moradias ou repartições oficiais.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017. 151


José Luiz Motta Menezes

Vila do Recife de Pernambuco. Esboço de autoria de L.F. Tollenare. Manuscrito da B. S. Genevieve. Paris,
França.

Vistas do Santo Antônio e do Recife

O mapa esboçado contém anotações de direção da corrente fluvial,


as pontes, inclusive a de madeira da Boa Vista com a parte central mais
larga, qual a do Recife. Também lembrou o autor a divisão do Recife em

152 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017.


A Vila do Recife, em 1817

três partes (quartiers) distintas: a povoação portuária, a Ilha de Santo An-


tônio e a parte da Boa Vista, que estava habitada, não existindo o aterro
que daria lugar à Rua da Aurora atual. No entanto, o francês indicou a
existência de moradias nesta parte, provavelmente dentro da área de man-
gue. O interessante é que o prédio do Erário Real tinha uma dependência,
na parte detrás, anotada pelo francês. Ele informou ser este o palácio do
governo, necessariamente o do governo provisório. Anotou o bairro Fora
de Portas e o caminho pelo istmo para Olinda. Conforme o mapa de 1808,
que comentaremos adiante, o pátio do Palácio Velho, antigo Colégio da
Companhia de Jesus, encontrava-se ainda fechado para a margem do Rio
Capibaribe.

Podemos acreditar que, conforme dissemos, um mapa de 1808 pode


ter sido o referencial para o esboço de Tollenare. Ele tem por autoria o
engenheiro José Fernandes Portugal, sendo um excelente documento car-
tográfico elaborado no período.

Plano do Porto e Praça de Pernambuco datado de 1808. Arquivo Geral do Exército Rio de Janeiro.

O mapa foi danificado, provavelmente por um cigarro ou charuto,


sendo restaurado no Museu da Cidade do Recife em sua imagem. O tre-
cho danificado foi completado em conjectura. O mapa nos mostra uma
vila bem menor do que a atual cidade do Recife.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017. 153


José Luiz Motta Menezes

O Recife, nascendo povoação, estava interligado com Olinda, da


qual era porto. Com a conquista do lugar pela gente da Companhia das
Índias Ocidentais, a vila estendeu-se para a Ilha de Antônio Vaz, atuais
bairros de Santo Antônio e São José. Com a capitulação dessa empresa
e a retomada da povoação, esta não perdeu sua situação de porto, assu-
mindo também não oficialmente a de sede. Tal situação ajudou no cres-
cimento urbano da povoação, que terminou se tornando vila em 1709.
O crescimento urbano realizou-se por aterros sucessivos dos mangues e
essa diferença de dimensão pode ser percebida com a superposição, em
mesma escala de dois mapas. O primeiro mapa, o referencial, é o de José
Fernandes Portugal e o mapa base escolhido foi a Unibase da cidade do
Recife, da segunda metade do século passado.

Superposição em mesma escala do mapa de José Fernandes Portugal e a Unibase do Recife. JLMM.

Diante da superposição podemos observar o seguinte: a área habi-


tada dos bairros atuais de Santo Antônio e São José era envolvida por
mangues e ilhotas secas. Os aterros sobre tal área ampliaram os lugares
para novas construções, mas reduziram a calha dos rios. Na península
do Recife a ampliação foi considerável, conforme podemos perceber nos
mapas. Na Boa Vista, as terras que hoje formam a Rua da Aurora e as

154 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017.


A Vila do Recife, em 1817

demais até a Rua do Hospício eram mangues e foram aterradas depois de


1840. Somente existia uma ligação entre a Ilha e a povoação portuária.
Para a Boa Vista a ponte antiga, construída pelo governador João Maurí-
cio de Nassau, deslocou-se do palácio de verão do citado governador para
uma rua nova, esta edificada desde o Terreiro dos Coqueiros, hoje Pra-
ça da Independência. A Revolução de 1817 ocorreu incialmente na Ilha
de Antônio Vaz e depois se estendeu para toda a parte. Os cenários dos
acontecimentos são bem conhecidos, isto pelas descrições das duas teste-
munhas contemporâneas, o francês Tollenare e o padre Francisco Muniz
Tavares. Diante de tais descrições, podemos reconstituir todas as cenas e
seus atores, utilizando uma linguagem de teatro.

A Vila do Recife, a voo de pássaro em reconstituição desde as imagens conhecidas dos lugares. JLMM

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017. 155


José Luiz Motta Menezes

O palco dos acontecimentos. Cenários numerados com as edificações e lugares da Revolução. JLMM.

A reconstituição do que chamamos palco da Revolução Republicana


de 1817, enquanto lugar de todos os movimentos dos revolucionários, foi
feita utilizando a cartografia e as imagens dos lugares onde aconteceram
os episódios. As descrições de Tollenare e Muniz Tavares nos permitiram
a reconstituição dos deslocamentos dos soldados e dos demais revolu-
cionários na Ilha de Antônio Vaz e nos demais locais da Vila do Recife.
Para uma visão panorâmica da Vila, a imagem gráfica mais interessante,
quanto à precisão das informações, é uma aquarela de Schmidt, desenha-
da entre 1820/1830, desde um prédio do bairro portuário e cuja altura,
maior do que a do Convento dos Oratorianos, permitiu ao autor maior
visibilidade para o panorama.

Gravura de Frederico Salathé sob desenho de João Steinmann. A fonte aquarelada é de autoria de R. Schmidt. A
pintura original, de R. Schmidt, encontra-se na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

156 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017.


A Vila do Recife, em 1817

Pátio do Palácio Velho, este o antigo e extinto Colégio da Companhia de Jesus do Recife. Demolido no
século XX, quando da Revolução Republicana, o pátio era fechado diante da margem do Rio Capibaribe.

Ponte do Recife – Arco de Santo Antônio – Casa de Câmara e Cadeia e Casa da Oração dos IIIº Franciscanos.
Gravura de Salathé. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.

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José Luiz Motta Menezes

Convento dos franciscanos e Campo do Erário Régio. Este estava na oportunidade alagado. O Erário Régio estava
oculto por um prédio do bairro do Recife. Não existia nenhum cais construído.

O francês Tollenare, para memória dos lugares, onde escreveu suas


Notas Dominicais, realizou um mapa geral do Brasil, onde destaca Per-
nambuco com suas dimensões originais em 1817, e mais ainda um mapa
da Vila do Recife e dois panoramas do lugar. Com relação aos dois pano-
ramas, estes devem ser considerados como um único, tendo relação bem
clara com o grande panorama intitulado Cidade Maurícia (Mauritiopolis)
então do artista holandês Frans Post. O panorama de Post pode ter sido
para o francês o apoio do esboço, onde esse poderia realizar algumas
atualizações. Uma delas nos parece ser relacionada com as igrejas que se
edificaram depois de 1654. Parece-nos ver, no esboço, os dois campaná-
rios da igreja de São Pedro dos clérigos e outro, talvez do convento de
Nossa Senhora do Carmo.

Junção das duas imagens e confronto com a do artista Frans Post. JLMM

Frans Post. Gravura Mauritiopolis. In BARLEUS, Gaspar, História dos feitos... Amsterdam 1647.

158 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017.


A Vila do Recife, em 1817

Tollenare acrescentou maior número de barcos e jangadas, embora


tenha aproveitado os navios da gravura holandesa. Ela anima mais os seus
esboços com outros personagens.

Tollenare não tinha referencial para ajudá-lo com data anterior a


1817, senão a vista panorâmica do padre Caetano, copiada por Fonseca.
Provavelmente a esse panorama de 1756 não estaria disponível em Lis-
boa e muito menos no Recife. Deste modo, acreditamos ter ele utilizado,
conforme indicamos, o desenho gravado, panorâmico, de Frans Post.

Do Recife o francês nos oferece observação de grande interesse so-


bre o cotidiano da cidade. Descreve a gente nas ruas e praças e ainda
refere-se ao estado dessa vila, em termos de conservação das vias e dos
edifícios.

Existia somente uma ponte unindo Santo Antônio e a península do


Recife. A outra ponte disponível atravessava a gente para a Boa Vista. Ele
a descreve de maneira poética:
A ponte que conduz de Santo Antônio à Boa Vista serve de passeio
durante as belas noites deste clima; é guarnecida de bancos; o pano-
rama que dali se descortina é encantador; ao norte vê-se a cidade e os
pitorescos outeiros de Olinda; ao sul o rio Capibaribe, o aterro dos
Afogados e também o Oceano. Canoas indígena escavadas num só
tronco de árvore, conduzida por negros nus e munidos de compridas
varas, cruzam-se em todos os sentidos sobre as águas mansas do rio;
no horizonte as ligeiras jangadas, com suas velas triangulares, são o
joguete das ondas agitadas4.

Canoas e jangadas que ele inclui no seu panorama as distinguie mui-


to bem. Tipos de embarcações que também impressionaram, provavel-
mente, o pintor holandês referido.

Santo Antônio, reorganizado desde um plano de origem holandesa,


tem como uma de suas características, em 1817, o encadeamento de pra-
ças e pátios, que foram surgindo em função das edificações para uso da
religião ou de caráter civil. O centro de ponto de partida de tal organi-
4 – Tollenare, op. cit., p. 23.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017. 159


José Luiz Motta Menezes

zação foi a Praça da Polé, antes a dos Coqueiros do momento de ocupa-


ção holandês. Desta praça, delineada à maneira das praças de armas do
urbanismo do Renascimento, saem as ruas que acessam diversos outros
vazios da vila. A Rua do Rosário une a Igreja dos Pretos e Pardos ao pátio
do Hospital de Nossa Senhora do Paraíso. Da mesma praça segue uma
rua que seguia até a Porta de Santo Antônio e daí para dois pátios, o do
Colégio da Companhia de Jesus e da Igreja dos Pardos dedicada à Nossa
Senhora do Livramento. Da mesma praça seguia uma rua até a ponte do
Recife. Daquele pátio do Paraíso atingia-se o Campo do Erário Régio,
isto por meio de uma estreita passagem, depois formada em rua, a das
Florentinas. Do Campo do Erário uma longa rua permite o acesso ao pátio
do Colégio referido. Um encadeamento de lugares, onde aconteceram os
momentos iniciais da Revolução Republicana, facilitando a movimenta-
ção dos revoltados.

1. Pátio do Paraíso. 2. –3. Campo e lugar do Erário Régio. 4. Casa da Câmara e cadeia. 5. Palácio Velho ou Colé-
gio da Companhia de Jesus. 6. Ponte do Recife. 7. Forte das Cinco Pontas.

A movimentação dos militares e dos civis, que aderiram no primei-


ro momento da revolta e nos seguintes, desde o considerado motim no
Quartel do Regimento de Artilharia, pode ser acompanhada devidamente.

160 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017.


A Vila do Recife, em 1817

Do Pátio do Paraíso e desde o quartel seguiram os militares para os


seguintes lugares: na direção do Campo do Erário passando pelo estreito
caminho antes indicado; na direção do Forte das Cinco Pontas, provavel-
mente segundo as ruas indicadas no mapa; para libertar Domingos José
Martins, preso na cadeia da Câmara; na defesa da ponte com um pequeno
canhão para impedir sua destruição pelos portugueses do Recife. Depois
de tomados Santo Antônio, sem grandes dificuldades, eles assumem o
bairro peninsular, seguindo para o Forte do Brum, com a finalidade de
render a gente do governo, o que conseguiram.

Vitoriosa a revolta, organizou-se o governo provisório. Logo teve


início uma contrarrevolta, com o bloqueio do porto do Recife pela armada
vinda de Salvador, na Bahia.

No dia “16 de abril apareceram no porto um brigue e duas corvetas,


vindas da Bahia para formar o bloqueio do Recife”5. A revolução perdia
para o tempo das comunicações. O Conde dos Arcos soube da revolta
mais depressa graças a rapidez do barco que levou a notícia e logo prepa-
rou uma pequena frota para tal bloqueio. Este foi decisivo para a derrota
do movimento. As armas que foram adquiridas nos Estados Unidos da
América do Norte chegaram tarde ao Recife. Tempo e ação não foram
coordenados devidamente, não porque não desejassem os revolucioná-
rios, mas por razões não possíveis de controlar diante daquelas dificulda-
des antes apontadas.

“Os membros do governo, que a princípio se tinham reunido no Erá-


rio e depois no antigo palácio do governador, acabam de se retirar para
a Soledade, arrabalde de Boa Vista e quase que no campo.” Conforme o
próprio Tollenare, em comentário: “Essa retirada teve um efeito muito
desanimador”6.

Perdida a revolução, outros episódios vão ter lugar: o da repressão


cruel da corte. A devassa é instalada e 150 prisioneiros são enviados para

5 – Tollenare, op. cit., p. 162.


6 – Tollenare, op. cit., p. 163.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017. 161


José Luiz Motta Menezes

a Bahia e ouros são executados sumariamente, ou com julgamento sem


nenhuma garantia de inocência.

Resta-nos, em conclusão, dentro do tema escolhido, informar sobre


os locais das execuções. Estas foram de dois tipos: por meio de enforca-
mento ou com armas de fogo, fuzis ou arcabuzes. Os lugares podem ser
identificados na vila, o Campo do Erário, que servia para treinamentos
militares, ou em Salvador, no Campo da Pólvora.

Os executados podem ser relacionados:


22 de março de 1817 – padre Roma (José Inácio de Abreu e Lima),
preso em Salvador, na Bahia, fuzilado no Campo da Pólvora.
19 de maio de 1817 – padre João Ribeiro suicida-se no Engenho Pau-
lista. O marechal Joaquim de Melo, no dia 22 de maio, ordena que
se desenterre o corpo do padre João Ribeiro e cortem-lhe a cabeça,
que ficará espetada em um mastro junto ao pelourinho no Recife por
dois anos. Suas mãos foram enviadas para Goiana. Posteriormente seu
crânio foi colocado sob a guarda do Instituto Arqueológico Pernambu-
cano, que depois providenciou seu sepultamento, este no século XX.
12 de junho de 1817 – padre Miguelinho (Miguel Joaquim de Almeida
Castro), fuzilado no largo do Campo da Pólvora, em Salvador.
12 de Junho de 1817 – Domingos José Martins e José Luiz de Men-
donça, presos com gargalheiras e correntes, ao modo de punição de
escravos fugitivos, condenados e executados por crime de lesa-majes-
tade. Foram fuzilados no Campo a Pólvora em Salvador .
5 de julho de 1817 – Antônio Henriques Rabello, enforcado e esquar-
tejado em Pernambuco. Enforcamento no Campo do Erário Régio.
10 de julho de 1817 – Domingos Teotônio Jorge, José de Barros Lima,
José Peregrino, de apenas 18 anos, e o padre Pedro de Souza Tenório
foram enforcados no Campo do Erário, no Recife.
21 de agosto de 1817 – Francisco José da Silva, José Peregrino Xavier
de Carvalho e Amaro Gomes da Silva Coutinho, enforcados e esquar-
tejados no Campo do Erário no Recife.

162 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017.


A Vila do Recife, em 1817

6 de setembro de 1817 – Inácio Leopoldo de Albuquerque Maranhão e


Antônio Pereira de Albuquerque, enforcados e esquartejados no Cam-
po do Erário, no Recife.
10 de fevereiro de 1821 – Mais de 150 presos, implicados na Revolu-
ção Republicana de Pernambuco, foram libertados na Bahia.

A maioria dos sentenciados, após a morte, teve suas mãos e cabeças


expostas em praça pública e deixadas insepultas. Os corpos mutilados
eram arrastados por cavalos nas ruas e depois sepultados em valas co-
muns.

Campo da Pólvora em Nazaré, Salvador Bahia. Imagem do Google earth.

Com a derrota da Revolução, o Rio Grande do Norte e a Paraíba (an-


tes anexados ao território pernambucano) foram desmembrados de Per-
nambuco, tornando-se províncias autônomas. Bem como Alagoas, que se
tornou província independente como prêmio por sua fidelidade à Coroa.

A corte de D. João VI, no Rio de Janeiro, procurou diminuir a im-


portância do episódio de 1817. Procuraram esquecer tal revolta em tão
distante lugar. Os historiadores oficiais se conduziram do mesmo modo.
Em Pernambuco, o IAHGP sempre reverenciou o episódio.

Sem nenhum apoio de estrategistas militares, o feito de 1817 demar-


cou, com seus mártires e sua ideologia libertária, o destino do país livre

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017. 163


José Luiz Motta Menezes

que hoje vivemos. Morreram os revolucionários, não suas ideias, fiéis


exemplos de democracia, liberdade e respeito pelos direitos de toda a
gente. Morreu a monarquia, mas muito tempo depois.

Texto apresentado em abril/2017. Aprovado para publicação em


agosto/2017.

164 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):149-164, set./dez. 2017.


Breves considerações sobre as ideias de Simón Bolívar
na Revolução Pernambucana de 1817

165

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE AS IDEIAS DE SIMÓN


BOLÍVAR NA REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817
BRIEF CONSIDERATIONS ON THE IDEAS OF SIMÓN BOLÍVAR
IN THE PERNAMBUCO REVOLUTION OF 1817
Cláudio Aguiar1
Resumo: Abstract:
Além das causas conhecidas que influenciaram In addition to the known causes that influenced
os revolucionários pernambucanos de 1817 – the revolutionaries of Pernambuco in 1817,
Independência dos Estados Unidos da América namely the independence of the United States
e Revolução Francesa –, creio ser factível fazer- of America and the French Revolution, we
-se menção a mais uma importante influência, believe it is worth considering another major
talvez tão coerente como foram a francesa e a influence which is perhaps as coherent as the
norte-americana. Refiro-me ao processo revo- French and the American one. By that, we
lucionário levado a cabo na América do Sul mean the revolutionary process carried out in
por Simón Bolívar, o Libertador das colônias South America by Simon Bolívar, the Liberator
espanholas. Essa influência se torna notada não of Spanish America. Such influence was felt not
só por causa dos objetivos e da simultaneidade only because of the objectives and the temporal
temporal dos fatos ocorridos no primeiro quar- simultaneity of the events that took place in
tel do século XIX, mas, também, pelos vínculos the first quarter of the 19th century, but also
ideológicos e filosóficos dos revolucionários, because of the ideological and philosophical ties
bem como até de participação direta de per- that bound the revolutionaries together and the
nambucanos naqueles acontecimentos andinos, direct participation of the people of Pernambuco
a exemplo de Abreu e Lima, conhecido como in those events in the Andes. Among them was
“General de Bolívar”. Abreu e Lima, known as “Bolívar´s General”.
Palavras-chave: Revolução Pernambucana de Keywords: Pernambuco Revolution of 1817;
1817; Revolução Republicana de 1817; Inde- Republican revolution of 1817; independence;
pendência; Simón Bolívar; Iluminismo; Maço- influences; Simon Bolívar; enlightenment;
naria. masonry.

El historiador que trata de trabajar de acuerdo con la teoría del sentido


común y reproducir exactamente lo que encuentra en sus autoridades
se asemeja al pintor de paisages que trata de trabajar apegado a la
teoría que ordena al artista copiar la naturaleza. […] Y así como la
historia no depende de la autoridad, tampoco depende de la memoria.
El historiador puede redescubrir lo que se ha olvidado por completo,
en el sentido de que ninguna tradición ininterrumpida, que arranque
de los testigos presenciales, le entrega afirmación alguna al respecto.
(R. G. Collingwood. Idea de la historia. México: Fondo de Cultura
Económica, 2004, pp. 318 e 320).

1  –  Doutor em Direito Internacional pela Universidade de Salamanca (Espanha), ba-


charel pela Faculdade de Direito do Recife (Pernambuco) e sócio honorário do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):165-183, set./dez. 2017. 165


Cláudio Aguiar

Ânimos de colonização
As semelhanças de ideias e convicções filosóficas acentuaram-se en-
tre bolivarianos e pernambucanos em virtude da proximidade geográfica
do continente sul-americano. No entanto, deve ser levada em conta tam-
bém a simultaneidade temporal de implantação dos laços coloniais segui-
dos por espanhóis e portugueses, ambos herdeiros de tradições ibéricas
com fortes lastros irmanados nas suas Histórias.

Com o passar dos séculos, esses povos terminaram por mostrar dife-
renças profundas na forma de administrar suas colônias e, sobretudo, em
relação aos foros e às concessões consolidados em seus regramentos ju-
rídicos, sempre excessivamente rígidos em relação aos colonizados, quer
nativos, quer criollos, quer africanos trazidos à América como escravos,
quer indígenas, quer mulatos ou mestiços oriundos das inevitáveis mes-
clas raciais.

Sobre a psicologia do povo andino – e nesse juízo estavam incluídos


os indígenas e todos os outros povos sul-americanos –, Bolívar declarou
certa vez ser a América do Sul uma espécie de Babel singularizada; ou,
ainda, um mundo aparte, cercado por dilatados mares, novo em quase
todas as artes e ciências, ainda que velho nos usos de uma sociedade local
em seus hábitos civis. O Libertador afirmava ser a América um mundo
arcaico e ao mesmo tempo moderno. Os nativos pareciam diferentes por
serem responsáveis pela criação de um extraordinário Mundo Novo com
singulares características políticas, poéticas, filosóficas, físicas, étnicas,
sociológicas, etc. Essas características faziam dos indígenas americanos,
de norte a sul, um povo diferenciado em todos os sentidos do europeu
convencional e colonizador2.

Parece relevante salientar que o ânimo de colonização dos portu-


gueses quase sempre foi exercido de maneira definitiva, ou seja, eles vi-
nham com a intenção de ficar para sempre. A dos espanhóis, ao contrário,
vinculava-se diretamente à conquista de ouro e prata, ficando em segundo
2 – SILVIO JULIO. Bolívar. Rio de Janeiro: Revista Continente Editora Ltda.,
1981. pp. 51 e s.

166 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):165-183, set./dez. 2017.


Breves considerações sobre as ideias de Simón Bolívar
na Revolução Pernambucana de 1817

plano o ânimo de permanência. Essas situações concorreram para conso-


lidar nos dois blocos colonizadores diferentes formas de patriotismo, de
amor à pátria ou, generalizando, de sentimento de nacionalismo. No caso
brasileiro, Joaquim Nabuco afirmou que “o sentimento nacional brotou
no Brasil desde os primeiros tempos, devido ao espírito herdado do por-
tuguês, como era natural, um povo incapaz de desviar da fidelidade ao seu
Rei.”3 Era essa fidelidade, como sabemos, que os pernambucanos de 1817
desejavam eliminar.

Já em relação aos seguidores de Bolívar o objetivo era romper com


a monarquia espanhola e instaurar a independência e a república nos ter-
ritórios das colônias americanas colonizadas, então, afetados pela falta de
um sentimento de nacionalidade semelhante ao vigorante no Brasil.

José Ortega y Gasset, a propósito da falta de sentimento de nacio-


nalidade do espanhol, escreveu no seu ensaio España invertebrada (Bos-
quejo de algunos pensamientos históricos), que “la vida social española
ofrece en nuestros días un extremado ejemplo de este atroz particularis-
mo. Hay en España, más bien que una nación, una serie de compartimen-
tos estancos”4.

E, com razão, acrescentou:


Se dice que los políticos no se preocupan del resto del país. Esto, que
es verdad, es, sin embargo, injusto, porque parece atribuir exclusiva-
mente a los políticos pareja despreocupación. La verdad es que si para
los políticos no existe el resto del país, para el resto del pais existen
mucho menos los políticos5.

O sentimento de nacionalidade em relação à Espanha, no sentido


mais profundo de amor à pátria espanhola como unidade, praticamente
não existe. Cada espanhol ama a sua comunidade e não ao país. Caste-

3 – NABUCO, Joaquim. Camões e Assuntos americanos. Seis Conferências em Univer-


sidades Americanas. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira S. A., 1940, p. 100.
4 – ORTEGA Y GASSET, José. España invertebrada. Madrid: Espasa-Calpe, S.A.,
1980, p. 70.
5 – Ibidem.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):165-183, set./dez. 2017. 167


Cláudio Aguiar

la, País Basco, Catalunha, Galícia, Andaluzia, etc., são comunidades que
atualmente lutam, – algumas delas com armas nas mãos – pela indepen-
dência.

O mosaico espanhol apresenta-se tão diversificado e arraigado na


conformação do território e no fervor social das comunidades que se tem
a impressão de ser o termo Espanha uma ficção territorial. Talvez tenha
sido por isso que os colonizadores romanos, quando submeteram aquela
península, preferiam falar de Espanhas, no plural.

Algo semelhante ocorreu com as colônias espanholas da América.


Nelas preponderou, sempre, o caudilhismo e não o ideal de nação, de
prevalência do sentimento de unidade nacional. Aliás, foi justamente essa
dificuldade que, no final de contas, derrotou Bolívar. Cada líder, após o
final da colonização espanhola, preferiu ficar com seu quinhão territorial
a ter de renunciar aos princípios de uma carta constitucional que aprovei-
tava a todos no âmbito de uma grande Confederação.

Já no Brasil, o processo de colonização foi diferente. Cristalizou-se o


sentimento de nacionalidade. Virou uma espécie de tradição. Os que aqui
chegavam já sabiam que reinava um clima de permissividade no convívio
das pessoas, onde a mescla racial desde os primeiros momentos de ocu-
pação colonial ocorria sem reproches.

Por isso, o historiador Manoel Bomfim afirmou que


[...] no Brasil, a formação nacional não foi um simples desenvolvi-
mento social, político, civil e moral, mas um profundo e prolongado
processo físico-psicológico. De fato, no descobrir do passado, para
compreensão do presente, vemos a sociedade colonial a realizar o
contínuo caldeamento de raças, numa explícita combinação de ener-
gias e de tradições6.

Muito cedo no Brasil essa tradição forjou uma clara resistência na-
tivista provada por ocasião das invasões de franceses e holandeses. Per-

6 – BOMFIM, Manoel. O Brasil na América – Caracterização da Formação Bra-


sileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 327.

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Breves considerações sobre as ideias de Simón Bolívar
na Revolução Pernambucana de 1817

nambuco, desde 1645, teve, sozinho, de reunir suas forças e lutar contra o
invasor, encontrando em João Fernandes Vieira, André Vidal de Negrei-
ros, Henrique Dias e Felipe Camarão as lideranças que levaram a cabo
uma insurreição de cunho nacionalista. Há documentos que provam ter
Vieira usado pela primeira vez a palavra Pátria para simbolizar aquela fir-
me posição de defesa do território brasileiro. Depois, em 1710, na Guerra
dos Mascates, Bernardo Vieira de Melo defendeu a instauração de uma
república no estilo veneziano e no decorrer do século XIX ocorreram inú-
meros acontecimentos revolucionários, inclusive, o de que hoje tratamos
aqui: a revolução republicana de 1817, em Pernambuco.
A tradição histórica da formação brasileira, portanto, confirma uma
situação diferente em relação à colonização espanhola.
A propósito adverte Bomfim:
[...] o que já era diferença essencial na Ibéria, teremos mostrado que
tais diferenças, por divergentes, se acentuaram e se acentuam de mais
em mais. No primeiro momento, elas se manifestaram bem nitida-
mente na forma de relações com os naturais, no modo de exploração
da terra, nas reações contra o estrangeiro e no tom da vida política7.

Ideias e pronunciamentos
Em 15 de dezembro de 1812, Simón Bolívar lançou o Manifesto de
Cartagena, o primeiro e mais importante pronunciamento que justificava
os pontos fundamentais de sua luta revolucionária. Entre outros argumen-
tos, dizia:
Eu sou, granadinos, um filho da infeliz Caracas, escapado prodigio-
samente do meio de suas ruínas físicas e políticas, que, sempre fiel ao
sistema liberal e justo que proclamou minha pátria, vem seguir aqui os
estandartes da independência, que tão gloriosamente tremulam nestes
Estados. Permiti-me que, animado de um zelo patriótico, me atreva a
dirigir-me a vós, para indicar-vos ligeiramente as causas que conduzi-
ram a Venezuela à destruição, esperando que as terríveis e exemplares
lições que deu aquela extinta república persuadam a América a me-
lhorar os procedimentos, de modo que corrijam os vícios de unidade,
solidez e energia que se notam em seus governos”8.
7 – Ibidem, p. 339.
8  –  Cf. SILVIO JULIO, op. cit., p. 248.

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Cláudio Aguiar

E, de maneira mais incisiva, afirmava:


Eu sou de opinião que, enquanto não centralizarmos nossos governos
americanos, os inimigos obterão as mais completas vantagens; sere-
mos indefectivelmente envoltos nos horrores das dissensões civis, e
conquistados vilipendiosamente por esse punhado de bandidos que
infestam nossos territórios9.

Em 1813, Bolívar dava continuidade a seu propósito revolucioná-


rio, ampliando os limites do movimento libertador. Dizia diante de seus
soldados: “A América inteira espera a sua liberdade e salvação de vós,
destemidos soldados de Cartagena e da União.”10

No ano seguinte, 1814, ele subiu o tom do diapasão revolucionário.


Disse: “Para nós, a pátria é a América; nossos inimigos, os espanhóis;
nossa bandeira, a independência e a liberdade.”11

No alvorecer de 1815, ele já colecionava vitórias espetaculares nos


campos de batalha e afirmava: “Este Exército passará como uma mão
benfazeja, rompendo as cadeias que oprimem com seu peso e opróbrio
todos os americanos que há no norte e sul da América meridional.”12

Vingança nas tépidas areias


Essa bandeira de independência e de liberdade levantada por Bolívar
levava em si fortes influências na formação de seu afã revolucionário.
Vale trazer aqui um vínculo importante que aponta para a memória dos
incas do Peru como chama capaz de levantar os nativos andinos e, mais
ainda, de reverberar, com força, em todo o mundo, nas comunidades in-
dígenas e na consciência dos cidadãos que, ainda hoje, precisam da liber-
dade como elemento fundamental para sobreviver com dignidade. Refiro-
-me à luta de Tupac Amaru iniciada em 1780, inclusive com repercussão
aqui no Brasil.

9 – Op. cit., p. 252.


10 – Op. cit., p. 288.
11 – Ibidem.
12 – Ibidem.

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Breves considerações sobre as ideias de Simón Bolívar
na Revolução Pernambucana de 1817

O movimento peruano de Tupac Amaru, talvez tenha sido o principal


grito que desencadearia, poucas décadas mais tarde, o ideal emancipacio-
nista da América em Simón Bolívar e seus seguidores, indígenas ou não.

Atuando como um autêntico caudilho, Tupac Amaru lutava, antes de


mais nada, pela fundação de uma pátria, a qual, como ele dizia, só poderia
ser conquistada pela via da Independência. Esses ideais indicam que ele
não era apenas um “índio bronco, ignorante”. Descendente de importante
família inca, rica e poderosa, ocupou o cargo de cacique de Tungazuca,
província de Tinta.

Vencido o movimento a 15 de maio de 1781, foi lavrada uma senten-


ça duríssima contra os insurgentes. Tupac Amaru e seus mais achegados
guerreiros foram condenados à execução sumaríssima. Os espanhóis os
amarraram nas traseiras de cavalos e, violentamente, os arrastaram até o
patíbulo. Antes de serem enforcados, suas línguas foram cortadas com
armas brancas.

Foi enorme a repercussão do levantamento de Tupac Amaru, por-


que a brutalidade da vingança imposta pelos espanhóis não teve medida.
A notícia chegou a todos os rincões do Brasil, inclusive, a Pernambuco.
Por isso, Basílio da Gama (1741-1795) escreveu um poema para registrar
os feitos e a memória de Tupac Amaru entre nós:
Dos curvos arcos, açoitando os ares,
Voa seta veloz do índio adusto;
O horror, a confusão, o espanto, o susto
Passam da terra e vão gelar os mares.

Ferindo a vista os trêmulos cocares,


Animoso esquadrão de chefe augusto
Rompe as cadeias do espanhol injusto
E torna a vindicar os pátrios lares.

Inca valente, generoso indiano!


Ao real sangue que te alenta as veias

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Une a memória do paterno dano.

Honra as cinzas de dor e injúrias cheias,


Que ainda fumando a morte, o roubo, o engano,
Clamam vingança as tépidas areias13.

Ideias iluministas
Vale acrescentar que as lições e os ensinamentos recebidos por pa-
dres e demais intelectuais formados pelo centro educacional fundado pelo
bispo Dom Azeredo Coutinho no alvorecer do século XIX – o Seminário
de Olinda – também concorreram para fomentar a propagação de ideias
libertárias e de Independência. Em Olinda, além dessas notícias das ações
revolucionárias bolivarianas, chegavam, então, novidades bibliográficas
acessíveis aos seminaristas.

Marcado por uma linha iluminista, o Seminário obedecia ao critério


adotado em Portugal pelo Colégio Real dos Nobres, fundado em 1761, o
primeiro curso reformador criado ali. A propósito, escreveu Mons. Seve-
rino Leite Nogueira, que,
exatamente sob esse modelo, e respeitadas as diferenças e proporções
de quem tinha a consciência de que criava um curso elementar e não
universitário, organizou Azeredo Coutinho o Curso de Filosofia do
Seminário de Olinda14.

A orientação seguida pelos Estatutos do famoso Seminário contem-


plava a antiga formação teológica adotada pela Igreja Católica, porém,
não descurava dos avanços intelectuais já conhecidos em Portugal, a
exemplo das ideias iluministas, entendidas no sentido mais amplo, ou
seja, aquela possibilidade de manter o pensamento em constante progres-
so e sempre com o objetivo de afastar dos homens o medo e convertê-los
em amos. A função principal do iluminismo consistia, portanto, em liber-

13  –  Cf. SILVIO JULIO. Op. cit., pp. 76 e s.


14  –  NOGUEIRA, Severino Leite. O Seminário de Olinda e seu Fundador, o Bispo Aze-
redo Coutinho. Recife: Governo de Pernambuco / FUNDARPE, 1985, p. 235.

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Breves considerações sobre as ideias de Simón Bolívar
na Revolução Pernambucana de 1817

tar o mundo da magia, do efeito do mero acaso providencial, dissolver os


mitos e ativar a imaginação mediante o recurso da ciência15.

Ainda que a direção do Seminário impusesse regras rígidas sobre o


currículo a ser seguido, os alunos ampliavam suas possibilidades de co-
nhecimento e de pesquisas, como se deu com Frei Caneca, que lia Mon-
tesquieu e Rousseau, além de outros filósofos e juristas famosos. Por isso,
a Revolução Pernambucana de 1817, além do caráter republicano, ficou
também conhecida como a “Revolução dos Padres”16.

A ordem secreta e a revolução


Entre outras causas atreladas ao processo de eclosão da Revolução
de 1817, destacam-se a influência de várias ideias propagadas pela maio-
ria dos filiados às lojas maçônicas (sociedades secretas) já instaladas em
Pernambuco desde 1796.

Às características do processo de colonização de Portugal e Espanha


devem ser adicionados os laços de fraternidade maçônica estabelecidos
entre quase todas as figuras revolucionárias da geração de Simón Bolívar
radicadas na América Espanhola. Aliás, para destacar esse vínculo entre
os dois movimentos – andino e pernambucano – bastaria dizer que Do-
mingos José Martins, um dos principais líderes revolucionários de 1817,
por ocasião de sua estadia em Londres, chegou a travar amizade pes-
soal com Francisco de Miranda, o pioneiro revolucionário venezuelano,
responsável pelos primeiros passos do movimento de emancipação das
colônias espanholas, que culminou com a formação da Confederação da
Grã-Colômbia, então, sob o comando de Simón Bolívar.

15  –  HORKHEIMER, Max e ADORNO, T. W. Dialéctica del iluminismo. Buenos Aires:


Editorial Sur S.A., 1970, p. 15.
16  –  A propósito da Revolução Pernambucana de 1817, cf. TAVARES, Muniz. História
da Revolução de Pernambuco de 1817. Recife: Governo do Estado. Casa Civil de Per-
nambuco, 1969; CAHÚ, Major Sylvio de Mello. A Revolução Nativista Pernambucana
de 1817. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert, Limitada / Biblioteca do Exército, 1951;
ANDRADE, Manuel Correia de. A Revolução Pernambucana de 1817. São Paulo: Edi-
tora Ática, 1995; PEREIRA DA COSTA, F. A. Anais Pernambucanos (vol. VII). Recife:
Arquivo Público Estadual de Pernambuco, 1958.

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Cláudio Aguiar

Os vínculos dos revolucionários pernambucanos de 1817 com a


Maçonaria vinham desde 1796, quando, em Itambé, vila pernambuca-
na fronteiriça à divisa com o estado da Paraíba, foi fundado o primeiro
capítulo da Ordem sob o teto de um Areópago, fundado por Manuel Ar-
ruda da Câmara, ex-frade carmelita, médico formado pela Faculdade de
Montpellier e botânico. Há o consenso de que os integrantes dessa loja,
direta ou indiretamente, participaram do movimento revolucionário de
1817. Essa loja foi o embrião que deu origem não apenas à criação de
outras lojas em Pernambuco, mas no resto do Brasil.

Oliveira Lima destaca o vínculo de Domingos José Martins com ma-


çons da Europa:
Iniciado na maçonaria, o grande arsenal contemporâneo das armas
revolucionárias, dera Martins largas ao seu temperamento trêfego,
e entretivera em Londres ativas relações com vários democratas ar-
dentes. Era entre outros seu comensal o general Miranda, soldado da
campanha da independência dos Estados Unidos e do exército de Du-
mouriez, proscrito da França pelo Diretório, espírito constantemente
embriagado da ideia de emancipar a América Espanhola, e que não
descoroçoando com uma infrutífera tentativa realizada em 1805, re-
presentou em 1810 o primeiro papel na sublevação da Colômbia, su-
focada pelo exército realista, e finalmente levada a cabo por Simón
Bolívar, ao tempo em que o infeliz Miranda expirava num cárcere
espanhol17.

Apesar dessas constatações históricas, a maioria dos estudos ou en-


saios sobre a Revolução de 1817 não contempla, com clareza e profun-
didade, essas influências e ideias que se consolidaram em Pernambuco,
efetivamente, a partir das ações levadas a cabo por Simón Bolívar e seus
seguidores contra o colonialismo espanhol, em verdade, muitos deles
também filiados à Ordem Maçônica.

17  –  OLIVEIRA LIMA, M. de. Pernambuco – Seu desenvolvimento histórico. Recife:


Fundação Joaquim Nabuco / Editora Massangana, 1997, pp. 254 e s.

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Breves considerações sobre as ideias de Simón Bolívar
na Revolução Pernambucana de 1817

Um veu sobre a História


O movimento revolucionário pernambucano foi (e ainda é em algu-
mas esferas) mal-interpretado ou distorcido, quando não ignorado, visto
como se fora, apenas, movimento “separatista”. Esse mesmo desvio de
interpretação historiográfica acontece, lamentavelmente, com o movi-
mento emancipacionista de 1824, conhecido como a Confederação do
Equador. A distância de 7 anos de tempo histórico não significa nada
diante da complexa dimensão da atividade humana. Ainda mais quando
se constata que os motivos da eclosão do movimento de 1817 continua-
ram vigorantes até 1824, ano da Confederação do Equador, tendo, aliás,
como atores a mesma geração.

Sobre a mencionada distorção dos fatos, é preciso dizer que no âmbi-


to da historiografia oficial brasileira, um de nossos mais importantes his-
toriadores, autor da famosa História Geral do Brasil, Francisco Augusto
Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, dominado, então, por excessiva
parcialidade, ao escrever quarenta anos após a ocorrência da Revolução
Pernambucana de 1817, disse o seguinte: “É um assunto para o nosso
ânimo tão pouco simpático que, se nos fora permitido passar sobre ele um
véu, o deixaríamos fora do quadro que nos propusemos traçar.”18

Talvez por causa disso, o preclaro e extraordinário Joaquim Nabuco,


ao se debruçar sobre a questão do foco histórico da América do Sul, nota-
ra essa situação e a criticara com veemência. Escreveu:
A América do Sul não teve ainda um historiador; não existe esboço
crítico completo da sua existência política; ninguém extraiu ainda do
vasto material avulso enterrado em suas capitais longínquas um ar-
cabouço de história. Não há nada escrito do ponto de vista universal.
O que há, ou é feito, superficialmente, por estrangeiros que não conhe-
cem as coisas desses países, e escrevem por informações que não ve-
rificam, alinhavando de preferência dados parciais de falsa estatística;
ou então é obra de partidários dos diferentes governos, encarregados

18  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. São Paulo: Edições
Melhoramentos / MEC, Tomo V, 1975, p. 149; Cf. também AGUIAR, Cláudio. Franklin
Távora e o seu tempo. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2a. edição, 2005,
pp. 379 e s.

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de glorificá-los, e que, ingenuamente, para não dizer imbecilmente,


desempenha a sua grande empreitada de imortalização com a seguran-
ça infalível de mumificadores egípcios. Essa lacuna sensível da litera-
tura histórica moderna há de ser, porém, preenchida, mas cedo talvez
do que se pensa, quando surgir a Questão da América Latina […]19.

Essa lacuna, apontada por Nabuco, bem maior no seu tempo do que
nos dias atuais, ainda continua notada (e notável) entre a maioria dos
historiadores brasileiros. No que diz respeito ao reconhecimento do papel
vivido pelos pernambucanos na chamada Revolução de 1817 e também
na Confederação do Equador de 1824, na qual aparece com destaque a
figura do mártir e herói Frei Caneca20. Ora, se hoje nossa geração pouco
tem se interessado pelo tema, que dizer da geração de pernambucanos
que viveu no mesmo tempo em que o grande Libertador Simón Bolívar
atuava e revolucionava os povos dos Andes?

Os pernambucanos e a República
A liberdade, a igualdade e a fraternidade, sem dúvida, foram prin-
cípios que concorreram para chamar à luta figuras como Domingos José
Martins, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, Domingos Teotônio Jor-
ge, Antonio Carlos de Andrada e Silva (irmão de José Bonifácio, o Pa-
triarca da Independência), Frei Miguelinho, José Inácio Ribeiro de Abreu
e Lima, alcunhado de “Padre Roma” (pai de Abreu e Lima, conhecido
como “General de Bolívar”21), Padre João Ribeiro Pessoa de Melo Mon-
tenegro, e tantos outros. A independência que eles almejavam não era
apenas uma declaração formal lida por algum representante da Coroa bra-
sileira. Ao contrário. Desejavam suprimir radicalmente a Monarquia e,
em seu lugar, implantar a República, como, efetivamente, conseguiram,
porém, somente durante 74 dias. O preâmbulo da chamada Lei Orgânica
da Revolução de 1817 proclamava a condição republicana: “O Gover-
19 – NABUCO, Joaquim. Balmaceda. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Rio de
Janeiro : Civilização Brasileira. 1940, p. VII, Prefácio.
20  –  CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. Obras Políticas e Literárias. Recife:
Edição fac-símile da Assembleia Legislativa de Pernambuco, 1972.
21 – CHACON, Vamireh. Abreu e Lima – General de Bolívar. Recife: Companhia Edi-
tora de Pernambuco / CEPE, 2007.) Cf. também AGUIAR, 2005, op. cit., p. 205.

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Breves considerações sobre as ideias de Simón Bolívar
na Revolução Pernambucana de 1817

no Provisório da República de Pernambuco, investido da Soberania pelo


Povo, em quem ela só reside, etc. […]”22.

Ainda que a Independência do Brasil de 1822 tenha ocorrido de ma-


neira tão suave, pacífica, a verdade é que os defensores daquela causa
emancipacionista apenas mantiveram suas posições políticas23. Os segui-
dores de D. Pedro I, defensores da Independência, não pugnavam por
mudanças sociais profundas. Ao contrário, depois de 7 de setembro tudo
continuou como antes. Para tanto, não faltou, inclusive, a ajuda da pode-
rosa Coroa inglesa.

Já nos demais países latino-americanos, o processo revolucionário


liderado por Bolívar trouxe profundas mudanças sociais. Ali, de fato, a
independência chegava pela via da revolução, circunstância que alterava,
substancialmente, a vida dos povos latino-americanos. Basta citar a abo-
lição da escravatura propugnada pelos seguidores de Bolívar, que, desde
os primeiros movimentos revolucionários, atrelaram-na aos fundamentos
da causa independentista.

Aliás, vale acrescentar que esse propósito já acompanhava os lan-


ces e os pronunciamentos de outros líderes americanos antes das inicia-
tivas revolucionárias de Francisco de Miranda, de Simón Bolívar e de
San Martin e outros. Podemos lembrar alguns exemplos precursores
de movimentos libertários de escravos americanos, como foram os casos
do lendário escravo Toussaint Louverture, do Haiti; de Miguel Hidalgo y
Costilla e José María Morelos y Pavón, do México; José Tomás Boves,
da Venezuela.

Um peso e duas medidas


Sobre o papel da Inglaterra no processo de independência das colô-
nias espanholas na América e das províncias brasileiras pelos revolucio-

22 – MUNIZ TAVARES. História da Revolução Pernambucana de 1817. Recife: Go-


verno do Estado. Casa Civil de Pernambuco, 1969, p. 377.
23 – POMER, León. As independências na America Latina. São Paulo: Brasiliense,
1981, p. 14.

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nários pernambucanos de 1817, importa fazer um breve comentário para


dizer que a Independência do Brasil, na prática, foi arranjada pela diplo-
macia das Coroas inglesa e portuguesa. Afinal, como se sabe, ao Brasil di-
zia o embaixador inglês: “– Não deixarás de ser português [...]”, enquanto
aos demais neoibéricos dos Andes, dizia: “– Serão todos independentes
para que a Espanha não tenha mais colônias nesse continente.”24

Quer dizer, os ingleses permitiram a Independência do Brasil na for-


ma aceita pela família imperial dos Bragança, mas não concordaram com
a iniciativa revolucionária dos pernambucanos de 1817. No entanto, a
ação dos pernambucanos em tudo se assemelhava às ideias de Bolívar e
seus seguidores. Isso ocorreu porque os ingleses, então, eram inimigos de
Espanha.

Já os efeitos das ações de Napoleão sobre a América e, de modo par-


ticular, no Brasil, interessaram diretamente aos pernambucanos de 1817,
que pensaram em trazer o Corso para o Recife.

Ao mesmo tempo a influência de Napoleão nas ideias e nas ações de


Bolívar e de San Martin, inclusive no que diz respeito ao epílogo exis-
tencial de cada um deles, na prática, terminou por impor o lamentável
martírio da derrota, algo equivalente ao exílio de Santa Helena vivido por
Bonaparte.

Bolívar, após a consagradora vitória, ao ver a América liberta e uni-


ficada em torno da Confederação das antigas colônias, morreu vendo
esfacelar-se tal unidade e a preponderar em cada uma delas a assunção
de líderes ambiciosos, verdadeiros caudilhos que miravam a si próprio e
não o ideal patriótico. Bolívar, com certeza, no seu último alento, deve ter
sido iluminado pelo assombroso fantasma de Pirro.

E com San Martin o desencanto e a frustração não foram diferentes.

24  –  BOMFIM, Manoel, 1997, op. cit., p. 376.

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Breves considerações sobre as ideias de Simón Bolívar
na Revolução Pernambucana de 1817

A girândola dos impostos


Para justificar ainda mais a aproximação das causas ou dos princí-
pios fundamentais defendidos pelos revolucionários pernambucanos de
1817 e o movimento de libertação das colônias ibero-americanas liderado
por Simón Bolívar, bastaria lembrar a girândola dos impostos que pesava
sobre os colonizados. Ao lado disso, porém, a falta de liberdade, de igual-
dade e de fraternidade entre as pessoas (para lembrar a tríade vulgarizada
pelos revolucionários franceses de 1789), ampliava, ainda mais, o abismo
da injustiça social combatida por ambos os movimentos revolucionários.
Ao mesmo tempo, essa constatação servia para unificar os objetivos e o
ânimo de luta daquelas gerações de homens esclarecidos.

Vejamos, a seguir, tais pontos, começando pelas causas pernambu-


canas:

1 – Restrição aos brasileiros na gestão da coisa pública e excessiva


presença de portugueses na liderança do governo e nas funções da admi-
nistração pública;

2 – Criação de novos impostos pelo Império português;

3 – Crise na agricultura devido à seca que atingira a região em 1816,


provocando fome e miséria da população carente;

4 – Influências externas com a chegada de ideias liberais e iluminis-


tas, as quais estimularam os pernambucanos na organização do movimen-
to de 1817;

5 – Crescente pressão dos abolicionistas europeus, sobretudo ingle-


ses, que impunham restrições ao tráfico de escravos, o que encarecia a
mão de obra da economia agrária pernambucana.

Segundo testemunhou o viajante inglês Henry Koster25, era grande


a insatisfação local ante a obrigatoriedade de se pagar em Pernambuco

25 – KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Governo de Pernambuco


/ Secretaria de Educação e Cultura, 1978.

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tantos impostos. Entre os vários fatos geradores havia um até para ma-
nutenção de iluminação pública do Rio de Janeiro, enquanto o Recife
praticamente permanecia no escuro.

Por outro lado, o viajante francês Tollenare, em suas Notas


Dominicais,26 que, também, como se deu com Koster, testemunhou, no
Recife, o processo revolucionário de 1817, chegou a enumerar mais de
uma dezena de impostos, a saber: dízimo sobre as rendas das terras; trans-
missão de bens de raiz; venda de navios; venda de escravos; sucessões
hereditárias; direito de patentes; renda sobre aluguéis de imóveis; direito
alfandegário; etc.

Enquanto isso, nas colônias espanholas da América do Sul, os revo-


lucionários de Bolívar defendiam:

1 – Igualdade entre americanos e espanhóis;

2 – Liberdade de cultivos de agricultura, de indústria e do comércio;

3 – Supressão de todos os monopólios e privilégios;

4 – Abolição das penalidades de infâmia que pesavam sobre os mes-


tiços e mulatos, bem como dos tributos impostos aos índios;

5 – Eliminação do serviço forçado e das limitações legais a ele im-


postas;

6 – Supressão do rito obrigatório do pedido do perdão real;

7 – Representação nas Cortes espanholas com poderes para fiscalizar


as contas da fazenda real;

8 – Separação entre os poderes e as funções administrativas e judi-


ciais (atribuídas aos vice-reis e governadores);

26 – TOLLENARE, L. F. Notas Dominicais. Coleção Pernambucana, vol. XVI. Recife:


Governo do Estado / FUNDARPE, 1985.

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Breves considerações sobre as ideias de Simón Bolívar
na Revolução Pernambucana de 1817

9 – Criação de tribunais de apelação a fim de evitar o recurso ao


Conselho das Índias;

10 – Abolição do tráfico de escravos e da escravidão, etc.

Conclusão
Em conclusão, podemos afirmar que a Revolução de 1817, em Per-
nambuco, proclamou a independência e instituiu a República, desenca-
deando, portanto, um processo semelhante ao defendido pelos revolu-
cionários bolivarianos contra a monarquia espanhola. Ainda que existam
profundas diferenças entre a formação social e política dos portugueses
e dos espanhóis, os princípios e os métodos empregados na luta naquela
quadra do século XIX terminaram parecidos.

A união preconizada como ideia central dos republicanos de 1817,


aproximada da defendida por Simón Bolívar e seus seguidores, tinha
como ponto de partida a independência e a libertação das províncias, sem
alimentar o desvio da divisão tão destacado pelos realistas (portugueses
e espanhóis) de que se tratava de “separatismo”. Assim como a magnitu-
de do processo de libertação de Bolívar cobriu toda a América do Sul, a
Revolução Pernambucana foi proclamada nas províncias de Pernambuco,
Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará num claro indicador de que o al-
cance de sua extensão, a seguir, seria nacional.

De certo modo, a ação revolucionária de 1817, em Pernambuco, ape-


sar de ter durado apenas 74 dias de independência e de implantação de
clima republicano em terras brasileiras, entre nós, representou uma chama
capaz de mobilizar as consciências dos cidadãos que aceitam a liberdade
como elemento fundamental para existência de uma nação independente.

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Texto apresentado em maio/2017. Aprovado para publicação em se-


tembro/2017.

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Bicentenário da Diplomacia Brasileira

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BICENTENÁRIO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA


BICENTENARY OF BRAZILIAN DIPLOMACY
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão1
Resumo: Abstract:
A Revolução republicana de 1817 no Brasil as- The Republican Revolution of 1817 in Brazil
sinala o nascimento do Brasil como uma nacio- marks the birth of the country as a national
nalidade e uma entidade política independente state and as a political entity independent
de Portugal. A celebração de seus 200 anos re- from Portugal. The celebration of its 200-
presenta, ademais, o bicentenário do nascimento year anniversary represents, moreover, the
da diplomacia brasileira. Os revolucionários de bicentenary of the birth of Brazilian diplomacy.
1817 criaram a primeira Secretaria de Estado The revolutionaries of 1817 founded the
dos Negócios do Exterior do Brasil, designaram first Brazilian Ministry for Foreign Affairs,
o primeiro Plenipotenciário brasileiro no exte- appointed the first Brazilian plenipotentiary
rior e elaboraram as primeiras instruções diplo- abroad and devised the first Brazilian
máticas brasileiras. O enviado diplomático dos diplomatic guidelines. The diplomatic emissary
revolucionários brasileiros aos Estados Unidos sent by the revolutionaries to the United States
foi o primeiro diplomata da insurgência latino- was the first Latin-American revolutionary to
-americana a ser recebido por um secretário de be received by a North American Secretary
Estado norte-americano e o primeiro diploma- of State, and also the first Brazilian diplomat
ta brasileiro a ser recebido como tal por uma ever to be received by a foreign Ministry. He
Chancelaria estrangeira, realizou as primeiras represented an independent Brazil abroad,
gestões diplomáticas brasileiras, representou no pursued several diplomatic initiatives and wrote
exterior o primeiro Brasil independente e redi- reports on them.
giu informes sobre suas gestões.
Palavras-chave: Revolução de 1817; Fundação Keywords: Revolution of 1817; The birth of
da Diplomacia Brasileira. Brazilian diplomacy.

A paixão sempre extravasa ou se concentra, nunca se circunscreve


exata. Fui convidado para falar aqui hoje, quando celebramos os 200 anos
da Revolução de 1817 e, por causa de minha profunda paixão por aquela
época de nossa história, extravasei. Comecei a preparar uma palestra para
a meia hora que me foi generosamente atribuída mas, de repente, vi que
enveredava por um texto muito maior do que o aceitável. Preparei, então,
este resumo, com o qual espero transmitir as hipóteses e conclusões a que
cheguei.

Como diplomata, pautei minha pesquisa pela história diplomática e


por duas ideias mestras que me têm conduzido no estudo da Revolução
de 1817: a primeira é a de que a Revolução foi o acontecimento fundador
do Brasil independente e, a segunda, de que com ela se funda, também, a

1  –  Embaixador, sócio correspondente do IHGB e do IAHGP.

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Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão

história da diplomacia brasileira. Essas duas ideias mestras fazem, natu-


ralmente, com que eu tenha grande dificuldade conceitual em me referir
simplesmente a uma Revolução pernambucana de 1817. Nada contra os
pernambucanos mas, por um lado, a Revolução foi também de paraiba-
nos, riograndenses, alguns cearenses e poderia ter sido também de alguns
baianos, sem falar que Domingos José Martins era do Espírito Santo e o
Andrada era paulista. Por outro lado – e sobretudo por isto – entendo a
Revolução de 1817 como uma Revolução brasileira de 1817.

No dia 6 de março de 1817 eclodiu a primeira revolução pela inde-


pendência do Brasil do domínio português e, pela primeira vez, o Brasil
apareceu aos olhos do mundo não mais como Portugal nas Américas mas
como uma entidade nacional independente, dona de seu próprio destino.
Os revolucionários assumiram o poder e o mantiveram por cerca de dois
meses e meio em Pernambuco e, por menos tempo, na Paraíba e no Rio
Grande do Norte. Mas também, durante cerca de dois meses, o mundo
conheceu um Brasil independente da Corte portuguesa do Rio de Janeiro.
Nasceu, então, o Brasil, pela primeira vez independente e livre e governa-
do por brasileiros. É, assim, também o bicentenário da invenção do Brasil
o que celebramos aqui hoje.

Esse surgimento do Brasil aos olhos do mundo e do próprio Reino


Unido do Brasil pode ser sintetizado por três breves citações. A primeira,
é tirada do jornal norte-americano Norfolk Herald Office que, no dia 24
de abril de 1817, divulga nos Estados Unidos, pela primeira vez, a notícia
do acontecimento, sob a manchete: Highly Important! Revolution in Bra-
zil! Some-se a isso, a intensa cobertura dada pelo Times de Londres, que,
depois de anunciar a Revolução no dia 27 de maio, sob a manchete: Ge-
neral Insurrection in the Brazils, ocupou-se do assunto em 21 de seus 58
números seguintes, publicando mesmo, em um deles, a íntegra do famoso
Preciso de José Luis de Mendonça: nenhum outro assunto da atualidade
internacional ocupou tanto, naqueles dias, as páginas daquele que era o
principal jornal do mundo quanto a Revolução brasileira de 1817, quanto
o surgimento do Brasil. A independência de 1822 mereceria apenas mor-
nas e parcas linhas de notícia esperada.

186 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):185-196, set./dez. 2017.


Bicentenário da Diplomacia Brasileira

A segunda citação, que bem resume a surpresa oficial com o apareci-


mento inesperado e inaudito do Brasil, é a observação que o cônsul-geral
britânico no Rio de Janeiro, Chamberlain, faz sobre a Revolução logo em
seu primeiro despacho a Londres, datado de 28 de março, informando o
acontecimento:
Nada poderia ser mais inesperado, ou causar maior espanto, do que
a informação deste extraordinário acontecimento, cujas consequên-
cias podem ter e com muita probabilidade terão, importante influência
sobre todo o continente da América do Sul. Nothing could be more
unexpected, or cause greater astonishment, than the intelligence of
this extraordinary event ; whose consequences may, and most proba-
bly will, have important influence over the whole continent of South
America. (Public Record Office, FO63/206, folhas 225 a 236).

Uma terceira citação, finalmente, é aquela simples e concisa excla-


mação com que se encerra o famoso manifesto intitulado Preciso, publi-
cado pelo Governo Provisório, possivelmente em 28 de março, quando
se montou no Brasil a primeira imprensa livre, que dizia: Viva a Pátria!
Vivam os Patriotas! E acabe para sempre a tirania real!; pois a luta pela
Pátria brasileira livre e pelo fim da tirania real portuguesa foi o que nas-
ceu com a Revolução de 1817 e o que projetou a primeira imagem inter-
nacional do Brasil, imagem de liberdade que assombraria os áulicos até
bem entrado o Segundo Reinado.

Mas a Revolução de 1817 não marca apenas o início da luta por


nossa independência e o início da afirmação internacional e mesmo na-
cional de nossa nacionalidade própria. Muitas outras coisas surgiram pela
primeira vez no Brasil graças à Revolução de 1817, que estaremos cele-
brando neste bicentenário. Por exemplo e muito brevemente: o início do
pensamento constitucionalista brasileiro, a proposta de proibição do tráfi-
co negreiro e da própria abolição da escravidão, a ideia da criação de uma
nova cidade capital no interior, o pensamento federalista, a participação
da mulher na ação política, a participação dos negros na ação política, a
liberdade de culto, a liberdade de imprensa e, até mesmo, a proclama-
ção da cachaça como bebida nacional. Mas a Revolução de 1817 marca,

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Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão

também, o bicentenário do tema que trago aqui: a fundação e o início da


diplomacia brasileira. Essa fundação tem datas e celebramos, agora, os
seus 200 anos.

Foi logo no dia 11 de março de 1817, cinco dias após deflagrada a


Revolução, que, nas palavras do sublimado padre Joaquim Dias Martins,
o célebre cronista dos mártires pernambucanos, o Governo Provisório
instalado no Recife “elegeu Antônio Gonçalves da Cruz para embaixador
de Pernambuco nos Estados Unidos e Domingos Malaquias para secre-
tário e intérprete da Embaixada”. E no dia 27 de março, 10 dias antes da
partida de seu representante, o mesmo Governo Provisório decretou sua
nomeação e emitiu as instruções que o deveriam orientar em sua missão
nos Estados Unidos.

Antônio Gonçalves da Cruz Cabugá, como era conhecido, partiu do


Recife há exatos 200 anos, num dia 6 de abril, a bordo do brigue Gipsy
e foi, assim, o que poderíamos chamar de primeiro embaixador brasilei-
ro; e as instruções que recebeu a sua partida são o primeiro documento
diplomático brasileiro: tudo, antes disso, fora português. E muito do que
seria feito depois disso, repetiria o que, pioneiramente, foi feito e dito ali.

Os arquivos históricos do Itamaraty conservam ainda, bem guarda-


dos e bem conservados, num maço modesto, os documentos originais
com aquelas extraordinárias instruções e com a nomeação de Cruz Cabu-
gá. São a certidão de nascimento de nossa diplomacia. Assinados pelos
membros do Governo Provisório, lá estão, naqueles papéis, os nomes do
padre João Ribeiro, Manuel de Araujo, José Luis de Mendonça, Domin-
gos José Martins e Domingos Teotônio Jorge, todos depois, menos um,
arcabuzados, enforcados, esquartejados e suas mãos e cabeças decepadas
e pregadas em postes, pela liberdade do Brasil, por nossa liberdade.

Mas os arquivos do Itamaraty guardam ainda outros documentos que


são outras tantas certidões de nascimento da diplomacia brasileira na-
queles dias: guardam, também, os que foram os primeiros despachos de
um diplomata brasileiro no exterior, que são os relatórios redigidos por

188 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):185-196, set./dez. 2017.


Bicentenário da Diplomacia Brasileira

Cruz Cabugá sobre seus encontros com autoridades do Governo norte-


-americano, naquela sua qualidade de enviado do Governo Provisório do
Brasil de 1817.

Governo do Brasil, primeiro Governo do Brasil porque, naqueles


idos de 1817, Brasil era o Nordeste revolucionário. A Bahia do Conde
dos Arcos, o Rio de Janeiro da Corte joanina ou a São Paulo do vereador
José Bonifácio, o sul do general Lecor, ou o Mato Grosso do Oyenhau-
sen, as Minas Gerais do Caldeira Brant, todos eram ainda Portugal nas
Américas, todos eles eram ainda portugueses da América e todos como
tal se sentiam. A missão de Cruz Gabugá deixa isto patente, ao provocar
nos Estados Unidos um verdadeiro duelo diplomático, diante do Governo
e da sociedade norte-americanos, entre o enviado diplomático do Brasil
português da Corte do Rio de Janeiro, o extraordinário Abade José Correa
da Serra e o enviado diplomático brasileiro, do Governo Provisório da
Revolução: era, pela primeira vez, a diplomacia brasileira atuando no ex-
terior, no empenho de defender os interesses do Brasil e de contrarrestar
as ações da diplomacia colonial portuguesa do Rio de Janeiro. Atuando
em gestões diplomáticas pessoais de gabinete, atuando por meio da im-
prensa junto à opinião pública e atuando em contactos intensos com per-
sonalidades variadas nos Estados Unidos. Fazendo, exatamente, o mesmo
que iniciaria por fazer, mais tarde, a diplomacia da Regência de D. Pedro
e a diplomacia imperial após o 7 de Setembro, junto às cortes europeias e
ao governo norte-americano, atrás, não apenas do reconhecimento da in-
dependência mas também do reconhecimento do domínio da dinastia de
Bragança no Brasil. E entre os documentos históricos da Biblioteca Na-
cional sobre a Revolução, já publicados, encontram-se também as cópias
das notas diplomáticas enviadas por Cruz Cabugá ao Governo norte-ame-
ricano, em suas gestões pelo reconhecimento de nossa independência.

Mas não só de seu desempenho político dá conta o nosso primeiro


Plenipotenciário nos Estados Unidos, em todos aqueles e outros docu-
mentos. Ocupa-se, também, em seus despachos, da dignidade na repre-
sentação de seu cargo diplomático, das relações comerciais e militares,
da atualidade internacional, da interação com outros diplomatas e de sua

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Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão

interlocução com a sociedade norte-americana e estrangeira nos Estados


Unidos.

Em suma, os parcos documentos que nos restam da missão de Cruz


Cabugá abarcam, às vezes até exaustivamente, aquelas três funções clás-
sicas primordiais da diplomacia que, já em sua época, como hoje, eram
e são: representar, negociar e informar. Aquele primeiro plenipotenciário
brasileiro representou o Brasil insurgente, em contraposição à Corte por-
tuguesa do Rio de Janeiro; negociou com o secretário de Estado, com ou-
tras altas autoridades norte-americanas e com comerciantes e fornecedo-
res diversos nos Estados Unidos; e redigiu informe ao primeiro Governo
brasileiro sobre aquelas negociações e suas implicações.

E somem-se a tais documentos, os testemunhos que nos deixaram


algumas das autoridades norte-americanas com quem o Cabugá se encon-
trou, os documentos que nos deixou o ministro da Corte portuguesa do
Rio de Janeiro nos Estados Unidos, a correspondência de agentes diplo-
máticos de outros países que subsiste nos arquivos de suas chancelarias e
as muitas notícias dos jornais norte-americanos da época.

Antônio Gonçalves da Cruz Cabugá representou o Brasil nos Es-


tados Unidos por parcos três meses, desde 14 de maio, quando desem-
barcou em Boston. Já no dia seguinte os jornais noticiavam, respeitosa e
pomposamente, a chegada de “Sua Excelência o ministro do novo gover-
no de Pernambuco nos Estados Unidos” (Boston Daily Advertiser, de 15
de maio). Seu último ato como plenipotenciário brasileiro foi em 20 de
agosto, quando enviou sua última Nota ao presidente Monroe. Foi pouco
tempo mas foi o suficiente para significar a fundação da diplomacia brasi-
leira, tanto, como disse, pela atuação de Cruz Cabugá quanto pelos textos
que deixou e provocou e pela repercussão de sua designação.

O primeiro encontro de Cruz Cabugá com autoridades do governo


norte-americano – o enviado especial que o próprio Monroe designara
para encontrá-lo, Caesar Rodney e o presidente do Banco dos Estados
Unidos, William Jones – fora em 5 de junho. Mais tarde, em 16 de ju-

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Bicentenário da Diplomacia Brasileira

nho, Cabugá se encontraria com o próprio secretário de Estado, Richard


Rush, a quem entregou uma nota para o presidente Monroe e a quem,
posteriormente, enviou nota com estatísticas sobre o Brasil e um modelo
da bandeira da República. Encontrou-se, também, com o secretário de
Estado da Marinha.

Até aquele momento, junho de 1817, o Governo dos Estados Unidos


não havia recebido, oficialmente, nenhum representante de nenhuma das
novas repúblicas latino-americanas.

A par das relações com o governo norte-americano, Cruz Cabugá


desenvolveu intensa atividade junto a políticos, armadores, exilados fran-
ceses e enviados das diversas repúblicas hispano-americanas que chega-
vam aos Estados Unidos atrás de auxílios que não receberiam. E visitou
o venerável e prestigiado ex-presidente John Adams, atrás de apoio po-
lítico; Adams registraria a visita em carta a Thomas Jefferson, dizendo
que “O embaixador de Pernambuco, seu secretário de legação e secretá-
rio privado, pessoas respeitáveis, vieram me visitar” (“The Pernambuco
ambassador, his secretary of legation and private secretary, respectable
people, have made me a visit.”2

O ponto de partida para a apreciação da missão de Cruz Cabugá são


os três documentos do Governo Provisório que a respeito dela chegaram
até nós: sua nomeação para “residente” nos Estados Unidos, as instruções
a ele dadas e uma nota de Domingos José Martins encarregando-o da
compra de armamentos. Encontram-se os três bem conservados no Arqui-
vo Histórico do Itamaraty. Cito aqui apenas o texto do documento de sua
nomeação, pois é o primeiro texto diplomático brasileiro:
O Governo Provisorio de Pernambuco tendo em vista estreitar mais
os vinculos de natural sympathia, que a identidade da mesma cauza, e
principios deve de criar entre o Povo de Pernambuco e o dos Estados
Unidos da America, nomea, como nomeado tem para seu residente
na America ao Patriota Antonio Gonsalves da Cruz, e lhe concede
todos os poderes para haver de entrar em comunicaçoens com o Go-
2 – BOURDON, Leon. José Corrêa da Serra, Ambassadeur du Royaume Uni de Portu-
gal et Brésil a Washington, 1816-1820. Paris: Goulbenkian, 1975.

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Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão

verno Americano, e fazer hum tratado de Alliança, ainda mesmo que


o dito Governo não reconheça publicamente a independencia do Povo
Pernambucano. Igualmente lhe permite o poder encetar qualquer ne-
gociação respectiva ao fornecimento de muniçoens de boca, e guerra.
Tão bem lhe concede o poder uzar de hua farda de Coronel em todo
o tempo que o tiver assim empregado, e não mande o contrario, e que
seu Secretario uze de hua farda de Tenente na mesma conformidade. E
para clareza se lhe passou a prezente pela Secretaria do Governo com
a rubrica dos Patriotas Governadores, e Eu o Secretario de Estado dos
Negocios do Exterior o subscrevi. Dado na Caza do Governo Provizo-
rio de Pernambuco aos 27 de Março de 1817.
José Carlos Mairink da Silva Ferrão
O Pe João Ribro Pessoa
Manuel Corra. de Araujo
José Luis de Mendonsa
Domingos José Martins
Domingos Teotonio Jorge

É sucinto mas contém já as recomendações de representar e nego-


ciar. E, mais extraordinariamente, significa, também, a primeira criação,
ainda tímida mas paradoxalmente já afoita, de um Itamaraty no Brasil, ao
registrar aquela função com a qual se assina José Carlos Mairink : “Secre-
tário de Estado dos Negócios do Exterior.” Celebramos aqui, então, não
apenas os 200 anos de nossa diplomacia mas poderíamos até argumentar
que celebramos também os 200 anos da criação de um primeiro Ministé-
rio das Relações Exteriores brasileiro.

As instruções que Cruz Cabugá recebeu e o relato das gestões que


fez a respeito delas são documentos mais longos e não cabe transcrevê-
-los aqui. Deles, porém, o que se pode dizer, inequivocamente, é que o
desempenho do plenipotenciário brasileiro foi de amplo sucesso e suas
instruções quase que integralmente cumpridas.

Muito resumidamente, mas de modo a deixar claro o sucesso das


gestões diplomáticas de Cruz Cabugá, podemos dizer que as instruções

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Bicentenário da Diplomacia Brasileira

do Governo Provisório continham, basicamente, cinco recomendações,


que foram as seguintes:

1ª) – encontrar-se com o ministro do Exterior, o que foi plenamente


cumprido, tendo Cruz Cabugá se encontrado, como vimos, com o secre-
tário de Estado Richard Rush em Filadélfia, apenas um mês após desem-
barcar em Boston; recordo que foi o primeiro enviado de uma insurgência
latino-americana a ser recebido oficiosamente pelo Governo dos Estados
Unidos;

2ª) – informar sobre o estado da República, de modo a inclinar em


seu favor o peso da América, o que foi feito verbalmente junto ao envia-
do especial de Monroe e, em seguida, ao próprio secretário de Estado, a
quem, dois dias depois de se encontrarem, Cruz Cabugá enviou relatório
sobre a situação do Brasil e um modelo da bandeira revolucionária, a
primeira bandeira brasileira;

3ª) – assegurar liberdade e franqueza de comércio, o que também


foi feito verbalmente com o secretário de Estado, o qual lhe assegurou,
inclusive, que os Estados Unidos não reconheceriam qualquer bloqueio
nominal dos portos brasileiros;

4ª) – obter socorro de armas e víveres e até mesmo gente e oficiais


de Marinha, que estava autorizado a engajar em nome do Governo Provi-
sório, o que foi feito, com exceção dos víveres, já no dia seguinte à entre-
vista com o secretário de Estado, o qual lhe assegurara que o Governo dos
Estados Unidos nada tinha a opor a que atuasse naquela direção;

5ª) – procurar desfazer os possíveis manejos políticos do ministro


português em Washington em detrimento da causa da Revolução, o que
fez, intensamente, pro meio de contactos pessoais junto a autoridades
norte-americanas e pela da imprensa local.

Note-se, conforme vimos no texto da nomeação de Cruz Cabugá,


que o reconhecimento imediato da independência não era uma das instru-
ções nem uma das preocupações imediatas mas, sim o era, a interlocução

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Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão

direta com o Governo, o que foi plenamente obtido na entrevista com o


secretário de Estado.

Mais adiante não pôde ir Cruz Cabugá porque, depois de seu encon-
tro com o secretário Richard Rush, em 16 de junho, qualquer próximo
passo “diplomático” teria de aguardar o retorno do presidente Monroe a
Washington. Monroe só retornaria muito depois do dia 14 de julho, dia
em que chegou aos Estados Unidos a notícia do fim da Revolução.

Todas essas recomendações, constantes das instruções que foram


dadas a Cruz Cabugá pelo Governo Provisório, seriam retomadas pela
diplomacia da Regência de D. Pedro e do Império incipiente, 5 ou 6 anos
depois. E quanto a isso, remeto os interessados aos documentos publica-
dos nos volumes do Arquivo Diplomático da Independência. A primeira
diplomacia de 1822 retomaria aqueles primeiros passos diplomáticos dos
revolucionários brasileiros de 1817.

Aquele primeiro “Ministério” do Governo Provisório, além da de-


signação de Cruz Cabugá, teve ainda tempo de atuar, também diplomati-
camente, no próprio Recife, ao receber o cônsul britânico e garantir-lhe
a autorização para continuar no exercício de seu cargo. Fez exatamente
o que faria, seis anos mais tarde, o Governo imperial com o cônsul-geral
britânico no Rio de Janeiro, que foi também autorizado a continuar em
suas funções, mesmo que sem as credenciais devidas.

O Governo Provisório procurou, do mesmo modo, credenciar um re-


presentante em Londres, oferecendo à Grã-Bretanha, por meio dele, uma
clara composição diplomática, baseada nos dois principais interesses bri-
tânicos na época: o comércio livre e a promessa de abolir o tráfico negrei-
ro. Exatamente o mesmo que lhe ofereceria a diplomacia do Governo im-
perial após a independência. A incumbência diplomática em Londres foi
oferecida pelo Governo Provisório ao dono do Correio Braziliense, mas o
jornalista não a levou adiante: ele ainda era, naqueles dias, um português
do Brasil muito próximo a D. João e não um brasileiro como o eram os
Revolucionários de 1817. Mas a intenção daquele credenciamento por

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Bicentenário da Diplomacia Brasileira

parte do Brasil independente chegou ao conhecimento do secretário de


Exteriores britânico, Castlereagh, assim como as sugestões de abertura
comercial e de abolição do tráfico e fizeram a chancelaria britânica, ainda
que por pouco tempo, pensar duas vezes sobre como se relacionar com
aquele súbito Brasil, como bem demonstram os documentos que a res-
peito dessa dubiedade subsistem nos arquivos diplomáticos britânicos e
na correspondência do ministro português da Corte do Rio de Janeiro em
Londres, o Duque de Palmella.

Reflexo, também, da diplomacia da Revolução, a designação de en-


viado para os Estados Unidos foi do conhecimento da chancelaria france-
sa. E a notícia da Revolução e daquela designação contribuiu para que o
Governo de Luís XVIII marombasse, ainda que durante poucos dias, nas
tratativas que realizava à época em Paris e em Londres, com os Encarre-
gados de Negócios de Portugal e com a mediação do Governo britânico,
sobre a devolução de Caiena: talvez a Corte francesa tivesse tido esperan-
ças de negociar as fronteiras do território americano com outro Governo,
ou com uma Corte do Rio de Janeiro fragilizada pelo movimento inde-
pendentista.

O tempo para a ação diplomática brasileira dos Revolucionários de


1817 foi escasso. O que espero, porém, ter trazido à consideração dessa
muito justa celebração, em boa hora promovida pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro em parceria com o Instituto Arqueológico, Históri-
co e Geográfico Pernambucano, foi o panorama do resultado de uma pes-
quisa que pretende caracterizar o papel fundador da atividade diplomática
da Revolução brasileira de 1817. Quis mostrar como aquela atividade
foi fecunda, embora breve; que aquela atividade foi consistente com seu
momento e sua época; que ela foi o início da atividade diplomática do
Brasil não mais português; que seu “residente” nos Estados Unidos foi
o primeiro diplomata brasileiro, que representou, negociou e informou,
pela primeira vez, em nome de um Brasil independente; e que por isso
celebramos aqui hoje não apenas o bicentenário da Revolução, que é o bi-
centenário do surgimento do Brasil brasileiro, mas celebramos, ademais,
o bicentenário da fundação da diplomacia brasileira.

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Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão

Foi o Governo Provisório do Brasil de 1817, por meio também da-


quela que foi a primeira diplomacia brasileira, quem arvorou, aos olhos
do mundo, a primeira bandeira de um Brasil independente e com perso-
nalidade internacional própria. Essa bandeira esteve hasteada no Recife;
o primeiro embaixador brasileiro, Antônio Gonçalves da Cruz Cabugá,
que partiu de Pernambuco há exatos duzentos anos, como vimos, em 6
de abril de 1817, entregou um modelo dela ao secretário de Estado norte-
-americano; e o cônsul francês no Rio de Janeiro, o coronel Maler, enviou
exemplar daquela bandeira ao secretário de Assuntos Estrangeiros em Pa-
ris, o duque de Richelieu.

Derrotada a Revolução pela Corte portuguesa do Rio de Janeiro e


roto o alegre pavilhão brasileiro de 1817, a bandeira do Brasil que ficou
ainda por muito tempo arvorada aqui em nosso país foi a cabeça do pa-
dre João Ribeiro, um dos membros do primeiro Governo Provisório que
tivemos no Brasil, que foi desenterrada pelos que ainda eram portugueses
e em seguida decepada e por mais de dois anos permaneceu fincada em
um poste diante da igreja do Corpo Santo, no Recife, para nossa derrisão.

Também para nossa derrisão, tudo aquilo que aqueles homens signi-
ficaram e criaram para a História do Brasil tem sido esquartejado e pendu-
rado nos postes dos desvios das histórias regionais nestes duzentos anos.
Espero que esta modesta celebração que esbocei aqui, dos duzentos anos
da diplomacia brasileira, fundada pelo Governo Provisório do Brasil de
1817 e muito bem conduzida por nosso primeiro embaixador, o mulato
pernambucano Antônio Gonçalves da Cruz Cabugá, possa contribuir para
que este Seminário inicie a reposição dos acontecimentos de 1817 na li-
nha mestra da condução de nossa história nacional, onde é o seu lugar.

Texto apresentado em maio/2017. Aprovado para publicação em se-


tembro/2017.

196 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):185-196, set./dez. 2017.


Revolução Republicana em Pernambuco de 1817
Burguesia e maçonaria versus aristocracia

197

REVOLUÇÃO REPUBLICANA EM PERNAMBUCO DE 1817


BURGUESIA E MAÇONARIA VERSUS ARISTOCRACIA
THE REPUBLICAN REVOLUTION OF 1817 IN PERNAMBUCO
BOURGEOUS AND MASONRY VERSUS ARISTOCRACY
Reinaldo Carneiro Leão1
Resumo: Abstract:
Trata-se de tentativa de explicação sobre o ob- This article is an attempt to explain the objective
jetivo da Revolução Republicana de 1817 em of the Republican Revolution launched in 1817
Pernambuco e capitanias anexas. O clero era in Pernambuco and its adjacent captaincies.
esclarecido e imbuído dos princípios da Re- The clergy at the time, consisting of Illuminists
volução Francesa. Eram iluministas e maçons. and Masons, was enlightened and imbued with
A burguesia, representada pelo alto comércio, the principles of the French Revolution. The
ou seja, importação e exportação, sentia-se des- bourgeoisie, on the other hand, consisted of
prezada pelo governo central no Rio de Janeiro, business people engaged in import and export
não havendo acesso aos cargos públicos, apaná- trade activities. It felt despised by the central
gio da aristocracia do açúcar. Em sua maioria, government in Rio de Janeiro and had no access
tal como o clero, eram franco-maçons. Primeira to public offices, which were then an appanage
revolução em toda a história do Reino de Portu- of the sugar aristocracy. Like the clergy, it
gal a tomar o poder. Durou setenta e cinco dias, consisted mainly of Freemasons. This was the
sendo um movimento totalmente contrário ao first revolution in the history of the Kingdom of
conservadorismo da Corte. Portugal to seize power. It lasted seventy-five
days, and was a movement completely opposed
to the Court’s conservatism.
Palavras-chave: República; Maçonaria; Bur- Keywords: Republic; Masonry; Commercial
guesia comercial; Clero iluminista. bourgeoisie; Enlightened clergy.

Não poderia discorrer aqui sobre a República de 1817 sem antes falar
sobre as origens remotas desse movimento. Pernambuco no século XVIII
passou por uma grave recessão econômica que alguns autores chegaram a
chamar de nossa Idade Média. Isto em grande parte devido às guerras da
Restauração e dos Mascates. Sabemos que, quando da invasão das tropas
da Companhia das Índias Ocidentais, hoje conhecida por Guerra Holan-
desa, os grandes proprietários de engenhos de açúcar emigraram para a
Bahia, ficando suas plantações improdutivas, embora muitas tenham sido
confiscadas e vendidas a flamengos. No início do século XVIII, por con-
ta da elevação do povoado do Recife a vila, rebentou em 1710 a guerra
dos Mascates. Esta era a denominação dos comerciantes do Recife, em
sua maioria portugueses. Já os membros da aristocracia da terra ou como
diria o historiador Evaldo Cabral de Mello açucarocracia, eram conheci-
1  –  Sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):197-205, set./dez. 2017. 197


Reinaldo Carneiro Leão

dos por Mazombos e residiam em Olinda, capital. Esta guerra foi a base
de toda a dicotomia entre comerciantes, donos do dinheiro e uma elite,
dona dos cargos do governo. No século XVIII, ao verificarmos os grandes
proprietários de terra, com engenhos produtores de açúcar (este que era a
base da nossa economia), a maioria era arrivista. Poucos originários dos
pioneiros do século das capitanias hereditárias. Começando por Pernam-
buco, cuja posse e domínio foi confiscada pelo Governo português aos
legítimos donatários, seus engenhos, ou seja, suas fábricas de açúcar, que
não ficaram de fogo morto e a monte, após a Restauração e a guerra dos
Mascates, mudaram, simplesmente, de mãos. Adquiridos pelos grandes
comerciantes denominados grosso trato, tornaram eles proprietários de
glebas produtoras de açúcar.

O Recife, melhor e mais procurado porto do norte do Brasil, possuía


uma grande movimentação de mercadorias, que dele eram transportadas
principalmente para a Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, lembrando
que Alagoas era parte integrante de Pernambuco, desde 1534. Esse inten-
so comércio deu margem ao surgimento de uma classe mais forte do que
a dos latifundiários. A dos grandes comerciantes de grosso trato aos mer-
cadores de sobrado. Estes eram os banqueiros da época, pois financiavam
a safra da cana desde a planta até a moagem e seu produto final, o açúcar.
No século XIX, denominavam-se comissários de açúcar.

Enfim, esse grande desenvolvimento comercial trouxe abastança fi-


nanceira e o surgimento de grandes nomes do comércio, como Domingos
Pires Ferreira, cujo filho Gervásio Pires, nascido no Recife, contribuiu
com 25 contos de réis em ouro, para aquisição de armas destinadas aos
revoltosos, José de Oliveira Ramos, Domingos Affonso Ferreira e seu
genro Bento José da Costa. Este, grande prócer da Revolução, todos por-
tugueses e argentários, porém, desprezados pelo estamento português.

Lembramos que o Governo de Portugal, muito contrário do que fez


a América Espanhola, dificilmente concedeu títulos de nobreza aos seus
súditos no Brasil, muito menos aos brasileiros – na contramão do que se
vê em Lima, no Peru, na cidade do México e em Buenos Aires, cidades

198 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):197-205, set./dez. 2017.


Revolução Republicana em Pernambuco de 1817
Burguesia e maçonaria versus aristocracia

nas quais encontramos palacetes e grandes mansões que pertenceram e


neles residiram marqueses e condes, membros da nobreza da terra. Os
Bragança no máximo concediam títulos de Fidalgo Cavalheiro ou Ca-
valheiro Fidalgo da Casa Real, professo na Ordem de Cristo, e raramen-
te, nas outras três ordens militares, São Bento, Avis e Nossa Senhora da
Conceição de Vila Viçosa. O mais comum era o de Famíliar do Santo
Ofício. Este uma maneira de proteger-se da terrível Inquisição. Portanto,
deliberadamente o governo luso não reconhecia a pujança e determinação
nossa, para amealhar capitais financeiros, particularmente, de seus ricos
comerciantes aqui estabelecidos, que dirá a dos “brasileiros natos”. Com
esse desprezo tornou não só o Brasil e também as demais colônias suma-
mente atrasadas. Claro que essa atitude provocava a má vontade da gente
da terra para com o governo central, criando condições para uma revolta
contra esse status quo. Daqueles da carreira militar, as promoções de na-
turais do Brasil iam até determinados níveis, não passando de coronel.

Em fins do século XVIII, dois fatores ocorreram para o acirramento


desse ódio ao sistema de Governo português. Um físico e o outro cultural.
Entre 1790 e 1795 uma grande seca atingiu o norte, particularmente o
Piauí e Ceará que, tiveram um drástico recuo na indústria das charquea-
das criada por seus habitantes. Tão grave foi isto que provocou o êxodo
dos criadores de gado para o hoje Rio Grande do Sul, onde introduzi-
ram a indústria da carne-seca. Diminuíram assim os lucros dos grandes
comerciantes luso-brasileiros, pois praticamente acabou a exportação do
charque (então conhecida por carne do sertão) pelo porto do Recife.

O fator cultural é devido ao fluminense Dom José da Cunha Aze-


redo Coutinho, bispo de Pernambuco. Foi a criação por este, no antigo
Colégio dos Jesuítas, de uma escola destinada à formação de padres: o
Seminário de Olinda. O bispo era um humanista seguidor do Iluminismo,
tendo sido o autor do primeiro livro sobre economia política escrito no
Brasil. Convidou para ensinar no novo colégio a nata daqueles religiosos
que detinham o conhecimento iluminista, residente no eixo Recife/Olin-
da. Lembro aqui que a velha Olinda, embora decadente, era a capital da
Capitania de Pernambuco e que o Recife, apesar de ser apenas o centro

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):197-205, set./dez. 2017. 199


Reinaldo Carneiro Leão

econômico, era uma simples vila. Dom Azeredo Coutinho cercou-se de


religiosos do nível do padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro,
o qual estudou em Coimbra, tendo sido o desenhista que ilustrou a co-
nhecida obra sobre a flora e a fauna do Nordeste brasileiro, do cientista e
também padre Arruda Câmara. Padre João Ribeiro ensinava desenho
e física e, como quase todos os esclarecidos da época, era maçom, se-
guidor de seu mestre Arruda Câmara, o qual foi fundador da primeira
loja maçônica que se conhece entre nós, o famoso Areópago de Itambé.
Frei Miguel de Almeida Castro, o frei Miguelinho, potiguar, professor de
oratória e retórica, que foi martirizado em Salvador. Não esquecendo do
padre Roma, José Inácio de Abreu e Lima. Como muitos religiosos em
sua época, estudou na Europa, tendo fixado residência em Roma, onde
tornou-se amigo de um cardeal que, ao tornar-se papa, dispensou-o dos
votos religiosos. Foi talvez o primeiro mártir da Revolução de 1817. Indo
a Salvador para levantar os baianos, foi preso ao desembarcar, sumaria-
mente julgado e fuzilado em menos de quarenta e oito horas, por ordem
do Conde dos Arcos. E o foi diante do filho, o futuro general Abreu e
Lima, depois herói na Venezuela e Colômbia, o qual, segundo a palavra
dele, colocou-se à frente do irmão Luís, para que este não visse o su-
plício do pai. Esses padres estavam embebidos pelos ideais da Revolu-
ção Francesa, e do conhecimento iluminista, praticamente em sua quase
totalidade, seguidores da maçonaria. Seria exaustivo discorrer sobre os
lentes do Seminário, direi apenas que eram em seu tempo na capitania de
Pernambuco, os grandes detentores do conhecimento científico e cultural.
Em sua maior parte, eram seguidores ou simpatizantes dos preceitos ma-
çônicos exaltados pela Revolução Francesa de 1789: liberdade, igualdade
e fraternidade.

A cultura, ou melhor o conhecimento, era restrito a uns poucos abas-


tados e, em sua maior parte, aos sacerdotes e religiosos. Por isso a Revo-
lução Republicana de Pernambuco ficou conhecida como a “Revolução
dos Padres”. Na realidade, no total, tomaram parte do movimento setenta
e sete religiosos.

200 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):197-205, set./dez. 2017.


Revolução Republicana em Pernambuco de 1817
Burguesia e maçonaria versus aristocracia

A maçonaria entre nós, como já disse, surgiu em fins do século XVIII,


na então vila de Itambé, na Paraíba. Porém, a vinda de seu fundador Arru-
da Câmara para residir no Convento Carmelita da Vila de Goiana coinci-
de com o surgimento em 1801 de outra loja chamada dos Suassunas. Este
era o nome do engenho em Jaboatão onde era sediada. Pouco durou, pois
o capitão-mor e coronel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque,
conhecido por Suassuna, seu fundador, junto aos irmãos José, depois go-
vernador do Rio Grande do Norte e de Angola e o desembargador Luís fo-
ram presos como conspiradores e sofreram devassa. O historiador Pereira
da Costa informa que correu então muito dinheiro para livrar os irmãos
da cadeia. Inclusive o escrivão do processo recebeu a então alta soma de
quatrocentos mil-réis para retirar dos autos duas cartas comprometedoras.
Nessa época era uma obsessão do governo português a destruição de tudo
que pudesse lembrar os “ideais franceses”.

Mais tarde, em 1808, vamos encontrar mais uma loja maçônica, a do


Paraíso, integrada por comerciantes de grosso trato e religiosos. Isto tal-
vez pelo grande movimento comercial do porto do Recife. Importava-se
tudo manufaturado da Europa e do Oriente e nós exportávamos, princi-
palmente açúcar, algodão e couros. Esclareço que o viajante de nacionali-
dade inglesa Henry Koster foi por terra ao Ceará, para conhecer os centros
produtores de algodão e adquiri-lo. Este ia diretamente para as fábricas
de Manchester na Inglaterra. Pode-se ter uma ideia da abastança destes
comerciantes. praticamente todos portugueses. Dentre eles havia um José
de Oliveira Ramos, proprietário do engenho Salgado, enorme latifúndio
que englobava a praia de Porto de Galinhas, aliás, seu local particular de
desembarque. Importador e exportador, era, sobretudo, grande negocian-
te de escravos. Possuía vários navios. No seu diário comercial lê-se que
recebeu em 1811 uma partida de setecentos escravos de Angola, tendo
um lucro líquido de mais de trinta e seis contos de réis. Era amigo de ou-
tro viajante, o francês Tollenare, que foi seu hóspede no Salgado. Aliás,
Tollenare, em seu livro sobre sua viagem, escreve sobre sua amizade com
o padre João Ribeiro, a quem elogia por sua grande cultura. Voltemos
aos nossos comerciantes e maçons. Por eles podemos imaginar a pujança

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):197-205, set./dez. 2017. 201


Reinaldo Carneiro Leão

econômica e financeira de seus conterrâneos Domingos Afonso Ferreira e


outros. Este possuía enormes fazendas de gado e algodão no Rio Grande
do Norte e Ceará. Seu genro e sócio Bento José da Costa também não lhe
ficava atrás, tendo sido seu testamenteiro e inventariante do seu espólio.

Pernambuco, na ocasião, cresceu por conta dessa gente. Mas infeliz-


mente o seu rendimento econômico-financeiro era canalizado para o Rio
de Janeiro e destinado a manter os gastos de uma corte ociosa. Talvez o
imposto que mais doía nos pernambucanos era o da iluminação pública
desta cidade, pago diretamente por Pernambuco.

Chegamos a 1816, o inverno do ano anterior foi fraquíssimo e esse


ano foi seco, prejudicando as safras do açúcar e do algodão, o que acar-
retou grandes prejuízos ao comércio. Aliado a isto havia o sentimento de
revolta daqueles que não aceitavam o absolutismo e tirania do Príncipe
Regente e desejavam uma ruptura com o governo central.

Quero aqui deixar bem claro que a Revolução de 1817 foi proclama-
da para que houvesse um rompimento com o sistema de governo e não
pura e simplesmente uma separação entre o norte e o sul do país. Haja
vista que aderiram ao movimento revolucionário, além de Pernambuco,
Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí, neste infelizmente só durou
dois dias. Lembro ainda que se não fossem as arbitrariedades do Conde
dos Arcos, a Bahia teria aderido, pois lá, a maçonaria era muito forte e a
classe comercial também. Aliás, insinuaram Pereira da Silva e sobretudo
Varnhagen que era um movimento separatista. Não o foi. Era sim contra
o sistema de governo e a tirania real. Os religiosos nos conventos e no Se-
minário detinham o conhecimento humanista, pois a imprensa era proibi-
da e a importação de livros também. Excetuavam-se aqueles com biogra-
fias de santos e a coleção de Ordens Reais. Quem fosse encontrado com
livros proibidos, particularmente contendo escritos políticos, resumindo,
com as “nefastas ideias francesas”, era processado. Já os comerciantes de
grosso trato que formavam a burguesia, embora sem o conhecimento e a
cultura do clero, a convivência com eles e a maçonaria facilitavam entro-
samento político, pois quase todos eles eram maçons.

202 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):197-205, set./dez. 2017.


Revolução Republicana em Pernambuco de 1817
Burguesia e maçonaria versus aristocracia

Como Portugal não permitiu o surgimento de uma nobreza “brasi-


leira”, a classe que poderíamos chamar de aristocrática seria a dos gran-
des plantadores de cana-de-açúcar, os senhores de engenho. Estes eram
reis e senhores em suas terras e extremamente conservadores. Aliás, em
meados do século XIX, o futuro marquês do Paraná, escrevendo ao Con-
selheiro Saraiva, cuja carta encontra-se aqui no IHGB, diz textualmente
sobre eles: “conheci vários. São uns verdadeiros senhores feudais.” For-
mavam uma classe que dependia totalmente da mão de obra escrava. Por
isso os grandes comerciantes trataram de importar de Angola, do Benim,
de Moçambique e de outros locais em África, esses infelizes negros, as
máquinas da época. Essa aristocracia rural foi egressa em parte daqueles
comerciantes de meados do século XVIII que adquiriram propriedades
que estavam de fogo morto, como forma de nobilitar-se. Poucos advi-
nham das famílias do início da colonização. O dinheiro havia mudado
de mãos. Porém, no início do século XIX, havia homens esclarecidos
nessa classe. Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, capitão-mor
e coronel, como já disse, era senhor do engenho Suassuna e outros mais,
onde havia instituído uma loja maçônica que pouco durou. Denunciada,
sofreu devassa e foi extinta. Ele e seus irmãos José e Luís foram os mais
importantes membros da velha aristocracia pernambucana a participar
da Revolução. Creio que tenha sido por serem maçons, e possuírem um
nível de instrução acima da média. Encontramos ainda Manuel Correia
de Araújo, que fez parte da Junta Governativa. Quanto a nossa maço-
naria, que era inspirada nos princípios da Revolução Francesa de 1789,
necessário é dizer que, para o retrógrado governo absolutista português,
ser maçom soava como um inimigo público número um, mais ou menos
como os comunistas para a ditadura militar dos anos 1960. A maior parte
da sociedade dita aristocrática era inculta, havendo muitos membros que
não sabiam ler, nem escrever. Talvez, quem sabe, fosse esse o motivo de
um conservadorismo tão exacerbado e reacionário. Além dos Suassunas,
o rico e último morgado do Cabo, Francisco de Paes Barreto, futuro Mar-
quês do Recife, embora fosse bem jovem na época da Revolução, nela
tomou parte.

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Reinaldo Carneiro Leão

Gostaria de esclarecer que o movimento rebentou antes do tempo.


A data marcada era a Páscoa. Por conta dessa precipitação, as articulações
foram prejudicadas. Já havia insurgentes em espera na Bahia, porém o
movimento foi prejudicado pela prisão e consequente suplício do padre
Roma. Denomino essa Revolução de 1817 de burguesa e maçônica, pois
se não fosse o apoio financeiro do alto comércio e a teia de informantes
de que dispunham os maçons, ela teria sido abortada antes da eclosão.

Quanto à velha aristocracia pernambucana, assistiu ao desenrolar do


movimento em profundo silêncio e muito provavelmente assustada. Se
não aderiu, tampouco foi abertamente contra. Isto só aconteceu na nossa
comarca das Alagoas, por conta do ouvidor-mor. Não foi à toa que como
castigo pela Revolução, Dom João tenha mutilado Pernambuco e trans-
formado Alagoas em província.

Geralmente em março com as primeiras chuvas, era iniciado o plan-


tio. Acreditamos que os senhores de engenho e suas famílias estivessem
em suas propriedades. É lamentável que não tenham aderido a Revolu-
ção. O seu conservadorismo era extremo. Na região de Igarassu ainda
encontramos três irmãos Souza Bandeira, cujo historiador da família, An-
tônio Herculano, seu sobrinho, os chama de loucos revolucionários.

Creio que tão pouca adesão não aconteceu no Rio Grande do Norte
e na Paraíba. No primeiro, o senhor do engenho Cunhaú e proprietário
de grandes glebas de terra, André de Albuquerque Maranhão, aderiu e
infelizmente preso e ferido, morreu à míngua sem nenhuma assistência.
Na Paraíba duas figuras se sobressaíram: Manuel Florentino Carneiro da
Cunha e o padre Felipe Rodrigues Campello. O primeiro, proprietário do
engenho Abreus, imenso latifúndio, e o segundo, pernambucano, vigário
da Vila Nova da Rainha, hoje Campina Grande. Este cumpriu pena na
Bahia e ao ser solto foi eleito deputado às Cortes de Lisboa.

Ao estudar detidamente a Revolução que, três anos antes da Revo-


lução do Porto, estabeleceu uma Lei Orgânica, base de uma futura Cons-
tituição, lamento a ausência das classes produtoras no movimento. Che-

204 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):197-205, set./dez. 2017.


Revolução Republicana em Pernambuco de 1817
Burguesia e maçonaria versus aristocracia

gamos à conclusão que ela foi eclodida pela então burguesia comercial, a
qual, quase em sua totalidade, era constituída por franco-maçons, com a
imensa colaboração dos religiosos, donos do conhecimento mais avança-
do e moderno para a época.

Esse arraigado estamento de que “ser senhor de engenho era ser ser-
vido” provocou nova aquisição de terras pelos comerciantes. No final de
sua vida, Gervásio Pires Ferreira, em 1826, adquiriu dois engenhos em
Jaboatão: Caxito e Bulhões, como uma maneira de nobilitar-se.

Em 1817 foi a primeira vez, em todo o vasto império português, que


várias províncias do Brasil, ao menos durante 75 dias, tornaram-se verda-
deiramente independentes do governo central e livres da tirania real. Os
portugueses só nos deixaram definitivamente em outubro de 1821, quan-
do o governador Luiz do Rego e suas tropas retiraram-se para Portugal.
Pernambuco ficou, portanto, livre onze meses antes do 7 de setembro, e
Gervásio Pires foi eleito presidente da Junta Governativa.

Texto apresentado em maio/2017. Aprovado para publicação em se-


tembro/2017.

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A Revolução de 1817 e a unidade nacional do Brasil

207

A REVOLUÇÃO DE 1817 E A UNIDADE NACIONAL


DO BRASIL
THE REVOLUTION OF 1817 AND THE NATIONAL UNIT
OF BRAZIL
Vamireh Chacon1
Resumo: Abstract:
A Revolução de Pernambuco ao Nordeste em The Revolution of 1817 in Pernambuco in the
1817 foi detida no Ceará, ao Norte, e na Bahia northeast of Brazil was held back in Ceará
ao Sul, portanto tinha objetivos nacionais e não in the north, and in Bahia in the south. It was
era separatista. Ela surgiu no Recife porque era therefore intended to spread all over Brazil and
o segundo ou primeiro porto de exportação do had no separatist claims. It emerged in Recife
Brasil, uma riqueza de açúcar, depois algodão, because the city had been a major port of export
vindo desde o tempo das invasões holandesas no for sugarcane and cotton since the period of the
século dezessete. O emissário internacional da Dutch invasions in the seventeenth century. The
Revolução de 1817 nos Estados Unidos falava international emissary of the Revolution of 1817
em nome do Brasil e não enquanto nordestino. to the United States spoke on behalf of Brazil
and not as a Northeastern.
Palavras-chave: Revolução nacional de 1817; Keywords: National revolution of 1817; non-
não sepatista; emissário internacional separatist, international emissary.

A historiografia fundamenta-se em última e melhor instância nas


fontes primárias e secundárias; fontes primárias são os documentos de
quem pessoalmente viu ou fez o fato histórico, e as fontes secundárias de
quem não fez nem viu, porém consulta e escreve com estes documentos,
pode inclusive aumentá-los ao entrevistar os autores e testemunhos.

As extensas fontes primárias de preparação e desempenho da Re-


volução Pernambucana, Nordestina e Brasileira de 1817 são os Autos do
processo para julgamento dos rebeldes de Pernambuco, participantes da
rebelião de 1817 comentados por José Honório Rodrigues, e a História
da revolução de Pernambuco de 1817, por Muniz Tavares, um dos seus
poucos sobreviventes líderes, principal fundador e primeiro presidente
do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Entre
suas edições estão as com Notas bibliográficas e documentais pelo histo-
riador e diplomata brasileiro Oliveira Lima, que legou estes e outros tex-

1  –  Professor emérito da Universidade de Brasília. Sócio correspondente do Instituto


Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Vamireh Chacon

tos muito raros de sua propriedade à biblioteca da Universidade Católica


da América em Washington D.C., onde compõem uma coleção própria.

Também testemunhos pessoais são Viagens no Brasil publicadas em


livro em Londres, 1816, com longos relatos daquele Pernambuco pré-
-revolucionário pelo viajante nascido de pais ingleses em Portugal, Henry
Koster, depois residente no Recife; e Notas dominicais de autoria do via-
jante francês Louis-François de Tollenare, comentadas por Léon Bourdon
em francês em Paris, 1971, depois de ter sido consultadas por Ferdinand
Denis para seus livros sobre o Brasil publicados nas décadas de 1820 e
1830. As Notas dominicais estão em português desde a tradução ao portu-
guês no volume X, 1904, da Revista do Instituto Arqueológico, Histórico
e Geográfico Pernambucano, comentadas por Francisco Adolfo de Var-
nhagen na sua História Geral do Brasil em vários volumes desde 1854.

O dia a dia da Revolução de 1817 está em pormenores de história


diária nos Anais Pernambucanos de Pereira da Costa.

As origens da Revolução Pernambucana, Nordestina e Brasileira em


1817 provêm desde o início da consciência de brasilidade na expulsão do
domínio holandês pelas batalhas dos Guararapes em 1646 e 1648 às se-
guintes etapas. Evaldo Cabral de Mello, também historiador e diplomata,
irmão do poeta e diplomata João Cabral de Mello, demonstrou estas e
outras conexões nos seus livros Olinda restaurada, Rubro veio e A outra
independência.

A Revolução Pernambucana e Nordestina de 1817 terá sido separa-


tista?

A Revolução Pernambucana e Nordestina de 1817 tentou desde o iní-


cio ser de todo o Brasil, ao mobilizar Pernambuco, Paraíba e Rio Grande
do Norte, inspirando o Ceará de Bárbara de Alencar, no que foi impedida
pela pronta repressão colonial portuguesa, e tentou a adesão da Bahia ao
enviar-lhe o padre Roma preso quando desembarcava em Salvador. José
Inácio Ribeiro de Abreu e Lima tinha aquele cognome por ter sido orde-
nado em Roma pelo papa Pio VII, depois o secularizando e vindo a ser

208 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):207-216, set./dez. 2017.


A Revolução de 1817 e a unidade nacional do Brasil

pai de José Inácio de Abreu e Lima, então rebelado capitão do Exército


português e por ele obrigado a presenciar o fuzilamento do próprio pai,
conseguindo fugir e tornar-se um dos generais de Bolívar na libertação de
países da América Hispânica.

A riqueza do açúcar e a consciência intelectual e política da necessi-


dade de independência têm uma longa e enraizada história. As causas da
Revolução de 1817 provêm dos tempos anteriores em várias etapas.

Pernambuco dispunha de grande prosperidade econômica e desper-


tar cultural graças à importância mundial da sua produção do açúcar, des-
de quando o transformara de remédio comprado em farmácia a um dos
primeiros produtos de consumo em massa. Grande produção vindo da
Zona da Mata de Pernambuco e Recôncavo da Bahia, como se vê nas
Confissões da Bahia, quando da Primeira Visitação do Santo Ofício às
Partes do Brasil em 1591-1592; explicadas em pormenores quantitativos
e qualitativos quanto às Confissões de Pernambuco (1594-1595) por José
Antônio Gonsalves de Mello. Muitos estrangeiros, ligados à exportação
do açúcar, já residiam em Olinda, além dos portugueses, brasileiros nati-
vos e dos primeiros escravos africanos.

O relatório de Jan Andries Moerbeck em 1624, Motivos por que a


Companhia das Índias Ocidentais deve tirar ao Rei da Espanha a terra
do Brasil, constata ali produção valendo cinquenta e três tonéis de ouro.

Esta riqueza foi que atraiu o interesse da Holanda na sua Companhia


das Índias Ocidentais e possibilitou a importância da administração do
príncipe João Maurício, conde de Nassau-Siegen, em Pernambuco. Por-
menorizada por Barléus na sua história Rerum per octenium in Brasilia.

No seguinte século, Ambrósio Fernandes Brandão, no seu Diálogo


das grandezas do Brasil, 1618, declara a capitania de Pernambuco “a
primeira de todas, e logo a da Bahia, a quem se dá o segundo lugar, posto
que seja a cabeça de toda a Província do Brasil...” Pois, “Dentro da vila de
Olinda habitam inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colma-
das de mercadorias de muito preço, de toda a sorte, em tanta quantidade

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):207-216, set./dez. 2017. 209


Vamireh Chacon

que semelha a uma Lisboa pequena”. “A vila é assaz grande, povoada de


muitos bons edifícios e famosos templos.”

Foi esta riqueza que permitiu a expulsão dos franceses de São Luís
em 1615 pelas tropas terrestres, vindas de Pernambuco, comandadas pelo
Albuquerque daí em diante legando aos seus descendentes o nome Albu-
querque Maranhão. Muito significativa é a senha “Açúcar” das rebeliões
levando às finais vitórias das batalhas dos Guararapes contra a ocupação
holandesa em 1646 e 1648.

Em 1710 esta riqueza consolidou a consciência e vontade de inde-


pendência primeiro proclamada em Olinda por Bernardo Vieira de Melo
na sua Câmara Municipal, logo reprimida.

No mesmo século, o então todo poderoso ministro do Reino de Por-


tugal, o Marquês de Pombal, também interessado na enorme riqueza açu-
careira, determinou em 1759 a criação da Companhia Geral de Pernam-
buco e Paraíba, para provento de Portugal e incrementar a Amazônia por
meio da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão criada em
1780 com iniciais recursos principalmente do açúcar pernambucano.

Nos começos do século XIX, em 1805, Pernambuco exporta ao ex-


terior do Brasil quase tanto quanto o Rio de Janeiro. Quatro anos depois,
1809, Pernambuco vem no primeiro lugar, a Bahia em segundo e o Rio
de Janeiro em terceiro. De 1814 a 1821 e em 1823, permanece esta clas-
sificação. Entre 1780 e 1826 a exportação do algodão é até maior do que
a do açúcar.

Caetano Francisco Lumacchi de Mello, “escrivão proprietário da


Meza Grande de Pernambuco”, publicou os Balanços da Alfândega de
Pernambuco em Londres por Diego Whiting, 1809, anexos ao ofício do
governador de Pernambuco ao ministro e secretário de Estado dos Negó-
cios da Fazenda e presidente do Real Erário então no Rio de Janeiro com
Dom João VI.

210 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):207-216, set./dez. 2017.


A Revolução de 1817 e a unidade nacional do Brasil

Era muito rica a situação de Pernambuco quando da Independência


do Brasil em 1822. Em 1823 frequentavam o porto do Recife 343 navios
com cargas vindas de Portugal, Hamburgo, Amsterdã, Inglaterra, França,
Espanha, Gênova e Trieste antes da unificação italiana, Estados Unidos,
Buenos Aires e Costa d’África, além do comércio brasileiro com a Bahia,
Rio de Janeiro, Santos e pelos portos litorâneos até o Rio Grande do Sul.

Esta documentação e seus pormenores estão no Rezumo da impor-


tação da província de Pernambuco, extrahido do balanço geral de 1823,
Pernambuco, na Typ. De C. da C., anexo ao ofício do governador interino
da província de Pernambuco ao ministro e secretário de Estado dos Ne-
gócios da Fazenda no Rio de Janeiro já capital do Brasil independente.

Não deve surpreender a presença de militares franceses bonapartis-


tas entre os conspiradores de 1817, interrogados nos Autos do processo
para julgamento dos rebeldes de Pernambuco, participantes da rebelião
de 1817. Os portos da França estão entre aqueles grandes importadores
de açúcar e algodão pernambucanos em troca de mercadorias francesas.

Em 1816, em meio a toda prosperidade, houve uma retração da eco-


nomia por motivo de seca no sertão, diminuindo momentaneamente a
produção e a exportação do algodão. Este conjuntural descontentamento
setorial logo se somou ao permanente protesto dos produtores açucarei-
ros, situados na Zona da Mata onde não há longas estiagens, contra o
imposto cobrado em Pernambuco para financiar a iluminação pública da
cidade do Rio de Janeiro.

Causas econômicas somaram-se politicamente às intelectuais. A


prosperidade da economia desde fins do século XVI contribuíra à pre-
sença de convento franciscano, mosteiro beneditino e colégio jesuíta em
Olinda, no qual o padre Antônio Vieira, vindo da Bahia, lecionou e pro-
nunciou algumas das suas primeiras prédicas. Também de Salvador ao
Recife vieram Gregório de Matos, com seus irreverentes poemas, e Bento
Teixeira autor do poema épico Prosopopeia em 1601. As vitórias contra
os holandeses nos meados deste século despertaram os primeiros ímpetos

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Vamireh Chacon

de independência contra a Holanda e também na primeira convicção de


idêntica possibilidade diante de Portugal.

Esta consciência foi aumentada pela instalação do Seminário dioce-


sano de Olinda em 1800, pelo seu bispo Azeredo Coutinho no mesmo edi-
fício provindo do colégio jesuíta, onde o padre Antônio Vieira lecionara e
pronunciou alguns dos seus primeiros sermões.

Azeredo Coutinho, entre outras inovações, acrescenta o ensino do


idioma francês e de história natural ao tradicional currículo de latim e
filosofia medieval. História natural incluía biologia e botânica, já então
em expansão e aprofundamento. Pelo aprendizado do francês os antigos
professores e os jovens seminaristas passavam a ter direto acesso à lei-
tura tanto do anticlerical, porém deísta Voltaire, quanto ao ateu Diderot.
A leitura dos enciclopedistas ia desde as ciências naturais à filosofia dos
seus materialistas.

Foram destruídas pela repressão colonial as bibliotecas dos revo-


lucionários clericais e laicistas pernambucanos e nordestinos de 1817,
porém os seus comportamentos políticos concretos demonstram leituras
subversivas congêneres às dos então recentes inconfidentes mineiros re-
veladas pelas pesquisas de Eduardo Frieiro sobre O diabo na bibliote-
ca do cônego, o padre Luís Vieira da Silva, cônego da Sé de Mariana.
Pesquisas estendidas pelo brasilianista americano E. Bradford Burns aos
acervos dos livros de laicos inconfidentes como se vê no seu artigo “O
iluminismo em duas bibliotecas do Brasil colônia” publicado na revista
Universitas, Salvador (Bahia), janeiro-agosto, 1971.

A Revolução de 1817 veio a ser Revolução de padres e mações. En-


tre suas preparações está o discutido Areópago de Itambé de Arruda Câ-
mara em 1796, antes participante pessoal da Revolução Francesa quando
estudante na Universidade de Montpellier, e a ele ligada Conspiração ou
Conjuração dos Suassunas em 1801. São as mais próximas preparações
da Revolução de 1817 com raízes mais antigas e profundas na história de
Pernambuco ao Brasil.

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A Revolução de 1817 e a unidade nacional do Brasil

A Revolução de 1817, começada e concluída em Pernambuco, esten-


deu-se à Paraíba e ao Rio Grande do Norte; quanto a Alagoas, ela então
pertencia a Pernambuco, e foi tentada no Ceará por Bárbara de Alencar,
logo reprimida pelas autoridades portuguesas, outro tanto na Bahia quan-
do do desembarque do emissário padre Roma. Lembre-se de que Salva-
dor foi durante mais tempo capital do Brasil do que o Rio de Janeiro e era
recente essa transferência. Com a adesão do Ceará, poderia estender-se ao
norte e ao sul pela Bahia. Está claro o objetivo nacional deste movimento
independentista brasileiro, muito além de pernambucano e nordestino.
Daí as proclamações e apelos do Recife, início e término do movimento,
se iniciaram dirigidas ao Brasil e limitando-se a Pernambuco quando o
Recife passou a ser o seu último baluarte combatente armado.

A bandeira de 1817 tinha três estrelas representando as três regiões


onde a Revolução de 1817 se implantara por menos ou mais tempo: Per-
nambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Passou a uma estrela quando
veio a ser só de Pernambuco.

A única bandeira original de 1817, remanescente da Revolução, está


representada pela aquarela levada do Recife pelo emissário Cruz Cabugá,
por ele entregue em pessoa ao secretário de Estado dos Estados Unidos,
Richard Rush, em Washington D.C., conservada no seu acervo documen-
tal. Seu desenho e cores foram recuperados pelo diplomata brasileiro José
Augusto Ferreira da Costa, por ele enviados ao Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro em carta de 20 de novembro de 1886.

A Revolução pernambucano-nordestina de 1817 era tão brasileira


que veio do Espírito Santo um dos seus líderes, Domingos José Martins.
No início desta Revolução estava o paulista Antônio Carlos, irmão de
José Bonifácio, principal organizador da Independência brasileira.

Outra prova concreta do objetivo brasileiro dos revolucionários


não só pernambucanos de 1817 está na missão de Antônio Gonçalves da
Cruz, o Cabugá, aos Estados Unidos para obter o reconhecimento inter-
nacional da independência do Brasil e não só de Pernambuco. Chegou a

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Vamireh Chacon

ser recebido pelo secretário de Estado Richard Rush. O reconhecimento


não se realizou porque a Revolução permaneceu no poder durante setenta
e cinco dias, o que não aconteceu com a Inconfidência Mineira, a Flumi-
nense e a Conjuração dos Alfaiates na Bahia, as quais não chegaram a
instalar governo.

Os mártires, torturados e condenados à morte, foram de um, o Tira-


dentes na Mineira, a alguns na Baiana e a muitos na de 1817 dos pernam-
bucanos aos nordestinos em geral.

O embaixador brasileiro Gonçalo de Mello Mourão pesquisou-a no


seu livro A Revolução de 1817 e a História do Brasil (Um estudo de
história diplomática) por mim prefaciado. O nome da Avenida Cruz Ca-
bugá, ligando o Recife a Olinda, comemora esta missão e passa diante do
portão do British Cementery, denominado Cemitério dos Ingleses pelos
brasileiros, onde está sepultado o general Abreu e Lima, participante da
Revolução de 1817, filho do mártir padre Roma e general de Bolívar na
libertação da América Hispânica. O que demonstra o sentido internacio-
nal de 1817.

O sentido nacional de 1817 está reconhecido no grupo de estátuas de


bronze Os Revolucionários Pernambucanos de 1817 numa das laterais do
Monumento à Independência do Brasil às margens do Ipiranga em São
Paulo.

Limitar 1817 a um movimento separatista significa diminuir sua im-


portância política, econômica e cultural reconhecida nacional e interna-
cionalmente. Em 1821, também antes da independência do Brasil, Per-
nambuco foi mais uma vez o primeiro a proclamá-la da Junta de Goiana
ao governo instalado por Gervásio Pires Ferreira, expulsando a guarnição
militar portuguesa do Batalhão do Algarve e o governador colonial portu-
guês Luís do Rego pela Convenção de Beberibe.

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A Revolução de 1817 e a unidade nacional do Brasil

A precedência de Pernambuco em 1817 é na independência antes de


1822 e também antes da república de 1889.

Outras precedências pernambucanas são a do federalismo na Re-


volução de 1824, estudada desde Ulisses Brandão, A Confederação do
Equador (1824-1924), edição comemorativa do seu primeiro centenário,
e a do socialismo na de 1848, outro tanto por Gilberto Freyre em Um
engenheiro francês no Brasil sobre Louis-Léger Vauthier, Amaro Quin-
tas (O sentido social da Revolução Praieira) e por mim na História das
ideias socialistas no Brasil.

Todas elas com visão e propósito nacionais e internacionais. A alusão


ao Equador nada tem a ver com o país independente em 1830, portanto
seis anos após o movimento pernambucano-nordestino-brasileiro, e sim
à linha do Equador terrestre, símbolo do Brasil tropical. Mártir maior de
1817 e 1824 é Frei Caneca, encarcerado em 1817, fuzilado por sua reinci-
dência em 1824, autor do jornal-revista ideológico democrático radical O
Typhis Pernambucano, alusão ao timoneiro dos argonautas.

Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará pagaram caro


sua participação de 1817 em sangue e patrimônio dos revolucionários
predecessores. Na Bahia, a repressão foi antecipada pelo governador
Conde dos Arcos, antes o último vice-rei do Brasil, contra os simpatizan-
tes e potenciais aderentes conforme Luís Henrique Dias Tavares refere na
sua História da Bahia.

Contra a Revolução de 1817 se opunha o que a historiadora Ma-


ria de Lourdes Viana Lyra pesquisou no seu livro A utopia do poderoso
império, projetada pela dinastia Bragança da portuguesa de Dom João
VI à brasileira de Dom Pedro I e Dom Pedro II. Suas origens e mais
profundos, pesquisei no meu prefácio à reedição brasileira da biografia
O Conde de Linhares, de autoria do Marquês do Funchal.

O Conde dos Arcos acreditava neste projeto, por isso era contra a
independência com república no Brasil em 1817.

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Vamireh Chacon

Daí em diante cumpre também no Brasil republicanizar a república,


democratizar a democracia e internacionalizá-la com todos os povos e
nações fiéis à liberdade, igualdade e solidariedade fraterna com responsa-
bilidade pessoal e social.

Texto apresentado em maio/2017. Aprovado para publicação em se-


tembro/2017.

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A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso
e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

217

II – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS

A IGREJA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DO BOM SUCESSO


E OS RETÁBULOS ATRIBUÍDOS AO ALEIJADINHO
THE MATRIX CHURCH OF OUR LADY OF GOOD SUCCESS AND
THE RETABLES ATTRIBUTED TO ALEIJADINHO
Aziz José de Oliveira Pedrosa1
Resumo: Abstract:
O presente texto traz ao debate fragmentos This paper brings up for debate fundamental
fundamentais da história da arte colonial luso- fragments of Portuguese-Brazilian colonial
-brasileira, subsidiados no estudo das primeiras art history based on the study of the first works
obras atribuídas ao artista Antônio Francisco attributed to the sculptor Antônio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho. É de conhecimento que Lisboa, known as Aleijadinho. It is common
seus primeiros trabalhos foram realizados na knowledge that his first works were sculpted for
Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Suces- the Matrix Church of Our Lady of Good Success,
so, em Caeté. No entanto, esse ciclo da atuação in the city of Caeté. However, this period of
do artista ainda é cercado de dúvidas e aponta- activity in the artist´s life is still shrouded in
do por alguns autores como o momento em que doubt. Some scholars contend that he was still
Aleijadinho passava por aprendizado. Nesse an apprentice at the time. We aim to analyze here
sentido, este texto tem como objetivo analisar the cultural, artistic and social environment he
o contexto cultural, artístico e social no qual, was exposed to, since little is known about it.
acredita-se, esse renomado artista foi inserido Next, the paper provides a critical analysis of
no universo das artes, uma vez que o silêncio Aleijadinho’s works in Caeté.
da documentação não esclarece tais fatos. Em
sequência, será realizada a análise crítica do
acervo atribuído ao Aleijadinho, existente em
Caeté-MG.
Palavras-chave: Aleijadinho. Matriz de Caeté. Keywords: Aleijadinho; Caeté’s matrix church;
Retábulo. Obras. retable; works.

Notas introdutórias
Os reflexos das tendências artísticas do Barroco e do Rococó, inci-
dentes na então Capitania de Minas Gerais, durante o século XVIII, foram
frutos de processos econômicos que promoveram profundas modifica-
ções urbanas e sociais, ocasionadas pela expansão da atividade minerado-
ra que fomentou a circulação de renda e de pessoas na região, substratos
1  –  Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade do Estado de Minas Gerais.
Professor de História Crítica da Arte e do Design.

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Aziz José de Oliveira Pedrosa

elementares para a promoção da cultura local. É nessa narrativa histórica


que se encontrava a produção arquitetônica sacra, notável materialização
dos áureos tempos de crescimento financeiro no território mineiro.

Em meio ao despontar dessa efervescência urbana em Minas, des-


lanchou-se o precioso ciclo da arte colonial desenhado por arquitetos,
entalhadores, pintores e demais artífices que se dirigiram para as terras do
ouro, atraídos pelas crescentes oportunidades de trabalho. Esses homens
foram os responsáveis pela elevação dos mais belos testemunhos de uma
arte erigida, a partir de referências extraídas do ambiente arquitetônico e
artístico setecentista português, em que se destacou a produção da talha,
da pintura e da escultura devocional, que nas edificações religiosas de
Minas expressam o esplendor das artes barroca e rococó. Assim, a orna-
mentação transformou o espaço sacro, revestindo paredes com formas
esculpidas nas mais nobres madeiras disponíveis, iluminando os tetos
com pinturas, formas, cores e mensagens capazes de inserir o crente no
universo do sagrado.

A próspera expansão do mercado de arte em Minas possibilitou que


artífices portugueses, principalmente os que se dedicaram à confecção
da talha, granjeassem prestígio à época em que estiveram ativos. Encon-
tram-se, nesse seleto grupo, os afamados Francisco Xavier de Brito e José
Coelho de Noronha. Tal quadro histórico foi assolado por mudanças a
partir da segunda metade do século XVIII, quando despontaram oficinas
que viabilizaram a formação de mão de obra artística, composta por ho-
mens nascidos na então Capitania. Essa é a situação em que foi gerido
o aprendizado daquele que se tornou um dos artistas mineiros de maior
projeção: Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

A produção do Aleijadinho foi exaustivamente examinada pela his-


toriografia da arte colonial luso-brasileira. Tais investidas iniciaram-se ao
longo do século XVIII, por volta de 1790, quando Joaquim José da Silva2
redigiu um texto em que a figura do artista foi realçada em meio a outros

2  –  BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record,


1983. v. 2, pp. 381-382.

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A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso
e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

nomes operantes na fábrica da arquitetura e da escultura mineira. A partir


desse marco, o expressivo interesse que circunda a atuação do Aleijadi-
nho suscitou o despertar de análises que tiveram como orientação elencar
trechos referentes à sua vida e obra, como as investigações de Rodrigo
José Ferreira Bretas3; dos técnicos da Diretoria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional4; de Germain Bazin5; de Sylvio de Vasconcellos e Ce-
lina Borges Lemos6; de Myriam de Andrade Ribeiro de Oliveira, Olinto
Rodrigues dos Santos Filho e Antônio Fernando Batista dos Santos7; e, de
Ivo Porto de Menezes8.

Sublinha-se que, mesmo diante de todas as contribuições advindas


dessas pesquisas, algumas questões referentes ao início da atividade do
Aleijadinho são ainda cercadas por incertezas, visto não ter sido locali-
zada documentação primária que fundamente novas discussões sobre o
caso. Essa lacuna limita o pesquisador a manusear hipóteses e a proje-
tar atribuições interpostas por intermédio de métodos comparativos, que
possibilitariam analisar e confrontar as obras documentadas do artista
com aquelas em que as características escultóricas, formais e estilísticas
indicam sua possível intervenção.

Imersos em análoga situação encontram-se trabalhos que, provavel-


mente, foram realizados nos momentos iniciais da atividade de Antônio
Francisco Lisboa, mas cuja inexistência de registros impede que sejam
efetuadas demonstrações precisas a respeito desses objetos. Exemplifi-
cando-se essa assertiva, enumeram-se obras de talha a ele atribuídas na
Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso (Caeté), apontadas pe-
3  –  MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Antônio Francisco Lisboa: o Aleijadi-
nho. Publicações da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 15, 1951.
4 – Ibid., p. 10.
5  –  BAZIN, Germain. O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Rio de Janeiro:
Distribuidora Record, 1971.
6  –  VASCONCELLOS, Sylvio de; LEMOS, Celina Borges. Sylvio de Vasconcellos: ar-
quitetura, arte e cidade: textos reunidos. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 2004.
7  –  OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de; SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos;
SANTOS, Antônio Fernando Batista dos. O Aleijadinho e sua oficina: catálogo das escul-
turas devocionais. 2 ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2008.
8  –  MENEZES, Ivo Porto de. Antônio Francisco Lisboa. Belo Horizonte: C/Arte, 2014,
pp. 108-110.

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Aziz José de Oliveira Pedrosa

los especialistas como resultantes de sua inserção inicial na arte da talha.


Todavia, apesar de consagrados pela crítica de arte, esses apontamentos
não foram devidamente examinados para que se pudesse compreender,
de fato, qual pode ter sido a contribuição do Aleijadinho na fatura dos
retábulos do templo, e qual a influência repercutida na produção de exem-
plares posteriores que a ele foram confiados na elaboração do risco e na
execução dos serviços. Nesse sentido, este texto tem como objetivo anali-
sar as peças retabulares da Matriz de Caeté, atribuídas a Antônio Francis-
co Lisboa, a partir do confronto com outras obras por ele executadas, de
modo que se possa examinar a sua participação na configuração formal e
estética dos retábulos caeteenses.

O Aleijadinho em Caeté e a historiografia da arte: atribuições e


hipóteses
A valoração da obra de Antônio Francisco Lisboa (1738 – 1814)9
despontou no século XVIII, no ano de 1790, quando Joaquim José da
Silva10 emitiu as primeiras linhas destacando a personalidade do artista
no contexto da arte colonial mineira. As memórias colhidas da crônica do
então segundo vereador de Mariana foram, oportunamente, debatidas por
Rodrigo José Ferreira Bretas, que reuniu, em 1858,11 os primeiros estudos
sobre a vida e ocupação do Mestre. Esse texto possui indiscutível rele-
vância para a historiografia da arte luso-brasileira, visto que possibilitou
o desmembrar de dezenas de investigações subsequentes. A partir desses
ensaios basilares e da investida de pesquisadores no correr da primei-
ra metade do século XX, a personalidade artística do Aleijadinho pôde
ser legitimada pelos funcionários da Diretoria do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional que, no ano de 1951,12 republicaram a conhecida
monografia de Bretas, acrescida de notas produzidas por Rodrigo Melo
Franco de Andrade, Lucio Costa e Judith Martins, com acréscimo de co-
mentários, discussões sobre a documentação inédita por eles identificada

9  –  Cf. MENEZES, 2014, pp. 108-110.


10  –  BAZIN, Germain. 1983, v.2, pp. 381-382.
11  –  MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE, op. cit.
12 – Ibid., p. 10.

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A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso
e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

e apontamentos de possíveis obras realizadas pelo Aleijadinho, das quais


não se tinham atribuições determinadas que pudessem ser devidamente
assinaladas no referido texto.

Entretanto, desperta a atenção que, apesar de enfatizada a obra de


Antônio Francisco Lisboa, sobretudo a partir da descrita publicação, pou-
co se avançou na averiguação das atribuições e levantamentos realizados
pelos técnicos da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Essa interposição surge uma vez que, por intermédio do conteúdo elen-
cado na supracitada fonte, foi semeada a primeira indicação da possível
intervenção do artista na fatura de um retábulo da Matriz de Nossa Se-
nhora do Bom Sucesso (Caeté)13. A discussão preliminar do referido livro
sinalizou que essa designação foi subsidiada por “[...] autoria apurada
por exame e confronto das peças”14, sem, no entanto, especificar a peça
a que se referiam. Respostas para o caso despontaram na seleção de fo-
tografias, onde foi estampada a imagem do retábulo de São Francisco de
Paula, indicando ser esse o objeto a que os autores delimitaram autoria
ao Aleijadinho.

Acredita-se que a atribuição acima relacionada foi proferida por


Lucio Costa, cuja atuação isenta apresentações, visto ser conhecido seu
relevante protagonismo para o estudo, a análise e a divulgação da arte
luso-brasileira. A crença de ser de Costa as referidas ponderações pode
ser atestada em artigo posterior, datado de 197815, em que o autor retomou
a ideia inicial da cooperação do Aleijadinho em Caeté.

As indicações referentes à participação do Aleijadinho nas oficinas


de talha da Matriz de Caeté não esclareceram qual foi sua lídima con-
tribuição na fábrica da ornamentação do templo. Discussões a esse res-
peito aconteceriam apenas mais tarde, por intermédio das investigações
de Germain Bazin que, no ano de 1956, publicou o livro L’architecture

13 – Ibid., p. 61.
14 – Ibid., loc. cit.
15  –  COSTA, Lucio. Antônio Francisco Lisboa: o Aleijadinho. In.: Museu de Arte Mo-
derna do Rio de Janeiro. Aleijadinho. Rio de Janeiro,1978, pp. 5-9.

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Aziz José de Oliveira Pedrosa

religieuse baroque au Bresil16, em que reavaliou a trajetória de Antônio


Francisco Lisboa e reafirmou ser possível que ele tenha deixado objetos
na igreja. Essa consideração é derivada de procedidas análises que busca-
vam compreender a assimilação inicial do Rococó na decoração interna
da mencionada edificação religiosa, cuja ausência de relações com os mo-
tivos que vigoraram no universo estético português levou o pesquisador a
indagar se seriam essas peças quocientes do fazer de um mestre português
recém-imigrado para a colônia brasileira17. Em meio a esses questiona-
mentos, Bazin (1983) concluiu que o Aleijadinho foi membro das equipes
responsáveis pela fatura de alguns dos oito exemplares da nave da igreja
caeteense, atribuindo ao artista os anjos que povoam o coroamento e os
tocheiros instalados nos quartelões do retábulo de Santo Antônio, além de
mais quatro cabeças de anjos inseridas nos quartelões do retábulo de São
Francisco de Paula18. Justificou que esses relevos eram criações de um ar-
tífice que iniciava sua carreira, permeada por características escultóricas
que denunciavam a inexperiência do escultor19.

A estada do Aleijadinho em Caeté voltou a preencher os debates de


Germain Bazin no ano de 196320, quando ele organizou a versão francesa
da biografia do artista, avaliando pontos essenciais de sua vida e obra21.
Nesse ensaio, Bazin (1971) retomou as interpretações anteriormente ex-
pedidas em seu livro A arquitetura religiosa barroca no Brasil e reiterou
que, na Matriz caeteense, Antônio Francisco Lisboa esteve em aprendiza-
gem nas oficinas que executaram os retábulos de Santo Antônio e de São
Francisco de Paula, construídos a cargo da supervisão do entalhador José
Coelho de Noronha, que respondeu pelo período de instrução do jovem
Aleijadinho em Caeté22.

16  –  Obra traduzida para a língua portuguesa em 1983 (Cf. BAZIN, 1983).
17 – BAZIN, Germain. Op. cit, p. 350.
18 – Id., 1971, p. 299.
19 – Id., 1983, v. 1, p. 350.
20 – BAZIN, Germain. 1963.
21  –  Livro esse que, por sua vez, foi publicado em língua portuguesa no ano de 1971. Cf:
BAZIN, Germain. O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Rio de Janeiro: 1971.
22 – BAZIN, Germain. 1971, p. 115.

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A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso
e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

É incerto demarcar as motivações iniciais que nortearam a discussão


de Germain Bazin, pois não foram listadas as referências que embasaram
o autor em suas prescrições, valendo-se, apenas, de delimitações que o
levaram a acusar a participação de Antônio Francisco Lisboa na execu-
ção de elementos esculturais do templo de Caeté. É possível que as con-
vicções do autor tenham sido subsidiadas na publicação da Diretoria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1951), onde foi imputada ao
Aleijadinho, pioneiramente, a responsabilidade pela execução de adere-
ços de talha do retábulo de São Francisco de Paula, bem como a escultura
devocional de Nossa Senhora do Carmo23. É importante destacar que a
indicação de autoria dessa peça escultórica foi contestada por Bazin nas
publicações de 198324 e de 197125, quando ele justificou não ser crível se
tratar de imagem oriunda das mãos do Aleijadinho.26 Essa afirmação em-
basa hipóteses que visam mapear a gênese das questões acentuadas por
Bazin, visto ter sido na publicação supracitada27 que a Senhora do Carmo
foi atribuída ao hábil artista. Entretanto, foi mérito do autor identificar
quais itens do retábulo de Caeté poderiam ser designados ao Aleijadinho.

Para se compreender as indicações de que Antônio Francisco Lisboa


esteve em atividade na Matriz de Caeté, é necessário relembrar as refle-
xões de Lucio Costa, redigidas para compor o catálogo do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro (1978)28, uma vez que nesse texto encontra-se
a imputação de que o artista foi o criador da traça para dois retábulos e
execução de um desses: “[...] e, ainda, em Caeté, onde deu o risco para
os retábulos da empreitada geral de Coelho de Noronha, executando o
do lado da epístola, inclusive as imagens”29. Conforme Costa (1978a), o
retábulo cujos risco e talha são devidos ao Aleijadinho é o dedicado a São
Francisco de Paula, situado no lado da Epístola30. O outro exemplar é o

23  –  MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1951, p. 61.


24 – BAZIN, Germain. 1983, v. 1, p. 350.
25 – Id., 1971, p. 299.
26 – Ibid., loc. cit.
27  –  MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1951, p. 61.
28  –  COSTA, Lucio. 1978a, p. 5-9.
29  –  Ibid., p. 7.
30  –  MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE, op. cit., p. 61.

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Aziz José de Oliveira Pedrosa

de Nossa Senhora da Conceição, até então não inserido na lista de peças


que podem ter contado com a colaboração do artista, mas que, segura-
mente, foi incluído por apresentar desenho idêntico ao de São Francisco
de Paula.

É capital o resgaste dos discursos de Bazin (1983) e de Costa (1941,


1978), a partir do momento em que se projeta analisar a provável parti-
cipação do Aleijadinho na execução dos retábulos da Matriz de Nossa
Senhora do Bom Sucesso (Caeté). Nesse âmbito, é urgente debater a pos-
sível presença do artista na igreja caeteense, servindo ele como aprendiz
sob os olhares de José Coelho de Noronha, quando esse oficial arrematou
a fatura do retábulo-mor, em 175831. Essas são discussões que evocam
inspeções não efetivadas acerca da atribuição interposta por Lucio Cos-
ta32, para quem os retábulos da nave do dito templo foram materializados
por empreitada de Coelho de Noronha.

Dentro dessas perspectivas, para estruturar a possível presença do


Aleijadinho na execução de serviços de talha na Matriz de Caeté, é pre-
cioso que sejam debatidos os fatos que delimitaram a história dessa igreja,
permeada por vãos que tornam esse afazer forçosamente complexo. As-
sim, balizam os registros que, no mês de agosto do ano de 1760, Manuel
Francisco Lisboa e o capitão-mor João de Souza Lisboa assinaram termo
como fiadores33 da obra do retábulo-mor, arrematada por José Coelho de
Noronha. Essa é uma conduta habitual no contexto do mercado de arte
religiosa mineira setecentista, mas que pode abrigar, em suas entrelinhas,
pormenores esclarecedores sobre prováveis acordos e interesses oclusos,
não especificados nos textos que regiam esses procedimentos.

É de conhecimento que, desde a data de arrematação da obra, no ano


de 1758, até o registro do termo de fiança, Noronha havia permanecido
sem fiador, o que lhe implicou receber pagamentos apenas quando con-
cluídos os serviços. Desconhece-se, contudo, o motivo que levou Manuel
31  –  Arquivo Público Mineiro. Seção Colonial. Delegacia Fiscal. Códice1075, fl. 91.
32  –  COSTA, Lucio. 1978, p.7.
33  –  ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Seção Colonial. Delegacia Fiscal. Códice1075,
fl. 127.

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e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

Francisco Lisboa a se envolver no referido termo de garantia dessa em-


preitada. No entanto, algumas hipóteses são cogitadas, entre elas a exis-
tência de prováveis relações profissionais mantidas entre eles, fornecendo
ao referido Lisboa garantias que lhe possibilitava assegurar a demanda do
entalhador.

Um segundo olhar para essa questão permite pensar que a elabora-


ção desse serviço esteve atrelada ao exercício do Aleijadinho na Matriz
de Caeté. Tal interposição surgiu diante dos apontamentos de que nessa
igreja ele teceu os primeiros movimentos de sua carreira, quando foi ini-
ciado o seu processo de aprendizagem com José Coelho de Noronha.34

Ignora-se o motivo que levou Manuel Francisco Lisboa a entregar


parte do aprendizado de seu filho à responsabilidade de Coelho de No-
ronha, considerando-se para isso que seja real a iniciação do Aleijadinho
em Caeté. Para tanto, Myriam Oliveira, Antônio Santos e Olinto Santos
Filho35 consideram, como possível explicação para o caso, que a fiação da
obra de Noronha, realizada por Manuel Francisco Lisboa, pode ter aber-
to caminhos, em situações de acordo entre eles, para que o Aleijadinho
fosse aceito como aprendiz nas oficinas de talha da Matriz. Em meio a
tudo isso, acredita-se que a escolha de Noronha como mestre de Antônio
Francisco Lisboa foi proferida a partir da fama e do prestígio profissional
de que gozava o oficial lisboeta no contexto artístico mineiro setecentista,
assegurando a Manuel Francisco Lisboa que seu filho receberia aprendi-
zado de qualidade. Referenciando-se nessas hipóteses, especula-se que a
data do registro de fiação do retábulo-mor da igreja de Caeté, 1760, foi
também o momento em que o jovem artista assentou sua presença nesse
templo.

Não foi possível, até o presente momento, identificar o nome de An-


tônio Francisco Lisboa junto à oficina encarregada da fatura do retábulo-
-mor da igreja caeteense. Tampouco os ornamentos e esculturas que com-

34  –  BAZIN, Germain. 1971, p. 96.


35  –  OLIVEIRA, Myriam Andrede Ribeiro; SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues; SAN-
TOS, Antonio Batista dos. 2008, p. 35.

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põem o exemplar traduzem o espírito escultórico que poderia sinalizar


a intervenção do artista. Tudo isso demonstra o afastamento da hipótese
sobre o seu envolvimento na execução do retábulo principal da Matriz.
Caso Aleijadinho realmente tenha se envolvido nessa obra, pode-se pen-
sar que ele serviu à produção de trabalhos preliminares, cabíveis a al-
guém que recebia as primeiras instruções no ofício da talha, escapando-se
seu nome da documentação. Por outro lado, não se descredita a suspeita,
aventada por Germain Bazin,36 de que o respeitável artífice interviu como
aprendiz na concretização de alguns retábulos da nave da igreja, entre os
últimos anos da década de 1750 e meados de 1760. Essa datação, traçada
pelo autor, foi estabelecida em conformidade com a cronologia do fazer
artístico do Aleijadinho.

Apresentados os debates acerca da introdução de Antônio Francisco


Lisboa na Matriz de Caeté, torna-se indispensável ponderar sobre as in-
ferências de que os retábulos da nave são resultados de uma empreitada
assumida por José Coelho de Noronha37. A partir dessas suposições, é lí-
cito estimar que nessa igreja estabeleceu-se um distinto canteiro de obras,
composto por artífices que se dedicavam à construção da edificação e à
produção dos retábulos que ornam seu interior. Em meio a essas oficinas,
arquitetos, entalhadores, pintores e outros profissionais de ocupações va-
riadas instituíam relações de convivência que lhes permitiam trocar co-
nhecimentos e estreitar laços de parceria.

Repara-se que os nove retábulos da Matriz de Nossa Senhora do Bom


Sucesso avultam-se no espaço da nave, devido à imponência e beleza do
conjunto que registra momentos basilares da arte da talha em Minas. No
entanto, o estudo dessas peças é de difícil concretização, visto não se
conhecer registros primários que permitam encontrar vestígios acerca das
datas e dos artistas que se envolveram na produção desses objetos. Desse
processo de ornamentação resta, apenas, o termo de arrematação da obra
do retábulo-mor, que ficou a cargo de José Coelho de Noronha, a partir

36  –  BAZIN, Germain. 1983, v. 1, p. 350.


37  –  COSTA, Lucio. 1978, p. 7.

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e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

de ato emendado no ano de 175838. A pesquisa de Aziz Pedrosa39 recorda


que esse trabalho foi proporcionado pela intervenção de oficina integrada
pelos entalhadores Amaro dos Santos, Manuel João Pereira e Manoel An-
tônio de Azevedo Peixoto.

Os aspectos morfológicos dos retábulos da Matriz caeteense sina-


lizam que eles foram produtos do envolvimento de diferentes artífices,
orientados por traças diversas que subsidiaram a concepção dessas peças.
Para o pesquisador Lucio Costa,40 esses exemplares retabulares são res-
postas de uma empreitada geral de José Coelho de Noronha. No entanto,
é difícil crer que o entalhador arrematou todas essas obras, pois é notável
que elas foram concebidas sob as influências estéticas do Rococó, cujo
repertório ornamental não era, à época, conhecido pelo entalhador, que
edificou seu fazer na gramática do estilo joanino41. Contudo, é de co-
nhecimento que os artistas mantiveram seu repertório formal e estilístico
permanentemente atualizados, por intermédio do uso de livros, gravuras
e demais fontes que utilizavam como referência42.

A participação de Coelho de Noronha em Caeté não superou o in-


tervalo entre 1758, que assinalou a arrematação da obra, a 1765, data de
seu falecimento43. Tampouco se pode inferir que ele se envolveu na pro-
dução de todos os retábulos da igreja, diante da ausência de registros que
possam sustentar essas conjecturas. Para interpretar o caso, é plausível
considerar que um ou outro oficial que auxiliou o Noronha, na obra do
retábulo-mor, pode ter se envolvido na produção de alguma peça de talha
da nave, ainda sem indicações de autoria.

38  –  Arquivo Público Mineiro. Seção Colonial. Delegacia Fiscal. Códice1075, fls. 104,
104v e 105.
39  –  PEDROSA, Aziz José de Oliveira. José Coelho de Noronha: artes e ofício nas Mi-
nas Gerais do século XVIII. 2012. 303 f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Arquitetura
e Urbanismo. Belo Horizonte: UFMG, 2012.
40  –  COSTA, 1978a, p. 7.
41  –  PEDROSA, Aziz José de Oliveira. A produção da talha joanina na capitania de
Minas Gerais: retábulos, entalhadores e oficinas. 2016. 591f. Tese (Doutorado) – Escola
de Arquitetura. Belo Horizonte: UFMG, 2016.
42  –  PEDROSA, Aziz José de Oliveira. 2012, p. 77.
43  –  Ibid., p. 123.

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Aziz José de Oliveira Pedrosa

Para tanto, conhece-se o nome de Manoel Antônio de Azevedo Pei-


xoto que, segundo Pedrosa44, foi membro da oficina que esteve a cargo
da fábrica do retábulo-mor, sendo dele a escultura de algumas imagens
desse exemplar. Essa assertiva surgiu depois que o autor supracitado con-
frontou o retábulo-mor de Caeté com outro serviço realizado por Azeve-
do Peixoto na capela de Nossa Senhora da Conceição do Mosteiro das
Macaúbas (Santa Luzia), no ano de 1767. Por meio de análise formal
e estilística, Aziz Pedrosa45 concluiu ser da lavra de Peixoto o conjunto
escultórico da Santíssima Trindade do retábulo-mor de Caeté, que, por
sua vez, é idêntico ao mesmo elemento do mor do templo das Macaúbas.
O desenho desse último é uma reprodução amparada no risco do mor da
Matriz de Caeté46. Atenta-se, também, para o fato de que os retábulos do
arco-cruzeiro da edificação do Mosteiro das Macaúbas, executados por
Azevedo Peixoto47, apresentam relações formais e estéticas com os exem-
plares do arco-cruzeiro da igreja caeteense. Nesse sentido, especula-se a
possibilidade de Manoel de Azevedo Peixoto ter se envolvido na execu-
ção da talha dessas peças na Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso,
antes de se dedicar aos serviços de Macaúbas. Além disso, a presença do
entalhador nas obras da Matriz de Caeté elucida que outros artistas atua-
ram na edificação e que, de algum modo, consolidaram relações profis-
sionais com Coelho de Noronha, podendo esses laços terem se estendido
até o Aleijadinho. Essas delimitações demonstram ser impróprio pensar
no nome de José Coelho de Noronha como única influência para Antônio
Francisco Lisboa no período em que esteve ele no templo da Senhora do
Bom Sucesso, visto que outros artífices podem ter se destacado em meio
à complexa oficina que se formou, inclusive engendrando relações pro-
fissionais com aquele que seria, posteriormente, o grande nome da talha
rococó mineira.

44 – Ibid., p. 163.
45  –  PEDROSA, Aziz José de Oliveira. 2016, p. 370.
46  –  Cf. PEDROSA, 2016.
47  –  MATEUS, Adalberto Andrade. Santa Luzia: atos de proteção – bens culturais tom-
bados. Santa Luzia: Edição do Autor, 2016. p. 29.

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A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso
e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

Breve panorama da obra retabular do Aleijadinho


A urgência de se compreender a obra atribuída a Antônio Francisco
Lisboa, em Caeté, exige que seja analisado, previamente, seu envolvi-
mento na produção de riscos para retábulos, em busca de se elencar os
aspectos que assinalaram essas peças e que podem ou não ter despontado
na Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Considera-se, para isso,
que seus primeiros trabalhos foram concretizados nesse templo. Assim,
selecionaram-se exemplares cuja fatura ou traça foram desenvolvidos
pelo Aleijadinho, bem como outros itens cujas atribuições a ele recai,
como as três peças constantes na Matriz de Nossa Senhora do Pilar (Nova
Lima), oriundas da antiga fazenda do Jaguara.

Rodrigo José Ferreira Bretas atestou, em 1858, que o Aleijadi-


nho trabalhou “[...] em ermidas das fazendas da Serra Negra, Tabocas
e Jaguara.”48. Essa constatação foi, novamente, divulgada na Revista do
Arquivo Público Mineiro, no ano de 1906:49
A par d’essas preciosidades o templo mostra obras de talha algo pre-
ciosas, e, por muitos, atribuídas ao notável artista, que na legenda ou
na história da arte-brasileira é designado pelo nome de Aleijadinho
ao qual dam a paternidade de curiosos trabalhos em outras igrejas do
Estado de Minas50.

O edifício da capela que abrigava esses retábulos data de 178551.


Desse modo, admite-se que o artista executou os mencionados retábulos
entre os anos de 1785-1790, pois no dia 18 de outubro de 1790 ele se de-
dicava à talha do retábulo-mor da igreja de São Francisco de Assis (Ouro
Preto). É importante salientar que a designação de que os exemplares do
Jaguara são trabalhos do Aleijadinho foi reiterada, também, pela Direto-
ria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1951).

48  –  MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1951, p. 32.


49  –  N. B. Succinta descripção da Fazenda do Jaguara no Estado de Minas Geraes. Re-
vista do Arquivo Público Mineiro, Edição Imprensa Oficial de Minas Gerais, n. 11, v. 1,
p. 585-597, 1906.
50 – Ibid., p. 591.
51 – Ibid., loc. cit.

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Aziz José de Oliveira Pedrosa

O retábulo-mor da igreja ouro-pretana de São Francisco de Assis é


a mais distinta estrutura de talha realizada por Antônio Francisco Lisboa.
Os documentos atestam ser de sua autoria o risco, concebido entre 1778-
1779, bem como a execução, iniciada em 179052. Foi ele o mentor da
traça e da fatura dos retábulos de São João e de Nossa Senhora da Pieda-
de, que se encontram na Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do
Carmo (Ouro Preto)53.

Estima-se a contribuição do Aleijadinho na produção de outros ser-


viços, incluindo-se nesse grupo o desenho para o retábulo-mor da igreja
ouro-pretana de São José54. No entanto, a ampla discussão que envolve
a obra do artista impõe a necessidade de se delimitar peças a serem exa-
minadas, que possam servir como parâmetro para se compreender os tra-
balhos a ele atribuídos na Matriz de Caeté. Dentro desses entendimentos,
selecionou-se o retábulo de Santa Efigênia, presente na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário (Santa Rita Durão), que data de c.178455.

Essas obras que contaram com a assinatura do Aleijadinho, atribuí-


das ou identificadas por documentação, perpetuaram feitios que delimi-
taram seu labor no âmbito da talha. O retábulo-mor da antiga fazenda do
Jaguara é esclarecedor nesse sentido, pois acolhe características que es-
pecificaram as preferências que vigorariam nos retábulos riscados ou exe-
cutados pelo artista. Esses aspectos foram enumerados por Lygia Martins
Costa,56 que demonstrou ser peculiar ao fazer do Aleijadinho a promoção
de uma estrutura retabular em que as colunas externas do corpo foram
projetadas ao encontro do solo, dotadas de autonomia, dinamizando a
peça e alterando a marcação estrutural tradicional em vigor nos retábulos

52  –  MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em
Minas Gerais. Rio de Janeiro: Publicações da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artísti-
co Nacional, 1974. n. 27, 2 v., p. 369.
53  –  Pagamentos referentes à conclusão do serviço foram quitados entre 1807 e 1808
(MARTINS, Judith. 1974, p. 368).
54  –  MARTINS, Judith. op. cit., p. 370.
55  –  MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1951, p. 64.
56  –  COSTA, Lygia Martins Costa. Inovação de Antônio Francisco Lisboa na estrutura-
ção arquitetônica dos retábulos. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, Rio de Janeiro, n.18, pp. 223-236, 1978b, p. 224.

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e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

luso-brasileiros, em que essa formatação não é verificada. Tais soluções,


que distinguiram a operação do insigne oficial, podem ser conferidas no
retábulo-mor da igreja de São Francisco de Assis (Ouro Preto).

Lygia Martins Costa57 destaca que o Aleijadinho ainda alterou a con-


figuração do embasamento, transformando essa região em um único re-
gistro, integrando a banqueta ao todo, recuando as pilastras misuladas
para o fundo da composição, de modo que as colunas externas sobressaís-
sem no plano retabular. A autora realça que o terço inferior desses quar-
telões foram integrados à banqueta “[...] obtendo a unidade característica
do estilo [...]”58, caracteres esses percebidos nos exemplares do Jaguara e
de São Francisco de Assis (Ouro Preto).

A descrição de Martins59 sobre os elementos que especificam a arte


do Aleijadinho esclarece como foi organizado pelo artista o nicho late-
ral dos retábulos em sentido diagonal, dinamizando a expressão visual
de perspectiva da peça. Esse fator está pontuado nas obras do Jaguara e de
São Francisco de Assis (Ouro Preto), onde se sobressaem a interessan-
te eliminação de dosséis e as cúpulas desses nichos. Além de tudo isso,
Myriam Oliveira60 chamou a atenção para o caráter da obra retabular do
artista, em que o coroamento despontou limpo, sem frontões, rompen-
do a composição por meio do extravasamento do grupo escultórico da
Santíssima Trindade, para além do retábulo, adentrando-se pelo forro
da capela-mor, como se observa nas já indicadas peças do Jaguara e da
igreja de São Francisco (Ouro Preto).

Poder-se-ia, ainda, sinalizar que os retábulos que contaram com o


trabalho do Aleijadinho são esguios, tendiam ao encontro da verticalidade
e apresentam estrutura animada pela alocação de elementos composicio-
nais acentuadamente assimétricos. Essa última característica é explicita-
da nas colunas animadas por último terço estriado, que nos exemplares

57 – Ibid., p. 225.
58 – Ibid., loc. cit.
59  –  Ibid., loc. cit.
60  –  OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó religioso no Brasil e seus an-
tecedentes europeus. São Paulo: Cosac e Naify, 2003, p. 259.

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laterais da Matriz de Nova Lima são de sinuoso desenho, único no re-


pertório da talha luso-brasileira, e que expressam, com propriedade, a
assinatura do artista.

Além de todos os pontos delimitados, verificam-se, nos retábulos


laterais e colaterais que contaram com a intervenção do Aleijadinho, mo-
tivos que assinalaram seu fazer e que são de fulcral importância para se
compreender as peças a ele atribuídas na Matriz de Caeté. Tais elementos
estão inseridos, por exemplo, no retábulo de Santa Efigênia da Igreja de
Nossa Senhora do Rosário (Santa Rita Durão)61. Nesse e em outros mo-
delos faturados pelo Mestre, as colunas externas vão ao chão, apoiadas
sobre bases misuladas, dispostas a 45ᵒ na composição. A retirada dessas
colunas do registro do corpo e sua nova função de romper a tradicional e
rígida composição do embasamento foi ressaltada por Lygia Martins Cos-
ta62. Os nichos também perpetuaram essa sede do artista e passaram a ser
organizados em diagonal; as cúpulas que tradicionalmente compuseram
esses aparatos foram eliminadas, como encontrado nos retábulos laterais
da Matriz de Nossa Senhora do Pilar (Nova Lima).

Soma-se a isso o desenho do entablamento dos retábulos das supra-


citadas edificações de Nova Lima e de Santa Rita Durão; ambas seguem
uma equivalente ordenação e registram a identidade do labor de um artífi-
ce. Já o coroamento do exemplar de Santa Efigênia da capela do Rosário
(Santa Rita Durão) foi integrado ao frontão e finalizado por cornija, que
eleva o pé-direito a alturas maiores; porém, foram mantidos elementos à
semelhança de dosséis que recordam retábulos do estilo joanino, ausentes
nas composições do Jaguara e de São Francisco de Assis (Ouro Preto).

Nos retábulos laterais da igreja ouro-pretana de Nossa Senhora do


Carmo, dedicados a São João Batista e a Nossa Senhora da Piedade, quer
pelo avanço do século XIX, quer pelo refinamento técnico e estético do
Aleijadinho, a estruturação e a composição se diferem de tudo que ele
produziu na talha retabular, sobressaindo-se a eliminação do arco do co-
61  –  MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE, op. cit., p. 62.
62  –  COSTA, Lygia Martins Costa, op. cit., p. 225.

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e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

roamento e das figuras antropomórficas que, comumente, compuseram


esse registro convertido em espécie de frontão integrado à sanefa por vo-
lutas. Contudo, manteve-se o tradicional deslocamento das colunas, os
nichos sem cúpulas, as colunas misuladas ocupando o registro do corpo,
o entablamento liso e movimentado.

Em síntese, são essas as principais características que determinaram


os retábulos que contaram com o espectro diferenciado do Aleijadinho.
Do mesmo modo que são esses os elementos que apontam as impressões
que identificam sua digital nas peças que lhe são atribuídas e que, certa-
mente, permitirão examinar os exemplares da Matriz de Caeté.

Os retábulos atribuídos ao Aleijadinho em Caeté


Delinear o envolvimento do Aleijadinho na produção de retábulos
viabiliza avaliar e identificar qual pode ter sido a sua efetiva colaboração
na fabricação de três peças alocadas na Matriz de Nossa Senhora do Bom
Sucesso (Caeté), cuja intervenção no projeto ou na execução é a ele impu-
tada. Ao artista recai a autoria do risco dos exemplares de São Francisco de
Paula63 e de Nossa Senhora da Conceição,64 incluindo-se a designação
de que faturou alguns elementos para o primeiro. Soma-se a essas dispo-
sições a demonstração dada por Germain Bazin65 de que são da lavra de
Antônio Francisco Lisboa, no mesmo templo, dois anjos do coroamen-
to e as figuras antropomórficas tocheiras do retábulo de Santo Antônio.
Tais inferências impõem a esta pesquisa o rigor da análise, valendo-se de
ferramenta metodológica que confronta as esculturas dessas obras com
outras que permitem delimitar expressões de sua arte.

Inicia-se a discussão pelo retábulo de São Francisco de Paula, vis-


to ser creditado ao Aleijadinho seu risco e sua fatura (Figura 1). A base
desse exemplar é composta por mísulas com pendões de flores. O banco
recebeu mísulas com relevos fitomórficos e curvilíneos, característicos do
Rococó. Ao centro dessa região, o falso sacrário é ladeado por estreitas
63  –  MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE, op. cit., p. 61.
64  –  COSTA, Lygia Martins Costa.1978, p. 7.
65  –  BAZIN, Germain. 1971, p. 229.

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pilastras misuladas, constituído por adereços assimétricos e vegetalistas,


com relevo de coração flamejante envolvido por raios, nuvens, punhal,
lírio e cruz. O registro do corpo apresenta colunas torsas externas com
fustes cobertos por motivos vegetalistas, finalizadas por capitel com ro-
calhas e detalhes sinuosos. Internamente, a sustentação é assegurada por
quartelões com duplas cabecinhas de anjos, pendão de flores e capitel
com rocalhas. Animam o intercolúnio nichos com peanha, cúpula em coi-
fa com lambrequins, ornatos curvilíneos em forma de “C”, enrolamentos.
A renda da boca da tribuna foi concebida com elementos curvilíneos e ro-
calhas. O teto do camarim foi desenhado em abóbada de berço, e o trono
escalonado em quatros degraus. O entablamento é delineado por arquitra-
ve bipartida, friso e cornija de perfil curvilíneo. O coroamento tem forma
de arco pleno com pormenor central delimitado por nuvens e raios que
envolvem pomba, ladeado por anjos segurando adereços curvilíneos e en-
rolamentos. Esse registro foi inserido em frontão sustentado por mísulas
com acantos e itens fitomórficos. Na região central do frontão, há uma
tarja com inscrição ladeada por peças sinuosas e sustentada por guirlan-
das de flores. Uma sanefa com lambrequins arremata a estrutura retabular.

Figura 1 – Retábulo de São Francisco de Paula.


Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Caeté-MG. Fonte: Fotografia do Autor.

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A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso
e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

O retábulo de Nossa Senhora da Conceição segue a estruturação e a


composição ornamental do dedicado a São Francisco de Paula, fator esse
que condicionou atrelar à figura do Aleijadinho a autoria desse exem-
plar. Ressalvam-se algumas diferenças, como o nicho que se encontra
integrado ao retábulo da Senhora da Conceição (Figura 2), o divergente
desenho do capitel que finaliza os quartelões, o delineamento dos degraus
do trono, as esculturas das figuras antropomórficas e as formas dos moti-
vos ornamentais e estruturais, sobretudo das colunas torsas, notadamen-
te concebidas por artífices distintos. Todavia, o risco é singularmente o
mesmo, podendo-se atribuir a um só nome a concepção de sua traça ou a
perpetuação de um modelo inicial reproduzido em benefício de se assegu-
rar a simetria ornamental do ambiente sacro, onde os retábulos descritos
foram dispostos aos pares, frente a frente.

Figura 2 – Retábulo de Nossa Senhora da Conceição,


Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Caeté-MG. Fonte: Fotografia do Autor.

Para além desses pormenores, observa-se que no retábulo de São


Francisco de Paula as colunas externas foram prolongadas até à base, por
intermédio do uso de mísulas. Esse desenho remete ao detalhe ímpar das
peças retabulares derivadas das mãos do Aleijadinho, que propiciam a
autonomia desses artigos do restante da composição, como se verifica no
retábulo-mor da Igreja de São Francisco de Assis (Ouro Preto). Porém,
no sobredito exemplar ouro-pretano, essas colunas encontram-se deslo-

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cadas da estrutura, divergindo-se do exemplar da Matriz de Caeté, onde


estão presas ao conjunto. Diante das exposições, poder-se-ia inferir que
foi esse um provável momento de experimentações ou, até mesmo, uma
referência precursora que alimentaria o senso criativo do Aleijadinho nos
serviços que realizou em sequência, como no mencionado retábulo-mor
da Igreja de São Francisco.
Distinguem-se, do mesmo modo, as curiosas colunas torsas alocadas
no retábulo de São Francisco de Paula, que remontam aos tradicionais
exemplares joaninos. Porém, nos modelos de Caeté, ausentaram-se os ca-
pitéis compósitos, reduziram-se os ornatos vegetalistas nos fustes e elimi-
naram-se as estrias do terço inferior, motivos esses atrelados às peças da
talha joanina colonial luso-brasileira, recordando-se os retábulos-mores
da Matriz de Nossa Senhora do Pilar (São João del Rey) e de Nossa Se-
nhora do Bom Sucesso (Caeté), ambos os resultados do exercício de José
Coelho de Noronha. Destaque-se a recorrência ao emprego de colunas
afins em outras peças da dita igreja caeteense, como nos retábulos de
Nossa Senhora do Rosário, de Nossa Senhora da Conceição, de Nossa
Senhora do Carmo e de São Miguel (Figura 3).

Figura 3 – Retábulo de São Miguel,


Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Caeté-MG.
Fonte: Fotografia do Autor.

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A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso
e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

Algumas hipóteses emergem na tentativa de se encontrar respostas


que permitam esclarecer a permanência de tais colunas. Desse modo,
pensa-se que o período de produção desses retábulos foi um tempo de ex-
perimentação, de aprendizado e de assimilação do Rococó, assegurando
a manutenção de adereços decorativos peculiares ao estilo joanino, que
ainda pontuavam o repertório artístico dos oficiais atuantes à época. Além
disso, as colunas torsas acima relacionadas podem ter sido utilizadas
como artifício para favorecer a harmonização do conjunto que engloba os
retábulos da nave, junto ao mor que alberga colunas de tipologia salomô-
nica, pois seu risco se encontra sob a influência da estética joanina que,
em Caeté, despediu-se da talha mineira66. Não são encontradas respostas
elucidativas se esses motivos resultam da escolha de um artista, de autor
do desenho das peças, ou se são produtos de sugestões delimitadas pelos
contratantes dos serviços, motivados pela moda coeva. Essas matérias
são de difícil esclarecimento sem o respaldo de documentação.

Os quartelões, que servem como pés-direitos internos do exemplar


de São Francisco de Paula, são compostos por capitéis que se assemelham
aos que definem os retábulos laterais da Igreja Matriz de Nova Lima,
então oriundos do Jaguara. Todavia, no modelo de Caeté, essas peças
envolvem duplas cabecinhas de anjos, atribuídas ao Aleijadinho por Ger-
main Bazin67. Essas esculturas apresentam pescoço com papada e relevo
de dobras (Figura 4). Na face, as bochechas são salientes, esféricas e o
queixo apontado para frente com furos centrais em profundidade. Os lá-
bios semiabertos revelam parte da dentição. O nariz é levemente arrebita-
do, com volume arredondado nas pontas, e seu desenho conduz as linhas
delineadoras das sobrancelhas arqueadas, que conferem expressividade
aos olhos amendoados, cujo lacrimal indica traços constantes em outras
imagens concebidas pelo Aleijadinho. O penteado dos cabelos é parti-
cularizado por topete elaborado por duas laterais, voltadas internamente
para trás, e porção central elevada em ondulação, com pequeno filete caí-
do sobre a testa. Essas propriedades levam a crer que foi o Aleijadinho
quem oficialmente esculpiu tais esculturas, que perpetuam pormenores
66  –  Conforme Pedrosa (2016), esse foi um dos últimos exemplares mineiros a expressar
as referências formais e estéticas que vigoraram na talha colonial luso-brasileira.
67  –  BAZIN, Germain, op. cit., p. 299.

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presentes em outras peças por ele faturadas, pronunciando, assim, a iden-


tidade do Mestre.

Figura 4 – Cabecinhas de anjos,


retábulo de São Francisco de Paula, Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Caeté-MG.
Fonte: Fotografia do Autor

Discutidas essas pautas, atenta-se para os nichos do retábulo de São


Francisco de Paula composto de cúpula com formato de capacete, feitio
esse não detectado nos exemplares lavrados pelo Aleijadinho no Jaguara,
na igreja ouro-pretana de São Francisco de Assis e na do Rosário (Santa
Rita Durão). Em contraposição, verificam-se nos retábulos de Santo An-
tônio e São Miguel, da Matriz de Caeté, motivos semelhantes ao cons-
tante no exemplar de São Francisco de Paula. A não pontuação do uso
de adereços análogos no transcorrer da produção do Aleijadinho impõe
questionamentos que consideram, caso seja realmente dele a autoria do
risco dos retábulos caeteenses, qual motivo o fez optar, posteriormente,
pela eliminação de correlato desenho de cúpula, substituindo-a por orna-
tos curvilíneos e fitomórficos que se integram às peanhas para formar os
tais nichos. Para esses casos, serão ilustradas, adiante, possíveis trilhas
que podem esclarecer as dúvidas elencadas, à luz da atividade de outro
entalhador.

Perseguindo a averiguação proposta, repara-se que o entablamen-


to do retábulo de São Francisco de Paula remete ao mesmo elemento
do mor da antiga fazenda do Jaguara. Essa aproximação pode ratificar
o esforço do Aleijadinho na Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso.

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e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

Soma-se a essas evidências a supressão do frontão sinuoso no coroamen-


to, despontando o registro com poucos ornatos em que são destacados os
anjos laterais e a tarja central. Contudo, é prudente enfatizar o desenho
do arco curvo sobre a boca da tribuna, junto ao coroamento, com forma-
ção de dois enrolamentos laterais em forma de “C” (Figura 5). A revisão
bibliográfica empreendia para a produção deste texto constatou que esse
elemento não foi destacado pela crítica de arte que se dedicou a estudar a
obra retabular do Aleijadinho, apesar de ser esse um aspecto contundente
que pode, eventualmente, contribuir para identificar o trabalho do artista
em Caeté, exatamente porque é um item congênere ao pormenor que in-
tegra outra peça retabular, comprovadamente traçada e executada por ele:
o retábulo-mor da Igreja de São Francisco de Assis (Ouro Preto). Logo,
esse é um elemento que enfatiza a intervenção do Aleijadinho em Caeté.

Figura 5 – Coroamento do retábulo de São Francisco de Paula,


Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Caeté-MG. Fonte: Fotografia do Autor.


Identificadas essas questões iniciais, é propício debater a atribuição
emendada por Lucio Costa68 de que o retábulo de Nossa Senhora da Con-
ceição foi confeccionado a partir de traça concebida pelo Aleijadinho,
desenho esse que, certamente, subsidiou o de São Francisco de Paula.
Pontua-se que a análise formal dessas duas peças segue próxima, sendo
incontestável que foram orientadas por um projeto base, visto que de-
68  –  COSTA, Lucio, op. cit., p. 7.

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terminados elementos repercutiram nos dois casos, como o desenho do


coroamento com o arco em forma de “C” e os dois enrolamentos laterais
acima da boca da tribuna. Porém, o diversificado modo de conceber as es-
culturas antropomórficas sinaliza a intervenção de entalhadores distintos,
ainda que seja viável presumir que esses homens poderiam ser membros
de uma mesma oficina.

Prováveis respostas para essas dúvidas encontram respaldo na figura


de Francisco Vieira Servas. Assim, memora-se que o sobredito entalha-
dor em Caeté viveu no século XVIII, atestada sua circulação na então
Vila Nova da Rainha, por intermédio de sua vinculação à Irmandade de
São Miguel, da Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso69. Ademais,
Gutierrez e Ramos70 atribuíram ao entalhador a escultura de dois anjos
do coroamento do retábulo de Nossa Senhora da Conceição, indícios que
realçam a presença do Servas no templo caeteense.

Os exames operados para elaboração deste artigo indicam que o en-


talhador pode ter sido o autor de outros elementos do retábulo da Senhora
da Conceição. A fim de esclarecer essa sugestão, chama-se a atenção para
as duplas cabecinhas de anjos, alocadas nos quartelões dessa peça reta-
bular, que apresentam tratamento formal semelhante às figuras antropo-
mórficas do coroamento do mesmo exemplar (Figura 6), cuja autoria foi
apontada ao Francisco Vieira Servas.

O confronto dessas esculturas especifica a fidelidade do desenho das


papadas do pescoço, do queixo, da boca, do nariz, dos olhos e das so-
brancelhas. É também exato o penteado voltado para trás, composto por
ondulações, formação de topete frontal e posicionamento de pequeno fi-
lete de franja sobre a testa. Esse mesmo desenho das cabecinhas de anjos
do retábulo da Senhora da Conceição é identificado em outras esculturas
que contaram com a arte de Vieira Servas, presentes nos retábulos-mores

69  –  MENEZES, Ivo Porto de. José Coelho de Noronha e Francisco Vieira Servas. In:
CONGRESSO DO BARROCO NO BRASIL, II. Ouro Preto: 1989.
70  –  GUTIERREZ, Angela; RAMOS, Adriano. Francisco Vieira Servas e o ofício da
escultura na capitania das minas do ouro. Belo Horizonte: Instituto Cultural Flávio Gu-
tierrez, 2002. p. 96.

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e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

das igrejas de Nossa Senhora do Carmo (Sabará)71 e de Nossa Senhora


do Rosário (Mariana)72 (Figura 7). Essas imagens validam a identificação
empreendia neste texto de que Servas pode ter sido o responsável pela
execução das cabecinhas de anjos do retábulo de Nossa Senhora da Con-
ceição, visto que a composição do conjunto repetiu marcas que ressoaram
na obra do entalhador, como a união das faces por meio das testas que se
tocam, colocando-as em posição diagonal.

Figura 6 – Cabecinhas de anjos, retábulo de Nossa Senhora da Conceição,


Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Caeté-MG. Fonte: Fotografia do Autor.

Figura 7 – Cabecinhas de anjos,


retábulo-mor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Sabará-MG. Fonte: Fotografia do Autor.

71  –  MARTINS, Judith. 1974, p. 215.


72 – Ibid., loc. cit.

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A princípio, o olhar desatento pode indicar que as duplas cabecinhas


de anjos dos retábulos de São Francisco de Paula e de Nossa Senhora da
Conceição foram frutos do exercício de um mesmo artista. Mas uma me-
ticulosa análise impõe esclarecimentos relevantes que, de algum modo,
também levaram Germain Bazin73 a atribuir as esculturas dos quartelões
do retábulo de São Francisco de Paula ao Aleijadinho, e não apontar como
de sua autoria as imagens que se encontram na peça dedicada à Senhora
da Conceição que, posteriormente, foram identificadas por Gutierrez e
Ramos74 como resultantes da intervenção de Vieira Servas.

Na relação das diferenças vigentes nas duplas cabecinhas de anjos


dos retábulos de São Francisco de Paula e da Nossa Senhora da Concei-
ção, distingue-se que, na primeira peça retabular, as citadas esculturas
expõem queixo com formação volumosa e furo central, boca semiaberta,
nariz arrebitado para o alto, olhos amendoados com lacrimal delineado,
topete com laterais voltadas para trás e região central ondulada. Esses
aspectos divergem das imagens do dito Servas para os retábulos-mores
da Igreja de Nossa Senhora do Carmo (Sabará) e de Nossa Senhora do
Rosário (Mariana), que absorveram outra volumetria para a face e para o
desenho do cabelo, com a adição da assinatura central do artista que é a
união das faces pela testa, em diagonal, como descrito anteriormente. Já
as peças atribuídas ao Aleijadinho encontram-se paralelas na composi-
ção. Logo, essas minúcias desenham o trabalho de dois artistas diferentes.

A segunda advertência, ignorada pela historiografia da arte, insinua


que o retábulo de Nossa Senhora da Conceição apresenta estrita relação
formal e estética com o de São Miguel, presente na Matriz de Caeté, indi-
cando que foram obras produzidas pela orientação de um mesmo projeto,
que também subsidiou o exemplar de São Francisco de Paula. Ressal-
vadas certas diferenças relacionadas à escultura de alguns elementos, o
restante da composição foi submetido à reprodução de um mesmo risco,
como o desenho do trono dos modelos de Nossa Senhora da Conceição e
de São Miguel que obedeceram a uma idêntica traça.
73  –  BAZIN, Germain. 1971.
74  –  GUTIERREZ ,Angela; RAMOS, Adriano, op. cit., p. 46.

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e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

Para compreensão dessas obras, é elucidativo recorrer ao estudo de


Angela Gutierrez e Adriano Ramos,75 que atribuiu a Francisco Vieira Ser-
vas os anjos do coroamento do exemplar de São Miguel e o relevo do
coração flamejante constante na porta do sacrário, também presente em
outros trabalhos em que atuou o entalhador, como no retábulo de São
Simão Stock da Igreja de Nossa Senhora do Carmo (Sabará) que, satisfa-
toriamente, ilustra a questão elencada (Figura 8)76.

Figura 8 – Retábulo de São Simão Stock,


Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Sabará-MG. Fonte: Fotografia do Autor.

No aludido retábulo da Igreja de Nossa Senhora do Carmo (Sabará),


desenvolvido pelo Servas, constam peanhas e cúpulas nos nichos laterais,
proporcionais àquelas que se encontram nos retábulos de São Francisco
de Paula, da Nossa Senhora da Conceição e de São Miguel da Matriz do
Bom Sucesso (Caeté), repetindo equivalente forma e geometria das bases
que servem para apoiar imagens devocionais, com singelas diferenças
acentuadas em certos pormenores, como nos lambrequins das cúpulas
(Figuras 9, 10). Formas correlatas de peanhas são pontuadas no oratório
que se encontra no Museu do Oratório (Ouro Preto), produzido por Fran-
cisco Vieira Servas. Percebe-se que a afirmação desses itens em objetos
75 – Ibid., loc. cit.
76  –  MARTINS, Judith, op. cit, p. 216.

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relacionados ao fazer do Servas permite a ele determinar a autoria das


peanhas e das cúpulas dos exemplares da igreja caeteense, acima elen-
cados.

Figura 9 – Retábulo de São Simão Stock,


Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Sabará-MG. Fonte: Fotografia do Autor.

Figura 10 – Retábulo de São Francisco de Paula,


Igreja Matriz, Caeté-MG Fonte: Fotografia do Autor.

Para o retábulo de São Miguel, é importante referenciar as duplas ca-


becinhas de anjos que ornam os quartelões, perpetuando esculturas afins

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àquelas que ocupam o retábulo de Nossa Senhora da Conceição. Diante


da designação de serem essas obras de Francisco Vieira Servas, pode-se
cogitar a hipótese de que foi ele o artífice que esteve envolvido na execu-
ção das mesmas imagens da peça de São Miguel.

Por último, instauraram-se esforços para examinar o retábulo de San-


to Antônio (Figura 11), onde coexistem imagens tocheiras e dois outros
anjos no registro do coroamento, atribuídos ao Aleijadinho por Germain
Bazin77. Para o pesquisador francês, essas imagens foram executadas por
um artista que iniciava sua atividade, devido à visível inabilidade para
conceber a forma humana78. Embora esse autor não descreva o parâmetro
que serviu para balizar a sua interposição, acredita-se que ele pode ter
se referenciado em outros elementos produzidos pelo Aleijadinho, pos-
teriores à data em que o artista esteve na igreja caeteense. Essa matéria
encontra respaldo na leitura visual das pranchas publicadas no livro de
Bazin79, em que as figuras antropomórficas do coroamento do retábulo
de Santo Antônio são posicionadas ao lado de outras faturadas pelo Alei-
jadinho, como os anjos da portada da Igreja de Nossa Senhora do Carmo
(São João del Rey)80.
Os dois anjos que encimam o dossel do altar de Santo Antônio mos-
tram, em sua gênese, a tipologia angeológica do artista com o tope-
te característico que espantava Saint Hilaire e esse tratamento mo-
numental do rosto que acentua o volume do queixo, das faces e dos
olhos, quanto ao resto, esses dois anjos, bastante desajeitados atestam
que o artista tinha ainda muito a aprender81.

É curioso observar que as atribuições expedidas por Germain Bazin,


de que o Aleijadinho se envolveu na obra do retábulo de Santo Antônio,
não foram compartilhadas em estudos que tiveram como interesse central
o desdobramento da vida e obra do artista, de modo que fossem confron-
tados e avaliados os apontamentos realizados e obtidas novas conjecturas

77  –  BAZIN, Germain. 1971, 299.


78 – Ibid., loc. cit.
79  –  BAZIN, Germain. 1983 (Imagens178-179).
80  –  Atribuição: Ministério da Educação e Saúde (1951, p. 62).
81  –  BAZIN, Germain. 1971, p. 299.

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para o caso. Segundo Bazin,82 essas esculturas hospedam características,


na face e no cabelo, correspondentes às figuras antropomórficas conce-
bidas pelo Aleijadinho, o que lhe permitiu utilizá-las como argumentos
capazes de alicerçar suas imputações. Porém, o exame dessas esculturas
não é conclusivo, tampouco suficientemente esclarecedor em relação à
provável autoria de seu entalhe, uma vez que a anatomia do corpo, o
desenho das vestimentas e das asas não esclarecem associações com as
peças de mesma natureza confeccionadas pelo Aleijadinho. Comparadas
essas imagens àquelas que se encontram nos quartelões do retábulo de
São Francisco de Paula, da mesma edificação religiosa caeteense, é pos-
sível especificar que o tratamento escultórico é divergente e, dificilmente,
sinaliza se tratar de uma intervenção de um único artífice.

Figura 11 – Retábulo de Santo Antônio,


Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Caeté-MG. Fonte: Fotografia do Autor.

As mesmas observações podem ser direcionadas às figuras antropo-


mórficas tocheiras do retábulo de Santo Antônio, cuja autoria do entalhe
Bazin83 também determinou a Antônio Francisco Lisboa, pois a escultura
facial dessas peças, o tratamento da volumetria dos cabelos em formação
de topetes e a anatomia do peitoral não encontram correspondência com
82 – Ibid., loc. cit.
83  –  Ibid., loc. cit.

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e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho

outras esculturas confeccionadas pelo artista. Diante dessas circunstân-


cias, é impreciso afirmar que o Aleijadinho executou essas esculturas, vis-
to que elas não elucidam elementos suficientes que possam pontuar sua
intervenção, mesmo que seja considerado que ele passava por instruções
iniciais, como sugerido por Germain Bazin84.

As atribuições de Bazin de que o Aleijadinho exerceu sua arte no


retábulo de Santo Antônio poderiam ser validadas, em hipótese, apenas
se for a ele apontado o entalhe de um ou outro pormenor da fatura dessas
imagens. Ademais, não é distante interpor que foi essa uma incumbência
derivada do labor de oficial anônimo, cujo modo de trabalhar a madeira
propagou cacoetes perpetuados pelo Aleijadinho. No entanto, essas são
suposições de difícil comprovação, apresentadas como meio de se fundar
novas direções capazes de provocar o despontar de investigações sobre o
tema, visto os estudos empreendidos demonstrarem a distância das desig-
nações realizadas pelos teóricos arrolados neste texto.

Considerações finais
A historiografia da arte luso-brasileira considerou a participação do
Aleijadinho na produção de alguns retábulos da Matriz de Nossa Senho-
ra do Bom Sucesso, sem, no entanto, interpor análises que permitissem
compreender qual pode ter sido a real contribuição do artista para a efeti-
vação desses serviços. Tais reflexões sugeriram, também, que sua ativida-
de desabrochou em oficina instalada no interior da igreja, que Lucio Cos-
ta85 sinalizou se tratar de uma empreitada arrematada por José Coelho de
Noronha, no momento em que ele se dedicava à fatura do retábulo-mor.

É urgente destacar que, apesar de José Coelho de Noronha ter se


dedicado à produção do retábulo-mor, entre 1758 e 1765, não é possível
afirmar ser ele a mente que coordenou todo o núcleo de trabalho que se
responsabilizou por erguer os oito retábulos que ocupam a nave da igreja.
Além do silêncio da documentação, os exames da forma, da estrutura e

84  –  BAZIN, Germain. 1983, p. 350.


85  –  COSTA, Lucio. 1978, p. 6.

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da estética dessas peças não ilustram relações com outros modelos que
contaram com a intervenção do Noronha86, suscetíveis de reiterar que ele
possa ter se envolvido na materialização dessas obras, quer na execução,
quer na coordenação dos trabalhos que, de um modo ou outro, absorve-
riam suas preferências artísticas. Considere-se, ainda, que esses exem-
plares apresentam plástica que acusa a assimilação de feições estéticas
vigentes no Rococó, que na talha mineira despontou na década de 1760.
Assim, essas e outras indicações inviabilizam pensar que o entalhador
poderia ter se envolvido na oficina que arrematou a fatura de todos os
retábulos da Matriz de Caeté.

No que concerne ao Aleijadinho, é oportuno registrar algumas consi-


derações acerca da atribuição de que foi ele o autor da traça dos retábulos
de São Francisco de Paula e de Nossa Senhora da Conceição, como de-
limitado por Lucio Costa87. Os exames empreendidos demonstraram que
é incerto, ainda, creditar ao artista a elaboração do projeto que norteou
esses trabalhos, mesmo diante da persistência de motivos ornamentais,
formais e estéticos que compõem essas peças e que encabeçam suas es-
colhas posteriores. Os subsídios para essa interposição são encontrados
nas pesquisas de Germain Bazin88, que instaurou dúvidas sobre a possi-
bilidade de o Aleijadinho ter planejado esses riscos, por ser um período
inicial de sua atividade, que seria provável apenas se o desenhista tivesse
surgido antes do escultor.

Uma plausível hipótese para a compreensão do caso é considerar


que o Aleijadinho se envolveu na execução de motivos de talha para o
retábulo de São Francisco de Paula, podendo, até mesmo, ter sugerido
alterações de detalhes riscados por outro oficial, de identidade incógnita.
Assim, torna-se factível ao artista atribuir a fatura das duplas cabecinhas
de anjos dos quartelões, bem como a intervenção no risco de alguns ele-
mentos presentes no exemplar retabular supracitado, repetidos no retábu-
lo-mor da Igreja de São Francisco de Assis (Ouro Preto), destacando-se a

86  –  PEDROSA, Aziz José de Oliveira. 2012.


87  –  COSTA, Lucio, op. cit., loc. cit.
88  –  BAZIN, Germain, op. cit., loc. cit.

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solução para o coroamento, a eliminação de frontões curvos e a instalação


de arco com enrolamentos laterais em forma de “C”, que finaliza a parte
superior do camarim e caracterizam sua posterior produção. Incluem-se
nessas soluções a decida de pilastras misuladas até o piso.

De todo modo, é lícito afirmar que uma traça inicial permitiu a edi-
ficação de três peças retabulares na Matriz de Caeté: o retábulo de São
Francisco de Paula, de Nossa Senhora da Conceição e de São Miguel que,
apesar de relacionados uns aos outros, são assinalados pela permanência
de distinções, principalmente escultóricas, que esclarecem a existência de
entalhadores diferentes, colaborando na fatura desses objetos.

Em contrapartida, é impreciso creditar a colaboração do Aleijadinho


na execução dos retábulos de Nossa Senhora da Conceição e de São Mi-
guel. Para essas peças, deve-se apontar a intervenção de outros oficiais,
sobressaindo-se o nome de Francisco Vieira Servas, designado por An-
gela Gutierrez e Adriano Ramos89 como autor dos anjos do coroamento
do retábulo de São Miguel e de Nossa Senhora da Conceição. Pode-se,
então, atribuir ao mesmo entalhador as cabecinhas de anjos que animam
os quartelões dos retábulos de Nossa Senhora da Conceição, os nichos e
peanhas dos retábulos de São Miguel, Nossa Senhora da Conceição e São
Francisco de Paula, que são idênticos ao desenho e à fatura do retábulo-
-mor da igreja de Nossa Senhora do Rosário (Mariana) e do retábulo de
São Simão Stock, da igreja do Carmo (Sabará).

Acredita-se, ainda, que é oportuno rever as atribuições determinadas


por Germain Bazin,90 para quem o Aleijadinho deixou sua arte na escul-
tura das figuras antropomórficas presentes no retábulo de Santo Antônio,
da Matriz de Caeté, uma vez que tal designação se torna refutável diante
das demonstrações pouco efetivas expedidas pelo dito pesquisador. No
entanto, para uma resposta mais concisa, é importante a localização de
provas documentais, que atestem a contribuição de outro entalhador na
confecção dessas obras.

89  –  GUTIERREZ, Angela; RAMOS, Adraino, 2002.


90  –  BAZIN, Germain, op. cit., loc. cit.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):217-251, set./dez. 2017. 249


Aziz José de Oliveira Pedrosa

Por fim, assinala-se que a contribuição expedida neste texto foi fun-
damentada na necessidade de se debater a colaboração do Aleijadinho
na confecção de retábulos na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom
Sucesso, que sempre figurou nas publicações que privilegiaram a prodi-
giosa carreira artística do artista, mas que não se dedicaram a examinar
as atribuições deferidas em prol de se localizar respostas concisas sobre
o tema. Assim, instituem-se elementos que podem aguçar o pensamento
de outros pesquisadores que tenham como interesse o estudo da talha se-
tecentista em Minas Gerais, principalmente a partir das exímias obras de
Antônio Francisco Lisboa.

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Texto apresentado em março/2017. Aprovado para publicação em


agosto/2017.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):217-251, set./dez. 2017. 251


Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

253

MORADAS DE ENGENHO E ARTE: AS CASAS DO CONDE


DA BARCA NO NOVO MUNDO
MANOR HOUSES AND ART: THE HOUSES OF THE COUNT
OF BARCA IN THE NEW WORLD
Ana Pessoa1
Ana Lucia V. Santos2
Resumo: Abstract:
Estudo realizado a partir de documentação di- This study on the houses inhabited by Antônio
versa sobre as casas ocupadas por Antônio de de Araújo de Azevedo, the Count of Barca,
Araújo de Azevedo, o Conde da Barca, diplo- was based on various documents. A diplomat,
mata, ministro, homem de ciência e espírito, na minister and a man of science and spirit, the
Rua do Passeio e em Engenho Velho no Rio de Count lived in Passeio Street and in Engenho
Janeiro, de 1808 a 1817, para melhor compre- Velho, both in Rio de Janeiro, from 1808
ender as artes decorativas e as formas de morar to 1817. We seek to better understand the
quando da instalação da corte joanina na cidade. decorative arts and the ways of living at that
Foram consultadas fontes textuais e iconográfi- time when the court of King John VI settled in
cas, envolvendo o Arquivo da Barca (Univer- the city. Textual and iconographic sources were
sidade do Minho), a Biblioteca Nacional RJ, consulted from the Barca Archive (University of
Arquivo Nacional e periódicos de época, para a Minho); the National Library RJ; the National
reconstituição das principais características das Archives and newspapers from the XIX century.
duas casas ocupadas: a casa da Rua do Passeio, We aim to retrace the main characteristics of
onde desenvolveu suas atividades sociais e seus the two houses he inhabited: the first, located in
empreendimentos científicos, e a da colina da Passeio Street, he used for social and scientific
Rua do Matoso, onde buscou recuperar sua saú- purposes, and the second, located in Matoso
de em meio ao ar puro e privacidade. Street on a hill surrounded by fresh air, is where
he sought to recover his health in privacy.
Palavras-chave: Antônio Araújo de Azevedo; Keywords: Antônio Araújo de Azevedo; manor
casas de elite; período joanino. houses; Johannine period.

Nos dias 27, 28 e 29 de novembro de 1807, a desgraça, a desordem


e o espanto existiam por toda a parte em Lisboa, quer em terra quer
no mar, palácios se despiam com a maior rapidez para ficarem depois
entregues ao desamparo e à ruína, muitas casas fecharam-se com seus
ornatos e mobília pela súbita ausência dos moradores, ricos móveis e
carros de elevado custo embarcavam sem as devidas cautelas ou tive-
ram de ser abandonados nas praias; as ruas, praças e cais achavam-se
entulhados a povo de todas as classes, estupefato e pesaroso3 (...).

1  –  Fundação Casa de Rui Barbosa.


2  –  Escola de Arquitetura e Urbanismo/UFF.
3  –  MAIA, Emilio Joaquim. Estudos históricos sobre Portugal e Brasil. s/d.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):253-280, set./dez. 2017. 253


Ana Pessoa
Ana Lucia V. Santos

O presente artigo se insere em uma linha de estudos sobre a casa


senhorial4 em que ela é considerada mais do que um simples habitat, mas
uma “estrutura simbólica de representação do poder de uma família e da
sua hierarquia no contexto da sociedade em que se enquadra”5. Mantendo
forte relação com os símbolos de prestígio e hierarquias sociais presen-
tes em cada época, a casa nobre é também testemunho das transforma-
ções que sociedade e gosto sofrem através dos séculos. Dessa forma, é
de grande relevância o estudo mais amiúde sobre as formas de morar du-
rante o período joanino, cujo impacto “civilizatório”, apesar de reiterado
pela historiografia, ainda carece de pesquisas que exponham as mútuas
influências exercidas entre os diferentes grupos que formaram a elite do
período.

Como se sabe, em finais de 1807, a corte portuguesa embarcou para


o Brasil em situação traumática, conforme emocionada evocação de Emí-
lio Maia na epígrafe, corroborada pela conhecida ilustração de Henri
l´Évêque, gravada por Bartolozzi. Depois do festivo desembarque, em
março de 1808, uma nova elite passou a compartilhar o espaço da cidade
do Rio de Janeiro6. Ao então restrito círculo de ricos comerciantes, se-
nhores de engenho e autoridades reinóis, junta-se a extensa comitiva de
D. João, estimada em 15 mil pessoas, dos quais mais de 500 dignitários,
acompanhados de familiares e criados7, e um novo grupo de representan-
tes diplomáticos e comerciais estrangeiros.

4  –  Essa linha de pesquisa produz o site “A Casa Senhorial: Anatomia dos Interiores”
que, desde 2012, reúne pesquisadores portugueses e brasileiros, desenvolvendo estudos
inéditos sobre os interiores das casas nobres nas duas capitais do império português, Lis-
boa e Rio de Janeiro, com destaque para seus aspectos decorativos, como estuques, pin-
turas murais, azulejaria, etc. Segundo metodologia própria, o projeto apresenta hoje 25
residências portuguesas e 18 brasileiras, com informações sobre seus exteriores e interio-
res, com divisão por categorias (azulejaria, estuques, pintura decorativa etc.), e introduz a
região de Goa, Índia, como nova área de abrangência.
5 – CARITA, Hélder. A casa senhorial em Portugal – Modelos, Tipologias, Programas
Interiores e Equipamento. Alfragide: Leya, 2015, p.16.
6  –  Para a realização desse artigo, as autoras agradecem a colaboração, em Portugal, dos
pesquisadores Eduarda Moreira Silva, Eduardo Oliveira e Hélder Carita, do Arquivo Dis-
trital de Braga/Universidade do Minho, e, em especial, ao pesquisador Abel Rodrigues,
por seu generoso compartilhamento de ideias e informações.
7  –  A comitiva era formada pela família real, membros da nobreza, ocupantes dos altos

254 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):253-280, set./dez. 2017.


Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

Para o abrigo dos exilados foi aplicada a aposentadoria, a qual deter-


minava a cessão de casas e seus equipamentos pelos proprietários locais
para os recém-chegados, e que seria a primeira de uma série de medidas
reguladoras8 com o objetivo de adequar a cidade à nova função de sede
do Império. Ainda que a aposentadoria possa ter inibido a construção de
“casas altas e nobres”, como aponta autoridade da época9, a cidade foi
palco de intensa movimentação de obras, com a construção de cerca de
600 casas e 150 chácaras, entre 1808 e 1818, segundo registra o cônsul
francês Maler10.

Nessa mesma década, o comerciante inglês John Luccock observa


grandes transformações não só no aspecto da cidade como nos arranjos
caseiros. No início de sua estada, em 1808, ele comenta que “nem nas ca-
sas, nem no mobiliário, conseguimos encontrar muitas coisas que nós nos
acostumamos a considerar como essenciais ao conforto; não as encon-
tramos nem mesmo nas habitações mais espaçosas e fornidas”11. Cinco
anos depois já existiam mais construções caiadas e pintadas, onde os bal-
cões que substituíram as gelosias portavam flores e plantas, e pequenas
vivendas e jardins enfeitavam as cercanias; a corte recuperara “alguma
semelhança para com a magnificência das europeias”12, e a nobreza local
adotara os ditames do bom gosto, com investimentos não só no vestuá-
rio como nas casas, seu mobiliário e nos transportes. Por fim, em 1818,
Luccock comenta que a cidade estava mais populosa e o investimento em
conforto e no luxo havia sido ampliado; sugiram novas ruas, oferecendo
agradáveis pontos para passeios, foram erguidos edifícios públicos e “as

cargos da administração e da igreja, com seus familiares e criados. Sobre as divergências


quanto ao número de pessoas da comitiva ver MALERBA, Jurandir. 2008.
8  –  À aposentadoria se seguiu uma série de outras regulações promovidas pela Inten-
dência Geral de Polícia, como a da supressão das rótulas, ou gelosias, a proibição de
construção de casas térreas, o muramento de terrenos baldios e incentivo à construção de
sobrados, com isenção de impostos para a área da Cidade Nova.
9  –  O procurador do Senado da Câmara Antônio Alves de Araújo, em “Reflexões sobre
a edificação de novas casas na cidade do Rio de Janeiro” 9/9/1817, apud CARVALHO,
Marieta Pinheiro de. 2008, p. 83.
10  –  LIMA, Oliveira. 2006, p. 81.
11  –  LUCCOCK, Jhon. 1975, p. 80.
12 – Ibidem, p. 163.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):253-280, set./dez. 2017. 255


Ana Pessoa
Ana Lucia V. Santos

casas particulares revelavam quantidade maior de mobília, seu estilo es-


tava modernizado e adaptado à situação superior de seus possuidores”13.

A decoração dos interiores das casas nobres já contava com a oferta


de papéis de parede estrangeiros e serviços de mão de obra para sua co-
locação; diversos revestimentos para pisos, como ladrilhos de mármore
branco e preto para salas; pedra preta para ladrilhar quartos interiores e
tijolo para corredores14. Usavam-se esteirados, de junco ou palha ence-
rados, alcatifas para cobrir o chão e cortinas e safenas para adornar as
janelas. A partir de 1815, com o fim da guerra na Europa, os produtos de
luxo franceses já concorriam com os ingleses na preferência dos ricos
compradores, com grande oferta de peças de mobiliário, objetos decora-
tivos e instrumentos musicais. Generalizou-se a tradição da dupla mora-
dia15, a urbana e a rural, com sobrado no Centro e uma quinta de recreio,
para observação da natureza e o convívio social. Para atender a essa nova
demanda, as antigas chácaras coloniais, antes voltadas para a lavoura,
foram ganhando cuidados para “dispor os lugares de seus recreios com
aquele deleite que se observa nas quintas de Portugal”16. Assim, os am-
plos terrenos dos arredores da cidade foram ocupados pela “casa nobre”,
constituída por prédio assobradado, com vários cômodos e janelas, com
apoio de cocheira, cavalariça, casa de banho e dependências para escra-
vos e empregados, boa ventilação e servido de água. Esses sítios ofe-
reciam também belas vistas, atendendo ao sentimento de satisfação ou
prazer na contemplação demorada da paisagem, do pitoresco, suscitado
pelas investigações filosóficas do século XVIII a respeito do belo artístico
e natural, prática valorizada e incorporada pelas elites europeias.

Como informa o Almanack da Corte do Rio de Janeiro, de 1811, os


principais integrantes da Coroa se distribuíam em grupos pela cidade,
tendo como centro o Largo do Paço onde se instalara a família real. Havia
13 – Ibidem, p. 364.
14  –  SILVA, Maria Beatriz Nizza da. 1977, p. 49.
15  –  No período colonial, as famílias da elite moravam habitualmente na casa de campo,
mantendo uma casa na cidade para ocupação durante as festas religiosas e em razão de
negócios políticos e econômicos. Cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. 1993.
16 – PIZARRO e ARAUJO apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. 1977, p. 48.

256 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):253-280, set./dez. 2017.


Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

aqueles que residiam próximo ao príncipe, como o marquês de Vagos, na


Rua do Ouvidor, o Conde de Aguiar, na Rua dos Ourives, e o Conde de
Linhares, na Rua do Sabão; outros que procuraram recantos mais distan-
tes, como o Marquês de Bellas, o Conde Figueira, o Marquês de Lavradio
e os Cadaval, a duquesa e seus filhos, que se fixaram na distante Glória,
e o Conde das Galvêas, em Mata Porcos. E havia ainda um grupo que se
estabelecera ao redor do Passeio Público, o primeiro jardim arborizado da
cidade, como Antônio Araújo de Azevedo que, já em 1808, se instalou no
amplo sobrado de número 42.

Fig.1 – Vista do Passeio Público. “Panorama da cidade feito de Santa Teresa”, 1834, H. Schmidt.
Coleção Maria Cecília e Paulo Fontainha Geyer/Museu Imperial/Ibram.

Os grandes lotes voltados para essa área de recreio, a temperatura


mais amena e o ar mais saudável do que no velho Centro, acrescidos de
privilegiado acesso à água, trazida por aqueduto, atraíram diversos mem-
bros da Corte para o local. O vizinho da esquerda de Araújo de Azevedo
foi seu amigo, o conselheiro José Egídio Álvares de Almeida, secretário
particular de D. João e futuro marquês de Santo Amaro, no terreno onde
é hoje o edifício do Automóvel Clube do Brasil; na próxima quadra, o
marquês de Vallada e o marquês de Angeja, que se instalou na Rua das
Marrecas, em frente ao portão do jardim, e o visconde de Mirandela, na
Rua dos Barbonos, transversal a esta.

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Ana Pessoa
Ana Lucia V. Santos

Fig. 2 – “Plan of the city of Rio de Janeiro, Brazil”, 1866, Edward Gotto, Biblioteca Nacional,
com o terreno ocupado pela casa do Conde da Barca assinalado em amarelo.

Antônio de Araújo Azevedo nasceu em 1754, em Ponte de Lima,


norte de Portugal; foi morgado e administrador de propriedades da famí-
lia, ao mesmo tempo em que atuou como diplomata, e ocupou vários pos-
tos, como os de membro do Conselho de Estado, presidente do Tribunal
da Junta do Comércio, sócio honorário da Academia Real de Ciências de
Lisboa, detentor de diversas condecorações de Portugal, Espanha e Fran-
ça, e por várias vezes o de secretário e ministro17.

17  –  Ministro Plenipotenciário em Paris (1796, 1798, 1801) e em S. Petersburgo (1802-


1803), ministro e secretário de Estado da Marinha e secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros e do Governo (1804, 1808, 1815-1817), ministro e secretário do Estado do
Reino (1807, 1808, 1817) e ministro e secretário da Marinha e dos Domínios Ultramari-
nos (1814-1817).

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Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

Fig. 3 – Antônio de Araújo Azevedo por Giuseppe Troni, Museu Nacional de Arte Antiga.
Apud BANDEIRA, Júlio e LAGO, Pedro Corrêa do, p. 38.

Fig. 3 – Ministro Antônio de Araújo de Azevedo, gravura de Gregório F Queiroz


a partir de desenho de Domenico Pelegrini. Biblioteca Nacional de Portugal.

De formação iluminista, Araújo de Azevedo educara-se em meio ao


grande impulso que os estudos das ciências, principalmente as ciências
naturais e mecânicas, haviam conquistado no século XVIII, com “a exal-
tação do sábio e do cientista como o homem prático e de ação: cabe-
ria a eles construir a felicidade dos homens, com inventos e descobertas
úteis ao bem-estar e à saúde e proveito da sociedade”18. Como “homem
das luzes”, formou uma valiosa biblioteca de ciências e artes, distribuída

18  –  DIAS, Maria Odila da Silva. 1968, p. 106.

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Ana Pessoa
Ana Lucia V. Santos

em diversas áreas de interesse – em especial ciências naturais, botânica,


mineralogia, química e literatura, além de catálogos de pinturas em mu-
seus e álbuns de paisagens exóticas19 –, e adquiriu, para a Coroa, uma
importante coleção de mineralogia, a coleção Werner. Durante intervalo
de sua vida diplomática, entre 1798 e 1799, ele estivera na Alemanha na
companhia de Silvestre Pinheiro Ferreira, onde se dedicara ao estudo da
literatura alemã, da botânica e da química, e a visitas a estabelecimentos
científicos, quando contatou importantes personalidades, dentre literatos,
cientistas e aristocratas20. De modos gentis e refinados, foi considerado
pela duquesa de Abrantes, então embaixatriz em Portugal, “o homem
mais superior daquela corte tão pobre em pessoas amáveis”21.

Antônio participou intensamente da política de neutralidade portu-


guesa diante das pressões napoleônicas como partidário dos “francófilos”,
acompanhou a família real ao Brasil e, com a subida do grupo anglófilo,
ficou afastado do governo por seis anos, ainda que tenha permanecido
como conselheiro do príncipe regente. Voltou a ocupar a pasta da Mari-
nha em 1814, colaborou nas confabulações diplomáticas do Congresso
de Viena, pelo que recebeu em dezembro de 1815 o título de Conde da
Barca, com honras e grandezas. No início de 181722, com a morte sucessi-
va de ministros, terminou acumulando três pastas do governo. Seu estado
de saúde, há muito debilitado, agravou-se em meados de junho de 1817,
a ponto de não ter condições de assinar o próprio testamento. Os relatos
divergem sobre o local de sua morte – se no “seu palacete na Rua do

19  –  Sobre a biblioteca do conde, ver SILVA, Maria Beatriz Nizza da. 1977 e PINHEI-
RO, Andréa de Souza e MUNIZ, Luciana. 2012.
20  –  Sobre sua estada na Alemanha, ver Memórias da Real Academia de Ciências de
Lisboa. pp. XXVIII-XXX.
21  –  Laura Junot, esposa do General, depois Duquesa de Abrantes, foi embaixatriz da
França em Lisboa de 1805 a 1806, escreveu copiosas memórias sobre o período napoleô-
nico. Cf. ABRANTES, Duquesa. p. 68.
22  –  D. João VI formou gabinetes reduzidos com três ministros para seis pastas, sob a li-
derança de um deles. Os quatro primeiros anos pertencem ao Conde de Linhares (Rodrigo
de Souza Coutinho, 1755-1812); os dois anos seguintes são do Conde das Galvêas (João
de Almeida de Melo e Castro, 1756-1814) que acumulou três ministérios, entre eles o de
Estado e Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, até sua morte em 1814, quando
foi substituído por Antônio de Araújo de Azevedo.

260 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):253-280, set./dez. 2017.


Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

Passeio”23 ou em “casa no Engenho Velho”24, designada também de “chá-


cara Bom Retiro”25, propriedade que alugara nos arredores da cidade. Ele
faleceu em 21 de junho de 1817, aos 65 anos, “muito estimado por El Rei
Seu Amo, respeitado dos estrangeiros, querido dos portugueses, deixando
eterna saudade ao Reino do Brasil”26.

Araújo de Azevedo deixou como bens no Brasil a casa do Passeio


e sua biblioteca que, leiloados para o pagamento dos débitos, seriam ad-
quiridos pelo governo, sendo a propriedade ocupada por uma repartição
pública e os livros encaminhados à Real Biblioteca. De seu legado pes-
soal, somente seu arquivo, sem valor comercial, seria mantido na família,
levado para Portugal por seu irmão e herdeiro, e hoje integrado à coleção
Conde da Barca do Arquivo de Braga/Universidade do Minho27.

Em 1807, ao deixar Lisboa na qualidade de ministro e secretário


de Estado, Antônio Araújo de Azevedo morava em um elegante palacete
em Belém onde recebia diplomatas e políticos para jantares e reuniões,
e onde foi realizada, às vésperas do embarque, a reunião do Conselho de
Estado e da Guerra para deliberar sobre a defesa do Reino. A proprie-
dade foi ocupada pelos franceses, que se apropriaram de sua biblioteca,
móveis, quadros e objetos luxuosos; liberados em setembro de 1808, os
pertences do palacete foram parcialmente recuperados e remetidos para o
Brasil, entre os quais os livros e suas estantes28. Há, ainda, em 1810, aviso

23  –  BRUM, José Zeferino de Menezes. 1877, p. 17.


24  –  MELLO MORAES (A. J. de). 1982, p. 437.
25  –  RODRIGUES, Abel Leandro de Freitas. 2007, p. 8.
26  –  GAZETA DO RIO DE JANEIRO, nº. 51, 25 de junho de 1817.
27  –  Sobre o arquivo, ver RODRIGUES, Abel Leandro de Freitas. 2007. Em seu testa-
mento, Araújo de Azevedo instruiu o irmão e herdeiro a requerer ao rei uma remuneração
pelos seus serviços prestados de modo a assegurar renda para suas cinco irmãs.
28  –  Apesar de algumas fontes afirmarem que a biblioteca teria sido transportada no Me-
dusa, como BRUM, José Zeferino de Menezes. 1877, p. 14, o documento onde o irmão de
Antônio relaciona as despesas para a recuperação dos bens sequestrados pelos franceses
demonstra que esta havia ficado em Lisboa. A relação inclui, além dos livros, o transporte
e conserto de estantes, espelhos, lustres, piano, quadros, etc., e sua remessa para o Bra-
sil. “Auto do levantamento do sequestro por ordem do desembargador Manuel José de
Arriaga Brum da Silveira, na qualidade de juiz administrador dos bens e rendas da casa
de António de Araújo de Azevedo ausente do Reino […]” ADB/UM, Caixa 47, doc. 76

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):253-280, set./dez. 2017. 261


Ana Pessoa
Ana Lucia V. Santos

de remessa de onze fardos com vinte e quatro cadeiras e um canapé de


Lisboa para Azevedo29.

A propriedade do Passeio, por sua localização privilegiada e amplas


dimensões, atendia não só às necessidades de representação social, asse-
guradas por sua posição de conselheiro do príncipe, como abria possibi-
lidades de atividades científicas e técnicas pragmáticas, no momento que,
afastado do ministério, poderia se voltar para novos empreendimentos.
Inicialmente, Araújo de Azevedo acomodou, além de poucos objetos pes-
soais, em especial os apetrechos de um laboratório de química, os bens
de sua pasta que havia trazido consigo na nau Medusa: a coleção de mi-
neralogia e a tipografia, que seria destinada à implantação da Imprensa
Régia, posteriormente transferida para a vizinha Rua dos Barbonos. De
imediato, Araújo de Azevedo dá início à instalação do laboratório, e co-
menta com frei José da Costa Azevedo sobre a espera de encomendas
da Inglaterra de “instrumentos de que não há aqui nem um só e, além
disso, os trabalhos nesta cidade são muito lentos, porém o que é edifício
está quase feito”30; dois anos depois, em julho de 1810, ele dá notícia
ao mesmo correspondente que o laboratório “principia a trabalhar com
utilidade”31. O laboratório, conduzido pelo farmacêutico José Caetano de
Barros, prestaria serviços de destilação32 e promoveria ensaios, como os
divulgados em O Patriota, sobre seu alambique à escocesa e a extração
do óleo da mamona33.

29  –  PT/UM-ADB/FAM/FAA-AAA/A/000068. B-5(25, 2, 1).


30  –  Carta de Antônio de Azevedo Araújo a Frei Costa de Azevedo, Antônio de Araújo
Azevedo, 3 de maio de 1808. Cartas do Conde da Barca a Frei José da Costa Azevedo,
IHGB, coleção Cônego Fernandes Pinheiro, lata 581, pasta 12, DL 581.12.
31  –  Carta de Antônio de Azevedo Araújo a Frei Costa de Azevedo, julho de 1810. Car-
tas do Conde da Barca a Frei José da Costa Azevedo, IHGB, coleção Cônego Fernandes
Pinheiro, lata 581, pasta 12, DL 581.12.
32  –  Segundo relato de Francisco Vieira Goulart, em visita do Conde de Galvêas ao seu
laboratório, Antônio lhe teria dito que a sua principal receita era a venda de aguardente e
licores (SANTOS, Paraense Nadja. 2004, p. 346).
33 –  “Memória sobre um alambique existente no Laboratório de Antônio de Araújo,
que contém as invenções mais modernas da Escócia e ao qual se fizeram algumas adições
para a sua perfeição”, por Gaspar Marques e “Método para extração do óleo de mamona”,
por José Caetano de Barros. O Patriota: jornal litterario, político, mercantil, v. 1, n. 2,
fev. 1813.

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Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

Fig. 5 – Detalhe do “Panorama da cidade de Rio de Janeiro”, 1854, Philippe Benoist: Biblioteca Nacional.

A partir de 1808, com sua atuação pública restrita ao Conselho do


Estado, Araújo de Azevedo retomou suas atividades literárias34 e, entu-
siasmado com as potencialidades do Novo Mundo e com apoio de seus
conhecimentos de botânica e química, voltou-se para diferentes projetos
científicos e industriais privados. Ele desenvolveu uma série de inicia-
tivas em sua casa no Passeio e participou de empreendimentos, como a
exploração de madeira em fazenda no Espírito Santo, onde assentou um
“engenho de serrar madeiras”35, de fazenda de gado no Rio Grande do
Sul, e da organização da Sociedade Auxiliadora da Indústria e da Mecâ-
nica36. Em 1816, apoiou a vinda de um grupo de artistas e técnicos fran-
ceses, chefiados por Joaquim Lebreton, que seriam engajados na Escola
Real de Ciências, Artes e Ofícios a partir de Decreto de 12 de agosto da-
quele ano. A Escola teria por objetivo a promoção e difusão de “instrução

34  –  Araújo ocupara-se com a tradução das Odes, de Horácio, ainda que nunca as tenha
publicado, em função das críticas que o trabalho merecera de seu amigo, o poeta Felinto
Elísio (Francisco Manoel do Nascimento). Também traduziu algumas poesias de Thomas
Gray, como a The Progress of Poesy: A Pindaric Ode e a Ode de Dryden para o Dia de
Santa Cecília, in Memórias da Real Academia de Ciências de Lisboa, pp. XXXIV-XXXV.
35  –  RODRIGUES, Abel Leandro de Freitas. 2007, p. 167.
36  –  A entidade foi depois convertida na Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional.
Cf. BRUM, José Zeferino de Menezes. 1877, p. 16.

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Ana Lucia V. Santos

e conhecimentos indispensáveis aos homens destinados não só aos em-


pregos públicos da administração do Estado, mas também ao progresso
da agricultura, mineralogia, indústria e comércio” (Decreto 12/08/1816).

Fig 6. e fig 7 – Dois momentos do edifício da Rua do Passeio.


Acervo AGCRJ e acervo do Supremo Tribunal Federal – STF

A casa do Passeio foi comprada dois anos depois de sua ocupação


inicial, por 24 mil cruzados e cem mil-réis, dinheiro emprestado pelo ne-
gociante João Rodrigues Pereira de Almeida37, dando a própria casa como
garantia38. A propriedade ocupava uma área de 95 palmos de frente por
155 palmos de fundos, com 280 palmos de quintal39. Ao longo de onze
anos, Araújo faria constantes adaptações para a acomodação de diferentes
engenhos, e cultivaria seu interesse pela botânica e jardinagem, organi-
zando um jardim com cerca de “1.200 a 1.400 plantas indígenas e exóti-
cas, úteis e agradáveis”, a exemplo dos hortos para aclimatação e estudo
de espécies, anotadas no catálogo “Hortus araujensis”40.
37 –  João Rodrigues Pereira de Almeida, Barão de Ubá. De origem portuguesa, era filho
de José Rodrigues Pereira de Almeida, um dos maiores negociantes e contratador da Praça
de Lisboa do período de D. Maria I, com negócios no Brasil e na Índia. João obteve com
seu irmão Mateus, permissão para operar no Rio de Janeiro filial da firma Joaquim Pereira
de Almeida & Cia. Sediada em Lisboa, era uma das maiores empresas de negócios de
grosso, pertencente a seus irmãos Joaquim e Antônio Pereira de Almeida. Foi deputado à
Real Junta do Comércio, participou da criação do Banco do Brasil, e recebeu a comenda
de Cavaleiro da Ordem de Cristo. Em 1811, obteve o direito de cobrar imposto no Rio
Grande do Sul, pagando um adiantamento fixo. Conseguiu a construção da Estrada do
Comércio, que ligava sua pioneira fazenda de café, em Paraíba do Sul, à vila de Iguaçu.
38  –  AUTOS de incorporação... BNRJ. Sobre a relação do endividamento da nobreza
portuguesa e suas residências, ver MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas. 2003.
39  –  O que significa: 20,90m de frente, 34,10m de fundos e 61,60m de quintal.
40  –  TRIGOSO, Sebastião Francisco de Mendo. 1823, p. XLIII.

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Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

O sobrado tinha fachada de pedra e cal, com três seções no térreo –


porta de cocheira e uma janela em um lado, uma porta de cocheira e duas
janelas de outro, e ao centro, portal com duas janelas, tudo em cantaria;
e, no segundo andar, um conjunto de “nove janelas de sacada com grades
de ferro sendo todos os portais sacadas e janelas de cantaria”41. O andar
térreo era dividido em saguão ladrilhado de pedra, cocheira e cavalariça,
seguido de quartos para criados. No pavimento nobre, três salas ocupa-
vam toda a frente. Este arranjo, comum em casas de elite, era geralmente
composto por uma sala de recepções, uma sala de visitas e uma sala de
música. De modo geral, este setor social da casa era atendido por uma
escada de aparato, mas a documentação não menciona circulação vertical
nesta área.

Por volta de 1816, quando da visita do pintor Jean Baptiste Debret


à residência, a casa dispunha, em diferentes pátios, de oficina para a fa-
bricação de porcelana, de laboratório químico para melhoramento, entre
outras indústrias, da destilação de aguardente de cana e de depósito onde
jaziam peças de uma máquina a vapor mandada vir de Londres42. Havia,
ainda, o jardim no vasto terreno aos fundos da casa.

O sobrado, que ele compartilhava com o Dr. Manoel Luiz Álvares de


Carvalho43, era centro de reuniões e festas onde o conde recebia políticos,
literatos e artistas, como o vizinho e amigo José Egídio Álvares de Al-
meida, os franceses da comitiva de Lebreton, os jovens colaboradores de
O patriota, o engenheiro alemão barão von Eschwege, e onde se hospe-
dou o franco-maçom e músico austríaco Sigismund Neukomm44.
41 –  A descrição da casa é baseada nas avaliações contidas no processo de incorporação
do imóvel à Fazenda Nacional, BNRJ, Seção de Manuscritos, doc. II, 35,5,5.
42  –  DEBRET, Jean Baptiste. 1954, Vol. II, p. 251.
43 –  Dr. Manoel Luiz Álvares de Carvalho (1751-1824). Nascido na Bahia, formou-
-se médico na Universidade de Coimbra e retornou ao Brasil com a Família Real, sendo
nomeado cirurgião-mor honorário do Reino, e diretor dos Estudos de Medicina e Cirurgia
da Corte e Estado do Brasil, com honras de físico-mor do Reino. Foi autor de plano de
reorganização do estudo da medicina, com a implantação de academias médico-cirúrgicas
no Brasil. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930).
44 –  Sigismund Neukomm (177-1858). Integrante da comitiva do Duque de Luxembur-
go, Neukomm foi convidado pelo conde a permanecer no país, onde recebeu pensão do
rei e deu aulas à princesa D. Maria Teresa e ao príncipe D. Pedro; acompanhou a doença

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Araújo Azevedo decorou ricamente a casa, como vemos na breve


descrição de seus bens no anúncio do leilão de 1821: “Coleção de pintu-
ras preciosas, a óleo e a fumo, ornatos e ricas sedas para salas, e outras
diferentes alfaias, como mesas, cadeiras e aparadores”45. Quando João
Antônio Araújo Azevedo recuperou grande parte dos bens de seu irmão
sequestrados pelos franceses, foi preciso limpá-los e consertá-los, antes
de encaixotá-los para envio ao Brasil46. Muitos dos móveis estavam des-
tituídos de suas guarnições em bronze, vidros, pedras mármore e jaspes.
O documento em que João Antônio anotou as despesas menciona espe-
cificamente uma pintura da Vênus, um retrato do Príncipe, lustres, espe-
lhos, panos encarnados, um piano forte e uma carruagem com todos os
seus acessórios47.

Além disso, a casa era decorada com


caixas de ouro para rapé, algumas cravadas de brilhantes, além de
outras de várias qualidades, crachás guarnecidos de brilhantes, peças
de prata de serviço de mesa e de casa, aparelhos de louça fina de bom
gosto, [...], trastes de ferro, e outros de madeira, guarnecidos de bron-
ze dourado, como mesas, cadeiras e aparadores, além de serviço de
cozinha48.

Ele dispunha ainda de uma porção de peles curtidas, uma de madei-


ra, e muita outra mobília49. O conde era servido por 17 escravos moços,
sendo dois oficiais de ferreiro, um boleeiro, outro cozinheiro, e os demais
do serviço da casa, chácara e cavalariça. Com sua morte, o imóvel foi
adquirido pelo governo para manter os serviços do laboratório de química
conforme Decreto de 28 de agosto de 1820, sendo que a incorporação só

do conde, “o amparei em meus braços no momento derradeiro”, e lhe dedicou a “Marche


Funèbre sur la mort Cte de Barca” oferecida ao Dr. Carvalho. Ele foi posteriormente
acolhido pelo Barão de Santo Amaro, a quem permaneceria ligado mesmo após deixar o
Brasil.
45 – Diário do Rio de Janeiro, nº. 24, sábado, 27 de outubro de 1821.
46  –  ADB/UM, Caixa 47, doc 77.
47 – Idem.
48 – Diário do Rio de Janeiro n.º 300, 27 de outubro 1821, p.190
49 – Ibidem.

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Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

seria efetivada em 1825, e a sua posse, em nome da Fazenda Nacional,


em 1829.

Em 1815, o sempre atento bibliotecário Marrocos comenta que An-


tônio de Araújo havia comprado “umas nobres casas por 45 mil cruza-
dos, e nelas vai fazer a sua habitação, continuando igualmente com o
maior luxo as obras daquelas que tem habitado até aqui, e que também
são suas”50. De fato, por essa ocasião, Araújo havia adquirido as benfeito-
rias de uma chácara, em Engenho Velho, do comerciante alemão Gustavo
Kieckhoefer, agente do banco Baring Brothers em Lisboa, e depois no
Rio de Janeiro, cujo leilão foi anunciado na Gazeta do Rio de Janeiro51.
Contudo, nessa ocasião, já havia sido firmado, a 6 de maio de 1815, re-
cibo pelo procurador do comerciante, o Sr. George March. O valor de
4:991$320 (quatro contos, novecentos e noventa e um mil, trezentos e
vinte réis) pago pela transação incluía um conjunto de “trastes”52, 6 ar-
robas de cobre em panelas, uma carroça com besta, 7 pretos livres de
direitos para o vendedor e o arrendamento da chácara por dois anos, até
o último mês de maio de 181753. Com o seu estado de saúde agravado
desde maio de 181454, o aluguel da chácara por Araújo de Azevedo deve
ter atendido a recomendações médicas, conforme prática da época. Seria
lá que, a dezoito de junho de 1817, ele ditaria seu testamento55, e morreria

50 –  Luís Joaquim dos Santos Marrocos foi bibliotecário da Real Biblioteca e oficial
maior da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. Em copiosa correspondência en-
viada a sua família em Lisboa, dava notícias da Corte no Rio de Janeiro, fornecendo im-
portante testemunho sobre a vida social, econômica e política na então capital do império
português. Carta de 23 de maio de 1815. CARTAS de Luís Joaquim dos Santos Marrocos,
1939.
51 – Gazeta do Rio de Janeiro, nº 38, 13 de maio de 1815.
52  –  O recibo discrimina 4 mesas toscas, um espelho, um armário, mesa de jantar, 2
camas e uma mesa de jantar.
53  –  Relação dos escravos, trastes e importe das benfeitorias da chácara que tinha arren-
dado senhor Gustavo Kieckhoefer e hoje pertencente ao Exmo. Senhor António de Araújo
de Azevedo. [1 pp.] Nova Cota: B-47 (83).
54  –  Requerimento do Conselheiro João Antônio de Araújo Azevedo dirigido a S.M.,
solicitando remuneração pelos serviços prestados pelo seu irmão, Conde da Barca. Apud
RODRIGUES, Abel Leandro de Freitas. 2007, pp. 295-299.
55 – Testamento de Antônio de Araújo de Azevedo, Conde da Barca, apud RODRI-
GUES, Abel Leandro de Freitas. 2007, pp.292-294.

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Ana Lucia V. Santos

alguns dias depois. Em seguida, a propriedade seria arrendada ao cônsul


da Prússia, o Conde de Flemming.

A localização da chácara foi por muito tempo motivo de divergência


entre historiadores56, mas estudos de Darci Damasceno57 já apontavam
para a colina do Matoso, de propriedade dos marqueses de Lajes. O con-
fronto das aquarelas de Thomas Ender com a descrição da propriedade
no inventário da marquesa não deixa dúvidas sobre o local. O solar da
marquesa de Lajes58 ficava no alto da colina do Matoso e seus domínios
se estendiam até as ruas Mariz e Barros, do Matoso e Haddock Lobo.

Contribui para a confirmação da localização anúncio no Diário do


Rio de Janeiro, em 1824, quando é oferecida a chácara para novo arren-
damento, com descrição da propriedade, que contava com grandes casas
nobres envidraçadas, grande cocheira e estrebaria, casas para criado e
outras para escravos, e área plantada de capim, árvores de espinho, pés
de café, com grande horta e bananal. O anúncio é complementado com a
referência aos seus antigos ocupantes: “Excelentíssimo Conde da Barca,
e por morte dele passou a arrendá-la o Cônsul da Prússia o Excelentíssi-
mo Conde de Fleming”, e recomendava contato com a proprietária, que
morava na chácara vizinha59. A propriedade foi adquirida em 1872 pela

56  –  A propriedade rural do Conde da Barca aparece nas referências como situada na rua
Catumbi, ou em Mataporcos, ou no Engenho Velho. O certo é que o caminho de Matapor-
cos corresponde à atual Rua Frei Caneca, e o arraial de Mataporcos ao bairro do Estácio;
daí se tomava o caminho do Engenho Velho, pelo qual se chegava efetivamente à chácara
do Bom Retiro. A propriedade ficava na freguesia de São Francisco Xavier do Engenho
Velho, onde foram registrados os batismos realizados no oratório da chácara.
57  –  Poeta, crítico e tradutor, Darci Damasceno foi por mais de 30 anos funcionário da
Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
58 –  Isabel Leonor da Mota Leite e Araújo (1812-1859) era filha de sargento-mor José
Caetano de Araújo Vieira e dona Micaela Josefina de Araújo Vieira, tradicional família do
Engenho Velho. Foi a segunda esposa de João Vieira de Carvalho (1781-1847), o Marquês
de Lajes, militar e político, com quem teria um único filho, José Vieira de Carvalho. Ela
havia nascido na chácara do Engenho Velho, onde se casou e batizou seu filho no antigo
oratório da família. Sua propriedade tinha como vizinho seu irmão, Luiz da Motta Leite
(1817-1861).
59 – Diário do Rio de Janeiro n.º 204, 22 de julho 1824, p.3.

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Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

Sociedade Francesa de Beneficência para a instalação Instituto S. Vicente


de Paula60.

Fig. 8 – “[Vista] da casa de campo do Secr. Conde da Barca para Matacavalos”,


apud WAGNER, Robert ; BANDEIRA, Júlio, p. 335.

Ao contrário da casa da rua do Passeio, não se tem qualquer informa-


ção sobre o uso da casa quando ocupada por Araújo de Azevedo, além de
lugar de convalescença e de prática agrícola por escravos. Contudo, a sin-
gularidade do local pode ser conferida pelo testemunho de dois viajantes
que visitam o local a convite do cônsul Flemming, o pintor austríaco Tho-
mas Ender61 e o capitão de cavalaria prussiano Theodor von Leithold62;
também Chamberlain registrou, em “Ângulo sudoeste da cidade do Rio
de Janeiro”, uma vista da cidade a partir da colina63.
60  –  GERSON, Brasil. 2000, p. 342. Hoje está instalado o Hospital São Vicente de Pau-
la.
61  –  Thomas Ender (1793-1875), o pintor de paisagem da comitiva austríaca, realizou
cerca de 700 trabalhos, entre desenhos e aquarelas, durante sua estada nos país, de 14 de
julho 1817 a 1º de junho de 1818.
62  –  Theodor von Leithold (1771-1826). Cunhado de Silveira Pinheiro, conselheiro de
D. João VI e antigo companheiro do Conde Barca, o capitão de Cavalaria Leithold esteve
no Brasil em 1819, na companhia da filha e do sobrinho, Ludwig von Rango, filho do
primeiro casamento da esposa de Silveira Pinheiro; de volta a seu país, escreveu o relato
da viagem.
63  –  Em nota sobre a aquarela “Ângulo sudoeste da cidade do Rio de Janeiro”, de seu
livro, Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820, Chamber-
lain comenta a vista do fundo da baía, registrada a partir da residência do Conde.

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Em sete aquarelas luminosas, Ender busca captar suas extasiantes


sensações. Com traços rápidos, e o recurso de variados matizes de verde
e amarelo, ele enquadra os diferentes aspectos da chácara: a vegetação
que enquadra amplos e vertiginosos panoramas, com montanhas ao fun-
do; arejados espaços que cercam a entrada e fundos da casa principal, e
um único interior, a varanda, onde uma forte contraluz transmite frescor
e acolhimento64.

Duas aquarelas retratam a vista da entrada principal da escada, com


pequenas alterações entre elas: em primeiro plano, o acesso por duas es-
cadas que levam a um pátio murado, onde bancos se alternam com jar-
dineiras, tendo ao lado um jardim com árvores nativas e, ao fundo, a
fachada principal da casa, onde uma varanda formada por cinco colunas,
envolvidas por trepadeiras, dá acesso ao interior por três escadas. Em
outra aquarela, uma varanda ladrilhada, marcada por quatro colunas en-
voltas em trepadeiras, se volta para o pátio de entrada, tendo ao fundo a
cidade, o mar e a Serra dos Órgãos. O recanto dos fundos da casa também
é retratado: um caminho para carros dá forma a um canteiro com árvores
nativas, com banco, tendo ao fundo a fachada posterior da casa, com por-
tas e janelas envidraçadas, e onde as aberturas permitem se entrever um
corredor interior. As outras quatro aquarelas retratam pontos de vista da
cidade, com casario, plantações e montanhas, a partir da casa do conde
da Barca.

64  –  O conjunto dedicado à chácara, reproduzido em WAGNER, Robert e BANDEIRA,


Júlio. 2000, é composto pelas seguintes aquarelas: Entrada da casa de campo do Conde da
Barca. Aquarela 195 x 308, p. 406; Varanda. Aquarela 192 x 318, p. 486; Outro aspecto,
fundos, da casa do Conde da Barca. Aquarela 195 x 318, p. 407; Vista do novo aqueduto
próximo da residência do Conde da Barca e a Serra dos Órgãos próxima do Rio de Janeiro.
Aquarela sobre lápis, 257 x 398 p. 343. [Vista] da casa de campo do Secr. Conde da Barca
para Matacavalos. Aquarela sobre lápis 193 x 317mm p.335; Vista da residência do conde
da Barca, próximo de Matacavalo. Aquarela sobre lápis 283 x 433 p. 359; Entrada da casa
de campo do Secr. Conde da Barca. Aquarela sobre lápis 193 x 318, p. 487.

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Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

Fig. 9 – Recomposição das vistas de Ender a partir de mapa do morro da condessa de Lajes,
apud WAGNER, Robert; BANDEIRA, Júlio.

Leithold se refere à chácara em diferentes momentos. De início, ela


é comentada no contexto do caminho para São Cristóvão, onde contra-
põe a casa de campo de Tomás Antônio de Vila Nova, então principal
ministro de D. João VI, “pequena e muito modesta”, a do conde Flem-
ming, cuja altitude a tornava “ainda mais aprazível que a do Campo de
São Cristóvão”, e de onde se descortina “não só o mar como a cidade e

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a pitoresca cadeia de montanhas que lhe fica junto”65. Em outra ocasião,


já como comensal do cônsul, o viajante se deleita com o lugar, onde nos
“dias bonitos e não muito quentes respira-se das janelas dessa casa um
ar tão puro que se poderia chamar de celestial, sensação que nunca ex-
perimentei na Europa e para a qual contribui possivelmente a altitude do
sítio”66. A chácara, que lhe propicia a visão de “lindos colibris dourados
a esvoaçarem em torno do arvoredo próximo”67, seria considerada o local
mais agradável que conhecera, “um castelo de fadas”, tendo como único
inconveniente a distância da cidade68.

Apesar dos muitos anos decorridos, os ambientes retratados nas


aquarelas de Ender ainda são plenamente reconhecíveis na descrição
contida no inventário da marquesa de Lajes, realizado em 186169. Se-
gundo o inventário, o amplo terreno era delimitado por valas e cercas de
espinho, havendo ainda matas, horta e plantações de árvores frutíferas e
capim70. Várias pequenas construções se espalhavam pela colina, incluin-
do cocheira, cavalariça e um pombal. Subindo duas escadas de cantaria,
chegava-se a frente da casa, onde havia “um pátio ladrilhado com tijolos
de alvenaria com três sofás”. Do lado esquerdo da casa, havia um “jardim
com debuxo de tijolo, uma cisterna com caramanchão de madeira”.

A casa principal tinha 109 palmos de frente por 130 palmos de fun-
do71, com colunas, pilares e frontais de tijolo. Esta técnica era comum
na cidade durante o século XVIII, sendo substituída pela pedra e cal nas
obras urbanas já no início do século XIX, e persistindo por mais tempo
nas construções suburbanas e rurais. A fachada tinha sete portas e duas
janelas de peitoril, “com uma varanda reentrante revestida de tijolo de

65  –  LEITHOLD, Theodor von, et RANGO, Ludwig von.1966, p.71.


66 – Ibidem, p. 71.
67 – Ibidem, p. 71
68 – Ibidem, p. 134.
69  –  Inventário da Marquesa de Lajes, ANRJ, 3ª vara do Juízo Municipal, ZW, No 773,
Caixa 2762,1861
70 – Idem.
71  –  Palmo = 8 polegadas = 22 cm. 109 palmos de frente por 130 palmos (23,98m x
28,60m).

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Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

Hamburgo; tendo cinco colunas com três escadas de cantaria que dão
entrada para a mesma”72.

A frente da casa era voltada para a Rua do Matoso, pois da varanda


pode-se ver o mar, conforme aquarela de Ender. Ainda segundo o inven-
tário, o interior da casa é composto por “sala, dita de jantar, dita de cos-
tura, quatro gabinetes e cinco quartos, tudo forrado e assoalhado tendo
um sótão com cinco janelas em cada uma das frentes, com portais de
madeira, dividido com sala e seis quartos tudo forrado”73. O sótão não é
perceptível nos desenhos de Ender, e é possível que seja um acréscimo
posterior. A cozinha e a despensa ficavam em construção anexa, no fundo
da casa. Embora modesta, se comparada a casa da Rua do Passeio, esta
tinha tamanho e divisão semelhantes às das melhores residências do cen-
tro urbano da cidade.

O presente estudo, por meio do cuidadoso cruzamento de diversas


fontes documentais e iconográficas, tanto já conhecidas quanto inéditas,
recolhidas no Brasil e em Portugal, reconstitui as duas casas – urbana e
chácara de recreio – de Araújo Azevedo, o que permite algumas consi-
derações sobre a relação entre o seu proprietário e suas moradias, tendo
como contexto a “europeização” resultante da interação entres as elites
reinol e local, na sede do Império.

Embora seja amplamente reconhecido na historiografia que a chega-


da maciça de europeus influenciou o modo de vida carioca, pouco se tem
avançado no entendimento do que mudou efetivamente nas casas e nos
hábitos da cidade. Apesar de termos poucos edifícios sobreviventes do
início do século XIX, a ampla documentação que chegou até nós permite
investigar o impacto que a chegada de um grupo social de gosto mais sun-
tuário teve sobre a decoração e recheio das casas da elite local. Da mesma
forma, avança-se na compreensão das atitudes e expectativas dos nobres
portugueses com relação à mudança para o trópico.

72  –  Inventário da Marquesa de Lajes, ANRJ, 3ª vara do Juízo Municipal, ZW, Nº 773,
Caixa 2762, 1861.
73 – Idem.

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Ana Pessoa
Ana Lucia V. Santos

O investimento de Antônio de Araújo Azevedo em imóveis assina-


la uma posição definitiva em relação à sua fixação no Brasil. “Temos
a esperança, disse-me, de fundar um novo império neste Novo-Mun-
do, e você terá grande interesse em ser testemunha deste período de
desenvolvimento”74, comenta o músico Neukomm sobre convite de Araú-
jo de Azevedo para que permanecesse no Brasil. Partidário da criação do
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, de reconfiguração do Império
Português, Azevedo certamente adotara o Brasil como seu destino defi-
nitivo, em contraponto à maioria reinol que, após o restabelecimento da
paz na Europa, almejava o retorno a Lisboa. Outros cortesãos, como o
Visconde do Rio Seco, o Barão de S. Lourenço e o futuro Marquês de
Santo Amaro também fariam investimentos em imóveis, no sentido
de confirmar suas posições na Corte e de compromissos no Brasil.

Sobre a localização das propriedades, o sobrado da Rua do Passeio


e a chácara do Bom Retiro, na colina do Matoso, a preexistência de suas
estruturas apontam para o valor que os locais ventilados e “com vistas”
já desfrutavam junto à elite da capital colonial, como testemunham as
chácaras dos “negociantes de grosso” Velho da Silva e Carneiro Leão, na
Glória, sugerindo reflexos do gosto iluminista implementado pelos últi-
mos vice-reis. Essa tendência para a valorização da paisagem e do subli-
me seria acentuada com a chegada dos cortesãos e dos altos negociantes
ingleses e representantes diplomáticos.

A casa do Passeio, a sua “casa nobre”, seria o local das atividades so-
ciais e políticas, de expressão da dimensão pública de Araújo de Azevedo.
Cosmopolita que frequentara a elite política, científica e literária de várias
cidades europeias, de espírito curioso e sensível, ainda que sem grandes
fortunas, Antônio vai personalizar seus espaços de moradia, investindo
para qualificá-los e adaptá-los aos seus diversos propósitos de homem de
engenho e arte. Ocupou e adquiriu uma ampla propriedade urbana, em
frente ao maior jardim da cidade, promoveu obras, importou e instalou
equipamentos, organizou e decorou os principais cômodos com estuques

74  –  LANZELOTTE, Rosana e BANDEIRA, Júlio. p. 81.

274 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):253-280, set./dez. 2017.


Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo

e pinturas, distribuiu móveis e objetos de luxo, e instalou uma extensa


biblioteca, buscando reconstituir os ambientes que vivenciara na Europa.

A casa do Conde, com sua fachada nobre e cuidado ambiente de-


corativo, com espaços adequados para a promoção de reuniões e saraus,
espelha a nova sociabilidade cortesã que iria influenciar as elites locais
na superação da antiga austeridade provinciana. Conforme observado por
Luccock, a vida social da cidade era até então voltada para cerimônias
religiosas e o restrito convívio doméstico dos clãs familiares. O cuidado
com a ornamentação dos interiores, envolvendo pinturas decorativas pa-
rietais, mobiliário requintado, instalação de biblioteca em espaço próprio,
representou um alto investimento necessário para assegurar o estatuto de
representação de súdito enobrecido, o que certamente não passou desper-
cebido dos negociantes de grosso, grandes fazendeiros e altos funcioná-
rios da antiga colônia.

A ensolarada casa da colina do Matoso, cuja altura propiciava ar


fresco, paisagem inebriante e a preservação da intimidade, representa a
valorização da natureza, onde as atividades agrícolas poderiam não só
abastecer a mesa como entreter seu morador, recordando-o de suas terras
no Minho. A casa da colina seria o lugar de deleite, do cuidado da saúde
e das atividades privadas, do retorno ao ambiente rural em busca da cura,
de expressão de sua dimensão mais sensorial e íntima.

Também nessa direção, ainda que não se conheçam os pormenores


das benfeitorias promovidas pelo Conde na chácara75, é certo que Araújo
de Azevedo tenha promovido melhorias nas instalações da chácara, além
de dotá-las de mobiliário e objetos a seu gosto, na direção das transforma-
ções das chácaras essencialmente agrícolas em locais de recreio.

Antônio Araújo de Azevedo reuniu em suas casas as dimensões pú-


blica e privada de sua personalidade e a expressão de seu dinamismo
pragmático e do requinte sensível de um cortesão iluminista no Novo
75  –  O documento existente no Arquivo de Braga, intitulado ‘Restitui a escritura de ar-
rendamento e a conta das benfeitorias da chácara do Bom Retiro” apesar de mencioná-las,
não relaciona as benfeitorias. PT/UM-ADB/FAM/FAA-JAAA/005916, B-54(90).

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Ana Pessoa
Ana Lucia V. Santos

Mundo, contribuindo, sem dúvida, para a formação de uma nova mentali-


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Texto apresentado em março/2017. Aprovado para publicação em


setembro/2017.

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Visconde do Uruguai: realismo periférico,
construção do Estado e geopolítica na América Ibérica Oitocentista

281

III – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS

VISCONDE DO URUGUAI: REALISMO PERIFÉRICO,


CONSTRUÇÃO DO ESTADO E GEOPOLÍTICA NA AMÉRICA
IBÉRICA OITOCENTISTA
VISCONDE DE URUGUAY: PERIPHERAL REALISM,
CONSTRUCTION OF THE STATE AND GEOPOLITICS IN
NINETEETH-CENTURY IBERIAN AMERICA
Christian Edward Cyril Lynch1
Resumo: Abstract:
A presente comunicação tem como objetivo This paper aims to discuss some aspects of
discutir alguns aspectos da atuação política e da the political actions and works of Paulino
obra de Paulino José Soares de Sousa, o Viscon- Soares de Sousa, the Viscount of Uruguay,
de do Uruguai, e sua importância para a forma- and their importance to the formation and
ção e consolidação da política externa brasileira. consolidation of Brazilian foreign policy. In the
Tendo como objetivo primordial a preservação larger context of preserving the national state
do Estado nacional e a consolidação da posição and consolidating the position of the Brazilian
do Império brasileiro no contexto das emergen- Empire in the emerging independent nations of
tes nações independentes da América ibérica, a Iberian America, Uruguay´s performance as
atuação de Uruguai à frente do Ministério dos Foreign Minister was based both on an attempt
Negócios Estrangeiros se sustentou na tentativa to maintain as much independence as possible
de manter o máximo de independência possível from the major international powers, and on the
com relação às grandes potências internacionais pursuit of balancing and limiting expansionist
e pela busca do equilíbrio e da limitação das pre- ambitions on the continent. From a theoretical
tensões expansionistas no continente. Do ponto point of view, we seek to show how the
de vista teórico, buscamos mostrar como o rea- realism of means through which Uruguay and
lismo dos meios, pelo qual Uruguai e a diploma- Brazilian diplomacy became famous for does
cia brasileira se tornaram célebres, não implica not imply disregard for the universal values of
a desconsideração com os valores universais do international law and popular liberalism. Quite
direito internacional e do liberalismo em voga. conversely, the rationalization of political action
Ao contrário, a racionalização da ação política appears in Uruguay´s lines of argumentation
aparece, no argumento de Uruguai, como o úni- as the only possible way to achieve stability
co meio possível para alcançar a estabilidade e and security in a peripheral context in which

1  –  Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janei-


ro (antigo IUPERJ, atual IESP-UERJ). Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políti-
cos da Universidade do Rio de Janeiro (IESP-UERJ, antigo IUPERJ) e da Universidade
Veiga de Almeida (UVA). Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

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Christian Edward Cyril Lynch

segurança em um contexto periférico onde os universal right values are subject to the constant
valores universais do direito estão submetidos risk of chaos and factionalism that foster
às circunstancias de constante risco de desor- political disputes on the continent
dem e facciosismo que animam as disputas polí-
ticas do continente.
Palavras-chave: Realismo; Idealismo; Rela- Keywords: Realism; Idealism; Foreign affairs;
ções Internacionais; Estado Nacional. National State.

É impossível compreender a política brasileira naquilo que ela tem


de mais essencial caso se reduza a importância central que a preservação
da unidade do território nacional ocupou nas décadas que precederam
e sucederam a independência do país. Tratava-se, naquele contexto, de
cumprir um desígnio que, nascido com um cunho milenarista, adquiriu
forma, no final do século XVIII, junto à elite política luso-brasileira: a
ideia de um grande e poderoso Império que, sediado no Brasil, dominaria
todo o hemisfério sul graças ao comércio dos produtos produzidos em
suas terras. A vastidão de um território desocupado produzia nas imagi-
nações a especulação sobre a existência de uma quantidade surpreenden-
te de riquezas minerais ou naturais ocultas e uma fronteira agrícola de
expansão indefinida. Adequadamente conduzida por um Estado forte e
interventor, a América Portuguesa cumpriria o destino de grandeza pro-
fetizado no século XVII por Padre Antônio Vieira; ela haveria de ser,
segundo Hipólito da Costa, “o mais extenso, bem defendido e poderoso
império, que é possível que exista na superfície do globo no estado atual
das nações que o povoam”2. Por esse motivo, pode-se afirmar que o pri-
meiro sentido da história brasileira foi o do descobrimento, conquista,
ocupação e integração do espaço nacional3. Contudo, as elites políticas
que erigiram a nação brasileira não ignoravam o contraste entre o Império
potencial ou futuro – rico e poderoso – e o reino atual – pobre e fraco.
Era o que lembrava na Constituinte de 1823 o futuro Visconde de Cairu:
“O Brasil é grande em possibilidade, e não em atualidade”4. A despropor-

2  –  LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império: Portugal e Brasil,


bastidores da política: 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, p. 127.
3  –  RODRIGUES, José Honório. História combatente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982, pp. 94-101.
4  –  ANAIS da Assembleia Constituinte Brasileira, sessão de 18 de agosto de 1823.

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Visconde do Uruguai: realismo periférico,
construção do Estado e geopolítica na América Ibérica Oitocentista

ção entre fins e meios os levava logicamente a defender a necessidade de


um poder unitário poderoso para cumprir aquele desiderato.

Ciente das turbulências do processo de emancipação na América


Hispânica, iniciado quinze anos antes, os conservadores brasileiros de-
fenderam um governo representativo centralizado em torno do chefe de
Estado, amparados num diagnóstico de amorfia da sociedade colonial e
da necessidade primária de ordem como condição do progresso. Este pro-
jeto foi reciclado na década de 1830 pela ala direita do antigo partido
moderado, liderada por Bernardo Pereira de Vasconcelos, para justificar
a criação de um modelo institucional diverso daquele resultante do Ato
Adicional de 1834. Ocupados primariamente com a tarefa de construção
do Estado nacional, tão bem estudada por José Murilo de Carvalho, os
estadistas saquaremas estavam às voltas com o problema de garantir a
unidade do imenso território desocupado e com o desaproveitamento dos
recursos econômicos e naturais. Por um lado, era preciso garantir a sua in-
tegridade contra as ameaças representadas pelo inconformismo em torno
do modelo político adotado, eventualmente manifestado pelas oligarquias
provinciais. Por outro, era preciso, no âmbito da política externa, garantir
aquele mesmíssimo território contra ameaças representadas por vizinhos
republicanos e por processos políticos turbulentos que colocavam em ris-
co a segurança do Império que se pretendia criar5.

O principal articulador de uma concepção política saquarema para o


plano das relações internacionais, porém, não seria Vasconcelos. Com sua
morte, em 1850, o bastão de principal teórico do partido passou às mãos
de seu mais próximo e querido discípulo: Paulino José Soares de Sousa,
depois Visconde do Uruguai. Principal auxiliar de Vasconcelos durante o
Regresso, quando o ajudou a preparar as leis que estruturaram o modelo
político saquarema, e ministro da Justiça em 1842-43, durante o primeiro
gabinete do futuro Marquês de Paraná, de sua pluma haviam partido as
principais decisões que conformaram a severa repressão dos luzias insur-

5  –  CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Te-
atro de Sombras: a política imperial. 2ª edição revista. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
Relume-Dumará, 1996.

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Christian Edward Cyril Lynch

retos em Minas e São Paulo. Deslocado para o Ministério dos Negócios


Estrangeiros, ensaiou uma redefinição da política externa brasileira, que
a queda do gabinete acabou por adiar. Paulino pôde retomá-la quando
retornou àquela pasta, durante o longo gabinete saquarema de 1849-1853.
Desde 1831, nada menos que 27 políticos haviam se sucedido na chefia
daquele ministério; seria Paulino, portanto, durante os quatro anos em
que esteve à frente dele, o primeiro ministro brasileiro com capacidade
e tempo para desenvolver uma política externa de longo prazo. Além de
criar e organizar administrativamente o corpo diplomático brasileiro, cal-
cado em princípios minimamente profissionais, o autor do Ensaio sobre o
Direito Administrativo pôde formular as diretrizes-mestras que, até pelo
menos o final do Império, sustentariam e legitimariam a política externa
brasileira6. Se, conforme já referido, a unidade do território legada da
colonização portuguesa aparecia como um traço essencial da imagem do
Estado imperial nutrida pelos saquaremas, a sua garantia seria erigida por
Uruguai à condição de fim todo da política externa brasileira. “Cabeça
política como não temos tido meia dúzia desde a separação da mãe pá-
tria”, Uruguai teria sido, na opinião do Visconde de Mauá, veiculada em
discurso na Câmara dos Deputados, “quem, por assim dizer, iniciou uma
política externa em nosso país”7. Passou pela cabeça de Paulino escrever
um ensaio sobre a política externa brasileira, informado por sua própria
experiência, ideia de que logo desistiu:
A história de tais acontecimentos, escrita por quem foi neles, há pouco
tempo, também ator, e teve nas mãos o fio dos segredos da época,
pode fazer mal, quando os fatos não manifestaram ainda todas as con-
sequências que os pejam (Uruguai, 1862, p. 5).

Isso não significa que seu pensamento a respeito não possa ser re-
constituído por outros documentos. É o que aqui se fará.

Da leitura de todos os estudiosos que se debruçaram seja sobre a


ação política, seja sobre o pensamento de Paulino José Soares de Sousa,
6 – FLEIUSS, Max. História administrativa do Brasil. Segunda edição. São Paulo: Me-
lhoramentos, 1925, p. 259.
7 – Apud SOUSA, José Antônio Soares de. A vida do Visconde do Uruguai. Rio de Ja-
neiro: Companhia Editora Nacional, 1944, pp. 269-270.

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Visconde do Uruguai: realismo periférico,
construção do Estado e geopolítica na América Ibérica Oitocentista

depreende-se uma verdadeira unanimidade em torno do seu caráter políti-


co realista por excelência. Desde que Oliveira Vianna buscou em O idea-
lismo da Constituição (1939) e Instituições políticas brasileiras (1949),
distinguir de modo sistemático o pensamento conservador do Império
como um “idealismo orgânico”, em contraposição ao “utópico”, próprios
dos liberais, muitos foram os estudiosos que se debruçaram especifica-
mente sobre o Visconde do Uruguai, compreendido como autor arquetí-
pico do “realismo político” do Brasil oitocentista8. Um primeiro conjunto
de obras procurou situá-lo como patriarca de uma linhagem de autores
caracterizados por aquele “realismo”, em perspectiva “nacionalista”.
O primeiro deles foi Guerreiro Ramos, para quem o Ensaio sobre o Direi-
to Administrativo era “um dos primeiros documentos da posição crítico-
-assimilativa em face da produção cultural estrangeira”9. Vinte anos de-
pois, Wanderley Guilherme dos Santos aprofundou aquela perspectiva ao
situar o Visconde do Uruguai como patriarca de uma linhagem de pensa-
dores “autoritários instrumentais”, ou seja, para os quais era preciso em-
pregar o Estado forte como agência modernizadora destinada a liberalizar
a sociedade brasileira10. De forma mais detida, dois autores se dedicaram
a compreender o pensamento do visconde no contexto geral da ação dos
“saquaremas”: João Camilo de Oliveira Torres e Ilmar Rohloff de Mattos,
o primeiro em perspectiva filosófica, e o segundo, sócio-historiográfica11.
Dois autores específicos sobre a ação e a prática do Visconde, em forma
de capítulos de livro, merecem menção por sua primazia e qualidade.
O primeiro foi Ubiratan Borges de Macedo, para quem Paulino teria sido
“o iniciador do nacionalismo no Brasil”12. O segundo foi o já referido Il-
mar Mattos, que mais uma vez explica o pensamento do Visconde no con-
8  –  VIANNA, Oliveira, Instituições políticas brasileiras. Rio de Janeiro: Record, 1974.
9 – RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Segunda
edição. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995 [1954], p. 276.
10  –  SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São
Paulo: Duas Cidades, 1978.
11  – TORRES, João Camilo de. Os construtores do Império. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1968; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do
Estado Imperial. 3ª edição. Rio de Janeiro: Access, 1994.
12  –  MACEDO, Ubiratan Borges de. “O visconde do Uruguai e o liberalismo doutriná-
rio do Império”. In: CRIPPA, Adolpho (org). As ideias políticas no Brasil. Volume I. São
Paulo: Editora Convívio, 1979, p. 231.

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Christian Edward Cyril Lynch

texto de construção do Estado nacional, estatista e escravista13. Naquele


mesmo ano, os estudos sobre o Visconde foram renovados no campo da
ciência política, por meio de uma obra que comparava os pensamentos
conservador e liberal tomando como arquétipos Uruguai e Tavares Bas-
tos14. Dois anos depois, veio a consagração definitiva do Visconde como
grande clássico, graças à republicação do Ensaio sobre o direito admi-
nistrativo, com a introdução escrita por José Murilo de Carvalho e que
serviria de baliza para estudos posteriores15. De lá para cá os estudos se
multiplicaram, com numerosas teses e dissertações de mestrado sobre o
Visconde, entre as quais cumpre destacar as de Ivo Coser e Miguel Gus-
tavo de Paiva Torres16.

O descendente do Visconde, José Antônio Soares de Sousa, que foi


também seu principal biógrafo, deixou a este respeito um retrato preciso
já em 1944:
Em Paulino, prevalecia o político que pesava os homens e as coisas,
sem partido, sem rancores, mas, também, sem grandes simpatias: ape-
nas como elementos necessários para o seu jogo de equilíbrio, que não
passava de uma etapa entre o passado e o futuro, como são todos os
momentos presentes17.

Noutra obra, José Antônio afirmaria que, especificamente no âmbito


da política externa, seu antepassado tinha “o dom de se despersonalizar,
ou seja, de subtilizar a sua ação a ponto de que nela se não visse o homem,
senão a política, política esta não menos enérgica, não menos brasileira,

13  –  MATTOS, Ilmar Rohloff. O lavrador e o construtor: o Visconde do Uruguai e a


construção do Estado Imperial. In: PRADO, Maria Emília (org). O Estado como vocação:
ideias e práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Access, 1999.
14  –  FERREIRA, Gabriela Nunes. Centralização e descentralização no Império – o de-
bate entre Tavares Bastos e Visconde de Uruguai. São Paulo: Editora 34, 1999.
15  –  CARVALHO, José Murilo de. Entre a autoridade e a liberdade. In: URUGUAI,
Paulino José Soares de Sousa, Visconde de. Visconde do Uruguai. São Paulo: Editora 34,
2001.
16 – COSER, Ivo. Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil (1823-
1865). Belo Horizonte: UFMG, 2008; TORRES, Miguel Gustavo de Paiva. O Visconde do
Uruguai e sua atuação diplomática para a consolidação da política externa do Império.
Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011.
17  –  SOUSA, José Antônio Soares de. Op. cit., p. 355.

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Visconde do Uruguai: realismo periférico,
construção do Estado e geopolítica na América Ibérica Oitocentista

mas inteiramente pessoal”18. Era preciso racionalmente incorporar o aci-


dental e o contingente no cálculo político: “O imprevisto, para Paulino,
era uma probabilidade não pensada, mas que tinha de ser incluído dentro
do seu plano racional”19. Quando, depois da queda de Rosas, Paulino teve
oportunidade de conhecer o famoso liberal e futuro presidente da Repú-
blica, o argentino Domingo Sarmiento, no Rio de Janeiro, não deixou
escapar a sua impressão sobre ele: “O homem tem muito merecimento e
é muito interessante, mas tem cabeça mais poética do que política”20. Por
política, está claro, Paulino aludia ao “gosto pelos fatos positivos” de seu
mestre Vasconcelos. O que surpreende, porém, é que o realista Paulino
detestasse o exercício do poder: “Temos idas e vindas a São Cristóvão,
maçadas de pretendentes, queixas e recriminações dos amigos, descom-
posturas e calúnias nos periódicos, contrariedades sem número, e tudo
quanto há de ruim”21. Ele dizia sentir, por isso, “um desejo que me toca o
desespero de me ver livre deste inferno chamado ministério, contrário aos
meus hábitos, caráter e interesses”22.

Seja como for, seus escritos e discursos deixam transparecer um


temperamento iniludivelmente realista em matéria de relações internacio-
nais23. Entre os escritos do visconde, encontra-se o seguinte: “O essencial,
nos tempos em que vivemos, é ter força. O direito é o menos. Dou pouca
18 – Apud SOUSA, José Antônio Soares de. Honório Hermeto no Rio da Prata. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, c. 1955, p. 243.
19  –  SOUSA, José Antônio Soares de. Op. cit., p. 244.
20 – Apud SOUSA, José Antônio Soares de. A Missão Bellegarde ao Paraguai (1849-
1852). Volume II. Ministério das Relações Exteriores, Seção de Publicações, 1968, p. 311.
21  –  Apud SOUSA, José Antônio Soares de. Op. cit., p. 291.
22  –  Apud SOUSA, José Antônio Soares de. Op. cit., p. 297.
23  –  Identificada a autores como Hobbes e Maquiavel, o realismo entende que, na medi-
da em que o poder seria anterior à sociedade, justiça, lei e moralidade, as relações interna-
cionais se dariam no contexto de um estado pré-social de natureza equivalente ao estado
de guerra potencial ou declarado. A segurança nacional seria garantida pela criatividade
pessoal de um líder forte, capaz de garantir a ordem nacional contra os perigos da anarquia
sistêmica. O realismo se contrapõe assim ao idealismo, que imagina uma sociedade in-
ternacional baseada não na política, mas na ética, comprometida com a liberdade moral e
com a autonomia individual. Os autores representativos dessa tradição seriam Rousseau e
Kant (CLARK, Ian. Traditions of thought and classical theories of international relations.
In: Ian Clark e Iver Neumann (ed.). Classical theories of international relations. Oxford:
MacMillan Press, 1996, p. 8).

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importância às boas razões, quando em último caso não há força para as


fazer valer, e para repelir uma agressão”24. Não era apenas nessa descren-
ça a respeito da eficácia do direito por si mesmo que ele deixava transpa-
recer sua identidade com Vasconcelos. Ele também rejeitava o recurso a
princípios absolutos e universais como guias da ação política, preferindo
a experiência transmitida pragmaticamente pela história: “Se as lições da
história, se os fatos que se passam nos nossos dias e diante dos nossos
olhos não nos servirem para nos regularmos em casos semelhantes, não
sei que utilidade prática poderá trazer a História”25. Do reconhecimento
do primado da força sobre o direito e da experiência particular sobre o
universalismo, resultava que os estadistas brasileiros não deveriam se-
guir “aquela política que é a melhor abstratamente, mas sim aquela que
é a melhor entre as possíveis”26. Ao lado dessas convicções, somava-se,
enfim, o nacionalismo que, manifestando-se no plano da política interna
pela rejeição da importação acrítica de ideias, no plano da externa re-
chaçava qualquer ingerência das potências europeias nos negócios sul-
-americanos.

Era efetivamente para a América do Sul que Paulino voltava as vis-


tas da diplomacia brasileira, prioridade que transparecia na organização
administrativa do corpo diplomático: “Pela nova organização do corpo
diplomático, tem de ser elevadas as categorias das legações da América,
as quais pretendo dar mais importância e vantagens que às da Europa”27.
Era esta nova orientação a que um contemporâneo aludia como “a gran-
de política americana”, voltada para a solução das questões de limites,
para garantia de paz com os países vizinhos28. Embora aqui o Brasil ocu-
passe uma posição de destaque, relativamente confortável, tais relações
poderiam ter o seu equilíbrio subvertido se sofressem interferências das
grandes potências externas, que àquela altura eram três: Grã-Bretanha,
24 – Apud SOUSA, José Antônio Soares de. A vida do Visconde do Uruguai. Rio de
Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1944, p. 562.
25 – ANAIS da Câmara dos Deputados. Sessão de 4 de junho de 1852.
26 – Apud TORRES, Miguel Gustavo de Paiva. Op. cit., p. 180.
27 – Apud TORRES, Miguel Gustavo de Paiva. Op. cit., p. 176).
28 – CERVO, Amado Luiz. O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores. Brasília:
UNB, 1981, p. 29.

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Visconde do Uruguai: realismo periférico,
construção do Estado e geopolítica na América Ibérica Oitocentista

a França e os Estados Unidos. Contra elas, a capacidade de resistência


armada dos países do subcontinente, incluindo o Brasil, era diminuta, ou
mesmo nula. Hierarquizando as prioridades no âmbito da política interna-
cional, Uruguai entendia ser necessário garantir ao Brasil a simpatia, ou
ao menos a neutralidade daquelas três potências, para preservar o quadro
de relativo equilíbrio de poderes subcontinental, que lhe era favorável,
sem o qual o país não estaria em posição segura para o exercício de sua
política geográfica. Assim, ficam claras as razões conferidas por Paulino
para explicar por que a intervenção do Brasil no Rio Prata não poderia ser
operada sem se resolver preliminarmente o litígio com a Grã-Bretanha,
extinguindo-se o tráfico negreiro:
As complicações acumuladas pelo espaço de 7 anos, quanto às nossas
relações com os generais Rosas e Oribe, estavam a fazer explosão, e
o pobre Brasil, tendo em si tantos elementos de dissolução, talvez não
pudesse resistir a uma guerra no Rio da Prata e à irritação e ao abalo
que produzem as hostilidades dos cruzeiros ingleses. Nec Hercules
contra duo. Não podemos arder em dois fogos29.

Obter a simpatia ou a neutralidade das grandes potências, sobretudo


as europeias, não era, todavia, tarefa das mais fáceis. O eventual recurso
ao direito internacional de que elas lançavam mão em suas relações com
os países ibero-americanos não tinha por objetivo estabelecer relações
justas ou equitativas. Por intermédio deles, tratavam tão somente de dar
fumos de legitimidade às suas aspirações imperiais, que impunham pela
coerção e depois interpretavam por meio da já decantada hermenêutica
da força: “Essas nações fortes entendem e interpretam como lhes parece e
convém os direitos que derivam dos tratados e firmando-se nestes exigem
depois e exigem pela força”, afirmava Paulino30. Quando os conflitos no
eixo de relações assimétricas se intensificavam, o futuro visconde defen-
dia, contra os mais exaltados, que o Brasil não se deveria “lançar mão de
meios extremos senão depois de havermos convencido, por meio de todas
as tentativas, de que não se pode obter uma solução por outros meios”31.
29 – Apud SOUSA, José Antônio Soares de. Honório Hermeto no Rio da Prata. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, c. 1955, p. 24.
30 – Apud TORRES, Maiguel Gustavo de Paiva. Op. cit., p. 142.
31 – ANAIS do Senado Imperial. Sessão de 27 de julho de 1850.

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Quando as condições se aproximavam de seu ponto crítico, o Brasil de-


veria se antecipar aos atos das grandes potências, cedendo na verdade,
mas parecendo agir por vontade própria, de modo autônomo, salvaguar-
dando a dignidade nacional e adotando as medidas complementares que
lhe parecessem mais convenientes. Essa espécie de realismo periférico se
exprime na sua orientação acerca da abertura do Amazonas. Na impossi-
bilidade de resistir, era preciso se antecipar para resguardar o espaço de
decisão soberana:
Se nos opusermos aberta e completamente à navegação do Amazonas,
teremos todos contra nós, e ninguém por nós. Seremos, malgrado nos-
so, arrastados, e quem é assim arrastado não pode dominar e dirigir o
movimento que o arrasta, para dele tomar partido32.

No que toca ao eixo da política internacional que envolvia os ato-


res de relativa simetria, como era o caso do Brasil com seus vizinhos
na bacia do Prata, a questão era diversa. Em seu esforço para manter a
unidade territorial brasileira, Paulino não ignorava que a redução do grau
de imprevisibilidade da política só poderia ser obtida pela formação de
um equilíbrio estrutural de poder entre os Estados da região. Eis por que
a estratégia da política externa brasileira na região passava pela defesa in-
transigente das independências do Uruguai e do Paraguai. Indispensáveis
à garantia da hegemonia brasileira em relação à Argentina e para o acesso
ao Mato Grosso pelo estuário do Prata, elas asseguravam a liberdade de
trabalho dos brasileiros no Uruguai e uma situação confortável para a
posterior definição jurídica das fronteiras do Brasil. Entretanto, este era
um cenário que ainda lhe parecia distante. Embora esse equilíbrio esti-
vesse esboçado, com o Uruguai e o Paraguai servindo de tampões entre o
Brasil e a Argentina – as potências médias do continente –, ele estava lon-
ge de sedimentar, porque seus próprios Estados não estavam consolida-
dos. Rival do Brasil, a Confederação Argentina estava dividida entre Ro-
sas, governador de Buenos Aires, e Urquiza, governador de Entre Rios,
divisão que se projetava sobre o Uruguai. O Paraguai era uma autocracia
insulada do mundo, cuja independência não estava reconhecida sequer

32 – Apud TORRES, Miguel Gustavo de Paiva. Op. cit., p. 179.

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Visconde do Uruguai: realismo periférico,
construção do Estado e geopolítica na América Ibérica Oitocentista

por todos os vizinhos. Para piorar, Rosas tinha uma política expansionista
que, caso bem-sucedida, anexaria estes dois últimos países e poria fim ao
frágil equilíbrio da região. Em todos esses países, predominaria um tipo
de política personalista e desinstitucionalizada que oscilava entre a tira-
nia, quando ela estava em repouso, e a anarquia, quando em movimento.

Era com essa cultura política definida como anárquica que os estadis-
tas saquaremas se viam às voltas para produzir uma política externa ade-
quada aos interesses brasileiros no âmbito sul-americano. Uruguai acre-
ditava que o problema da monopolização da coerção pelo Estado só podia
ser resolvido em cada país se seus estadistas levassem em conta a cultura
política neles predominante. E, aqui, havia uma distinção clara entre os
países de matriz latina e aqueles de matriz anglo-saxã. Se uma monarquia
democratizada ou a própria república, aliadas à descentralização política,
podiam funcionar nestes últimos, elas eram desaconselháveis nos primei-
ros, cujas sociedades se caracterizavam pelo precário grau de consenso
social e o elevado potencial desagregador da sua cultura política. Nelas,
a falta de vertebração da sociedade política convertia todos os ensaios de
autogoverno e liberalismo franco em anarquia, caudilhagem e opressão
oligárquica. Somente um governo centralizado, descomprometido com
as facções e com o localismo, de que a França apresentava o modelo,
poderia garantir a ordem pública e a efetividade da Constituição33. No
âmbito da política interna, pleiteando o parlamentarismo puro e a descen-
tralização política, os luzias exprimiam, para Uruguai, as virtualidades
anárquicas da cultura latina: quando estavam na oposição, recorriam ao
golpe de Estado, à rebelião e ao separatismo; quando estavam no poder,
tentavam se
consolidar e perpetuar, acastelando-se nas assembleias provinciais,
nas capitais das províncias, reunindo em suas mãos o feixe das rédeas
que haviam de conservar na dependência e dirigir os mais pequenos
negócios dos municípios34.

33  –  URUGUAI, Paulino José Soares de Sousa, Visconde de. Ensaio sobre o Direito
Administrativo. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1960, pp. 12 e 385.
34 – URUGUAI, Visconde do. Estudos práticos sobre a administração das províncias
do Brasil. Primeira parte: Ato Adicional. Tomo I. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional,

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No campo das relações internacionais, pautada pela inexistência de


Estado soberano capaz de impor a paz pela coerção dos súditos recal-
citrantes, a política adquiria contornos anárquicos ainda mais claros do
que no campo da política interna, onde os saquaremas já haviam se es-
merado por seus diagnósticos e receituários realistas. Era neste âmbito
que, por excelência, sempre que se apresentassem “circunstâncias” de
perigo iminente para o Estado brasileiro se justificava o recurso à razão
de Estado. Se a política externa brasileira desejava uma paz que dependia
do equilíbrio de poder entre os países da bacia do Prata, Paulino susten-
tava que ela não poderia abrir mão de recorrer à razão de Estado para
atingir seus objetivos, o que, na prática, implicava substituir a política
da neutralidade, que vinha sendo observada desde a independência da
Cisplatina, por outra, de caráter intervencionista. O inimigo premente a
ser combatido era o expansionismo rosista. Obtida a queda de Oribe e
de Rosas, porém, Paulino retomava o princípio da não intervenção nos
assuntos internos vizinhos. A intervenção se justificara como uma medida
excepcional, porque esgotados os demais meios suasórios de garantia da
segurança nacional:
Não tomaria armas contra Oribe e Rosas se estes se tivessem prestado
a arranjar amigavelmente as dificuldades existentes, e tivessem ado-
tado medidas que fizessem cessar as violências cometidas no Estado
Oriental contra os súditos do Império35.

Apenas a estabilização política da região garantiria o enraizamento


de seus respectivos Estados num quadro de ordem e civilização, e por
isso Paulino recomendava aos seus interlocutores da região a necessi-
dade de “ir pouco a pouco extinguindo o germe das discórdias que nos
têm dividido, acalmar as paixões dos partidos”36. O progresso econômico
não era um dado de pouca importância no fomento daquela estabiliza-
ção; por essa razão, Uruguai afirmava que o governo brasileiro desejava
“promover relações comerciais com os Estados conterrâneos, facilitar o

1865, p. 208.
35 – Apud SOUSA, José Antônio Soares de. A vida do Visconde do Uruguai. Rio de
Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1944, p. 318.
36 – ANAIS do Senado Imperial. Sessão de 27 de julho de 1850.

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Visconde do Uruguai: realismo periférico,
construção do Estado e geopolítica na América Ibérica Oitocentista

desenvolvimento recíproco para eles e para o Brasil, da sua população,


comércio e riqueza”37.

Como se percebe, de modo análogo ao que se passava no plano da


política interna, o realismo particularista dos saquaremas também não
prescindia de elementos universalistas, liberais, no plano da política ex-
terna. Duas razões podem ser aqui elencadas para tanto: a primeira, de
fundo, decorria da sua adesão sincera aos ideais civilizatórios, identifica-
dos também com o liberalismo; a segunda, instrumental, decorria do re-
conhecimento da inferioridade do Brasil no campo do “eixo assimétrico”
das relações internacionais. Para se proteger das investidas dos fortes por
razões realistas de Estado, o Brasil precisava recorrer ao discurso ético ou
moral do direito internacional. Uruguai explicava:
Como têm os Estados Unidos, a Inglaterra e outras nações poderosas,
não temos nós força, posição e importância que nos dispense de pro-
duzir razões coerentes, de fundar-nos em doutrinas aceitáveis pelos
nossos contendores. É preciso uma defesa que se não obstar aos seus
intentos, possa pelo menos embaraçá-los e modificar razoavelmente
as suas exigências, dando-nos garantias38.

A aparência exterior de força do país, combinada com sua realida-


de interna de fraqueza, processada por uma análise realista das relações
internacionais, sugeria aos saquaremas a adoção de uma política externa
baseada num discurso jurídico, que oscilava entre o idealismo e o rea-
lismo; que compreendia a coragem, somada, porém, à prudência, à ha-
bilidade, às boas táticas, à esperteza e à inteligência; uma política em
que a tática era quase sempre idealista ou racionalista, a serviço de uma
estratégia realista39. Daí que a política externa brasileira desde então se
orientasse por três diretrizes. A primeira delas era a da apologia do paci-
fismo e da arbitragem quando obrigados a lidar com as ameaças oriundas
das grandes potências europeias da época, diante da impossibilidade de
confrontá-las. A segunda diretriz consistia em tentar resolver legal e paci-
37 – Apud SOUSA, José Antônio Soares de. Op. cit., p. 338.
38 – Apud SOUSA, José Antônio Soares de. Op. cit., pp. 444-445.
39  –  CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil.
4ª. Edição revista e ampliada. Brasília: Editora da UnB, 2011, p. 115.

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ficamente as questões de fronteira com as repúblicas vizinhas, apoiando-


-se nos direitos históricos e no uti possidetis. Nas instruções que deu a
Pimenta Bueno quando de sua missão no Paraguai, Uruguai foi claro ao
sustentar o princípio do uti possidetis para resolver as questões lindeiras,
amparando-se no argumento de que o tratado de Santo Idelfonso havia
caducado quando a Espanha declarou guerra a Portugal em 1811. Foi
assim depois de 1849, com a entrada de Uruguai para o ministério, que
tais diretrizes foram firmadas e seguidas de modo invariável40. A terceira
e última diretriz, por sua vez, era uma exceção à segunda e aplicava-se
especificamente à região do Prata, autorizando o recurso à intervenção
militar, sempre que necessário manter o equilíbrio de poder da região.
Tratava-se de uma política orientada por um idealismo realista, análogo
àquele que os orientava no plano da política interna, e que, como tal, se-
guia “o caminho da moderação”41.

Em conclusão, creio que a presente comunicação fortalece a imagem


do Visconde do Uruguai como primeiro grande formulador da política ex-
terna brasileira, no contexto das diretrizes gerais dos saquaremas oitocen-
tistas, caracterizada por um realismo acentuado, atravessado pela ideia
de que a razão de Estado deveria prevalecer sobre o liberalismo sempre
que as circunstâncias assim o exigissem. Essa orientação continuou a ser
praticada depois de Uruguai, pelo Visconde do Rio Branco e pelo Barão
de Cotegipe, ainda que crescentemente oculta no plano da justificação pú-
blica. Interrompido brevemente no começo da República, esse realismo
saquarema seria restabelecido pelo Barão do Rio Branco a partir de 1902.
O Barão se limitaria a adaptar as linhas mestras daquela levada a cabo pe-
los estadistas imperiais, de cuja tradição se considerava conscientemente
herdeiro, adaptando-a, no essencial, ao contexto republicano, ao discurso
“idealista” e às novas circunstâncias do ambiente internacional.

40 – Apud SOUSA, José Antônio Soares de. Op. cit. p. 376.


41 – Apud SOUSA, José Antônio Soares de. Op. cit., p. 344.

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___. Estudos práticos sobre a administração das províncias do Brasil. Primeira
parte: Ato Adicional. Tomo I. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1865.
VIANNA, Francisco José de Oliveira Vianna. Instituições políticas brasileiras.
Rio de Janeiro: Record, 1974.

Arquivos:
AACB – Anais da Assembleia Constituinte Brasileira.
ASI – Anais do Senado Imperial.
ACD – Anais da Câmara dos Deputados.

Texto apresentado em janeiro/2017. Aprovado para publicação em


setembro/2017.

296 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):281-296, set./dez. 2017.


Reconfiguração regional e disputa oligárquica no Sudeste brasileiro no final do
Império: imigração, ensino agrícola e o projeto da Província do Rio Sapucaí

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RECONFIGURAÇÃO REGIONAL E DISPUTA OLIGÁRQUICA


NO SUDESTE BRASILEIRO NO FINAL DO IMPÉRIO:
IMIGRAÇÃO, ENSINO AGRÍCOLA E O PROJETO DA
PROVÍNCIA DO RIO SAPUCAÍ
REGIONAL RECONFIGURATION AND OLIGARCHIC DISPUTE
IN SOUTHEAST BRAZIL AT THE END OF THE EMPIRE:
IMMIGRATION, AGRICULTURAL EDUCATION AND THE
PROJECT OF THE PROVINCE OF RIO SAPUCAÍ
João Eduardo de Alves Pereira1
Resumo: Abstract:
O presente artigo apresenta e comenta tre- This article presents and comments on excerpts
chos de um projeto de lei proposto ao Senado from a project proposed to the Senate of the
do Império, em 1887, de criação de uma nova Empire in 1887 to create a new province between
província entre Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio de Janeiro, Minas Gerais and São Paulo,
São Paulo: a Província do Rio Sapucaí. Politica- namely The Sapucaí River Province. The project
mente, o projeto visava ao enfraquecimento do was politically aimed at weakening both the
crescente poder de polarização da cidade de São growing power of polarization and the strength
Paulo e da força de setores republicanos lá radi- of republican sectors in the city of São Paulo.
cados. Tratava ainda de outros relevantes aspec- It also dealt with other relevant issues and
tos, questões e elementos do ambiente institu- questions related to the institutional, political
cional, político e econômico da década de 1880, and economic environment of the 1880s,
a exemplo do arcaísmo das classes dominantes such as the anachronism of the ruling classes
do país e do caráter extensivo de sua economia of the country and the extensive character
agrária, o que retardava a implantação de inova- of its agrarian economy which delayed the
ções agronômicas verificadas em outros países, implementation of the agronomic innovations
àquela época. O projeto é um testemunho de as- that had already been introduced in other
pectos do funcionamento do Estado brasileiro, countries back then. The project reveals some
que, aliás, parecem estar ainda presentes mesmo aspects of how the Brazilian State operated,
no século XXI, conforme: as assimetrias de po- some of which seem to be present to this day.
der entre os níveis da administração pública; a Worth mentioning are the asymmetries of power
pouca transparência nas relações entre os seto- in the levels of public administration; the lack
res público e privado; a incompreensão quanto of transparency in the relations between public
à importância do desenvolvimento de Ciência e and private sectors; and the lack of awareness
Tecnologia para o efetivo desenvolvimento do regarding the importance of fostering science
país e de seu povo. and technology for the effective development of
the country and its people.
Palavras-chave: Brasil Império; Economia Keywords: Brazilian empire; regional economy;
regional; Poder oligárquico; Ciência; Ensino oligarchic power; science; agricultural
agrícola. education.

1  –  Doutor em Engenharia de Produção pela COPPE/Universidade Federal do Rio de


Janeiro (UFRJ). Mestre em Geografia pela UFRJ. Professor Associado/Economia Política
/Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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João Eduardo de Alves Pereira

Introdução
Ao realizar pesquisa no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro –
IHGB, sobre a evolução industrial no Sul de Minas Gerais nos anos finais
do Império e nas décadas iniciais da República, especialmente nos muni-
cípios de Itajubá e Santa Rita do Sapucaí, tive acesso a originais de pro-
jetos privados enviados ao governo imperial, que tinham como objetivo
obter concessões de ferrovias, navegação fluvial e colonização/imigração
no Sudeste brasileiro.

Em suas memórias descritivas, aqueles projetos de concessões apre-


sentavam dados, informações e aspectos da vida local/regional nas re-
giões respectivas. Entre os registros pesquisados, encontramos um do-
cumento datado de 1887, sob o título Projeto de Lei para a Criação da
Província do Rio Sapucaí2, que fora apresentado ao Senado Imperial pelo
paulista Joaquim Floriano de Godoy (1826-1907), um médico formado
no Rio de Janeiro, em 1852, e que se elegera deputado-geral nas legis-
laturas de 1869 e 1872. Foi presidente da Província de Minas Gerais,
entre 1872 e 1873, senador por São Paulo de 1873 até 1889, e tinha base
política no norte paulista, contando ainda com o apoio de lideranças do
sul de Minas3.

O presente texto pretende tecer comentários acerca do referido pro-


jeto, destacando sua originalidade nos contextos político-institucional e
econômico da década de 1880, considerando o caráter extensivo da eco-
nomia agrária do Império, que retardava a introdução de novos produtos e
novos processos de produção com base em avanços das ciências agronô-
micas, verificados no exterior, à época. Por outro lado, o projeto afirmava
a necessidade de substituição do trabalho escravo, discutia questões polê-
micas como disputas entre províncias e, ainda, entre o Brasil e os vizinhos
do Prata pela atração de imigrantes europeus não ibéricos.

2  –  GODOY, Joaquim Floriano de. Projecto de Lei para Creação da Província do Rio
Sapucahy. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert & C., 1888, 261p.
3  –  Informações adicionais sobre a biografia do senador Joaquim Floriano de Go-
doy podem ser obtidas no site: https://www.geni.com/people/Joaquim-Floriano-de
God%C3%B3i/6000000028263551598

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Reconfiguração regional e disputa oligárquica no Sudeste brasileiro no final do
Império: imigração, ensino agrícola e o projeto da Província do Rio Sapucaí

Vale salientar o fato de que, além dos pontos acima mencionados, o


projeto debatia as dificuldades crescentes do Império para manter o unita-
rismo diante de elites locais/regionais, que pleiteavam, com o recurso às
retóricas republicana e separatista, medidas de descentralização político-
-administrativa e maior autonomia fiscal, enfim, algo na direção de uma
forma federalista de Estado.

A Província do Rio Sapucaí: justificativas e objetivos políticos e


regionais
O projeto para criação da Província do Rio Sapucaí tinha como cen-
tralidade reunir em um mesmo território as regiões mineiras do Sul e do
Triângulo, bem como a seção paulista do Vale do Paraíba do Sul e o litoral
norte de São Paulo. Com capital prevista para Taubaté, o projeto visava
ao enfraquecimento do poder de polarização da cidade de São Paulo e da
força política de setores republicanos. Estes, por sua vez, estariam asso-
ciados a interesses da Estrada de Ferro Inglesa em continuar a controlar/
monopolizar o movimento de pessoas e cargas entre o porto de Santos e
São Paulo-Jundiaí, ou seja, como o único corredor ferroviário para expor-
tações/importações entre o litoral e a “terra roxa” do Planalto Paulista e
seus novos cafezais.

A proposta da nova Província receberia críticas e forte oposição dos


grupos dominantes da política paulista, além de agressivos ataques pes-
soais ao autor do projeto. Defendendo-se, Godoy publicaria, em 1887/88,
o projeto em forma de livro contendo mais de 200 páginas, nas quais
fazia a defesa de sua iniciativa e apresentava os benefícios que a criação
da nova Província poderia propiciar ao país. Esta publicação pode ser
consultada não somente no IHGB, como também em versão digitalizada
pelo Senado Federal4.

O texto do senador Godoy projetava expressivas mudanças na orga-


nização agrária do Vale do Paraíba, para a reversão do quadro, já então
evidente, de decadência diante da fronteira do Oeste Paulista, nas regiões

4  –  Acesso pelo site do Senado Federal: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242530.

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João Eduardo de Alves Pereira

de Campinas e Ribeirão Preto. A pretendida reorganização produtiva no


Paraíba do Sul envolveria a introdução da policultura, com base na in-
trodução do cultivo de videiras e da produção de vinhos por imigrantes
italianos.

Tais atividades assegurariam disponibilidade de mão de obra às gran-


des lavouras de café ainda existentes, devido às sazonalidades da uva e do
café serem complementares. O Vale do Paraíba se encontrava diante de
crescente escassez de força de trabalho, situação decorrente da Abolição, da
evasão dos libertos e da atração de mão de obra pela abertura/expansão da
fronteira agrícola no oeste de São Paulo, no final do século XIX.

Diante disso, Godoy propunha a reestruturação de território produti-


vo no Vale do Paraíba do Sul. Cabe registrar que o conceito de território
produtivo parte do princípio de que uma dada região só alcança especia-
lização produtiva quando toda uma série de relações econômicas, sociais,
jurídico-políticas, tecnológicas, ambientais e culturais se desenvolve.

Portanto, para o Vale do Paraíba do Sul cafeeiro e escravocrata fu-


gir à decadência então vislumbrada, seria urgente mudar sua cultura pro-
dutiva regional, o que demandaria, entre outras medidas, a fundação de
escolas de agricultura. Isto, sem dúvida, era algo revolucionário para um
país que, mesmo sendo agrário-exportador, continuava, naquela altura,
a se pautar por métodos extensivos e arcaicos de produção, que reque-
riam incorporação constante de terras virgens, com contínua expansão da
fronteira agrícola. Como já ficou assinalado, o senador Godoy era alvo
de severas críticas por parte da imprensa paulista e até ridicularizado por
seus pares no Parlamento Imperial. Godoy justificava seu projeto para a
nova província, observando:
[...] Para que a nova província do Rio Sapucaí caminhe, desenvolva-se
e multiplique as riquezas públicas e particulares, basta que se rompam
os laços que hoje prendem as duas regiões (Triângulo e Sul Mineiros
e Norte Paulista) a suas capitais atuais; laços estes que vão lenta e
calculadamente asfixiando, usufruindo-as, entretanto, os centros ad-
ministrativos em proveito e benefício unicamente das zonas chamadas

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Reconfiguração regional e disputa oligárquica no Sudeste brasileiro no final do
Império: imigração, ensino agrícola e o projeto da Província do Rio Sapucaí

ricas, como sejam o Sul e o Oeste de São Paulo e a Mata de Minas;


entregando aquelas ao mais deplorável e condenado abandono...5

Com relação ao Sul de Minas e ao Triângulo Mineiro, a nova Pro-


víncia poderia trazer o compromisso de ataque a um de seus principais
problemas logísticos: a deficiente malha de transportes formada por ca-
minhos toscos e por rudimentares picadas, só transitáveis pela destreza e
ousadia de carreteiros e tropeiros experientes. Era preciso modernizar a
estrutura de transportes e, sobretudo, construir ferrovias. Na linha do seu
projeto, Godoy afirmava:
[...] Sejam construídas estradas de ferro que abranjam todas as zonas
sul-mineiras, e ver-se-á a direção mental de seus habitantes tomar um
rumo novo, povoando suas terras com o imigrante, fundando grandes
estabelecimentos industriais já por eles exercidos em pequena escala
[...] Nesta questão de um bom traçado de estrada de ferro para o Sul
de Minas está envolvida outra de não menor importância. Refiro-me à
da alimentação pública da Capital do Império [...] Quase todo o gado
consumido nesta Corte é fornecido pelo Vale do Rio Paranaíba, quer
na margem goiana, quer na mineira; e, seria um despropósito conduzi-
-lo dali nos carros da (ferrovia) Mogiana com percurso de 1.385 km;
e, muito menos embarcá-lo em Santos [...] O objetivo do Sul de Minas
não é o acanhado porto de Santos, é sim a cidade do Rio de Janeiro, a
grande capital do Império, o centro de luz que irradia clarões civiliza-
dores aos mais remotos confins do Brasil. Para que, pois, contrariar a
natureza das coisas?6

Neste contexto, pode-se inferir que o projeto de Godoy, de fato, além


das justificativas econômicas, apresentava, também, claros objetivos po-
líticos, qual seja: o esvaziamento do corredor Santos/São Paulo/Jundiaí
e, com isso, da forte retórica republicana e separatista, do movimento de-
nominado “Pátria Paulista”. O fortalecimento, à época, da cidade de São
Paulo se fazia na visão dele, por intermédio do aumento de sua centrali-
dade administrativa, em detrimento da do Vale do Paraíba Paulista – este

5  –  GODOY, Joaquim Floriano de. Projecto de Lei para Creação da Província do Rio
Sapucahy. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert & C., 1888, p.14.
6  –  GODOY, Joaquim Floriano de. Op. cit., pp. 33-36.

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João Eduardo de Alves Pereira

que ficava cada vez mais incapaz de concorrer com as regiões cafeiculto-
ras novas de Ribeirão Preto e Campinas.
[...] A (região) do Norte tem sua saída para Ubatuba, e ao Centro para
Santos e a do Sul para Iguape. A política centralizadora da Capital
da Província tem, porém, esquecido a formação natural das coisas e
adotado medidas artificiais que forçam violentamente as duas regiões
do Sul e do Norte (de São Paulo) a serem tributárias a Santos, isto com
enorme gravame do seu desenvolvimento agrícola e comercial7.

Reforçando a questão da centralização política e econômica em tor-


no de São Paulo e de Santos, o autor do Projeto para a Criação da Provín-
cia do Sapucaí observava ainda:
[...] Se o Norte não tem progredido tão rapidamente como aquelas
regiões (da fronteira oeste), a culpa não cai de cheio não sobre a infe-
cundidade de seu solo ou incapacidade de seu povo, mas sim sobre o
Governo Provincial, cujo apoio prestado às outras partes da província
tem sido sistematicamente negado a ele (Norte)8.

Na passagem acima, é importante destacar a queda da fertilidade dos


solos como um dos motivos para a decadência do Vale do Paraíba Paulis-
ta. Godoy argumentava que a questão de infertilidade estava relacionada
ao caráter extensivo dos expedientes agrícolas, e, também, ao emprego da
mão de obra escrava:
[...] não mais presenciarmos esse desolador espetáculo, que nos apre-
sentam já vários municípios, de terras desnudadas, de cafezais aban-
donados por imprestáveis, quando é sabido que um cafeeiro pode du-
rar 120 anos, frutificando abundantemente. Extinto o braço escravo,
extingue-se a lavoura extensiva, cedendo lugar à lavoura intensiva,
para a qual não há terras cansadas9.

Sobre extensividade e intensividade nos regimes agrícolas, continua-


va Godoy:
Eliminado o braço escravo, a substituição da lavoura extensiva pela
intensiva ou científica se impõe como corolário irrecusável [...]. Ago-

7 – Ibidem, p. 215.
8 – Ibidem, p. 105.
9  –  GODOY, Joaquim Floriano de. Op. cit., p. 214.

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Reconfiguração regional e disputa oligárquica no Sudeste brasileiro no final do
Império: imigração, ensino agrícola e o projeto da Província do Rio Sapucaí

ra, não é perder tempo; é urgente, mesmo aos trambolhões fazer aqui-
lo que já devia estar feito com longa antecedência. O grande e verda-
deiro mal de nosso país está no governo dos legistas, no reinado dos
legistas, no reinado exclusivo das letras; e, para cúmulo de desgraças,
o povo ignorante não percebe a diferença entre as letras e as ciências.
Diz-se que o nosso país é essencialmente agrícola, e não temos esco-
las de agricultura! Só tínhamos a cultura do café [...]. Abalado o Rei
Café, a mais medonha perspectiva de um inevitável naufrágio finan-
ceiro se nos antolha. Só agora, se começa a perceber que uma cultura
exclusiva é um imenso perigo social [...]. É minha convicção que só
e só a diversidade culturas e principalmente da vinha pode-nos dar a
imigração em massa com capitais, fazendo cessar o expediente atual10.

Diante disso, Godoy propunha que a imigração fosse vista além do


que uma mera substituição de mão de obra. O problema, porém, é que o
Vale do Paraíba Paulista não estava sendo privilegiado no recebimento
de imigrantes. O oeste da província estava a receber a maioria dos tra-
balhadores estrangeiros, contratados por comissários na Europa ao preço
da 70$000 (setenta mil-réis) por pessoa. Esta política de atração da imi-
gração, no entanto, seria, em sua visão, responsável por duas situações
indesejáveis:

a) onerava, em muito, a economia da Província com o financiamento


público de despesas de vinda e de colocação do imigrante;

b) era incapaz de manter o cidadão estrangeiro e de permitir que ele


se desenvolvesse e criasse vínculos afetivos e econômicos no país.

Com relação à imigração, o Senador ilustra bem as dificuldades en-


frentadas para o sucesso de uma política de atração eficiente:
Com grande dispêndio que tem feito a Província de São Paulo, desde
1882 a 1886, só tem pedido receber, não obstante, 152.768 imigrantes.
Que colocação, porém, tem ele dado a esses advindos? Na sua máxi-
ma parte, estão empregadas como jornaleiros dos grandes fazendeiros.
Ora, com tal sistema apenas consegue a província colocá-los proviso-
riamente; sujeitá-los ao trabalho para unicamente poderem adquirir
meios de logo mais tornarem à mãe-pátria [...] O que deve querer a
10 – Ibidem, pp. 149-150.

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João Eduardo de Alves Pereira

província é construir o quanto antes a pequena propriedade, para nela


o imigrante ser colocado e afinal criar raiz! D’outro modo, ele será
considerado substituto do braço escravo, o que de qualquer maneira
já é confirmado por essa guerra feroz que na Europa abriu-se contra a
imigração para o Brasil, como o confirma a Bélgica, e ainda a França,
a mesma Itália e a mesma Alemanha! Logo, sem o imigrante tornar-se
proprietário, ainda mesmo nas terras tidas por sáfaras do norte de São
Paulo, o que de definitivo, de produtivo, de simpático contará conse-
guir a administração da província a este respeito? [...] A província do
Rio Grande do Sul confirma o que acabo de expor, desde que se atente
para o seu serviço de imigração [...] Estes imigrantes (que foram para
o Rio Grande do Sul) desde o princípio foram proprietários de peque-
nos lotes de terra, mas nunca braços alugados dos grandes fazendei-
ros, como acontece em São Paulo [...] O resultado de política de tal
ordem é tão nefasto, que chega ao ponto de como está acontecendo a
produzir a escassez dos gêneros de primeira necessidade! A miséria
tem ampla estrada para percorrer, e ela já se apresenta às portas de
riquíssima província (de São Paulo) seguida de seu negro cortejo[...]11.

A crença de Godoy no sucesso da introdução da viticultura para a


economia do Vale do Paraíba se fundamentava no significativo incremen-
to das ciências agronômicas na Europa, sobretudo, na Prússia, ao longo
do século XIX. Para o Senador do Império, teria sido o notável incre-
mento de sua produtividade agrícola o fator-chave para que aquele país
liderasse o processo de unificação alemã. Existiriam na Prússia cerca de
4.000 sociedades de agricultura, 200 estabelecimentos de instrução agrí-
cola, 80 laboratórios químicos, 200 professores ambulantes e 400 institu-
tos agronômicos. Godoy sustentava que era urgente mudar expedientes,
hábitos, costumes já enraizados no comportamento de setores das classes
dirigentes do país. A incapacidade confessa, aludida acima, era verificada
também na questão do bacharelismo:
Há muito tempo que penso que o regime de instrução pública superior
da velha Faculdade de Direito (do Largo de São Francisco) é de todo
incapaz de provar as aspirações deste século. E na verdade; naquela
Faculdade a instrução ainda hoje é regulada pela de Coimbra, no ramo
do ensino da jurisprudência: portanto, que mais pode ela produzir se-

11  –  GODOY, Joaquim Floriano de. Op. cit., pp. 139-142.

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Reconfiguração regional e disputa oligárquica no Sudeste brasileiro no final do
Império: imigração, ensino agrícola e o projeto da Província do Rio Sapucaí

não poetas e romancistas, oradores e literatos? O seu curso de matérias


preparatórias, ainda também tem a mesma origem, dá-lhe por base,
não conhecimentos científicos, mas sim elementos de uma literatura
muito aquém dos novos ideais da humanidade12.

Para o desenvolvimento da viticultura, a escola proposta por Godoy


teria um custo de implantação estimado em torno de 400 contos de réis,
mas, no documento por nós consultado no IHGB, não há registro se essa
instituição seria privada ou pública. Apenas, Godoy ressalvava que a ad-
missão aos quadros discentes se faria nos mesmos moldes da Escola de
Minas de Ouro Preto (MG). Seria oferecido ensino técnico, de três anos,
com opção de internato. No primeiro ano, seriam ministradas as discipli-
nas de Física, Química, Botânica e Zoologia. No segundo ano: Quími-
ca Orgânica, Geologia Aplicada ao Estudo de Solos, Biologia Industrial
(criação de tipos diferentes de gado, em escala comercial). No último
ano, Viticultura Aprofundada, com estudos de solos, adubos e corretivos
químicos, culturas de cereais consorciados, enxertia, parasitologia das vi-
nhas e cafezais, e, higiene veterinária e humana. Continuando a defender
a necessidade e a urgência de implantação de sua Escola de Viticultura
para o Vale do Paraíba, Godoy cita trechos extraídos de um jornal pau-
listano da época, Diário Popular (sem especificação de data ou páginas),
em que se apoiava seu projeto:
[...] O cafeeiro não tem literatura, não tem tradições históricas, partin-
do do berço da civilização, não fala ao coração, não apaga saudades,
não atrai, portanto, o imigrante. O colono não o aceita, senão sob pres-
são da penúria e provisoriamente, como o sentem atualmente nossos
estoicos fazendeiros. Entretanto, a lavoura do café é plenamente acei-
tável para o imigrante, do momento em que se apresente abrandada,
mitigada, largamente diluída pela vizinhança imediata da vinha [. ..] A
lavoura do café não poderá ser normal, os nossos fazendeiros não te-
rão pleno sossego de espírito, enquanto não puderem contar com uma
grande reserva certa de braços disponíveis para as colheitas [...] Fa-
zendas há, que ficam sem durante o ano inteiro um pessoal de serviço
muito superior às necessidades, só para não terem falta de braços na
colheita [...] Ora, a lavoura da vinha em grande escala vem dar ao pro-

12 – Ibidem, p. 193.

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João Eduardo de Alves Pereira

blema serviço em certas quadras do ano. Entretanto, a grande maioria


dos fazendeiros se vê obrigada a entreter, a mais eficaz e radical so-
lução, colocando a todos em um estado plenamente normal. A cultura
da vinha fará surgir espontaneamente a pequena lavoura. A pequena
lavoura é uma condição de ordem e uma garantia da grande lavoura.
A coexistência e a solidariedade de ambas é um dos traços mais carac-
terísticos da civilização moderna. Outrora, era absolutamente impos-
sível a existência da pequena lavoura. A divisão das classes, a radical
separação entre proprietários e trabalhadores, o direito exclusivo de
uns sobre a terra e a proibição a outros de qualquer forma de apropria-
ção de bens constituíram obstáculos permanentes à desenvoltura da
pequena lavoura [...] Hoje, pelo contrário, em vez da incompatibili-
dade, estabeleceu-se entre uma e outra a mais estreita independência.
Uma reforça a outra; ambas ganham união [...] Uma vez que a vin-
dima, precedendo de dois a três meses (fevereiro-março) a colheita
do café (maio em diante) permite aos vinhateiros por seus braços à
disposição dos fazendeiros, cessa a crise das colheitas, estabelece-se
naturalmente o equilíbrio entre a oferta e a demanda dos salários13.

A policultura, introduzida a partir da vinha, daria, assim, capacidade


ao país para competir pelo imigrante com os países vizinhos da bacia do
Prata, cuja atratividade era também relacionada à possibilidade de cultivo
do trigo e demais cereais de climas temperados. A Escola de Viticultura
seria um instrumento que mostraria o Brasil no exterior como um país
diferente da visão difundida quanto às moléstias endêmicas, aos males
da tropicalidade pelos comissários uruguaios e argentinos, contratadores
de mão de obra na Europa. Era preciso mostrar a altitude dos planaltos
do Brasil como compensação aos supostos males das baixas latitudes tro-
picais. Segundo Godoy: “a Escola de Viticultura, leal e patrioticamente
dirigida, será o foco intelectual que alimentará a torrente imigratória
para São Paulo, Paraná e grande parte de Minas”14.
Vale registrar que a instituição projetada por Godoy não seria a
primeira escola de estudos em agricultura no Brasil. Em 1875, em São
Bento das Lages, no interior baiano, foi pioneiramente fundado o cur-

13  –  GODOY, Joaquim Floriano de. Op. cit., pp. 203-209.


14  –  GODOY, Joaquim Floriano de. Op. cit., p. 217.

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Reconfiguração regional e disputa oligárquica no Sudeste brasileiro no final do
Império: imigração, ensino agrícola e o projeto da Província do Rio Sapucaí

so de Agronomia e Veterinária. Pouco depois, em 1883, em Pelotas, Rio


Grande do Sul, um segundo curso foi criado nas mesmas áreas. Ambos
foram incorporados, ao longo do século XX, às Universidades Federais
da Bahia (Campus Cruz das Almas) e de Pelotas. Em 1887, seria a vez de
uma terceira, em Campinas. O Império destinaria, portanto, verbas de seu
orçamento geral a uma escola de agronomia (o atual Instituto Agronômi-
co de Campinas) no oeste de São Paulo, buscando, talvez, atuar contra o
discurso separatista do movimento republicano “Pátria Paulista”.

O fato de o projeto de Godoy ter como objeto o Vale do Paraíba


demonstrava a força da expansão rumo ao oeste Paulista. Para ele, en-
tretanto, a aristocracia do Vale do Paraíba mostrava-se indiferente à sua
proposta, demonstrando que estava mais preocupada em obter garantias
do Tesouro Imperial e em receber indenizações pela abolição de seus es-
cravos.

Com o movimento militar que depôs e exilou a família imperial, em


novembro de 1889, o Projeto do Rio Sapucaí, enquanto manobra política
de esvaziamento das posições republicanas e separatistas de São Paulo,
perderia seu significado e a Escola de Viticultura não iria adiante. Neste
contexto, o Vale do Paraíba do Sul seguiria a previsão de Godoy de de-
cadência de sua importância e posição relativa, enquanto região agrícola
no Sudeste brasileiro. Não é que não existissem atividades agrícolas e
de criação de gado no Vale do Paraíba do Sul. O fato é que, ao longo do
século XX, áreas do Vale do Paraíba do Sul se inseriram no contexto de
industrialização e expansão de setores terciários no triângulo Rio/Belo
Horizonte/São Paulo, ou seja, no Sudeste Metropolitano.

No caso do segmento fluminense do Paraíba do Sul, talvez, a perda da


importância da agricultura e de seu território produtivo seja mais evidente
que em relação a Minas e São Paulo. Isto contribui para a compreensão
de parte das dificuldades da econômicas e financeiras do Estado do Rio
de Janeiro, nesta década de 2010. O Rio de Janeiro não vem aproveitando
o potencial de crescimento do agronegócio no Brasil, verificado, aliás,
em outros territórios produtivos, especialmente, no Centro-Oeste do país.

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João Eduardo de Alves Pereira

O agronegócio brasileiro na atualidade, diga-se de passagem, não


pode ser analisado sem o registro de que sua enorme capacidade de ex-
pansão (especialmente nos segmentos soja, milho, algodão), em regiões
antes consideradas como de baixo potencial, foi viabilizada justamente
por investimentos em pesquisa e desenvolvimento realizados no país por
institutos agronômicos, universidades e pela Empresa Brasileira de Pes-
quisa Agropecuária (Embrapa), instituições fundadas ao longo do século
XX.

O êxito econômico do agronegócio, contudo, requer a continuidade


de investimentos (não apenas do Poder Público) em pesquisas, inclusive
em virtude da necessidade de avaliação e de redução de seus impactos
ambientais e sociais. Ademais, políticas de articulação com os setores da
indústria e dos serviços deveriam ser vistas como fundamentais, para que
a economia do país não se torne excessivamente dependente da exporta-
ção de commodities agrícolas.

Conclusão
A análise do projeto de criação da Província do Rio Sapucaí, de au-
toria do Senador do Império, Joaquim Floriano de Godoy, nos permite
compreender aspectos do ambiente institucional e econômico da década
de 1880. De sua leitura, podemos ainda inferir que alguns dos problemas
nele assinalados, de algum modo, estão ainda presentes na vida socioeco-
nômica brasileira, principalmente em relação ao pacto federativo.

Referências bibliográficas
GODOY, Joaquim Floriano de. Projecto de Lei para Creação da Província do Rio
Sapucahy. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert & C., 1888, 261p.
PEREIRA, João Eduardo de Alves. Itajubá e Santa Rita do Sapucaí: a
estruturação de um polo científico-tecnológico no Sul de Minas Gerais.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Geografia. Rio de
Janeio: UFRJ, 1992.
GODOY, Joaquim Floriano de. Biografia. https://www.geni.com/people/Joa-
quim-Floriano-de God%C3%B3i/6000000028263551598. Acesso em 03 mai.
2017.

308 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):297-309, set./dez. 2017.


Reconfiguração regional e disputa oligárquica no Sudeste brasileiro no final do
Império: imigração, ensino agrícola e o projeto da Província do Rio Sapucaí

Texto apresentado em abril/2017. Aprovado para publicação em


agosto/2017.

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

311

IV – DOCUMENTOS
DOCUMENTS

DIREITO E FEITIÇARIA NA AMÉRICA PORTUGUESA DO


SÉCULO XVIII: A DEVASSA MOVIDA CONTRA MARIA DO
GENTIO DA TERRA DA VILA DE PARANAGUÁ
LAW AND WITCHCRAFT IN PORTUGUESE AMERICA IN THE
18TH CENTURY: THE CRIMINAL PROCEEDING CONDUCTED
AGAINST MARIA DE GENTIO DA TERRA FROM VILA DE
PARANAGUÁ
Danielle Regina Wobeto de Araujo1
Liliam Ferraresi Brighente2
Luís Fernando Lopes Pereira3
Resumo: Abstract:
O documento transcrito refere-se a uma devassa The transcribed document refers to a criminal
criminal com propósito de investigar o delito de proceeding whose purpose was to investigate
feitiçaria cometido por indígenas na região da the crime of witchcraft committed by indigenous
Ouvidoria de Paranaguá, na primeira metade do peoples in the region of the Paranaguá’s
século XVIII. Para orientar o leitor, o texto in- Ombudsman´s Office in the first half of the
trodutório traz uma breve explicação das princi- eighteenth century. In order to guide the
pais características arquivísticas do documento, reader, the introductory text provides a brief
identificando e explicando algumas particulari- explanation of the main archival features of
dades da feitiçaria e de algumas categorias jurí- the document which identify and reveal some
dicas encontradas na fonte. peculiarities of witchcraft, as well as some legal
categories used in it.
Palavras-chave: Processo criminal; Feitiçaria; Keywords: criminal proceeding; witchcraft;
Indígenas; Justiça colonial. indigenous peoples; colonial justice.

1  –  Doutora, com estágio na Scuola Normale Superiore di Pisa (SNS), e mestre em His-
tória do Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Possui pós-graduação em
Direitos Fundamentais pela Universidade de Burgos da Espanha e em Teoria do Direito e
Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
Professora universitária da Faculdade Dom Bosco e atualmente licenciada para estágio
pós-doutoral com bolsa da Capes.
2  –  Doutoranda em Direito na Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito pela
mesma Universidade. Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba
(2005) e em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (2011). Bolsista Capes.
3  –  Possui Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e é pro-
fessor do curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Paraná. É membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e do Instituto
Brasileiro de História do Direito.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):311-341, set./dez. 2017. 311


Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

1. Apresentação
A transcrição desse documento foi elaborada a partir de um trabalho
desenvolvido no Fundo denominado Poder Judiciário Estadual deposita-
do no Departamento Estadual de Arquivo do Público do Estado do Para-
ná, que abarca o período de 1697 a 1980, com 111,72 metros lineares de
documentos textuais acondicionados em 798 caixas-arquivo, totalizando
aproximadamente 13 mil processos4.

A primeira série documental de processos judiciais chegou ao Arqui-


vo Público do Paraná em 1986, proveniente da 10ª Vara Cível de Curiti-
ba, bastante danificada devido a um incêndio ali ocorrido em 1930. Aos
poucos o Fundo foi recebendo novos processos que foram higienizados,
catalogados em ordem cronológica e hoje estão disponíveis para consulta
ao público.

Buscando melhor conhecer este rico acervo, composto nas primeiras


séries, sobretudo por Autos pertencentes ao Juízo Ordinário da Vila de
Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, um grupo de historiadores
e historiadoras do direito da Universidade Federal do Paraná tem se dedi-
cado ao estudo da justiça colonial (século XVIII) a partir de uma perspec-
tiva que privilegie a circularidade cultural jurídica na região5.

Dentro os diversos processos que compõem o mencionado fundo,


para o século XVIII, foram encontrados quatro documentos judiciais que
tinham como delito a feitiçaria, sendo este que ora apresentamos o mais
antigo de todos, do ano de 1735. Desde o início, o trabalho de leitura e
transcrição desta fonte apresentou alguma dificuldade pelo fato do supor-
te que a contém se apresentar em parte danificado por diversos pequenos
furos, que conferem ao papel um aspecto de retalhamento, sobretudo nas

4 – Informações constantes do Guia de Fundos, disponíveis no site do Arquivo Pú-


blico do Paraná: http://www.arquivopublico.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.
php?conteudo=77, acesso em 24.06.2017, às 14:20 hs.
5  –  PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Cultura jurídica dos rústicos da América Portugue-
sa: juízes ordinários na Vila de Curitiba no século XVIII. In: SANTOS, Antonio Cesar de
Almeida (org.) Ilustração, cultura escrita e práticas culturais educativas. Ponta Grossa:
Estúdio Texto, 2016. pp. 69-88.

312 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):311-341, set./dez. 2017.


Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

laterais, além de a escrita encontrar-se bastante apagada pela ação do tem-


po.

Estes autos se destacam no conjunto do acervo pertencente ao Poder


Judiciário do Arquivo Público do Paraná da primeira metade do século
XVIII, por se tratar de um processo que não pertence ao Juízo Ordinário
da Vila de Curitiba, mas à Vila de Nossa Senhora do Rosário de Parana-
guá, julgado pela Ouvidoria Geral da Comarca. A importância da fonte
aumenta quando se considera que a documentação da Ouvidoria de Pa-
ranaguá até hoje não foi encontrada. Outro destaque para o documento é
sua origem secular, tratando de feitiçaria6.

No que concerne à legislação secular portuguesa sabe-se que, pelo


menos, desde 1385, recriminava-se a feitiçaria por meio de leis esparsas.
Com o surgimento das Ordenações a proibição de tal conduta foi tomando
cada vez mais corpo. Pode-se dizer que a primeira Ordenação do Reino,
de 1446, fixou o crime/pecado da feitiçaria atrelada à questão do pacto
com o demônio, estipulando a pena de morte para quem causasse danos
físicos ou aos bens das pessoas e o açoite para os adivinhadores e fareja-
dores de tesouros7.

Esta Ordenação também ampliou a previsão de punição (com a mor-


te) para todos os tipos de feitiçaria, justificando tal medida a partir de uma
visão do direito romano e das divagações dos teólogos medievais. Estes
destacavam o caráter satânico e pecaminoso do delito em virtude das prá-
ticas mágicas contarem de modo imprescindível com a participação do
Diabo, seja por meio de um pacto implícito e individual (feiticeira diabó-
lica), seja por meio de um pacto expresso e coletivo (feiticeira sabática).

6  –  A transcrição dos outros três documentos relativos à feitiçaria acima mencionados,


bem como suas análises pode ser conferida na tese: ARAÚJO, Danielle Regina Wobe-
to de. Um “Cartório de feiticeiras”: direito e feitiçaria na Vila de Curitiba (1750-1777).
2016. 297 f. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Paraná. Programa de Pós-Gra-
duação em Direito.
7 – BETHENCOURT, Francisco. Imaginário da magia. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2004, p. 259. CALAINHO, Daniela. Metrópole das mandigas: Religiosidade negra e
inquisição no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, p. 212.

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Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

As Ordenações Manuelinas foram ainda mais rigorosas em suas


previsões e as Ordenações Filipinas foram as primeiras a organizar e a
condensar em um só capítulo os delitos que tinham como bem jurídico
tutelado a religião estabelecida e sua moral. Pesquisas indicam que tanto
em Portugal como na periferia da América portuguesa a “lenda negra” de
um direito penal não se concretizava nas decisões dos tribunais e juízos
ordinários. O Direito penal mais ameaçava que efetivamente punia8.

A feitiçaria estava prevista no título 3 do Livro 5 das Ordenações


Filipinas9. Dentre as diversas condutas recriminadas no aludido título

8  –  Nesse sentido para América Portuguesa ver: MASSUCHETTO, Vanessa Caroline.


Os autos de livramento crime e a Vila de Curitiba: apontamentos sobre a cultura jurídica
criminal (1777-1800). 2016. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Paraná.
Programa de Pós-Graduação em Direito.
9  –  OF, 5, 3. Dos feiticeiros: Estabelecemos que toda pessoa, de qualquer qualidade e
condição que seja, de lugar sagrado ou não sagrado, tomar pedra de ara ou corporais, ou
parte de cada uma destas coisas, ou qualquer outra coisa sagrada, para fazer com ela algu-
ma feitiçaria, morra morte natural.
1. E isso mesmo qualquer pessoal que, em círculo ou fora dele, ou em encruzilhada, in-
vocar espíritos diabólicos ou der a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer coisa para
querer bem ou mal a outrem, ou outrem a ele, morra por isso morte natural. Porém, nestes
dois casos, primeiro que se faça execução, no-lo farão saber para vermos a qualidade da
pessoa e modo em que se tais coisas fizeram, e sobre isso mandarmos o que se deve fazer.
2. Outrossim não seja alguma pessoa ousada que, para adivinhar, lance sortes nem varas
para achar tesouro, nem veja em água, cristal, espelho, espada ou em qualquer coisa lu-
zente, nem em espadua de carneiro, nem faça para adivinhar figuras ou imagens algumas
de metal, nem de qualquer outra coisa, nem trabalhe de adivinhar em cabeça de homem
morto ou de qualquer alimária, nem traga consigo dente, nem baraço de enforcado, nem
membro de homem morto, nem faça com cada uma das ditas coisas, nem com outra (posto
que aqui não seja nomeada), espécie alguma de feitiçaria, ou para adivinhar ou para fazer
dano a alguma pessoa ou fazenda, nem faça coisa por que uma pessoa queira bem ou mal
a outra, nem para legar homem, nem mulher para não poderem haver ajuntamento carnal.
E qualquer que as ditas coisas ou cada uma delas fizer seja publicamente açoitado com
baraço ou pregão pela vila ou lugar onde tal crime acontecer e mais seja degredado para
sempre para o Brasil, e pagará três mil-réis para quem o acusar.
3. E porquanto entre a gente rústica se usam muitas abusões, assim como passarem do-
entes por silvão ou machiero ou lameira virgem, e assim usam benzer com espada quem
matou homem ou que passe o Douro e Minho três vezes, outros cortam solas em figueira
baforeira, outros cortam cobro em limiar de porta, outros têm cabeças de saudadores,
encastoadas em ouro ou em prata, ou em outras coisas; outros apregoam os endemoninha-
dos; outros levam as imagens de santos junto das aguas e ali fingem que os querem lançar
ela, e tomam fiadores que se até certo tempo o dito santo lhes não der água ou outra coisa
que pedem, lançarão a dita imagem na água; outros resolvem penedos e os lançam na água

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

verifica-se um primeiro grupo, que fixava dois tipos de ações proibidas:


as práticas mágicas que envolvessem locais, rituais e relíquias católicas,
visando com isso fazer feitiçaria e quem invocasse espíritos diabólicos
ou fizesse comida ou bebida visando provocar malefícios; um segundo
para as adivinhações para fins maléficos e um terceiro destinado aos cri-
mes de abusões, ou seja, de opiniões e práticas supersticiosas praticados
especialmente pela “gente rústica”. Nesta hipótese legal, por exemplo,
enquadrava-se o curandeirismo. Por último, aqueles que diziam o que
estava por vir, dando a entender que a mensagem foi revelada por Deus,
por Santos, por pessoas mortas, visões ou sonhos, ou de outra maneira.
O crime de feitiçaria devia causar um dano/malefício e podia ser pratica-
do por qualquer pessoa independentemente do sexo e do estrato social.

No que tange ao processamento do delito, a feitiçaria seria apura-


da nos termos previstos no título 124 do Livro 5 das Ordenações, cujas
principais etapas processuais no rito ordinário eram: (i) a inquirição, com
objetivo de formação do corpo de delito iniciada por averiguação oficiosa
do juiz mediante devassas ou por participação do particular, sob a forma
de querela ou denúncia; (ii) o indiciamento do autor do crime, com a
pronúncia do réu; (iii) a prisão com a lavratura de um termo denominado
autos de Prisão, Hábito e Tonsura; (iv) a acusação, englobando as audiên-
cias e razões finais; (v) e a sentença, da qual cabia embargos ou agravos,
que era dirigida ao juiz da causa para fins de reforma da sentença, fosse

para haver chuva; outros lançam joeira, outros dão a comer bolo para saberem parte de
algum furto, outros tem mandrágoras em suas casas, com intenção que por elas haverão
graça com senhores ou ganho em coisas que tratarem; outros passam água por cabeça
de cão, para conseguir algum proveito. E porque tais abusões não devemos consentir,
defendemos que pessoa alguma não faça as ditas coisas, nem cada uma delas; e qualquer
que a fizer, se for peão, seja publicamente açoitado com baraço e pregão pela vila, e mais
pague dois mil-réis para quem o acusar. E se for escudeiro e daí para cima, seja degredado
para África por dois anos; e sendo mulher da mesma qualidade, seja degredada três anos
para Castro-Marim, e mais paguem quatro mil reis para quem os acusar.”. E estas mesmas
penas haverá qualquer pessoa que disser alguma coisa do que está por vir, dando a enten-
der que lhe foi revelado por Deus ou por algum santo, ou em visão ou em sonho, ou por
qualquer outra maneira. Porém, isto não haverá lugar nas pessoas que, por astronomia,
disserem alguma coisa segundo seu juízo e regra da dita ciência.

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Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

ela interlocutória ou definitiva, e a apelação direcionada ao superior do


juiz que a proferiu, com prazo de 30 dias para propô-la.10

A fonte que se transcreve é um “auto de devassa” que contém apenas


os itens um e dois acima mencionados, cuja finalidade era apurar a efe-
tiva existência e autoria de um delito, uma espécie de investigação, que
poderia ensejar o surgimento de um processo crime, ou não11. Em caso
positivo o denunciado era inserido no rol dos culpados.

As devassas podiam se iniciar por ofício do juiz (devassa geral) ou


por meio de particulares que comunicavam mediante querela ou denúncia
a existência de um fato delituoso (devassa especial). O direito português
era profundamente formalista e previa inúmeras nulidades por descum-
primento das regras processuais12.

Ainda, no decorrer da devassa, podia o juiz diante de delitos com


penas mais graves, aflitivas e também nos casos em que se havia receio
de fuga do acusado, pronunciar o réu por captura, ou seja, prender provi-
soriamente, hipótese que se verifica na fonte ora transcrita13. Ao final dos
autos o juiz promovia a pronúncia formal, que consistia na “Sentença do

10 – FREIRE, 1823, p. 124


11  –  De acordo com Pereira e Souza, jurista do século XIX, devassa “é a informação de
um delito tomada por autoridade do juiz para castigo dos delinquentes e conservação da
saúde pública”, e no seu ver existiam duas espécies: as gerais, que recaiam sobre determi-
nados tipos de delitos, porém incerto seu acontecimento social para o juiz; e as especiais,
que supunham a existência do delito, no entanto incerta era sua autoria. Os crimes que
poderiam ser apurados pela devassa eram aqueles previstos no Livro 1, das Ordenações,
mais especificamente nos artigos 58, 31 e 65, 39-69. PEREIRA E SOUSA, 1831, p. 17-18.
12  –  Assim, os autos de devassa poderiam ser declarados nulos quando não contavam
com o corpo delito, não procedessem denúncias ou legítimos indícios, quando não esta-
vam circunstanciadas, ou seja, não indicavam a causa, o lugar e o tempo do delito; quando
não foram tiradas ou concluídas no prazo legal; quando não havia o número suficiente de
testemunhas exigidos; quando tiradas em caso não previsto na lei (PEREIRA E SOUSA,
1831, p. 18, nota 46); quando as testemunhas não foram inquiridas pelo juiz, quando
assim exigido; quando o juiz era incompetente ou inimigo do réu; e por fim quando o
escrivão que atuou com o juiz era suspeito. (PEREIRA E SOUSA, 1831, p. 30-31)
13 – HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo. 1550-1750. Direi-
tos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes. Lisboa, 2015, pp. 567-568.

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

Juiz, que declara o Réu suspeito do delito, que faz o objeto da Devassa, ou
da Querela contra ele dada, e o põe no número dos culpados14.”

A pronúncia formal era, portanto, a imputação do crime ao réu, era


o seu indiciamento, não a sua condenação. Formada a culpa na pronúncia
formal e tomadas as medidas cautelares relativas ao réu e aos seus bens,
encerrava-se a devassa e dava-se início à acusação em processo crime,
momento no qual seria feita a acusação mediante libelo apresentado por
promotor ou querelante e seria oportunizada a devida defesa do réu.

O documento se iniciou com um “auto de denúncia” promovido por


Manoel Gonçalves Carreira que informou ao Juízo que sua mulher estava
enferma há alguns anos e que nenhum remédio ministrado surtia efeito.
Por conta disso e em razão de a região possuir muitos feiticeiros passou
a desconfiar que a doença era oriunda de feitiços diabólicos/malefícios.
A narrativa dos fatos indica que se estava diante da feitiçaria prevista no
item 1 do título 3 do Livro 5 das Ordenações Filipinas. O denunciante
ainda indicou os possíveis autores da conduta delituosa, amparado em
uma confissão de um dos acusados e em diversos testemunhos constantes
na fase de investigação do delito. Além da mulher do denunciante, as
testemunhas apontaram outra vítima, uma escrava chamada Florência.

Os denunciados foram “Maria do gentio da terra” ou “Maria Bicu-


da” – os dois nomes aparecem em momentos distintos – e seu marido
Verissimo da Silva, ambos gentios da terra e tudo indica livres, ou seja,
não eram administrados.

Esta última observação aponta para outra singularidade desses Autos


judiciais: é o único processo num universo 773 autos existentes até 1750,
em que aparece expressamente a denominação índia e índio, como em
“Maria índia” e “uma índia por nome Maria casada com outro índio cha-
mado Veríssimo da Sylva” ou ainda “Maria do gentio da terra casada com
Veríssimo da Sylva também índio”. Também o curandeiro ouvido como
14  –  PEREIRA E SOUSA, Joaquim José Caetano. Primeiras linhas sobre o processo
criminal, quarta edição emendada, e acrescentada por Joaquim José Caetano Pereira e
Sousa, Advogado na Casa da Supplicação. Lisboa: Impressão Régia, 1831, p. 215.

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Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

testemunha foi nominado como “índio que veio do Rio São Francisco por
nome Alexandre Pereira”. Nos demais autos judiciais existentes até 1750,
os indígenas figuram como administrados, sendo as expressões gentio da
terra, gentio do cabelo corredio ou ainda carijó utilizadas como sinôni-
mos desta condição jurídica. Neste processo, o escrivão fez questão de
enfatizar a expressão “índio” e “índia”, distinguindo-os cuidadosamente,
por exemplo, da “parda por nome Florência escrava de Sebastião Luiz de
Andrade”, que depois especificou melhor como a “administrada Florên-
cia”, bem como novamente distinguiu a condição de “Bernardo escravo
do denunciante”. É muito provável que o termo índio/índia estivesse sen-
do empregado para indicar a condição jurídica de liberdade, concorrendo
ainda para esta interpretação o fato de se tratar de uma índia casada com
outro índio, estado civil muito raro entre os administrados.15

Retornando à análise do delito de feitiçaria, tema central desta de-


vassa, conseguiu-se identificar algumas de suas práticas mágicas, como
esquentar carvões que eram enterrados em uma cova e cujo efeito era
fazer a vítima sentir arder seu coração, sintoma que no entender da po-
pulação levaria à morte. Também eram enterrados e conjurados outros
elementos como mandioca, formigas, penas de passarinho, raízes, paus,
olhos de peixe, “terra dura, vermelha e azul”, algo do tamanho de um
dedo cor amarela esverdeada desintegrando que parecia ser uma tripa, um
verme, ou um nervo. Os denunciados recomendavam alguns cozimentos
à base de raízes aos que procurassem seus serviços e faziam “saquinhos”,
que podem ser enquadrados como patuás ou mandigas.

15  –  Sobre a problemática da condição jurídica do indígena no período colonial, bem


como para uma análise detalhada das distintas categorias jurídicas de escravo, adminis-
trado e livre, concernente aos indígenas, o leitor pode consultar o seguinte trabalho: BRI-
GHENTE, Liliam Ferraresi. Entre a liberdade e a administração particular: a condição
jurídica do indígena na Vila de Curitiba (1700-1750). 2012. 145 f. Dissertação (Mestrado
em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. Ainda na seção “Documen-
tos” deste mesmo periódico, o leitor encontrará a transcrição comentada de uma demanda
de liberdade proveniente deste mesmo acervo: BRIGHENTE, Liliam Ferraresi. Liberdade
e administração dos índios no Brasil do século XVIII: a petição de Francisca Leme ao
juízo ordinário da Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba (1729). Revista
do IHGB, Rio de Janeiro, a.173 (454): pp. 285-318, jan./mar. 2012.

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

Na tentativa de cura de feitiços diabólicos, como regra geral, no


Império Português recorria-se a exorcismos produzidos por membros da
Igreja ou a outros mágicos e feiticeiros para fazerem contrafeitiços. Situa-
ção não muito diferente se deu na devassa em exame, pois o denunciante
recorreu a um curandeiro indígena que vivia em São Francisco do Sul,
chamado Alexandre Pereira. Tal curandeiro, que tinha aproximadamen-
te setenta anos e não falava português, testemunhou na devassa (décima
quarta testemunha) informando, mediante intérprete, que usou para iden-
tificar o feitiço e curar a vítima as conhecidas mezinhas, ou seja, medica-
mento a base de ervas.

Para corroborar e provar sua denúncia o autor da petição indicou


quatro testemunhas, que após ouvidas, levaram o Ouvidor a instaurar o
Auto de Devassa e a pronunciar os réus por captura, o que significa di-
zer que ficaram presos até o julgamento final do processo, para ao final
pronunciá-los formalmente colocando-os no “número de culpados”.

Observa-se também que a devassa contou com as trinta testemunhas


exigidas pelas Ordenações, na sua maioria homens e lavradores, porém
não foi observado o prazo de trinta dias para sua conclusão. No encer-
ramento dos autos consta informado que, mediante processo ordinário
de livramento também denominado de autos de libelo criminal, a ré foi
condenada. A não invalidação da investigação indica uma adaptação da
norma processual diante do contexto, sugerindo que os prazos eram ad-
ministrados pela justiça colonial16.

2. Documento
Autos da Ouvidoria Geral da Comarca de Paranaguá.
1735. BR PRAPPR PB 045 Pc 163.5, Cx.5. Departamento
de Arquivo Público do Paraná (DEAP).17
16  –  ARAUJO, Danielle Regina Wobeto de. Um “Cartório de feiticeiras”: direito e fei-
tiçaria na Vila de Curitiba (1750-1777). 2016. 297 f. Tese (Doutorado) - Universidade
Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito.
Defesa: Curitiba, 05/09/2016, p. 183.
17  – A transcrição do documento foi elaborada adotando os seguintes critérios: a or-
tografia foi atualizada, mantendo-se a gramática e pontuação originais; o símbolo “[?]”
indica a presença no texto de uma palavra ininteligível; uma palavra entre colchetes acom-

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Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

Ano de 1735

Paranaguá
[f.1].
V.
Ouvidoria Geral
O Escrivão: Junqueiro
Feitiçaria

N. 14
Com dois apensos e uma petição dos Réus apensa [?] por despacho

Denunciação que deu Manoel Gonçalvez Carreira contra Maria do gentio da


terra casada com outro índio por nome Veríssimo da Silva todos desta vila de Pa-
ranaguá, e seu termo que fez a dita Maria índia à mulher do denunciante Manoel
Gonçalvez Carreira
Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e trinta e
cinco anos aos dezesseis dias do mês de maio do dito ano em pousada do Doutor
Manoel dos Santos Lobato ali por parte de Manoel Gonçalvez Carreira me foi
dada uma sua petição por escrito com o despacho nela posto pelo dito ministro
pedindo-me com ela a tomasse e autuasse para em tudo lhe dar cumprimento
como se manda no dito despacho, a qual [f.1v] eu escrivão ao diante nomeado a
tomei e autuei na forma do regimento de que fiz a presente autuação e a ela ajun-
tei a dita petição que é a que ao diante se segue, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro
escrivão da Ouvidoria Geral que o escrevi.
Diz Manoel Gonçalvez Carreira morador desta vila que tendo sua mulher enfer-
ma a perto de ano que por vezes se viu no último da vida sem lhe valer quantos
remédios se lhe aplicaram tendo despendido bastante [?] de sua fazenda a fim
de lhe achar coisa que a fizesse melhorar nunca lhe foi possível achar medica-
mento que lhe obrasse lhe que ultimamente se veio abreguar [apregoar?] que o
d.ͦ acha que procedia de feitiços, e com efeito se sabe que uma índia por nome
Maria casada com outro índio chamado Veríssimo da Sylva, lhe havia botado os
ditos feitiços, e com efeito esta sendo levada a casa do suplicante e atemorizada
de alguns castigos tem descoberto parte dos ditos feitiços declarando por várias
vezes presente algumas pessoas ser ela mesma que havia fizera os ditos feitiços a
fim somente de a matar porque o caso é atroz por serem os tais feitiços pacto do
Demônio com quem os tais feiticeiros se comunica quer ele suplicante denunciar
dela e justificar com testemunhas dignas de fé e crédito em como a dita índia tem
panhada do símbolo “?” indica a presença de uma palavra de leitura duvidosa.

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a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

certificado ser a mesma que havia feito os ditos feitiços e ter tirado parte deles
para que provando-se o dito fato ser castigada rigorosamente para exemplo dos
mais feiticeiros termos em que [f.2]
Pede a Vosmecê lhe faça mercê mandar tomar sua denúncia e se lhe inquira suas
testemunhas para que depondo ser assim como se espera ser a dita suplicada con-
denada nas penas que [por este?] caso merecer para exemplo dos mais feiticeiros.
E. R. M.18
Jurando se lhe tome sua denunciação. Paranaguá de agosto 15 de 1735. Paranaguá
de Agosto, 15 de 1735. Lobato

Auto de denúncia que dá o denunciante Manoel Gonçalvez Carreira contra


Maria do gentio da terra

Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e trinta e


cinco anos nesta vila de Paranaguá aos dezesseis dias do mês de agosto do dito
ano em pousada do Doutor Ouvidor Geral Manoel dos Santos Lobato aonde eu
escrivão adiante nomeado fui vindo e sendo aí com ele pareceu presente outros-
sim Manoel Gonçalvez Carreira por ele foi dito e requerido ao dito Ministro
que ele tinha denunciado e que ao [?] denunciava Maria [f.3] do gentio da terra
casada com Veríssimo da Sylva também índio por ter a dita Maria do gentio da
terra usado de malefícios, e que a mulher dele denunciante se achava gravemente
enferma por causa de feitiços que a mesma denunciada lhe fizera a qual perante
várias pessoas assim o declara, e perante o dito denunciante, e porque o caso era
de devassa se devia castigar a denunciada na forma da Lei. Requeria a ele dito
Doutor Ouvidor Geral mandasse fazer este Auto e em virtude dele inquirir tes-
temunhas e que protestava ser lhe parte, e ouvido ele Doutor Ouvidor Geral seu
requerimento lhe deu o juramento dos Santos Evangelhos e em um livro dele e
lhe recebeu a sua denunciação na forma que requeria de que mandou fazer este
auto para perguntar testemunhas e o assinou com ele denunciante, e eu Manoel
Gonçalvez Junqueiro escrivão da Ouvidoria Geral Geral que o escrevi.
Lobato. Manoel Gonçalvez Carreira

Assentada

Aos dezesseis dias do mês de agosto de mil setecentos e trinta e cinco anos nes-
ta vila de Paranaguá [f.3v] em pousada do Doutor Ouvidor Geral Manoel dos
Santos Lobato onde eu escrivão ao diante nomeado fui vindo para o efeito de se

18  –  “E receberá mercê.”

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Liliam Ferraresi Brighente
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inquirir as testemunhas da denúncia que seus nomes ditos e idades e costumes


são o que ao diante se seguem de que tudo lhe mandou ele Doutor Ouvidor Geral
fazer o presente termo de assentada eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão
que o escrevi.
1.ª Testemunha
Domingos Pereira Freire morador nesta vila no Recôncavo de Bicuhy que vive
de lavoura de mandioca, de idade que disse ser de trinta anos pouco mais ou
menos testemunha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e
prometeu dizer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse.
E perguntado a ele testemunha pelo auto de devassa retro que lhe foi lido e de-
clarado disse que sabe pelo ouvir dizer a várias pessoas no sítio donde ele tes-
temunha assiste que a denunciada Maria [?] fizera uns feitiços com uns carvões
à Mulher do denunciante, e que outrossim sabe pelo ver que o Marido da dita
denunciada Veríssimo da Silva fizera também uns feitiços porquanto passando
ele testemunha pelo sítio do denunciante Manoel Gonçalvez [f.4] Carreira vira
ao dito Veríssimo da Silva fazer uma cova junto, digo vira o dito Veríssimo da
Silva botar em uma cova de mandioca umas coisas que tirara do [cejo?] e dizer
umas palavras que ele testemunha não percebeu, e suspeitando mal do referido
fora ele testemunha em companhia de Sebastião Luiz de Andrade ô [no] mesmo
lugar onde estava a dita cova, e achara uma coisa que parecia nervo, e esta era
mole, e de cor, amarela, e acharam outrossim formigas, e outros bichos, e penas
de passarinhos tudo junto na dita cova, e mais não disse e nem do costume disse
nada, e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral e eu Manoel Gonçalvez Junqueiro
escrivão que o escrevi.
Lobato. De Domingos ┼ Pereira Freire.
2.ª Testemunha
Sebastião Luiz de Andrade, morador em Bicuhy termo desta vila que vive de sua
lavoura de mandioca, de idade que disse ser de quarenta e oito anos pouco mais
ou menos testemunha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita
e prometeu dizer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. [f.4v] E per-
guntado a ele testemunha pelo auto de devassa disse ele testemunha que sabe por
ouvir dizer a Bernardo, e João escravos do denunciante que a denunciada fizera
uns feitiços com uns carvões os quais tirara da casa do dito denunciante, e com
eles fizera uns feitiços a mulher do dito denunciante a qual tinha padecido gran-
des moléstias, e atualmente se acha enferma, e que vendo isto a notícia do dito
denunciante, e a dita sua mulher, perguntando-lhe porque causa lhes fizera tanto
dano, a denunciada respondera que o diabo a tentara e mais não disse. E pergun-

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

tado ele testemunha pelo referimento que nele fez a testemunha antecedente;
disse que passa na verdade o referido, tanto assim que ele testemunha deitou as
ditas coisas que se acharão na cova que eram umas penas de passarinho, e uns
bichos e formigas, e uma coisa de cumprimento de um dedo que parecia a cor
da dita coisa, verde, e amarelo que ele testemunha não conheceu o que era, e a
deitou em uma fogueira e as queimou e mais não disse. [f.5] Disse nada do cos-
tume e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro
escrivão que o escrevi.
Lobato. Sebastião Luiz de Andrade.
3. ª Testemunha
Valentim Cordeiro Matoso, morador em Biguaçu, que vive de sua lavoura de
mandioca, de idade que disse ser de trinta e nove anos pouco mais ou menos
testemunha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prome-
teu dizer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele
testemunha pelo auto de devassa que lhe foi dito e lido e declarado. Disse que
sabe pelo ver e presenciar que a denunciada Maria do gentio da terra dissera que
ela tinha feito uns feitiços com uns carvões, à mulher do denunciante, e que o
fogo ou calor que sentia no peito era disso procedido e que ela desmancharia os
ditos feitiços, e com efeito ouvira ele testemunha dizer ao denunciante e a um
Alexandre que por sobrenome não [?] que foram em companhia da denunciada
a um [f. 5v] rancho aonde esta assistia que lhe virão fazer uma cova, e dela tirar
uns carvões; porém pouca melhora resultou a mulher do denunciante e que ao
dito Alexandre ouvira dizer que em alguma bebida, ô [ou] comida lhe tinha feito
outros feitiços e também ouvira dizer a algumas pessoas de Imbiguaçu e mais vi-
zinhos destes sítios que a denunciada e seu marido havia má presunção deles em
feitiçaria, o que também ouviu dizer a Manoel da Costa Bairros e mais não disse
nem do costume e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez
Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. Vallentim Cordeiro Matoso.
4.ª testemunha
Theodorio Coutinho, morador em Imbiguaçu, que vive de seu ofício de pedreiro,
de idade que disse ser de vinte e cinco anos pouco mais ou menos testemunha
jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer ver-
dade do que soubesse e perguntado lhe fosse. [f. 6] E perguntado a ele testemu-
nha pelo auto de devassa disse que sabe pelo ouvir dizer a seu irmão Vallentim
Cordeiro Matoso que a denunciada fizera uns feitiços à mulher do denunciante
para esta estar mal, e enferma, e que fora com uns carvões, e depois se achara

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um embrulho deles, e que outrossim ouvira dizer a um Ignácio Luiz morador em


Bicuhy que o marido da denunciada fizera também feitiços a uma escrava do dito
Ignácio Luiz por nome Florência e a um filho desta, e mais não disse e nem do
costume, e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Jun-
queiro escrivão que o escrevi.
Lobato. Theodorio Coutinho.
Sendo inquiridas estas testemunhas os fiz conclusos ao Doutor Ouvidor Geral
Manoel dos Santos Lobato de que fiz presente eu Manoel Gonçalvez Junqueiro
escrivão que o escrevi.
Obrigam a Maria gentio da terra e a seu Marido Veríssimo da Sylva passe-se ao
rol dos culpados e as ordens [f. 6v] necessárias para serem presos e se notifiquem
as testemunhas referidas para deporem. Paranaguá 16 agosto de 1735. Lobato
Me foram entregues estes autos de devassa pelo Doutor Ouvidor Geral Manoel
dos Santos Lobato com o seu despacho retro e acima em que mandou se cum-
prisse e guardasse como nele se contém de que fiz este termo em dito dia mês
e ano declarado no auto da devassa, e eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão
que o escrevi.

Assentada

E logo em dito dia mês e ano acima declarado foram inquiridas as testemunhas
adiante nomeadas de que seus ditos e idades e costumes são os que adiante se
seguem de que mandou fazer este termo de assentada, eu Manoel Gonçalvez
Junqueiro escrivão que o escrevi.
5. ª testemunha
Ignácio Luiz Teixeira, morador em Bicuhy termo desta vila, de idade que disse
ser de vinte e cinco anos pouco mais ou menos. que vive de sua lavoura de man-
dioca. Testemunha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e
prometeu dizer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a
ele testemunha pelo auto de devassa que lhe foi lido [f. 7] e declarado, disse que
sabe por ouvir dizer a Domingos Pereira Freire testemunha já perguntada nesta
devassa que a denunciada era feiticeira, e que faria malefícios e que seu marido
Veríssimo da Silva também era feiticeiro, e mais não disse nem do costume e as-
sinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão
que o escrevi.
Lobato. De Ignácio ┼ Luiz Teixeira.

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

6. ª Testemunha
Manoel Luiz de Andrade, morador em Bicuhy termo desta vila, que vive de sua
lavoura de mandioca, de idade que disse ser de vinte e cinco anos pouco mais ou
menos. Testemunha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e
prometeu dizer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a
ele testemunha pelo auto de devassa que lhe foi lido e declarado. Disse que sabe
por ouvir dizer ao denunciante que ele fora em companhia da denunciada ao sítio
desta, e aí fazendo ela uma cova tirara uns carvões com os quais dizia que tinha
feito uns feitiços à Mulher do dito denunciante, e sabe ele testemunha [f.7v] pelo
ver que depois que se tiraram os ditos carvões da cova se achara com melhoras a
mulher do dito denunciante, e outrossim sabe ele testemunha pelo ouvir dizer a
Domingos Pereira Freire testemunha já perguntada nesta devassa que o Marido
da denunciada também era feiticeiro e que fizera uns feitiços em uma cova de
mandioca, e mais não disse nem do costume e assinou com ele Doutor Ouvidor
Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. M. L. de Andrade
7. ª testemunha
Sebastião Luiz, morador em Bicuhy termo desta vila que vive de sua lavoura de
mandioca, de idade que disse ser de dezenove anos pouco mais ou menos teste-
munha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu di-
zer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemu-
nha pelo auto de devassa que lhe foi lido e declarado disse nada, e que somente
sabe pelo ver [f.8] que em uma cova de mandioca se tirara uns bichinhos, e umas
penas de passarinhos, e outras mais coisas, e que ouvira dizer a Domingos Perei-
ra Freire que eram uns feitiços que o Marido da denunciada tinha feito para com
eles maltratar uma pessoa que com efeito ele testemunha viu estar bem enferma
a dita negra e que depois de se acharem os ditos feiticeiros viu ele testemunha
a dita preta com melhoras, e mais não disse nem do costume e assinou com ele
Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. De Sebastião ┼ Luiz.

Assentada

Aos dezessete dias do mês de Agosto de mil setecentos e trinta e cinco anos nesta
vila de Paranaguá em pousadas do Doutor Ouvidor Geral aonde eu escrivão ao
diante nomeado fui vindo e sendo aí com ele para efeito de se inquirirem mais
testemunhas nesta devassa que seus nomes ditos e idades e costumes são o que

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Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

ao diante se seguem de que tudo lhe mandou ele Doutor Ouvidor Geral fazer o
presente termo de assentada [f.8v] eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que
o escrevi.
8. ª Testemunha
Salvador da Sylva, morador em Bicuhy, vive de seu ofício de carpinteiro, e de
sua lavoura, de idade de quarenta e cinco anos pouco mais ou menos testemu-
nha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer
verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha
pelo auto de devassa que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo ouvir dizer
comumente aos moradores do distrito onde ele testemunha é morador que a de-
nunciada era feiticeira e que fizera malefícios à mulher do denunciante Manoel
Gonçalvez Carreira e a uma parda por nome Florência escrava de Sebastião Luiz
de Andrade e que ouvira dizer a Felliz de Siqueira e mais pessoas que não se lem-
bra de seus nomes que suspeitando-se que a dita escrava estava doente e foram
a uma cova aonde acharam uma porta [poça?ponta?] de sangue atravessada com
uns espinhos e mais não disse nem do costume e assinou com ele Doutor Ouvidor
Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro [f.9] escrivão que o escrevi.
Lobato. Salvador da Silva.
9. ª Testemunha
João da Fonçequa Ribeiro, morador em Bicuhy que vive de sua lavoura, de idade
de trinta anos pouco mais ou menos testemunha jurada aos Santos Evangelhos
em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade do que soubesse e pergun-
tado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto de devassa que lhe foi
lido e declarado; Disse que sabe por ouvir dizer a várias pessoas e ao denunciante
que a denunciada era feiticeira e que tinha enfeitiçado a sua mulher, e mais não
disse nem do costume e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gon-
çalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. De João ┼ Fonçequa Ribeiro.
10. ª Testemunha
Paschoal Carneiro, morador em Bicuhy que vive de sua lavoura, de idade que
disse ser de vinte e três anos pouco mais ou menos testemunha jurada aos Santos
Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu [f.9v] dizer verdade do que
soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto de
devassa que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe por ouvir dizer a várias pes-
soas do sítio donde ele testemunha assiste que a denunciada era feiticeira porém
que não sabe nem ouvir dizer a qualidade de seus Malefícios, e mais não disse

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

nem do costume e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez
Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. Pascoal Caniro.
11. ª Testemunha
Felliz de Siqueira morador em Bicuhy, que vive de sua lavoura de mandioca,
de idade que disse ser de quarenta e cinco anos pouco mais ou menos testemu-
nha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer
verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha
pelo auto de devassa retro que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo
ouvir dizer a mesma [f.10] denunciada perguntando-lhe o denunciante porque
razão não desmanchava os feitiços que tinha feito a sua mulher, ela respondera
que já os tinha desmanchado entre partes em que os tinha feito no seu rancho, e
que disse ao cirurgião que os desmanchasse, e que ele testemunha ouvira dizer a
Francisco Rodriguez que já é falecido, que a denunciada fizera uns feitiços a uma
escrava de Sebastião Luiz, e que o dito Francisco Rodrigues fora achar os ditos
feitiços e que constavam de um pouco de sangue coalhado ou fígado ou bofe de
algum animal atravessado em uns espinhos, e que queimando-se os ditos feitiços
logo a dita escrava se achara com melhora e mais não disse; e perguntado pelo
ferimento que nele testemunha fizera Salvador da Silva; disse passar na verdade
o dito ferimento pela razão sobredita, em o seu depoimento, e mais não disse
nem do costume e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez
Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. De Felliz ┼ de Siqueira.
12.ª Testemunha
[f.10v] Manoel de Siqueira, morador em Bicuhy, que vive de sua lavoura de
mandioca, de idade que disse ser de quatorze anos pouco mais ou menos tes-
temunha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu
dizer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele teste-
munha pelo auto de devassa retro que lhe foi lido e declarado; Disse ele testemu-
nha que ouvira dizer a várias pessoas na paragem onde assiste que a denunciada
era feiticeira, porém que não sabe a quem o ouviu dizer; digo porém que não sabe
nem ouviu dizer os modos de seus malefícios, e mais não disse nem do costume
e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escri-
vão que o escrevi.
Lobato. De Manoel ┼ de Siqueira.
13.ª testemunha

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Liliam Ferraresi Brighente
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João Dias de Arzão, morador em Bicuhy, que vive de sua lavoura de mandioca,
de idade que disse ser de vinte e nove anos pouco mais ou menos testemunha
jurada aos [f.11] Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer
verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha
pelo auto de devassa retro que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo ouvir
dizer de pouco tempo a esta parte que a denunciada era feiticeira, porém que não
sabe, nem ouviu dizer, o modo com que a dita denunciada fazia o malefício, e
que ouvira dizer a várias pessoas onde ele denunciado assiste o que tem referido
em seu depoimento, mas que ele não lembra a quais pessoas o ouviu dizer, e mais
não disse nem do costume e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel
Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. João Dias de Arzão.
14.ª testemunha
Alexandre Pereira morador nesta comarca na paragem chamada São [19] distrito
de Curitiba, e presente nesta vila que vive de fazer curas de várias ervas e cascas
de paus e raízes tudo desta américa por saber as virtudes delas; [f.11v] de idade
que disser ser de 60 anos pouco mais ou menos, testemunha jurada aos Santos
Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade do que soubes-
se e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto de devassa
retro que lhe foi lido e declarado; Disse pela voz de seu intérprete por não saber
falar a língua portuguesa mais que tão somente a língua da terra que indo ele
testemunha, e o denunciante, e denunciada a paragem onde esta assiste ela fizera
uma cova logo atrás da porta, e da dita cova tiraram uns carvões, e com eles dis-
sera tinha feito malefícios à mulher do denunciante, e que este perguntando-lhe
porque razão tinha feito o dito malefício e se o fizera mais algum, ela perante
ele testemunha disse que não tinha feito mais nenhuns e que as dores e calor que
sentia no peito a mulher do denunciante era causado do fogo procedido dos ditos
carvões, e mais não disse nem do costume e se assinou com seu intérprete que
é Bernardo escravo do [f.12] denunciante, e com ele Doutor Ouvidor Geral, eu
Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. De Alexandre ┼ Pereira. De ┼ Bernardo, escravo do denunciante intér-
prete da testemunha.
15.ª testemunha
Francisco Matozo Coutinho, morador em Biguaçu Mirim, que vive de sua lavou-
ra, de idade que disse ser de setenta e dois anos pouco mais ou menos testemunha

19  –  Possivelmente o escrivão esqueceu-se de completar o nome do distrito. Ver nota 3.

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer ver-
dade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo
auto de devassa que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo ouvir dizer a
vizinhança que Veríssimo da Silva fizera uns feitiços a uma mulher parda escrava
de Sebastião Luiz, e que os ditos malefícios, vira fazer Domingos Pereira, e mais
não disse nem do costume e assinou com ele Doutor Ouvidor [f.12v] Geral, eu
Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. Francisco Matoso
16.ª testemunha
Domingos Luiz morador de Imbiguaçu, que vive de sua lavoura de mandioca, de
idade de trinta anos pouco mais ou menos testemunha jurada aos Santos Evan-
gelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade do que soubesse e
perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto de devassa que
lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo ouvir dizer em casa do denunciante
que a mulher deste se achava enferma por causa de feitiços que lhe fizera a de-
nunciada, e que só ouvira dizer a Domingos Pereira que andando este procurando
uma galinha que lhe servira para o ato, vira estar Veríssimo da Silva marido da
denunciada pondo uns pauzinhos a roda de uma cova; e que depois fora a dita
cova, e nelas achara uns olhos de peixe e uns bichinhos, e penas de passarinhos,
e outras coisas; e mais não disse nem do costume e assinou com ele Doutor Ou-
vidor Geral, eu Manoel [f.13] Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. De ┼ Domingos Luiz

Assentada

Aos dezenove dias do mês de agosto de mil setecentos e trinta e cinco anos nesta
Vila de Paranaguá, em pousadas do Doutor Ouvidor Geral Manoel dos Santos
Lobato, onde eu escrivão fui vindo e sendo aí sendo aí com ele para efeito de se
prosseguir com as testemunhas nesta devassa que seus ditos e costumes e idades
são os que adiante se seguem de que mandou fazer o presente termo de assenta-
da, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
17.ª testemunha
Manoel da Cruz, morador em Bicuhy termo desta Vila, que vive de sua lavoura,
de idade que disse ser de quarente anos pouco mais ou menos testemunha jurada
aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade
do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo
auto de devassa que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo ouvir dizer a

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Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

mesma denunciada perguntando-lhe ele testemunha porque razão fizera aquele


dano, e feitiços à mulher do denunciante ela lhe respondeu que não sabia o que
tentara, [f.13v] e perguntando ele testemunha a ela dita denunciada se fizera mais
alguns feitiços, fora daqueles carvões que se tinham achado, ela denunciada lhe
respondera que não; e que sabe ele testemunha pelo ver que o marido da dita de-
nunciada Veríssimo da Silva fizera uns feitiços a uma escrava de Sebastião Luiz
por nome Florência, a qual esteve muito doente, e agora se achou boa, e que os
feitiços eram um cabelo da dita Florência, e penas de passarinhos, e uns bichos e
declara ele testemunha que suposto que diz vira referido que ele o não viu, mas
que sim ouviu dizer a dita Florência que é sua comadre e que só o que vira ele
testemunha fora a cova em que se fizeram os ditos feitiços os quais também lhe
dissera Domingos Pereira testemunha já perguntada nesta devassa que o dito
Veríssimo da Silva os tinha feito, e mais não disse, nem do costume e assinou
com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o
escrevi.
Lobato. De Manoel ┼ da Cruz
18.ª testemunha
Antônio Luiz, morador no bairro de Bicuhy termo desta vila, que vive de sua
lavoura, de idade que disse ser de vinte e seis anos pouco mais ou menos teste-
munha jurada aos Santos Evangelhos em que [f.14] pôs sua mão direita e pro-
meteu dizer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele
testemunha pelo auto de devassa retro que lhe foi lido e declarado; Disse que
sabe pelo ouvir dizer ao denunciante que a denunciada tinha feito uns feitiços a
sua mulher com uns carvões, e mais não disse, nem do costume e assinou com ele
Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. Antônio Luiz.
19.ª testemunha
Manoel Correa de Lemos, morador em Bicuhy, que vive de sua lavoura de man-
dioca, de idade que disse ser de quarenta e um anos pouco mais ou menos tes-
temunha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu
dizer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele tes-
temunha pelo auto de devassa retro que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe
pelo ouvir dizer pelo ouvir dizer a uma pessoa no sítio onde ele testemunha assis-
te que a denunciada era feiticeira , porém que não sabe nem ouviu dizer a forma
de seus feitiços, nem a quem com eles fizesse danos, e mais não disse, nem do
costume e assinou [f.14v] com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez
Junqueiro escrivão que o escrevi.

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

Lobato. De Manoel ┼ Correa de Lemos.


20.ª testemunha
Sebastião Luiz Madeira, morador na Ilha Raza que vive de seu ofício de alfaiate
de idade que disse ser de vinte e sete anos pouco mais ou menos testemunha jura-
da aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade
do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto
de devassa retro que lhe foi lido e declarado; disse que sabe pelo ouvir dizer a
uma pessoas a quem ele testemunha não dava crédito nem deixava de o dar por
serem gente baixa e que muitas vezes faltavam à verdade, que a denunciada era
feiticeira e que tinha enfeitiçado a mulher do denunciante e mais não disse nem
do costume disse nada e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gon-
çalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. Sebastião Luiz Machado

Assentada [f.15]

Aos vinte dias do mês de agosto de mil setecentos e trinta e cinco anos nesta dita
Vila, em pousadas do Doutor Ouvidor Geral Manoel dos Santos Lobato, onde
eu escrivão fui vindo e sendo aí sendo aí com ele para efeito de se inquirirem as
testemunhas nesta devassa que seus ditos e costumes e idades são os que adiante
se seguem de que mandou fazer o presente termo de assentada, eu Manoel Gon-
çalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
21.ª testemunha
Francisco da Silva Freire, morador desta Vila, que vive de sua lavoura de man-
dioca, de idade que disse ser de trinta e oito anos pouco mais ou menos testemu-
nha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer
verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha
pelo auto de devassa retro que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo ouvir
dizer a Manoel Gonçalves Carreira, e a sua mulher e mais família de casa, e ou-
tros vizinhos do sítio de Bicuhy que a denunciada fizera alguns feitiços com al-
guns carvões e que a dita denunciada assim tinha confessado e também sabe pelo
ouvir [f.15v] dizer vulgarmente no dito sítio referido que o marido da denunciada
fizera uns feitiços a uma negra de Sebastião Luiz os quais logo se desmancharam,
e sarara a dita negra, e mais não disse, e do costume disse ser sobrinho carnal
da mulher do denunciante, e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel
Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. Francisco da Silva Fr.

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Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

22.ª testemunha
Joanna de Siqueira Dias, moradora do sítio de Bicuhy que vive de sua lavoura
de mandioca, de idade de quarenta anos pouco mais ou menos testemunha jurada
aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade do
que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto
de devassa retro que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo ouvir dizer a
denunciada, perguntando-lhe ela testemunha porque razão fizera uns feitiços a
mulher do denunciante com uns [f.16] carvões o que era vulgar no dito sítio, a
dita denunciada lhe respondera que era para matar a dita mulher do denunciante,
e que também sabe pelo ouvir dizer a Domingos Pereira testemunha já pergunta-
da nesta devassa que o marido da denunciada fizera uns feitiços a uma negra do
Sebastião Luiz a qual estivera doente e que se achara com melhoras depois que
se desmancharam os ditos feitiços, e mais não disse; e declara ela testemunha ser
mulher casada com Manoel da Cruz, e mais não disse e do costume disse nada, e
por ela testemunha não saber escrever assinou ele Doutor Ouvidor Geral com seu
nome inteiro, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Manoel dos Santos Lobato.
23.ª testemunha
Florência Luiz mulher solteira mulher solteira natural e moradora no Bairro de
Bicuhy, e assiste em casa de Sebastião Luiz de Andrade, de sua administração, de
idade que disse ser de vinte e cinco anos pouco mais ou menos testemunha jurada
aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade
do que soubesse e perguntado lhe fosse. [f.16v] E perguntado a ele testemunha
pelo auto de devassa retro que lhe foi lido e declarado; Disse que somente vira a
denunciada atrás da sua porta abrir uma covazinha e dela tirar uns carvões, e que
ouvira dizer a mesma denunciada que com eles queria fazer mal ao Marido, digo
com eles fazer mal ao denunciante, e depois variara dizendo que com os ditos
carvões queria fizera mal a mulher do dito denunciante, e outrossim sabe pelo
ver que a mulher do dito denunciante se acha a tempos muito doente, e não pode
andar, e anda de gatinhas, e sempre gritando, e que outrossim ouviu dizer ao ma-
rido da dita denunciada que fosse ela testemunha dizer a sua mulher que negasse
sempre se por lá aparecesse alguma justiça, o ter feito o malefício, e outrossim
sabe ela testemunha por ouvir dizer a Domingos Pereira testemunha já pergun-
tada nesta devassa que o marido da denunciada fizera uns feitiços em uma cova
de mandioca, e como ela testemunha se achava enferma e suspeitando ser o seu
achaque [f.17] algum malefício pedira ao dito Domingos Pereira lhe ensinasse o
sítio onde estava a dita cova e com efeito fora ela testemunha e o dito Domingos

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

Pereira, e cavando acharam um pouco de terra dura, vermelha, e azul, e nela pe-
nas de passarinhos todas brancas e muitos bichos grandinhos, e outros mais pe-
queninos, e também uma coisa denegrida que mostrava ser tripa, o que tudo ela
testemunha desmanchou, e levou a Sebastião Luiz seu senhor administrador os
quais queimou e lançando-os no fogo excetuando uns bichinhos grandes que lhe
fugiram, e depois deste sucesso referido se achou ela testemunha com melhora; e
mais não disse, e nem do costume, e por ser mulher e não saber ler nem escrever
assinou ele Doutor Ouvidor Geral com seu nome inteiro, eu Manoel Gonçalvez
Junqueiro escrivão que o escrevi.
Manoel dos Santos Lobato.
24.ª testemunha
Antonio Francisco morador em Bicuhy que vive e assiste por feitor do denun-
ciante de idade que disse ser de [f.17v] quarenta e seis anos de idade que disse ser
de vinte e cinco anos pouco mais ou menos testemunha jurada aos Santos Evan-
gelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade do que soubesse e
perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto de devassa retro
que lhe foi lido e declarado; Disse que testemunha que sabe pelo ouvir dizer ao
mesmo denunciante que este fora em companhia da denunciada e também um
seu escravo por nome Bernardo, e um índio que veio do Rio São Francisco20
por nome Alexandre Pereira testemunha já perguntada nesta devassa e que todas
virão fazer a dita denunciada uma cova atrás da porta onde ela assistia em sua
casa, e dela tirar uns carvões, com os quais disseram os sobreditos tinha dita
denunciada feito mal a mulher do dito denunciante, e sabe ele testemunha pelo
ver que a mulher do dito denunciante está doente e enferma há tempos e que não
pode dar passada, e sempre em gritos, e de poucos dias a esta parte, tem passa-
do terrivelmente e mais não disse e nem do costume, e assinou com ele Doutor
Ouvidor Geral [f.18], eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. De Antonio ┼ Francisco
25.ª testemunha
Tome Pacheco Abreu, morador desta Vila, que vive de sua agência, e de solicitar
causas de idade que disse ser de cinquenta e dois anos pouco mais ou menos tes-

20  –  Pode se referir ao Rio São Francisco que nasce em Santos Dumont no Município de
Cascavel e deságua no Rio Paraná, com 72,1Km de extensão ou, o que é mais provável, à
atual cidade de São Francisco do Sul localizada em Santa Catarina que já se chamou Vila
de Nossa Senhora da Graça do Rio São Francisco, fundada em 3 de dezembro de 1641
pelo mesmo Capitão Povoador da Vila de Paranaguá, Gabriel Lara. Aquela Vila pertenceu
à Ouvidoria de Paranaguá até 1731.

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Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

temunha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu
dizer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele tes-
temunha pelo auto de devassa que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo
ouvir dizer a várias pessoas que a denunciada era feiticeira porquanto tinha feito
uns malefícios com uns carvões que se achavam em uma cova junto a uma porta
das casas em que assistia a dita denunciada, e também ouvira dizer que os ditos
feitiços eram para com eles fazer mal à mulher do denunciante; dissera que não
só os ditos carvões fizera, mas também outros que dentro em um saquinho e que
mais [f.18v] sabia em que parte o tinha posto, e escondido, cujos feitiços eram a
fim de matar a mulher do denunciante a qual vulgarmente ouvira ele testemunha
dizer que estava doente, e mais não disse e nem do costume, e assinou com ele
Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. Tome Pac.o Abreu
26.ª testemunha
Izabel da Silva viúva do Capitão Antonio Estevez Freire, moradora desta vila
que vive de suas lavouras, de idade que disse ser de cinquenta e quatro anos
pouco mais ou menos testemunha jurada aos Santos Evangelhos em que pôs sua
mão direita e prometeu dizer verdade do que soubesse e perguntado lhe fosse. E
perguntado a ele testemunha pelo auto de devassa que lhe foi lido e declarado;
Disse que sabe pelo ouvir dizer a mesma denunciada perguntando ela testemunha
porque razão fizera aquele malefício a sua irmã com aqueles carvões que se acha-
ram ela dita [f.19] denunciada lhe respondera que era para ter aqueles calores que
padece assim de dia como de noite e em toda a hora, e que desse Graças a Deus
em não ser pior, e que a razão que tivera para aquele malefício fora a tentação
do Demônio, e que outrossim ouvira ela testemunha a mesma denunciada que
ela lhe daria remédio para que no termo de quatro dias se achasse de todo livre
da moléstia que tinha, e com efeito dissera a um índio por nome Alexandre que
fosse buscar certa casca de uma árvore que com efeito trazendo-a a deu a dita
denunciada, e esta dela mandou fazer um cozimento e ordenou que bebesse a dita
mulher do denunciante que logo havia de sentir melhoras, porém ela testemunha
não vira melhoras nenhumas, em sua irmão mulher do dito denunciante, antes
vira que depois que tomou o dito cozimento se achara pior com grandes destem-
peramentos da natureza obrados; e outrossim sabe ela testemunha por ouvir dizer
a outras pessoas, e principalmente, a uma [f.19v] administrada de Sebastião Luiz
por nome Florência que já jurou nesta devassa que o marido da denunciada Ve-
ríssimo da Silva lhe fizera uns feitiços que por ela dita Florência os desmanchar
se via livre dos ditos malefícios, e se achava boa, e mais não disse, e do costume
disse ser cunhada do denunciante e por ela testemunha ser mulher e não saber

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

ler, nem escrever assinou ele Doutor Ouvidor Geral com seu nome inteiro, eu
Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Manoel dos Santos Lobato.

Assentada

Aos vinte e dois dias do mês de agosto de mil setecentos e trinta e cinco anos Vila
de Paranaguá, em pousadas do Doutor Ouvidor Geral Manoel dos Santos Lobato,
onde eu escrivão fui vindo e sendo aí sendo aí com ele para efeito de se prosse-
guir com as testemunhas nesta devassa que seus ditos e costumes e idades são os
que adiante se seguem de que mandou fazer o presente termo de assentada, eu
Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
27.ª testemunha
[f20] Manoel da Costa Bairros, morador desta vila que vive de sua lavoura, de
idade que disse ser de trinta e cinco anos pouco mais ou menos testemunha jura-
da aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade
do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto
de devassa que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo ouvir dizer ao mes-
mo denunciante, que a denunciada confessara ter feito uns feitiços a sua mulher
com uns carvões os quais achara o dito denunciante e a mesma denunciada em
uma porta das casas em que a dita morava, e que outrossim ouvira dizer a Ber-
nardo escravo do dito denunciante que o dia de ontem ou anteontem se acharam
outros feitiços em um saquinho que constavam de dois olhinhos, e duas unhas de
gente, e um pedacinho de osso de canela de perna de gente e que isto se achara
em um galinheiro de galinhas junto de um pau a pique do dito galinheiro, o que
demonstrava ser já antigo e o saquinho ser de serafina21 e já roto22 em razão de
ser úmida a parte onde estava o dito saquinho; e que outrossim se acharam outros
[f.20v] feitiços em outro saquinho em cima de um coice23 de uma porta da entra-
da da casa da gente do denunciante o qual constava de uma pouca de terra com
seu capim fresco ainda em que mostrava não ser de muitos dias ali posta, e que
a conheciam ser a dita terra de algum cemitério, o que ele testemunha ouvira ao
dito Bernardo; e que outrossim sabe por ouvir dizer a Sebastião Luis testemunha
já perguntada nesta devassa que Veríssimo da Silva marido da denunciada fizera
uns feitiços a uma administrada sua por nome Florência a qual viu ele testemu-

21  –  Certa qualidade de lã delgada que serve para forros, entretelas.


22  –  Rasgado, rompido, danificado.
23  –  Peça fixa de madeira com cachimbos de metal, sobre a qual se move a porta. A
soleira da porta. F. lat. Calx, calcem.”

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Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

nha bastante enferma e coariz? toda inchada, e que depois de se desmanchar os


ditos feitos, logo segundo lhe disse a ele Sebastião Luiz e ele presenciara fora
tendo melhoras a dita Florência; e perguntado pelo referimento que nele fez a
testemunha Vallentim Cordeiro Matozo disse passar na verdade, em razão do que
ele testemunha tem dito no seu depoimento e mais não disse e nem do costume,
e assinou com ele [f.21] Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro
escrivão que o escrevi.
Lobato. Manoel da Costa Barros.
28.ª testemunha
Francisco Rodriguez morador desta vila que vive de seu negócio, de idade que
disse ser de quarenta anos pouco mais ou menos testemunha jurada aos Santos
Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade do que soubes-
se e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto de devassa
retro que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo ouvir dizer que ao mesmo
denunciante que toda a queixa que padecia sua mulher era causada de uns feitiços
que lhe tinha feito a denunciada; e que também ouvira dizer a João Nunes Gomes
morador nesta vila que a dita denunciada dissera que se procedessem a prisão
contra ela ou castigassem; e morresse, que todos de casa do dito denunciante
haviam de morrer, e mais não disse e nem do costume, e assinou com ele Doutor
Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão [f.21v] que o escrevi.
Lobato. De Francisco ┼ Rodriguez
29.ª testemunha
João Nunes Gomes morador desta vila que vive de seu negócio, de idade que dis-
se ser de trinta e oito anos pouco mais ou menos, testemunha jurada aos Santos
Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade do que soubes-
se e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto de devassa
retro que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe pelo ouvir dizer a uns pretos
do denunciante e também Pedro Rodrigues morador nesta vila que a mulher do
denunciante se achava enferma por causa de uns carvões que neles tinha feito fei-
tiços a denunciada, e mais não disse; e perguntado pelo referimento que nele fez
a testemunha antecedente Francisco Rodrigues disse que o referimento passa na
verdade por ele testemunha ouvir dizer a um preto do dito denunciante de nome
Ventura, e mais não disse, e nem do costume, e assinou com ele Doutor Ouvidor
Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. João Nunes Gomes.

336 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):311-341, set./dez. 2017.


Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

[f.22] Alexandre Pereira testemunha já perguntada nesta devassa e referida pela


testemunha Valentim Cordeiro Mattoso ao qual o Doutor Ouvidor Geral disse
que debaixo do juramento que tinha tomado declarasse a verdade sobre refe-
rimentos que nele fez a testemunha sobredita a que disse não se lembra de tal
dissesse, porque só presenciara a achada dos carvões como ele tem deposto em
seu depoimento, mais não disse; e perguntado pelo referimento que nele fez a
testemunha Izabel da Silva disse que passa na verdade porque ele fora buscar
a casca que no dito depoimento se refere; e tudo sucedera na forma que nele se
declara, e mais não disse por nome do seu intérprete por nome Bernardo que
com ele assistiu a estes referimentos, e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral,
eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. De Alexandre ┼ Pereira.
Bernardo escravo do denunciante de idade que disse ser de vinte e cinco pouco
mais ou menos a quem o Doutor Ouvidor Geral deu o juramento dos Santos
Evangelhos em um livro dele em que pôs sua [f.22v] mão direita para que de-
baixo dele declarasse a verdade sobre os referimentos que nele fizeram as teste-
munhas Sebastião Luiz de Andrade, e Manoel da Costa Bairros, e que quanto a
este passa na verdade o seu referimento porque assim sucedera sábado próximo
passado que se contaram vinte do presente mês, andando ele dito Bernardo car-
pindo e cortando erva com eixadas [enxadas?], e todos os mais escravos de casa
acharam o dito saquinho de serafina na paragem em que se declara no depoimen-
to do dito Sebastião; digo depoimento do dito Manoel da Costa Bairros, e vendo
ele o sucedido e buscaram todas as paragens, e casas por ordem do denunciante
seu senhor, e com efeito acharam em um coice de uma porta um saquinho com
uma pouca de terra, e capim, a qual bem se conhecia ser de uma das sepulturas
que estão a porta de Igreja Matriz desta vila, porque donde ele assiste em Bicuhy
e o dito denunciante e seu senhor e mais família não há daquela terra, [f.23] e
mais não disse, e ao referimento de Sebastião Luiz de Andrade, disse não estava
lembrado de o ter dito e outrossim que sabe ele referente que a mulher do denun-
ciante sua senhora se achava com bastantes melhoras depois de se ter achado os
feitiços que tem declarado, na forma sobredita, o que sabe pelo ver e ser notório
e mais não disse, e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez
Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. De Bernanr ┼ do. Escravo do denunciante.
João escravo do denunciante, de idade que disse ser de vinte e quatro anos mais u
menos, a quem o Doutor Ouvidor Geral deu o juramento dos Santos Evangelhos
em que pôs sua mão direita para que debaixo dele declarasse a verdade sobre o

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):311-341, set./dez. 2017. 337


Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

referimento que nele fez a testemunha Sebastião Luiz de Andrade, e disse que
não está lembrado do dito referimento, porém que não havia dúvida acharem-se
os ditos carvões que se refere no dito depoimento, e mais não disse [f.23v] e as-
sinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão
que o escrevi.
Lobato. De João┼. Escravo do denunciante.
30.ª testemunha
Pedro Rodriguez, morador nesta Vila de Paranaguá, que vive de sua lavoura, de
idade que disse ser de quarenta e dois anos pouco mais ou menos testemunha ju-
rada aos Santos Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade
do que soubesse e perguntado lhe fosse. E perguntado a ele testemunha pelo auto
de devassa que lhe foi lido e declarado; Disse que sabe por ouvir dizer no sítio
de Imbiguaçu indo lá algumas vezes ao dito sítio por ser lá fazenda sua, a várias
pessoas de cujos nomes senão lembra que a denunciada era feiticeira, e que ela
ou dito seu marido Veríssimo da Silva tinham enfeitiçado uma administrada de
Sebastião Luiz de Andrade e mais não disse, e perguntado pelo referimento que
nele fez a testemunha João Nunes Gomes, disse passar na verdade [f.24] em ra-
zão dele testemunha também [ter] ouvido em dito sítio a varias pessoas como se
refere em seu depoimento, e mais não disse, nem do costume, e assinou com ele
Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.
Lobato. Pedro Ro.z
Ventura escravo do denunciante, de idade que disse ser de cinquenta anos pouco
mais ou menos, a quem o Doutor Ouvidor Geral deu o juramento dos Santos
Evangelhos em que pôs sua mão direita para que debaixo dele declarasse a ver-
dade sobre o referimento que nele fez a testemunha João Nunes Gomes, disse
que não se lembrava de ter dito dizer a denunciada o que no depoimento se refere
e que suposto ele ouvira com outras mais pessoas escravos do dito denunciante
seu senhor dizer que se acharam uns carvões e depois se acharam uns ossos de
gente, e [?] que ele não sabe o que disso resultara por não conversar com a dita
denunciada, e mais não disse [f.24v] e assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, e
assinou com ele Doutor Ouvidor Geral, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escri-
vão que o escrevi.
Lobato. De Ventura┼. Escravo do denunciante.

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Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

Termo de encerramento

Aos vinte e três dias do mês de agosto de mil setecentos e trinta e cinco anos
nesta vila de Paranaguá em pousadas do Doutor Ouvidor Geral Manoel dos San-
tos Lobato, e sendo inquiridas as trinta testemunhas nesta devassa, e as referidas
como dela consta fiz estes autos de devassa conclusos ao dito Ministro para de-
terminar como parecer justiça de que tudo fiz o presente termo de encerramento,
e conclusão e eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão da Ouvidoria Geral que
o escrevi.
Conclusos ao Doutor Ouvidor Geral em 23 de Agosto de 1735 anos.
Desse-se em culpa aos pronunciados o que acresce pelos [?] das testemunhas
nesta? devassa perguntadas. Paranaguá de Agosto 23 de 1735.
Lobato.

Termo de entrega [f.25]

Aos vinte e três dias do mês de agosto de mil setecentos e trinta e cinco anos
nesta vila de Paranaguá me foi entregue estes autos de devassa retro pelo Doutor
Ouvidor Geral Manoel dos Santos Lobato com a sua pronunciação em que man-
dou se cumprisse e guardasse como nela se contém de que tudo fiz o presente
termo de entrega, eu Manoel Gonçalvez Junqueiro escrivão que o escrevi.

Lançados os réus em um livro de culpados.


Junqueiro.

Autuaç. – 80
Mand.o de ts. e As. – 230
Conclus.– 016
Deferimento. – 056
Raz. – 870
Ao meirinho24 – 480 - de [somar?] algumas testemunhas
Ao escrivão – 2400 – pelo trabalho que mais teve
Conta – 072 – a conta do contador – grátis
4204
24  –  Antigo oficial de justiça. Cargo português.

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Danielle Regina Wobeto de Araujo
Liliam Ferraresi Brighente
Luís Fernando Lopes Pereira

Importam quatro mil duzentos e quatro réis.


Lobato
Recebi estas custas que me pertenciam do denunciante: Junqueiro. Paguei
[f.25v] A Ré presa Maria Bicuda foi solta da cadeia por despacho e sentença
dada nos autos de livramento sumariamente do Doutor Ouvidor Geral Manoel
dos Santos Lobato para ir cumprir o degredo que na dita sentença se manda para
fora da Comarca por tempo de quatro anos como consta dos ditos autos no maço
litera. M: anv.o e da sentença do processo que se entregou a dita Ré passada pela
Chancelaria em 27 de maio de 1736 e assinada pelo dito Doutor Ouvidor Geral.

O escrivão Junqueiro.


Referências bibliográficas
ARAUJO, Danielle Regina Wobeto de. Um “Cartório de feiticeiras”: direito
e feitiçaria na Vila de Curitiba (1750-1777). 2016. 297 f. Tese (Doutorado) –
Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Direito.
BETHENCOURT, Francisco. Imaginário da magia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
BRIGHENTE, Liliam Ferraresi. Entre a liberdade e a administração particular:
a condição jurídica do indígena na Vila de Curitiba (1700-1750). 2012. 145 f.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Paraná.
___. Liberdade e administração dos índios no Brasil do século XVIII: a petição
de Francisca Leme ao juízo ordinário da Vila de Nossa Senhora da Luz dos
Pinhais de Curitiba (1729). Revista do IHGB. Rio de Janeiro, a.173 (454): 285-
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DEPARTAMENTO ESTADUAL DE ARQUIVO PÚBLICO DO PARANÁ
(DEAP). BR PRAPPR PB 045 PC 1363.5 Cx.5.
HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo. 1550-1750.
Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes. Lisboa: Edição do
autor, 2015.
MASSUCHETTO, Vanessa Caroline. Os autos de livramento crime e a Vila de
Curitiba: apontamentos sobre a cultura jurídica criminal (1777-1800). 2016.

340 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):311-341, set./dez. 2017.


Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII:
a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Paraná. Programa de Pós-


Graduação em Direito.
PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Cultura jurídica dos rústicos da América
Portuguesa: juízes ordinários na Vila de Curitiba no século XVIII. In: SANTOS,
Antonio Cesar de Almeida (org.) Ilustração, cultura escrita e práticas culturais
educativas. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2016. pp. 69-88.
PEREIRA E SOUSA, Joaquim José Caetano. Primeiras linhas sobre o processo
criminal, quarta edição emendada, e acrescentada por Joaquim José Caetano
Pereira e Sousa, Advogado na Casa da Supplicação. Lisboa: Impressão Régia,
1831.
PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Edição on-line disponibilizada pela Uni-
versidade de Coimbra. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/
ordenacoes.htm>.

Texto apresentado em janeiro/2017. Aprovado para publicação em


setembro/2017.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (475):311-341, set./dez. 2017. 341


Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos:
Brasil e Angola – séculos XVII-XIX

343

V – RESENHAS
REVIEW ESSAYS

DEMETRIO, Denise Vieira; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos;


GUEDES, Roberto (orgs.). Doze capítulos sobre escravizar gente
e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2017
Luiz Fabiano de Freitas Tavares1

Segundo um de nossos mestres maiores, Sérgio Buarque de Holan-


da, uma das funções sociais do historiador consistiria em exorcizar os
fantasmas do passado. Entre os espectros do nosso Brasil podemos contar
a experiência histórica da escravidão, que ainda nos assombra, passados
já cento e trinta anos da abolição. Objeto ainda de discussões sobre o
presente e de polêmicos projetos para o futuro do país, o tema convida
sempre o historiador a retomar e renovar a reflexão sobre esse fenômeno
social que gostaríamos talvez de esquecer. Assim sendo, são sempre bem-
-vindos estudos como Doze capítulos sobre escravizar gente e governar
escravos, organizado por Denise Vieira Demetrio, Ítalo Domingos Santi-
rocchi e Roberto Guedes.

Vale destacar, antes de tudo, a qualidade de composição da obra


enquanto conjunto, uma vez que os capítulos se articulam com notável
harmonia, complementando-se mutuamente de modo muito consistente –
virtude importantíssima para qualquer obra coletiva. Não vemos no livro
uma colcha de retalhos apressadamente costurada, mas um conjunto or-
gânico, dando-se a perceber como fruto de um diálogo amplo e continua-
do entre seus autores, ligados aos projetos Governos, resgates de cativos
1 – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorando em
Antropologia Social pelo Museu Nacional. Autor dos livros Entre Genebra e a Guana-
bara – A discussão política huguenote sobre a França Antártica (Topbooks, 2011), Da
Guanabara ao Sena – Relatos e cartas sobre a França Antártica nas Guerras de Religião
(EdUFF, 2011) e A ilha e o tempo – Séculos e vidas de São Luís do Maranhão (Instituto
Geia, 2012).

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Luiz Fabiano de Freitas Tavares

e escravidões (Brasil e Angola, séculos XVII e XVIII) e Testamentos e


hierarquias em sociedades escravistas ibero-americanas (séculos XVI-
-XVIII), ambos coordenados pelo professor Roberto Guedes desde 2011.

O próprio título já é bastante feliz: a contraposição entre “escravizar


gente” e “governar escravos” explicita as incontornáveis tensões e contra-
dições vivenciadas em sociedades baseadas no trabalho escravo, explora-
das de modo muito rico em suas múltiplas facetas ao longo dos capítulos
do livro. Recorrendo à diversificada gama de fontes primárias, os autores
perseguem com grande consistência empírica os rastros documentais tan-
to da gente escravizada quanto da gente que governava escravos – por si-
nal, gente que, às vezes, tanto foi escravizada quanto governou escravos,
em diferentes momentos da vida, no que poderia parecer um paradoxo
para nós do século XXI. Evitando compromissos fáceis com modismos
acadêmicos ou causas sociais e políticas do presente, os autores analisam
suas fontes sem ceder a interpretações de ordem teleológica acerca de
problemas que ainda hoje nos acompanham, nem ao uso anacrônico do
conceito de racismo, que, como salienta Guedes, em certas abordagens
historiográficas recentes “se tornou tão largo que explica tudo, ou nada”2.

Recorrendo a testamentos, registros de batismo, recenseamentos,


correspondências administrativas, periódicos e relatos de viagem, entre
outros gêneros de documento, os autores nos apresentam um curioso
elenco de personagens célebres ou nem tanto do mundo escravista dos
dois lados do Atlântico, como Maria Correia de Sá, forra e senhora de es-
cravos, Braz Leme, apresador de índios e pai de muitos mestiços, D. Pas-
choal, jaga de Cassange e (suposto) vassalo da coroa lusitana, D. Antônio
Viçoso, “bispo ultramontano e antiescravista” ou ainda László Magyar,
aventureiro húngaro nos sertões e costas angolanos, entre muitos outros.

2  –  Cf. GUEDES, Roberto. “Senhoras pretas forras, seus escravos negros, seus forros
mulatos e parentes sem qualidades de cor: uma história de racismo ou de escravidão?”.
In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Ítalo Domingos e GUEDES, Roberto
(org.). Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – sé-
culos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017, pp. 31-33, 43-45.

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Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos:
Brasil e Angola – séculos XVII-XIX

Os capítulos alternam diversas escalas de análise, alguns centrados


em trajetórias individuais, outros voltados à análise serial em escala re-
gional, por vezes combinando métodos quantitativos e qualitativos de
análise. A exemplo de outros grandes trabalhos em história atlântica, os
estudos exploram de modo rico as dimensões partilhadas e imbricadas de
experiências americanas e africanas. Sob esse aspecto, há que ressaltar a
atenção concedida às práticas de escravidão vigentes em África, lançando
nova luz sobre alguns aspectos da vivência da escravidão na América,
apontando interseções e divergências entre as duas margens daquele “rio
chamado Atlântico”. Também do ponto de vista cronológico há grande
variedade de abordagens, enfatizando tanto processos de curta quanto de
longa duração, de modo a desvelar as complexas e variadas temporalida-
des da escravidão atlântica entre os séculos XVII e XIX. O desdobramen-
to dos capítulos permite refletir sobre continuidades e descontinuidades
ao longo de todo esse período, apresentando a escravidão não como um
bloco monolítico, mas como uma série de momentos distintos, um con-
junto de experiências singulares, interligadas, mas não homogêneas, cada
uma delas refletindo e refratando as dinâmicas mais amplas de uma Amé-
rica portuguesa, uma África não tão lusitana e um mundo atlântico em
perpétuo movimento. Bom exemplo disso são as complicadas relações
entre o jaga de Cassange e a coroa lusitana exploradas por Flávia Maria
de Carvalho, que, embora vertidas no familiar idioma da vassalagem, re-
velam dimensões muito mais complexas, nem de parceria, nem de rivali-
dade, nem de dominação, nem de submissão – ou melhor, são um pouco
de cada, à medida que se mostram diplomáticas, tanto quanto dialéticas:
desdobram-se na duração, a partir dos encontros e desencontros de tensos
cúmplices do trato negreiro3.

Uma característica digna de destaque é o apuro terminológico da


obra, cujos autores se mostram atentos aos riscos de usar variados termos
de modo anacrônico, reducionista ou reificado, salientando muitas vezes
3  –  Cf. CARVALHO, Flávia Maria de. Uma saga no sertão africano: o jaga de Cas-
sange e a diplomacia comercial portuguesa no final do século XVIII. In: DEMETRIO,
Denise Vieira. SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp.
227-252.

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Luiz Fabiano de Freitas Tavares

que essas noções não eram usadas de maneira linear ou uniforme em to-
dos os contextos abordados, lembrando a polissemia de diversas palavras
importantes no léxico da escravidão. Nesse sentido, são interessantes as
anotações de Éva Sebestyén sobre as categorias de escravos que o idioma
ovimbundu distinguia, como háfuka (escravo de penhor), em oposição ao
pika ou dongo (escravo de compra), cujos respectivos estatutos jurídicos
e perspectivas de vida no sobado de Bié eram bastante diferenciados, ou
ainda sobre as distintas formas de fuga reconhecidas, como vatira, tom-
bika ou kilombo. Seguem caminho semelhante as observações de Silva-
na Godoy acerca dos ambíguos significados de termos como alforria ou
liberdade nos testamentos da São Paulo seiscentista. Da mesma forma,
Guedes propõe interessantíssima discussão acerca do uso das “qualidades
de cor” como negro, preto, mulato, pardo ou branco – qualificações que,
muitas vezes, podiam ser aplicadas ao mesmo indivíduo em momentos, e
principalmente, em circunstâncias distintas4.

Algumas problemáticas atravessam diversos capítulos da obra. Uma


delas é a questão da heterogeneidade da classe senhorial; longe de consti-
tuir um grupo homogêneo e coeso, sua composição aponta para um cará-
ter extremamente diversificado. Entre os senhores de escravos se encon-
travam desde os grandes pecuaristas e senhores de engenho aos pequenos
agricultores e mesmo boa quantidade de egressos do cativeiro, alguns até
nascidos em terras africanas; senhores que contavam seus escravos nos
dedos de uma mão, e aqueles que os contavam às centenas. Ao que tudo
indica, é provável que esses senhores com perfis tão variados mantives-
sem relações igualmente diversificadas com seus cativos. O estudo de
Ana Paula Souza Rodrigues Machado investiga testamentos em busca
de pistas sobre como diferentes senhores no recôncavo da Guanabara
conduziam suas respectivas escravarias, enquanto o capítulo de Márcio
de Souza Soares traça amplo panorama das peculiaridades da demografia

4  –  Cf. SEBESTYÉN, Éva. Escravização, escravidão e fugas na vida e obra do viajan-


te-explorador húngaro László Magyar (Angola, meados do século XIX); GODOY, Silva-
na. Alforrias de forros indígenas: pelo amor de Deus e por descargo da consciência (São
Paulo, século XVII). In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e
GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 173-196, 291-312.

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Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos:
Brasil e Angola – séculos XVII-XIX

da escravidão na região de Campos dos Goytacazes entre 1698 e 1830;


Nielson Rosa Bezerra e Moisés Peixoto, por sua vez, estudam as trajetó-
rias de duas senhoras egressas do cativeiro. Por fim, como ressalta Deme-
trio, a coisa podia se complicar ainda mais quando o senhor de escravos
era também funcionário a serviço da Coroa5.

Outra rica problemática explorada pela obra é a questão da alforria


em seus múltiplos aspectos. As situações de alforria estudadas pelos au-
tores são interessantes não apenas enquanto testemunhos dessa prática,
mas pela luz mais ampla que jogam sobre o próprio cotidiano da escravi-
dão. Em seu conjunto, os estudos enfatizam que em episódios específicos
as modalidades jurídicas sob as quais a prática podia se dar contavam
tanto quanto – ou até menos que – as motivações para sua realização,
bem como os diferentíssimos significados com que os envolvidos em
cada caso podiam investi-la. As detalhadíssimas instruções testamentá-
rias deixadas por alguns senhores, alforriando certos escravos e deixando
outros no cativeiro, legando aos libertos mais ou menos bens, exigindo
ou impondo condições diferenciadas para cada remissão sugerem quanto
de singularidade as relações entre um senhor e cada um de seus cati-
vos podia comportar. O livro nos apresenta a alforria como fenômeno
complexo, envolvendo dimensões de barganha e disciplina, cálculo eco-
nômico e gratidão, afeição e piedade cristã, entre outras possibilidades.
Desse modo, os autores exploram a alforria para além da prosa jurídica,
abordando-a como um costume cujas implicações repercutiam em todas
as esferas da sociedade escravista; longe de ser mero problema de razão
econômica, atravessava os domínios da sexualidade e da religiosidade, do
cotidiano doméstico e da governança pública, do nascimento e da morte.

5  –  Cf. MACHADO, Ana Paula Souza Rodrigues. Testemunhos da mente: elites e seus
escravos em testamentos (Fundo da Baía do Rio de Janeiro, 1790-1830); SOARES,
Márcio de Souza. Angolas e crioulos na planície açucareira dos Campos de Goytaca-
zes (1698-1830); BEZERRA, Nielson Bezerra e PEIXOTO, Moisés. Gracia Maria da
Conceição Magalhães e Rosa Maria da Silva: os testamentos como documentos autobio-
gráficos de africanos na diáspora; DEMETRIO, Denise Vieira. Artur de Sá e Meneses:
governador e senhor de escravos. Rio de Janeiro, século XVII. In: DEMETRIO, Denise
Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 51-108,
125-172.

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Luiz Fabiano de Freitas Tavares

Em seus variados registros documentais, os episódios de alforria permi-


tem entrever a multiplicidade de vínculos entre senhores e escravos, li-
vres, libertos e cativos, superando as simples relações dicotômicas entre
opressores e oprimidos.

No desenrolar de seus capítulos, a obra também explora, com signi-


ficativo rendimento analítico, as imbricações entre a escravidão e a reli-
giosidade cristã; não poderia ser de outro modo numa sociedade profun-
damente católica e amplamente escravista. O cativeiro era, obviamente,
objeto de controvérsias teológicas, mas essas interseções são igualmente
visíveis enquanto problema moral, nas alforrias concedidas por amor de
Deus ou por descargo da consciência, como discute Godoy. Também se
refletia nas dimensões litúrgicas da vida, como o batismo, que tanto pro-
duzia parentesco espiritual como conformava o cotidiano de escravos,
libertos e livres nas relações de compadrio, como Maria Lemke analisa
cotejando registros de batismo. Também era tema de política eclesiásti-
ca, conforme exploram Ítalo Domingos Santirocchi e Manoel de Jesus
Barros Martins em seu excelente capítulo sobre D. Antônio Viçoso, que
propõe questionamentos importantes acerca das relações históricas entre
a Igreja Católica e a escravidão no Brasil, convidando a repensar os signi-
ficados do ultramontanismo no Império, bem como o conteúdo específico
do conservadorismo professado pelo clero ultramontano, para além de
estereótipos historiográficos consagrados6.

Por fim, vale mencionar os últimos capítulos do livro, centrados


principalmente nas dinâmicas escravistas em solo africano, enfatizando
principalmente as dimensões diplomáticas das relações estabelecidas en-
tre autoridades lusitanas e poderes políticos africanos, como o estudo de
Ariane Carvalho, devotado às dinâmicas guerreiras entretidas em terras
angolanas, ou ainda o capítulo onde Ingrid Silva de Oliveira Leite explora
6 – LEMKE, Maria. Nem só de tratos ilícitos se forma uma família no sertão dos Guaya-
zes. Os Gomes de Oliveira diante da pia batismal, c. 1740-1840; SANTIROCCHI, Ítalo
Domingos e MARTINS, Manoel de Jesus Barros. “Quanto ao serviço dos escravos, eu
os dispenso”: D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo ultramontano e escravista (século XIX).
In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto.
(org.), op. cit., pp. 109-124, 197-224.

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Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos:
Brasil e Angola – séculos XVII-XIX

as sutis nuances dos escritos de Elias Alexandre da Silva Correa, militar


português que servira em África no século XVIII7.

Evidentemente nenhum livro conseguiria exorcizar os fantasmas da


escravidão em nossa formação nacional, mas Doze capítulos sobre escra-
vizar gente e governar escravos certamente traz valiosas contribuições
para se pensar sobre o assunto a partir de um trabalho empírico denso
e metodologicamente robusto, escorado em interlocuções historiográfi-
cas consistentes e questionamentos teóricos instigantes, a um só tempo
olhando para o passado e dialogando com questões atuais de modo de-
licado, prudente e desapaixonado, com as melhores ferramentas que a
crítica acadêmica pode oferecer.

Texto apresentado em setembro/2017. Aprovado para publicação em


setembro/2017.

7  –  CARVALHO, Ariane. “E carrega de cativos os vencedores”: guerra e escravização


no reino de Angola (1749-1772); LEITE, Ingrid Silva de Oliveira. Tráfico e escravidão em
Elias Alexandre da Silva Corrêa (Angola, século XVIII). In: DEMETRIO, Denise Vieira,
SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 253-290.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):343-349, maio/ago. 2017. 349


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