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Cooperifa
Antropofagia periférica
Sérgio Vaz
Patrocínio
Copyright © 2008 Sérgio Vaz
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS
curadoria
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
consultoria
ECIO SALLES
projeto gráfico
CUBÍCULO
COOPERIFA – ANTROPOFAGIA PERIFÉRICA
produção editorial
ROBSON CÂMARA
revisão
JULIANA WERNECK
revisão tipográfica
ROBSON CÂMARA
V497c
Vaz, Sérgio
Cooperifa : antropofagia periférica / Sérgio Vaz.
-Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.
(Tramas urbanas; 8)
ISBN 978-85-7820-006-0
1.Vaz, Sérgio. 2.Centro Cultural Cooperifa.
3.Poesia popular – História e crítica.
4.Cultura popular - Brasil.
5.Literatura popular – História e crítica.
I.Título. II.Série.
Agradecimentos especiais
Marco Pezão, João Wainer (fotografia), Edu Toledo
(fotografias), Eleilson (Ação Educativa), DGT Filmes, Edson
Natale, Eduardo Saron, Claudinei Ferreira, Marisa Zambrani,
Ademir Valente, Ali Sati e Eliane Brum.
Sumário
11 Prefácio
12 Apresentação: Poesia das ruas
66 Cap.02 Cooperifa
Poeta da periferia
Cooperifa
O manifesto
Marco Pezão e a Quinta Maldita
Sarau da Cooperifa
O primeiro sarau
Mano Brown
Marcelo Rubens Paiva
Muita gente que nunca havia lido um livro, nunca tinha assistido
a uma peça de teatro, ou que nunca tinha feito um poema, come-
çou, a partir desse instante, a se interessar por arte e cultura.
É tudo nosso!
Sérgio Vaz
Poeta da periferia
mento
Cap.01
O nascimento da poesia
Cap.01
O nascimento da poesia
Não é possível contar a história da Cooperifa e sobre toda essa
efervescência cultural do atual momento em que vivemos, 2008,
sem contar o que era a periferia antes de tudo isso acontecer
em nossas vidas, e na vida de outras pessoas.
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pelo menos para os adultos. Como todo mundo que um dia foi
criança já sabe, a infância não dói no presente, só no futuro.
Minha irmã foi morar com a minha mãe e eu e meu irmão fica-
mos com o meu pai. Só mais tarde iria reencontrar a minha mãe,
o que mudaria novamente o destino da minha poesia.
Futebol também era outra coisa que se fazia muito. Como os cam-
pos de várzea eram fartos, às vezes num único bairro era possível
ter de três a quatro times. E muitos desses times eram verda-
deiros esquadrões, e arrastavam muitas pessoas para torcer em
seus jogos. O Piraporinha, time da região, era um desses times.
Meu pai saiu da empresa em que ele trabalhou por dez anos e
entrou no ramo do comércio. Quando eu tinha apenas 12 anos ele
comprou o Bar e Empório Guarujá, uma espécie de mercadinho
daqueles tempos. Lugar onde eu iria passar toda a minha adoles-
cência trabalhando, e nem sequer desconfiava que a minha sen-
zala, durante mais de dez anos, iria se transformar um dia num
dos maiores Quilombos Culturais do país: o Sarau da Cooperifa.
Naqueles tempos não tinha tantos bares como temos hoje, então
os poucos que tinham acabavam virando o ponto de encontro de
todas as pessoas da rua e do bairro.
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Quando se falava nisso, era sobre uma rua que ainda não estava
asfaltada, um trator para tirar o barraco de alguém, um abaixo-
assinado para isso ou para aquilo, enfim. A maioria das pessoas
dali eram de direita, quer soubessem ou não.
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Música Popular
Brasileira
Marvin Gaye, Kool and Gang, Earth, Wind and Fire, Brass
Construcion, Roberta Flack, Sister’s is Lad, Commodors, The
Jacksons, entre tantos outros que me acompanhavam no iní-
cio da fase de espinhas, agora davam lugar para Chico, Elis,
Caetano, Gil, Gal, Bethânia, Milton e toda a turma do Clube da
Esquina que acabara de chegar em nossos corações.
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Estava ouvindo a música “Pra não dizer que não falei das flores”,
do Vandré, na voz dela, quando um sargento entra correndo aos
gritos:
Eu, que muitas vezes tinha vergonha de dizer que escrevia poe-
sia, desse momento em diante queria ser poeta, e ainda por
cima libertar o mundo da opressão dos tiranos de plantão.
Primeiros
passos
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O nascimento da poesia 31
Era fim de tarde
Ela vinha apitando
Só não volta a Maria
Que eu vivo sonhando.
Um trago da vida
Tenho vontade de falar de amor
Assim como diriam os poetas
Com suas cabeças geniais
Falar do amor da forma mais completa
Sentimento mais puro que pesa sobre os mortais.
É preciso cantar
No mais alto silêncio
Todas as dores do mundo
Abraçar todas as vozes de todos os tempos
E nesse momento viver um segundo.
Sentir com amigos
A embriaguez eterna
Perambular por entre as primaveras
Tragar o lume das estrelas
Onde não chegam nossas pernas
E num suspiro conformado de cansaço
Cair no chão e beijar nossa terra.
Sentir na lembrança o tempo que passou
No suor de cada lágrima rolada
Juntar os pedaços da vida
Para viver o tempo que sobrou
Trazer de volta a esperança perdida
E num toque de magia
Encharcar o peito de amor
Para derramar o copo e tomar
Um trago da vida.
Por discordar do nosso método de compor em grupo e ter o
agravante de não saber tocar nem cantar, acabei fazendo a
minha primeira letra sem parcerias, e que por coincidência foi
nossa primeira participação em festivais, no Teatro Paulo Eiró,
em Santo Amaro.
O nascimento da poesia 33
Vida
Quero tempo pra pensar
No homem que vai para o espaço
E que não aprendeu com os pássaros
O segredo livre de voar
Não quero olhos para ver
A decadência que trazem consigo
E o que não podem mais deter
O encontro com seu inimigo
Não quero braços para abraçar
O homem que cai, quando outro levanta
Nem tampouco ajudar
O que cai, na sua vingança
Não quero pernas para correr
Do ódio do homem que se aproxima
E nem coragem de prever
O homem a caminho de Hiroshima
Não quero a vida pra viver
Correndo atrás da sorte
E nem com medo de se perder
Perto dos olhos da morte
Não quero a vida pra morrer
Nem o sonho pra sonhar
Eu quero a vida só pra crer
No sonho que pode vingar
Quero braços para abraçar
O homem que quero crer
E a coragem pra ajudar
O homem que quer viver
Depois disso, participamos de outros pequenos festivais. Nosso
grupo musical nunca ganhou nada, nem menção honrosa ou
diploma de participação; por isso, apesar de sempre estarmos
juntos, a nossa carreira tinha chegado ao fim. Para a sorte de
todos que gostam de música popular brasileira.
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Note-se que tudo que a gente queria fazer sobre arte e cultura
ficava depois da ponte do Socorro ou da avenida João Dias (pon-
tes que dão acesso aos bairros mais ao centro).
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O nascimento da poesia 37
A única coisa que eu sei é que foi uma noite memorável. Como
poucas nessa vida. E para poucos, também dessa vida.
Boa parte das minhas poesias já era sobre temas sociais. Leiam
algumas que já completaram mais de vinte anos, pois foram
escritas bem antes de o livro ser publicado:
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No início dos anos 1990 meu pai já tinha vendido o bar para um
outro amigo da família e já não estávamos vivendo na ditadura
militar. Na minha opinião, o Brasil entrou em gozolândia total,
e no sentido literal da palavra.
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Não sei por que me ocorreu a idéia de pedir apoio cultural para o
presidente da empresa, sr. Erédia, e movido por este desejo quase
impossível de se realizar consegui que a Cida, secretária, mar-
casse uma hora com ele, o que não demorou muito a acontecer.
Ele disse que como estava perto do fim do ano, queria que o livro
fosse uma espécie de presente de natal, mas que só aceitaria
fazer se aceitasse editar dois mil livros e doar mil à empresa.
Será que eu aceitei?
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Por aqui todos me conheciam por poeta, mas a não ser por
publicações de meus poemas nos jornais da região, poucos
conheciam o meu trabalho. Como os anos de dureza não foram
poucos, não tinha sobrado livros nem para arquivo.
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O nascimento da poesia 55
Se liga no texto:
Mais de um poeta ou crítico já afirmou que a poesia é o pão dos
elegidos. E isso não chega a ser mentira, porque ela já foi apenas
isso um dia.
Por fim, vale ressaltar que Sérgio Vaz – por ter consciência da
importância da simplicidade – é inimigo declarado das comple-
xidades desnecessárias. Mas não é o caso de interpretar mal seu
trabalho: sua poesia é simples sem ser simplória, é acessível sem
ser leviana.
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Jhay era o mais extrovertido, por isso logo de cara fomos nos
dando bem; já o Preto Jota era mais bicudo, fazia o tipo que não
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Essa força não podia e não devia ser desperdiçada. Então come-
cei a chamar mais e mais representantes culturais para esses
O nascimento da poesia 63
Jhay
Jhay Então se transformou em rei
Nasceu Jaílson Rei da rima
Primeiro filho do seu Roque Rei das ruas
Com dona Margarida. Rei das minas
Preto, pobre E construiu seu castelo
Tinha tudo para ser ladrão, Na brecha do sistema.
Mas teve Sabedoria de vida Quando lhe assaltaram,
E fez do hip- hop a sua razão. Numa dessas vielas
Como todo pobre que se preza Onde os corvos fazem ninhos,
Também viveu livre, Deve ter dito:
Apesar de ter a liberdade “...vem, pode vir que tem
provisória mano que é mano não tira
Decretada. ninguém.”1
Fora do esquema, Aí levaram sua moto
Não podia ter carro Levaram seu sorriso
Não podia ter moto Tiraram sua vida.
Não podia ter nada, Levaram tudo que ele tinha
Com suspeita de ser feliz. E tudo que era nosso.
Negro de atitude O Céu?
Recusou-se a ser escravo “Quem procura acha.”
A usar algemas.
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Nem sei bem o que eu senti na hora; só sei que quase não conse-
gui prestar atenção na estamparia que ocupava uma parte onde
era o escritório, que se localizava bem na entrada da Rodovia.
— Cooperifa! – gritei.
Estava tudo pronto para o grande dia, mas faltava só uma coisa
que eu achei que era muito importante: um manifesto! Escrevi
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Convidamos gente pra caramba, e como não tinha bar por perto,
a Bia e o Claudião se encarregaram de uma lanchonete improvi-
sada com cachorro-quente, refrigerante e cerveja, que abaste-
ceu toda a rapaziada presente.
man
festo
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Entre uma cerveja e outra não sei quem teve a idéia de pedir
que alguém recitasse uma poesia, e depois outro e depois mais
outro, e acabou que foi virando um hábito a gente se reunir às
quintas-feiras para beber, e depois recitar poesia. Não era um
sarau, a gente ia mesmo para beber e discutir cultura, e sem
que ninguém dissesse nada, estava criada assim, sem direitos
e deveres, a quinta maldita.
Não sei bem por que, e como acabou a nossa primavera etílica e
poética, mas eu e o Pezão descobrimos que aquela quinta-feira
maldita estava grávida de um outro movimento, e esse embrião
ia dar à luz a qualquer momento, só que desta vez, num outro
berço e numa quarta-feira.
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Com o bar quase vazio, lembro que não ficamos muito tristes,
mas muito decepcionados com os que não puderam aparecer
e dar a força que precisávamos, já que tantos tinham achado
ótima a nossa idéia do encontro de poetas.
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O Kennya, que hoje faz parte de um grupo de rap e foi um dos pri-
meiros a chegar no Sarau, quando apareceu lá no Garajão quase
não falava nada, a tal ponto de quando Pezão ouviu seu nome
achou que ele era queniano mesmo, lá da África. Aos poucos ele
foi se soltando e liberando da caneta uma poesia linda e cheia
de força. Hoje fala mais que todo mundo ao mesmo tempo.
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Daria um filme.
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Marcelo
Rubens Paiva
Quando falei com ele ao telefone quase nem acreditei que ele
viria, já que ele era um cara bem conhecido e tal, e principal-
mente porque não era ligado à periferia. Lembro que ele chegou
no horário combinado, em sua van toda adaptada, o que deixou
frustradas algumas pessoas que queriam ajudá-lo.
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Essa gente que durante muito tempo foi e é moída dentro dos
ônibus lotados ao ir e voltar do trabalho e cuja única dose de
lazer e cultura eram as pílulas anestésicas da televisão, agora
tinha um dia para comungar a palavra, uma palavra que a gente
não tinha e que agora era a nossa voz.
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Uma poesia dura, seca, sem papas na língua, ora sem crase, ora
sem vírgula, mas ainda assim poesia, com cheiro de pólvora,
com gosto de sangue, com o pus da doença sem remédio, com
o pé descalço, com medo, com coragem, com arregaço, com
melaço da cana, com o cachimbo maldito, mas que caminha
com endereço certo: o coração alheio.
Não quero nem falar dos saraus que estão acontecendo aos
montes, pelas quebradas de São Paulo. Isto me tomaria muito
tempo. Haja vista as dezenas de encontros literários pipocando
nas noites paulistanas. Cada qual do seu jeito, cada qual com
seu tema, cada qual à sua maneira de cortejar as palavras.
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tecas com eles, nas favelas. E o lobo mau pode assoprar que
não derruba. Apesar da pouca roupa que lhe deram, está se
sentindo todo importante com sua nova utilidade.
Dizem por aí que alguns sábios não estão gostando nada de ver a
palavra bonita beijando gente feia. Mas neste país de pele e osso,
quem é o sábio? Quem é o feio? E olha que a gente nem queria o
café da manhã, só um pedaço de pão. Que comam brioches!
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sabia o novo dono não queria saber de Sarau no local por que ia
virar point de rock.
Ficamos ali sentados por muito tempo como viúvos e viúvas con-
solando um ao outro, e avisando as pessoas que chegavam sobre
o falecimento do lugar. Entre lágrimas, lembro que foi um dos dias
mais tristes da minha vida, e quando olhei para aquele bar como
um amigo que acabara de morrer, também pensei que morreria.
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Estava quase tudo certo da Cássia Eller um dia aparecer por lá;
não deu certo porque na produção tinha muita gente...
Enfim, o bar já tinha uma certa tradição, por isso quando o Sarau
chegou por lá já estava meio que esperando a gente chegar.
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O Sarau
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Pra que todos possam falar nesse espaço de duas horas reco-
menda-se que as pessoas leiam poemas de no máximo duas
laudas e evitem usar o microfone como palanque para discurso,
assim a gente ganha tempo e mais pessoas podem falar. As
poesias recitadas não sofrem qualquer tipo de censura prévia,
e cada um fala o quer, seja texto de sua autoria ou de alguém
consagrado, ou não.
— Por favor, pede para esperar mais dez minutos que eu vou
buscar minha esposa para ver isso também. – E saiu descendo
à esquerda do bar para buscar sua convidada. Descendo bar à
esquerda, não onde ele foi, mas mais para frente, fica o cemi-
Literatura, pão e poesia 129
tério do Jardim São Luiz. Pra quem não sabe, esse cemitério
é onde estão enterrados a maioria dos jovens assassinados
na Zona Sul de São Paulo – tem muito chumbo debaixo dessa
terra.
Pensei que ele não viria, por isso só os percebi quando o espetá-
culo já tinha começado. Notei ele acompanhado de sua esposa,
que vestia um vestido simples e quase nenhuma maquiagem,
trazia no rosto um riso triste, talvez por não estar entendendo
nada, ou quem sabe por ter sido arrancada de frente à TV, na
marra. Vai saber.
Estavam ali, quase abraçados, ele com um copo que devia ser
um rabo de galo, ela segurando um copo de refrigerante ten-
tando entender o que estava acontecendo, enquanto passeava
com os olhos pelo local.
Ele ria com discrição, um certo machismo talvez, mas ria, e ria o
tempo todo. Ela não ria, tinha orgasmos nos lábios, devia estar
rindo tudo que ainda não tinha sorrido nesta vida. Ri também,
baixinho, por solidariedade. Não assisti à peça. Assisti a eles.
— E aí, gostaram?
Sim, eu sabia. Não respondi pra ele, mas eu sabia que o que ele
disse era verdade.
Mas antes de citar quem são esses novos autores que hoje
estão por aí divulgando a literatura periférica, vou contar onde
a maioria estreou.
Jornal
Farol Urbano
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Cap. 04
A poesia dos deuses inferiores
Cap.04
A poesia dos deus
A biografia poética
da periferia
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A poedia dos deuses inferiores 137
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A capa era uma foto do Eduardo Toledo que nós tiramos da laje
do Paulão, no Jardim Guarujá, e que pega toda a quebrada da
região, incluindo o Jardim Letícia, Morro do Piolho e Jardim
Neide, quebradas onde eu cresci jogando futebol.
Frágil,
Mas sem implorar.
Feito flor que rasteja,
Mas que a primavera
Não pode humilhar.
Náufrago
Sebastião
Nasceu longe do mar
Distante das ondas.
Seco,
Não tinha nem água
Pra chorar.
Cresceu
Nau sem rumo
Sem sair do lugar.
Sem prumo,
E com areia nos olhos,
Saiu por aí
Sem saber navegar.
Hoje
Mora embaixo da ponte
Num barquinho de papel
Sem remo
Sem saber nadar.
A poedia dos deuses inferiores 143
ras
Cap.05
O Rastilho da pólvora
sti
pólvora
Cap.05
O Rastilho da pólvora
O Sarau caminhava tranqüilo em suas noites de quarta-feira.
A poesia, a essa altura, já tinha arrebatado até os mais resis-
tentes moradores do bairro. Por conta de algumas matérias na
mídia, as pessoas não paravam de chegar para conhecer o nosso
quilombo. Muitas das pessoas que chegavam eram do próprio
bairro, que não acreditavam quando viam na TV que aquilo que
estava acontecendo era perto das suas casas.
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Porra, na hora nem acreditei de tão louca que foi a cena, e ainda
brinquei com ele:
— Mano, não mente pra mim não, mentir pra pobre dá azar. – E ri
por dentro e por fora.
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Para contar com o apoio do Itaú Cultural a gente teria que pro-
mover um seminário sobre periferia, no bar do Zé Batidão. Então
nós fizemos. Fizemos três debates no bar com pessoas que par-
ticipavam ativamente na cultura da periferia.
No verso eu risco...
Um fósforo na gasolina!
Eu sonho a revolta na esquina.|
No meu verso a corregedoria pra Rota assassina.
No verso a melodia, a vitamina.
Ô, menina...
Tão bonita
Que me fez arrepiar,
O teu sopro é ventania
Bota o mundo pra girar
Na febre da tua ginga
Eu vi tudo congelar.
Solidão é uma ciência
Que não é fácil desvendar
Desespero uma vidência
Pra onde a asa vai voar
Paixão é malemolência
É mocinha e é velha
É oração é reverência
Mas que pode até matar
Na magia da cadência
Do azul pro vermelho
É braseiro é paciência
Cama pronta pra deitar
É o pé na consciência
É mentira e é verdá.
3 Augusto Cerqueira Neto começou lendo gibi; letrou-se, para gostar de ler. Na
coleção Vagalume achou sua vertente: leitura. É poeta da Cooperifa.
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6 José Neto é poeta e nasceu em Lins, interior de São Paulo. Começou como letrista
em festivais de música na região e freqüenta há três anos o Sarau da Cooperifa.
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O vaso (Kennya)7
Estive lá presenciando vários fatos.
Sempre ali na mesa da sala, em cima da toalha.
Às vezes cheio de água,
Minha companheira que dava vida às rosas;
Que com o passar dos dias secavam
E junto com a água velha iam embora.
Estive sozinho na madrugada
E cercado de pessoas durante o dia.
Presenciei brigas, intrigas, risos e tristezas;
Dando abrigo às flores recebidas nos teus aniversários.
Estive lá com medo das festas, das ondas sonoras,
Que abalavam meu corpo de porcelana.
Fui tocado por crianças.
Esquecido por ladrões.
Admirado pelas visitas...
7 Kennya é poeta da Cooperifa e faz parte do grupo de rap Denegrir. Kennya chegou
na Cooperifa quando ainda era no Garajão. Era tão tímido que o Pezão achava que
ele não falava porque era nascido no Quênia, país africano.
O Rastilho da pólvora 157
8 Infelizmente, três meses após o lançamento do livro Preto Jota morreu assas-
sinado, também como Jhay, misteriosamente, e em cima de uma moto. Preto Jota
era um dos guerreiros mais combativos da Cooperifa e um grande incentivador de
novos grupos de rap que nasceram ali no Sarau. Sua morte trouxe-nos a certeza que
a luta contra a violência na periferia não podia parar. Além de uma profunda tristeza
que se abateu por muito tempo no nosso movimento.
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10 Valmir Vieira é poeta criado na Cooperifa, nasceu ali, junto com o Sarau no bar
do Zé Batidão. Guerreiro inconteste do movimento.
11 Márcio Batista é professor de Educação Física e poeta e um dos coordenadores
da Cooperifa e está prestes a publicar seu primeiro livro.
160 Cooperifa
Centro
Centro Cultural Cooperifa
Cultural
Cap.06
Centro Cultural Cooperifa
O Sarau da Cooperifa sempre teve como filosofia o incentivo à
leitura e a criação poética, e sempre foi um projeto de cidadania
através da literatura. Quer dizer, essa idéia foi se formando ao
longo dos dias, através de resultados que foram aparecendo.
Por ironia, hoje muitos deles estão lendo seus próprios livros.
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Centro Cultural Cooperifa 173
Perto
Tudo começou na quarta-feira
Outro fato que ficou marcado para mim foi a primeira conversa de
trabalho a respeito da produção do CD. Eu disse ao Sérgio Vaz que
poderíamos colocar algumas intervenções sonoras, pensadas
poema por poema: uma sanfona em um poema, um clarinete em
outro, um pandeiro aqui ou um sampler acolá...
É preciso dizer que, depois, aprendi a ler o olhar do Sérgio Vaz. Ele
ouve as pessoas com a maior atenção, mas, depois de um tempo
de convivência, você percebe que ele só não corta logo a conversa
por puro respeito, paciência ou comiseração mesmo: “Bem legal,
Natale! Mas olha só: o pessoal prefere só os poemas mesmo, sem
maquiagem, sem frescuras. A nossa paixão é a palavra, purinha,
purinha. Vamos deixar esse negócio de música pra lá...”.
Edson Natale
Gerente do Núcleo de Música do Itaú Cultural
Márcio Batista:
Trabalhar uma poesia crítica voltada para a melhoria cultural da
comunidade é uma das metas da Cooperifa; mas há uma situa-
ção real a se enfrentar, que é a falta de dinheiro na comunidade.
Nesse sentido, o Itaú Cultural nos ajudou muito e somos muito
gratos a ele.
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O Bonde da Cooperifa 185
186 Cooperifa
1º Prêmio Cooperifa 187
Eventos Jornalismo
Ponte Preta – festa do dia das Becos e Vielas
crianças Revista Caros amigos
PANELAFRO – Casa de Cultura Gazeta de Taboão
M’Boi Mirim Jornal Hoje – Taboão
Leia Livro Revista Rap Brasil
Casa das Rosas Programa “Provocações” – TV
Cultura
Teatro “SP Comunidade” –SPTV
Grupo Cavalo de Pau Estação Hip Hop
Manicômicos Site Real Hip Hop
Ação e Arte Site Bocada Forte
Zezé Mota – atriz
Fotografia
Música Eduardo Toledo
Carlos Silva
Versão Popular Educação
Záfrica Brasil Escola Mauro Faccio Zacaria
Grupo 2hO teve a coragem de levar os alunos
PeriAfricania no Sarau
PH Boné
Sabedoria de Vida Comunicação
Diney do Gueto Espaço Rap
Banda Varal
Fábio
Sales
Wesley Nóog
Thaíde
Mano Brown – Racionais MCs
Leandro Lehart – Art Popular
Grupo Papo de Família
Gog
Afro-X
Dexter
A Família
190 Cooperifa
1 www.colecionadordepedras.blogspot.com
1º Prêmio Cooperifa 191
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O Bonde da Cooperifa 195
196
O Bonde da Cooperifa 197
Cap.09
Colecionador de pedras
Livro
Colecionador
de pedras
200
Colecionador de pedras 201
Mais tarde este mesmo livro iria abrir a coleção Literatura peri-
férica, da Global Editora.
Café Literário em
Taboão da Serra
202
Colecionador de pedras 203
Sarau
da Coopeirfa
nas escolas
O Café Literário era realizado somente uma vez por mês, por isso
eu achava que a poesia precisava de mais tempo para sobrevi-
ver, mas, por falta de oxigênio, o Café foi acabando aos poucos.
Porém, uma coisa tinha ficado na minha cabeça: a poesia tinha
que freqüentar a sala de aula novamente.
A luta pela divulgação da poesia não podia parar, por isso visita-
mos mais ou menos umas vinte escolas, e com média de cem a
204
Colecionador de pedras 205
150 alunos por Sarau, e em cada lugar que a gente chegava era
possível perceber a alegria e o orgulho que a Cooperifa levava
às pessoas, e não só pela palavra, mas eles sentiam força na
nossa postura de levar cidadania através da literatura.
208
Colecionador de pedras 209
Fiz até um texto sobre esse dia e publiquei no meu blog, e queria
dividir com vocês:
210 Cooperifa
Colecionador de pedras 211
Mas uma breve pesquisa pode revelar que a história não foi bem
assim, e que pode ser apenas “mais um besteirol americano” (vale
pesquisar).
Ajoelhamos.
216
Colecionador de pedras 217
220
Poesia no ar 221
222 Cooperifa
Poesia no ar 223
Se você não esteve lá, perdeu, porque não vai passar em nenhum
órgão da imprensa, que tem muito mais apreço à bala perdida do
que poesia. Ora, então por que será que eles tanto pedem paz?
Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.
Coleção
Literatura Periférica
228
Poesia no ar 229
230
Poesia no ar 231
Mod
Periferia
233
Antro
Cap.11
fagia
Antropofagia Periférica
Periférica
Semana de Arte Moderna da Periferia
derna
a Cap.11
Antropofagia Periférica
Semana de Arte Moderna da Periferia
Como já tinha dito anteriormente, a Cooperifa foi criada e pen-
sada na Semana de Arte Moderna de 1922, e há muito nós da
Cooperifa vínhamos discutindo a possibilidade de realizar uma
Semana de Artes para nós, inspirada na Semana de Artes da
elite paulistana. Quer provocação maior?
234
Antropofagia periférica 235
Semana de arte moderna da periferia
Mas o que alguns não sabiam era que nós da Cooperifa que-
ríamos justamente era isso mesmo, comer esta arte enlatada
produzida pelo mercado que nos enfiam goela abaixo, e vomitar
uma nova versão dela, só que desta vez na versão da periferia.
Sem exotismos, mas carregada de engajamento. Uma arte com
endereço e com sua bússola apontada para o subúrbio, 85 anos
depois, como previu o poeta. Conforme se viu, as massas real-
mente estavam afim de comer o biscoito, fino ou não.
Falando assim até parece que foi fácil decidir qual seria o logo-
tipo do nosso evento. Esse desenho demorou quase um mês para
ser aceito, isso porque o Jair, que estava incumbido do desenho,
a certa altura dispensou as opiniões e trouxe o cartaz já pronto,
depois de inúmeras tentativas não aprovadas. A Semana aconte-
ceu em novembro e as reuniões começaram em agosto.
236 Cooperifa
Antropofagia periférica 237
Semana de arte moderna da periferia
238 Cooperifa
gente que se reúne até para decidir quando vai ser a reunião. Na
Cooperifa a gente põe fogo, depois vê como apaga. Mas...
Sabe por que afirmo isso? Porque a Semana não nos foi imposta
pelo governo. Porque ela obedecia apenas a uma linguagem,
a nossa. Porque esse macro-evento aconteceu durante uma
semana inteira em vários bairros da periferia, e as TVs, a não ser
que sejam balas perdidas, não têm o menor interesse no que
acontece de interessante na periferia.
A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas
há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que
surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o
passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
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Semana de arte moderna da periferia
Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que
transmite ilusão.
Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.
É TUDO NOSSO!
que nunca havia tocado num livro ou sequer ouvido uma poesia foi
seduzida ali, na porta do bar, pela literatura. Não é de embriagar?
Hoje em dia na periferia de São Paulo, por onde quer que você
olhe tem alguma coisa acontecendo, e para todos os gostos:
Panelafro na Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim, Cine Becos e
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Semana de arte moderna da periferia
Para quem não veio, ainda há chance de saber como foi, quando
sair nas enciclopédias no futuro, ou nos livros escolares. Quem
foi uma das centenas ou milhares de pessoas de pessoas que
testemunharam esse maravilhoso encontro da arte com a peri-
feria diz que parecia o Louvre da França, ou qualquer galeria de
Milão na Itália, mesmo sem nunca ter pisado o pé no exterior.
Terça-feira – Dança
O Mestre Arákúrin comandou a noite da dança com os grupos
Espíritos de Zumbi, Flor de lis, Diversidança e Cia. Sacrossanta.
E tudo feito por nós, para nós; quem é que é o fraco agora,
hein?
Daí por diante não tenho palavras para expressar o que real-
mente aconteceu, tamanha beleza e profundidade. Só para se
ter uma idéia, o Sales leu sua poesia “Evolucionário” em espa-
nhol. O Alan da Rosa leu sua poesia tocando berimbau, o Márcio
Batista fez uma leitura coletiva dos seus poemas, Mavot e Lu
fizeram uma apresentação cinematográfica, eu lancei meu
clipe poético, e por aí a noite seguiu distribuindo sonhos de uma
periferia melhor.
Quinta-feira – Cinema
O cinema foi o grande tema da Semana de Arte Moderna da
Periferia, e para variar a rapaziada preparou um coleção de filmes
periféricos de arrasar. Ao velho e bom estilo Glauber Rocha, “uma
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O cinema talvez seja a arte mais cara e distante para nós. Por
isso que é muito difícil ver filmes que retratem o povo brasileiro
sem os estereótipos tão presentes nas telonas. Mas também
é uma arte que cresce assustadoramente. Mais e mais jovens
estão empunhando câmeras nas mãos e contando histórias da
nossa gente, como elas realmente são.
Sexta-feira – Teatro
Na sexta-feira foi o dia do teatro na Semana de Arte Moderna
da Periferia, foi simplesmente maravilhoso. O Centro Cultural
Monte Azul abrigou centenas de pessoas durante o dia inteiro
para presenciar a cena teatral da periferia, e quem foi não se
arrependeu, foi do caralho! Foi lindo! Foi evolução total!
Cada peça mais louca que a outra, mais interessante, mais pro-
funda. Nossas raízes representadas da forma fecunda possí-
vel. Estou com inveja da gente também. A Semana foi uma das
maiores experiências das nossas vidas e o teatro também faz
parte do nosso dia a dia. E que venham novos palcos!
“Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor...”.
Tinha tudo para dar errado, mas deu certo, não posso fazer nada.
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Semana de arte moderna da periferia
Depoi
men-
tos
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Morada da poesia
A poesia é o gênero literário que mais seduz corações e men-
tes nos becos e vielas. Não por acaso, o sarau ressurgiu nos
últimos anos e tomou conta da periferia paulistana. Nesses
encontros, os freqüentadores recitam poemas consagrados
da literatura, mas o que mais se compartilha são versos de
autoria daqueles que lá estão. O Sarau é espaço de formação
de leitores e autores. Assim é o Sarau da Cooperifa, o mais
famoso da periferia paulistana e, para mim, o melhor de toda
a metrópole.
Quilo
mbo
Quando a Heloisa pediu que eu contasse um pouco da minha
história e da Cooperifa, no começo eu não estava muito afim,
por conta da minha memória um tanto quanto irresponsável e
mentirosa. Mas também não podia me furtar o direito de divi-
dir com você essa história de luta em prol da cidadania através
da literatura.
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É tudo nosso!
Com um sorriso no rosto e os punhos cerrados.
Imagens:
índice e créditos
Fora isso, não tem mais nada que valha a pena saber.
Este livro foi composto em Akkurat.
O papel utilizado para a capa foi o cartão Suprema Alta-Alvura 250g/m2.
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m2