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Cooperifa

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Cooperifa
Antropofagia periférica
Sérgio Vaz

Patrocínio
Copyright © 2008 Sérgio Vaz
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS
curadoria
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
consultoria
ECIO SALLES
projeto gráfico
CUBÍCULO
COOPERIFA – ANTROPOFAGIA PERIFÉRICA
produção editorial
ROBSON CÂMARA
revisão
JULIANA WERNECK
revisão tipográfica
ROBSON CÂMARA

V497c
Vaz, Sérgio
Cooperifa : antropofagia periférica / Sérgio Vaz.
-Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.
(Tramas urbanas; 8)
ISBN 978-85-7820-006-0
1.Vaz, Sérgio. 2.Centro Cultural Cooperifa.
3.Poesia popular – História e crítica.
4.Cultura popular - Brasil.
5.Literatura popular – História e crítica.
I.Título. II.Série.

08-2822. CDD: 928.699


CDU: 929:821.134.3(81)
09.07.08 10.07.08 007568

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS


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Telefax: 21 2239 7399
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www.aeroplanoeditora.com.br
Nas tantas periferias brasileiras – periferia urbana, peri-
feria social – se reforçam cada vez mais movimentos
culturais de todos os tipos. Os mais visíveis talvez sejam
os de alguns segmentos específicos: grupos musicais,
grupos cênicos, grupos dedicados às artes visuais. Mas
de idêntica importância, embora com menos visibilidade,
é a produção intelectual que cuida, além de questões
artísticas, de temas históricos, sociais ou políticos.
A coleção Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes,
um consistente e instigante apanhado dessa produção
amplificada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende
pontes, para um diálogo com artistas e intelectuais que
não são originários de favelas ou regiões periféricas dos
grandes centros urbanos. Seus organizadores se propõem
a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades
e que “pela primeira vez na nossa história, interpelam, a
partir de um ponto de vista local, alguns consensos ques-
tionáveis das elites intelectuais”.
A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patroci-
nadora das artes e da cultura em nosso país, apóia essa
coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsa-
bilidade social contribuir para a inclusão cultural e o for-
talecimento da cidadania que esse debate pode propiciar.
Desde a nossa criação, há pouco mais de meio século,
cumprimos rigorosamente nossa missão primordial, que
é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar
para diminuir as distâncias sociais é um esforço impres-
cindível a qualquer país que se pretenda desenvolvido.
Para Para Augusto, Brói, Rose Dorea (Musa da
Cooperifa), Márcio Batista, Marco Pezão,
Cocão, Jairo (Periafricania), Lu Souza,
Sales (O evolucionário), Mavotsirc,
e o guerreiro Preto Jota (in memorian).

Agradecimentos especiais
Marco Pezão, João Wainer (fotografia), Edu Toledo
(fotografias), Eleilson (Ação Educativa), DGT Filmes, Edson
Natale, Eduardo Saron, Claudinei Ferreira, Marisa Zambrani,
Ademir Valente, Ali Sati e Eliane Brum.
Sumário

11 Prefácio
12 Apresentação: Poesia das ruas

14 Cap.01 O nascimento da poesia


O bar
Ruas perigosas
Música Popular Brasileira
Primeiros passos
Da ponte pra lá
Da ponte pra cá
Os anjos de A margem do vento e Pensamentos vadios
Mendigo cultural
Taboão da Serra
Pensamentos vadios, 2ª edição
Cartões postais
Hip-hop e sabedoria de vida

66 Cap.02 Cooperifa
Poeta da periferia
Cooperifa
O manifesto
Marco Pezão e a Quinta Maldita
Sarau da Cooperifa
O primeiro sarau
Mano Brown
Marcelo Rubens Paiva

112 Cap.03 Literatura, pão e poesia


Literatura, pão e poesia
O fim do Garajão
Bar do Zé Batidão (de volta pro começo)
O Sarau
Jornal Farol Urbano

134 Cap.04 A poesia dos deuses inferiores


A biografia poética da periferia
144 Cap.05 O Rastilho da pólvora

164 Cap.06 Centro Cultural Cooperifa


CD de Poesia da Cooperifa

182 Cap.07 1º Prêmio Cooperifa

192 Cap.08 O bonde da Cooperifa


Sarau da Cooperifa em Suzano
Sarau da Cooperifa na Casa das Rosas

198 Cap.09 Colecionador de pedras


Livro Colecionador de pedras
Café Literário em Taboão da Serra
Sarau da Cooperifa nas escolas
Ajoelhaço
Sarau rap- Poesia das ruas

218 Cap.10 Poesia no ar


Coleção Literatura Periférica
As guerreiras da Cooperifa

232 Cap.11 Antropofagia periférica


Semana de arte moderna da periferia
A semana

274 Cap.12 Coopeirfa – Quilombo da poesia

278 Imagens: índice e créditos


282 Sobre o autor
A Poesia
É o esconderijo
Do açúcar
E da pólvora.
Um doce
Uma bomba
Depende
De quem devora.
Prefácio

Ao avistar os arredores íngrimes do Piraporinha e a grande


subida sinuosa que me aguardava, não pude deixar de lembrar
da Serra da Barriga, e veio o pensamento...

Ambas palco de grandes de acontecimentos.

Após subir a serra e chegar ao meu destino, percebi outras feli-


zes coincidências:

A Rose, musa do recital, com sua força e verdade me recordou


Dandara, negra guerreira, que jamais se rendeu ao comodismo.

Foi olhar para o lado, percorrer com os olhos atentos e observar


o Márcio Batista, para me deslumbrar com sua paciência e cor-
dialidade, marcas registradas de Ganga-Zumba.

Dos versos que ecoavam ao microfone, após serem escritos em sua


caneta – uma ponta de lança africana – contemplei Sérgio Vaz.

Sua estratégia, firmeza, amor e principalmente o sorriso, me


transmitiram confiança e certeza na história.

Não teve jeito, veio à mente o meu líder maior!

E todos que me cercavam, e eram centenas, estavam em casa:


na Cooperifa.

Maior Resistência Cultural Brasileira.

Eu? Bem acomodado, com os parceiros, respirava abundante-


mente o oxigênio de que tanto preciso: O Quilombo continua vivo!
GOG
Apresentação: Poesia das ruas

A literatura é a dama triste que atravessa a rua sem olhar para


os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas
calçadas frias da senzala moderna chamada periferia. Freqüenta
os casarões, bibliotecas inacessíveis a olho nu, e prateleiras de
livrarias que crianças não alcançam com os pés descalços.

Dentro do livro ou sob o cárcere do privilégio, ela se deita com


Victor Hugo, mas não com os miseráveis. Beija a boca de Dante,
mas não desce até o inferno. Faz sexo com Cervantes e ri da
cara do Quixote. É triste, mas a rosa do povo não floresce no
jardim plantado por Drummond.

Quanto a nós, capitães de Areia e amados por Jorge, não restou


outra alternativa a não ser criar o nosso próprio espaço para a
morada da poesia. Assim nasceu o Sarau da Cooperifa. Nasceu
da mesma emergência de Mário Quintana e antes que todos
fossem embora pra Pasárgada, transformamos o boteco do Zé
Batidão num grande centro cultural.

Agora, todas as quartas-feiras, guerreiros e guerreiras de todos


os lados e de todas as quebradas vêm comungar o pão da sabe-
doria que é repartido em partes iguais, entre velhos e novos
poetas sob a bênção da comunidade.
Professores, metalúrgicos, donas de casa, taxistas, vigilantes,
bancários, desempregados, aposentados, mecânicos, estudan-
tes, jornalistas, advogados, entre outros, exercem a sua cidada-
nia através da poesia.

Muita gente que nunca havia lido um livro, nunca tinha assistido
a uma peça de teatro, ou que nunca tinha feito um poema, come-
çou, a partir desse instante, a se interessar por arte e cultura.

O Sarau da Cooperifa é nosso quilombo cultural. A bússola que


guia a nossa nau pela selva escura da mediocridade. Somos o
grito de um povo que se recusa a andar de cabeça baixa e de
joelhos. Somos o poema sujo de Ferreira Gullar. Somos o rasti-
lho da pólvora. Somos um punhado de ossos, de Ivan Junqueira,
tecendo a manhã de João Cabral de Melo Neto.

Neste instante, nós somos a poesia.

É tudo nosso!

Sérgio Vaz
Poeta da periferia
mento
Cap.01
O nascimento da poesia

Cap.01
O nascimento da poesia
Não é possível contar a história da Cooperifa e sobre toda essa
efervescência cultural do atual momento em que vivemos, 2008,
sem contar o que era a periferia antes de tudo isso acontecer
em nossas vidas, e na vida de outras pessoas.

Cresci no bairro de Piraporinha, região de Santo Amaro, Zona


Sul, a uns 30 km do centro de São Paulo, e como todo mole-
que que vivia no bairro, também queria ser jogador de futebol.
Muitos, apesar dos quarenta, ainda sonham com isso.

A nossa infância era só jogar futebol nos campos de terra, e como


quase não tínhamos brinquedos, a vida se resumia também às
brincadeiras de rua: bolinha de gude, pião, pipa, esconde-es-
conde, pega-pega, carrinho de rolimã, caçar passarinho, ban-
dido e mocinho, jogo de futebol de botão, bater figurinha etc.

E apesar de todas as dificuldades da maioria das pessoas, e


não sei se por desconhecimento da dor, vivíamos como prínci-
pes e princesas, como num conto de fadas. Nos anos 1970, o
Brasil afundado na mais bruta ditadura, e nós ali, nas ruas sem
asfalto, vivendo como Alice, no país das maravilhas.

Naquela época os bairros da região em que a gente morava


– Jardim Guarujá, Chácara Santana, Parque Santo Antônio,
Jardim Letícia, Jardim Neide, Parque Europa, Figueira Grande,
Lídia, Vaz de Lima, entre outros – eram bairros novos, por isso
não ofereciam a menor infra-estrutura para se viver dignamente,

16
O nascimento da poesia 17

pelo menos para os adultos. Como todo mundo que um dia foi
criança já sabe, a infância não dói no presente, só no futuro.

Sou de uma época em que quando se fazia a 4ª série primá-


ria, tínhamos que ir para outros bairros, mais ao centro de Santo
Amaro, fazer o ginasial. O colegial só chegou quase nos anos 1980.

Os nossos pais tinham muita coisa em comum: a maioria deles


tinha vindo de outros estados tentar a sorte por aqui. Muitos
construíram essa metrópole. Os meus pais, por exemplo, vieram
de Minas Gerais. Eles se separaram quando eu e meus irmãos
éramos muito pequeninos.

Minha irmã foi morar com a minha mãe e eu e meu irmão fica-
mos com o meu pai. Só mais tarde iria reencontrar a minha mãe,
o que mudaria novamente o destino da minha poesia.

Nesse tempo a TV era a nossa única referência cultural. E pela


tela em preto e branco é que sabíamos que não estávamos
sozinhos neste planeta chamado periferia. Assistíamos de tudo
um pouco, mas principalmente desenhos como Speed Racer,
Savamu, Fantomas, Super-dínamo, A Princesa e o cavaleiro
etc. Não faltavam os super-heróis japoneses: Ultra-man, Ultra-
seven, Ultra-Q, Robô gigante, e claro, os enlatados americanos,
Swat, Daniel Boone, James West, A feiticeira, Jeannie é um
gênio, Bonanza, e assim seguia o lixo tóxico cultural destruindo
nossas mentes. Muitos estão doentes até hoje.

Outra rara diversão era quando o circo chegava na Piraporinha.


O bairro ficava agitado por conta dos artistas que se apresen-
tavam, a maioria deles vinham de programas de televisão como
o dos Barros de Alencar, Bolinha, Raul Gil, Chacrinha, entre
outros. Para se ter uma idéia do que representava isso, uma vez
o Sidney Magal, no auge, veio ao circo cantar e rebolar; a mulhe-
rada quase pôs a lona abaixo.

A molecada só tinha duas maneiras de ir ao circo ver o palhaço.


Uma era se a gente furasse a lona; a outra, a minha preferida,
era vender chocolate para os poucos privilegiados que podiam
18 Cooperifa
O nascimento da poesia 19

entrar pela porta da frente. De minha parte, achava divertido


trabalhar sob a risada alheia.

Quase no fim dessa época ganhei do meu pai meu primeiro livro:


Ali Babá e os quarenta ladrões. Sem que eu percebesse, a litera-
tura, nesse dia, iria mudar minha vida para sempre.

A adolescência chegou para nós no ritmo do velho e bom soul/


funk do papa James Brown, e nas melodias românticas de Betty
Wrigth e Marvin Gaye.

Tudo naquele tempo se resumia aos bailes. Era baile na escola,


baile na Sedinha (quase todo bairro tinha uma sedinha de asso-
ciação amigos de bairro), baile nos fundos de quintais, e nos
salões de festas como o Palácio, Yoga (minha domingueira pre-
ferida), Palmeiras, Astro, Cartola, entre tantos outros.

O tempo seguia dançando ao som de Jimmy Bo Horne.

Hoje em dia quase todo jovem de periferia quer ter ou tem um


grupo de pagode ou de rap, mas naquele tempo a maioria queria
ter uma equipe de baile.

Futebol também era outra coisa que se fazia muito. Como os cam-
pos de várzea eram fartos, às vezes num único bairro era possível
ter de três a quatro times. E muitos desses times eram verda-
deiros esquadrões, e arrastavam muitas pessoas para torcer em
seus jogos. O Piraporinha, time da região, era um desses times.

Apesar de gostar de futebol de campo, a minha praia era fute-


bol de salão, que era pouco difundido naquela época. O Guarujá
F.S., em que eu joguei muito tempo, também era muito respei-
tado na Zona Sul.

Naquele tempo só uma coisa era certa para nós: as brincadeiras


tinham ficado para trás, já não vivíamos um conto de fadas, e o
algodão já não era tão doce.
20 Cooperifa
O nascimento da poesia 21
O bar

Meu pai saiu da empresa em que ele trabalhou por dez anos e
entrou no ramo do comércio. Quando eu tinha apenas 12 anos ele
comprou o Bar e Empório Guarujá, uma espécie de mercadinho
daqueles tempos. Lugar onde eu iria passar toda a minha adoles-
cência trabalhando, e nem sequer desconfiava que a minha sen-
zala, durante mais de dez anos, iria se transformar um dia num
dos maiores Quilombos Culturais do país: o Sarau da Cooperifa.

Sim, o velho Empório se transformou hoje no que é o bar do


Zé Batidão.

Naqueles tempos não tinha tantos bares como temos hoje, então
os poucos que tinham acabavam virando o ponto de encontro de
todas as pessoas da rua e do bairro.

Durante o dia o Empório era freqüentado pelas mulheres, espo-


sas e crianças. Nesse horário só se vendia doces e refrigeran-
tes, arroz e feijão, farinha e miudezas em geral.

À noite era somente para os homens. E eles chegavam cada qual


em seu horário, vindos do trabalho, e como todos freqüentavam
o bar todos os dias, era comum recebê-los com a sua dose de
aperitivo predileto assim que punham os pés no recinto. Todo
bar daquela época era sede de algum time de várzea, e quase
todos eram decorados com troféus.

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O nascimento da poesia 23
24 Cooperifa

O Clube do bolinha vivia lotado; como homem naquele tempo


não assistia àa novela, era uma boa desculpa para não chegar
cedo em casa.

Lá se falava de tudo e de todos, mas o assunto predileto sem-


pre foi o futebol. Mas também se discutia muito sobre as notí-
cias do jornal Notícias populares – a história do nenê-diabo era
acompanhada como novela – ou sobre o caso contado por Gil
Gomes pela manhã, e coisas do dia-a-dia, mas quase não se
ouvia falar de política de uma forma mais ampla.

Quando se falava nisso, era sobre uma rua que ainda não estava
asfaltada, um trator para tirar o barraco de alguém, um abaixo-
assinado para isso ou para aquilo, enfim. A maioria das pessoas
dali eram de direita, quer soubessem ou não.

A periferia, por suas necessidades básicas e ainda em forma-


ção geográfica, sempre foi reduto de velhas raposas políticas.
Os poucos que eram de esquerda falavam em códigos; então,
sempre passaram batidos.

O boteco é onde a gente aprende a ser psicólogo. Foi lá que eu


aprendi que todas as pessoas são iguais, mesmo bebendo bebi-
das diferentes.

Atrás do balcão eu via a vida passar sobre mim. Minha vida se


resumia a trabalhar no bar e ir à escola, e eu não gostava de
nenhum dos dois.

Com pouco tempo para a rua, passei a freqüentar um outro


tipo de lugar: os livros. Lia de tudo um pouco, principalmente
livros de adultos, coisas que mais tarde viria a entender, relendo
novamente. Gostava também de jornais e revistas.

Li Eram os deuses astronautas?, Pantaleão e as visitadoras,


O cortiço, A mãe, Os Miseráveis, A Insustentável Leveza do Ser,
Capitães de Areia, Drummond, Ferreira Gullar, Pablo Neruda,
Agatha Christie, Dom Casmurro etc. Devorava e era devorado por
tudo o que caía em minhas mãos.
Ruas
perigosas

Um outro tipo de personagem real que também era muito


comum nos anos 1980 eram os temidos justiceiros, também
conhecidos como “pés-de-pato”. Eram a prova verdadeira que
as ruas tinham perdido a delicadeza dos contos de fadas.

A simples menção do nome de alguns deles era o suficiente


para desfazer as rodinhas em volta das fogueiras, que eram
muito comuns nesse tempo. O nome do cabo Bruno, um dos
assassinos mais temidos da região, era sempre citado em luga-
res onde havia algum tipo de aglomeração. Coisas do tipo: “Tem
um opala preto [carro preferido dos assassinos], circulando na
quebrada”. Pronto, era a senha para que todos fossem embora
de onde estavam.

Durante um bom tempo as chacinas eram as únicas notícias


que saíam sobre a periferia nos jornais. Um tempo sem poesia
alguma, nem sei se valia a pena lembrar, mas...

Quando terminei o ginásio fui estudar em Santo Amaro, no


Colégio Radial, Processamento de dados. Foi duro admitir que
existiam outros lugares além das ruas do Jardim Guarujá e
Chácara Santana.

A maioria dos jovens da periferia não pensavam em cursar uma


universidade e sim cursos profissionalizantes: Ferramentaria,
Tornearia, Calderaria etc. O SENAI, por exemplo, era tão dispu-
tado, senão mais, do que a USP.

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Música Popular
Brasileira

Desde os tempos de baile, em que ensaiávamos os passos de


dança em casa para não fazer feio no salão, o Márcio Batista
sempre fora meu amigo, e não sei bem se por influência de
alguém, ou se pelo pouco tempo de lazer que eu tinha, ou talvez
pelas letras de protesto que para mim ainda não faziam tanto
sentido, espiritualmente falando, começamos a nos interessar,
timidamente, por Música Popular Brasileira.

Marvin Gaye, Kool and Gang, Earth, Wind and Fire, Brass
Construcion, Roberta Flack, Sister’s is Lad, Commodors, The
Jacksons, entre tantos outros que me acompanhavam no iní-
cio da fase de espinhas, agora davam lugar para Chico, Elis,
Caetano, Gil, Gal, Bethânia, Milton e toda a turma do Clube da
Esquina que acabara de chegar em nossos corações.

Se já não bastasse ser estranho gostar de literatura naquela


época, aos 15 ou 16 anos, para piorar comecei a gostar de um
tipo de música que quase não se conhecia na periferia.
... há soldados armados, amados ou não, quase todos perdidos
de armas na mão.
Vandré

Aos 17 anos, em 1982, como todo bom garoto, alistei-me, obri-


gatoriamente, no Exército Brasileiro. O Brasil passava por uma
crise monstruosa, e as fábricas viviam abarrotadas de gente à
procura de emprego. Nesse ano, como forma de amenizar um

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O nascimento da poesia 27
28 Cooperifa

pouco essa crise, o governo resolveu convocar cem mil jovens


para servir as Forças Armadas. Eu, infelizmente, fui um deles.

Prestei durante um ano o serviço militar, em 1983, como sol-


dado no C.P.O.R. (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva)
no bairro de Santana, Zona Norte de São Paulo. Os soldados
eram, na maioria, jovens da periferia de São Paulo, enquanto a
maioria dos alunos era de classe média alta e saíam de lá como
aspirantes a tenentes.

De acordo com o regime militar, todo mundo que servia o Exército


aprendia a virar homem, além de aprender a dizer sim, senhor e
não, senhor! Apesar de conviver com mais de cem praças, foi
uma época de muita solidão. Como todo tímido que se preza,
demorei muito para fazer novos amigos.

No quartel eu trabalhei no rancho, era cozinheiro, pé-de-banha,


como diziam na gíria dos praças. Foi trabalhando na cozinha,
num final de semana em que não ficava muita gente, que eu
descobri que de fato vivíamos em uma ditadura militar. Nunca
tinha ouvido falar sobre isso na rua, na escola. Os jornais e
revistas falavam vagamente.

Nesse dia estava ouvindo uma fita da cantora Simone, gravada


se não me engano em 1979, ao vivo num desses shows do Dia do
Trabalho em algum estádio de futebol de São Paulo. Acho que o
show se chamava Canta Brasil.

Estava ouvindo a música “Pra não dizer que não falei das flores”,
do Vandré, na voz dela, quando um sargento entra correndo aos
gritos:

— Soldado Vaz, que porra é essa que você está ouvindo?

Pensei que o sargento ia voar na minha jugular.

— Ué sargento!? É a cantora Simone.

Falei na mais pura inocência.


O nascimento da poesia 29

— Seu mocorongo, não pode ouvir essa porra dentro do quartel.


Está querendo me foder?

E já foi desligando o rádio, como quem estivesse desativando


uma bomba.

Fiquei ali meio que sem entender o porquê da reação explosiva


do milico superior. Para falar a verdade eu ouvia a música e não
entendia o que queria dizer. Ele continuou irritado.

— Isso é música de subversivo, de terrorista. Quer ser expulso, é?

Falou mais um monte de coisas e foi explicando a gravidade da


situação. Que os artistas eram os porta-vozes do comunismo,
traidores da pátria, maconheiros, ateus desgraçados e que
eram os verdadeiros inimigos da nação. E que aquela música
representava tudo que o Exército abominava.

Disse mais um monte de coisas, mas acho que percebendo a


minha cara de surpresa e um tanto quanto inocente, sem mais
nem menos devolveu-me a fita, e pediu que não a ouvisse mais
no quartel.

Depois dessa dura, comecei a ouvir todas as fitas que eu tinha


de MPB novamente, e só então, depois de prestar muita atenção
nas letras, é que eu pude entender o que realmente tinha me feito
abandonar temporariamente a black music: as letras de protesto.

Foi como se um raio tivesse caído em minha cabeça, e aberto


um buraco do tamanho do mundo. Com a cabeça cheia de fen-
das, aproveitei e reli alguns livros de poesia, e o protesto tam-
bém estava lá, só eu não havia visto.

Eu, que vivia escrevendo sobre tristeza e solidão, e coisas sem


sentido que fazem parte da alma, me apaixonei pelas metáfo-
ras, assim como Mário Ruoppolo (Massimo Troisi) no filme que
conta uma pequena passagem da vida do poeta Pablo Neruda.

Eu, que muitas vezes tinha vergonha de dizer que escrevia poe-
sia, desse momento em diante queria ser poeta, e ainda por
cima libertar o mundo da opressão dos tiranos de plantão.
Primeiros
passos

Quando saí do exército, em 1984, o Brasil começava a sua aber-


tura política, a arte vinha com tudo e chegava de todos os lados;
não na periferia, mas nas regiões mais centrais na cidade.

Em Piraporinha, timidamente a Casa Popular de Cultura M’Boi


Mirim1 começava as suas atividades nas mãos de Izilda e mestre
Jonas. Formávamos um time musical, eu, Ceará, Márcio, Cleone,
José Neto, e mais alguns que gravitavam esporadicamente
na nossa órbita, que adoravam MPB e discutir sobre política.
Quase todo dia a gente ia na casa do Cléo tocar violão e tomar
vinho natal, quando se tinha algum dinheiro.

Na região de Santo Amaro algumas escolas promoviam festivais


de música. Aliás, os festivais eram a grande novidade e pipoca-
vam na região e nas cidades do interior. Fora da periferia, a MPB
era um grande sucesso em São Paulo.

De tanto gostar de música a gente achou que também sabia


fazer. No nosso grupo só o Ceará sabia tocar; os demais, assim
como eu, não tocavam nem campainha. Sem nos darmos conta

1 A Casa popular de Cultura do M’Boi Mirim & Guarapiranga foi fundada em 10 de


março de 1984 por uma rede de entidades com o objetivo de ser um espaço de
discussão, troca de experiência e de participação popular. Transformou-se no 1º
Pólo Cultural da Região de Piraporinha, mantida e administrada pela comunidade
através de uma diretoria eleita (Associação). Hoje em dia, a Casa é sede de um dos
maiores eventos culturais do país: o Panelafro.

30
O nascimento da poesia 31

da nossa pobreza musical, começamos a nos preparar, preca-


riamente, para participar dos festivais.

Quando conseguíamos juntar dinheiro para pagar as inscri-


ções, quando conseguíamos verba para comprar a fita cassete,
quando conseguíamos um gravador emprestado, a gente se ins-
crevia e sonhava em um dia poder participar.

O nosso processo de criação das letras também era muito


pobre. Era simples: cada um queria fazer uma estrofe. O único
problema é que apesar de gostarmos da mesma música, todos
nós achávamos que tínhamos um estilo diferente.

Vai vendo: eu achava que escrevia igual ao Chico Buarque, então


só queria fazer música revolucionária. José Neto só queria falar
de boi na estrada. O Cleone era meio Zé Ramalho, e o Márcio se
sentia o Djavan.

Os organizadores dos festivais não viam nem ouviam assim, por


isso só chegavam cartas de agradecimento pela nossa inicia-
tiva, e notas de recusa para as nossas músicas.

Lembro das primeiras músicas que enviamos e nunca tivemos


resposta:
Trem de Maria
Vamos viajar
Nesse trem do tempo
Se perder nas lembranças
Do pensamento
Em cada estação
Vamos relembrar
De tempos bons
Que não vão voltar
Maria Fumaça
Que cortou as terras de Minas Gerais
Foi por onde passou
Meu avô e meu pai
32 Cooperifa

Era fim de tarde
Ela vinha apitando
Só não volta a Maria
Que eu vivo sonhando.

Um trago da vida
Tenho vontade de falar de amor
Assim como diriam os poetas
Com suas cabeças geniais
Falar do amor da forma mais completa
Sentimento mais puro que pesa sobre os mortais.
É preciso cantar
No mais alto silêncio
Todas as dores do mundo
Abraçar todas as vozes de todos os tempos
E nesse momento viver um segundo.
Sentir com amigos
A embriaguez eterna
Perambular por entre as primaveras
Tragar o lume das estrelas
Onde não chegam nossas pernas
E num suspiro conformado de cansaço
Cair no chão e beijar nossa terra.
Sentir na lembrança o tempo que passou
No suor de cada lágrima rolada
Juntar os pedaços da vida
Para viver o tempo que sobrou
Trazer de volta a esperança perdida
E num toque de magia
Encharcar o peito de amor
Para derramar o copo e tomar
Um trago da vida.
Por discordar do nosso método de compor em grupo e ter o
agravante de não saber tocar nem cantar, acabei fazendo a
minha primeira letra sem parcerias, e que por coincidência foi
nossa primeira participação em festivais, no Teatro Paulo Eiró,
em Santo Amaro.
O nascimento da poesia 33

Vida
Quero tempo pra pensar
No homem que vai para o espaço
E que não aprendeu com os pássaros
O segredo livre de voar
Não quero olhos para ver
A decadência que trazem consigo
E o que não podem mais deter
O encontro com seu inimigo
Não quero braços para abraçar
O homem que cai, quando outro levanta
Nem tampouco ajudar
O que cai, na sua vingança
Não quero pernas para correr
Do ódio do homem que se aproxima
E nem coragem de prever
O homem a caminho de Hiroshima
Não quero a vida pra viver
Correndo atrás da sorte
E nem com medo de se perder
Perto dos olhos da morte
Não quero a vida pra morrer
Nem o sonho pra sonhar
Eu quero a vida só pra crer
No sonho que pode vingar
Quero braços para abraçar
O homem que quero crer
E a coragem pra ajudar
O homem que quer viver
Depois disso, participamos de outros pequenos festivais. Nosso
grupo musical nunca ganhou nada, nem menção honrosa ou
diploma de participação; por isso, apesar de sempre estarmos
juntos, a nossa carreira tinha chegado ao fim. Para a sorte de
todos que gostam de música popular brasileira.
34 Cooperifa

Quanto a mim, além da experiência ficava a minha primeira


letra, meu primeiro poema registrado, e o desejo de um dia me
tornar um poeta.
O nascimento da poesia 35
Da ponte
pra lá

Depois de algumas letras e alguns poemas guardados, pela


primeira vez eu tinha pensado em escrever um livro, só que eu
não fazia a mínima idéia de como faria isso. Naquele tempo não
conhecia ninguém que já tinha publicado um livro, ou que sabia
quais os caminhos a percorrer, ou sequer pensado em escrever.

Nau sem rumo, comecei a fazer um curso de teatro, “Emílio


Fontana”, no bairro de Santa Cecília, Centro de São Paulo. Não
sei se queria ser ator, mas tinha idéia de escrever peças tea-
trais, e achei que era melhor aprender um pouco sobre a coisa.
E aprendi bem pouco mesmo. O curso era basicamente teoria.

O curso era freqüentado por muitos jovens, a maioria de classe


média; da periferia podia-se notar poucas pessoas, além de
mim e o Cleone, que também participou do curso.

Note-se que tudo que a gente queria fazer sobre arte e cultura
ficava depois da ponte do Socorro ou da avenida João Dias (pon-
tes que dão acesso aos bairros mais ao centro).

36
O nascimento da poesia 37

Durante o curso eu escrevi uma peça, “Amanhã talvez”, e mon-


tamos um grupo com os alunos para podermos representá-la,
o ANGÉLICA 387. Como não gostava de atuar, aproveitei que a
peça era minha e também dirigi.

Fizemos duas apresentações no espaço Aonde Bar, que ficava


na avenida Santo Amaro e que era comandado por uma turma
de teatro de quem nós ficamos amigos. As duas sessões foram
lotadas de amigos e parentes, sem contar que o lugar também
não era muito grande.

O grupo não vingou e aos poucos as pessoas que eram grandes


amigas foram se dispersando, e a minha verve teatral também.
Fiz muitos amigos nessa época, mas uma amiga em especial
iria me ajudar no pontapé inicial da minha carreira poética:
Adrianne Mucciolo.

Fui apresentada a Adrianne Mucciolo pelo meu amigo Marcelo


Carioca, que hoje é o marido dela. Na época ele namorava uma
menina do bairro e que trabalhava no banco comigo. Quando
esse amigo nos apresentou, disse-me que ela era poeta e estava
afim de fazer um livro, e sugeriu que a gente escrevesse juntos.
Eu e Adrianne ficamos amigos e começamos a escrever em par-
ceria. Ela já tinha algumas poesias e eu também, e dividimos a
autoria de outras.

Com tudo pronto, descobrimos uma editora no bairro de Pinhei-


ros que editava livros em pequenas quantidades. Funcionava
como uma gráfica: você pagava e recebia os livros.

Como eu não tinha dinheiro, ficou combinado que a Adrianne


dava a metade e depois eu dava a outra metade no dia do lança-
mento. Fizemos quinhentos livros.

Assim foi feito, no dia 10 de dezembro de 1988, numa galeria


onde ficava a editora, eu lancei o meu primeiro livro: Subindo
a ladeira mora a noite. Para minha surpresa o lançamento foi
38 Cooperifa

muito bom, e muita gente compareceu, tanto de minha parte,


como da parte dela.

A minha família, pessoas do bairro e amigos da empresa Filtros


Logam, onde eu trabalhava como auxiliar de escritório, foram me
prestigiar. No final do lançamento paguei a minha parte à edi-
tora e fui embora com os livros embaixo do braço batizá-los na
periferia.

Depois do lançamento, eu e Adrianne nos vimos mais algumas


vezes, mas aos poucos fomos perdendo o contato. Só sei que
ela foi uma grande amiga e esteve presente num dos dias mais
felizes da minha vida.
O nascimento da poesia 39
Da ponte
pra cá

O lançamento na galeria de Pinheiros tinha sido bom e coisa e


tal, mas faltava lançá-lo na periferia. O Zé Batidão ainda não era
no endereço atual, uma rua abaixo para ser mais exato, e era lá
que nós naquele tempo começamos a vida boêmia no bairro.

Como eu e mais ninguém sabia muito bem como era o lança-


mento de um livro na periferia, o Zé fez frango frito, com uma
forma cheia de salada de maionese, em que no meio estava
escrito o nome do livro, para servir para os amigos.

Eu ainda não sabia o quanto era difícil vender um livro, e tam-


bém não havia descoberto que o mundo não o estava esperando
para a vida dar seguimento, nem sequer sabia que ia passar
vergonha nos campos de várzea quando dizia que tinha escrito
um livro de poesia. Não era fácil ser boleiro e poeta ao mesmo
tempo, num lugar que dia após dia ia perdendo o romantismo.

A única coisa que eu sei é que foi uma noite memorável. Como
poucas nessa vida. E para poucos, também dessa vida.

Boa parte das minhas poesias já era sobre temas sociais. Leiam
algumas que já completaram mais de vinte anos, pois foram
escritas bem antes de o livro ser publicado:

40
O nascimento da poesia 41

Palco Asas da quimera


Segue o menino para Nelson Mandela
Deslizando na avenida Desenho de um sol no teu peito
Vende drops na caixinha de papel Apaga o não da memória
Tentando um papel Brilha o sim do seu jeito
No palco dessa vida. E faz mudar sua história
Em cada esquina O cárcere que vigia tuas lágrimas
Uma platéia diferente Afoga no teu Éden imaginário
Batem palmas Das cores juntas na sina
E não sente Em todos os dias do calendário
Que este ato não termina.
Liberdade te espera
No palco do asfalto
O perpétuo não espera um
Cenas fortes
segundo
No frágil nu do corpo
Semeie as asas da quimera
Ele veste as lágrimas
Para voar deste mundo
Maquiadas de sorrisos
Que desbotam na luz fria da noite, Quando houver frutos no
Bastidores da verdade. pensamento
Segue o menino A árvore que sombreia os campos
No palco desta vida Vai buscar para junto do seu
Representando seu verdadeiro manto
papel. As folhas que caem ao vento
África dos navios de inverno
Que o poeta criou
Aquarela do pai eterno
Que sem licença o homem
assinou
Os anjos de
A margem do vento
e Pensamentos
vadios

A experiência do primeiro livro não fora somente flores; aos


poucos eu fui descobrindo a dificuldade de ser poeta no país.
Com o livro nas mãos, descobri que depois dos parentes e ami-
gos mais próximos, poucos estavam interessados em poesia,
e principalmente na minha.

No início dos anos 1990 meu pai já tinha vendido o bar para um
outro amigo da família e já não estávamos vivendo na ditadura
militar. Na minha opinião, o Brasil entrou em gozolândia total,
e no sentido literal da palavra.

O Brasil continuava pobre e o racismo cada vez mais forte,


a favelização em ritmo acelerado, o ensino precário, desem-
prego, mas o povo brasileiro vivia numa constante festa.

A música pela qual eu havia me apaixonado estava chegando ao


fim, e só mais tarde iria encontrar novamente um novo tipo de
música de protesto que daria sentido à minha poesia: o rap.

42
O nascimento da poesia 43

A minha poesia, conforme alguns, tinha ficado fora de moda, pois


ninguém lutava mais contra o sistema, e o grande consenso era
que não tínhamos mais inimigos, e a poesia engajada era coisa
do passado. A palavra tesão era a grande moda do momento.

Quanto a mim, só sabia que a poesia não podia parar.

No ano de 1991 eu trabalhava de auxiliar de cobrança em um escri-


tório de Materiais de Construção que ficava na Vila Olímpia, e a
matriz em Joinville-SC. Estava com material para o meu segundo
livro, A margem do vento – que era uma poesia mais reflexiva do
que engajada, não sabia por que, mas tinha assimilado a pres-
são –, e não tinha um centavo qualquer para editá-lo.

Não sei por que me ocorreu a idéia de pedir apoio cultural para o
presidente da empresa, sr. Erédia, e movido por este desejo quase
impossível de se realizar consegui que a Cida, secretária, mar-
casse uma hora com ele, o que não demorou muito a acontecer.

No dia da reunião até que eu não estava muito nervoso, acho


que era porque eu sabia que a idéia era muito louca para dar
certo, então fui curto e grosso. Disse a ele que era poeta e queria
editar mil livros e precisava do apoio da empresa, e em troca
daria quinhentos livros para a empresa presentear os clientes e
mais o logotipo da empresa na contracapa do livro.

Ele ouviu atentamente o meu pedido, e fazia uma cara de “mais


ou menos” o tempo inteiro. Disse, como sempre, que a empresa
não passava por bons momentos, e todas aquelas coisas que os
chefes dizem quando pedimos aumento. Anotou algumas coi-
sas e disse que não era prática da firma e coisa e tal, mas que
em breve me dava uma resposta.

Um dia, quando menos esperava, ele mandou me chamar pois


queria falar comigo. Cheguei lá esperando a choradeira de sem-
pre, qual não foi minha surpresa quando ele disse que tinha
uma outra proposta e que talvez fosse até melhor para mim.
44 Cooperifa
O nascimento da poesia 45

Ele disse que como estava perto do fim do ano, queria que o livro
fosse uma espécie de presente de natal, mas que só aceitaria
fazer se aceitasse editar dois mil livros e doar mil à empresa.
Será que eu aceitei?

Diante disso, convidei o amigo e professor Carlos Giannazi,


que hoje é deputado Estadual pelo PSOL, para fazer a orelha
do livro; o artista plástico Carlos Roberto Hippólito para fazer a
capa, e as ilustrações ficaram por conta do desenhista Ivan de
Oliveira Pesso.

O lançamento foi num bar chamado Café in Concert, que ficava


no Ibirapuera, zona nobre de São Paulo, e que era do mesmo
dono do Vinicius Bar, onde eu tomava chopes com a turma da
empresa às sextas-feiras (note-se aí que até para tomar chope
era preciso sair da periferia).

No dia do lançamento o bar ficou lotado. Amigos do bairro, famí-


lia e muita gente da empresa em que trabalhava. Para se ter
uma idéia, naquele dia eu vendi mais de 150 livros, que é o meu
recorde até hoje. O duro foi vender os 850 livros restantes, e
mais quinhentos com que o presidente me presenteou.

Depois desse dia só dava eu em barzinho, porta de teatros,


shows, porta de faculdade e tudo quanto é lugar que poeta
podia e não podia entrar. Sem contar com a concorrência, que
naquele tempo era muito acirrada, devido à quantidade enorme
de poetas que tinha no Centro da cidade.
Mendigo
cultural

Encharcado de poesia e coragem neste ano, sem ser convidado


participei, em trapos, da Bienal do Livro, que ainda era no Parque
do Ibirapuera, vestido de mendigo e com os livros dentro de uma
bolsa feita de saco de estopa e uma placa escrita “mendigo cul-
turall”, com os dois eles da era Collor, distribuindo marcadores
de páginas gratuitamente com as minhas poesias – foi nesse
dia que eu também conheci o cantor Milton Nascimento e o pre-
sidente do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio da Silva.

Os seguranças não entenderam muito bem o meu protesto


e passaram a me seguir. Foi quando fui resgatado por uma
mulher, Rosemay Zarif, que era dona da antiga livraria Antes do
baile verde e que estava expondo lá. Depois desse episódio, May
ainda continuou por muito tempo dando força para o meu traba-
lho. Nesse dia duas crianças me ofereceram moedas.

Cheio de sonhos e de livros, o anjo-presidente da empresa ainda


ia ser muito importante na minha vida. Poucos meses depois
pedi que ele me mandasse embora, pois queria seguir pelo
mundo vendendo e vivendo de poesia.

Não só me demitiu como me desejou boa sorte.

Outro dia eu o vi numa entrevista na televisão e fiquei muito


emocionado; abracei-o com os olhos cheios de lágrimas e boas
lembranças.

46
O nascimento da poesia 47
48 Cooperifa

Saí da empresa e montei um bar no bairro do Guarapiranga, o


Etílicos bar, com o Branco e o Edson Franco. Não foram boas
lembranças: durou apenas um ano, e saí de lá sem rumo e sem
um tostão no bolso.

Mas também foi nessa época que eu conheci um outro anjo


em minha vida, Marisa Zambrani, que morava no bairro do
Carandiru, e que também tem muita importância na minha
vida e na minha trajetória poética. Foi ela que nos momentos
mais duros da minha caminhada conseguiu patrocínio para a
segunda edição do livro A margem do vento e para o livro que
logo em seguida eu iria lançar: Pensamentos vadios.

A primeira edição do livro Pensamentos vadios lancei também


no Café in Concert, no Ibirapuera, em abril de 1994. A capa dessa
vez foi feita pelo Ivan Pesso, e entreguei a orelha novamente ao
meu amigo professor Carlos Gianazzi.

Foi uma época muito turbulenta na minha vida. Havia conflitos


onde quer que eu tocasse, onde quer que eu pisasse. Por isso,
no final do ano de 1994 eu fui morar em Taboão da Serra (Grande
São Paulo), onde minha vida fez sentido novamente, e onde, por
incrível que pareça, tudo ia recomeçar, só que bem mais forte,
e para sempre.
O nascimento da poesia 49
Taboão
da Serra

Fugindo de mim e a convite de minha mãe, vim morar em de


Taboão da Serra, grande São Paulo, por volta de 1995. Taboão
faz fronteira com São Paulo por vários lados; eu vim morar na
divisa com o bairro de Campo Limpo.

Cheguei à cidade sem rumo e sem destino, desempregado, sem


um tostão qualquer. Fui morar num quartinho em que apenas
cabiam uma estante com meus livros, uma cama e uma gar-
rafa PET de guaraná vazia, onde eu urinava. Reli quase todos os
livros que tinha, que não eram poucos, enquanto a solidão me
consumia como ferrugem.

Com o vento soprando ao contrário, fazia apenas alguns bicos


numa rádio Comunitária no Jardim Brasil/ZN, como locutor de
um programa chamado “Ressaca Brasileira”, e como vendedor
de livros numa distribuidora que fazia eventos em escolas e
universidades. Depois de alguns anos, por prazer, eu e o Márcio
Batista herdamos um programa de MPB na Rádio Atividade
(comunitária) em Taboão da Serra.

Nesse tempo os donos da distribuidora, Paula e Marco Chavão,


ficaram meus amigos, e em boa parte das feiras nas escolas
que a gente fazia eles arrumavam um jeito para que eu fizesse
umas palestras e recitais, o que alavancava um pouco a venda
dos meus livros nas feiras.

50
O nascimento da poesia 51

Foram os tempos mais duros de minha vida, literalmente falando.


Quando tinha dinheiro para condução, passava o dia andando
sem rumo no centro de São Paulo, e só parava na hora do almoço
para comer um churrasquinho grego com suco grátis.

Enquanto a vida me maltratava sem dó nem piedade, quase que


por acidente consegui um emprego de vendedor de vídeo-game
na empresa Tec-Toy, na Lapa. Como para trabalhar de vende-
dor precisava de terno e gravata, coisa que eu nunca tive, pedi
emprestado para um amigo, Cláudio Argentoni, que trabalhava
na Caixa Econômica Federal, que além dos sapatos também me
emprestou uma maleta. Grande amigo.

Ser vendedor de porta-em-porta foi uma das melhores e ilu-


minadas experiências da minha vida. Primeiro porque eu só
andava de ônibus, metrô e trem, o que me permitia continuar
lendo os meus livros à vontade. E segundo porque tive a opor-
tunidade de conhecer quase todas as quebradas de São Paulo
durante esse um ano e meio que estive lá.

E quase todas as quebradas se pareciam com a minha. Estava


sempre em casa.

Saí de lá, só que agora tinha um pouco de grana, e já morava


com a minha irmã, porque também não era isso que eu estava
procurando. Minha mãe, Maria Mineira, como era conhecida
aqui no Pirajuçara, era muito conhecida de alguns políticos da
cidade, e um dia me apresentou a um que iria se candidatar e
que estava precisando de ajuda. Lá fui eu fazer campanha para
o candidato sem conhecer direito a cidade, só na aba da popu-
laridade de minha mãe.

Por sorte o candidato se elegeu a vereador e eu fui trabalhar de


assessor de Gabinete na Câmara Municipal de Taboão da Serra,
o que fez com que eu conhecesse profundamente a cidade, e
que me apaixonasse incondicionalmente por ela. Nesse clima
de amor, foi aqui que eu também conheci uma outra paixão,
minha esposa Sônia e minha filha Mariana.
52 Cooperifa
O nascimento da poesia 53
Pensamentos vadios,
2ª edição

Por aqui todos me conheciam por poeta, mas a não ser por
publicações de meus poemas nos jornais da região, poucos
conheciam o meu trabalho. Como os anos de dureza não foram
poucos, não tinha sobrado livros nem para arquivo.

Um dia estava conversando com um amigo, Carlão (in memo-


rian), e ele disse que conseguiria alguns outdoors de presente
para eu divulgar a minha poesia com o patrão dele, sr. José de
Almeida, da Klimes, que na oportunidade me presenteou com
cinco outdoors espalhados pela cidade.

Na época os cartazes foram produzidos pelo Brói, artista plás-


tico que fazia alguns free-lances publicitários para alguns vere-
adores e que mais tarde também iria ser muito importante para
a minha caminhada cultural.

Aproveitando esse clima de cordialidade com a cultura tão


rara no meio empresarial, aproveitei e fiz uma proposta para a
2ª edição do meu livro Pensamentos vadios para o sr. José de
Almeida.

Para minha surpresa, o homem aceitou na hora e disse que que-


ria ficar com trezentos livros, dos mil que ele havia patrocinado,
para presentear os amigos e clientes. Mais tarde ele ainda me
presenteou com mais de cem livros.

54
O nascimento da poesia 55

Com o apoio mais que cultural, lancei o livro no dia 23 de novem-


bro de 1999.

Algumas de suas poesias me acompanham até hoje.


Vingança
A vingança
Tem seu lado bom se usada como convém.
Por exemplo:
Se alguém disser que te ama
Vingue-se dele
Ame-o também.
Ninguém tem o direito
de aprisionar um pensamento
por mais vadio que ele seja.
Enquanto eles capitalizam a realidade
Eu socializo meus sonhos.
Eu planto o trigo
Para colher o pão,
Sou pássaro que recusa migalhas.

A produção e ilustrações do livro ficaram por conta do meu


amigo Eduardo Toledo; a revisão, Márcio Amêndola, colaboração
do Brói; e a orelha do livro ficou por conta de um amigo que na
época escrevia na revista Caros amigos, Marco Frenette, que fez
um dos textos – apesar de feito pra mim – mais bonitos sobre
poesia que eu já li na minha vida.

Se liga no texto:
Mais de um poeta ou crítico já afirmou que a poesia é o pão dos
elegidos. E isso não chega a ser mentira, porque ela já foi apenas
isso um dia.

Mas a poesia já tomou tantas formas diferentes, já entrou em


tantos lugares onde era considerada inimiga e já chegou em tan-
tos corações que sequer suspeitavam de sua existência, que essa
definição elitista tornou-se incompleta.
56 Cooperifa

Faz tempo que a poesia é democrática. Basta lembrar do bom e


velho samba do morro e dos repentes urbanos do bom e jovem rap
brasileiro. E é justamente nessa democracia cultural que entra
Sérgio Vaz, poeta da periferia que atinge o centro de todas as coi-
sas com sua poesia, num generoso esforço de distribuição mais
igualitária desse importante alimento espiritual.

Ele vive em Taboão da Serra, em São Paulo. Terra de gente sim-


ples que luta por uma vida mais digna apesar de ter o descaso do
Estado contra ela. A mesma história de qualquer periferia, enfim.

Pensando nessa gente – sua gente –, Sérgio Vaz produz versos


carregados de toques e sensações tentando aproximar-se de
todos que gastam boa parte de suas vidas correndo atrás do pão
real que não contém poesia, mas fermento para o corpo cansado
de adorar um deus chamado trabalho.

Esse admirável poeta sabe que suas emoções refletem as angús-


tias e alegrais comuns a todos, e que ninguém pode ser excluído
da dose de magia necessária para suportar a secura da vida que
caracteriza o cotidiano de todos nós.

É crença naquela velha e boa máxima de que “o artista tem de ir


aonde o povo está”. E por acreditar nisso, o autor de Pensamentos
vadios estende sua vadiagem poética até as escolas da periferia
de São Paulo, aonde vai de bom grado declamar seus poemas e
bater um papo com a rapaziada, para mostrar que há coisas mais
importantes na vida do que droga e violência.

Por fim, vale ressaltar que Sérgio Vaz – por ter consciência da
importância da simplicidade – é inimigo declarado das comple-
xidades desnecessárias. Mas não é o caso de interpretar mal seu
trabalho: sua poesia é simples sem ser simplória, é acessível sem
ser leviana.

Ele apura a linguagem até a medida necessária para a sua poesia


poder fluir rumo à sensibilidade do leitor.

Em outras palavras, ele mata a pretensão para a emoção poder


nascer livremente. E nessa luta do poeta contra a arrogância,
quem sai ganhando é você, que tem este livro nas mãos.
O nascimento da poesia 57

No dia do lançamento, o CEMUR – teatro que fica no centro de


Taboão – estava lotado, fisicamente só faltava a minha mãe,
que faleceu em fevereiro daquele ano, mas que de alguma forma
devia estar ali me abençoando, e finalmente tinha me apresen-
tado como poeta para a minha cidade.
Cartões
postais

Sempre achei que a poesia tem que ganhar as ruas, as praças,


os bares, as escolas, e nunca aceitei que o livro é o único abrigo
do poema. Outra coisa que também me incomodava era essa
coisa do poeta estar sempre no casulo à espera dos poucos que
gostam de poesia.

Pensando nisso, conversei com o Brói e pedi que ele criasse a


arte, e em maio de 1999 lancei uma série de cartões postais poé-
ticos para divulgar a poesia do meu livro Pensamentos vadios.

Como não tinha muita grana, fiz apenas quatro modelos no iní-


cio e três mil cartões para cada poema e saí por aí distribuindo
poesia gratuitamente para quem quisesse receber.

Depois, já com a ajuda de alguns amigos como Ademir Valente


e o Ali Sati, fiz mais nove modelos de cartões, e durante mais
de dois anos devo ter feito mais de cem mil cartões postais, e
na esteira do sucesso dos cartões também fiz marcadores de
páginas. Só na primeira remessa fiz 72 mil marcadores.

Saía pela noite distribuindo em porta de teatro, shows de rap,


barzinhos, e nas palestras nas escolas públicas de São Paulo e
Grande São Paulo. Na época foi uma tremenda febre os cartões.
Até hoje encontro pessoas na rua que dizem que colecionavam
e ainda guardam consigo os postais e os marcadores. Nunca
minha poesia tinha chegado a tantas mãos e sido apreciada, ou
não, por tantas pessoas ao mesmo tempo.

58
O nascimento da poesia 59

Uma vez, num show de rap dos Racionais, no Anhembi, levei


uma bolsa com cartões que pesava mais de dez quilos, o que
dava mais de quatro mil cartões. Eu e o Big Richards, que me
deu uma força na época, distribuímos todos, um a um, desde a
fila da entrada até na saída no final do show. Outro amigo que
ajudou muito a distribuir em bares e shows foi o Didio, guerreiro
do grupo Luance, e que mais tarde iria contribuir muito para o
nascimento da Cooperifa.
Hip-hop
e sabedoria de vida

Trabalhava na Câmara Municipal ainda, lá pelos idos de 1998


ou 1999, não me lembro direito, quando conheci o grupo de rap
Sabedoria de vida, apresentado por um amigo chamado Levi.

Quando o Levi os apresentou a mim, eles estavam com um


problema na prefeitura para legalizar um evento na praça Luiz
Gonzaga, aqui em Taboão, e pediu que eu intercedesse a favor
deles. Logo em seguida apresentou Preto Jota e o Jhay, que
estavam na organização do evento. Até então eu era apenas um
admirador da cultura hip- hop, mas por conta deles, não sabia
ainda, ia ficar para sempre envolvido com o movimento.

O evento iria contar com a nata do rap naquele momento. Acho


que era um show pela paz, com a participação do Mano Brown
e tudo o mais. Como sempre as autoridades estavam temerosas
quanto ao evento, mas depois de muita conversa tudo foi libe-
rado, e o show transcorreu sem um transtorno sequer. Gente pra
caralho. Um sucesso.

Depois do show sobrou a amizade que iria durar, infelizmente,


até o fim da vida deles. O grupo Sabedoria já vinha de uma longa
caminhada de respeito no rap e já tinham aberto vários shows
dos Racionais.

Jhay era o mais extrovertido, por isso logo de cara fomos nos
dando bem; já o Preto Jota era mais bicudo, fazia o tipo que não

60
62 Cooperifa

gostava de ninguém – mais tarde a máscara iria cair, descobri-


mos que ele gostava de todo mundo.

A esta altura eu já estava percorrendo as escolas públicas da


periferia com um projeto chamado “Poesia contra a violência”,
e eles eram os meus convidados mais freqüentes. O projeto
era simples: eu chegava em uma escola, geralmente onde eu
conhecia os professores ou diretores, e me oferecia para falar
e recitar poesia, além de oferecer cartões e marcadores de pre-
sente para os alunos, e sorteios de livros. Tudo gratuitamente.

A convite do meu amigo e professor Edson Lima, comecei o


projeto numa escola chamada Alessandra Bassit, no Jardim
Ângela, Zona Sul, que na época era considerado um dos bairros
mais violentos de São Paulo.

No começo falava sozinho, apenas com a companhia do docu-


mentarista Paco ou do jornalista Edu Toledo. Ambos ajudavam
na divulgação, o que ajudava muito para abrir as portas de
outras escolas. Visitamos mais de trinta.

Às vezes também iam outros integrantes do grupo, como o Tico


e o Fred, mas os alunos piravam mesmo é nos repentes impro-
visados do Jhay e nas letras fortes do Preto Jota. Por muitas
vezes passei despercebido com meus poemas.

O bate-papo era sempre sobre a quebrada, respeito e a impor-


tância da informação na vida das pessoas. Falávamos sobre
cidadania e problemas próprios da juventude e do país. As con-
versas eram diretas e sem frescuras. Alguns professores estra-
nhavam, outros simplesmente deliravam com esse encontro da
educação da rua com a da escola. União perfeita.

Daí fui percebendo a força dos artistas da comunidade no for-


talecimento da cidadania da periferia, e que a gente precisava
mudar a, e não mudar da periferia.

Essa força não podia e não devia ser desperdiçada. Então come-
cei a chamar mais e mais representantes culturais para esses
O nascimento da poesia 63

encontros nas salas de aula. Uma vez fomos numa escola e


tinha quase vinte artistas para falar com os jovens. O Xis, Diney
do Gueto, Márcio Batista, Brói, entre outros, deram as caras
nesses encontros.

Mas as escolas estavam pequenas para a minha poesia; queria


mais. Como já disse anteriormente, o livro é apenas um lugar
de descanso para a poesia, e quando o poema não está repou-
sando nas mãos das pessoas ele precisa estar nas ruas, à pro-
cura dos desavisados.

Como já distribuía cartões postais em shows de rap, não cus-


tava nada eles me deixarem subir aos palcos para recitar
minhas poesias. Assim foi feito.

Chegava no show e falava com os organizadores do evento ou


com alguém de algum grupo conhecido – a esta altura, por conta
do Jhay e o Jota, eu já conhecia algumas pessoas – que eu era
poeta, e se podia, nos intervalos dos grupos, recitar uma poesia.

No começo alguns estranhavam essa coisa de poesia sem ritmo


no show, mas a gentileza deles sempre imperava e acabavam
deixando. O público no início também achava estranho, e assim
eu fui peregrinando de show em show nas periferias do Brasil.

Com o tempo era comum nos shows alguém comentar: “o tiozi-


nho da poesia está aí, deixa ele falar uma poesia”, ou então na
fila distribuindo os cartões alguém falava “recita tal poesia”, ou
“esse cartão eu já tenho, me arruma outro”.

Quando tudo parecia perfeito chega a notícia que Jhay havia


sido assassinado. Até hoje ninguém sabe por quem ou por quê.
Sua morte abalou toda a comunidade do rap e as pessoas do
bairro, onde ele era muito querido.

Vivendo nesse clima de poesia durante todo esse tempo, quase


tinha me esquecido como a periferia também sabe ser cruel
quando quer. E assim, de forma bruta e misteriosa, Jhay par-
tiu, como num dos seus versos improvisados, só que sem rima e
sem poesia. Saudades.
64 Cooperifa

Antes de partir ele ainda me presenteou com uma outra ami-


zade: Mano Brown.

Sem nada para oferecer, fiz uma poesia em sua homenagem no


livro A poesia dos deuses inferiores.

Jhay
Jhay Então se transformou em rei
Nasceu Jaílson Rei da rima
Primeiro filho do seu Roque Rei das ruas
Com dona Margarida. Rei das minas
Preto, pobre E construiu seu castelo
Tinha tudo para ser ladrão, Na brecha do sistema.
Mas teve Sabedoria de vida Quando lhe assaltaram,
E fez do hip- hop a sua razão. Numa dessas vielas
Como todo pobre que se preza Onde os corvos fazem ninhos,
Também viveu livre, Deve ter dito:
Apesar de ter a liberdade “...vem, pode vir que tem
provisória mano que é mano não tira
Decretada. ninguém.”1
Fora do esquema, Aí levaram sua moto
Não podia ter carro Levaram seu sorriso
Não podia ter moto Tiraram sua vida.
Não podia ter nada, Levaram tudo que ele tinha
Com suspeita de ser feliz. E tudo que era nosso.
Negro de atitude O Céu?
Recusou-se a ser escravo “Quem procura acha.”
A usar algemas.

1 Não tira sarro de ninguém.


O nascimento da poesia 65
Cap.02
Cooperifa
Cap.02
Cooperifa
Poeta
da periferia

O rap tinha entrado de vez na minha vida e a poesia de protesto


novamente fazia sentido em meu trabalho. E vários rappers
que eu tanto admirava já eram meus amigos, e também já era
convidado pessoalmente por eles para recitar em seus shows
e eventos culturais.

Conheci o GOG aqui em Taboão numa rádio comunitária. Presen-


teei-o com um livro meu e prometemos ficarmos amigos no
futuro. Assim aconteceu.

Um dia, ouvindo no rádio sua nova música, “Fogo no pavio”, me


emocionei com a homenagem que ele faz a mim e ao Ferréz.
Logo em seguida me convidou para participar, poeticamente
falando, de uma coletânea chamada “Fábrica da vida” com
grupos novos de rap. Daí em diante fiz mais outras partici-
pações em outros grupo: Sabedoria de vida, 509-E, Inquérito,
Periafricania, Versão popular, Di Função, entre outros.

Foi nessa época que eu recebi um convite do empresário do


509-E para fazer uns poemas no presídio de Franco da Rocha
no dia das mães. Além de mim, vários grupos, inclusive os
Racionais, iriam participar do evento. Levei quinhentos cartões
postais, patrocinados pelo jornal Independente, com uma poe-
sia escrita especialmente para o dia, e que foram distribuídos
de cela em cela para todas as mães presentes.

68
Cooperifa 69

O rap tinha entrado de vez na minha vida – e eu querendo que a


literatura entrasse de vez na vida dele –, e para se ter uma idéia do
que estou falando já recitei poemas em shows com mais de dez mil
pessoas e já tive o meu próprio camarim. Rsrsrs. Bons tempos!

O rap tinha dado novo gás à minha poesia, e a MPB já não


fazia tanto sentido em minha vida. A poesia só queria saber de
becos e vielas, nada mais. O gás no talo, um dia assisti a uma
entrevista sobre a rádio Rocinha, no Rio de Janeiro, e liguei pra
lá falando do meu trabalho e de conhecer o trabalho deles. O
Jocelino, que era o dono da rádio, topou a idéia e então partimos
pra lá, a maior favela do país.

Chamei o Edu Toledo e o João do Said e partimos pra lá de carro.


Levei uns dois mil cartões e marcadores mais cinqüenta cami-
setas com minhas poesias para presentear os amigos do morro.
Não sei como está agora, mas quando eu fui a rádio era a voz da
favela, então o que batia na emissora ecoava nos becos. Quando
o Carlinhos falou que estava sorteando camisetas, o bagulho
ferveu de gente.

Ficamos amigos do Carlinhos Costa, do Gato e do Soca, e na


entrevista prometi que a próxima vez que eu fosse ao Rio iria lan-
çar meu livro na Rocinha. Logo em seguida, depois de lançar o
livro Pensamentos em Taboão e São Paulo, fui à Rocinha cumprir
a minha palavra.

Dessa vez fui só. Chegando lá, eu e o Jocelino armamos uma


mesa com os livros e estendemos umas camisetas ao lado de
uma banca de jornal, bem no meio do morro, e ficamos ali dis-
tribuindo cartões e oferecendo poesia. A Amélia Nascimento,
que era minha amiga e editora da revista Raça, mandou uma
repórter cobrir o evento.

De repente pára um enorme jipe cheio de turistas italianos bem


em frente à nossa mesa exposta e começa a tirar foto e a pergun-
tar o que era aquilo de lançar livro na favela. Porra, eles salvaram
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o dia, compraram quase tudo. As camisetas que sobraram dei de


presente para alguns amigos que fiz na hora.

Com dinheiro no bolso, fomos para a antiga praça do Skate


comer peixe e tomar umas cervejas pra comemorar. Dos becos
surgiam pessoas com camisetas com meus poemas escritos;
no bar penduramos alguns cartões, e assim nascia uma ami-
zade que ia durar para sempre com a Rocinha.

Na revista Raça a matéria saiu com o título “Poeta da periferia”.

O tiozinho da poesia também tinha ficado para trás.


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Seguindo na trilha dos cartões postais, as camisetas com poe-


sias, desenhadas pelo Brói, ajudavam a divulgar mais o meu
trabalho e acabavam com a pouca grana que ganhava. Cheguei
a expor algumas vezes na feira de artesanatos que acontece em
Embu das Artes aos domingos, mas não fui bem sucedido; mas
ainda seguia sustentando a poesia.

Nessas correrias do dia a dia, por acaso encontrei um amigo que


era candidato a vereador na cidade e estava estampando suas
próprias camisetas num determinado lugar e me convidou para
ir até o local onde ele estava locado, uma fábrica desocupada
na BR-116, em Taboão da Serra.

Quando cheguei na fábrica fiquei chapado na hora, com o tama-


nho e a estrutura do lugar. O galpão, não sei por que, estava
desocupado mas ainda estava com seus maquinários todos lá,
dando uma atmosfera de guerrilha urbana ao local, que também
era dividido por vários grandes espaços, e milhares de metros
quadrados arborizados pelo lado de fora.

A entrada ficava bem em frente a BR-116, com um enorme portão,


e para chegar até ela era preciso andar quase cem metros por
uma rua de paralelepípedo cercada de árvores que eram sopra-
das por um vento tranqüilo, como eu nunca tinha sentido antes.

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Nem sei bem o que eu senti na hora; só sei que quase não conse-
gui prestar atenção na estamparia que ocupava uma parte onde
era o escritório, que se localizava bem na entrada da Rodovia.

Saí de lá diferente de quando tinha entrado, mas o mais estra-


nho era que eu ainda não sabia o porquê dessa reação, só sabia
que era uma energia positiva. À noite, encontrei o Brói, o Big
Richards e o Gigio, e comentei sobre o lugar e tudo que eu tinha
visto e sentido e que se a gente desse uma trabalhada daria
para fazer um grande evento cultural.

Todos ficaram empolgados e no outro dia o Brói foi lá para


conhecer a fábrica de que eu tanto falava. E é lógico que o baixi-
nho também pirou no lugar. Meu amigo Luiz, que havia me con-
vidado para conhecer o lugar, não estava entendendo nada com
a nossa empolgação. Na verdade nem nós mesmos estávamos
entendendo direito, só mais tarde é que a ficha iria cair.

Na segunda visita disse ao Brói:

— Aqui dá para a gente fazer tipo a semana de arte moderna.

— Como assim? – respondeu o baixinho.

— Porra malandro, um evento multi-cultural, usando todos os


espaços ao mesmo tempo. Vamos encher isso aqui de artistas
de tudo quanto é quebrada.

E fui explicando minha idéia passo a passo, já viajando nas pos-


sibilidades de juntar todos os artistas sem-palco da região num
único evento, num único dia. Bom, a gente estava cheio de pla-
nos, mas quase íamos esquecendo de pedir autorização ao Luiz,
que estava responsável pela fábrica. Nosso camarada enten-
deu na hora a nossa idéia e disse que estava liberado para o que
a gente queria fazer.

Tínhamos um tremendo lugar para divulgar os trabalhos de


artistas da periferia em nossas mãos e nenhum tostão em nos-
sos bolsos. Não ia ser nada fácil.
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À noite nos encontramos no bar do Portuga, eu, Brói, Big, Gigio


e a Viviane – se não me falha a memória –, para discutir o que
a gente iria fazer e como iria ser feito. E ficou decidido que ia
ser um evento num domingo com uma programação para o dia
inteiro com poesia, música (rap, MPB, reggae e samba), teatro,
exposições, capoeira, lançamento de livros, dança (teve até
desfile de cabelos afros no dia). Por conta principalmente do
hip-hop, já estavam acontecendo na periferia vários eventos; a
gente só queria fazer um que reunisse todo mundo.

Conseguimos arrumar o som na prefeitura, o que vamos e con-


venhamos era o mais importante no momento, e começamos a
convidar todo mundo que a gente conhecia ligado a algum grupo
ou movimento cultural para participar e colaborar com o evento,
que não teria cachê porque a entrada seria grátis também.

Corre dali, corre daqui, e a gente fazendo tudo com o dinheiro


do nosso próprio bolso, colocamos só duas faixas falando do
evento e não tínhamos verba nem para flyers ou cartazes; aliás,
não tínhamos nem nome para o evento.

— Peraí, e o nome do bagulho? – alguém perguntou.

Lembro que estava conversando com o Big sobre isso, a impor-


tância de um nome bem legal, e que marcasse para sempre esse
dia (não sabíamos que teriam outros). O Big é carioca, e quando
ele se referia à quebrada ele falava que “a perifa isso”, “a perifa”
aquilo, e eu sempre falando essa coisa de um artista cooperar
com o outro, e coisa e tal. De repente:

— Cooperifa! – gritei.

Nome dado, o Eduardo Toledo, que é jornalista e ia expor foto-


grafias no dia, conseguiu colocar o anúncio do evento em alguns
jornais locais e uma pequena chamada no jornal Folha de São
Paulo, caderno Folha teen.

Estava tudo pronto para o grande dia, mas faltava só uma coisa
que eu achei que era muito importante: um manifesto! Escrevi
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um manifesto e escrevi um texto especialmente para os jornais


convocando todos para o grande dia.

Convidamos gente pra caramba, e como não tinha bar por perto,
a Bia e o Claudião se encarregaram de uma lanchonete improvi-
sada com cachorro-quente, refrigerante e cerveja, que abaste-
ceu toda a rapaziada presente.

Tudo pronto. A ansiedade tomou conta da gente e se eu não


esqueci ninguém os guerreiros da fábrica que se apresentaram
no dia ajudando a criar a Cooperifa foram: eu que lancei o livro
Pensamentos vadios, o Brói que expôs suas telas, Big com seus
discos e livros, Edu com fotografias, e os grupos de teatro Tesol
e a UTT (União Teatral Taboanense).

Convidamos o Ferréz, que tinha acabado de lançar o livro e


estava fazendo um baita sucesso nas livrarias e nas quebradas,
e ele aceitou de pronto lançar o livro no dia.

O jornalista Marco Frenette da revista Caros amigos também


lançou o livro A importância da cor da pele, além do escritor
Antônio Carlos e o poeta Élmantos, entre outros.

A música ficou por conta dos grupos Herros Umanos, Sabedoria


de vida, Diagnóstico, Marco Zero, Luance e banda Varal.

A cabeleireira Luci fez um desfile de cabelos afros; a capoeira


ficou a cargo do grupo Irmãos Guerreiros de Angola; Alan Leão
e Paulo Brito fizeram Clow; Carozzi, Ed e Joselito fizeram uns
esquetes teatrais.

Os grafites ficaram por conta do Cobra, e a dança foi represen-


tada pelo grupo Espírito de Zumbi.

Para falar bem a verdade, com a divulgação mínima, tinha mais


gente se apresentando do que assistindo e o público não foi bem
o esperado, e conforme nós mesmos, por ali passaram umas mil
pessoas, mas ficou a impressão de um milhão.
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Para se ter uma idéia, no segundo evento na fábrica encerramos


com o rapper GOG, de Brasília, que foi apresentado pelo Paulo
Brown, e ao final não tinha mais do que quarenta pessoas assis-
tindo um dos melhores shows de rap que a gente já viu.

Depois fizemos um terceiro encontro no estacionamento no


Centro da cidade, no dia que caiu uma tremenda chuva, e pôs um
fim, por ora, nos nossos sonhos. Meu amigo Luiz já não estava
mais na fábrica e perdemos o espaço que havíamos cobiçado
como se fosse nosso.

Ao final das três batalhas estávamos todos exaustos e felizes,


com a certeza que uma semente tinha sido plantada, para o
resto de nossas vidas. Ficou também a certeza que teria que ser
juntos, e não separados como queriam alguns, que a gente ia
atingir algum objetivo na construção de uma cultura que identi-
ficasse e representasse a periferia.

Ficou claro para todos nós que os inimigos responsáveis pela


nossa fome cultural tinham que ser combatidos, só que agora em
bando, como gafanhotos na lavoura. E que a culpa dessa nossa
pobreza de arte e cultura era do sistema, e do marasmo que todos
nós, até então, éramos cúmplices, e fingíamos não saber.

Na fábrica onde nasceu a Cooperifa e onde eu também renasci,


descobri uma outra coisa muito importante na minha vida: que
se a gente quisesse realmente alguma coisa, era só pegar, por-
que tudo era nosso.

O centro, ainda que discretamente, começava a mudar de lugar.


O

man
festo

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ni É PRECISO SUGAR DA ARTE


UM NOVO TIPO DE ARTISTA: O ARTISTA CIDADÃO.
AQUELE QUE NA SUA ARTE
NÃO REVOLUCIONA O MUNDO,
MAS TAMBÉM NÃO COMPACTUA COM
A MEDIOCRIDADE
QUE IMBECILIZA UM POVO
DESPROVIDO DE OPORTUNIDADES.
UM ARTISTA A SERVIÇO DA COMUNIDADE, DO PAÍS.
QUE ARMADO DA VERDADE, POR SI SÓ,
EXERCITA A REVOLUÇÃO.
Marco Pezão
e a Quinta Maldita

Quando conheci o poeta Marco Pezão em uma rádio comunitá-


ria aqui em Taboão, a convite do David da Silva, que tinha um
programa de esportes e notícias da região, mal sabia que eu já
o conhecia.

Meses antes havia sido convidado para ser jurado em um con-


curso de poesia do mapa cultural da cidade e lembro que fiquei
muito emocionado com um poema chamado “Mina da periferia”,
defendido por um cara com nome italiano de Marco Iadoccico.
Votei no poema assim que acabei de ler, o que gerou muita dis-
cussão com os outros três jurados que também gostaram muito,
mas que defendiam outros títulos.

O poeta Marco Iadoccico venceu o concurso, e no programa de


rádio é que eu descobri que este poeta também respondia pelo
nome de Marco Pezão, o poeta da bola. Ganhou esse nome por
conta do seu trabalho jornalístico com o futebol de várzea, e
também era boleiro das antigas.

Enquanto eu dava a entrevista, o Pezão, que era seu assistente


na rádio, fazia uma leitura dos meus poemas. Lembro de ter
ficado impressionado com a sua voz firme e bem postada, o que
fazia com que os poemas ficassem muito melhor do que pare-
ciam ser.

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O repórter Pezão também tem formação teatral, por isso no dia


que nós o ouvimos recitar, a poesia ficou ainda mais bonita, e
então tivemos a certeza que votamos na pessoa certa para o
primeiro lugar.

Passada a entrevista, começamos a nos reunir, despretensio-


samente, às quintas-feiras, com uma turma de amigos que na
maioria era de poetas e a turma do teatro, no bar do Portuga,
que fica ao lado do CEMUR, espaço cultural da cidade.

Entre uma cerveja e outra não sei quem teve a idéia de pedir
que alguém recitasse uma poesia, e depois outro e depois mais
outro, e acabou que foi virando um hábito a gente se reunir às
quintas-feiras para beber, e depois recitar poesia. Não era um
sarau, a gente ia mesmo para beber e discutir cultura, e sem
que ninguém dissesse nada, estava criada assim, sem direitos
e deveres, a quinta maldita.

Aos poucos algumas pessoas foram aparecendo às quintas-fei-


ras no bar, uns para beber, outros para recitar, e outros para ouvir.
A maioria dos textos lidos eram de autores consagrados, acho
que somente eu e o Pezão que tínhamos poemas próprios.

Lembro até uma pré-estréia que o grupo Artmanha fez numa


quinta dessas com a peça que depois seria um grande sucesso
no estado de São Paulo, “Soltando o verbo”, apresentada pelos
atores Sérgio Carozzi, Ed Ferraz e Joselito Gazza.

A quinta maldita seguia sem nenhuma pretensão de ser nada,


apenas um simples encontro de amigos, por isso era muito gos-
toso freqüentar e por isso também não durou muito tempo.

Não sei bem por que, e como acabou a nossa primavera etílica e
poética, mas eu e o Pezão descobrimos que aquela quinta-feira
maldita estava grávida de um outro movimento, e esse embrião
ia dar à luz a qualquer momento, só que desta vez, num outro
berço e numa quarta-feira.
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Trechos do poema “Mina da periferia”, de Marco Pezão


É noite...
Noite que dá arrepio,
Só de olhar a cara do tempo.
A Saudade é água’ardente.
Cachaça’alma no espaço me acalenta...
A fantasia e o real que tua presença traz.
Eu sinto o frio da solidão,
E é por isso que o pensamento goteja,
Como pingos de chuva,
No caminho que me leva à tua morada.
(...)
(...)
Chora minha cuíca
Quando meu sonho invade teu cobertor...
E teu corpo por mim amado
Se enrola feito caracol,
E meus braços se tornam cachecol
O vento frio passa por entre brechas e vãos...
É úmido o ar, tomo os teus lábios,
E penso apenas em te beijar.
(...)
Mina explode atômica em consciências mil...
Dança parceira da noite:
Samba, rap, pagode, rock...
No balanço do teu corpo, me ligo na idéia;
Mina do Brasil.
Mina que não é ouro nem prata;
De gente, minha gente! Mina de muita gente
Que ainda não se tocou o que a mina é.
(...)
(...)
Você, minha mina da periferia!
Sarau da
Cooperifa

Quando a Quinta Maldita deixou de acontecer, ficou a certeza de


que era necessário criarmos um espaço para os nossos encon-
tros. Um local onde poetas e não-poetas pudessem comungar a
palavra como quem reparte o pão entre os necessitados, e nós
éramos esses necessitados.

Com uma idéia de local, o poeta Marco Pezão conheceu o Bodão,


que era sócio da Doriana e do Renatinho num bar no Jardim
Maria Rosa, e explicou que a gente estava afim de um local para
realizar um sarau de poesia. Como ele tinha uma experiência
com teatro, achou interessante a idéia e o Pé marcou uma hora
pra gente conversar sobre o dia.

Por conta da sua experiência anterior com teatro, o dono do


bar aceitou na hora e decidimos que os encontros seriam às
quartas-feiras porque era um dia morto na semana e só iria
mesmo quem realmente estivesse interessado em poesia; outra
coisa que ficou firmado entre nós é que o recital aconteceria de
quinze em 15 dias.

Enquanto discutíamos sobre o assunto surgiu a palavra sarau,


e ninguém sabe por que, até porque a palavra era estranha a
todos nós. Acho que todos já tinham ouvido esta palavra, mas
conhecer o significado a fundo, acho que ninguém conhecia.

Outro dia eu li que no Brasil, entre o final do século XIX e no início


do século XX, o sarau era o evento mais elegante da sociedade e

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só os seres iluminados que tinham gosto por música e literatura


e que não precisavam se preocupar com dinheiro, podiam se dar
ao luxo de promovê-lo em seus amplos e belos salões.

Li também que um sarau que se prezasse tinha muito champa-


nhe importado, quitutes caprichados que saíam quentinhos da
cozinha trazidos por vários serviçais, um belo piano de cauda e
músicos e poetas consagrados, prontos para exibir sua arte.

Esses eventos eram chamados de “salões” – muito provavel-


mente pelo ambiente que ocupavam. Chegaram como tradição
importada da Família Real, em 1808, e imediatamente ganha-
ram terreno no Rio de Janeiro. Era o local onde se reunia a Corte,
e onde também deveriam acontecer os encontros para regar o
cérebro da aristocracia e dos nativos que sonhavam ganhar um
certo ar europeu.

São Paulo só entrou no circuito mais tarde, quando perdeu os


ares provincianos e seus ricos fazendeiros de café começaram
a fazer de tudo para afrancesarem-se. Outros salões menos
ricos (ou esnobes), mas sempre elitistas, também apareceram
na cidade naquele período.

A partir dos anos 1940, a dinâmica da “elite culta” mudou e


os ricos saraus foram escasseando. A organização desse tipo
de evento mudou de mãos e coube aos intelectuais universi-
tários realizá-los – em bares, porões, praças, teatros, geral-
mente espaços underground esfumaçados e com convidados
com o copo cheio de bebida. As drogas também aumentavam a
viagem literária.

Sem saber de nada disso, eu e o Pezão, numa fria noite de outubro


de 2001, criamos na senzala moderna chamada periferia o Sarau
da Cooperifa, movimento que anos mais tarde iria se tornar um
dos maiores e mais respeitados quilombos culturais deste país.
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O primeiro
sarau

O primeiro sarau aconteceu mais ou menos com as pessoas que


andavam com a gente no momento. Lembro de ligar para várias
pessoas e elas não toparem, primeiro porque não entendiam
muito bem o que a gente queria, e segundo porque era numa
quarta-feira, dia morto para as baladas.

Então só apareceram os amigos e poetas mais próximos: eu,


Pezão, Élmantos, um poeta de Embu, Rose (musa da Cooperifa),
Helena, Régis, Paulo Brito, Sérgio Carozzi, Erton de Morais,
Sônia e Mariana (esposa e filha), Otília, Giba, Aladim, Tavinho
e Rafael do Cavaco. Não tinha quase ninguém, nem para ouvir
nem para falar; lembro que cada poeta leu mais de dez poesias
durante o Sarau.

Começou uma 20:00h e nós levamos bravamente até mais ou


menos umas 21:30h, quando a maioria, já cheia de alegria arti-
ficial, pedia pelo fim do evento. Como o Sarau ia ser quinzenal
e naquele quase não tinha ido ninguém, só pra contrariar dis-
semos que o Sarau tinha de acontecer todas às quartas-feiras,
acontecesse o que acontecesse. Assim é até hoje.

Com o bar quase vazio, lembro que não ficamos muito tristes,
mas muito decepcionados com os que não puderam aparecer
e dar a força que precisávamos, já que tantos tinham achado
ótima a nossa idéia do encontro de poetas.

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Depois do Sarau ficamos ali, tentando um encher a bola do


outro, e a única coisa que conseguimos encher foi as nossas
caras. A gente também não tinha muito tempo pra chorar; se
a gente tinha se apossado de um movimento aristocrático e
levado para a quebrada, nós tínhamos que dar a nossa cara pra
ele, então começamos a dar a cara pra bater.

O Pezão divulgava nos jornais da região, eu ligava para todo


mundo que eu conhecia e os intimava para comparecerem, e
rogava praga naqueles que não podiam ir. E assim foi indo.

Um dia aparecia um, depois outro, mais dois, e o Pezão no jor-


nal, eu no telefone, as meninas divulgando entre os amigos,
poetas e mais poetas aparecendo, gente da quebrada, amigos
atendendo os meus pedidos, gente que passava na rua e via o
movimento e entrava para conhecer, o amigo do amigo, o boca-
a-boca, e quando a gente menos esperava, o Bar do Garajão já
tinha quase cem pessoas freqüentando o Sarau.

Por ser o Garajão um bar pequeno, essas quase cem pessoas


para nós eram uma multidão, que se espalhava em três peque-
nos ambientes: as mesas em frente ao microfone, o bar que
ficava ao lado, e em frente ao bar, onde muitas vezes a muvuca
se formava.

O Sarau foi se firmando como movimento na quebrada, e sem


que a gente exigisse as poesias românticas foram aos poucos
sendo substituídas pelos poemas com a temática social. E os
novos poetas iam chegando, e aos poucos assimilando a pegada
forte das quartas-feiras poéticas na Cooperifa.

O Kennya, que hoje faz parte de um grupo de rap e foi um dos pri-
meiros a chegar no Sarau, quando apareceu lá no Garajão quase
não falava nada, a tal ponto de quando Pezão ouviu seu nome
achou que ele era queniano mesmo, lá da África. Aos poucos ele
foi se soltando e liberando da caneta uma poesia linda e cheia
de força. Hoje fala mais que todo mundo ao mesmo tempo.
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As pessoas iam chegando de mansinho só para olhar e quando


menos esperavam eram seduzidas pela poesia. Foi assim com a
Samantha, a Pilar. O Helber Ladislau, que a princípio só assistia
e um dia pediu para recitar “Paulo César Pinheiro” – se não me
engano –, e não faltou mais aos Saraus.

A Rose (musa) não recitava, só participava e dava uma força,


mas ainda nem sequer pensava em ser poeta. O Márcio Batista,
amigo de mais trinta anos, nunca havia recitado. Ele era sub-
diretor de uma escola noturna, e me lembro que ele chegou no
Sarau da Cooperifa uns três meses depois que a gente já estava
lá; pediu para ler uma poesia, e tremia que quase nem conseguia
ler o que estava no papel. Hoje em dia é um poeta completo.

Como esquecer os acordes do grupo de samba Papo de famí-


lia, que nos acompanharam por tanto tempo? O Preto Jota,
do Sabedoria de vida, que foi um dos grandes guerreiros da
Cooperifa, chegou cheio de marra com o seu rap, mas aos pou-
cos suas letras foram ganhando a poesia necessária para uma
música forte, e ao mesmo tempo bela e cheia de revolta.

O poeta Allan da Rosa, que nos conhecemos lá no bar do Portuga,


viu anunciado na faixa quando a gente fez um Sarau, e ele tro-
cou uma idéia com o Pezão para poder participar. Nem sequer
sonhava escrever seu próprio livro, chegou lá de mansinho e até
hoje ele faz parte do movimento. Fiquei feliz quando ele escre-
veu seu primeiro livro, Vão,e me convidou para fazer a orelha.

O pessoal do grupo 2hO (Isaac, Nenê e Milton), o grupo Fatos,


Ridson Dugueto, Gato Preto e uma rapaziada boa que hoje está
por aí vivendo de arte e poesia. E sem contar aqueles que iam e
vinham o tempo todo.

O Garajão fervia e a gente tinha descoberto uma coisa tão ou


mais importante quanto que o livro: a palavra. Por conta dessa
palavra as pessoas foram seduzidas pelo livro.
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Mano
Brown

Toda vez que eu encontrava o Mano Brown dos Racionais MCs,


eu o convidava para ir ao sarau. Cheio de compromissos, nunca
dava certo para ele aparecer. Ele me convidou para assistir ao
show de lançamento do CD “Nada como um dia após o outro
dia”, que aconteceu lá no Brás, Centro de São Paulo. Aceitei o
convite mas disse que só ia se ele fosse no sarau da Cooperifa,
e assim ficou combinado.

No dia do show o galpão estava lotado de gente para ver o novo


CD dos Racionais, sucesso total. Milhares de pessoas. Ao tér-
mino do show entrei no camarim que estava lotado de convida-
dos e os cumprimentei pelo belo show, e lembrei ao Brown que
agora era ele quem estava devendo a visita.

Falamos durante a semana e ficou certo a sua visita ao Sarau,


mas só que eu não disse para todo mundo, até porque eu não tinha
muita certeza de que ele iria, não queria fazer papel de tolo.

Mas aí o Sarau está rolando e de repente alguém diz que o Brown


havia chegado. Agitação total no Sarau, e os telefones celulares
começaram a ser acionados com as pessoas convidando outras
para ver o líder dos Racionais no Sarau. Lembro que no dia e na
hora que ele chegou tinha em média umas sessenta pessoas, e
depois de meia hora já tinha mais de cem disputando cadeiras
vazias.

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Discreto como sempre, chegou com a turma do Rosana Bronx,


o Cascão e o Véio do Trilha Sonora do Gueto. Depois o poeta do
Gueto também foi ao microfone e também deu uma idéia sobre
a importância dos nossos encontros.

Nesse dia ficamos até a madrugada debatendo assuntos per-


tinentes à periferia, à poesia e à música. Brown voltou outras
vezes e ajudou a divulgar e dar credibilidade ao nosso movi-
mento, que não parava de crescer.

Daria um filme.
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Marcelo
Rubens Paiva

O Sarau da Cooperifa já estava bem conhecido na região por


conta de várias pessoas que passavam por lá e saíam propa-
gando nossas palavras. O GOG, rapper de Brasília que já vinha
desde a fábrica; Afro-X, que acabara de sair do Carandiru e foi lá
com a sua ex-esposa Simony; Gaspar do Záfrica que agora é um
Cooperiférico total, entre tantos outros.

Mas um que também ficou marcado foi a presença do escritor e


jornalista Marcelo Rubens Paiva, que um dia apareceu por lá para
assistir e fazer uma matéria para o jornal Folha de São Paulo.

Quando falei com ele ao telefone quase nem acreditei que ele
viria, já que ele era um cara bem conhecido e tal, e principal-
mente porque não era ligado à periferia. Lembro que ele chegou
no horário combinado, em sua van toda adaptada, o que deixou
frustradas algumas pessoas que queriam ajudá-lo.

Quando chegou, fizemos uma roda em torno dele e começamos


um bate-papo sobre o Sarau, sobre a gente, poesia e tudo o
mais; ele foi anotando e se dizia ansioso para assistir ao sarau.

Nesta quarta não tinha muita gente porque estava acontecendo


um jogo do Corinthias e River Plate pela Copa Libertadores,
inclusive ele, corinthiano roxo, saiu correndo para ver o jogo.
Antes de ir, assistiu um dos saraus mais bacanas que a gente
fez; estava todo mundo inspirado e a poesia saía com uma lumi-
nosidade indescritível.

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Ele, escritor, soube captar esse momento, e fez uma matéria de


quase meia página na Folha de São Paulo que ajudou a construir
ainda mais a nossa imagem de Movimento Cultural que a gente
precisava, e dando uma moral danada para o nosso Quilombo.
Se liga na matéria:
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Sarau transforma boteco da periferia de SP em centro cultural

Marcelo Rubens Paiva, da Folha de S. Paulo / 11.12.2002

“O boteco é o centro cultural da periferia”, diz o poeta Sérgio Vaz.


A bússola aponta para a Zona Sul.

E é num deles, o Garajão, no Jardim Maria Rosa, que nas noites de


quarta juntam-se poetas experientes, iniciantes e uma média de
cem pessoas de várias quebradas.

O público senta em torno de mesas regadas à cerveja, para ouvir


o grito semântico da perifa: poemas de denúncia social, exaltação
à consciência negra e, claro, amor. Mano Brown, dos Racionais, é
presença constante. Afro-X e Simony já apareceram por lá.

Organizados por Vaz, da Cooperifa (Cooperativa dos Artistas da


Periferia), os saraus atraem expoentes da antiga comunidade e
novos poetas, como os adolescentes Kennya e Pelezinho.

Os dois pequenos trutas apareceram como ouvintes, descobriram


um dom, e, semanalmente, lêem um novo trabalho, escrito à mão
em folhas de caderno. Ambos são tímidos, mas não relutam ao
serem chamados para declamar.

“Invadimos o galpão de uma fábrica, mas tomaram ele da gente,


e começamos a fazer saraus num boteco lá em cima. Até fizemos
uma peça, os caras bebendo cachaça, e a peça rolando”, diz Vaz.

“Os artistas da periferia sabem: ou você cava o espaço ou fica


sem nada. Já fui em saraus em outras quebradas e saquei que
precisávamos fazer o mesmo”, explica.

A balada dura até meia-noite. Como os saraus têm atraído muita


gente, os organizadores levam poemas de poetas consagrados,
de Maiakovski a Leminski, para os que aparecem de mãos vazias.

“Isto aqui está virando um aparelho cultural, cada um fala de seu


trabalho. Virou um foco de resistência dentro da periferia. Não
adianta agitar sexta e sábado e, na segunda, voltar a ser medíocre.
Temos que atacar”, diz Vaz.
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Aqui, o silêncio é uma prece. No primeiro dia, foi um choque, acha-


ram que era pagodão, mas viram o silêncio. Hoje, há uma reper-
cussão dentro da cidade”, diz Bodão, um dos sócios do bar.

Não se trata de mais um braço do movimento hip-hop, que faz


parte tanto quanto o samba.

“Não queremos o rótulo do hip-hop. Isto aqui é uma confraria


de artistas. Teve dia em que a entrada era um livro usado. Aqui,
somos todos independentes. O boteco dá combustível para a
criação”, conta Vaz, autor de Pensamentos vadios e criador de
uma biblioteca comunitária.

Ao ler um dos manuscritos de Pelezinho, estranho a frase: “Quando


um VL aperta o gatilho, o Lúcifer te conduz”. Perguntei ao pequeno
poeta o que significa “VL”. Ele me olha como se eu tivesse pergun-
tado a um playboy o que é açaí. “VL é vida louca”, respondeu. E o que
é vida louca? Ele não respondeu.

“Tem gente que escreve em casa, para desabafar as mágoas. Viu o


espaço aberto, pediu licença, declamou um poema, e, na semana
seguinte, foi convocado para vir. Estamos resgatando-os para
outro caminho”, explica o poeta e artista plástico Binho, que tem
um bar em Campo Limpo.

Binho faz intervenções em postes pela cidade, o que chama de


“Postesia”. São placas com pequenos poemas, como: “O tiro é no
nariz, mas é no peito que dói”. “Minha idéia era fazer poesia em
postes, reciclando material de campanha política. Depois, passei
a pintar e colocar nos postes, com tinta doada. Não sei ainda o
que é meu trabalho. Vêm idéias na cabeça, a gente põe.”

A prefeitura é o principal obstáculo. Ele as coloca à noite, e ela as


recolhe de dia. “A revolução tem que começar praticando, exerci-
tando, sem muita conversa”, diz.

Ele que abriu o sarau na última quarta, declamando: “No lugar


em que nasci, brincava que era tudo nosso, tinham o campinho
e os terrenos baldios, era o nosso território. Já foi interior, hoje,
periferia, com as casas cruas. A cerca virou muro, óbvio. A cidade
cresce, o muro cresce. Vieram os prédios, as delegacias.
110 Cooperifa
Cooperifa 111

Hoje, pago imposto dos impostores. Também cresci, fiquei grande,


não caibo dentro de mim. E tão solitário, sou meu próprio vizinho”.

Élmantos, 37, faz performances, como “Os Milionários Malditos,


Fome e os Pobres Mendigos”.

“Nasci na Bahia, na Fazenda Cabaceiras, onde nasceu Castro


Alves. Tenho trabalho inspirado na cultura afro, na fome, miséria,
pobreza. Meus trabalhos são mais ligados à arte social”, explica.

“É na periferia que existem os melhores artistas. Não é porque


somos pobres, humildes, largados e jogados que somos miserá-
veis. Aqui tem arte, lazer”, conta.

Pezão é fotógrafo do jornal local, O Independente. Ele cobre fute-


bol de várzea. É poeta há muitos anos, com muita coisa guardada.
Não tem livro publicado.

“Gosto de ler outros artistas, como Castro Alves. Não necessaria-


mente tem a ver com os dramas da periferia. Nesta noite, vou ler
Solano Trindade, poeta pernambucano que veio morar aqui, em
Embu, na década de 1960”, diz.

Em seguida, ele sobe e declama “Bolinha de Gude”, de Trindade.


Escrito há mais de três décadas, o poema fala de moleques que
viram assaltantes. Hoje, poderiam estar declamando.
Cap.03

Literatura, pão e poesia


Cap.03

Literatura, pão e poesia


O sarau andava a mil, e sem que percebêssemos a poesia fazia
parte do cotidiano de muita gente, que antes sequer sabia o
seu nome. Àquela altura não fazia o menor sentido guardar os
poemas nas gavetas; as pessoas devagarzinho foram desco-
brindo isso e a cada dia chegava mais e mais gente com poe-
mas nas mãos.

O Sarau da Cooperifa foi se transformando no movimento dos


sem-palco, e todo aquele ou aquela que se sentia injustiçado
pelo pão da literatura, nos procuravam – fugindo do marasmo
– às quartas-feiras para se juntar ao nosso quilombo: poetas
amadores, funcionários públicos, desempregados, aposentados,
donas de casa, advogados, comerciantes, enfermeiras, crianças
etc. Principalmente as pessoas simples, a nossa gente.

Essa gente que durante muito tempo foi e é moída dentro dos
ônibus lotados ao ir e voltar do trabalho e cuja única dose de
lazer e cultura eram as pílulas anestésicas da televisão, agora
tinha um dia para comungar a palavra, uma palavra que a gente
não tinha e que agora era a nossa voz.

No Garajão as palavras “guerreiros” e “guerreiras” a cada dia


ganhavam mais força, e a gente que não havia inventado a poe-
sia, estava inventando um novo jeito de amar a literatura, o nosso
jeito. E a gente que não tinha inventado a paz, estava querendo

114
Literatura, pão e poesia 115

guerra. E a gente que não tinha inventado o revólver que mata a


nossa gente também inventou um novo tipo de arma, a caneta.

O nome da Cooperifa começou a percorrer as quebradas e à


boca pequena dizia-se que havia um lugar onde qualquer um
podia chegar para ouvir e falar poesia e que só tinha apenas
uma regra: o silêncio é uma prece!

A periferia, que sempre foi lugar de gente trabalhadora e supos-


tamente ninho da violência, como querem as autoridades nos
fazer acreditar, ganhava, às custas de sua própria dor e da sua
própria geografia, uma nova poesia, a poesia das ruas.

Uma poesia única, que nasce do mesmo barraco de Carolina de


Jesus, que brota da panela vazia, do salário mínimo, do desem-
prego, das escolas analfabetas, do baculejo na madrugada, da
violência que ninguém vê, da corrupção e das casas de alvenaria
fincadas nos becos e vielas nas favelas das periferias da Zona
Sul de São Paulo.

Uma poesia dura, seca, sem papas na língua, ora sem crase, ora
sem vírgula, mas ainda assim poesia, com cheiro de pólvora,
com gosto de sangue, com o pus da doença sem remédio, com
o pé descalço, com medo, com coragem, com arregaço, com
melaço da cana, com o cachimbo maldito, mas que caminha
com endereço certo: o coração alheio.

A poesia tinha ganhado as ruas e nunca mais seria a mesma.

A Academia? Que comam brioches!


Literatura,
pão e poesia

A literatura na periferia não tem descanso, a cada dia chegam


mais livros. A cada dia chegam mais escritores, e, por conse-
qüência disso, mais leitores. Só os cegos não querem enxergar
este movimento que cresce a olho nu, neste início de século. Só
os surdos não querem ouvir o coração deste povo lindo e inteli-
gente zabumbando de amor pela poesia. Só os mudos, sempre
eles, não dizem nada. Esses custam a acreditar.

Não quero nem falar dos saraus que estão acontecendo aos
montes, pelas quebradas de São Paulo. Isto me tomaria muito
tempo. Haja vista as dezenas de encontros literários pipocando
nas noites paulistanas. Cada qual do seu jeito, cada qual com
seu tema, cada qual à sua maneira de cortejar as palavras.

Mas eu quero falar mesmo é da poesia que se espalhou feito


um vírus no cérebro dos homens e mulheres da periferia. Pois
é, essa mesma poesia que há tempos era tratada como uma
dama pelos intelectuais hoje vive se esfregando pelos cantos
dos subúrbios à procura de novas emoções.

O tal poema, que desfilava pela Academia, de terno e gravata,


proferindo palavras de alto calão para platéias desanimadas,
hoje anda sem camisa, feito moleque pelos terreiros, comendo
miudinho na mão da mulherada.

Vocês, por acaso, já ouviram falar do tal poema concreto? Pois


é, os trabalhadores e desempregados estão construindo biblio-

116
Literatura, pão e poesia 117

tecas com eles, nas favelas. E o lobo mau pode assoprar que
não derruba. Apesar da pouca roupa que lhe deram, está se
sentindo todo importante com sua nova utilidade.

A periferia nunca esteve tão violenta, pelas manhãs é comum ver,


nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até quatro-
centas páginas. Jovens traficando contos; adultos, romances.
Os mais desesperados cheirando crônicas sem parar. Outro dia
um cara enrolou um soneto bem na frente da minha filha. Dei-
lhe um acróstico bem forte na cara. Ficou com a rima quebrada
por uma semana.

A criançada está muito louca de história infantil. Umas já estão


tão viciadas que, apesar de tudo e de todos, querem ir para as
universidades. Viu, quem mandou esconder ela da gente? Agora
a gente quer tudo de uma vez!

Dizem por aí que alguns sábios não estão gostando nada de ver a
palavra bonita beijando gente feia. Mas neste país de pele e osso,
quem é o sábio? Quem é o feio? E olha que a gente nem queria o
café da manhã, só um pedaço de pão. Que comam brioches!

Não, não é Alice no país das maravilhas, mas também não é o


inferno de Dante. É só o milagre da poesia.

Quem odeia ler agora?


O fim do
Garajão

Quando a gente ainda estava no Garajão, o Tavinho, que mora no


Jardim Guarujá e que freqüentava o Sarau em Taboão da Serra,
vivia insistindo para a gente fazer um Sarau no bar do Zé Batidão.
Então fizemos uma ou duas vezes nas segundas-feiras. A gente
nem sequer sabia o que estava por vir.

O Sarau rolava a mil no Garajão, mas já se ouvia um boato que os


sócios queriam vender o bar; chegaram até a oferecer para eu
comprar, mas naquela época tinha acabado de ficar desempre-
gado – na verdade havia largado o emprego novamente para me
dedicar à poesia, mais tempos difíceis pela frente. Bom, como
boato era boato, fomos seguindo a vida, ninguém nunca poderia
acreditar que um dia isso iria acontecer. Mas aconteceu.

O Bar do Garajão fica na ladeira do Jardim Maria Rosa, então quem


vinha do Pirajussara, como eu, tinha uma visão ampla do lugar
antes mesmo de chegar. Nesse dia estava vindo para o Sarau com
a minha esposa Sônia, que na época era apenas minha namo-
rada, e de longe vi o bar escuro e uma multidão em frente; caralho,
parece que eu já estava sentindo um bagulho ruim no coração.

Lembro de avistar o Giba, do grupo Papo de Família, sentado na


frente e chorando; putz, já tinha pensado no pior; aliás, o que
poderia ser pior do que fechar o bar e acabar com o Sarau? Nin-
guém podia acreditar, o bar tinha sido vendido, e pelo que a gente

118
Literatura, pão e poesia 119

sabia o novo dono não queria saber de Sarau no local por que ia
virar point de rock.

Ficamos ali sentados por muito tempo como viúvos e viúvas con-
solando um ao outro, e avisando as pessoas que chegavam sobre
o falecimento do lugar. Entre lágrimas, lembro que foi um dos dias
mais tristes da minha vida, e quando olhei para aquele bar como
um amigo que acabara de morrer, também pensei que morreria.

Mas como de dor a gente entende, antes mesmo que o cadá-


ver apodrecesse enterramos nossas lágrimas, juntamos nossas
memórias com as nossas roupas de batalha e encarnamos num
outro corpo, o bar do Zé Batidão.
Bar
do Zé Batidão
(de volta pro começo)

Quando ficamos sem lugar para fazer o Sarau em Taboão da


Serra, não pensei duas vezes, fui falar com o Zé Batidão. O Zé é um
irmão, o conheço há mais de vinte anos (lembram do lançamento
do meu primeiro livro?), sua história também daria um livro.

Aos 57 anos esse mineiro chegou a ser criado como um escravo


numa fazenda em Minas Gerais onde os patrões apenas lhe ser-
viam restos de comida e o proibiam de estudar. Mas guerreiro
que é, veio para São Paulo e trabalhou de pedreiro e garçom, até
conseguir seu próprio boteco.

Por aqui nós o conhecemos desde quando ele era dono de um


bar na rua de baixo, onde eu, o Márcio, Samuca, Miltinho, Cleone,
Ceará, Chuca, Marcão, Bom, entre tantos íamos tomar cerveja,
principalmente às segundas-feiras.

Guerreiro bom, perambulou com seu sonho por outros lugares


até chegar ao bar que era do meu pai, onde eu fui criado, hoje o
Bar do Zé Batidão.

Chegamos no Zé por volta de março de 2003 e fomos acolhidos


por pouca gente, mas principalmente a família Retrão. A famí-
lia Retrão foi uma das primeiras famílias a chegar na região do
Jardim Guarujá; fomos criados todos juntos na infância e ado-
lescência, então quando o Sarau chegou timidamente no bar,
fomos acolhidos principalmente por eles.

120
Literatura, pão e poesia 121

A vida novamente se mostrava irônica: o lugar em que eu pas-


sava toda minha juventude querendo estar fora de lá era justa-
mente o lugar que abrigava o quilombo que eu ajudei a criar.

Chegamos no Batidão bem devagarzinho, e sem fazer barulho.

Como nossa base estava toda em Taboão da Serra, às quartas-


feiras o Zé mandava (até hoje o Ricardo busca) uma van trazer o
pessoal de lá, que se encontrava na praça do Campo Limpo, em
frente à casa do Pezão, para o nosso novo aparelho.

A minha amizade com o Zé já rendeu outros eventos no pas-


sado. Uma vez, há uns dez anos levei o cantor Lobão pra comer
uma feijoada e participar de um samba com a gente. Naquela
época ele já planejava lançar o disco independente nas ban-
cas de jornais. Ele acabou falando sobre o nosso encontro na
revista Caros amigos.

Tinha feito um evento com a 105FM, Gleides Xavier, que acho


que foi o maior evento, em termos de público, que aquele bairro
já viu. Até os bares da redondeza venderam cerveja.

Outra vez foi o Big Richards, que na época da fábrica tinha um


quadro no “Fantástico” chamado “Nóis na fita” e foi lá gravar.
Fizemos um samba com poesia, mas não sei por que não foi ao
ar. O Big disse, por brincadeira, que depois dessa gravação o
programa tinha sido extinto.

Outro dia levei a Amélia Nascimento, que era editora da revista


Raça e que tinha feito uma matéria comigo na Rocinha. A feijo-
ada do Zé sempre foi de primeira, por isso sempre quis levar as
pessoas lá para conhecer a nossa periferia gastronômica.

Estava quase tudo certo da Cássia Eller um dia aparecer por lá;
não deu certo porque na produção tinha muita gente...

Enfim, o bar já tinha uma certa tradição, por isso quando o Sarau
chegou por lá já estava meio que esperando a gente chegar.
122 Cooperifa
Literatura, pão e poesia 123
124 Cooperifa
Literatura, pão e poesia 125
O Sarau

Quando chegamos no Jardim Guarujá já tínhamos uma base


bem montada com poetas já experimentados no Garajão, como
Pezão, Márcio Batista, Kennya, Helber Ladislau, Samantha,
Pilar, Allan da Rosa, Rose Dórea, Binho, Preto Jota, Vilma (nega
drama), Issac (2hO), Tavinho, Pedro Lucas, o que facilitou e
muito a implantação do Sarau.

Aí foi só se juntar ao Carlos Silva, Prof. Lili, Lu Souza, Mavotsirc,


Beso, Harumi, Roberto Ferreira, Periafricania, Sales, Rosy Eloy,
Dinho Love, Elizandra, José Neto, Casulo, Fabio CRJ, Timbó, PH
Boné, Augusto, Valmir Vieira, seu Lourival, Euller do Instituto
UMOJA, Rodrigo Ciríaco, Robson Canto, Andréia, Bárbara e
Lilá, Fanti, Ricarda, Dugueto, Akins Kinte, Fuzzil, B Valente,
João Santos, Carlos Giannazi, prof. Toninho, Valter, Roberto
QT, Brava Companhia, Régis do Ação e Arte, Arákúrin, Gaspar
Záfrica Brasil, GOG, Rua 7, Asduba, César, Jair Guilherme,
Samba da Hora, Samba da quinta, Marcio e Sandra do grupo
Cavalo de Pau, grupo Versão Popular, Serginho Poeta, Adilson
Lopes, Giba, Sandra Leia, Marinho, Zé Pompeu, Wésley Nóog,
Beth Dentista, Dona Edite, Marcelo Ribeiro, Silvio Diogo, O
gringo que fala, Magrela’s Bike, Tadeu Lopes, Vicente, Fernanda,
Natália, Toni C., Bloco do beco, Ali Sati, P.A, Cláudio Laureart,
Danilo, Zinhi Trindade, Lobão, Jorge Esteves, Tadeu Zuco,
Renato Vital, Gastão e Ewald, De Lourdes, Renata Dias, Cine
Becos, DGT Filmes, Daniel Alexandrino, Mamba Negra, Sônia,

126
Literatura, pão e poesia 127

Juliana, Paula Preto, Tereza, Dinha, Diane Padial, Lygia, Antônio


OHL e mais alguns que não lembro o nome agora, para que o
Sarau sempre fosse o grande movimento de poesia que é.

Não estavam sempre na mesma noite, nem no mesmo tempo,


mas sempre na mesma sintonia.

O funcionamento do Sarau é muito simples: começa pontual-


mente às 21:00h e também acaba pontualmente às 23:00h
(às vezes acaba mais cedo) porque o bar fica na pracinha do
Guarujá e tem muitas casas em volta. Procuramos colaborar
com a vizinhança.

Lógico que um dia ou outro sempre há excessos das pessoas


que ficam em frente ao bar (tipo gente que estaciona o carro
na garagem de alguém) ou que acabam falando mais alto, mais
sem maiores ocorrências. É que tem dias que o Sarau está tão
cheio que muita gente não consegue entrar. Falando nisso, a
média de público por quarta-feira gira em torno de duzentas a
250 pessoas, mas em saraus especiais já tivemos mais de qui-
nhentas pessoas.

Pra que todos possam falar nesse espaço de duas horas reco-
menda-se que as pessoas leiam poemas de no máximo duas
laudas e evitem usar o microfone como palanque para discurso,
assim a gente ganha tempo e mais pessoas podem falar. As
poesias recitadas não sofrem qualquer tipo de censura prévia,
e cada um fala o quer, seja texto de sua autoria ou de alguém
consagrado, ou não.

Durante o Sarau evitamos instrumentos musicais, ou incentiva-


mos a cantoria de alguém, mas porque o movimento é estrita-
mente literário. No passado tivemos problemas com as pessoas
que chegavam de violão em punho querendo cantar (já teve
noite com quase dez violeiros pedindo pra tocar). A gente tam-
bém sabe que se a poesia concorrer com a música, com certeza
vai tomar de goleada.
128 Cooperifa

Mas isso nunca impediu que antes de começar o Sarau alguém,


devidamente conversado, possa dar uma canja. O Wésley Nóog
fez isso durante muito tempo. O GOG, rapper de Brasília, o
Versão Popular, o Periafricania, Carlos Silva e o Sabedoria de
Vida já fizeram pequenos shows lá.

O tempo que antecede o Sarau é o espaço que a gente usa


como centro cultural do bar, para que outras expressões artís-
ticas tenham acesso ao nosso público e vice-versa. É sempre
às 20:00h que apresentamos um esquete de teatro de grupos
como a Brava Companhia, Aço e Arte, Irmãos Carozzi, Cavalo de
Pau, entre outros.

Diga-se de passagem uma das mais belas histórias do Sarau


aconteceu justamente por conta do teatro. Quando teve uma
peça, não me lembro qual foi, um senhor da comunidade, uns 55
a sessenta anos de idade, que tomava um aperitivo no balcão do
bar me chamou e disse:

— O que vai ter aqui?

— Uma peça de teatro – respondi.

— Como assim, o teatro vai vir aqui? – perguntou estupefato.

Demorei para entender o porquê da surpresa, mas enquanto ele


me falava pude perceber que ele estava achando que o Teatro,
o prédio, iria na Cooperifa. Expliquei que era um grupo de ato-
res da região que ia encenar uma peça, que era uma comédia e
coisa e tal.

Enquanto eu falava pude perceber em seus olhos uma dor que


vinha acompanhada de um brilho cansado, mas ainda assim bri-
lhava intensamente. Ele segurou no meu braço, e quase supli-
cando me pediu:

— Por favor, pede para esperar mais dez minutos que eu vou
buscar minha esposa para ver isso também. – E saiu descendo
à esquerda do bar para buscar sua convidada. Descendo bar à
esquerda, não onde ele foi, mas mais para frente, fica o cemi-
Literatura, pão e poesia 129

tério do Jardim São Luiz. Pra quem não sabe, esse cemitério
é onde estão enterrados a maioria dos jovens assassinados
na Zona Sul de São Paulo – tem muito chumbo debaixo dessa
terra.

Pensei que ele não viria, por isso só os percebi quando o espetá-
culo já tinha começado. Notei ele acompanhado de sua esposa,
que vestia um vestido simples e quase nenhuma maquiagem,
trazia no rosto um riso triste, talvez por não estar entendendo
nada, ou quem sabe por ter sido arrancada de frente à TV, na
marra. Vai saber.

Ao vê-los, procurei ficar numa posição em que eu pudesse per-


cebê-los sem que eles me reparassem. Como não tinha mais
lugar para sentar, ficaram no balcão, do lado esquerdo do bar.

Estavam ali, quase abraçados, ele com um copo que devia ser
um rabo de galo, ela segurando um copo de refrigerante ten-
tando entender o que estava acontecendo, enquanto passeava
com os olhos pelo local.

Como a peça era uma comédia, a risada tomou conta da


Cooperifa e do casal que assistia a tudo, ora com um riso des-
trambelhado no rosto, ora com uma ponta de aflição pelo esfre-
gar das mãos.

Ele ria com discrição, um certo machismo talvez, mas ria, e ria o
tempo todo. Ela não ria, tinha orgasmos nos lábios, devia estar
rindo tudo que ainda não tinha sorrido nesta vida. Ri também,
baixinho, por solidariedade. Não assisti à peça. Assisti a eles.

Ao final da peça, como diz a regra da nossa elegância e gratidão,


todos aplaudiram de pé. Fui em direção ao casal e pude notar
que eles ainda não tinham se refeito da alegria súbita que os
tomara, e perguntei:

— E aí, gostaram?

— Gente, isso é muito legal! – disse-me ela.


130 Cooperifa
Literatura, pão e poesia 131

Ele me olhou profundamente – e ainda com um riso atrasado


nos lábios – e me abraçou com as palavras mais doces que eu
ouvi na minha vida:

— Obrigado – disse-me ele. – Sabia que eu podia morrer sem


nunca ter visto isso?

Sim, eu sabia. Não respondi pra ele, mas eu sabia que o que ele
disse era verdade.

Assim como eu sabia que a maioria daqueles jovens que esta-


vam enterrados no cemitério São Luiz também morreram sem
ter visto uma peça de teatro, um filme no cinema, um show, um
livro e um futuro.

Na hora só me veio um pensamento: “se depender da gente, nin-


guém vai para lá, mas se for, antes tem que passar no Sarau da
Cooperifa”.

Lá também passamos diversos filmes e documentários, exposi-


ções de fotografias, artes plásticas. Mas como o nosso projeto
é de literatura, lá no Sarau já teve lançamento de mais de qua-
renta livros e revistas.

Mas antes de citar quem são esses novos autores que hoje
estão por aí divulgando a literatura periférica, vou contar onde
a maioria estreou.
Jornal
Farol Urbano

A Cooperifa sempre pensou em várias maneiras para divulgar a


poesia produzida no Sarau. E, pensando nisso, em abril de 2004
nós lançamos o jornal Farol Urbano.

Era um jornal de poesia e cada poeta recebia sua cota em jornal


e o vendia a um preço de R$ 1,00 cada exemplar. A idéia não era
só pela grana, mas também fazer com ele circulasse através da
distribuição de cada um. Cada poeta pegava uma parte e ia ven-
der em algum lugar da comunidade, ou distribuía gratuitamente
para amigos e parentes.

O jornal também contava com uma agenda cultural, “Vai rolar”,


que agitava as pessoas do Sarau, e já anunciava a entrega do 1º
Prêmio Cooperifa. Também tinha textos de convidados, como o
“É isso que me dão”, de Toni C.

O professor Carlos Giannazi, hoje Deputado Estadual/PSOL,


também escreveu lá. Assuntos internacionais ficou por conta
do Ali Sati, que naquela época falava sobre os perigos da ALCA.
Eu era o editor e o Brói era o diagramador.

Já naquele tempo a gente convocava para a luta da cultura


contra o marasmo. A manchete do primeiro e único jornal Farol
Urbano foi: “Cooperifa declara guerra contra o imobilismo”.

Por conta da falta de grana o jornal ficou apenas na primeira


edição, mas foi o suficiente para agitar a comunidade. Foram
três mil exemplares editados. Em 2008 está previsto o lança-
mento de uma revista.

132
Literatura, pão e poesia 133
Cap. 04
A poesia dos deuses inferiores
Cap.04
A poesia dos deus
A biografia poética
da periferia

Este quarto livro de poesia é um álbum de fotografias da minha


memória. Uma biografia não autorizada, mas necessária, de um
povo que cresce à margem de um país sem alvará de funciona-
mento, e sem licença para ser pátria. São fotografias de uma
gente simples que vi crescer neste chão árido e escuro da senzala
moderna chamada periferia. Uma homenagem a pessoas, que
no curto tempo de uma vida, tiveram apenas o CIC e o RG como
registro de passagem pelo planeta. É o 3x4 da minha infância.
Um clique na dor alheia. É a raiva que escarra da lente dos meus
olhos... são fotos de pretos e brancos governados por uma mino-
ria colorida (esta íngua que dói na alma), arrogante e racista, que
patenteou o arco-íris e guardou os negativos em algum banco
estrangeiro. A beleza fica por conta de quem lê; não tive tempo
para amenidades, a poesia só registrou a verdade.

Assim começa a apresentação do meu quarto livro, A Poesia


dos deuses inferiores, a biografia poética da periferia, lançado
no dia 15 de julho de 2004.

Na verdade o livro era para ser uma revista sobre história de


pessoas que cruzaram meu caminho ao longo dessa vida.
Histórias de gente simples da periferia. Uma revista poética
com ilustrações e com letras bem grandes para facilitar a lei-
tura da molecada. Quem me sugeriu essa idéia foi a garotada
que eu conheci nas escolas públicas enquanto eu fazia o pro-
jeto “Poesia contra a violência”.

136
A poedia dos deuses inferiores 137
138 Cooperifa

A maioria dos alunos com quem eu conversava sempre davam


as mesmas desculpas por não gostarem de livros, mas a mais
citada foi que as letras eram muito pequenas e que cansavam
as vistas. Pedi novamente ao Brói que fizesse a diagramação e
que bolasse umas letras bem transadas, tipo grafite, mas sem
perder as características do livro, para que a molecada não
tivesse mais desculpas quando pegassem o meu livro para ler.

Acontece que as histórias foram aumentando e os poemas tam-


bém, então a saída foi editar o livro. A revista ia ficar para uma
outra ocasião.

Cheguei com o projeto do livro até o diretor da Faculdade de


Taboão da Serra, Joel Garcia, e ele aceitou que a faculdade
patrocinasse a edição de mil livros.

A capa era uma foto do Eduardo Toledo que nós tiramos da laje
do Paulão, no Jardim Guarujá, e que pega toda a quebrada da
região, incluindo o Jardim Letícia, Morro do Piolho e Jardim
Neide, quebradas onde eu cresci jogando futebol.

O livro foi uma retomada na minha poesia de protesto. Era muito


mais agressiva e bem alinhada com o rap, com quem, há muito
tempo, vivia flertando. Também era um livro de homenagens
às pessoas em quem eu sempre acreditei: Lamarca, Zequinha,
Dona Ana, Miltinho, Sabotage, Mano Brown, minha mãe etc.
Pessoas que, conhecidas ou não, sempre fizeram parte da
minha vida.

O lançamento foi em um prédio onde hoje é o banco Nossa


Caixa, num coquetel que nós preparamos para os quatrocentos
convidados que apareceram. O lançamento foi muito bem divul-
gado, e tanto minha família, Vaz, quanto da Sônia, Gramacho,
deram a maior força no dia. Quer dizer, na noite.

Livro na mão, percorri várias escolas por onde eu já havia pas-


sado, corri os shows, galeria, palestras, favelas, presídios, rádios
comunitárias, sebos e livrarias, divulgando a minha poesia, ou
revelando a Biografia poética da periferia.
A poedia dos deuses inferiores 139

Umas poesias do livro A Poesia dos deuses inferiores:

Lamarca Serviu a taça


O Capitão Lamarca Com vidro moído
Morreu como fruta madura: Aos traidores da raça.
Descansando em baixo da árvore. Navegante
Só que ele foi arrancado do pé De mares insolentes
Pelo coração de mármore Sua bússola
Da bruta ditadura. Apontava sempre para a periferia.
A rima era o rumo
Sabotage (o invasor) O remo da sina.
Mauro No ar,
Era um negro de asas. Como fumaça de fumo
Um pássaro E vermelha retina,
Com os pés no chão. Era frio
Som de ébano Era quente,
Com pele de couro, Mas nunca banho-maria.
O mouro fez ninho no canão. Um dia
O passado, Num vôo curto
Que o futuro queria Depois de uma longa metragem
Escrito em carvão, Um disparo sem rosto
Deixou de ser pó Uma bala sem gosto
Pra ser pão, Calou o personagem.
Ao se viciar em poesia. Diante disso
O poeta E sem nos esperar
De plumas negras Desfez o compromisso
E voz de pedra Seguiu de viagem
Cravou teu canto E foi cantar em outro lugar,
Preto e branco Num bom lugar.
Nas vidraças
Do mundo colorido.
Filho banto
Em carne e carcaça
140 Cooperifa

Renilda de seu Francisco E esbarra novamente


Renilda Na letra A.
já nasceu mulher. Indignado
Ainda menina Tateia a letra L
era prostituída Triste,
para matar a fome, Como é F
pra não ser lixo, sina? Não enxergar.
Não tinha registro Sem óculos,
não tinha nome, Tropeça de novo
era a filha de seu Francisco. Na letra A
Um dia, No dorso da letra B
desses sem dores, E pensou em se matar
sonhou ser artista de televisão: Na letra T
Glória, Fernanda ou Regina, Com o nó da letra O.
ser estrela. Aleijados,
Mas, Tiramos de letra,
de volta às dores Ao darmos as costas.
podia ser vista
maltratando a vagina, Coisas da vida (terra em transe)
longe das telas, Hoje
ao vivo e a cores eu vi uma criança acordada
em todas as vielas comendo pão dormido.
que tivesse um colchão. Um homem desempregado
Doente, empregando uma arma.
morreu virgem, Uma mulher vestida em trapos
sem nunca ter amado. lavando roupa cara.
Morreu seca, Um policial desalmado
sem nunca ter gozado. separando um corpo da alma.
Foda-se. Uma menina desnutrida
com a barriga cheia.
Bengalas e muletas Uma bala perdida
Um cego procurando uma veia.
Com o polegar sujo Senhoras de joelhos
Recebe o R.G. andando sem destino.
Vê a letra A Velhos com olhos vermelhos
E não entende nada. chorando como menino.
Olha a letra N Poetas loucos
Com desconfiança cuspindo razão.
A poedia dos deuses inferiores 141

Anjos e demônios A mesma miséria.


na mesma religião. As mãos grossas
A miséria na coleira da fartura Nunca fizeram carinho,
a vida fácil Pra ele? Frescura.
às custas da vida dura. No enterro
Gente sorrindo Depois que caiu do andaime,
com o coração em pranto Pouca gente
surdos ouvindo Pouco choro,
a canção dos falsos santos. Nenhuma madame.
Vi mãos calejadas Lembranças?
beijando mãos macias Só a última pá de cal.
José nas enxadas Jaz.
no cabo delas, Maria.
Com mansos olhos de fel Maria das Dores
E a boca dura de fera Filha de Saturnina
vi um país no céu Maria nasceu em Ladainha,
E o inferno na terra. No intestino de Minas,
Quase Bahia.
Cal Max O nome Maria
Max nasceu pobre, Quem deu foi o pai,
Na verdade Seu Firmino.
Nasceu Maximiliano Das Dores,
Da Silva Nobre. Sobrenome da agonia,
Curtido na pedra Quem lhe deu
Criou-se vidraça. Foi o destino.
Como o pai Na cidade grande
Também era pintor, Vendeu cosméticos,
Mas nada de Picasso, Roupas e sapatos.
Van Gogh ou Portinari. Varreu chão, lavou pratos,
Pintava parede, mansão, Mas nunca foi domesticada.
Muro e pé de árvore. Sorria
Não tinha sonhos, Por desobediência
Mas se sonhasse Por falta de instrução.
Seriam pretos Por alegria?
Seriam brancos Só se fosse descuido do coração.
Cinzas de fato. Sob o disfarce
Morava em bairro comunista De mulher maravilha
Os vizinhos tinham em comum Morreu sem avisar.
142 Cooperifa

Frágil,
Mas sem implorar.
Feito flor que rasteja,
Mas que a primavera
Não pode humilhar.

Náufrago
Sebastião
Nasceu longe do mar
Distante das ondas.
Seco,
Não tinha nem água
Pra chorar.
Cresceu
Nau sem rumo
Sem sair do lugar.
Sem prumo,
E com areia nos olhos,
Saiu por aí
Sem saber navegar.
Hoje
Mora embaixo da ponte
Num barquinho de papel
Sem remo
Sem saber nadar.
A poedia dos deuses inferiores 143
ras
Cap.05
O Rastilho da pólvora
sti
pólvora
Cap.05
O Rastilho da pólvora
O Sarau caminhava tranqüilo em suas noites de quarta-feira.
A poesia, a essa altura, já tinha arrebatado até os mais resis-
tentes moradores do bairro. Por conta de algumas matérias na
mídia, as pessoas não paravam de chegar para conhecer o nosso
quilombo. Muitas das pessoas que chegavam eram do próprio
bairro, que não acreditavam quando viam na TV que aquilo que
estava acontecendo era perto das suas casas.

Aliás, o Sarau andava tranqüilo até demais, e já havia algum


tempo vinha falando com o Pezão, com o Márcio, que a gente
precisava de alguma coisa para motivar os poetas. Chegamos
à conclusão que estava na hora de editar uma antologia com
os poetas da Cooperifa. Só tinha um problema: dinheiro. Onde
conseguir?

Onde conseguir o apoio que precisávamos a gente não sabia,


mas sabíamos que a gente ia fazer o livro, de qualquer maneira.
Aí um dia, o Claudiney Ferreira, do Itaú Cultural, me convidou
para participar da 50ª Feira do Livro de Porto Alegre, que justa-
mente caía numa quarta-feira e um pouco antes do horário do
Sarau aqui em São Paulo – acho que foi a primeira vez que eu
faltei a Cooperifa nesses quase três anos.

Já saí daqui pensando em pedir o apoio para o Itaú Cultural, e


na primeira oportunidade eu iria dar uma idéia no Claudiney a
respeito do nosso sonho. Avisei para o Pezão deixar o celular

146
O Rastilho da pólvora 147

ligado, porque qualquer novidade eu ligaria de imediato para


avisar a todos sobre qualquer notícia positiva. O Pezão criou um
clima dizendo ao microfone que eu estava no Sul e que estaria
representando a Cooperifa e também tentando conseguir apoio
para o nosso livro.

Bom, segui para a gravação do programa “Jogo de idéias”, que


aconteceu no Centro Cultural Mário Quintana e contou com a
participação do poeta Fabrício Carpinejar e o Grupo PoETs,
ambos de Porto Alegre. O programa acabou por volta de 20:00h
ou 20:30h, acho que é isso, e de lá fomos jantar no Mercadão, no
Centro. Pensei comigo: é a hora.

Conversa vai, conversa vem, uma cerveja aqui, um bolinho de


bacalhau ali, entrei de sola no assunto.

Disse que a Cooperifa queria lançar uma coletânea com os poe-


tas da comunidade. Falei da importância do livro em nossas
vidas. Disse-lhe o quanto era primordial para o nosso movimento
ter um livro nosso nas mãos. Putz, falei pra caralho. O Claudiney
ouviu atentamente e senti que ele vibrou com a idéia, mas disse
que não era ele quem decidia sobre isso, mas num gesto súbito
e nobre pegou o telefone e ligou para o Eduardo Saron, superin-
tendente de atividades culturais do IC para falar sobre o pro-
jeto. Ligou bem na minha frente, só por isso acreditei.

Ele explicou mais ou menos o que a gente queria e o porquê, o


que deveria ser feito, e como. Eu ali tentando ouvir o que o Saron
falava do outro lado, e de repente o Claudiney fecha o telefone
e diz:

— Está fechado, vamos apoiar o livro.

Porra, na hora nem acreditei de tão louca que foi a cena, e ainda
brinquei com ele:

— Mano, não mente pra mim não, mentir pra pobre dá azar. – E ri
por dentro e por fora.
148 Cooperifa

Na hora liguei para o celular do Pezão ou do Márcio, não me lem-


bro, e já eram umas 22:00h, hora de pico no Sarau, e dei a notícia
que os guerreiros e guerreiras podiam pegar seus poemas que a
gente ia fazer o nosso livro. Eu não vi, mas dizem que quando a
notícia chegou no sarau o boteco do Zé quase veio abaixo e que
foi uma das noites mais emocionantes do nosso quilombo.

Quem deu o nome do livro de Rastilho da pólvora foi o Pezão; ele


dizia que o nosso movimento estava se alastrando pela cidade.
E realmente estava, muitos saraus já estavam acontecendo por
conta da iniciativa da Cooperifa. A poesia da periferia estava come-
çando a ganhar força, tanto espiritual como geográfica, nesse
exato momento que antecedia a antologia poética do sarau.

Para contar com o apoio do Itaú Cultural a gente teria que pro-
mover um seminário sobre periferia, no bar do Zé Batidão. Então
nós fizemos. Fizemos três debates no bar com pessoas que par-
ticipavam ativamente na cultura da periferia.

No primeiro encontro trouxemos o rapper Thaíde e o jornalista


Adunias da Luz (Estação Hip Hop) para falar sobre “A influência
do rap como arte e denúncia”. E para falar sobre “Literatura de
periferia” trouxemos o Sacolinha (graduado em marginalidade)
e o Alessandro Buzo (suburbano convicto). E o cinema ficou por
conta do Zagatti, catador de papelão que mantém o Mini Cine
Tupy, um cinema para crianças carentes em Taboão da Serra,
que falou sobre seu trabalho e passou um documentário sobre
a sua história.

A Cooperifa estava agitadíssima, todo mundo queria mandar


poesias, até quem nunca tinha ido lá. A seleção não foi muito
rigorosa, por isso tem algumas pessoas que participaram do
livro e nunca mais foram lá. Tivemos algumas dificuldades na
edição, por isso tivemos a colaboração do Felipe Lindoso, que
deu a maior força para nós. A Karina Nóbrega fez a correção,
sempre respeitando o nosso dialeto. Assim como nenhuma poe-
sia foi desrespeitada para que pudesse ser publicada, cada um
escreveu o que quis, e sobre aquilo que desejou.
O Rastilho da pólvora 149

Quase tudo pronto, conseguimos – depois de muita conversa


– reunir 43 autores e um livro com 61 poesias exprimidas em
103 páginas de poemas extraídos dos becos, vielas e ruas que
formam o Sarau da Cooperifa. E para que ficasse ainda mais
democrático, cada um recebeu sua parte em livros, sem nenhum
ônus, e cada um poderia fazer o que quisesse com ele (nós reco-
mendamos que vendessem a R$ 15,00). Uns presentearam os
amigos, outros fizeram a feira com ele.

Assim, no dia 22 de dezembro de 2004 era lançada uma anto-


logia poética que iria ajudar a construir um novo momento da
literatura brasileira e fazer coro com uma nova literatura que
surgia da periferia: O Rastilho da Pólvora. Antologia poética do
Sarau da Cooperifa.

Se liga em alguns poemas do livro:


Luta de libertação (Arákúrim)1
Pensam vocês que esta luta acabou.
Estão muito enganados.
Olhem ao redor e verão,
Ouvirão, sentirão, que o racismo existe.
Sim! Agora negros e brancos
Sobrevivem em condições desumanas...
A escravidão de forma generalizada
Prende a todos em um sistema.
Não, não abaixem a cabeça, Lutem,
Lutem pelos seus direitos.
Façam como Zumbi dos Palmares,
Exija respeito, dignidade, igualdade.
Liberdade. Liberdade. Liberdade.

1 Arákúrim, Mestre Jonas, é um dos fundadores da Casa Popular de Cultura do


M’Boi Mirim, coordenador do grupo Espírito de Zumbi e agitador cultural, que entre
outras coisas produz o Panelafro, evento que acontece toda última sexta-feira do
mês na Casa de Cultura.
150 Cooperifa

A asa e o ninho (Allan Santos da Rosa)2


Ô! Ninguém nasceu pra ser
Encarcerado, fechado, preso,
Calado o verso na garganta,
Corrente no peso aceso.
Ninguém nasceu pra ser...
Vem rachar as pedras no muro,
Se ainda não sabes voar,
E a nossa pouca liberdade,
Inteira, inteirinha, a desfrutar.
Vem rachar as pedras do muro...
Pra uma criança quilombola
Se defender é inventar
Nunca é cedo, nunca é tarde,
É um eterno agora.
E no meu verso eu bebo do suco mais puro
Eu misturo, eu curo.
Provo o mel da cicatriz, artimanho a beberage.
No verso eu traço uma fogueira no escuro
Uma tempestade no futuro.
No verso eu brinco.
Eu entrelaço
Um brinco
No pedaço
Mais fofo da orelha
Daquela guerreira.
No Verso o aço, a forja, a centelha.
No verso eu acaricio o sol
A carne no cio.
Cristalizo o rio.
Me esparramo no ninho.
No meu verso o versus.

2 Allan da Rosa é escritor, poeta da Cooperifa, teatrólogo e fundador da editora


Toró, que vem dando força e voz a novos autores da periferia. É autor dos livros
Vão, Da Cabula, entre outros, e faz parte da coleção Literatura periférica da Global
Editora.
O Rastilho da pólvora 151

No verso eu risco...
Um fósforo na gasolina!
Eu sonho a revolta na esquina.|
No meu verso a corregedoria pra Rota assassina.
No verso a melodia, a vitamina.
Ô, menina...
Tão bonita
Que me fez arrepiar,
O teu sopro é ventania
Bota o mundo pra girar
Na febre da tua ginga
Eu vi tudo congelar.
Solidão é uma ciência
Que não é fácil desvendar
Desespero uma vidência
Pra onde a asa vai voar
Paixão é malemolência
É mocinha e é velha
É oração é reverência
Mas que pode até matar
Na magia da cadência
Do azul pro vermelho
É braseiro é paciência
Cama pronta pra deitar
É o pé na consciência
É mentira e é verdá.

Lições urbanas (Augusto)3


A Cidade esteriliza meus sonhos,
Mostrando o que de mais medonho
Habita nosso ser.
Oprime meus anseios de pai de família,
Empurrando-me para sinuosa trilha,
Que vejo muitos percorrer.

3 Augusto Cerqueira Neto começou lendo gibi; letrou-se, para gostar de ler. Na
coleção Vagalume achou sua vertente: leitura. É poeta da Cooperifa.
152 Cooperifa

A ausência dos meus filhos é um mal necessário,


Quinze horas por dia servindo, em troca de um salário
Que me faz enrubescer.
Na condução do trabalho, fico pensando na sina
Dos miseráveis que pelas esquinas
Dobram para sobreviver.
Nessa linha de pensamento me pego horrorizado,
Se o fundamental eu não tivesse cursado,
Em que porta iria bater?
Só sobraria a informalidade
Talvez, quem sabe, a criminalidade,
Até onde iria descer.
Meu pai me ensinou hombridade,
Somada a natural sagacidade,
Comecei as coisas entender.
É pelos meus filhos que leio,
Nas histórias do próximo me espelho,
O que faz a minha mente crescer.
Não cursei faculdade,
Mas me formei na cidade,
Que enrijeceu meu ser.
Um dia mando o patrão
Se pendurar no busão,
E vou com meus filhos correr...

Saudades de você (Dinho Love)4


Há quanto tempo
Você não aparece
Estou com saudades
Todo mundo percebe.
A sua partida
Me deixou muito abalado,
Mas graças a Deus

4 Edinaldo Gomes da Silva, confeiteiro, começou a escrever poesias no bar do Zé


Batidão, inspirado pela Cooperifa.
O Rastilho da pólvora 153

Tenho amigos do meu lado.


Os nossos filhos
Estão sendo criados
Com a mesma alegria
Que você tinha passado.
Fico sem forças
Até para trabalhar.
É muito pouca
A vontade de sonhar.
Só quero ter um sonho,
O de um dia você poder voltar.
Estou à sua espera,
Não me canso de esperar.
Não vejo a hora
Que esse dia vai chegar.
Pra você voltar
E matar a minha saudade.
Iremos juntos
Para toda a eternidade.

Vida cantada (grupo Versão Popular,5 Cocão e Leandro)


I é assim aonde só, comunidade a malandragem é sadia,
Tem quem não quer aceitar a palavra que salva.
Aqui os loco aceitou, deus é por nós, porém a voz
Não só dos manos, então por que não?
Um brinde a elas, exemplo de mulher que sempre age
Com fé, pelo que der e vier,
Representando até umas horas.
É isso que é da hora,
Junção, opinião, crítico não, pois cada um na sua então.
Quem curte um beck, nóis aqui, quem canta um rap,

5 O grupo Versão Popular nasceu em 1999, analisando a vida do povo da periferia.


Em 2004, Cocão é convidado a conhecer o Sarau da Cooperifa e muitos dos seus
planos começam a mudar. Além de compositor e rapper, passou a ser um membro
atuante da comunidade. Por influência de Cocão, os outros integrantes conheceram
e se identificaram com o movimento poético. Para ele, a Cooperifa é a escola e uma
extensão do trabalho do grupo.
154 Cooperifa

Outros lá, cabelo é black, é da raiz que fortalece,


A cada dia cresce, é forte o fundamento, importante,
Trouxe a nós conhecimento, firmou respeito.
Aqui eu tô suave e observador,
Sangue do meu sangue é o pai criador,
Professor mostrou lição,
Eu por ele, ele por nóis, seja qual for a questão.
Humilde no fuscão, caranga não é do ano,
Mesmo assim tá feliz,
Por um triz, a humildade faltou pro irmão.
Deixou uma deixa, deixou a mãe falando só pra se montar
Nos pano, como é meu chapa,
Falou, pagou de humilde, mas nem colou na aula.
Sou mais comunidade, humildade, vida cantada.
Vida cantada aqui, realidade.
É de verdade humildade, não tem disfarce,
Não tem dublê, se liga aí, sou mais comunidade.
Eu boto fé nos irmãos.

De coração, meu sentimento é sincero, o bem eu quero, venero,


Emocionante tal sorriso de criança, inocente esperança,
Participante do rap da dança,
Igual a filha de Gabi, linda quando sorri,
O Junim pequininim, já sabe o estopim que é,
É aprendiz, muito me diz, respeita tio,
Tá lado a lado, vejo o Douglas afilhado,
Já esteve presente nos palcos,
Momentos positivos me dão mais força pra cantar.
Pode crer aí Cocão, representou grandão.
Tô contigo nas idéias, irmão,
Não abro mão de ser humilde ou não,
Essa é a questão, que Deus abençoe a todos de bom coração.
Pilantra no mundão, eu sei, tem de montão.
São vários no veneno, pode crer, não é fácil não.
Ser humano traidor, até hoje eu sinto a dor,
Jesus a salvação, teve até quem duvidou.
Humilde que nem ele, nunca mais você vai ver,
Realidade sem disfarce, verdadeiro até morrer.
O Rastilho da pólvora 155

Vida cantada aqui, realidade,


É de verdade, humildade não tem disfarce,
Não tem dublê, se liga aí, sou mais comunidade,
Eu boto fé nos irmãos.
Pra mim foi bom demais registrar e cantar,
Manifesto da favela faz os manos dançar e pensar,
Se tá com nóis, vem que vem,
Se é contra nóis, vem também, o que é que tem.
Há males que traz o bem.
Sofrimento estampado no rosto de alguém.
Sorriso vazio felicidade não tem.
O que você quer dizer, diz pra mim.
Quem não quer ter uma casinha à pampa, um carrinho, um lazer,
Pode crer, fazer o quê se a cena da novela
É que comove o mundão.
Se a falta de opção é que desanda os irmão.
É desse jeito que é,
Só vaidade, ambição, se errou, perdão.
Bateu com a cara no chão,
Então levanta pra missão, dá a volta por cima.
Vamos lá, você vai ver, sofrimento não é sina,
A vida nos ensina, abrace essa chance, amanhã pode não ter.
A cena perigosa quem faz é você, sem dublê,
Sucesso ou fracasso só depende de você.
A vida é cantada do jeito que tem que ser.

Povo (José Neto)6


Eu posso. Sou possível.
Rasgo o verbo,
Vivo a vida no improviso.
Eu posso. Sou possível.
Sou um pedaço da história
Que já foi lido.

6 José Neto é poeta e nasceu em Lins, interior de São Paulo. Começou como letrista
em festivais de música na região e freqüenta há três anos o Sarau da Cooperifa.
156 Cooperifa

Uma corrente quebrada


Cunhada no grito.
Eu posso. Eu sou possível.
Assumo o rumo sem rumo.
Sem terra, sem lar...
Do tempo, nenhuma lágrima...
De tudo só tenho a ganhar,
A luta mal começa
E já vem outra batalha pra ganhar...
Eu posso. Eu sou possível.
Divido meu sorriso, meu pranto,
É tanto e tão pouco.
Eu posso. Sou possível.
Começo tudo de novo.
Sou pele. Sou raça.
Sou povo.

O vaso (Kennya)7
Estive lá presenciando vários fatos.
Sempre ali na mesa da sala, em cima da toalha.
Às vezes cheio de água,
Minha companheira que dava vida às rosas;
Que com o passar dos dias secavam
E junto com a água velha iam embora.
Estive sozinho na madrugada
E cercado de pessoas durante o dia.
Presenciei brigas, intrigas, risos e tristezas;
Dando abrigo às flores recebidas nos teus aniversários.
Estive lá com medo das festas, das ondas sonoras,
Que abalavam meu corpo de porcelana.
Fui tocado por crianças.
Esquecido por ladrões.
Admirado pelas visitas...

7 Kennya é poeta da Cooperifa e faz parte do grupo de rap Denegrir. Kennya chegou
na Cooperifa quando ainda era no Garajão. Era tão tímido que o Pezão achava que
ele não falava porque era nascido no Quênia, país africano.
O Rastilho da pólvora 157

O tempo foi passando e fui ficando velho,


Até que um dia...
Perdi meu espaço por um outro novo vaso,
Assim fui parar no teu quarto.
Onde descobri os segredos de tuas confissões.
Os mais profundos sentimentos.
Me tornei porta-caneta,
Todo sujo de tinta,
Sobra de teus poemas.
Estive lá quando você brigou com o namorado
E na parede fui lançado num ato de desabafo.
Todo quebrado me jogou no cesto de lixo.
E naquela tarde de domingo
Escutei os muitos risos, estalo de beijos;
Você voltou com seu amor!
Mais calma e arrependida me procurou na lixeira.
Juntou-me em pedaços e emendou meus cacos
Com a cola fedida, química nojenta...
Tornei-me então um cinzeiro.
Sem a beleza que encantou tantos olhos.
Sinto a falta dos perfumes das rosas
Toda vez que recebo o calor em brasa
Das bitucas de cigarros...
Eu continuo, eu estou lá.

Coração de guerreiro (Preto Jota)8


Só os guerreiros vencem e permanecem na arena,
Firmes e fortes, quebrando as algemas.
Vêem a luz na escuridão, caminham na contramão.
Com coragem e lealdade não desistem da missão.
A vida é um desafio, só vence quem tem raça.

8 Infelizmente, três meses após o lançamento do livro Preto Jota morreu assas-
sinado, também como Jhay, misteriosamente, e em cima de uma moto. Preto Jota
era um dos guerreiros mais combativos da Cooperifa e um grande incentivador de
novos grupos de rap que nasceram ali no Sarau. Sua morte trouxe-nos a certeza que
a luta contra a violência na periferia não podia parar. Além de uma profunda tristeza
que se abateu por muito tempo no nosso movimento.
158 Cooperifa

O Gladiador sobe no pódio e ergue a taça.


Mesmo no inferno, entre a rosa e a espada,
O sol nasce todo dia e fortalece a caminhada.
Disposto a subir, se tiver que ser assim.
Eu não nasci pra semente, eu vou até o fim.
Acreditando no sonho, criando a realidade.
Não é o Jardim do Éden, mas procuro a felicidade.
Retirando a pedra, me esquivando da maldade.
O cospe fogo não abate quem corre pela verdade.
Encarando a tempestade, nas ruas selvagens,
Batendo de frente com a pilantragem.
Eu quero a paz, mas vivo na guerra.
O sofrimento lhe ensina a ser leão na selva.
Discípulo sou um, não temerei mal algum.
Anjo quarenta e cinco, guerreiro do lado sul.

Propinolândia (Roberto Ferreira)9


Não é obrigatório,
É apenas uma contribuição
Pura agilização!
Tudo pode ser não visto,
Tudo pode ser mais rápido,
Tudo pode ser mais tranqüilo,
Tudo pode ser mais barato.
Mas,
Se não for possível
Não tem problemas...
A contribuição passa a ser oficial,
Com direito a papel e carimbo.
Tudo passa a ser visto,
Tudo passa a ser mais lento,
Tudo passa a ser cansativo,
Tudo passa a ser mais caro!
Você decide!

9 Professor Roberto Ferreira é poeta e freqüentador assíduo do Sarau. Paranaense,


47 anos, professor de geografia. Gosta de escrever poesias inspirado no cotidiano.
O Rastilho da pólvora 159

De copo em copo (Valmir Vieira)10


Se hoje eu choro, é por ti,
Que um dia te foste
Sem de mim se despedir.
Suportei a sua falta,
Ignorei a mim mesmo,
Terminando-me de copo em copo.
A saudade era tamanha,
Com tristeza e sem vergonha,
Me empurrava por aí.
O tempo ia passando
A saudade ia roendo,
E a gente ia tentando
Esquecer quem amou.
Mas esquecer não é só falar,
Precisa se fortalecer
Para a vida continuar.
É, seu moço, falar de amor
É tão difícil, e ele tem altos e baixos,
Coisas difíceis de explicar.

Nego ativo (Márcio Batista)11


Quem me nega trabalho, negô
Não terá outra chance de negar
Negro é homem trabalhador
Todos sabem, ninguém pode negar.
Quem me nega salário, nego
Não terá outra chance de negar
Meu suor tem valor, meu senhor
Senhor ainda se nega a pagar.

10 Valmir Vieira é poeta criado na Cooperifa, nasceu ali, junto com o Sarau no bar
do Zé Batidão. Guerreiro inconteste do movimento.
11 Márcio Batista é professor de Educação Física e poeta e um dos coordenadores
da Cooperifa e está prestes a publicar seu primeiro livro.
160 Cooperifa

Quem me nega saber, nego


Não terá outra chance de negar
Negro hoje é professor
Sabedor não se nega a ensinar.
Quem me nega cultura, nego
Não terá outra chance de negar
Cultura é quilombo pro negro
Ignorância é a sua senzala.
Quem me nega batuque, nego
Não terá outra chance de negar
Samba, funk, rap, rock, reggae, pop
Som pro Negro se expressar.
Quem me nega a palavra, nego
Não terá outra chance de negar
Vou zumbir palavras pelo mundo
De versos negros todo mundo falará.
O Rastilho da pólvora 161

Quem me nega oração, nego


Não terá outra chance de negar
Negro reza pra teus orixás,
Pra Ogum, pra Xangô e Oxalá.
Quem me nega a paz, nego
Não terá outra chance de negar
Nego-ativo livro o mundo sim senhor
Zumbizando pro mundo se libertar.
Quem nega a luta, nego
Não terá outra chance de negar
Capoeira é atitude do negro
Atitude é a força pra lutar.
Quem me nega a raça, nego
Não terá outra chance de negar
Preto é cor, negro é raça
Sou negro e com raça não vou sonegar.
Quem me nega justiça, nego
Não terá outra chance de negar
Justiça se faz com amor
Negraz, a humanidade é incapaz ao julgar.
Quem me nega amor, nego
Não terá outra chance de negar
Nega ama teu nego em nagô
Negritude pro mundo amar.
Me negaram de tudo
Nesta terra de negro sem lar
Sei que não me negas, senhor,
Sou teu filho, ninguém pode negar.
162 Cooperifa

Motivos pra sonhar (Sales, o evolucionário)12


Meu Deus era milagre, estava tudo mudado
Dentro da mesma igreja todos ajoelhados
Pedindo perdão a Deus por tanto sangue derramado
Bush, Bin Laden, Saddam e Arafat
Tony Blair, Sharon não podiam faltar
Mulçumanos e Católicos, Israelense e Palestinos
Todos unidos cantando o mesmo hino
Subindo ao altar o povo se emocionou
Era o Fidel para rezar
Pai nosso que estais no céu
A partir daquele momento foi anunciado
Que todo pranto do homem havia acabado
A Aids e o câncer não assustavam mais
Não existia adultério entre os casais
Era tudo perfeito, não dava para imaginar
Eu vi o Sabotage cantando Um bom lugar
O Run DMC estava completo
Big e 2Pac não saíram de perto.
E os rappers todos juntos fizeram uma composição
Eram trechos da Bíblia numa evangelização
A igreja não era comércio, não explorava o fiel
Ninguém dava dinheiro em troca de céu
Eu vi um nordestino pulando e cantando
Era eu, que pena...
Eu estava sonhando
Eis que você me pede
Me dê motivos pra sonhar
Meu mano, o mundo nunca foi e nunca será assim
Grécia antiga, Jerusalém, Sodoma e Gomorra
Nós pegamos este filme quase no fim
O que podia ser feito não foi feito

12 José Sales Azevedo Filho é poeta e um dos coordenadores da Cooperifa. Lembro


quando ele chegou no Sarau indicado por amigos falando de paz, mas com um boné
que tinha um fuzil estampado. Perguntei o motivo da contradição. Na outra semana
ele apareceu com o boné, mas sem o fuzil estampado. Tínhamos ganhado mais um
guerreiro pra nossa batalha. Eu, particularmente falando, ganhei mais um filho.
O Rastilho da pólvora 163

Com a desculpa que só Deus é perfeito


E o homem é cheio de defeitos
Ninguém tenta, ninguém quer se modificar
É a única coisa que não nos cobram
Me deixem sonhar.
Cap.06

Centro
Centro Cultural Cooperifa

Cultural

Cap.06
Centro Cultural Cooperifa
O Sarau da Cooperifa sempre teve como filosofia o incentivo à
leitura e a criação poética, e sempre foi um projeto de cidadania
através da literatura. Quer dizer, essa idéia foi se formando ao
longo dos dias, através de resultados que foram aparecendo.

Muita gente começou a ler livros por conta do Sarau, seduzidos


ali, no chão duro de um boteco, e sem que ninguém o obrigasse.
A revista Caros amigos tem um papel muito importante nisso
tudo, pois desde o começo de nossas atividades íamos buscar
livros e revistas para distribuí-las gratuitamente para os par-
ticipantes. Pelo menos uma vez por mês a gente estava lá na
redação da Editora Casa Amarela enchendo o saco do Sérgio de
Souza (in memorian) para descolar um pouco de conhecimento.

Além disso, usamos várias datas comemorativas para distribuir


livros como presentes que chegaram como doação ou de pre-
sente para a Cooperifa. Hoje o Zé mantém uma biblioteca den-
tro do bar, mas naquele tempo a gente presenteava as pessoas
com tudo que chegava, para que elas não só lessem o livro, mas
também o possuíssem.

Certa vez o projeto do LEIA LIVRO que o Juliano comandava


conseguiu uns cem livros novos e legais de ler para que a gente
fizesse um dia das mães diferente na comunidade: toda mãe que
fosse ao Sarau naquela semana ganhava uma rosa e um livro.

Por ironia, hoje muitos deles estão lendo seus próprios livros.

166
Centro Cultural Cooperifa 167
168 Cooperifa

Um dos nossos maiores orgulhos não é a formação de novos


poetas e escritores, mas a formação de novos leitores escri-
tores. Gente que se apegue ao livro pelo prazer da leitura e ao
fortalecimento do senso crítico, não como um meio de vida. E
através desse conhecimento adquirir coragem e humildade
para voltar à escola, ou ingressar nas universidades, como mui-
tos fizeram na Cooperifa.

Só para ficar em dois exemplos, o Dinho Love – ele ganhou esse


apelido por conta de suas poesias românticas – disse que vol-
tou a estudar porque queria escrever melhor; encarou o suple-
tivo e agora só aparece quando não tem aula.

No começo ele faltava às aulas na quarta-feira porque dizia


que o Sarau era mais importante que tudo na vida dele, que ali
sim ele aprendia alguma coisa. Mas aí ele começou a faltar no
Sarau e um dia eu perguntei a ele por que ele não estava vindo
mais; ele me respondeu que, apesar de todo amor que ele tinha
pela Cooperifa, a escola era mais importante. Disse a ele que
naquela hora ele realmente estava aprendendo alguma coisa.

O Régis faz parte do grupo de teatro Ação e Arte e há muito fre-


qüenta o Sarau.

Depois de um tempo ele sumiu porque estava cursando jorna-


lismo e não tinha mais tempo para a poesia. Pois não é que pas-
sados alguns anos ele volta e diz que para agradecer à Cooperifa
por todo incentivo para que ele voltasse a estudar, seu TCC seria
sobre o Sarau da Cooperifa? Pois é, assim foi. Hoje, formado, ele
está de volta ao grupo.

Mas como eu estava falando sobre o apego à leitura, os lança-


mento de livros também foram nossa grande arma para atin-
gir esses objetivos: leitura e criação poética. Eis alguns nomes
que lançaram livro no Sarau da Cooperifa: Toni C., Alessandro
Buzo, Ferréz, Sacolinha, Allan da Rosa, Fuzzil, Robson Canto,
Tereza, Dinha, Ridson Dugueto, Elizandra, Akins Kinte, Binho,
Serginho Poeta, Cidinha Silva, Eliane Brum, Ertom Morais,
Centro Cultural Cooperifa 169

Adilson Lopes, Big Richards, Maurício Pestana, Edson Gabriel e


Cadernos Negros. Só para ficar em alguns nomes mais conheci-
dos do Sarau.

Também não foi diferente com o cinema. Como já tem muita


gente produzindo, também levamos muitos documentários para
que a comunidade pudesse ter acesso ao cinema de qualidade
ao lado de casa, no Sarau. Se liga nos filmes:

Solano Trindade – Intensidade de uma vida simples, Cia.


Sansocrama e Núcleo de Comunicação Alternativa, 2 meses
e 23 minutos; de Rogério Pixote e Fábio Ranzani; Zumbi somos
nós, de Frente 3 de fevereiro; Balé no chão, de Lílian Santiago e
Marianna Monteiro; Direitos esquecidos: moradia na periferia, do
MTST – Acampamento Chico Mendes, Vaguei os livros e sujei com
a merda toda, de Akin Kinte, Allan da Rosa e Mateus Subverso;
Panorama: Arte na periferia, de Peu Pereira, David Vidad, Anabela
Gonçalves e Daniela Embóm; Carolina de Jesus, de Jéferson De;
O espetáculo democrático, de Guilherme César.

Também só para ficar em alguns nomes conhecidos da gente.

Em junho de 2008, será apresentado o documentário Povo lindo,


povo inteligente, que conta a história da Cooperifa, produzido
pela DGT Filmes. Não é o primeiro; em 2006 uma mulherada da
PUC-Campinas fez um vídeo-documentário para conclusão de
curso de jornalismo.

As meninas Andréia Lédio, Carolina Lasca, Isabella Haddad e a


Luana Dalmolin ficaram uns três meses curtindo o Sarau com a
gente e fizeram um belo trabalho sobre ele.

Já que estamos falando nisso, o professor Nilton Ferreira Franco


fez uma tese de mestrado sobre o Sarau da Cooperifa: O Sarau
paulistano na contemporaneidade – Cooperifa Zona Sul, 1980-
2006.

Dissertação apresentada ao programa de mestrado da Uni-


versidade Presbiteriana Mackenzie como parte das exigências
170 Cooperifa
Centro Cultural Cooperifa 171

para a obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e História


da Cultura.

Eu e o Márcio Batista fomos assistir à defesa da tese lá no


Mackenzie. Foi emocionante. Aliás, essa tese também serviu
como pesquisa para escrever esse livro. Ah, só pra constar, ele foi
aprovado com a nota 10, com louvor.

Foram TCCs e documentários e trabalhos de faculdades sobre o


Sarau da Cooperifa e a literatura periférica.
CD de poesia
da Cooperifa

O Sarau é um movimento que não pode parar, e em 2006 nós


estávamos afim de fazer um CD com poesias para registro de
áudio, já que o nosso trabalho tem tudo a ver com a oralidade.

Para conseguir o apoio do Itaú Cultural usamos o mesmo expe-


diente com o Edson Natale do departamento de música. Já
vinha falando com ele sobre a possibilidade do projeto, e ele
com o Eduardo Saron, até que um dia demos um xeque-mate
lá no Sarau da Cooperifa. E mais uma vez eles aceitaram ser
nossos parceiros.

Aliás, uma vez, no programa “Provocações”, do Antônio Abu-


jamra, na TV Cultura – SP, ele me perguntou:

— Como uma idéia anárquica consegue apoio de um banco?

Respondi a mesma coisa que havia falado para a revista Época


numa matéria da Eliane Brum, e que gerou muita polêmica.

— A periferia está aprendendo a tirar dinheiro dos bancos sem


ter que usar um revólver na mão.

Polêmicas à parte, escolhemos 26 poetas, os mais assíduos,


para participar da produção do CD. Nossa única exigência era
que não houvesse nenhum som, só a poesia, e que se preser-
vasse a poesia: sua forma, o dialeto, a gíria e a simplicidade de
cada um. A gravação do CD foi muito louca, porque todo mundo

172
Centro Cultural Cooperifa 173

queria ir ouvir a gravação do outro, por isso o estúdio vivia sem-


pre cheio de gente e poetas.

A exemplo do livro, todos os poetas iriam receber suas cotas em


discos e cada um faria o que quiser com a sua parte, recebida
sem ônus nenhum para cada participante. De mais a mais, a
emoção foi a mesma do livro, só que agora a gente já era conhe-
cido da rapaziada de lá.

O Edson Natale ficou responsável pela produção geral e Juliana


Sonoe pela produção fonográfica. Escrevi um texto no meu blog
sobre o CD e pedi que o Natale também escrevesse alguma
coisa sobre isso.
CD da Cooperifa

Salve, salve, licença pra chegar,


Acabei de pegar o CD do Sarau da Cooperifa, é simplesmente
maravilhoso.
Só o encarte do CD tem mais de 30 páginas, vixe, o negócio é de
outro mundo, o nosso mundo.
Estou dando este toque pra que ninguém diga que eu não avisei,
é dinamite pura.
É a periferia em versos, nas vozes de seus reais representantes,
sem cortes, sem censura e sem massagem.
Não é aconselhável às pessoas alienadas, nem para aqueles que
apreciam coisas pequenas, mesquinharias de supermercado,
entendeu?
Aconselho este CD para as pessoas que amam sua causa, não importa
qual, mas aqueles que trazem no coração a grandeza da luta.
Também não é aconselhável para os falsos super-heróis, que se
destacam na multidão pelo marketing dos superpoderes.
Este CD é a vitória do amor. Só isso. Nada mais.
A todos que nos que nos amam, sintam-se abraçados.
Mais feliz do que de costume, Sérgio Vaz
174 Cooperifa

Perto
Tudo começou na quarta-feira

A única certeza é que minha primeira visita aconteceu em uma


quarta-feira, mas não me lembro o mês ou se estava calor ou frio,
garoando, chovendo ou serenando. Além dessa informação óbvia,
já que o Sarau da Cooperifa acontece toda quarta-feira, sempre
às 20:00h, o que ficou na memória foi o fato de que, ao entregar o
pequeno papel ao motorista de táxi com a indicação do caminho
(algo como “vá até a Estrada do M’Boi Mirim, na altura da Igreja
de Piraporinha, vire à direita e suba até o fim, vire à direita nova-
mente até chegar ao bar do Zé Batidão”) a reação foi imediata:
“Não te aconselho a chegar até lá neste horário, e se eu fosse
você iria durante o dia. Até lá, nesta hora, o senhor me desculpe:
levo não...”.

Eu também estava com medo e aquela era a deixa perfeita para


desistir (nem o taxista quis me levar!), mas amigos próximos me
falaram com tanto entusiasmo daquele sarau que eu cheguei a
falar com outro motorista. Combinamos o preço e um adicional
para que ele ficasse comigo durante algum tempo, pois conside-
rei a possibilidade de não conseguir um táxi de volta para casa.

Fomos, chegamos e ficamos. Fui apresentado pelo Sérgio Vaz ao


Zé Batidão, o dono do local. Rapidamente eu e o taxista, Francisco,
nos sentamos à mesa; havia uma garrafa de cerveja bem gelada e
carne-de-sol com mandioca. O bar estava lotado; no lado oposto
à nossa mesa, pendurada entre as grades, uma faixa: “o silêncio
é uma prece”. Fiquei ali pensando: “será que essa idéia de gravar
um CD com as poesias desse pessoal faz sentido?”.

No bar, crianças e pessoas de todas as idades conversando e


brincando. De repente (pelo menos pra mim), todos começaram
a bater as mãos na mesa em uma dinâmica crescente, dizendo
em coro: “Nós é ponte e atravessa qualquer rio, nós é ponte e
atravessa qualquer rio, nós é ponte e atravessa qualquer rio, nós
é ponte e atravessa qualquer rio!”. Comentei com Francisco, o
taxista (ou ele comigo, já não me lembro): “E a gente estava com
medo de vir pra cá!”.
Centro Cultural Cooperifa 175

Os poetas foram chamados, um por um ao microfone, e diziam


seus poemas − uns estáticos, outros andando entre as mesas,
uns sem muita musicalidade, outros entoando seus versos como
se fossem samba, rap etc.

O CD com as poesias já fazia todo o sentido. No dia seguinte,


começou a fazer sentido também para o Itaú Cultural, quando
Eduardo Saron, superintendente de atividades culturais do insti-
tuto, visitou o Sarau da Cooperifa.

Outro fato que ficou marcado para mim foi a primeira conversa de
trabalho a respeito da produção do CD. Eu disse ao Sérgio Vaz que
poderíamos colocar algumas intervenções sonoras, pensadas
poema por poema: uma sanfona em um poema, um clarinete em
outro, um pandeiro aqui ou um sampler acolá...

É preciso dizer que, depois, aprendi a ler o olhar do Sérgio Vaz. Ele
ouve as pessoas com a maior atenção, mas, depois de um tempo
de convivência, você percebe que ele só não corta logo a conversa
por puro respeito, paciência ou comiseração mesmo: “Bem legal,
Natale! Mas olha só: o pessoal prefere só os poemas mesmo, sem
maquiagem, sem frescuras. A nossa paixão é a palavra, purinha,
purinha. Vamos deixar esse negócio de música pra lá...”.

Marcamos o estúdio e gastamos cerca de 50 horas para as grava-


ções, em seis ou sete sessões. Sugeri que eles se dividissem em
blocos: já que não conseguiríamos gravar todos no mesmo dia,
poderiam ser organizados grupos, assim não precisariam sofrer
com o trânsito de São Paulo do final da tarde, já que do bar do
Zé Batidão, que fica perto do Capão Redondo, até o estúdio, no
Butantã, era uma boa caminhada. Além disso, seria mais “produ-
tivo” se trabalhássemos com menos pessoas de cada vez. Acho
que essa minha sugestão foi feita em uma conversa com o Sérgio
Vaz, o Marco Pezão e o Jairão (Jairo Barbosa), músico do grupo
PeriAfricania. Dessa vez foram três os olhares, que podem, em
palavras, ser traduzidos para: “Esse cara não tá entendendo...”. E
foi do jeito deles: logo no primeiro dia (e em todos os outros) prati-
camente todos estiveram ali. Quem não gravava ficava proseando,
torcendo, participando... Bingo! Finalmente eu havia aprendido o
significado da palavra comunidade...
176 Cooperifa

Conheci todos os que participaram do disco. Naqueles momen-


tos que antecedem a gravação, embaixo da jaqueira (acreditam
que tem estúdio em São Paulo com jaqueira?!) a conversa corria
solta. Os poetas e poetisas eram (são) fotógrafos, professores,
motoristas, vigilantes, metalúrgicos, desempregados, donas de
casa, músicos, poetas, donos de bares, funcionários públicos,
feirantes, taxistas, babás, padeiros etc. Quando começamos a
discutir como seria a capa, eu, já escolado, primeiro perguntei o
que imaginavam. Foi consenso: “Queremos só um microfone na
capa, em uma foto lá no Zé Batidão. Nada mais...”.

O libreto do CD traz um texto do Sérgio Vaz. Parte dele diz: “...O


Sarau da Cooperifa é nosso quilombo cultural. A bússola que guia
a nossa nau pela selva escura da mediocridade. Somos o grito de
um povo que se recusa a andar de cabeça baixa ou de joelhos...”.

Pessoalmente essa experiência foi uma espécie de bússola que


ganhei para estreitar as distâncias entre o que penso e falo e o
que penso e faço (acredito que também tenha sido assim para o
Itaú Cultural). Foi bacana quando saímos em caravana para o lan-
çamento do CD. Estávamos ali, parte da equipe do Itaú Cultural,
comemorando no Zé Batidão uma conquista coletiva com a
Cooperifa e seus poetas. Cerveja, mandioca e carne-seca e muito
riso e pouco siso. Acho que isso também é poesia...

Edson Natale
Gerente do Núcleo de Música do Itaú Cultural

A realização deste que é o primeiro CD do Cooperifa só foi pos-


sível graças à parceria do grupo com o Itaú Cultural. Em 2004,
a instituição, em conjunto com a Associação Basílio da Gama,
também incentivou e ajudou a divulgar a poesia urbana da peri-
feria com a edição do livro Rastilho da Pólvora, com a obra de
53 poetas.

Para o lançamento do CD foi preciso duas festas, uma no Sarau


da Cooperifa e outra no Itaú Cultural. As duas foram loucas. Na
Cooperifa o bagulho endoidou de tanta gente e tanta emoção.
Centro Cultural Cooperifa 177

Leia o que pensam Marco Pezão e Márcio Batista sobre a parce-


ria do Itaú Cultural com a Cooperifa no CD de poesia.
Marco Pezão:
As poesias, no Sarau, sempre se orientam para a obtenção de um
viés crítico em relação às questões sociais. Sobre isto, não resta
dúvida. Mas há uma realidade prática que demanda ações que
temos que desempenhar para a manutenção da própria vida.

Hoje, tudo está dentro do capitalismo, não há quase atitudes que


possam escapar dessa lógica econômica que envolve a todos.
Carrego a opinião que se o Estado não cumpre suas obrigações
como bem o deveria, então o setor privado deve fazê-lo.

Alguém tem que fazer alguma coisa diante da urgência e de toda


carência social que existe atualmente.

Márcio Batista:
Trabalhar uma poesia crítica voltada para a melhoria cultural da
comunidade é uma das metas da Cooperifa; mas há uma situa-
ção real a se enfrentar, que é a falta de dinheiro na comunidade.
Nesse sentido, o Itaú Cultural nos ajudou muito e somos muito
gratos a ele.

É importante, hoje, a Cooperifa aproveitar esta oportunidade que


apareceu com a parceria para promover a arte na quebrada e
fazer com que esse modelo de ação positiva saia do gueto e possa
ser visto de modo mais amplo por outras pessoas. Lutar para que
as nossas atividades não caiam no isolamento, no abandono e no
esquecimento é fundamental para projetos culturais.

Leia também o pronunciamento do Eduardo Saron (Superin-


tendente do IC) no lançamento do CD da Cooperifa, lá no bar do
Zé Batidão.
Eduardo Saron:
Primeiramente compramos um sonho: não apostamos no que
vai ser pesadelo. Quando o Claudiney Ferreira me ligou de Porto
Alegre, do Programa “Jogo de idéias”, em 2004, para falar sobre o
178 Cooperifa

projeto de se fazer um livro com a Cooperifa, acabamos optando


pelo apoio, porque entendemos que a turma do movimento era
do bem.

Quanto à oportunidade de lançarmos o CD, nós tínhamos duas


opções: ou lançar no Itaú Cultural ou aqui na Cooperifa. E mais
uma vez preservamos esta relação que estabelecemos entre as
partes – nós apostamos em lançar aqui, porque é essa identidade
que, num bom sentido, queremos roubar para nós.

Queremos ver o que está acontecendo.

A atitude de virmos até aqui é justamente para dividir uma coisa


que está nítida no olho de cada um, na manifestação de cada um,
que é um pouco desta felicidade. Apostamos nesse projeto, esta-
mos juntos. Não com a intenção de amanhã ter um Banco Itaú
abrindo aqui para vocês abrirem conta. Não é com esta relação. A
intenção é dividir com vocês um pouco desta felicidade que vocês
têm aqui às quartas-feiras. Não sou eu que estou dizendo, é a
revista Época, onde o próprio Sérgio Vaz foi noticiado.

Esta não é primeira parceria, é a segunda vez que estamos aqui


juntos exercendo um trabalho. A primeira foi o livro, agora o CD.
Não sei quantas vezes mais estaremos, só sei que estamos afim
de dividir um pouco mais de felicidades com vocês.

Fazer cultura não é somente ficar lá no alto da avenida Paulista


pensando e imaginando o que o Brasil está pensando. Fazer cul-
tura é vir aqui, pisar um pouco com vocês, sentir um pouco com
vocês, e isto nós estamos fazendo – muitíssimo obrigado.

Depois de tudo isso, cada poeta recebeu sua cota de disco


pela sua participação e o Sarau da Cooperifa rolou solto no bar
do Zé Batidão, e a nossa poesia, do jeitinho que a gente faz,
estava registrada para sempre, em 26 poemas: “Mina da peri-
feria”, de Marco Pezão; “Palavras com P de alma”, da Professora
Lili; “Antônio”, de Helber Ladislau; “Cibernético”, de Carlos
Silva; “Um sonho”, de Sérgio Vaz; “Campo Limpo Taboão”, de
Binho; “Pobreza”, de Mavotsirc; “Precisão”, de Allan da Rosa;
“Andarilho”, de Célia Harumi; “Ratos, ratos, ratos”, de Marcelo
Beso; “Tudo bacana”, de Roberto Ferreira; “Um rolê”, do Grupo
Centro Cultural Cooperifa 179

PeriAfricania; “Motivos pra sonhar”, de Sales; “Ritual”, de Rosy


Eloy; “Inspiração de amor”, de Dinho Love; “Povo”, de José Neto;
“O pecado”, de Casulo; “Alienação”, de Fábio C.R.J.; “Liberdade”,
de Timbó; “Uniosversos”, de PH Boné; “Amor composto”, de
Augusto; “Nêgo Ativo”, de Márcio Batista; “A vida é cantada”,
do Grupo Versão Popular; “De copo em copo”, de Valmir Vieira;
“Menina pretinha”, de Elizandra Souza e “O homem necessita se
casar”, de Seu Lourival.
180 Cooperifa
Centro Cultural Cooperifa 181
Cap.07
1º Prêmio Cooperifa
Quando o Sarau ainda era no Garajão, no final de 2002, querí-
amos agradecer aos freqüentadores com um presente pela
participação daquele ano em nossos encontros. Nós pensamos
numa medalha como prêmio.

O Pezão falou com o Daniel e a Claudia Funari, que deram uma


força, e eu falei com o amigo e professor Said, que ajudou na
aquisição de cem medalhas que nós distribuímos como lem-
branças para os poetas e freqüentadores. Mas a idéia de um
prêmio para fortalecer os ideais da Cooperifa só estava come-
çando. Assistindo à entrega do Oscar um dia desses, eu pensei:
Por que não?

Falei com o Pezão que deveríamos criar um prêmio, principal-


mente para os poetas, mas que a gente se estendesse para pes-
soas da comunidade e para todos aqueles que direta ou indi-
retamente ajudassem a periferia a se tornar um lugar melhor
para viver.

Com a idéia do prêmio na cabeça, outro dia eu estava passeando


com a Sônia na feira de artesanato que acontece em Embu das
Artes, e vi um Dom Quixote de bronze em uma banca de um arte-
são. Mano, fiquei louco com a peça, mas ao perguntar quanto
custava, fiquei mais louco ainda: “impossível”, pensei.

A gente tinha pouca grana, só um cachê de um evento que a


gente tinha feito com a Brava Cia., mas o evento teria que ser

184
O Bonde da Cooperifa 185
186 Cooperifa
1º Prêmio Cooperifa 187

louco. Descobrimos um cara que fazia troféus para times de


futebol e fomos conhecê-lo em Santo Amaro, eu e o Pezão.
Chegamos lá, falamos com o cara, cujo nome infelizmente não
lembro, sobre o nosso objetivo e coisa e tal. O cara ficou todo
entusiasmado com o projeto e até nos mostrou um livro que ele
tinha escrito sobre ética e cidadania, e que ele apreciava muito
a nossa iniciativa.

Vimos vários modelos e cores até chegar em um com o qual a


gente simpatizou e que dava para a gente pagar. Ele era todo
de vidro, marrom, e com o logotipo da Cooperifa no alto do tro-
féu. Bonito. Encomendamos 110 troféus. A gente queria pre-
miar todas as pessoas que a gente achava que representavam
de alguma forma a periferia, não ia haver votação nenhuma: a
gente ia escolher quem a gente quisesse, não cabendo recurso
ou choradeira.

A festa de entrega tinha que ser no bar do Zé Batidão e nós está-


vamos afim de reunir o maior números de guerreiros e guerrei-
ras da periferia possíveis nesse dia. De mais a mais, a entrega
do prêmio também ia encerrar as atividades do ano de 2005,
então a perifa precisava estar em grande estilo para esse dia.

Como a gente tinha poucos troféus, a escolha não foi muito


fácil. O mais engraçado foi que no dia que receberíamos o tro-
féu, o cara que tinha escrito o livro sobre ética e cidadania não
entregou o produto combinado, e sim um inferior, alegando falta
do material, só que ele queria cobrar o mesmo preço.

Lembro que eu e a Sônia tínhamos ido buscar o dinheiro para pagar


o cara, e o Pezão ligou dizendo para a gente ir rápido para casa que
havia algum problema com os troféus. Resumindo: eu queria que
ele engolisse o troféu, e a Otília, esposa do Pé, queria bater nele,
mas aí ele fez um desconto e ficou por isso mesmo. Como disse a
Otília, nada poderia estragar nossa festa, e assim foi.

Leia abaixo quem foram os primeiros agraciados com o 1º


Prêmio Cooperifa:
188 Cooperifa

Literatura Euller Alves


Marco Pezão Mauricio Marques
Márcio Batista Sônia Pereira
Adilson Lopes
Sérgio Vaz Personalidades Importantes
A poesia dos deuses inferiores Asduba
Alessandro Buzo Suburbano Marcelo Ribeiro
Convicto Rose – musa da Cooperifa
Allan Da Rosa – Vão Família Retrão
Augusto Dra. Elizabeth Takase
Big Richards Paco Produções
Hip Hop conciência e atitude Paulo Magrão – Capão Redondo
Binho
Dinho Love Projetos
Helber Ladislau Samba da Hora
Erton De Morais Samba da Vela
José Neto Rastilho da Pólvora – Itaú Cultural
Kennya CD da Cooperifa – Itaú Cultural
Sandra Alves Ferréz – Literatura Marginal
Pillar Magrela´S Bike
Samanta Pillar Rainha da Paz
Roberto Ferreira Monte Azul
Sacolinha – Graduado em Bloco do Beco
marginalidade Casa dos Meninos
Valmir Vieira Zé Batidão
Professora Lu Ricardo – perueiro
Professora Lili Prof. Carlos Giannazi –Universi-
Tereza dade pública
Paula Preta Jeferson De – Produtora
Rose – Espírito de Zumbi Barraco Forte
Mavortisirc Mario Bibiano – Artes plásticas
Marcelo Beso Ali Sati – Empresa Amiga
Harumi Prof. Nilton Franco
Seu Lourival Itapoesia
Natália O autor na praça
Cazulo Movimento Negro Unificado–
Marinh Milton Barbosa
Elizandra Biblioteca Zumaluma
Toni – Hip Hop a lápis Favela do Inferninho
1º Prêmio Cooperifa 189

Eventos Jornalismo
Ponte Preta – festa do dia das Becos e Vielas
crianças Revista Caros amigos
PANELAFRO – Casa de Cultura Gazeta de Taboão
M’Boi Mirim Jornal Hoje – Taboão
Leia Livro Revista Rap Brasil
Casa das Rosas Programa “Provocações” – TV
Cultura
Teatro “SP Comunidade” –SPTV
Grupo Cavalo de Pau Estação Hip Hop
Manicômicos Site Real Hip Hop
Ação e Arte Site Bocada Forte
Zezé Mota – atriz
Fotografia
Música Eduardo Toledo
Carlos Silva
Versão Popular Educação
Záfrica Brasil Escola Mauro Faccio Zacaria
Grupo 2hO teve a coragem de levar os alunos
PeriAfricania no Sarau
PH Boné
Sabedoria de Vida Comunicação
Diney do Gueto Espaço Rap
Banda Varal
Fábio
Sales
Wesley Nóog
Thaíde
Mano Brown – Racionais MCs
Leandro Lehart – Art Popular
Grupo Papo de Família
Gog
Afro-X
Dexter
A Família
190 Cooperifa

Leia o texto que escrevi sobre o dia no meu blog1 no dia 22 de


dezembro de 2005:
A FESTA DE ENTREGA DO 1º PRÊMIO COOPERIFA FOI UMA
NOITE INESQUECÍVEL PARA A PERIFERIA.
A festa de entrega do Troféu Cooperifa acabou se transformando
numa noite inesquecível para as quase seiscentas pessoas que
compareceram no bar do Zé Batidão. Já prevendo a lotação do
bar, foi instalado um enorme telão na praça em frente, para que
aqueles que não conseguissem entrar não perdessem nada do
que rolava da festa.

Num clima de extrema amizade e alegria, as pessoas foram sendo


tomadas pela emoção que ocupava até os corações desavisados
dos que passaram por lá. As pessoas foram chegando aos montes,
e de todas as quebradas. À pé, de carro e de ônibus. Vans, peruas
(automotivas, é claro!) e ônibus fretados traziam guerreiros e
guerreiras para a grande noite dos heróis que travam batalhas
nas sombras.

Nada mais revolucionário que evoluir.

O bar foi todo decorado com pipas, símbolo da Cooperifa, pelos


organizadores do evento, que trabalharam até minutos antes para
que nada desse errado. É difícil citar nomes sem cometer injusti-
ças, mas... foda-se. Valeu Pezão e Otília, Márcio Batista e Danilo,
Versão Popular, Sales, Jú e Jairo, Marcelo, Sônia e Mariana, Ali
Sati, Zé, Magda, Tiana, Grupo Espírito de Zumbi, Mesa Redonda,
Mavortisic e Lu, Cleide, Rose Negona, Rose, poetas da Cooperifa
que trabalharam para que tudo desse certo, Valmir Vieira, José
Neto, Paco Produções, quem mais...? Buzo, Sacolinha, Ferréz,
Toni C., Becos e Vielas, Casa de Cultura M’Boi Mirim, Magrela’s
Bike, Brown, Afro-X, a Família, Jeferson De, Manicômicos, Carlos
Giannazi, Toninho, Valter,Big Richard... assim que for lembrando a
gente vai nomeando. Muita gente maravilhosa que foge à memó-
ria, mas está guardada no coração.

1 www.colecionadordepedras.blogspot.com
1º Prêmio Cooperifa 191

Muitas pessoas atestam que até agora ainda não entenderam


muito o que aconteceu nesta noite mágica. Muitos ainda estão
chapados pela emoção que se abateu sobre todos.

Não há nada para entender, era apenas uma noite repleta de


seres humanos brasileiros contemplando a vida como ela deveria
ser: viva!

“Desculpem as lágrimas da felicidade, é que quando o coração


tem um orgasmo ejacula pelos olhos”.
bo
coop
onde
per
Cap.08
O Bonde da Cooperifa
Sarau da
Cooperifa em Suzano

194
O Bonde da Cooperifa 195

O Sarau da Cooperifa é um movimento de poesia da periferia,


e assim tem sido durante esses seis anos de atividades, mas
isso não significa que a gente nunca saiu do bar. Saímos pou-
cas vezes, mas essas vezes foram de grande impacto para nós e
para as pessoas que nos convidaram.

Só para se ter uma idéia, quando nós fomos à cidade de Suzano


a convite do escritor Sacolinha, nós fomos em mais de sessenta
pessoas, entre poetas e nossos convidados. Depois fomos mais
umas duas vezes.
Sarau da Cooperifa
na Casa das Rosas

Um outro lugar em que o Sarau gosta muito de se apresentar é


na Casa das Rosas, presidida pelo poeta Frederico Barbosa, que
é um grande amigo da Cooperifa. Sempre que há um evento de
poesia ele nos recomenda. Entre essas várias vezes teve uma que
foi especial para a gente e para o público da Casa das Rosas.

No aniversário de São Paulo de 2006 a Casa das Rosas progra-


mou um evento intitulado “SAMPOEMAS” e eu fui convidado
para comandar o sarau da Paulista, só que caiu numa quarta-
feira, e quase no mesmo horário do Sarau da Cooperifa. Por isso
só foi o Pezão representando os poetas da Cooperifa, e eu apre-
sentando os poetas da Paulista e região.

Na Casa das Rosas o público lotou o espaço, mais de cem pes-


soas, e quase quarenta para recitar poemas para a mega Sampa.
Na Cooperifa duzentas pessoas lotavam o bar do Zé Batidão na
periferia da Zona Sul de São Paulo. Ou seja, no aniversário de
Sampa tinha mais de trezentas pessoas comungando a poesia.

A certa altura liguei para o Sarau da Cooperifa, ao vivo da Casa


das Rosas, e coloquei o celular no microfone e pudemos ouvir a
poesia rolando direto da Cooperifa.

196
O Bonde da Cooperifa 197

Depois invertemos o processo e colocaram o celular no micro-


fone da Cooperifa. Na Casa das Rosas todos aplaudiram o Sarau
da Cooperifa, e depois todos da Cooperifa aplaudiram o público
da Casa das Rosas. Loucura total.

Ambos os lados entraram em êxtase nesta noite memorável


onde todos puderam transformar tempo e espaço a favor da
humanidade.
Colecio

Cap.09
Colecionador de pedras
Livro
Colecionador
de pedras

Na esteira do barulho que a literatura da periferia estava fazendo


em dezembro de 2006 eu lanço meu quarto livro, Colecionador
de pedras, que é um resumo dos meus vinte anos de poesias.

Como era um livro comemorativo e com poucas poesias inédi-


tas, apesar de ser independente, ele teria que ficar bem produ-
zido. Sem grana novamente, consegui apoio da Eutotur Turismo,
do bom e velho amigo de sempre, Ali Sati.

Tinha pensado em uma capa com a imagem de um estilingue, e


por isso encomendei um desenho ao South, do estúdio INCA, no
Capão Redondo, mas como eu não conseguia terminar o livro o
estilingue foi perdendo o sentido. O South fez uma capa muito
bonita para mim e eu acabei não aproveitando; aproveito aqui
para agradecê-lo e desculpar-me pela deselegância.

Estava com uma idéia de pipas na capa, e tinha visto um com o


Bne (Vadiagi) que faz uns grafites bem locos e que é do Jardim
Leme, aqui em Taboão da Serra. Mano, quando eu vi o desenho
pirei na hora: é esse mesmo!

200
Colecionador de pedras 201

O livro ainda contava com textos de apresentação do Toni C. (Hip


Hop a Lápis) e o Nelson Maca (Blackitude/BA). O Eduardo Toledo
fez a produção da capa; a fotografia é do Jefferson Dias; edito-
ração Célia Harumi Seki; revisão Marcelo Beso Veronese; e aí, no
dia 6 de dezembro, no Sarau da Cooperifa, eu lancei o livro que
celebrava meus vinte anos de poesia.

Mais tarde este mesmo livro iria abrir a coleção Literatura peri-
férica, da Global Editora.
Café Literário em
Taboão da Serra

A poesia estava pulsando em todos os lugares da periferia do


Estado de São Paulo, faltava na minha cidade. Não estava afim
de fazer um outro sarau nos moldes da Cooperifa, mas também
não sabia o que eu queria fazer.

Certo dia, quando trocou o prefeito na cidade, Dr. Fernando,


pelo atual Dr. Evilásio, eu conheci a assessora do secretário da
Educação e Cultura, Celso Callegari, Marta de Betânia, e falei
das minhas intenções poéticas.

Ela, que vinha da Casa de Cultura de Santo André e conhecia


o pessoal da Casa de Hip Hop de Diadema, se empolgou muito
com a idéia, e sugeriu que a gente fizesse um sarau, mas com
um outro nome, para desvincular um pouco da Cooperifa, e
assim surgiu o Café Literário em Taboão da Serra.

Coordenei este projeto por mais de um ano e ele sempre acon-


tecia na segunda segunda-feira de cada mês. O Café não tinha
muito a ver com o Sarau da Cooperifa, mas a maioria dos poetas
era de lá.

A poesia não podia parar e a cada Café Literário a gente convi-


dava uma escola para assistir. Sem perceber, a poesia estava
novamente voltando para casa.

202
Colecionador de pedras 203
Sarau
da Coopeirfa
nas escolas

O Café Literário era realizado somente uma vez por mês, por isso
eu achava que a poesia precisava de mais tempo para sobrevi-
ver, mas, por falta de oxigênio, o Café foi acabando aos poucos.
Porém, uma coisa tinha ficado na minha cabeça: a poesia tinha
que freqüentar a sala de aula novamente.

Por isso decidimos que se os professores e alunos não podiam


freqüentar o Sarau da Cooperifa, o Sarau da Cooperifa iria até
eles, e no ano de 2007 começamos a visitar as escolas da região.

O Sarau da Cooperifa era composto mais ou menos de 15 a vinte


poetas e era realizado todas as terças-feiras. Como a Cooperifa é
muito conhecida na região, foi fácil programar esses encontros;
aliás, as diretoras e professoras estavam sempre cobrando as
nossas visitas. Novamente foi muito bom ter o contato com os
alunos, pois, como já disse anteriormente, na periferia a palavra
poesia, ou poeta, parece coisa de estrangeiro, ou extra-terres-
tre: as pessoas já ouviram falar, mas não sabem se existe.

A luta pela divulgação da poesia não podia parar, por isso visita-
mos mais ou menos umas vinte escolas, e com média de cem a

204
Colecionador de pedras 205

150 alunos por Sarau, e em cada lugar que a gente chegava era
possível perceber a alegria e o orgulho que a Cooperifa levava
às pessoas, e não só pela palavra, mas eles sentiam força na
nossa postura de levar cidadania através da literatura.

E em todo lugar que a gente ia tinha sempre alguém que tinha


algum escrito que tirava da gaveta ou da memória e participava
com a gente de forma livre e espontânea. Muitos nem acredi-
tavam que a gente era da comunidade, e muitos ficavam admi-
rados que a maioria dos escritores que estavam assistindo se
pareciam com eles. E o que é melhor, falando no mesmo idioma:
a língua do povo.

Nesse curto período de Sarau nas escolas nós falamos poesia


para mais ou menos umas quatro mil pessoas de várias comuni-
dades da periferia, e boa parte delas viraram freqüentadores do
Sarau da Cooperifa, mas o que mais marcou a gente foi a alegria
dos professores nesses encontros.

E a gente pode perceber que apesar de todo esforço do Estado


em destruir a educação, ainda tem muitas guerreiras e guerrei-
ros entrincheirados nas salas de aulas tentando impedir que
isso aconteça. Descobrimos uma outra coisa nesses encontros:
escola + poesia = conhecimento.
206 Cooperifa
Colecionador de pedras 207
Ajoelhaço

O Sarau da Cooperifa todo ano comemorava o Dia Internacional


das Mulheres com poesias dedicadas às guerreiras da comu-
nidade. Mas aí, com o tempo, a gente achou que era chover no
molhado. Pois todo mundo fazia isso, e em todos os lugares.
Outra coisa que a gente rechaçou logo de cara foi presenteá-
las com rosas, bombons ou qualquer outra coisa que alguém já
tivesse feito.

Mas mal os homens sabiam que elas tinham planejado, produ-


zido e realizado um Sarau totalmente diferente para nós. Para
nós, não por nós. Vai vendo a ironia. O Sarau neste dia come-
çou com as guerreiras nos presenteando com botões de rosa. E
logo em seguida assumiram o Sarau completamente, e nenhum
homem foi convidado para falar. Nenhum.

Todas as mulheres falaram poesia e textos que relatavam a covar-


dia e o machismo que impera no Brasil. Recitaram sobre a violên-
cia, o descaso, a sobra de sexo e a falta de orgasmo. Ficamos ali,
uns duzentos caras tomando um tremendo esculacho pelas nos-
sas grosserias ao longo de toda a existência da humanidade.

Enquanto éramos colocados no nosso devido lugar, já tínhamos


combinado que ao final do Sarau todos os poetas e convida-
dos iriam à frente, de joelhos, implorar pelo perdão feminino.
Enquanto o Sarau ia acabando, a gente ia combinando. Alguns,
ou a metade, já começava a afinar, e dizer que ajoelhar já era

208
Colecionador de pedras 209

demais, e coisa e tal. Sabíamos que não ia ser fácil fazer o


machismo se curvar, mas tínhamos que tentar.

Ao final fomos para a frente e começamos a nos posicionar para


o ajoelhaço, como ficou conhecido esse evento, enquanto as
mulheres gritavam: Ajoelha! Ajoelha! Ajoelha! A gente foi cha-
mando a galera. Uns vinham meio desconfiados, outros fugiam
para o banheiro ou para o lado de fora do bar; sei que só a
metade se curvou. Lembro que quando nos ajoelhamos grita-
mos bem alto:

— Perdoem-nos mulheres! Perdão! Perdão! Perdão!

As mulheres foram à loucura, não imaginavam que sería-


mos capazes; para falar a verdade nem nós mesmo podíamos
acreditar no nosso gesto, em março de 2006. No ano seguinte
novamente o ajoelhaço aconteceu, e uns 80% aderiram ao ato.
Apesar da maioria, a gente ainda não estava satisfeito.

Em março de 2008 nós comemoramos o Dia Internacional


das Mulheres do mesmo jeito e chamamos este dia de “Noite
da poesia e do perdão”. Neste dia mais de trezentas pessoas
apareceram no Sarau e muitos já vieram prontos para ajoelhar.
E assim aconteceu.

Ao final do Sarau, uns 150, entre poetas e freqüentadores, foram


à frente suplicar o perdão das divinas.

E aos gritos de: “Ajoelha! Ajoelha! Ajoelha!

Todos nós ajoelhamos. Todos.

Foi uma das noite mais lindas que a periferia já presenciou.

Se você quiser ver o vídeo do ajoelhaço no youtube, acesse:


http://www.youtube.com/watch?v=YfAJWR5YLsM

Fiz até um texto sobre esse dia e publiquei no meu blog, e queria
dividir com vocês:
210 Cooperifa
Colecionador de pedras 211

DIA INTERNACIONAL DAS MULHERES

Ninguém sabe ao certo quando e como surgiu a data em que se


comemora o Dia Internacional da Mulher. Um dos seus maiores
mitos é a versão capitalista americana que diz sobre a morte de
129 costureiras queimadas vivas em Nova York no ano de 1857,
originando e ratificando assim o dia 8 de março como data come-
morativa do Dia Internacional da Mulher.

Mas uma breve pesquisa pode revelar que a história não foi bem
assim, e que pode ser apenas “mais um besteirol americano” (vale
pesquisar).

O fato não invalida a luta das mulheres em busca da igualdade ao


longo da história da humanidade. Nem suas personagens, suas
heroínas, seus feitos, suas derrotas e suas glórias, mas é que a
verdade combina muito melhor com a história feminina. Poderia
citar milhares de nomes dessas infantes, e ainda assim não esta-
ria cometendo justiça.

Eu, particularmente, acho que tirando a beleza, a força, a cultura e


o caráter, as mulheres e os homens são iguais. Apesar de não ima-
ginar a Camila Pitanga de bigode e o Ronaldinho Gaúcho matando
a bola nos seios. Fisicamente, está bom do jeito que está. Mas
espiritualmente... está muito longe do ideal.

Aqui no Brasil foi preciso a Lei “Maria da Penha” (nº11340 de agosto


de 2006), que conforme o que está escrito, cria mecanismos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, para conter
a fúria assassina do sistema machista que impera na sociedade
brasileira. Avança o direito feminino, num país em que há lugares
em que um simples apito pode salvar a vida de uma mulher.

De olho em tudo isso, nesta quarta-feira, no dia 5 de março de


2008, sob uma lua linda e propícia ao perdão, aconteceu uma
das noites mais lindas da periferia de São Paulo, e no centro do
coração de muita gente: o ajoelhaço no Sarau da Cooperifa. Uma
noite de poesia e perdão. Como já é tradição, sempre nesta época
do Dia Internacional das Mulheres os poetas promovem um Sarau
dedicado às guerreiras presentes, e, mais ou menos umas 22:30h,
o recital é interrompido para que os poetas e presentes venham
à frente, e de joelhos peçam perdão por tudo de ruim e covarde
212 Cooperifa
Colecionador de pedras 213
214 Cooperifa

que nós já proporcionamos a elas, ao longo da nossa existência.


Uma noite linda! Para se ter uma idéia, havia mais ou menos umas
quatrocentas pessoas nesta quarta-feira, mais de cem mulheres, e
todas gritando ao mesmo tempo: AJOELHA! AJOELHA! AJOELHA!

Ajoelhamos.

Muitos de nós poderíamos passar a vida inteira ali, ajoelhados, em


busca do perdão, que não seríamos perdoados. E por tudo... e por
todos. O mais importante é que nós estávamos ali, de joelhos, uns
por diversão, outros por oração, aprendendo com a dor alheia o peso
de nossas mãos. Lógico que não será isso que vai mudar a condição
feminina, e nem vai apagar todas as injustiças e os crimes cometi-
dos pelos homens, longe disso. Mas é tratar a nossa mente e o cora-
ção machista da quebrada, e não só com palavras, com atitudes.

Pois às vezes pequenos gestos que acolhem a sutileza revelam en-


sinamentos profundos.

Um discurso na mão e a prática na outra. Sem maquiagem. Encarar


o problema de frente já é um grande aprendizado. Humildade é
muito mais do que uma palavra, é um sentimento.

Se por acaso vão presentear alguma mulher com buquê de rosas,


vejam se não deixaram nenhuma violeta estampada no rosto dela.
Nunca esqueçam: “...espinhos e pétalas fazem parte da primavera.”
Colecionador de pedras 215
Sarau Rap
Poesia nas ruas

O Sarau da Cooperifa foi ao longo dos anos se tornando um


grande refúgio de poetas, e a poesia da periferia que sofreu
tanta influência do rap, agora via seu quartel general tomado
por pessoas ligadas ao hip-hop.

Aí, conversei com o Eleilson, da Ação Educativa, que precisáva-


mos fazer uma parceira em um projeto que abrigasse somente
os rappers e somente a poesia. A idéia foi criar um Sarau para
o rap, que significa ritmo e poesia, mas que eles não cantas-
sem sobre a batida, somente recitassem as letras, à capela. Um
Sarau dedicado somente a rimadores e rimadoras e que esti-
mulasse ainda mais a criação poética dos envolvidos.

O Sarau RAP foi inspirado nos movimentos culturais americanos


slam e spoken word. O Sarau acontece sempre na última quinta-
feira de cada mês, desde abril de 2007. A Ação Educativa fica no
centro de São Paulo, por isso o público, estimado sempre entre
cinqüenta ou mais pessoas, são de todas as partes da cidade
(leste, oeste, sul e norte). Por isso o Centro é um lugar ideal para
o evento. E para o fim de 2008 nós estamos selecionando letras
para um livro do Sarau RAP. O Eleilson da Ação Educativa seria
mais tarde parceiro num outro projeto literário.

216
Colecionador de pedras 217

Saiba um pouco mais sobre o slam e o spoken word:

Poesia das Ruas pretende se inserir no movimento poético social


que nos Estados Unidos se denomina slam ou spoken words.
Surgido em Chicago em 1985 por iniciativa do escritor Marc
Smith, que organizava competições de poesia no Bar Green Mill, o
slam ganhou popularidade com o filme homônimo de Marc Levin
no final da década de 1990. O sucesso deste filme na Europa
propagou o slam no velho continente, principalmente na França,
fazendo de Paris a capital mundial dos slameurs, como se define
por lá, os poetas urbanos adeptos do slam.

Em São Paulo há uma cena forte de saraus, mas não há registro


de um evento que enalteça a poesia do rap com declamação, sem
música. Há importantes eventos como a rinha de MCs promovida
pelo rapper Crioulo Doido no Grajaú, Zona Sul de São Paulo, mas
um sarau só para rapper recitar suas letras, talvez o Poesia das
Ruas seja o primeiro.

No Brasil a polêmica em torno do estatuto poético da letra de


canção é antiga. Este debate, porém, se restringe às hostes da
MPB e dos poetas. Acreditamos que o rap foge a essa polêmica,
já que é na própria essência uma poesia, como o próprio nome
sugere: ritmo e poesia.
Cap.10
Poesia no ar
Outro dia estava conversando com o amigo e jornalista Eduardo
Toledo e ele havia me dito que tinha passado o revéillon de 2006
em uma cidade do interior. Na cidade, a maioria dos turistas,
assim como ele, passava a meia-noite nos bares. Só que tinha
uma curiosidade: as pessoas eram convidadas a escreverem
mensagens de paz ou coisas assim, e depois elas seriam envia-
das em balões de gás, e assim era feito em outros bares, sempre
no mesmo horário.

Na hora eu pensei: vamos fazer isso lá no Sarau da Cooperifa.


Reuni-me com a turma e todos piraram na idéia. Falei com o Ali
Sati, da Eurotur, que arrumou as bexigas. Eu e o Celsinho fomos
atrás do gás hélio e todos nós realizamos o evento.

O 1º Poesia no Ar aconteceu em abril de 2007 e contou com tre-


zentas bexigas. O Sarau aconteceu normalmente até às 22:30h,
mas depois uma pequena multidão de mais de trezentas pes-
soas se aglomeraram em frente ao Bar do Zé Batidão, e às
23:00h em ponto nossa poesia foi lançada no céu de São Paulo.

Por falta de experiência e na correria esquecemos de colocar o


endereço do remetente, para que as pessoas que fossem abor-
dadas pela nossa poesia soubessem da sua origem. Só tivemos
um retorno de uma pessoa que recebeu a bexiga, no bairro de
Pinheiros, bem distante de onde ela foi lançada. O evento foi tão

220
Poesia no ar 221
222 Cooperifa
Poesia no ar 223

bonito que não podíamos deixar de realizar. Aliás, o Poesia no Ar


já faz parte do calendário da Cooperifa.

Neste ano preparamos um Poesia no Ar bem mais planejado.


Pra começar foram confeccionados pelo artista plástico Brói,
com fotos do João Wainer, dois mil convites em forma de car-
tão postal para a distribuição aos nossos amigos. O convite,
de tão bonito, já era uma lembrança do evento. Com apoio da
Cooperifa, Zé Batidão e Ali Sati, nós fizemos quinhentas bexigas
com o logotipo da Cooperifa impresso. A Rose e a Lu mandaram
fazer papéis timbrados com o nome da Cooperifa e com o ende-
reço do bar para que todos pudessem escrever seus poemas
e suas mensagens, e para que todos aqueles que recebessem
via aérea tivessem oportunidade de responder, se quisessem,
é claro.

Neste último Poesia no Ar uma pequena multidão de mais de


quinhentas pessoas se aglomeraram em frente ao bar do Zé, e
ao final da contagem regressiva lançaram suas poesias e suas
mensagens de paz ao povo paulistano. Conforme o retorno que
tivemos, vários quintais foram visitados pela nossa poesia. E
de vários bairros distantes da Piraporinha, onde estamos. Cada
um, a seu modo, recebeu um pedaço do Sarau da Cooperifa.

Escrevi um texto para sintetizar este dia:


Batalha de abril (Poesia no ar)

Não há palavras para descrever o que foi a noite de ontem


(30/04/2008) no Sarau da Cooperifa. Quem sabe talvez “catarse”
seja a palavra para defini-la. Na noite mais fria de São Paulo a peri-
feria teve uma das noites mais lindas de sua vida. Uma das noites
mais gentis e belas de nossas vidas. Uma noite em louvor à amizade,
à palavra e à poesia. Uma noite para sempre, em nossas retinas.

Só para se ter uma idéia, nesta quarta-feira fria de véspera de


feriado, onde boa parte dos paulistanos estava entrincheirada
e mau-humorada na imensidão do trânsito em busca de dias
de paz, onde a torcida do Palmeiras, Corinthians e São Paulo
estavam em casa ou no Morumbi assistindo aos jogos, mais de
224 Cooperifa
Poesia no ar 225
226 Cooperifa

quinhentas pessoas vindas da comunidade, de outras quebradas,


outras cidades, de outros estados e até de outros países, compa-
receram ao Sarau da Cooperifa para participar do 2º Poesia no Ar,
que para sempre, devido às dificuldades, será lembrado como a
batalha de abril.

Duas escolas, Zacarias e Antônio Agio, enviaram seus alunos


para prestigiarem o evento. Os professores dessas duas escolas
acreditam que o Sarau da Cooperifa é uma extensão da sala de
aula; por conta disso, da proximidade do conhecimento, muitos
de nós estamos perdendo o medo das notas vermelhas e esta-
mos voltando a estudar. A gente achando que estava seduzindo
a escola, e a escola, dos nossos parceiros professores, nos sedu-
zindo descaradamente. Sem os muros entre nós, que bela aula
nós tivemos – muita gente já voltou a estudar por conta dessa
irmandade. Escola + comunidade = Futuro.

Bom, mas voltando à noite mágica, o Sarau transcorreu normal-


mente até às 22:30h, e vale lembrar que tinha mais ou menos uns
cinqüenta poetas para declamar, e todos recitaram normalmente.
Quer dizer, foram normalmente fantásticos!

Uma poesia mais bela do que a outra, se é que isso é possível, e


uma noite de literatura pura, como há muito não se via, como há
muito não se produzia. Mesmo por aqueles que ordenam, quem
deve escrever e quem deve ler nesta metrópole cinza e analfa-
beta, comandada por uma elite de intelectuais arrogantes que
nos odeiam por amar os livros e a criação poética. Que comam
brioches!

A esta altura, quase quinhentos balões, portando poesia e men-


sagens do Sarau da Cooperifa, devem estar chegando nos quin-
tais do povo paulistano, com um pouco do que aconteceu na noite
de quarta-feira. Dê uma olhada no seu quintal, quem sabe...

Se você não esteve lá, perdeu, porque não vai passar em nenhum
órgão da imprensa, que tem muito mais apreço à bala perdida do
que poesia. Ora, então por que será que eles tanto pedem paz?

Em frente à praça uma pequena multidão portando balões com


munição poética aguardava em posição de combate a contagem
regressiva, para o atacar a cidade enquanto ela dormia, quase
Poesia no ar 227

que inocentemente, com uma chuva de poemas contendo um gás


extremamente venenoso: a resistência.

Não banquem os tolos: estamos em guerra, e a nossa poesia iletrada,


dura e com cheiro de pólvora é apenas um artifício para confundir
os tais sábios e os que fingem que não sabem de nada. A poesia no
ar é só aviso que o nosso pequeno exército marcha corajosamente
sobre a terra, contra tudo e contra todos, mas sem esquecer o sor-
riso no rosto e os punhos cerrados. Somos nós por nós!

Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.
Coleção
Literatura Periférica

“Ser independente ou não, eis a questão.”

Passei toda a vida editando meus livros independentes, todos


os cinco, e quando já nem imaginava mais uma grande editora
na minha vida, surge a Global Editora no meu caminho.

O Eleilson, da Ação Educativa, que a essa altura já se tornara


um grande amigo, tinha pensado em uma idéia de criar uma
coleção com vários autores da periferia, uma coleção intitulada
Literatura Periférica. Pegou a idéia e conversou com o Luiz e o
Jéferson, da Global, que resolveram investir na coleção.

Para a primeira coleção foram convidados eu, Sacolinha,


Alessandro Buzo, Allan da Rosa e a Dinha, e mais para frente
se juntaram à coleção o rapper GOG e o poeta baiano Nelson
Maca, da Blackitude.

Fomos para a primeira reunião da editora, intermediada pelo


Eleilson, cheios de desconfiança, mas aos poucos fomos perce-
bendo que a editora nos queria exatamente como a gente era e
como a gente escrevia. O que para nós já era uma grande coisa,
já que estávamos trocando o certo pelo duvidoso.

De minha parte, com mais de cinco mil livros vendidos de mão


em mão ao longo desses vinte anos, achei que já estava na hora
de tentar uma nova experiência. Aliás, uma experiência que eu

228
Poesia no ar 229

aguardava há mais de vinte anos. Hoje, por exemplo, o livro pode


ser encontrado em todas as livrarias do Brasil.

A editora resolveu lançar todos os livros que nós já havíamos


lançado de forma independente, ou o livro que o autor esco-
lhesse. Eu relancei o Colecionador de pedras, que é o meu livro
que comemora os meus vinte anos de poesia. O livro ganhou
uma nova capa, mas continuou exatamente com eu o havia
concebido. Para a apresentação do livro eu convidei o escritor
Ferréz, que fez um bonito texto. E para a contracapa conti-
nuei com o texto do Nelson Maca, que já tinha escrito no livro
independente.

Como ia ser um livro com uma grande editora, eu precisava


fazer um grande lançamento, e com a cara da periferia. Escolhi
um espaço chamado CEMUR, que tem aqui em Taboão da Serra,
e preparei um grande evento para receber o livro da Global.

Na mesma noite contei com a ajuda da família e os amigos de


sempre, e realizamos um grande evento, com sarau de poesia,
rap, MPB, dança, cinema, teatro e apresentações de artistas
gerais. Foi uma noite totalmente atípica para o lançamento de
um livro. Mas foi uma noite com a minha cara, com a cara da
Cooperifa. Inesquecível.

Conforme alguns, tinha mais de quinhentas pessoas no lança-


mento. Eu lembro de um por um. Novos vôos, mas com os pés
sempre grudados no chão.
As guerreiras
da Cooperifa

Desde o início do Sarau poucas mulheres apareciam para reci-


tar; uma coisa que eu não sei explicar até hoje, já que desde os
meus primeiros livros eu ouvia alguns dizerem que o livro que
estavam comprando ou era para esposa ou para a filha. Como
se fosse uma vergonha o cara da periferia gostar de poesia. O
rap ajudou muito a mudar essa opinião.

Ora, então se são as mulheres que gostam de poesia, por que


demoraram tanto para recitar no Sarau? Mistério. Bom, mas
isso não quer dizer que elas nunca estiveram presentes. Sim,
desde sempre.

Já nos primeiros dias as mulheres é que seguram todas as ações


da Cooperifa. Hoje nada acontece sem a presença e a força da
Rose, musa da Cooperifa, e da guerreira Lu Souza, que sem-
pre estão à frente do movimento. A Rose todo mundo conhece,
é pau para toda obra, Cooperifa até a medula e está desde o
começo com a gente, só parou de vir quando voltou a estudar;
hoje escreve e recita. A Lu é professora e chegou com o Sarau em
movimento e nunca mais faltou aos nossos encontros. Hoje, além
de falar muito bem ela tem se tornado uma grande poetisa

Para não ficar só nelas, por lá estão e já passaram grandes


guerreiras que dão a luz necessária para que o movimento
nunca caia em qualidade. Mulheres fortes e inteligentes como
Otília, Sônia, Juliana, Bárbara e Lila, Tiana, Andréa, Ricarda,

230
Poesia no ar 231

De Lourdes, Lea, As irmãs Retrão, Eliane Brum, Rose Eloy,


Luciana Dias, Sandra Cavalo de Pau, prof. Lili, Samantha, Pilar,
Diane, Raíssa, Dona Edite, Elizandra, Sandra Lea, Dinha, Helena,
Viviane, Mariana, Clarice, Cema, Ligia, Kátia (Brava), Fernanda,
Vilma negra drama, dra. Elizabeth, Laide, Doca, Ju, Daniela
Mercedes, Renata Dias, Izilda, Harumi, Tânia Canhadas, Neide
Canto, Anabela, Cidinha Silva, Clarinda, Kely, Claudia, Paula
Preto, Maria Teresa, Valéria e sem contar às inúmeras guerrei-
ras que entram e saem das nossas vidas a todo instante e dão
corda nesse relógio chamado Cooperifa.

Não quero nem mencionar as mulheres que freqüentam o


Sarau, se não iria cometer injustiças, como já devo ter cometido
na lista acima. Mas elas sabem quem são e o que representam.
É tudo delas!
Semana

Mod
Periferia
233

Antro
Cap.11
fagia
Antropofagia Periférica

Periférica
Semana de Arte Moderna da Periferia

derna
a Cap.11
Antropofagia Periférica
Semana de Arte Moderna da Periferia
Como já tinha dito anteriormente, a Cooperifa foi criada e pen-
sada na Semana de Arte Moderna de 1922, e há muito nós da
Cooperifa vínhamos discutindo a possibilidade de realizar uma
Semana de Artes para nós, inspirada na Semana de Artes da
elite paulistana. Quer provocação maior?

Tinha que ser uma semana inteira de artes na periferia, e para a


periferia, nos mesmos moldes da turma de Oswald de Andrade.
Lógico que o terreno estava propício; a zona sul, principalmente,
estava abarrotada de gente fazendo arte e cultura por todos os
lados, era só reunir as tribos e devorar o nosso Bispo Sardinha
também. Estava começando a se desenhar a nossa Antropo-
fagia Periférica.

Como era um evento muito grande, a Cooperifa não ia poder rea-


lizar sozinha, por isso foram convidadas várias lideranças cul-
turais para pensar e conceber a nossa Semana.

Primeiro começamos a nos reunir às segundas-feiras no Bar do


Zé Batidão, lugar que era próximo a todos. E também uma espé-
cie de sede da Cooperifa. Para se ter uma idéia, tinha dia que
havia até quarenta pessoas discutindo sobre como e quando
seria a nossa Semana. Também tinha os palpiteiros culturais,
gente que só ia para tumultuar o ambiente, mas aos poucos
fomos enquadrando os teóricos da quebrada.

234
Antropofagia periférica 235
Semana de arte moderna da periferia

A primeira discussão foi em torno do nome, Semana de Arte


Moderna da Periferia. Muitos não queriam porque era um nome
usado pela elite cultural de São Paulo, e que devíamos ter um
nome voltado para semana cultural da periferia, ou coisa assim.
Mas quem daria bola para uma semana de artes produzida no
gueto da maior e mais preconceituosa metrópole do Brasil?
Ninguém.

Mas o que alguns não sabiam era que nós da Cooperifa que-
ríamos justamente era isso mesmo, comer esta arte enlatada
produzida pelo mercado que nos enfiam goela abaixo, e vomitar
uma nova versão dela, só que desta vez na versão da periferia.
Sem exotismos, mas carregada de engajamento. Uma arte com
endereço e com sua bússola apontada para o subúrbio, 85 anos
depois, como previu o poeta. Conforme se viu, as massas real-
mente estavam afim de comer o biscoito, fino ou não.

Bom, já tínhamos nos apropriado da escrita, e já tínhamos apro-


priado o nome sagrado da Semana, o que causou ainda mais ódio
nos intelectuais que já nos odeiam o suficiente por ousar ler e
escrever, imagina o que será que causou neles quando nós usa-
mos o mesmo desenho de Di Cavalcanti para o cartaz de 2007?!

O cartaz de 22 era apenas um arbusto seco com poucas folhas


vermelhas e sugerindo um terreno árido. Parodiando o cartaz, o
artista plástico Jair Guilherme transformou o pequeno arbusto
em um enorme Baobá e cheio de frutos, o que muitos interpre-
taram como gotas de sangue, o qualificaram como violento; nós
achamos do caralho. Isso basta.

Falando assim até parece que foi fácil decidir qual seria o logo-
tipo do nosso evento. Esse desenho demorou quase um mês para
ser aceito, isso porque o Jair, que estava incumbido do desenho,
a certa altura dispensou as opiniões e trouxe o cartaz já pronto,
depois de inúmeras tentativas não aprovadas. A Semana aconte-
ceu em novembro e as reuniões começaram em agosto.
236 Cooperifa
Antropofagia periférica 237
Semana de arte moderna da periferia
238 Cooperifa

Outra coisa que também estava certa, e que economizou tempo


e discussão, era quanto aos locais das apresentações. Todas
teriam que ser na periferia, impreterivelmente. Senão, não teria
a menor razão de ser. Também os grupos teriam que ser da que-
brada, o que já não foi tão simples assim decidir. Quando a notí-
cia que nós iríamos fazer uma Semana Periférica se espalhou
pelos quatros cantos da cidade, centenas de pessoas queriam
se inscrever para participar. Gente da Leste, da Sul, da Norte,
Oeste e Centro queria fazer parte desse acontecimento.

Muitos argumentaram que havia vários grupos que não eram da


perifa, mas eram tão ou mais importantes que nós, o que não
deixava de ser verdade. São Paulo tem muita gente importante
trabalhando para a cultura, independente da geografia, mas aí
uns diziam que muitos desses grupos tinham oportunidades
nos espaços centrais, e que agora seria a nossa vez. O que tam-
bém é uma grande verdade. O único espaço que nós temos é o
bar. O que fazer?

Começamos a exercitar a democracia, fizemos uma eleição.


Conforme o resultado, só os artistas ligados à periferia seriam
convidados, e também ficou acertado que os locais também
seriam só na quebrada, e na Zona Sul de preferência. Era onde
se concentrava a maioria dos envolvidos, e também por falta
de grana, que foi um outro problema sério, mais para frente
eu conto.

Quanto mais a gente se reunia, mais gente chegava, e alguns


que chegavam queriam mudar o que já estava decidido. Uns
faltavam nas reuniões e depois queriam saber por que isso ou
aquilo tinha sido decidido. Enquanto o tempo passava, a convi-
vência entre alguns já estava abalada.

Nós da Cooperifa, que éramos os curadores do projeto, sabí-


amos que não ia ser fácil reunir vários grupos, mas também
sabíamos que era necessário esse tipo de reunião. Teríamos
que sobreviver às diferenças em prol de um objetivo maior que
era a Semana. Particularmente nunca gostei de reunião. Tem
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Semana de arte moderna da periferia

gente que se reúne até para decidir quando vai ser a reunião. Na
Cooperifa a gente põe fogo, depois vê como apaga. Mas...

Ficou acertado que a Semana começaria num domingo, 04 de


novembro, com uma grande caminhada cultural que começa-
ria na ponte do Socorro – ponte que separa a gente dos bairros
mais centrais –, e viria pela estrada do M’Boi Mirim, que é uma
avenida importante para os bairros da região da Zona Sul, e que
é uma espécie de avenida Paulista para nós.

A Polícia Militar e o DSV não autorizaram a caminhada, por isso


viemos pela calçada, pelo menos no começo; depois invadimos
uma pista pacificamente e caminhamos nós, centenas de pes-
soas, até a Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim.

Conforme o combinado, a Semana iria começar com as artes


plásticas no Sacolão das Artes no Parque Santo Antônio. A
dança ficou para a terça-feira no CÉU Campo Limpo. Na quar-
ta-feira, a literatura aconteceu no Sarau da Cooperifa. Antes, à
tarde, teve um debate na Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim.
O cinema aconteceu na quinta-feira no CÉU Casablanca, na
vila das Belezas. Sexta-feira o teatro tomou conta no Centro
Cultural Monte Azul. Sábado a música voltou novamente ao
palco da Casa de Cultura M’Boi Mirim. E como ninguém é de
ferro, no domingo encerramos com um enorme churrasco com
os participantes no bar do Zé Batidão.

Contando assim até parece que não teve emoção nenhuma, né


não? Mas após algumas páginas eu vou contar como foi cada
dia da semana.

Com as datas e locais na mão, as reuniões deixaram de ser cen-


trais e enormes e passaram a ser por artes, o que facilitou e
muito a nossa vida. Por exemplo: em uma mesa ficavam os gru-
pos de teatro e na outra os grupos de música, e assim suces-
sivamente. E cada mesa elegia um coordenador e ele é quem
levava as dúvidas e decisões para a mesa administrativa. Sim,
tinha uma mesa para administrar os pepinos.
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A gente queria tudo, mas na tinha nada.

Quase tudo decidido, a gente só tinha uma dúvida: onde iríamos


arrumar dinheiro para o nosso sonho? Pois é, essa era a função
da administração, de onde eu fazia parte. A Cooperifa só tinha
R$3.550,00 em caixa de um evento que nós tínhamos feito na
cidade de Dois Córregos, e um pouco das camisetas promocio-
nais da semana. Diz o ditado que quem tem amigos não morre
pagão. O ditado não nos deixou na mão, nem os amigos.

O Eleilson da Ação Educativa foi um cara muito importante


nesse processo. Ele conseguiu os papéis da divulgação do
evento na Ação Educativa, o apoio da Global Editora “Literatura
Periférica”, e da Maxprint. Eu fui conversar com o pessoal do
SESC Santo Amaro, através do meu amigo Marco, que também
deu uma força legal. O Gil Marçal conseguiu o apoio da AASAOC,
e o Itaú Cultural nos ajudou com som e iluminação, o que adian-
tou e muito o processo de produção.

Aliás, quando eu pedi o som para o Itaú Cultural, acabei conhe-


cendo pessoalmente a Heloisa Buarque, e é por isso que estou
escrevendo este livro. Estava participando, eu, Rose e Cocão,
no Rio de Janeiro, do seminário ONDA CIDADÃ, a convite do
Claudiney Ferreira, quando encontrei o Eduardo Saron e falei
para ele sobre a Semana. Agradecimentos especiais ao Natale
e ao Nuno. Também especiais são os agradecimentos a DGT
Filmes e ao Coletivo Epidemia.

O dinheiro deu em cima e foi o suficiente. Não houve loucuras.


Foi suficiente e ainda sobrou dinheiro para patrocinar uma
revista da Semana de Artes, produzida pelo Gunnar, e editar a
2ª Antologia Poética do Sarau da Cooperifa, que será publicada
em junho/2008.

A Semana de Arte Moderna da Periferia contou com a partici-


pação de centenas de artistas e foi assistida por milhares de
pessoas, tanto do centro como do subúrbio. Foi pensada e pro-
duzida pelo povo simples, por artistas marginalizados pela falta
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de espaço para a produção cultural; uma semana inteira de ati-


vidades que se realizaram de baixo para cima, como profetizou
o geógrafo Milton Santos. Uma semana que mobilizou várias
comunidades. Gente que sequer tinha ido ao teatro ou assistido
um espetáculo de dança teve esta oportunidade, sem que tivesse
sido abençoado pela mão do governo. Arte de graça, dada pelo
próprio povo, em troca de luz, do brilho da auto-estima.

Talvez por isso, por ter sido um evento demasiadamente perifé-


rico, é que muita gente não pôde assistir o que aconteceu nes-
ses dias. Umas não viram por conta do velho e mau preconceito
arraigado na alma de uma burguesia racista e violenta que se
apoderou da alma paulistana.

Sabe por que afirmo isso? Porque a Semana não nos foi imposta
pelo governo. Porque ela obedecia apenas a uma linguagem,
a nossa. Porque esse macro-evento aconteceu durante uma
semana inteira em vários bairros da periferia, e as TVs, a não ser
que sejam balas perdidas, não têm o menor interesse no que
acontece de interessante na periferia.

Os jornais e revistas de grande circulação também ignoraram a


nossa Semana (saiu só no Le Monde Brasil), e se não fosse pelas
revistas e jornais, fanzines, pixações, sites e blogs comprome-
tidos com a notícia, sequer poderíamos provar que estamos
falando a verdade. Sequer poderíamos provar que um dia nós
tivemos a nossa Primavera de Praga.

Para não ser injusto, a revista Época, através da jornalista


e escritora Eliane Brum, fez uma excelente matéria sobre a
Semana, e o que estava preparando. Foram sete páginas sobre
o lado interessante da periferia. A periferia não-exótica. Aquela
que enfia o dedo na cara e chama pra briga. Aquela que muita
gente não quer ver. Por tabela, Eliane também falou sobre o
movimento literário da periferia.

O Jornal do Brasil de fato acabou virando nosso porta-voz;


o Danilo conseguia espaços generosos para a divulgação
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do evento, e acabou que o jornal virou grande parceiro da


Cooperifa. A revista Caros amigos, que sempre foi parceira nas
nossas empreitadas, também divulgou legal. A revista do Brasil,
a revista do MST, a agenda cultural da periferia, o Agora SP, a
revista Raiz, o jornal SP Imprensa, o Jornal do Bairro, o Jornal
da Tarde, o Guia da Folha, os sites Bocada forte, Real Hip Hop,
Rap Nacional, o Taboanense, entre tantos outros que agora me
fogem da memória, também foram de suma importância para o
sucesso da Semana de Arte Moderna da Periferia.

Se a gente perdeu em quantidade, ganhou em qualidade. O que


a gente queria mesmo era que o Brasil inteiro soubesse o que a
gente estava fazendo, para que o Brasil inteiro também fizesse
o que a gente estava fazendo. Sacou?

A Semana só foi possível porque várias pessoas se empenha-


ram e deixaram de lado as diferenças artísticas e pessoais. Não
seria possível sem a força do Jair Guilherme, Ademir da Brava
Companhia, Mário Bibiano, Roberto QT, Jairo, Ricarda, Márcio
Batista, Arákúrin, Euller Alves, Wagner Felipe, Cocão, Anabela, Gil
Marçal, Mavotsirc, Lu Souza, Robson Canto, Rose Dorea, Tadeu
Lopes, Casulo, Lerói, Anderson, Vicente, Sales, Gunnar, Preto Will,
Juliana, Pixote, Daniel, Peu, Bárbara e Lilá, e mais alguns nomes
que estou esquecendo, o que vai me trazer alguns problemas.

Leia o manifesto que escrevi para a Semana, inspirado no mani-


festo de Oswald e nas idéias da Cooperifa. E também um texto
que foi publicado no jornal Brasil de fato, que era uma explicação
do por que da gente realizar uma Semana de Artes na periferia:

Manifesto da Antropofagia Periférica

A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas
há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que
surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o
passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
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Semana de arte moderna da periferia

A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universi-


dade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de
violinos, só depois da aula. Contra a arte patrocinada pelos que
corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para
destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da
múltipla escolha.

A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.

A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não


quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.

Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que
transmite ilusão.

Das Artes Plásticas, que, de concreto, querem substituir os bar-


racos de madeira.

Da Dança que desafoga no lago dos cisnes. Da Música que não


embala os adormecidos.

Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.

A Periferia unida, no centro de todas as coisas.

Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais


a arte vigente não fala.

Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.

É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão.


Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não
compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo despro-
vido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do
país. Que, armado da verdade, por si só exercita a revolução.

Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipno-


tiza no colo da poltrona.

Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus,


teatros e espaços para o acesso à produção cultural.

Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avan-


tajado.
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Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra


eles? “Me ame pra nós!”.

Contra os carrascos e as vítimas do sistema.

Contra os covardes e eruditos de aquário.

Contra o artista serviçal escravo da vaidade.

Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.

A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.

Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.

É TUDO NOSSO!

Periferia moderna – por Sérgio Vaz1

A periferia, apesar da dura realidade e abandono dos governantes


em geral, está dominada pela poesia. Prova disso são os saraus
que não param de acontecer nas quebradas de São Paulo. E por
conta dessa poesia e dessa literatura que se alastra pelas ruas,
as pessoas mais simples têm se interessado um pouco mais em
ter uma vida cultural.

Um clássico exemplo é o Sarau da Cooperifa, que na ausência


de teatros, bibliotecas, livrarias, cinemas, museus e raríssimos
espaços para acesso à cultura, transformou um boteco na perife-
ria da maior cidade do Brasil em Centro Cultural.

No bar, há seis anos, todas as quartas-feiras, uma média de duzen-


tas pessoas com picos de até quatrocentas – reúnem-se para ouvir
e falar poesia. O sarau é freqüentado por toda a comunidade, e gente
de várias quebradas, inclusive do Centro. Os saraus que acontecem
na periferia têm se transformado num grande Quilombo cultural.
Muitos até os denominam de o movimento dos sem-palco.

O Sarau da Cooperifa, por exemplo, é freqüentado por poetas,


motoristas de táxis, donas-de-casa, desempregados, professores,
crianças, jovens, adultos, idosos, jornalistas, mecânicos de auto,
motoboys, advogados, estudantes etc., e muitos deles tinham ape-
nas a televisão como referência cultural. E boa parte dessa gente

1 Do jornal Brasil de fato.


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Semana de arte moderna da periferia

que nunca havia tocado num livro ou sequer ouvido uma poesia foi
seduzida ali, na porta do bar, pela literatura. Não é de embriagar?

E o que é melhor é que boa parte deste povo lindo e inteligente,


hoje, já estão segurando seus próprios livros editados nas mãos.
A maioria tem seus escritos registrados em CDs e antologias que
se alastram pelos becos e vielas da grande metrópole paulistana.
Sem contar que através da oralidade muita gente tem se tornado
grandes intérpretes de poesias de autores consagrados.

O livro, sempre tratado como pão do privilégio, chegou na periferia


através da palavra. Literalmente no boca-a-boca.

Lógico que não se trata de uma literatura melhor que a produzida


pela academia; também não é menos importante como sugerem
alguns. Muitos dos intelectuais nos acusam de assassinar a gra-
mática e seqüestrar a crase, por isso é comum ver jovens poetas
e escritores sendo enquadrados pelas canetas nervosas dos aca-
dêmicos como suspeitos de abusarem da palavra alheia.

Mas esconder e negar a educação por quinhentos anos também


não é crime?

Menos vírgulas, mais acento, mas ainda assim literatura. O mais


difícil foi acordar. Aprender é um verbo que se conjuga em grupo.

Falando em aprendizado, nesses seis anos de atividades do


Sarau da Cooperifa mais de trinta autores lançaram seus livros lá.
Boa parte deles criados ali mesmo, no solo duro do bar. Grupo de
teatro com a Brava Companhia, Ação e Arte, Cavalo de Pau, Irmãos
Carozzi, entre outros, encenaram, ali, no chão duro, as suas peças.
Pessoas com mais de 50 anos que nunca haviam ido a um teatro
assistiram ali, tomando rabo-de-galo, à sua primeira peça.

Vários documentários produzidos por jovens da região e de cine-


astas consagrados são freqüentemente exibidos ali também.
Exposição de fotos, artes plásticas, lançamento de discos e DVDs,
tudo que é e está sendo produzido pela periferia está sendo tam-
bém consumido por ela.

Hoje em dia na periferia de São Paulo, por onde quer que você
olhe tem alguma coisa acontecendo, e para todos os gostos:
Panelafro na Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim, Cine Becos e
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vielas, Sarau do Binho, Sarau Elo da Corrente, Sarau RAP, Favela


toma conta no Itaim Paulista, Quilombagem, Samba da vela,
Samba da Hora, Poesia das ruas, Saraus nas escolas, Bibliotecas
nas favelas, 1 da sul, saraus nos acampamentos do MST, o rap, o
reggae etc. A gente no centro de tudo e nem se dava conta disso.
Estamos vivendo a nossa Primavera de Praga.

Baseado neste momento de luz, a Cooperifa e um grupo de artis-


tas propõe, 85 anos depois, uma nova Semana de Artes, só que
agora oriunda da periferia. Uma nova história escrita e contada
por quem realmente vive por ela e para ela. Uma nova versão
daquela Semana, contada não de fora para dentro, mas de dentro
para fora. Construída com as mesmas mãos calejadas que cons-
truíram a cidade de São Paulo.

Uma Semana cultural criada e produzida com o mesmo suor


desse povo que tanto luta por um Brasil melhor.

A idéia da Semana não é somente propor um outro tipo de lin-


guagem, mas também um outro tipo de artista. Um artista mais
humano e solidário e uma arte que preze pela estética, mas que
também ofereça conteúdo.

Um artista formado pelo caráter da sua obra, não forjado em


pranchetas de publicitários, onde a mesma música lançada nas
rádios pela manhã é a que vende xampu, carro, miojo e cerveja no
final da tarde. E de quebra, jingle para campanhas políticas.

A Cooperifa, ao produzir a Semana, deseja estimular o interesse


pela leitura, a criação poética, o gosto pelo teatro, cinema, e
aliar-se à escola e à universidade para que a cultura seja um ele-
mento primordial para a construção de seres humanos melhores
e mais conscientes.

Moderno por aqui tem sido ousar e encarar novos desafios:


o medo ficou no período Barroco.

Veja aqui como foi a programação e logo depois eu conto como


foi cada dia da Semana.
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Semana de arte moderna da periferia

Semana de Arte Moderna da Periferia


programação:

DOMINGO: 04/11 – CAMINHADA CULTURAL


Trajeto entre o Largo do Socorro e Casa de Cultura M’Boi Mirim
(Largo de Piraporinha)

SEGUNDA: 05/11 – ARTES PLÁSTICAS


11h Oficinas de artes plásticas
19h Exposição coletiva com artistas da periferia.
Expositores: Ricardo Akemi, Boicote, Ganu, Jair Guilherme Filho,
Marcus Vinicius, Michel Onguer. A trajetória vivida na periferia.
Local: Sacolão das Artes – Parque Santo Antonio

TERÇA: 06/11 – DANÇA


14h Mostra de vídeo
14h30 Palestra /debate
15h30 Workshop /danças-intervenções poéticas
18h Marana capoeira – roda de capoeira: angola/regional.
18h30 Flor de Lis (grupo da melhor idade) coreografia: dança indígena
19h30 Projeto Diversidança coreografia: danças da peneira (flor de lis)
20h00 Cia. Sansacroma (afro contemporâneo)
20h30 Espírito de Zumbi (afro brasileiro)
Local: CEU Campo Limpo

QUARTA: 07/11 – LITERATURA


17h DEBATE: “A produção literária na periferia”,
Debatedores: Alessandro Buzo – Sacolinha, Elizandra Souza –
Antonio Eleilson. Mediação: Sérgio Vaz
Local: Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim – Piraporinha
20h SARAU DA COOPERIFA
Local: BAR DO ZÉ BATIDÃO – Chácara Santana

QUINTA: 08/11 – CINEMA


16h Dança das Cabaças – Exu no Brasil - 54´
17h15 Poeira - 5 ‘O Último da Fila - 10’ A Viagem
12’Paralelo: Espasmos de Realidade - 16’
18h15 Defina-se - 4’Nhanhoma Paulista - 2’Cosmolho - 3’
19h15 Onomatomania - 2’2 Meses e 23 Minutos
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23’ Panorama: Arte na Periferia - 50´


20h30 Conversa entre convidados e público
19h Exibição de vídeos no Terminal Capelinha
Local: CEU Casablanca – Vila das Belezas

SEXTA: 09/11 – TEATRO


8h30 Café da manhã e colóquio com coletivos teatrais
11h Band’doido apresenta “... Não é contar piada!”.
14h Cia. Diarte Teatral apresenta “Fragmentos de um poeta”
16h UMOJA apresenta demonstração de processo do
espetáculo “Quem me pariu?”
17h30 Capulanas apresenta performance “Negra Poesia”
18h Ação e Arte apresenta performance com trecho d
seu novo espetáculo “X”
19h30 Brava Companhia apresenta “A BRAVA”
Local: Centro Cultural Monte Azul – Jardim Monte Azul

SÁBADO: 10/11 – MÚSICA


16h Show com os grupos Trio Porão
16h45 Chapinha do Samba da Vela e Pagode da 27
17h30 Wesley Noóg
18h10 B Valente
18h55 Os Mamelucos
19h50 Banda A
20h40 Periafricania
21h35 Preto Soul
11h05 Versão Popular
Local: Casa Popular de Cultura M’Boi Mirim – Piraporinha
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Semana de arte moderna da periferia
A Semana

A abertura da Semana de Arte Moderna da Periferia aconteceu


em grande estilo. As irmãs Lila e Bárbara fizeram a leitura do
manifesto, e daí por diante o público pôde saborear o melhor
das artes plásticas e grafites que são produzidos na periferia.

O Jair e Mario Bibiano fizeram um trabalho de dar inveja a qual-


quer exposição internacional; ficou simplesmente lindo. Várias
obras e painéis foram expostos para o deleite dos convidados.
As bicicletas penduradas no teto davam o clima de que a gente
estava pedalando rumo ao futuro.

Todo mundo ficou abismado com a beleza do Sacolão trans-


formado em galeria de arte pelos artistas da comunidade.
Lembrei-me do Paulo Magrão que quando me viu disse: “Carái,
estou todo arrepiado com a beleza do evento”, mostrando o
braço com os pêlos eriçados. A emoção tomou conta de todos.
As crianças, sempre elas, fizeram a festa nas oficinas.

O Alan Leão fez um mosaico com o logotipo da Semana todo em


pedrinhas de azulejo que durou dez horas para produzi-lo, por
ele e uma dúzia de garotos.

A imprensa grande não veio por conta do avião, perdemos espaço


para a desgraça novamente; em compensação não faltou os
nossos parceiros de jornais locais, blogs, sites, rádio, revistas
etc. E amigos e mais amigos, gente e mais gente, irmãos e irmãs
de tudo quanto é lado. Festa linda!

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Para quem não veio, ainda há chance de saber como foi, quando
sair nas enciclopédias no futuro, ou nos livros escolares. Quem
foi uma das centenas ou milhares de pessoas de pessoas que
testemunharam esse maravilhoso encontro da arte com a peri-
feria diz que parecia o Louvre da França, ou qualquer galeria de
Milão na Itália, mesmo sem nunca ter pisado o pé no exterior.

Ué, não dizem que a arte é uma viagem?

Terça-feira – Dança
O Mestre Arákúrin comandou a noite da dança com os grupos
Espíritos de Zumbi, Flor de lis, Diversidança e Cia. Sacrossanta.

Foi simplesmente maravilhoso!

Teve gente que chorou diante de tanta beleza e dedicação dos


bailarinos da periferia, pergunte ao Jairo e ao Buzo que chora-
ram no dia. Sim, foi de chorar, mas de alegria, de esperança pela
nossa molecada cheia de talento, vencendo os preconceitos e
as velhas dificuldades.

O CÉU parecia o Céu, se é que ele existe, e se é que você me


entende.

A Semana realmente estava sendo grande: cheia de arte!

E tudo feito por nós, para nós; quem é que é o fraco agora,
hein?

Moral da história: quer queiram ou não, o lago dos cisnes estava


cheio de patinho feio aprendendo a nadar, e se jogassem óleo na
água, a gente afogava o ganso.
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Quarta-feira – Literatura (600 pessoas no Sarau da Cooperifa)


A periferia de São Paulo parou para acompanhar o dia da litera-
tura na nossa Semana de Arte, gente de todas as quebradas, de
todos os estados e até de outros países ..

À tarde o auditório da Casa de Cultura M’Boi Mirim ficou lotado


para acompanhar o debate sobre “Produção literária na perife-
ria”, com os convidados Sacolinha, Alessandro Buzo, Eleilson
Leite, Elizandra e eu na mediação.

O debate foi muito rico e importante, quase duas horas falando


e discutindo sobre a nossa literatura e sobre a nossa produção.
O público bombardeou os convidados com inúmeras perguntas
interessantes, foi bem louco!

Só de imaginar que o debate foi promovido por nós, apresentado


por nós e consumido também por nós, já foi um grande resul-
tado. Todo mundo pirou. Estamos aprendendo a fazer! Estamos
aprendendo a fazer!

A palavra de ordem era união, o tempo inteiro as pessoas falavam


em união. Meu, que coisa maravilhosa! Nunca achei que este dia
chegaria, a gente fazendo e escrevendo a nossa história.

Perguntem a quem foi, a casa estava cheia, em plena tarde de


quarta-feira, para ouvir o que os representantes da literatura
periférica tinham a falar, sem falar que boa parte da platéia era
de poetas e escritores que, por diversas vezes, inverteram a
mesa do debate.

Bom, se estava bom ficou melhor: faltando dez minutos para


as 20:00h saímos todos correndo pro bar do Zé Batidão para
participar do Sarau da Cooperifa Especial. A noite mágica só
estava começando. Ao chegar, todos fomos surpreendidos pela
decoração do local, tente imaginar: os livros desciam pelo teto
em linhas invisíveis até as mesas, pipas de pano flutuavam pelo
ambiente, garrafas com poesias dos poetas foram decoradas
e distribuídas nas mesas, cartazes com poemas forraram as
paredes e o logotipo da Semana foi projetado no teto do bar,
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Semana de arte moderna da periferia

coisa do nosso mundo!Parabéns às meninas e rapazes: Lila,


Bárbara, Fernanda, Cocão, Rose, Augusto, Márcio, prof. Lu, entre
outros que não me lembro agora, perdão. Quem chegava já era
recebido por este ambiente colorido e aconchegante que é o
Sarau da Cooperifa. Abraços e mais abraços.

O Sarau começou com uma apresentação do Grupo Espírito de


Zumbi na praça em frente ao bar, que foi tomada por uma mul-
tidão que não conseguiu entrar. Nesse dia, só do lado de fora
tinha mais de trezentas pessoas – eu disse do lado de fora. Do
lado de dentro mais umas trezentas pessoas, catarse total.

Daí por diante não tenho palavras para expressar o que real-
mente aconteceu, tamanha beleza e profundidade. Só para se
ter uma idéia, o Sales leu sua poesia “Evolucionário” em espa-
nhol. O Alan da Rosa leu sua poesia tocando berimbau, o Márcio
Batista fez uma leitura coletiva dos seus poemas, Mavot e Lu
fizeram uma apresentação cinematográfica, eu lancei meu
clipe poético, e por aí a noite seguiu distribuindo sonhos de uma
periferia melhor.

Pergunte a quem foi, pergunte às pessoas privilegiadas que esti-


veram no exato momento que a história estava sendo escrita. O
Sarau acabou quase meia-noite, e para terminar ganhamos um
presente do Alan Leão, um mosaico com pedrinhas de azulejo
formando o logo da Cooperifa, da hora. Dizem que tem gente lá
até agora.

Depois desta noite a poesia e a literatura da periferia nunca


mais serão as mesmas, como eu disse anteriormente: “estamos
aprendendo a fazer!”.

Quinta-feira – Cinema
O cinema foi o grande tema da Semana de Arte Moderna da
Periferia, e para variar a rapaziada preparou um coleção de filmes
periféricos de arrasar. Ao velho e bom estilo Glauber Rocha, “uma
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câmera na mão e uma idéia na cabeça”, os nossos cineastas pre-


pararam um seleção magnífíca de filmes e documentários.

Como é bom a gente se ver na telona, como a gente gosta de


ser visto!

O cinema talvez seja a arte mais cara e distante para nós. Por
isso que é muito difícil ver filmes que retratem o povo brasileiro
sem os estereótipos tão presentes nas telonas. Mas também
é uma arte que cresce assustadoramente. Mais e mais jovens
estão empunhando câmeras nas mãos e contando histórias da
nossa gente, como elas realmente são.

Sexta-feira – Teatro
Na sexta-feira foi o dia do teatro na Semana de Arte Moderna
da Periferia, foi simplesmente maravilhoso. O Centro Cultural
Monte Azul abrigou centenas de pessoas durante o dia inteiro
para presenciar a cena teatral da periferia, e quem foi não se
arrependeu, foi do caralho! Foi lindo! Foi evolução total!

Para se ter uma idéia, as apresentações começaram às 8:00h


da manhã com um café-debate com os artistas envolvidos na
Semana... e durante o dia inteiro o que se viu foi o talento da
nossa juventude; atores e atrizes desfilarem seus talentos nos
palcos da periferia.

Cada peça mais louca que a outra, mais interessante, mais pro-
funda. Nossas raízes representadas da forma fecunda possí-
vel. Estou com inveja da gente também. A Semana foi uma das
maiores experiências das nossas vidas e o teatro também faz
parte do nosso dia a dia. E que venham novos palcos!

“Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor...”.

Tinha tudo para dar errado, mas deu certo, não posso fazer nada.
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Semana de arte moderna da periferia

Sábado –Encerramento – Música


A Semana de Arte Moderna da Periferia, contra a nossa von-
tade, teve encerramento no sábado com um dos melhores
shows musicais que São Paulo já curtiu. Simplesmente um dos
melhores que eu já fui, e olha que já fui a bastantes. Só para se
ter uma idéia, o som foi de primeiríssima qualidade, todos os
grupos elogiaram.

Outra coisa que contribuiu para o brilho do evento foi o pro-


fissionalismo dos grupos, nenhum deles se atrasou, nenhum.
Começou no horário previsto e acabou no horário combinado.
A vaidade não imperou.

A seleção dos grupos também foi muito importante, pois vários


ritmos foram se revezando num mega palco da Casa de M’boi
Mirim: rap, samba, rock e MPB, teve para todos os gostos e todas
as pessoas da comunidade foram contempladas. O palco tinha
uma decoração louca também: telão, as bikes do Magrela’s,
mosaicos, a faixa da Cooperifa, sem contar que São Pedro tomou
olé de São Jorge, e não caiu uma gota de água sequer.

Os músicos envolvidos preparam uma música coletiva, no


estilo “ We are the World”, lembram? Putz, a porra da música
ficou impregnada nos nossos ouvidos: “...Lá ....lálálá ....lá...”, foi
demais! Ninguém parava de cantar.

No final, todos que estiveram envolvidos nestes três meses de


produção da Semana, subiram ao palco para cantar e extravasar
a alegria de ver e curtir um dos maiores eventos de São Paulo, a
Semana de Arte Moderna da Periferia.

Muita gente chorou de emoção, o público ficou hipnotizado


do começo ao fim. E para terminar em grande estilo, todos
numa só voz, gritaram: UH, COOPERIFA! UH, COOPERIFA! UH,
COOPERIFA!

Não posso fazer nada, o evento foi um sucesso! Também, mais


de trinta grupos envolvidos, quase trezentos artistas na progra-
mação, você quer o quê? Não tinha como dar errado, a gente
268 Cooperifa

estava super-unido, centrado, cheio de garra e afim de dar o


nosso melhor para o povo da periferia.

Sim, eu disse dar, não tirar.

Desculpaí pelos que torceram contra, a vontade de dar certo


foi muito maior. Aos que nos amam, sintam-se abraçados.
Aos demais, sintam-se abraçados também, não chutamos
cachorro morto. “Por uma periferia que nos une pelo amor,
pela cor e pela dor”. Aos Quixotes que lutaram contra os moi-
nhos de ventos, nunca esqueçam: “A Arte que liberta não vem
da mão que escraviza”.

Em 2008 tem mais.


Antropofagia periférica 269
Semana de arte moderna da periferia

Depoi
men-
tos
270 Cooperifa

Ninguém entra no boteco do Zé Batidão impunemente. Sai de lá


transformado pelo que viveu – ou melhor, sai de lá transtornado.
O que acontece no boteco do Zé Batidão toda quarta-feira muda
cada um de nós – e muda o Brasil. Centenas de pessoas, identifi-
cadas por algo que vai muito além de uma referência geográfica,
a periferia, reunidas depois de um dia de trabalho duro para ouvir
e fazer poesia. Simples assim: e uma revolução sem um tiro.

Não é sempre que a gente testemunha a história em curso, per-


cebe o instante exato em que o mundo balança. A Cooperifa é
isso, um abalo sísmico a partir de uma esquina de quebrada,
enquanto os carros passam velozes pelo asfalto, lá no outro lado
do rio, indo e vindo do mesmo lugar. Mas com uma pressa...

Na Cooperifa, toda quarta-feira, o tempo pára. E quando a


gente vê, meio no susto, já passam das 23:00h. Quando alguém
pega o microfone para declamar uma poesia que escreveu, é
seu destino que recria, é seu lugar no mundo que reinventa.
Quando "o povo lindo, o povo inteligente" da periferia se apro-
pria das palavras, é da História que passa a tomar conta.

Naquele palco sem degrau, cada um bagunça a ordem das coi-


sas – e bagunça com um instrumento que por 500 anos anos
foi privilégio da elite do país. Bagunça pela palavra escrita.
A ponto de a periferia virar centro sem deixar de ser perife-
ria. E quem diria, depois de tanta bala perdida, que seria pela
poesia que a ordem das coisas seria ferida de morte?

Pela primeira vez, há uma geração de escritores identificados


pela origem periférica no Brasil e que se definem como "peri
féricos". Parte deles começou a escrever na Cooperifa, lançou
seu primeiro livro no boteco do Zé Batidão. A Cooperifa escre
veu/ escreve vários capítulos dessa história. Inspirou dezenas
de saraus de poesia Brasil afora, sua pipa no céu virou farol.

Mas a Cooperifa é isso e é mais. É um espaço para todos, sem


hierarquias nem julgamentos. Pega o microfone quem tiver
algo a dizer.
Antropofagia periférica 271
Semana de arte moderna da periferia

E o que deixou de dizer será uma falta no mundo. Ao garantir


um lugar no microfone, a Cooperifa desmente os que tentam
nos fazer acreditar todo dia, que somos substituíveis, descar-
táveis, comuns. A cada quarta-feira, no boteco do Zé Batidão,
é reeditada a garantia de que cada um é insubstituível, único,
extraordinário. Lá dentro há palmas de verdade, do tipo que
deixa as mãos ruborizadas, há assobios entusiasmados, mas
nenhuma vaia. Não há cochichos ridicularizando um e outro,
sussurros pelas costas. Lá há choro, há riso, mas não há exclu-
são. Por isso a Cooperifa é quente mesmo quando faz frio.

E é por isso que na Cooperifa se fala da violência, da desigual-


dade, mas também se fala de amor. E ao falar de amor entre
becos e vielas de concreto, esgoto escorrendo pelas racha-
duras, a Cooperifa é ainda mais insubordinada. Porque nin-
guém esperava que periféricos escrevessem – e se tivessem
essa ousadia, muitos apostariam apenas na dor. E assim um
pedaço da vida continuaria exilada, roubada. Fora.

Na Cooperifa não se censura a vida. Nem as palavras, os


temas. Não se espera do poeta que faça apenas denúncias,
dispare frases engajadas, lance versos encharcados de ide-
ologia. Na Cooperifa há quem fale de dor de corno e de moça
bonita. Há quem fale de corpos úmidos, de gozo, nudez e sexo.
De saudade e de desencontro. E há quem fale de ódio, de ran-
cor, de vingança. E há quem fale de tudo isso junto, porque a
vida tem um pouco de tudo. E há quem pegue o microfone só
para recitar Fernando Pessoa.

Ao acolher todas as palavras, a Cooperifa garante, a cada quar-


ta-feira, um lugar para todos os sonhadores. Simples assim. E
abala as placas tectônicas do centro. Porque na Cooperifa o
que cada um descobre quando entra tímido, meio desengon-
çado, se sentindo um tanto apartado das letras, é que pela
palavra escrita – seja ela de amor, de gozo ou de fúria – "nóis é
ponte e atravessa qualquer rio".
Eliane Brum, jornalista
272 Cooperifa

Morada da poesia
A poesia é o gênero literário que mais seduz corações e men-
tes nos becos e vielas. Não por acaso, o sarau ressurgiu nos
últimos anos e tomou conta da periferia paulistana. Nesses
encontros, os freqüentadores recitam poemas consagrados
da literatura, mas o que mais se compartilha são versos de
autoria daqueles que lá estão. O Sarau é espaço de formação
de leitores e autores. Assim é o Sarau da Cooperifa, o mais
famoso da periferia paulistana e, para mim, o melhor de toda
a metrópole.

Ao serem anunciados, os poetas engrandecem. Microfone na


mão, olhar atento, sentimento à flor-da-pele e a alma exposta
diante de uma platéia sedenta por versos como os do poeta
Márcio Batista:
Quem me nega cultura, nego
Não terá outra chance de nega
Cultura é Quilombo pro Negro
Ignorância é sua senzala.
Realizado em um boteco, o Sarau da Cooperifa é despojado de
requintes. Mas os organizadores são muito rigorosos quanto
aos rituais de pertencimento e ao acolhimento. Enganam-se
aqueles que vêem esses encontros como algo furtivo e des-
provido de regras . "O silêncio é uma prece", diz uma inscrição
logo na entrada do bar do Zé Batidão. E a frase é anunciada
com determinação pelos mestres de cerimônia.

Falatório lá, só se for na rua, que acaba sendo uma extensão do


bar, já que este sarau, o mais famoso da periferia paulistana,
reúne, todas as quartas-feiras, mais de duzentas pessoas.

Aquela gente humilde da qual falavam Vinicius de Moraes


e Chico Buarque, tem no Sarau da Cooperifa seu momento
de glória. Tem taxistas, estudantes, funileiros, escriturá-
rios, motoboys, professores, enfermeiros. Tem gente gra-
duada também, mas que não perdeu a humildade e nem
Antropofagia periférica 273
Semana de arte moderna da periferia

saiu da quebrada. Allan da Rosa é um desses. Terminou


o ensino médio, sabe-se lá como. Fez cursinho no Núcleo
de Consciência Negra e entrou na USP. Graduou-se em
História e hoje faz mestrado em Educação. Quem primeiro
leu seus versos foi seu pai, a quem o jovem poeta entre-
gava seus escritos quando o visitava na cadeia. Allan, negro,
esguio, ágil, abre Vão, seu livro de poesias e tira de lá uma de
suas pérolas:
Solitária
A aranha tece
Formando quadrantes geométricos
Deixando seu rastro de seda
Sua teia interessa apenas a si mesma
Aos poucos que optaram se emaranhar
E aos perdidos que não conseguem
Se desprender de suas linhas
No Sarau da Cooperifa, a poesia encontra sua redenção.
Acostumada a freqüentar os salões das elites, ela encontrou
morada em um botequim da quebrada, onde se entrega sem
pudor aos encantos de quem lhe declarar amor incondicional.
E na Cooperifa, são muitos seus amantes. Neste sarau, a poe-
sia penetra tão profundamente aqueles que a declamam que
eles próprios se fazem poesia. Sérgio Vaz, criador e criatura do
Sarau da Cooperifa traduziu essa magia em um maravilhoso
poema de três versos:
Ser Poeta
Não é escrever poemas,
É ser poesia.
Eleilson Leite, colunista do Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique,
historiador, programador cultural, coordenador editorial da Agenda
Cultural da Periferia
ifa
Cap.12
Cooperifa, Quilombo da poesia

Quilo
mbo
Quando a Heloisa pediu que eu contasse um pouco da minha
história e da Cooperifa, no começo eu não estava muito afim,
por conta da minha memória um tanto quanto irresponsável e
mentirosa. Mas também não podia me furtar o direito de divi-
dir com você essa história de luta em prol da cidadania através
da literatura.

Era muito mais fácil a gente ficar reclamando que na periferia


não temos bibliotecas, cinemas, teatros, museus, espaço para
produção cultural, livraria, leis de incentivo que nos incenti-
vem, mas a gente decidiu ir à luta. Não que a gente não reclame,
mas a gente quis lutar e reclamar ao mesmo tempo. E no único
espaço público ao qual nós temos direito, o boteco.

O Sarau da Cooperifa já é inspiração para mais de quarenta


saraus que acontecem nos botecos espalhados pelo Brasil. Na
periferia de São Paulo a poesia já é uma realidade, o livro rola de
mão em mão, e a palavra é a nossa arma contra a mediocridade,
o preconceito e as injustiças desse país sem alvará de funcio-
namento, sem licença para ser pátria.

A Cooperifa é um movimento que trabalha única e exclusivamente


com o conhecimento. Enquanto eu escrevia esse livro, para se
ter uma idéia, a gente já estava pensando na nossa 2ª Antologia
Poética com quarenta autores da comunidade. Enquanto a gente
estava fazendo a antologia, estávamos realizando o 2º Poesia
no Ar, e enquanto a gente estava realizando o 2º Poesia no Ar, a
gente estava pensando como seria o lançamento do nosso DVD,
produzido pela DGT filmes. Enquanto eu escrevia o livro tudo isso

276
Cooperifa – Quilombo de poesia 277

estava acontecendo ao mesmo tempo. Isso é a Cooperifa. Nós


somos produto da irresponsabilidade. Da ousadia.

O nosso sonho é ter a nossa casa, o “Espaço Cooperifa” ou a


“Casa do aprender”, para que a gente possa dar vazão a pla-
nos maiores como a nossa própria biblioteca, um espaço para
leitura, criação poética, debates, oficinas, um lugar não para
tirar as pessoas da ruas, muito pelo contrário, um lugar onde as
pessoas estejam preparadas para elas. Um lugar onde as pes-
soas aprendam definitivamente que a gente não quer mudar da
periferia, e sim mudar a periferia. Como eu disse anteriormente,
primeiro a gente põe fogo, depois nós vemos como apaga.

E gente para colocar lenha na fogueira é o que não falta. A


Rose (musa da Cooperifa), Lu Souza, Márcio Batista, Jairo
(Periafricania), Sales (o Evolucionário), Zé Batidão, Cocão (Versão
Popular), Preto Will (Versão), José Neto, Tadeu Lopes, Alan da
Rosa, Valmir Vieira, João Santos, Casulo, Andréa, De Lourdes,
Asduba, prof. Toninho, Walter, Augusto, Lobão, Mavotsirc, Ricarda,
Vicente, Fuzzil, Seu Lourival, Robson Canto, Cláudio Laureart,
Renato Vital, Bárbara e Lila, Toni C., Renata Dias, Daniela
Mercedes, pessoal da Rua 7, Jair, Silvio Diogo, Timbó, Euller, Rose
Eloy, Helber, Kennya, Roberto Ferreira, Wésley Noóg, Marcelo
Ribeiro, Ricardo (perueiro), Dinho Love, Sônia, Seu Jorge Esteves,
Dona Edite, Beso, Harumi, Mamba Negra, Magrela´s Bike, Régis
Ação e Arte, DGT Filmes, Carlos Giannazi, Gaspar Záfrica Brasil,
B Valente, Brava Companhia Akins Kinte, Elizandra, Maria Tereza,
GOG, Juliana, Fernanda, Fábio, Zé Pompeu, PH Boné, entre tan-
tos outros que somam com a gente, e que estão sempre a postos
para incendiar o futuro.

Foi assim que a Cooperifa se transformou nesse quilombo poé-


tico, que abriga guerreiros e guerreiras que estão sempre em
busca do conhecimento. Que venham novos desafios!

É tudo nosso!
Com um sorriso no rosto e os punhos cerrados.
Imagens:
índice e créditos

P.18 Do tempo em que a vida era a poesia.


Foto: arquivo pessoal do autor.
P.20-21 Campo dos sonhos (E. C. Aliados).
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.23 Dona Maria Vieira, mãe do autor e o próprio quando trabalhava
como vendedor de vídeo-games. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.27 Por dentro da ditadura (CPOR/83).
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.34-35 O Pipa, a cara da periferia, da Cooperifa. Foto: João Wainer.
P.39 Lançamento do livro A Margem do vento.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.44 Lançamento do livro Pensamentos vadios na favela da Rocinha,
no Rio de Janeiro. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.47 Sérgio Vaz vestido de mendigo com o Plínio Marcos na Bienal
do Livro de São Paulo. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.49 acima: Sérgio Vaz e o presidente Lula.
abaixo: Prof. Carlos Giannazi, Sérgio Vaz e o ministro Gilberto Gil.
Fotos: arquivo pessoal do autor.
P.52-53 Sérgio Vaz trabalhando como locutor na Rádio Atividade FM
(Taboão da Serra). Foto: arquivo pessoal do autor.
P.59 Cartões postais poéticos. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.61 Projeto Poesia contra a violência. Foto: Eduardo Toledo.
P.65 Guerreiro Jota (in memorian), sabedoria de vida.
Foto:Marco Pezão.
P.70 O rapper GOG e Sérgio Vaz no lançamento da Cooperifa.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.71 Edu Toledo e Sérgio Vaz na favela da Rocinha.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.74 Vendendo camisetas poéticas. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.76 acima: Brói, artista plástico.
abaixo: Diagnóstico, grupo de rap cantando na Fábrica.
Fotos: Edu Toledo.
P.77 acima: Lançamento da Cooperifa na Fábrica.
abaixo: Grupo de capoeira Irmãos Guerreiros de Angola
na fábrica. Fotos: Edu Toledo.
P.78-79 Artistas da região (pré-Cooperifa). Foto: arquivo pessoal do autor.
P.86 Poeta Marco Pezão. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.90-91 Lançamento do CD da Cooperifa. Foto: João Wainer.
P.93 Sarau da Cooperifa, Rose (musa), Robson Canto e Rose (Umoja).
Foto: João Wainer.
P.94 Zé Batidão, mecenas da Cooperifa.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.97 Helber Ladislau exorcisando o “Navio Negreiro” de Castro Alves.
Foto: João Wainer.
P.98-99 O Sarau da Cooperifa visto pelo lado de fora.
Fotos: João Wainer.
P.100 Alan da Rosa, Timbó e Augusto. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.101 Alessandro Buzo, Gaspar e Rappin’ Hood.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.103 Mano Brown recebendo o 1º Prêmio Cooperifa.
Foto: Marco Pezão.
P.104 Sônia, Sérgio Vaz, Mariana e Juliana. Poesia em família.
Foto: Arquivo pessoal do autor.
P.105 Ferréz recebendo o prêmio Cooperifa.
Fotos: arquivo pessoal do autor.
P.107 Recortes de jornal. Arquivo pessoal do autor.
P.110 Marcelo Rubens Paiva, escritor, no início do Sarau da Cooperifa
no Garajão. Foto: Marco Pezão.
P.122-123 Guerreiros e guerreiras da Cooperifa.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.124 Leandro Lehart. Foto: Marco Pezão.
P.125 acima: Kênia, Marcio Batista, a atriz Zezé Mota, amigo
e Gaspar do Záfrica Brasil. abaixo: Gaspar, Helber,
Jeferson De, Isaac e 2ho. Fotos: Marco Pezão.
P.130 acima: Grupo de teatro Manicômicos.
abaixo: Grupo de teatro da Juliana.
Fotos: Marco Pezão.
P.132 Jornal da Cooperifa. Arquivo pessoal do autor.
P.137 Sarau da Cooperifa. Foto: João Wainer.
P.143 acima: Rose Musa. abaixo: Sérgio Vaz e Cocão. Apresentação no
Circo Voador, Rio de Janeiro. Foto: Arquivo pessoal do autor.
P.160 Sarau da Cooperifa na Câmara Municipal de São Paulo.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.163 Sarau da Cooperifa no programa “Jogo de idéias”.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.167 Sarau da Cooperifa lotado, como sempre. Foto: João Wainer.
P.170-171 Sarau da Coperifa onde o silêncio é uma prece.
Foto: João Wainer.
P. 179 Sarau da Cooperifa. Foto: João Wainer.
P.180-181 Programa “Jogo de idéias”: Claudiney Ferreira, Sérgio Vaz,
Helber e Marcio Batista. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.185 Jornalista Chico Pinheiro recebendo o Prêmio Cooperifa.
Foto: Marco Pezão.
P.186 acima: Valmir Vieira, José Neto, Sandra e Márcio.
abaixo: Mavotsirc e Cleide. Fotos: arquivo pessoal do autor.
P.191 Lu Souza e Rose. Foto: Marco Pezão.
P.194-195 Sarau da Cooperifa na cidade de Suzano, São Paulo.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.197 Prêmio Hutuz no Rio de Janeiro. acima: Recebendo o prêmio
abaixo: Marcio, Rose (musa), Edy Rock e Dugueto.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.201 “Quem Lê, enxerga melhor", na Biblioteca Castro Alves
Taboão da Serra . Foto: Edu Toledo.
P.203 Café Literário em Taboão da Serra.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.206 acima: Sarau da Cooperifa nas escolas.
abaixo: Uma pequena homenagem na Escola Neusa Demétrio.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.207 acima: Sarau nas escolas (Lobão, Jairo, Augusto, Will, Rose,
Bolão, Lu Souza, Mavot e Sales). abaixo: Lu Souza, Lobão,
Augusto Jairo e Mavotsirc. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.210 Ajoelhaço: poetas de joelhos, pedindo perdão às mulheres.
Foto: João Wainer.
P. 212-213-215
Sarau da Cooperifa. Foto: João Wainer.
P. 221-222-224-225-227
Poesia no ar, a Cooperifa enchendo de poesia o céu de São Paulo.
Fotos: João Wainer.
P.231 Aniversário da Cooperifa: Danilo, Rose (musa) e
De Lourdes. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.236 Os novos antropófagos: Sérgio Vaz, Jairo, Salesm Gunnar,
Wésley Noóg, Ademir, Cocão, Ana bela, Marcelo, Mavotsirc,
Juliana, Robson Canto, Casulo, Preto Will, Ricarda, Rose Dorea,
Tadeu Lopes, Euller Alves, Roberto QT, Jair Guilherme, Wagner
Felipe, Marcio Batista, Lerói, Anderson e Vicente.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.237 Caminhada Cultural, prof. Toninho segurando o estandarte
da Cooperifa.Foto: arquivo pessoal do autor.
P.241 Mosaico da Semana de Arte Moderna da Periferia.
Fotos: arquivo pessoal do autor.
P.242 Dia da Literatura na Semana de Arte Moderna da Periferia
(livros despencado do teto). Foto: arquivo pessoal do autor.
P.243 Bicicletas voadoras do Magrela’s Bike na Semana.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.244 Grupo de teatro Brava companhia na Semana.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.248 Música na Semana com Jairo do Periafricania.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.249 Dança na Semana com o grupo Espírito de Zumbi.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.255 Logo da Semana de Arte Moderna da Periferia feita pelo
artista P. Jair Guilherme. Arquivo pessoal do autor.
P.257 Oficina de poesia. Foto: arquivo pessoal do autor.
P.258–259 Dança na Semana de Arte Moderna da Periferia.
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.260 Grupo Espírito de Zumbi se apresentando em frente ao Sarau.
Foto: João Wainer.
P.261 Grupo de teatro Ação e Arte na Semana de Artes da Periferia.
Foto: João Wainer.
P.262 acima: Cinema na Semana de Arte Moderna da Periferia.
abaixo: Música na semana (Cocão e Will do grupo Versão Popular).
Foto: arquivo pessoal do autor.
P.282 Sérgio Vaz.
Foto: Eduardo Toledo.
282 Cooperifa
sobre o autor
Sérgio Vaz fala que é poeta e acha que faz poesia. Formado nas
ruas, aprendeu tudo que sabe nos livros e no Bar e Empório
Gurarujá, atual bar do Zé batidão, onde acontecem os saraus
da Cooperifa.

Começou a escrever poesia em papel de pão. Excelente ata-


cante de futebol de salão e meia-boca como médio-volante no
time do Jardim Panorama. Hoje, apesar dos 44, sonha em ser
jogador de futebol.

Gosta de rap, cerveja, samba, música negra, MPB antiga e torce


para o Palmeiras. Já trabalhou como auxiliar de escritório, ven-
dedor de vídeo-game e assessor parlamentar.

É casado com a Sônia e tem uma filha chamada Mariana.

Não anda sozinho, está sempre em companhia dos poetas da


Cooperifa e conhece os becos e vielas do país, por isso, é folgado
e agitador cultural. Tem gente que gosta, tem gente que não.

Morador de Taboão da Serra, grande São Paulo, iniciou a Cooperifa


com outros artistas em uma fábrica desativada em fevereiro de
2001. Meses depois, o Sarau da Cooperifa com o poeta Marco
Pezão, que deflagrou um dos maiores movimentos literários de
São Paulo: a Literatura periférica.

Lançou cinco livros, entre eles Subindo a ladeira mora a noite


e Colecionador de pedras, que faz parte da coleção “Literatura
periférica” da Global Editora.

Outro dia, ele e mais um monte de artistas, criaram a Semana


de Arte Moderna da Periferia. Ninguém ficou sabendo, mas
eles fizeram.

Fora isso, não tem mais nada que valha a pena saber.
Este livro foi composto em Akkurat.
O papel utilizado para a capa foi o cartão Suprema Alta-Alvura 250g/m2.
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m2

A impressão e o acabamento foram feitos pela gráfica


Morada do Livro, em julho de 2008, no Rio de Janeiro.

Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter


as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha
nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro
de identificação do próprio contato. A editora está à disposição
para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.

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