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Express

13/)UL/13
CÚMPLICES

Sao duas mullieres


amplamente
premiadas. Urna
é atriz, a outra es-
critora. A amizade
é recente, mas
osmundosem
comum tem muito
passado. Rita admi-
ra em Dulce a inte-
ligencia, o génio
em contar histó-
rias e a sensibilida-
de. Dulce elogia-
-lhe o talento, a co-
ragem, a postura
na vida, o excesso
e o desassombro.
Esta foi urna con-
versa com muitos
risos e lágrimas
ENTREVISTA DE
BERNARDO MENDON<;A
FOTOGRAFIAS DE TIAGO MIRANDA
FIC<;AO HÁ UM PONTO IMPOR-
TANTE QU E AS UNE. "QU ER EU
QUERA RITA TEM OS PROFI S-
SOES DE FAZER DE CONTA
SO MOS AMBAS MUlTO INFAN-
TIS EM ACR EDITAR QU E É
POSSÍVEL OS OUTROS CRE-
REM NAS NOSSAS HISTÓRIAS"

condic;ao humana. Este encontro tei a mirn mesma: "Entao, ele é


decorreu numa das monumentais bom, o livro estava a interessar-
salas da biblioteca do Palácio Nacio- -me, como foi isto acontecer?"
nal da Ajuda, urna das mais antigas Dulce - Os livros tem alturas para
de Portugal (1880), com Rita a dei- serem lid os. Como os filmes tem al-
xar o aviso: "Isto vai ser difícil. Falo turas para serem vistos. Como as
pelos cotovelos e se vires que te es- pec;as de teatro também... Por
tou a interromper dizes: 'Rita, pos- exemplo, há urna pec;a de que eu
so falar?"' Nao foi preciso. gasto muito, que é "Um Elétrico
Chamada Desejo", e revisita fre-
O que as aproximou? Partiu de quentemente essa pec;a em livro
urna admirac;ao e fascínio da ou no teatro, porque gosto muito
Rita perante a obra da Dulce? daqueles diálogos. Mas ainda no
Rita Blanco - Eu nao quis mos- outro dia li-o, numa pequena bi-
trar-lhe essa admirac;ao na dita fes- blioteca de um hotel, em Boston, e
ta, porque tinha vergonha. Quan- como estava muito cansada come-
do eu gosto de urna pessoa... afasto- cei a achar aqueles diálogos mui-
Conhecem-se há pouco tempo, -me dela (risos). to ... desinteressantes.
mas já sao amigas e cúmplices. Foi Dulce María Cardoso- É urna ma- Rita - E com razao. Nao os acho
Rita que sugeriu Dulce para estar a neira de se ser feliz (risos). Quando interessantes. Gosto mais do Tche-
seu lado nesta conversa Cruzaram- a abordei, disse-lhe que gostava khov ou do Fassbinder.
-se há meses na festa de lanc;amen- muito do seu trabalho. Porque é ra- Dulce - Eu gosto. Há urna frase da
to do primeiro número da edic;ao ro eu gostar. Tenho um gasto mui- pe<;a que resume tudo: "Sempre de-
portuguesa da revista "Granta", lide- to apertado. pendi da generosidade de desco-
rada por Carlos Vaz Marques. Dul- Rita - É como eu. Tal e qual. nhecidos."
ce Maria Cardoso já conhecia há Mesmo em relac;ao a literatura? Isso é algo que a toca...
muito o trabalho de Rita Blanco no Dulce- Sim. Gosto de pouquíssi- Dulce- Nao, nao. É porque a fragi-
teatro, na televisao e no cinema e ma coisa. lidade consiste, para mim, basica-
gostava. Rita acabara de ler "O Re- Rita - Eu também. mente nisso. Depender da genero-
torno", considerado por toda a críti- Quem sao os eleitos? sidade de desconhecidos. Estamos
ca como a prirneira reflexao literá- Dulce - O meu escritor preferido é garantidos por contratos. Quan-
ria com fólego sobre os 500 mil re- ainda vivo é o sul-africano Coet- do estou doente e vou ao médico,
tornados que aterraram em Portu- zee. Esse é o meu herói. estou a depender da generosidade
gal em 1975. "Chorei ao le-lo." Mas Rita - Será possível que a partir daquele desconhecido. E mesmo
foi Dulce que foi mais corajosa e de urna certa idade em que já le- os desconhecidos que nos levam
meteu conversa com Rita. Logo ali, mos livros muito bons e, ainda que para sítios terríveis sao amáveis e
encontraram cumplicidades, sensi- possamos ler tantos outros livros dao-nos o brac;o. Nao aparecem imenso daquela parte em que um
bilidades, gostos em comum. Até bons, já nada nos surpreenda da com urna faca, porque aí nós fugía- tipo portugues, dono de urna frota
urna receita de rissóis de espinafres mesma maneira? Porque passá- mos. Para mim, a pec;a de Tenes- de camióes em Angola, quando fo-
ficaram de trocar. E descobriram mos por muita coisa na vida... see Williams é cheia dessas subtile- ge deixa as chaves na ignic;ao dos
que partilham urna certa forma de Sentem essa perda de fascínio e zas muito interessantes. camióes para que as pessoas que
sentir e pensar o mundo e as pró- encantamento com a idade? Rita- É como "O Retorno", da Dul- lá ficassem pudessem usá-los. Ele
prias dores. Tem praticamente a Rita- Nao sei... As vezes, acontece- ce, que me fez perceber um pouco nao quis que tudo aquilo que tinha
mesma idade. Rita tem 50 e a Dulce -me. É verdade que há autores que melhor a história dos retornados construído se perdesse e entregou
só lhe falta um ano para lá chegar. leio com avidez e outros que nao de África. Interessou-me a forma a terra onde tinha feito fortuna os
A m1i-las tem também o facto de as me interessan1. Ainda no outro dia como a história evolui e os mo- seus camióes. É tao bonito, nao é?
suas profissóes serem de faz de con- li um livro do Saul Bellow, que mentos comoventes virem assim Dulce- Nós passamos a vida a mi-
ta Dulce escreve sobre histórias e acho que é um autor maravilhoso. de esguelha. E a gente de repente tificar coisas. A vinda dos retorna-
personagens que nao existem na Eu nao percebo nada de literatura. está assim: "Oh, pá, que merda!" E dos provocou, como em todo o co-
realidade, mas que podiam muito Mas acho-o muito perfeito. E esta- é um olhar sobre os retornados lonialismo, sentimentos muito,
bem existir ou ter existido; e Rita va a le-lo e agostar muito, agostar que ainda nao tinha aparecido. E muito, muito contraditórios. Como
faz de conta que é outras pessoas muito... E ainda assirn fui-me desin- que eu acho fundamental, porque a vida em geral. Eu vi de tudo. Vizi-
para nos revelar um pouco mais da teressando. Chateou-me e pergun- é parte da nossa memória. Gasto nhos que deram os seus pertences,
outros que os incendiaram e des- guma infec;ao (risos). Rita - Estamos moldados as re-
truíram, outros que apenas os A Dulce escreveu no texto publi- gras, as formalidades, a falta de
abandonaram... cado na "Granta": "Tenho muitas processo de pensamento da verda-
Como os animais domésticos ... .. DURANTE MUlTO vezes a sensac;áo de náo perten- de ... E a verdade nao é a realidade.
Dulce - Tan1bém. A 'Pirata' [dio c;a. Percebo que de facto só Nao existe uma verdade, mas vá-
que foi abandonado pela familia
da história de "O Retorno"] está !á
lEMPO NAO TER pertenc;o aos meus pensamentos.
Estamos condenados ao que
rias verdades.
Como é que fazem para escapar
no sentido de que Rui [o narrador
adolescente] nao para de ver a 'Pi-
PERTENCIDO somos capazes de pensar." Isso
pode ser urna enorme limitac;áo...
dessas armadilhas?
Dulce - Eu tenho uma grande
rata' a correr atrás do carro. Por- Rita - E urna grande prisao. Mas vantagem. O que me aconteceu de
que as vítimas nunca paran1 de ANADA DEU-ME que estejamos conscientes dela já muito errado na infancia, que foi
correr atrás de quemas pode sal-
var. Essa é a questao. Nós é quepa- II:MUI!IJIIuMnl nao é mau ...
Dulce - O problema é que esta-
ter regressado de Angola para Lis-
boa na véspera de fazer ll anos e
ramos de as olhar. mos muito armadilhados. Estamos durante muito tempo nao ter per-
Rita - (emociona-se) Eu devo es- ELIBERDADE" condenados ao que somos capazes tencido a nada, deu-me tranquili-
tar com alguma doenc;a, porque de pensar. Desde muito pequeni- dade e liberdade. Prefiro perten-
charo por tuda e por nada. Será al- Dulce nos formatan1-nos. cer, mas se nao pertencer nao há
UM ENCONTRO
FELIZ DULCE E RITA
ESTIVERAM DUAS
HORAS A TROCAR
IDEIAS SOBRE AS
SUAS VIDAS E O
MUNDO LÁ FORA

muitos anos, nao era convidada pa-


ra as festas. Em geral, cresce-se
contra a gera<;:ao anterior, cresce-
mos contra os nossos pais. Eu nao
tive esse privilégio. Comecei lago a
crescer contra o preconceito.
A Dulce viveu urna adolescencia
particularmente atormentada?
Dulce - Sim. Tive rapidamente de
tomar decisoes, como tornar-me
boa al una para ter poder. Senao te-
ria sido muito má aluna, porque
sou pregui<;:osa, detesto trabalhar.
E calhou ter sofrido urn acidente
muito grave aos 15 anos e ter fica-
do muito deformada. Foi urna pare-
de que me caiu em cima (risos).
Que episódio foi esse?
Rita - Nao é bem um episódio. É
uma parede mesmo (risos).
Dulce- Foi urna parede de uns ar-
mazéns que o meu pai estava a
construir. Estava num terreno bal-
dio, a acompanhar o meu pai nu-
ma obra, e caiu-me literalmente
urna parede em cima Foi no Dia
do Corpo de Deus, o feriado que foi
extinto, em 1980. A minha cara fi-
cou irreconhecível. A minha mae
teve de levar urna fotografía do
meu rosto para o cirurgiao fazer a
opera<;:ao. Mudei o sorriso, por
exemplo. Muitos anos antes de se
falar em implantes dentários já eu
os tinha. Fiz muitas opera<;:oes do-
lorosas, em que ficava muito incha-
da. E continuo a repeti-las muitas
vezes. Se para um adolescente
urna borbulha incomoda...
Rita - Imaginem urna parede
problema. Em termos sociais, cada Dulce - Ao contrário da Rita, tive durante o verao, das 9h as 1711, em (riem-se ambas).
vez que nao me identifico com urn excesso de realidade. Desde muito vez de estar na praia. E as minhas Dulce- Marcou-me fisican1ente e
grupo, como o facto de ser vegeta- nova dependi da generosidade de colegas, senhoras muito mais ve- para a vida. De algurna forma,
riana, já nao me incomoda nada. desconhecidos e vi-me abrigada a lhas que estavam ali para serem se- aprendi que é tuda muito frágil. A
Rita - Eu senti-me também toda fazer uma leitura imediata de cretárias, riam quando lhes dizia ideia que ternos de nós pode mu-
a vida dentro de um casulo. Estu- quem sao os bons e os maus. O que estava ali para ser escritora. dar em segundos. Penso acerca de
dei no liceu frances, que era w11a meu regresso de África [em 1975] Rita - Tal como eu, vi veste muito min1 como urna espécie de um tra-
bolha. Até relativan1ente ao antigo foi muito falado, por causa do meu fora da realidade. torzito. É estranho, com todas es-
regime. Depois entrei noutra bo- últin1o livro. Mas nao foi o piar que Dulce - Mas também vivi o de- tas coisas na adolescencia e as coi-
lha, o Conservatório de Teatro. me aconteceu. O piar era o dia a semprego, a falta de dinheiro, a dis- sas complicadas com que tive de
Nunca tive de viver a vida real. A dia. A discrimina<;:ao diária. O nao crimina<;:ao. Quando entrava num lidar, como é que eu tenho sido tao
minha profissao protege-me mui- ter acesso as coisas. Aos 14 anos de- comboio chan1avan1-me nomes, equilibrada e nao tenha descan1ba-
to da realidade. cidi tirar um curso de datilografia como "a retornada". E, durante do? E que tenha mantido um pla-
no [de vida). Deve haver aqui urna sao horríveis. Em particular, cada dar as coisas se nao me juntar a problema. Parece-me que os agen-
dose de indiferenc;:a, porque senao político tem as suas qualidades. outros. Porque é que eu, a Rita e tes culturais tem um sistema imu-
eu teria sucumbido... Até o maior dos idiotas tem razao tantos outros e mais uns Antónios, nitário muito forte que barra a en-
A Rita também sofreu rótulos na pelo menos urna vez ao dia. Franciscos e Manuéis que andem trada de estranhos. Raramente o
adolescencia? Rita - É quando vai a casa de ba- por aí nao nos jw1tamos e produzi- acesso das pessoas que vem de fo-
Rita - Nao. Era mais pelo facto de nho (risos). mos pensamento? Para arranjar ra é pela competencia ou talento.
nao ter peito (Dulce escangalha-se Dulce - O problema é a desres- maneiras e alternativas de lutar. Sao os conhecimentos, os nomes
a rir). Diziam que era como urna ponsabilizac;:ao total e um sistema Rita- E fazemos o que? O que Ál- de fanlliia, as presunc;:óes intelec-
tábua de engomar e que parecia a que funciona mal. o que eu disse a varo Cunhal fez? O que Mandela tuais, como o facto de se ter ou nao
mulher do Popeye. A Olívia Palito. Rita no dia em que a conheci é que fez? De vez em quando há uns ho- um percurso académico.
E que era muito parecida com o me espanta como é que nós ainda mens maravilhosos na história A Rita está a gravar a protagonis-
meu pai. nao nos unimos? Eu nao posso mu- que fazem a diferenc;:a Mas já viste ta da próxima telenovela da SIC,
Como é que assistem a este as juventudes dos nossos parti- "Ambic;:ao", um produto que
folhetim de entradas e saídas no dos? O que é que se passa com tantas vezes disse que nao gosta-
Governo? eles? Debaixo de que pedras é que va e nao via Como ve o papel
Rita- É-me tuda tao indiferente. aqueles animais saíram? O meu ga- das telenovelas? O público apren-
Que diferenc;:a é que isso vai fazer to é mais esperto, sério e impoluto. de alguma coisa com aquilo?
as pessoas que estao com fome, ao E cumpre muito mais aquelas obri- Rita - Pelo. menos, as telenovelas
mundo como ele está? A cultura gac;:óes. Aquilo é urna cambada de nao sao perniciosas. Falam-nos
no estado em que se encontra? palhac;:os. dos problemas do quotidiano e sao
Nao acredito em nenhurna das me- Dulce - O problema é que os re- uma maneira de chegar a toda a
didas que sao tomadas atualmente cursos sao escassos e as pessoas in- gente. Se os textos forem bons, po- ~
quer pela troika quer pela socieda- gressan1 dentro das juventudes dem ter urna qualidade bestial. ~
de europeia. Tuda o que está a dos partidos para terem melhores Mas existem alguns programas a
acontecer sao manobras de diver- vidas. É urna espécie de certeza de passar nos ca.nais nacionais que
sao. Andamos a tirar daqui para emprego e vida melhor. sao perniciosos, como é o caso dos
pór ali, para que? Nao vai aconte- Rita - Mas ser político nao pode "Big Brothers" e de um com urnas
cer nada. Nao há nenhurna perspe- ser isso! pessoas que se atiram para dentro
tiva de isto vir a melhorar. Dulce - Mas ser cidadao também de água. Isso já é uma. coisa ao ni-
Dulce - Eis outro ponto que te- nao pode ser o que nós somos. Em vel da loucura, nao é?
rnos em comum e que nos identifi-
.. ERRO BRUTALMEN- vez da frase: "O pavo unidos ja- Dulce - Eu vejo esse (risos).
ca. Eu acho que a política deveria
ser a arte mais nobre de todas. -
TE COMO MAE.
mais será vencido", o contrário
também é verdadeiro: "O pavo . adora.
Rita - A minha filha também. E

Rita - A política já foi na Grécia vencido jamais será unido." Fora da ficc;:ao, a Rita é mae de
urna atividade quase divinizada. Rita - Nao será melhor comec;:ar- Alice, urna adolescente com 14
Dulce - E deveria continuar a ser. OQUE ME DEIXA mos por ter wn certo tipo de com- anos. Em que é que a maternida-
É nas maos dos políticos que está o portamento em casa e contaminar- deamudou?
destino de todas as nac;:óes. Deve- TRISTE EZANCADA mo-nos uns aos outros? Rita - Passei a ter alguns medos.
ria ser a arte mais exigente. O pro- Dulce - Sim, comec;:a por todos Medo de a perder. E de ser incapaz
blema é que gerir e trabalhar para
o bem comum é dificílimo.
COMIGO. AS REGRAS nós. Nós podemos decidir acatar
ou nao acatar.
de ser urna boa mae.
É urna ideia que a persegue? A
Durao Barroso disse há dias em Como veem o estado da nossa de estar a falhar enquanto mae?
Bruxelas admirar quem queira cultura? Rita - Sim. Sei que nao sou boa
ser ministro das Finam;:as do
Governo portugues nas atuais
PERTURBAM-ME. Rita - Chateia-me aquilo em que
se tornou. Demasiado ligada ao di-
mae. Porque nao sou capaz. Estou
sempre a tirar liberdade, a tirar es-
circunstancias. Que comentário?
Rita - Imagina se eu agora numa MAS PERPETUO nheiro e aos agentes culturais. Mui-
to provinciana. Porque nao almeja
pac;:o, a querer guiá-la e dominá-la.
Chego a ser muito possessiva. E sei
biblioteca linda na Ajuda, rodeada a arte. Quer aproximar-se da ven- que nao é por aqui.
de tantos livros, ia comentar o que COISAS EM QUE da, da visibilidade, do imediato. O Dulce - As relac;:óes de sangue sao
fosse dito pelo Durao Barroso. Pre- que é que isso tema ver com arte? sempre muito complicadas.
feria que me dessem tres pisadelas NAO ACREDITO" Dulce- Além do problema incon- Rita - E eu sou excessiva. Tao de-
sempre no mesmo pé (risos). tornável do dinheiro, a cultura es- pressa estou a pedir-lhe desculpa
Dulce - Os políticos no seu todo RitO tá entregue a urna elite. Esse é o como a gritar-!he para ela meter a

REVISTA 13/lUL/13
Rita sobre
Dulce
Se a Dulce tivesse de escolher
entre tres o~IJes para se entreter,
o que escolheria: Ier um Iivro, ir
ao cinema ou ir ao teatro?
Rita - Ir ao cinema Sei que ela
gosta muito de cinema
(Dulce - É isso mesmo. Aprende-
-se muito a ver filmes.)
Além da escrita, qual o talento da
Dulce que os amigos mais lhe Dulce
elogiam?
Rita - Nao posso saber. Mas acho
que ela cozinha tao bem. Nao sei,
sobre Rita
nunca provei. O que é que a faz rir?
(Dulce - É verdade. Elogiam os Dulce - As pessoas a cairem?
meus bolos. Mas nem sempre (Rita - É isso mesmo. É horrível.
correm bem, porque nao uso Já reparaste como é que as pes-
produtos de origem animal.) soas ficam, completamente desam-
Qual é a maior mania e método paradas. E é lindo, a condi<;:ao
que a Dulce repete sempre que humana revela-se ali.)
escreve um romance? Qual o defeito nos outros que a
Rita - É trabalhar como urna enfurece mais?
porquinha Dulce - Deve ser a maldade. A
(Dulce - Além de trabalhar como corrup<;:ao. Os sonsos.
urna porquinha (risos), o que o meu (RiG! - E é a falta de brio, de
método tem de especial é que eu esfor<;:o e seriedade.)
fa<;: o urna primeira versao do livro, Qual o luxo pós-crise que nao
depois apago tudo e recome<;: o e prescinde de ter?
escrevo de memória. Que é a coisa Dulce - Diria tempo.
mais estúpida do mundo.) (Rita - Sim, ter tempo para estar
com as pessoas de quem eu gosto.
Poder jantar com os meus amigos
e com a minha filha)

loi<;:a na máquina ou para nao se coragem. Porque foi isso que eu detesto. Como é que eu, que sou in- é sobretudo sobre a maternidade.
levantar a meio das refei<;:5es. Mas percebi que nunca seria capaz. capaz em termos sociais mas que Sobre estas rela<;:5es filiais. A Móni-
busco sempre ser mae o melhor Porque? A maternidade nunca sei as suas regras, obrigaria um fi- ca tem tres filhos e dizia: "Eu nao
que consiga. É muito difícil. Erro foi um desejo para a Dulce? lho a ir para aquela tortura? consigo perceber que tu, que nun-
brutalmente. O que me deixa triste Dulce - Nao. Nunca teria um fi- Nao sente falta desse amor ca tiveste filhos, descrevas tao
e zangada comigo. As regras da so- lho, porque há tantas crian<;:as pa- incondicional? bem a minha rela<;:ao coma minha
dedade perturbam-me. Mas perpe- ra adotar. E nao há nada em mime Dulce - Já o vivi. Quanto mais nao filha": isto foi um grande elogio
tuo coisas em que nao acredito. Co- em nenhum parceiro com quem seja enquanto filha. E há urna coisa que ela me fez, foi muito generosa.
mo as regras sociais. estive que considere que tenha de que também digo, nada do que é Foi mais complicado escrever co-
Mas as regras sao importantes ser perpetuado. Independente- humano me é estranho. Eu nao mo um rapaz, como o Rui [em "O
na educa<;:ao de urna crian<;:a. É mente disso, eu tenho um grande preciso de matar alguém para sa- Retorno"], do que colocar-me no
isso que lhes dá balizas... problema com a educa<;:ao. Detes- ber se devo ou nao devo matar. E papel de mae. As crian<;:as quando
Rita - A sério? Isso é verdad e nes- tei a escola desde que comecei a nao preciso de ter filhos para sa- falam dizem coisas lindas, porque
ta sociedade, mas se eu nao acredi- estudar até que sai da faculdade. ber o que é o amor incondicional. ainda nao estao formatadas. Dou o
to nela... Nunca deixei nenhuma falta por A [atriz] Mónica Calle levou a pal- exemplo de urna sobrinha minha
Dulce - Tens de a tornar capaz dar no liceu. Se eu tivesse um filho, co o meu segundo romance ["Os e do Luís [ex-marido e melhor ami-
nesta em que ela vive. E isso é de teria de o colocar num sítio que eu Meus Sentimentos", de 2005]. que go] que estava com frio, olhou pa-
ra urna manta e disse: "Amanta- Por exemplo, tenho um bocadi-
-me." Nao é poético? nho de barriga, gostava de a nao
Rita - Quando a minha filha era ter. Mas o melhor é fazer despor-
mais pequena, disse-lhe: "Eu to para evitar as dores das opera-
amo-te infinitos." E ela respon- <;:6es. E nao tenho pachorra para
deu-me: "Eu amo-te até ao céu isso, valores mais altos se levan-
de todas as ruas." E ganhou ela. tam. Nao se trata de snobismo
Voces sao duas mulheres am- nem de um juízo moral. Tenho
plamente premiadas, bem-suce- tanta coisa para fazer e há coisas
didas, elegantes. Como é que tao mais graves e importantes
veem o passar dos anos-7 A-- que me preocupam.
velhice preocupa-vos? Dulce- Eu tenho uma perspeti-
Rita - Eu acho que neste mo- va diferente da Rita, porque des-
mento sou menos má atriz do de cedo tive de me submeter a
que era antes. E prefiro isso. muitas opera<;:6es ao rosto. A mi-
Dulce - Envelhecer é o melhor nha cara, de alguma maneira, já
dos males. É sinal que cá esta- é "quitada". Esta nao é a cara que
mos. Mas evidentemente que me eu teria se nao tivesse sofrido
preocupa. Porque nesta socieda- aquele acidente.
de, que até podemos questionar, Rita - Em termos estéticos, o
criticar e nao querer pertencer- que me parece é que as pessoas
-lhe, há urna tirania da juventu- que fazem muitas opera<;:6es fi-
de. Os carpos novos sao mais cam muito parecidas. Até gasta-
atrativos. E a juventude é sempre va de ter menos rugas aqui (apon-
associada a coisas boas. ta para os olhos). Mas chateava-
Rita - Ui! E se elas sao boas as -me a brava fazer urna cirurgia
vezes (risos). estética e parecer urna velha a
Dulce - Há tres maneiras de che- querer parecer mais nova. E
gar ao poder. A primeira éter be- acontece isso muito. Nao ficam
leza. A segunda é ser inteligente mais novas, ficam é a querer pa-
e talentoso. A terceira é o dinhei- recer ser mais novas.
ra, que pode tocar a todos. É cu- Dulce - Mas isso é porque é mal
rioso que estamos a criar urna no- feito. Tem de se ter bons profis-
va espécie. O corpo tornou-se ar- sionais.
te. Conhe<;:o nao sei quantas ami- Rita - Sei que por mais abdomi-
gas que já fizeram coisas a cara, nais que fa<;:a continuarei com
mudaram o nariz, a papada.. barriga. Mas eu gosto de comer
Rita - As minhas amigas nao queijo, pao e beber vinho.
(pausa). Quer dizer, nao deixaria Dulce - Isso é uma tiranía. Nós
de ser an1iga de uma pessoa se temos a idade que temos. Vou
ela fosse "quitada". Mas também fazer 50 anos. Quando era pe-
me daria vontade de rir (risos). quena, uma pessoa de 50 anos
Dulce - Deixarias de ser amiga era urna velha. E olha para nós
de uma pessoa se for depilada? todas larocas. E estamos aqui a
Rita - Eu? Já fiz laser as pernas. pensar num bocado de barriga?
Queres ver que já sou "quitada"? Que se lixe!
Somos o "Neandertal" da "quita- Rita- Tenho a sorte de ser ma-
gem". gra e de sempre ter feito despor-
Imaginam-se a recorrer a to. Envelhecer faz parte. Quera ·
cirurgia estética para aliviarem que a pessoa ao meu lado perce-
o peso da idade? ba que eu envelhe<;:o. E quera ser
Rita - Sou franca, tenho medo amada assim. o
da dor, apesar de ser corajosa. bmendonca@.expresso.impresa.pt
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