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Fabrício Scapini 1
Apneia do sono
Apneia do Sono
O sono é um estado de consciência onde há um repouso temporário das funções
sensitivas e motoras, ao passo que a vigília é um estado de consciência onde há plenas
funções motoras e sensitivas. O interesse no estudo do sono existe há muitos séculos,
embora muitas (talvez a maioria) das abordagens deste e dos sonhos tenha cunho
místico e mítico, mesmo hoje em dia. As primeiras abordagens científicas do sono e
dos sonhos foram realizadas na Grécia, pelos filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles,
tendo este escrito livro De Somno et Vigilia (tradução para o latim), onde concluiu que
os sonhos são fenômenos naturais, com estreita relação com o cotidiano, e que outros
animais também dormem e sonham.
Mas será que todos os animais dormem? Pelo menos um representante de cada
ordem dos mamíferos já fora estudado, tendo apresentado algum tipo de sono,
conforme sua definição de redução significativa das funções sensoriais e motoras. O
tempo e a distribuição dos estágios variam conforme a espécie. Os pássaros assumem
uma posição característica colocando a cabeça embaixo de uma das asas. Algumas
aves migratórias podem dormir durante o vôo. Os tetrápodes (quadrúpedes) dormem
em pé a maior parte do seu sono, mas precisam deitar por curtos períodos para
atingirem o sono REM (no qual há hipotonia). Os golfinhos desenvolveram uma forma
incrível de sono, onde cada hemisfério cerebral dorme isoladamente, enquanto o
outro se mantém em vigília.
Medicine (2007) divide o sono NREM em 3 fases: N1, N2 e N3. A fase N1 é de transição
entre vigília e sono, onde as ondas alfa (8-13Hz) começam a substituídas por ondas
teta (4-7Hz). Representa até 5% do tempo total de sono (TTS). O estágio N2 é
caracterizado pela ocorrência de fusos de sono (12-14Hz) e complexos-K (atividade
elétrica caracterizada por rápida onda negativa seguida por onda positiva, com cerca
de 100μV de amplitude, mais comum na região frontal). A consciência é perdida, com
diminuição do tônus muscular e das freqüências cardíaca e respiratória em relação à
vigília. O estágio N3 é caracterizado pela presença de pelo menos 20% de ondas lentas
(delta, 0,5 a 2Hz com amplitude >75 μV). É o estágio profundo do sono, com
regularidade cardiorespiratória. Deve ter duração superior a 15% do TTS. O sono REM
(também chamado de paradoxal) é carcterizado por dessincronização do EEG, com
ondas rápidas e de baixa voltagem associadas à movimentação ocular. Ocorre
hipotonia de quase todos os músculos, exceto diafragma, músculos dilatadores da
faringe e extra-oculares. Esta fase responde por 20 a 25% do TTS e é nela que ocorre a
maior parte da atividade onírica. O sono é cíclico, indo do estágio N1 ao sono REM.
Ocorrem de 4 a 5 ciclos por noite, sendo o sono REM mais concentrado na segunda
metade da noite. O sono também se modifica com a idade, com tendência de
diminuição tanto do sono REM quanto do NREM com o passar dos anos.
O componente circadiano (do Latim circa diem, cerca de um dia) do ciclo vigília-sono é
regulado pelos núcleos supraquiasmáticos do hipotálamo. Diversos fatores, endógenos
e exógenos atuam como sincronizadores, ou Zeitgebers ( do alemão). A temperatura
corporal, umidade relativa e principalmente a luminosidade são determinantes
ambientais para o ciclo vigília-sono.
DEFINIÇÃO
Segundo a definição da American Academy of Sleep Medicine (AASM), a apneia do
sono refere-se à pausa respiratória durante o sono, superior a 10 segundos. A
hipopnéia tem critério dito recomendado de redução ≥50% no fluxo aéreo associado à
dessaturação de O2 ≥3% ou microdespertar, e critério alternativo de redução ≥30% no
fluxo aéreo com dessaturação de O2 ≥4%. Na década de 90, estudos de Guilleminaudt
reconheceram entidade que não se classificava adequadamente nos critérios clássicos,
onde pacientes tinham o IAH baixo, porém muito sintomáticos devido a esforço
respiratório realizado. Os achados caracterizavam-se por redução do fluxo e
achatamento da curva de pressão respiratória seguidos de microdespertar, mas que
não se enquadravam nos critérios de hipopneia, sendo então denominado de RERA
(respiratory effort-related arousal). Pela interpretação de que se trata de um contínuo
dessa doença, tem-se considerado parte da AOS.
Considera-se normal a ocorrência de até 4 episódios de apneia/hipopneia por hora em
adultos. De 5 a 15/hora indicam doença leve, de 15 a 30/hora doença moderada e
maior que 30/hora doença severa. Em crianças abaixo de 12 anos, a ocorrência de 1
episódio/hora já é patológico. Conforme o Guideline da AASM, publicado em 2009 (J
Clin Sleep Med), a AOS é definida por IAH≥5 associado a sintomas (sonolência
excessiva diurna, ronco, apneias testemunhadas ou despertar por
sufocação/engasgos). A presença de IAH≥15, mesmo na ausência de sintomas,
também é suficiente para o diagnóstico. A síndrome então contempla a constelação de
sinais e sintomas resultantes dos efeitos dos eventos respiratórios.
FISIOPATOLOGIA
A patência da via aérea superior (VAS) é resultado da ação tônica da musculatura
dilatadora da faringe, que é cíclica conforme os movimentos respiratórios,
aumentando de intensidade na inspiração e diminuindo na expiração. Durante o sono,
por diminuição da ação do SARA, ocorre diminuição fisiológica da atividade muscular
da faringe, o que em indivíduos suscetíveis pode resultar em obstrução da VAS. O
aumento da complacência da musculatura faríngea, o acúmulo de gordura
parafaríngea e mesmo intramural, as alterações do esqueleto craniofacial como
retrognatismo, o aumento da resistência nasal e as hiperplasias tonsilares são fatores
comumente associados ao colapso da VAS pela a pressão negativa imposta à faringe
durante a inspiração. Em estudo publicado por Dantas et al (do grupo de PG da USP,
Sleep, 2012), os autores observaram aumento de colágeno tipo I na musculatura
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QUADRO CLÍNICO
Os pacientes com AOS possuem quadro clínico múltiplo, com sinais e sintomas
noturnos e diurnos, mas os principais sinais preditores da doença são o ronco e as
apneias testemunhadas. Por essa, entre outras razões, a anamnese é melhor colhida
quando o companheiro(a) acompanha na consulta, visto que muitas vezes os pacientes
não tem a percepção ou minimizam seus sintomas.
A sonolência excessiva diurna e o cansaço são marcadores importantes da doença,
embora a associação entre AOS e esses sintomas devem ser analisados com cuidados
nas publicações a respeito do tema, visto que os parâmetros disponíveis (escalas de
sonolência, como a de Epworth) são subjetivos, podendo estar também relacionados a
outras desordens, como depressão, hipotireoidismo, entre outros. Diminuição da
memória e concentração, irritabilidade, sensação de sono não-reparador, cefaléia
matinal, diminuição da libido e noctúria também compõem o universo de sintomas
que podem estar associados.
A AASM definiu a AOS como doença quando o IAH for ≥5/hora associado a sintomas,
embora essa seja uma definição arbitrária, que pode ser discutida, principalmente se
for levado em conta a idade do paciente, visto que esse fator é independente para o
aumento o IAH.
Os pacientes que são considerados de alto risco para AOS são os com hipertensão
arterial sistêmica (HAS) refratária, diabéticos, portadores de arritmias cardíacas,
portadores de insuficiência cardíaca congestiva, com história de AVC, obesos e
motoristas de cargas e passageiros.
O exame físico deve contemplar o exame geral com medidas antropométricas (peso,
altura, circunferências do pescoço e abdômen), pressão arterial, frequência cardíaca,
ausculta cardiopulmonar e pulsos. Além deste, o exame físico otorrinolaringológico
geral de rotina deve ser realizado, com atenção especial à alterações que possam
sugerir AOS como Mallampati modificado 3 ou 4, retrognatia, macroglossia,
hiperplasias tonsilares (palatinas, faríngea e lingual), palato-web, atresia palatal,
desvios septais, hipertrofias de conchas nasais inferiores ou pólipos nasais.
Caracterizada a história e realizado o exame físico, caso a suspeita de AOS seja
pertinente, o paciente deve ser orientado sobre a suspeita diagnóstica, suas
características e repercussões e sobre os passos seguintes, antes de passar para os
testes objetivos.
TESTE OBJETIVO
Tendo em vista que não existe nenhum modelo que permita aferir a gravidade da AOS
com base na história e nos achados do exame físico, um teste objetivo deve ser
realizado. Existem dois métodos aceitos para avaliação objetiva: a polissonografia
basal (PSG, em laboratório de sono) e a monitorização portátil (MP, domiciliar). A PSG
é considerada o padrão-ouro para diagnóstico da AOS, sendo que, em casos altamente
suspeitos de apnéia moderada a severa ou para seguimento dos casos em tratamento
com aparelhos intra-orais (AIO), pós-cirúrgicos ou perda de peso, desde que não
possuam comorbidades associadas, ou haja suspeita de outros distúrbios do sono
concomitantes, a MO pode ser alternativa.
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TRATAMENTO
A AOS deve ser considerada uma doença crônica, que exige acompanhamento
multidisciplinar. Os objetivos gerais são melhorar a SED, melhorar a qualidade do sono,
satisfação do paciente e do companheiro(a), obter boa adesão ao tratamento
proposto, estimular a prática de higiene do sono e a perda de peso, para sobrepeso e
obesos. Conforme o Guideline da AASM, de 2009, o tratamento primário dessa
condição é a pressão positiva da via aérea superior (PAP, ou CPAP – continuous
positive airway pressure), e deve ser oferecido à todos os pacientes, desde os casos
leves até os severos. As alternativas terapêuticas dever ser oferecidas conforme as
condições anatômicas, fatores de risco e preferências.
Higiene do sono: evitar bebidas alcoólicas e sedativos, evitar refeições exageradas a
noite, procurar regularidade nos horários de dormir e levantar, não praticar atividades
físicas vigorosas a noite, evitar cafeína e estimulantes a noite, manter o quarto
confortável, com pouca iluminação e evitar televisão e computador na hora de dormir
são recomendações comuns.
Estratégias comportamentais: incluem perda de peso (IMC de 25Kg/m² ou menos) e a
posição de dormir. A dieta visando redução de peso deve ser associada a outras
opções de tratamento, visto que seu emprego isolado resulta em baixa capacidade
resolutiva. A terapia de posição consiste na modificação de postura para o sono
naqueles em que esse componente é determinante (apneias em decúbito dorsal
predominantemente). A clássica bola de tênis em bolso costurado nas costas, ou
vestimentas prontas são opções.
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podendo ser de pressão fixa (CPAP com ou sem alívio expiratório) ou em dois níveis
(BIPAP), sendo este último mais indicado quando a pressão determinada pela titulação
for elevada (ex.: > 16cm H2). A titulação da pressão deve ser feita com PSG. Os auto-
PAPs não são recomendados para determinação de pressão. A utilização de
umidificadores e a implementação de estratégias intensivas de adaptação aumentam a
aderência ao tratamento. O uso da auto-PAP não deve ser usado por pacientes com
apneia central ou comorbidades como ICC, DPOC e síndromes hipoventilatórias, sendo
reservado apenas como opção para casos moderados a severos.
Os benefícios do CPAP em relação à diversos aspectos como diminuição de
mortalidade cardiovascular, diminuição de acidentes automobilísticos e domésticos,
diminuição da HAS e melhora do perfil metabólico começaram a ser abordados na
década de 80, com vários artigos clássicos. He et al. (Chest 1988), estudo de coorte de
8 anos, relacionaram maior mortalidade em pacientes com AOS em relação à
controles, assim como observaram diminuição da mortalidade geral nos pacientes
tratados com traqueostomia e com CPAP. Na década de 90 outros estudos clássicos
também surgiram. Engleman et al. (Lancet, 1994 e Chest, 1996) reportaram melhora
estatisticamente significativa de vários sintomas como SED, concentração, humor,
qualidade de vida e libido. Kriegel et al. (Chest 1997) demonstraram diminuição de
acidentes automobilísticos e demais acidentes com CPAP, observação esta ratificada
por revisão sistemática e meta-análise publicada recentemente (Tregear et al, Sleep
2010). Marin et al. (Lancet, 2004) em grande coorte com seguimento de mais de 10
anos demonstraram que a AOS aumentou significativamente o risco de eventos
cardiovasculares fatais e não-fatais, assim como o tratamento com CPAP reduziu esse
risco.
Um dos principais limitantes do CPAP é a aderência ao tratamento, que gira em torno
de 60% dos pacientes (uso >4h/noite e >70% da semana). Com a melhora da
tecnologia dos equipamentos e conforto das máscaras, umidificadores e
orientação/educação intensivos, a aderência pode melhorar.
Apneia central
Existem várias entidades grupadas pela característica central, segundo a CIDS – 2005,
entre elas a apneia central primária, o padrão Cheyne-Stokes, apneia central
secundária á condição médica (que não a Cheyne-Stokes), apneia central secundária a
medicamentos ou drogas e apneia central do recém-nascido prematuro. Caracterizada
pela ausência de movimentação da musculatura inspiratória por ausência de estímulo
do centro respiratório, cuja razão ainda não foi completamente esclarecida.
A ventilação normal pode ser voluntária (córtex e tálamo) e automática (centros
respiratórios do tronco cerebral) e é regulada principalmente pela pressão parcial dos
gases sanguíneos O2 e CO2 (PaO2 e PaCO2) e pelo pH, detectados por
quimiorreceptores centrais (tronco encefálico), periféricos (corpos carotídeos e
aórticos) e receptores mecânicos (alvéolos, parede torácica, VAS), mantendo esses
níveis em estreita faixa.
A respiração de Cheyne-Stokes (John Cheyne e Willian Stokes, século 19) é
caracterizada por ciclos de apneia e hiperventilação intercalados, comumente
associada à insuficiência cardíaca congestiva, insuficiência renal ou AVC.
A apneia central decorrente de condição médica pode ocorrer em AVC,
hipotireoidismo, Doença de Parkinson, diabetes, lesões neurológicas centrais,
malformação de Arnould-Chiari e distrofias musculares.
A apneia central do recém-nascido prematuro possivelmente decorre de imaturidade
dos centros respiratórios e suas aferências e eferências. Tem sido relacionada a morte
súbita do lactente à apneia central.
Pacientes com AOS severa podem desenvolver quadros de apneia central, chamada de
apneia complexa, nos primeiros meses de tratamento com CPAP, por razão ainda
desconhecida, mas possivelmente relacionada a mudanças crônicas nos centros
respiratórios.