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8 Anos de Tradução

.
Prólogo
"Trata a seus soldados como a seus meninos e lhe seguirão até os

vales mais profundos; considera-os seus queridos filhos e

permanecerão contigo até a morte."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Londres, 1837

As luzes se mantinham tênues na casa antiga de Wellclose


Square. Os criados andavam silenciosamente com o olhar baixo
enquanto se moviam pelos corredores, onde flutuava o aroma
rançoso a linimento, a cânfora... e ao que poderia ser a morte
iminente.
No piso superior, no enorme quarto da senhora, o fogo que se
mantinha aceso de setembro até junho se reacendeu para a noite e
por fim se despediu do grupo de visitantes, familiares com olhos
chorosos, sacerdotes sombrios e médicos que não faziam mais que
tagarelar, em uma grande confusão.
Ela jazia na cama, como um adereço de cristal em uma caixa
cheia de algodão, perdida no imenso leito que tinha visto passar
deste mundo a outras sete gerações de sua família. O acabamento de
nogueira da cama se tornou negro com o tempo, tão negro como
tinha sido o cabelo da mulher em outra época. Entretanto, a idade
não tinha diminuído seu nariz rugoso, o brilho de seus olhos nem
seu caráter selvagem, para agonia da sua família.
Com uma mão segurava um rosário de azeviche contra o
coração, por cima da camisola de seda bordada à mão, e sopesava as
esperanças de sua dinastia. Ela era velha, levava sendo velha a trinta
anos... ou talvez tenha nascido uma anciã, como o eram tantas
pessoas de sua espécie. Mas sabia que não devia deixar nada no
tinteiro. Ir sem tomar decisões. Nunca tinha evitado seus deveres.
Mesmo assim, apesar de saber com o coração de um guerreiro
e a mente de um lojista o que ao final tinha que fazer, tinha adiado
durante quase uma década.
Oh, ainda não era sua hora, estava quase segura... apesar de
ter oitenta e oito anos e da desesperança dos médicos que
desfilavam todos os dias ante o que acreditavam ser seu leito de
morte.
Embora talvez tivessem razão. Podia ser que ela estivesse
equivocada.
Apesar disso, ter admitido essa possibilidade... ah, que o mais
provável era que Sofia Josephina Castelli fosse exalar seu último
suspiro...
— Maria! — Exclamou com aspereza, estendendo uma mão.
— Leve o rosário e me traga a menina.
— Sì, signora. — Sua companheira se levantou e lhe rangeram
um pouco os joelhos. — Que menina?
— Que menina? — Repetiu a anciã com incredulidade. — A
menina. A única. E me traga um tarocchi1. Só uma vez mais. Quero...
quero estar segura do que vou fazer.
Anos antes, Maria a teria repreendido e lhe teria recordado a
desaprovação de sua família. Mas ela também estava ficando velha e
se sentia cansada de lutar contra a anciã. Além disso, Maria era uma
Vittorio, uma prima próxima e sabia o que era de se esperar.
Compreendia, melhor que ninguém, que teria de haver planos. Que
promessas deviam ser cumpridas. E que se devia pagar a dívida
que lhe devia à própria linhagem.
Maria se aproximou da porta e enviou um servente para que
cumprisse as ordens da senhora. Depois se dirigiu ao armário para
tirar o cofrinho de ébano, que tinha dobradiças e estava debruado
com cobre martelado tão antigo que se desgastou ao ponto de ficar
liso.
Levou- o a cama, mas a anciã lhe fez um gesto com a mão para
que se afastasse.
— Purifica as cartas, Maria. — Pediu-lhe. — Só esta vez, sì?
— É claro, signora.
Obediente, Maria se dirigiu ao pequeno baú que havia junto à
cama. Extraiu um ramo de ervas secas de cada uma das quatro
urnas de porcelana, jogou-os em uma terrina de latão pouco
profunda e lhes ateou fogo com uma vela. Tirou um maço de cartas
do cofrinho e o passou quatro vezes pela fumaça branca, invocando
os elementos do vento, da água, da terra e o do fogo para que
guiassem sua mão.
1
* Conhecido no Brasil como Tarot ou Tarô é um jogo de cartas jogado na França e em outros países francófonos, composto por um
— Bene, Maria, bene. — Disse a anciã com voz rouca quando
terminou. — Molte grazie.
Maria deixou as cartas sobre a colcha, a seu lado. Mas nesse
instante a porta se abriu de repente e adentrou no dormitório uma
moça morena, de pernas longas, vestida com uma bata engomada.
— Nonna, nonna! — Exclamou, jogando-se contra a cama. —
Disseram-me que não podia subir!
— Mas está aqui, Anaís, não?
Pôs uma mão na sua cabeça, mas olhou além da menina, para
a mulher vestida de cinza que permanecia na soleira da porta,
agarrando-a com mãos vacilante.
A governanta baixou o olhar e se inclinou, com uma leve
reverencia.
— Boa noite, signora Castelli. Signora Vittorio.
— Buona sera, senhorita Adams. — Disse a anciã. — Eu
gostaria de ficar a sós com minha bisneta. Por favor?
— Sim, é claro, mas eu...
A governanta olhou as cartas com desaprovação.
— Por favor? — Repetiu a mulher, nesse momento com uma
arrogância que contradizia seu frágil corpo.
— Sim, senhora.
A porta se fechou rapidamente.
Maria tinha retornado à mesa auxiliar e estava recolhendo o
conteúdo da bandeja de prata em que tinham levado o jantar da
anciã que consistia em mingau e que tinha deixado intacto. Muito
séria, a moça tinha encostado os cotovelos na cama, inclinando-se
para sua bisavó e com o queixo apoiado em uma mão com gesto
pensativo.
— Vamos, minha cara, suba. — A signora passou os dedos pelo
cabelo selvagem de cachos negros. — Como fazia quando era uma
bambina, sì?
A carinha da jovem se contraiu em uma careta.
— Mas Papa me disse que não devia te incomodar. Que não te
encontrava bem.
A anciã riu, embora parecesse mais com um ofego áspero.
— Vamos, cara, não vais me fazer mal. Isso é o que lhe
disseram? Venha, te aconchega contra mim e estudemos i tarocchi
juntos. Maria nos trouxe uma bandeja, vê?
Um momento depois, estavam recostadas contra os
travesseiros. A anciã se ergueu um pouco com ajuda da Maria. Só
sua mão esquerda, apertada com força pela dor, delatava o quanto
lhe doía fazer esse movimento.
Sentada na borda da cama com as longas pernas recolhidas
sob seu corpo, a moça segurou o maço de cartas, cortou-o e o
embaralhou uma e outra vez como se fosse uma pequena trapaceira.
A anciã voltou a rir com dificuldade.
— Basta, basta, Anaís. — Disse por fim. — Não as gaste,
porque algum dia as necessitará. Agora, com a mão esquerda.
Separe-as em três montes, como sempre.
A garota separou as cartas em três montes sobre a bandeja de
prata, correndo-os cada vez para a esquerda.
— Pronto nonna Sofia. — Disse. — Vais ler meu futuro?
— Seu futuro é próspero. — Insistiu, agarrando o queixo da
moça entre o polegar e o indicador. — Sì, farei isso, menina. E as
cartas dirão o que sempre dizem.
— Mas nunca me contaste o que dizem. — Protestou a moça,
fazendo uma careta. — Só fala para ti, nonna. E eu não posso te
entender.
— Isso também se arrumará. — Afirmou a anciã. — A prima
Maria começará amanhã a trabalhar em seu italiano. De forma
correta Maria, não essa confusão que se ouve por aí.
— Como desejar, signora. — Maria inclinou a cabeça. — É
claro.
— Mas a senhorita Adams diz que uma dama só necessita do
francês. — Disse Anaís, voltando a juntar as cartas sem que a
pedissem.
— Ah, e o que saberá do mundo uma criatura tão fraca, Anaís?
— Murmurou a anciã, observando como movia suas mãozinhas. —
Nada. Nada de seu mundo, me atreveria a dizer. A vida que você
vai ter, minha cara, está a cima da sua compreensão de mortal.
— O que é compreensão de mortal?
A menina franziu o cenho.
Com mão trêmula, sua bisavó lhe colocou um ligeiro cacho
negro detrás da orelha.
— Non importa. — Respondeu. — Vamos, jogue as cartas. Já
sabe como se faz, sì?
A garota assentiu solenemente e começou a colocar as cartas
na bandeja de prata, formando primeiro um grande círculo e depois
cruzando-o pelo centro com sete cartas.
— Aproxima uma cadeira, Maria. — Ordenou-lhe com
firmeza. — Vai querer ser testemunha disso.
Quando as pernas da cadeira arranharam ao chão, a anciã
virou à primeira das cartas que cruzavam o círculo.
Maria se deixou cair na cadeira com um pequeno gemido e
fechou os olhos.
— Deveria ser Armand. — Sussurrou enquanto se benzia. —
São gêmeos, signora! Este deveria ser seu destino.
A mulher a olhou com malícia, entrecerrando os olhos.
— Deveria ser sì. — Repetiu. — Mas não o é. Aqui está, Maria,
você vê tão claro como eu. E o viu antes, uma e outra vez. Nunca
troca. La regina di spade, sempre na fila de sete. Que cruzamento!
— A rainha de espadas. — Traduziu a moça e aproximou a
mão para tocar, com cuidado a carta, que representava uma mulher
vestida de vermelho com uma coroa dourada e uma espada com o
punho de ouro na mão direita. — Então, eu sou a rainha, nonna?
— Sì, minha cara. — Conseguiu sorrir fracamente. — Uma
rainha de justiça e honra.
— Mas é uma menina. — Maria tinha começado a retorcer
entre as mãos seu lenço.
— A rainha está acostumada a sê-lo. — Replicou a anciã
secamente. — No que se refere a Armand, está destinado a outras
coisas. A ser belo. A nos fazer ricos.
— Já somos ricos. — Respondeu Maria com um pouco de
amargura.
— A nos fazer mais ricos. — Corrigiu a anciã.
— Eu não sou bela, nonna? — Perguntou a menina com
tristeza.
A anciã negou com a cabeça, esfregando suas longas mechas
de cabelo branco contra a capa do travesseiro.
— Non, cara, não é. É algo completamente diferente.
O lábio inferior da garota se sobressaiu um pouco.
— Nonna, ninguém vai querer casar-se comigo? — Perguntou-
lhe. — Nellie disse em sussurros a Nate que você poderia me dizer
isso. Eu ouvi.
— Ora, Nellie é uma faxineira tola.
Maria fez um gesto desdenhoso com a mão.
— Sì, Nellie é uma imbecille. — Mostrou-se de acordo a anciã.
— E Nathaniel deveria deixar de flertar com ela. Mas sim, menina.
Te casará. Te casará com um toscano bom e forte. Eu o vi muitas
vezes.
— Como? Não conheço nenhum menino da Toscana.
— Ah, mas o conhecerá. — Disse sua bisavó, e virou a
seguinte carta. — Olhe, está esperando. A ti, Anaís, somente a ti. Um
príncipe de paz com uma capa escarlate, o ré dava dischi.
— O rei de ouros. — Disse Maria em voz baixa.
— Sì, um homem com força interior que tem o futuro em suas
mãos. — A anciã dirigiu seus olhos negros à garota. — Aqui, vê?
Seu príncipe transcendeu o místico e é sereno e poderoso. Está
destinada a ser sua companheira. Seu par.
A menina enrugou o rosto.
— Não o entendo, nonna.
— Não, não. — Murmurou. — Mas tenha paciência, menina.
Já o entenderá.
Sem lhe explicar nada mais, virou lentamente a seguinte carta
e começou a falar com voz um pouco mais ausente.
— Ah, Catulo. — Sua voz tinha perdido a calidez. — A carta
da vitória ganha. Escolherá suas batalhas com cuidado, Anaís e
levará com orgulho suas feridas sangrentas.
Maria afastou o olhar derepente.
— Dio mio! — Sussurrou.
A anciã a ignorou e seguiu virando as cartas.
— Dischi. — Disse. — O seis de ouros. Tem muito trabalho
pela frente, cara. Muito que aprender. Muitas mudanças a fazer.
Deve estar moldada antes de atravessar as portas brancas que
conduzirão a sua vida.
— Mas esse homem é um ferreiro. — Disse a jovem. — Vê?
Está golpeando uma bigorna.
— Sì, e parece que está convertendo sua grade de arado em
uma espada. — Interveio Maria amargamente. — Vamos, Sofia,
pensa no que está fazendo! Essa não é vida para uma dama... para
uma dama inglesa.
A anciã olhou a sua prima com olhos brilhantes.
— Acaso tenho escolha Maria? — Perguntou bruscamente. —
Já viu muitas vezes as cartas da menina. Deus lhe atribuiu uma
tarefa importante. Algo a que está destinada. Vamos à seguinte
Anaís.
A moça virou a carta e apareceu a figura de um anjo
carregando discos dourados em uma grande caixa.
— Dischi. — Murmurou sua bisavó. — E a seguinte?
A jovem também a virou. Maria tinha o lenço completamente
retorcido.
— O guerreiro Venturio. — Disse a anciã. — Ah, Anaís,
começaste uma longa viajem.
— Mas nonna, aonde vou? — Perguntou a garota, olhando as
cartas com cautela. — Virá comigo?
Durante um instante, a anciã não disse nada, com o coração
esmigalhado pelo remorso.
— Não, Maria irá contigo, menina. — Respondeu e se recostou
em sua nuvem de almofadões de plumas. — Eu não posso. Que
Deus me perdoe.
Maria a estava fulminando com o olhar de sua cadeira, junto à
cama.
— Nonna. — Sussurrou a menina. — Está morrendo?
— Não, não, bela. Ainda tenho alguns anos, a menos que Deus
mude de ideia. — Deixou escapar o ar com um estremecimento. —
Mas acredito que, por agora, não deveríamos olhar mais cartas.
— Não, não é necessário. — Disse Maria. — Já decidi.
— Não, prima, o destino o decidiu. — A anciã fechou os olhos
e deixou cair as mãos sobre a colcha, flácidas. — E amanhã, Maria,
escreverá ao Giovanni Vittorio. É meu parente e me deve isto.
Contará a ele o que se decidiu. Que criança será entregue. Promete-
me isso.
Fez-se um silêncio incômodo.
— Muito bem. — Disse finalmente Maria. — Mas sob sua
responsabilidade.
— Sì. — Respondeu tristemente. — Sob minha
responsabilidade.
Capítulo 1

"Somente o dirigente iluminado e o general sábio saberão

empregar a melhor inteligência no exército para propósitos de

espionagem."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Era noite fechada em Wapping. No silêncio, umas espirais de


névoa se recortavam contra o céu, enrolando-se como se fossem
felinos ao redor dos mastros nus dos navios ancorados no cais de
Londres. Apesar da hora, o som rítmico da maré aproximando-se e
afastando-se era inconfundível.
No dique, lorde Bessett esmagou a ponta de um cigarro com o
salto da bota e subiu a gola do casaco para se defender do vento,
intenso e fétido que surgia do Tâmisa. O gesto conseguiu cortar o
vento, mas pouco fez por suavizar o fedor de podre e águas
residuais.
Graças a Deus, era uma noite fresca.
A maré voltou a golpear, mais violentamente dessa vez, podia
ver por um momento, o último degrau, coberto de algas verdes.
Justo nesse instante, o ouvido de Bessett captou um som. Levantou o
olhar e fixou no cais. Não havia nada, exceto alguns faróis dos
navios, umas manchas amarelas nebulosas oscilando, quase
imperceptivelmente, com a maré e algumas vezes risos estridentes
trazidos pelo vento.
Então, silencioso como uma tumba, um barqueiro emergiu da
escuridão, movendo-se com rapidez para a beira do rio até que o
casco da embarcação retumbou ligeiramente ao encalhar. Um dedo
tremente assinalou para as escadas. O passageiro, um homem
corpulento, vestido com um casaco comprido e escuro, apareceu por
completo, lançou algumas moedas brilhantes ao ar e saltou, caiu
sobre o último degrau com um ruído surdo.
O barqueiro retornou à escuridão, tão silencioso como chegou
e parecia se considerar afortunado de poder escapar dali.
Com todos seus sentidos em alerta, Bessett se inclinou para o
dique e estendeu uma mão enquanto o visitante subia para a luz
amarelada do farol. O desconhecido aceitou a mão e, ao chegar ao
caminho pavimentado, deixou escapar um grunhido de cansaço.
Não era um homem jovem, então.
Essa hipótese resultou ser acertada quando o homem girou o
rosto para o farol que se pendurava do balcão do edifício, a beira do
rio. Sua cara estava curtida e envelhecida, tinha olhos pequenos, um
olhar duro e um nariz que pendia do rosto como se fosse uma
salsicha bulbosa. Para completar essa imagem, uma cicatriz se
estendia do queixo para cima, lhe atravessando a boca, de maneira
que o lábio inferior tinha ficado horrivelmente retorcido.
O pânico do barqueiro era compreensível.
— Está uma bela noite, não? — Disse Bessett.
— Sim, mas ouvi que está chovendo em Marsella.
Tinha uma voz rouca e um acento muito marcado,
definitivamente francês.
A tensão de Bessett diminuiu, embora não desapareceu por
completo. Sim, a frase era correta. Entretanto, ainda podia haver
problemas, e nunca tinha acreditado totalmente nos franceses.
— Sou Bessett. — Disse. — Bem-vindo a Londres.
O homem lhe pôs uma mão sobre o ombro direito.
— Que seu braço, irmão, seja como a mão direita de Deus. —
Disse em um latim perfeito. — E que todos seus dias estejam
dedicados a Fraternitas, e a seu serviço.
— Igualmente aos teus. — Respondeu Bessett no mesmo
idioma.
Como não pressentia nenhuma hostilidade, Bessett tirou a
mão esquerda do bolso, soltando o punho da adaga que pegou
instintivamente.
— Assim, você é DuPont. Sua reputação, senhor, precede-o.
— Minha reputação se forjou faz muito tempo. — Respondeu
o francês. — Em uma época quando era mais jovem.
— Sua viagem transcorreu sem incidentes?
— Foi uma travessia rápida e fácil. — Inclinou-se para ele. —
Falaram-me muito do refúgio que tem aqui. Inclusive nós, os
franceses, admiramos seus esforços.
— Mais que um refúgio, foi um bom trato, DuPont. — Bessett
o conduziu pelo estreito beco que unia Pelican Stairs com o
Wapping High Street. — Dedicamo-nos em corpo e alma a
recuperar a seita. Vivemos virtualmente expostos, e tentamos nos
passar por uma espécie de sociedade intelectual.
O visitante soprou com desdém.
— Boa sorte, meu irmão. — Disse e ao dar uns passos, ficou à
luz do farol de gás. — Como sabe, na França não somos tão
valentes... embora tenhamos uma boa razão.
Bessett sorriu levemente.
— Entendo-lhe, DuPont. Pergunto-me se a revolta política na
França terminará algum dia.
O francês elevou um grosso ombro.
— Não. Ao menos, eu não o verei. — Respondeu sem alterar a
voz. — E todos os esforços que façam em Londres não serão
suficientes para mudar isso.
— Sim. Infelizmente, é provável que tenha razão. — Disse
Bessett. — Quanto ao refúgio, ao que chamamos Sociedade de Saint
James, qualquer irmão da Fraternitas Aureae Crucis que passe pela
Inglaterra será acolhido para que se aloje conosco, embora não apoie
a unificação.
— Agradeço, mas não vou ficar muito tempo. — O francês
encolheu os ombros com um pouco de inquietação. — E agora, meu
novo irmão da Fraternitas, caminhamos? Ou tem uma carruagem?
Bessett assinalou com a cabeça o botequim que tinham ao
lado.
— A Sociedade veio a você, DuPont. Esperam-nos lá dentro.
Nesse momento, a porta se abriu de repente e saiu um par de
garotas vestidas de maneira grosseira, rindo, com um desafortunado
jovem entre elas, todos agarrados pelo braço. Parecia endinheirado,
apaixonado e incrivelmente bêbado... a santíssima trindade das
prostitutas.
O francês os observou atentamente e voltou a grunhir com
desdém.
— Ah, meu irmão, a vida é igual em todas as partes do
mundo, não?
— Sim, com esse par, estará mijando com dor até o Dia de
Todos os Santos. — Murmurou Bessett. — Vamos DuPont. No
botequim o brandy é tolerável, e junto à lareira podemos ficar
confortáveis.
No interior, o botequim era um formigueiro. Em todas as
mesas, arranhadas e deterioradas, sentavam-se homens dos
estaleiros. As criadas do botequim, os sorteavam entre o frufru das
saias, levando com graça bandejas e jarras de cerveja no alto.
Homens empregados nas barcaças, carpinteiros de navios,
marinheiros de todas as nacionalidades e inclusive, às vezes, algum
magnata naval, todos terminavam no edifício, onde se podia comer
uma comida quente e uma boa bebida em um animado ambiente de
camaradagem.
Bessett abriu caminho entre a multidão com DuPont lhe
seguindo e atravessou a zona do bar para entrar em uma sala mais
tranquila, onde as mesas estavam dispostas ao longo de uma fila de
janelas com vistas para o cais.
Seus três colegas se levantaram e apertaram a mão de DuPont
para lhe dar boas-vindas. Mas Bessett os conhecia bem, podia ver a
tensão em cada movimento de seus músculos e perceber, em um
sentido normal, humano, a desconfiança que cada um deles
emanava. Embora DuPont fosse Fraternitas, vinha como agente da
Confederação Ornamento, uma seita hermética2.
— Bem-vindo a Inglaterra, monsieur. — O prior, reverendo
Sutherland, assinalou a cadeira vazia. — É um prazer conhecer um
de nossos irmãos do outro lado do mar. Meus companheiros,
Ruthveyn e Lazonby.
Voltaram a apertar as mãos e Ruthveyn estalou os dedos em
direção a uma das garotas para pedir que lhes servisse rapidamente,
uma garrafa de brandy.
— Bom, DuPont, meus compatriotas católicos que estão em
Paris me disseram que há problemas. — Começou a dizer
Sutherland quando lhes serviram a garrafa e os copos. — É isso que
o traz por aqui?
DuPont deu um gole no brandy e sua boca marcada pela
cicatriz se retorceu um pouco mais ao saboreá-lo. Deixou o copo
imediatamente sobre a mesa.
— Não, uma menina caiu em mãos equivocadas. — Disse. —
Necessitamos da sua ajuda.
— Uma menina? — As feições de Ruthveyn endureceram. —
Quer dizer um dom?
O francês passou a mão pela barba, que parecia crescida de
um dia.
— Isso parece. — Admitiu. — Embora seja muito jovem, ainda
não chegou aos nove anos, e as circunstâncias são problemáticas.

2
O Hermetismo pode ser definido, amplamente, como os escritos que utilizam por base a figura de
Hermes Trimegistus. Tipo uma filosofia ocultista.
— Em que sentido? — Lorde Lazonby, um homem desajeitado
e com costas muito largas, recostou-se torpemente em sua cadeira,
com as pernas separadas e fazia girar uma e outra vez seu copo
sobre a mesa de carvalho. — Os guardiões de Paris não podem
cumprir com seu dever?
DuPont se zangou.
— Devem recordar que nossa nação está muito alterada. — Espetou-
lhes. — Nosso rei agora vive aqui, no exílio e inclusive, nestes
tempos modernos não podemos evitar que a plebe imponha a
nobreza, a guilhotina outra vez. Não, lorde Lazonby. Nem sempre
podemos cumprir com nosso dever. De fato, frequentemente
tememos por nossas cabeças.
Ruthveyn plantou suas escuras mãos de dedos largos na mesa.
— Já é suficiente. — Ordenou. — Sejamos civilizados. DuPont,
nos conte o que ocorreu. E faça-o rapidamente. Pode ser que não
tenhamos muito tempo.
— Sim, rapaz, você vai se casar em uns dias — Disse Lazonby
secamente, indiferente à discussão. — E, depois, irá morar em
Calcuta. Parece-me que Bessett e eu poderemos adivinhar quem
estará a cargo da tarefa.
— Precisamente. — A voz de Ruthveyn era tensa. — E agora,
como se chama a menina? E você está seguro do dom?
— A menina se chama Giselle Moreau. Quanto ao outro,
estamos suficientemente seguros para temer por ela. O dom é muito
forte na linhagem do pai. Sua mãe, Charlotte, é inglesa.
— Inglesa? — Repetiu Ruthveyn com aspereza. — De que
família procede?
— De aristocratas empobrecidos de perto de Colchester. —
Disse o francês. — Conseguiram reunir suficiente dinheiro para
enviá-la ao colégio em Paris e ela agradeceu apaixonando-se por um
humilde empregado da casa real, um sobrinho bastardo do visconde
de Lezennes. Desde então, não tem tido contato com sua família.
— Repudiaram-na?
— Sim, é o que parece.
— Lezennes? — Lorde Bessett intercambiou um olhar de
preocupação com o senhor Sutherland. — Eu ouvi esse sobrenome.
Está acostumado a estar perto das intrigas palacianas, não é?
DuPont assentiu.
— Sempre perto, embora nunca o suficiente para que o
culpem. — Disse com amargura. — Nosso Lezennes é um demônio
muito preparado. Sobreviveu à queda de Luis Felipe e agora ganhou
a simpatia dos bonapartistas... Embora o rumor é de que é só um
legitimista que deseja restaurar o Ancien Régime.
— Você, o que pensa? — Perguntou Bessett.
O francês encolheu os ombros.
— Acredito que é uma barata e as baratas sempre sobrevivem.
Suas ideias políticas não me interessam. Mas acolheu sob seu
amparo essa inglesa para usar a sua menina, e isso sim, me importa.
E agora as levou a Bruxelas, onde trabalha como emissário para a
corte do rei Leopoldo.
Involuntariamente Bessett fechou os punhos com força.
— De uma incerteza política a outra. — Murmurou. — Eu não
gosto de como soa. Isto é precisamente o que queríamos evitar
DuPont, com a unificação da Fraternitas.
— Entendo-o, mas estamos falando da França. — Respondeu
DuPont com calma. — Ninguém confia em ninguém. A Fraternitas
em Paris, tal e como ainda existimos, é insegura. Lezennes não é
conhecido exatamente por seu caráter benévolo. Se levou essa
menina, é com um propósito, o seu próprio, e mau. Por isso me
enviaram aqui. Vocês devem recuperar a menina.
— É obvio que queremos ajudar. — Disse Sutherland. — Mas
por que nós?
— Como já disse, a mãe é inglesa — respondeu DuPont. —
Sua rainha quer que todos seus súditos que se encontram no
estrangeiro sejam protegidos, não é assim? Tem alguns direitos
neste assunto, acredito.
— Eu não sei. — Disse Ruthveyn.
O francês arqueou uma sobrancelha com arrogância.
— Você não é um desconhecido para nós, lorde Ruthveyn.
Como tampouco é o seu trabalho no Industão. A rainha o tem em
consideração. Você conta com seu favor. O rei dos belgas é seu
querido sobrinho. Você tem influência. De verdade castigaria a
Confederação só porque nos fechamos em nós mesmos, quando o
único pedido é que use sua influência para evitar que o nosso dom
seja educado por um diabo? Que a utilizem para propósitos
perversos?
— É obvio que não. — Respondeu Ruthveyn com voz tensa. —
Nenhum de nós deseja isso.
— E o que foi feito do marido dessa mulher? — Perguntou
Bessett.
DuPont apertou seus lábios disformes durante um instante.
— Moreau está morto. — Respondeu. — Mataram-no duas
semanas antes que o rei abdicasse. Uma noite o chamaram a seu
escritório perto do palácio. Não estamos seguros de quem o fez, mas
de algum jeito, as cortinas se incendiaram. Uma tragédia terrível. E
ninguém acredita que foi um acidente.
Lorde Ruthveyn endureceu sua expressão.
— O morto... Era um guardião?
— Oui. — Respondeu em um sussurro. — Não tinha muito
dom, embora possuísse um grande coração e muita valentia.
Durante todos estes meses sentimos muito sua falta em nosso grupo.
— Tinha contato com seu tio?
O sorriso amargo de DuPont se intensificou.
— Apenas se conheciam. — Disse — Até que começaram a
correr pela corte os rumores sobre a habilidade da pequena Giselle.
— Santo Deus, descobriram-na? — Perguntou Bessett.
O francês suspirou sonoramente.
— Como dizem vocês? — Murmurou. — As crianças e os
loucos dizem as verdades? A pequena Giselle previu a abdicação de
Luis Felipe. Disse de maneira muito inocente, mas em público...
Diante da metade de seus cortesãos.
— Oh, céus. — O senhor Sutherland deixou a cabeça cair entre
as mãos. — Como pôde acontecer tal coisa?
— Organizou-se um piquenique para a corte no Grand Parc.
— Relatou o francês. — Todos os habitantes da casa real e sua
família estavam convidados. O rei, é obvio, saiu durante uns
instantes de noblesse oblige3 para saudar as pessoas. Infelizmente,
topou-se com madame Moreau e decidiu pegar no queixo de
Giselle. Olhou-a diretamente nos olhos e não deixou de olhá-la.
Bessett e Ruthveyn grunhiram ao uníssono.
— E ainda piora. — Disse DuPont, disposto a contá-lo tudo. —
Perguntou-lhe por que tinha um olhar tão triste em um dia tão
agradável. Ao ver que não respondia, brincou com ela ao dizer que,
como rei, ordenava que falasse. Assim a pequena Giselle tomou ao
pé da letra e disse, não só a queda da Monarquia em Julho, mas
também profetizou que à sua abdicação, seguiria uma terrível
perda... a morte de sua filha, Luísa Maria.
— Santo Deus, a rainha dos belgas?
— Sim, e se fala que Luis Felipe também teve algo a ver. —
Continuou DuPont. — Desejava que sua filha fosse a rainha de
Leopoldo e em troca, a França aceitaria a independência da Bélgica.
— Acreditava que somente se tratava de um rumor. —
Apontou Ruthveyn.
— Talvez. — O francês abriu ambas as mãos em um gesto
expressivo. — Mas o exército francês se retirou, afastaram à esposa
nobre de Leopoldo e Luísa Maria se acomodou no trono da Bélgica.
Entretanto, agora se diz que a rainha a cada dia está mais débil.
— A predição da menina, está se fazendo realidade. —
Murmurou Bessett.

3
Esta expressão é utilizada quando se pretende dizer que o fato de pertencer a uma família de
prestígio, ou ter uma certa posição social, ou ter um nome honrado, ou famoso, obriga a
proceder de uma forma adequada, à altura do nome que se tem.
— O rumor, é de tuberculose. — Disse DuPont. — É possível
que a rainha não chegue ao fim do ano e a amante do rei já está
exercendo um pouco de influência.
Um terror frio estava se apoderando de Bessett. Aquilo era o
que mais temiam os guardiões da Fraternitas: que os adivinhos da
antiga seita, fossem explorados, pois a maioria eram mulheres e
crianças.
Ao longo da história, os homens perversos tinham arriscado a
controlar o dom em seu próprio benefício. De fato, era a principal
razão da organização existir, embora a Fraternitas Aureae Crucis
tenha tido um começo misterioso e druídico, com o passar dos
séculos foi se transformando em uma tropa quase monástica,
dedicada a proteger aos seus. Mas a modernidade vinha abrandar
seus limites... e sua estrutura. Essa menina, com esse dom, corria
grande perigo.
Parecia que DuPont estava lendo a sua mente.
— Há mil coisas perigosas que poderia fazer Lezennes, mon
frères, para conseguir poder e influência. — Disse com um tom de
voz ainda mais baixo. — Conspirar com os antigos borbones, avivar
as chamas de uma revolução no continente, talvez inclusive romper
a amizade entre a Inglaterra e Leopoldo... Ah, a imaginação não tem
limites! E tudo será muito mais fácil se puder adivinhar o futuro...
ou se uma inocente seja capaz de fazer por ele.
— Você acredita que ele matou seu sobrinho?
O terror frio como gelo tinha endurecido a boca do estômago
de Bessett, até converter-se em uma fúria glacial.
— Sei que o fez. — Respondeu o francês com seriedade. —
Queria apoderar-se de Giselle. Agora ela vive sob seu teto, sob a sua
caridade. Nosso homem em Roterdam enviou seus espiões, é obvio,
mas nenhum está dentro ainda. Lezennes está a conquistar a
confiança da menina, pois, tudo depende disso.
— Estão trabalhando com Van de Velde? — Perguntou
Sutherland. — É um veterano.
— De total confiança. — Mostrou-se de acordo o francês. — E,
de acordo com seus espiões, parece que Lezennes está cortejando a
esposa de seu sobrinho.
— Por Deus, pensa casar-se com a viúva inglesa? — Disse
Ruthveyn. — Mas... e a afinidade e a lei canônica? O que diz sua
Igreja sobre isso?
De novo encolheu os ombros.
— Lezennes não se preocupa com a opinião da Igreja. Além
disso, Moreau era ilegítimo. Que documento não pode queimar-se
ou falsificar-se? Quem sabe a verdade sobre seu nascimento? Talvez
nem sequer sua mulher.
— Cada vez pior. — Disse Sutherland. O prior suspirou e
passeou o olhar pela mesa. — Cavalheiros? O que propõem?
— Raptar à menina e acabar com isto. — Sugeriu lorde
Lazonby, seguindo com o olhar o rebolado dos quadris de uma das
taberneiras. — Trazê-la a Inglaterra... com a permissão da rainha, é
obvio.
— Muito apropriado... mas tremendamente insensato. —
Disse Ruthveyn. — Além disso, a rainha não pode aprovar uma
infração tão evidente da diplomacia. Nem sequer por um dos
adivinhos.
— Isso não importará se não nos pegarem, não é assim, velho
amigo? — Mas Lazonby falou com tom ausente, com o olhar fixo em
algum ponto perto da porta principal. De repente, afastou sua
cadeira. — Me desculpem, cavalheiros, devo deixá-los.
— Santo Deus, homem. — Bessett dirigiu a seu amigo um
olhar sombrio. — Essa menina importa muito mais que o balanço do
traseiro de uma taberneira... por mais atrativo que seja, devo admiti-
lo.
Sentado no extremo da mesa, Lazonby pôs a mão no ombro de
Bessett e se inclinou para ele.
— Em realidade, acredito que me seguiram até aqui. — Disse
discretamente. — E não foi uma meretriz bem-disposta. Contam
com meu representante. Agora, será melhor que eu afaste o cão de
caça de meu rastro.
Sem mais, Lazonby saiu da sala e desapareceu entre o mar de
mesas lotadas.
— Que demônios...?
Bessett olhou a Ruthveyn, que estava ao outro lado da mesa.
— Maldito seja. — Ruthveyn só olhava pela extremidade do
olho. — Não se vire. É esse tipo infernal do jornal.
Inclusive o senhor Sutherland amaldiçoou entre dentes.
— O do Chronicle? — Perguntou Bessett em voz baixa e com
incredulidade. — Como pôde saber de DuPont?
— Não sabe nada, me atreveria a dizer. — Com os olhos
brilhantes pelo aborrecimento, Ruthveyn olhou deliberadamente
para outro lado. — Mas, para meu gosto, tornou-se muito curioso
sobre a Sociedade de Saint James.
— E muito curioso sobre Rance. — Queixou-se Bessett. —
Quanto ao Rance, frequentemente me pergunto se não começou a
tomar gosto por esses joguinhos. O que devemos fazer?
—Desta vez, nada. — Disse Ruthveyn. — Rance se interessou
por um jogo de dados junto à chaminé e se sentou com uma das
empregadas nos joelhos. Coldwater ainda está interrogando o
taberneiro. Não nos viu.
— Confiemos que Rance se encarregue dele e se assegure de
que não nos veja. — Sugeriu Sutherland. — Voltando para problema
que nos ocupa... DuPont, nos diga exatamente o que quer que
façamos.
O francês entreabriu os olhos.
— Enviem um guardião a Bruxelas para que vá procurar à
menina. Lezennes não conhece nenhum de vocês. Tomamos a
liberdade de alugar uma casa, não longe do palácio real..., muito
perto de Lezennes e fizemos correr o rumor de que uma família
inglesa chegará logo para habitá-la. Inclusive escolhemos os
serventes, criados de confiança de nossas próprias casas em
Roterdam e em Paris.
— E depois, o que? — Perguntou Bessett. — Deixando de lado
a sugestão do Lazonby, não podemos arrebatar a menina de sua
mãe. Nem sequer nós, somos tão desalmados.
— Non, non, convençam à mãe. — A voz do francês soou, de
repente, tão suave como a seda. — Ganhem sua amizade.
Recordem-lhes a Inglaterra e a vida feliz que poderia levar aqui.
Sugiram que, se for possível, reconcilie-se com sua família. E, se
todo o resto não funcionar, se Lezennes a tiver nas mãos, as
sequestrem.
— As sequestrar? — Repetiu Sutherland.
DuPont se inclinou sobre a mesa.
— Meu barco privado vai a caminho de Ramsgate, equipado
com uma tripulação de homens fortes e de confiança. Os levará a
Ostende em segredo e esperará sua fuga.
— Isso é uma loucura. — Disse Bessett. — Além disso, se
Lezennes pretende casar-se com a mulher e é tão conspirador como
você diz, não deixará que nenhum de nós crie amizade com ela.
— Não um de vocês. — Respondeu o francês com cansaço. —
Sua esposa, talvez? Alguém que possa...
— Nenhum de nós é casado — interrompeu-o Bessett. — Bem,
Ruthveyn o estará em breve, mas vai partir logo após.
— Então, uma irmã. Uma mãe. — DuPont agitou a mão com
desdenhosa impaciência. — Mon Dieu! Uma mulher que ganhe sua
confiança, isso é único necessitamos.
— É completamente impossível. — Disse Ruthveyn. — A irmã
de Bessett é uma menina. A minha é inglesa, mas tem dois meninos
pequenos. Lazonby é um soldado, não tem a sutileza necessária para
levar a cabo esta missão. Somente recorremos a ele quando temos
que submeter alguém.
— E se contratarmos uma atriz? — Sugeriu Sutherland. — Ou
possivelmente a Maggie Sloane. É uma... bem, uma mulher de
negócios, não é assim?
Bessett e Ruthveyn intercambiaram um olhar.
— Estamos confiando em um padre que sugere contratar uma
pessoa com ambição. — Disse Bessett secamente. — Mas é certo que
às vezes Maggie tem um ponto teatral.
— Sim, cada vez que Quatermaine se deita com ela, sem
dúvida. — Interveio Ruthveyn com sarcasmo.
— Maldição, Adrian, isso é muito frio. — Bessett sorriu
levemente. — Nem sequer Ned Quatermaine merece isso, embora
nos tenha posto um antro de jogos de azar na nossa porta. E não
serviria Maggie. Mas sim, alguém como Maggie... seria tão difícil?
— Ah! — DuPont, que parecia aliviado, colocou uma de suas
enormes mãos em um bolso interior do casaco e tirou um montão de
papéis dobrados. — Aqui está toda a informação que vão precisar,
mon frères4. O endereço da casa. A lista dos criados. Detalhes da
história que nós inventamos. Relatórios completos de Lezennes e
madame Moreau. Inclusive desenhos.
Bessett tomou os papéis e começou a folheá-los. Ruthveyn e
Sutherland olhavam por cima de seu ombro. Estava detalhado
minuciosamente, devia conceder esse mérito aos guardiões de Paris.
— A arte e a arquitetura da Bélgica? — Murmurou, lendo em
voz alta. — Supõe-se que esse é o propósito de seu homem inglês ao
visitar Bruxelas?
O francês encolheu os ombros.
— Acaso não são aficionados a isso muitos ingleses? A política
teria sido algo muito complicada... e inquietante. Um homem de
negócios? Ora, muito convencional para Lezennes. Agora, o que

4
Meus irmãos.
poderia ser mais inofensivo que um aristocrata rico e aborrecido que
vem para dar uma olhada e fazer alguns desenhos, né?
— Parece uma tarefa feita para você, amigo. — Ruthveyn
olhou a Bessett com algo parecido a um sorriso. — Bessett é nosso
arquiteto, DuPont. De fato, viajou por toda a Itália, França e o norte
da África fazendo desenhos... na realidade, construindo-os.
Sutherland estava esfregando o queixo.
— Parece que este encargo vai cair a ti, Geoff. — Murmurou o
prior. — Quando tivermos lido tudo isto, o submeteremos a
votação.
— Você tem que preparar uma cerimônia de iniciação. —
Recordou-lhe Ruthveyn. — Passe-me isso, eu o lerei esta noite.
Com sentimentos encontrados, Bessett jogou para trás sua
cadeira. Embora não conhecia bem Bruxelas, perguntava-se se não
lhe viria bem passar um pouco de tempo fora de Londres.
Ultimamente havia se sentido invadido por uma sensação de
inquietação e com frequência, pela nostalgia de sua antiga vocação.
Por sua antiga vida, em realidade.
Houve uma época, não fazia tanto tempo, antes da morte de
seu irmão colocar tudo a perder, em que tinha sido obrigado a
ganhar a vida. Agora trabalhava muito pouco, vivendo de suas
terras e dos frutos amargos do trabalho dos outros. Apesar de que
conhecia a Fraternitas desde que era um jovem, tinha aprendido seu
propósito e seus princípios, literalmente, nos joelhos de sua avó, não
tinha se entregado por completo a seus nobres objetivos até o trágico
falecimento de Alvin.
Era possível que tenha se convertido em um aristocrata rico e
aborrecido?
Deus santo. Era muito repugnante para pensá-lo.
Mas fosse o que fosse que o agoniava, Sutherland estava lhe
oferecendo uma via de escapamento durante algum tempo. Essa
missão em Bruxelas era, possivelmente, uma forma de fazer o bem
para a Fraternitas, para a Sociedade, enquanto escapava das
correntes de lorde Bessett em quem se converteu durante uma
temporada. Uma oportunidade para voltar a ser, brevemente, o
simples Geoff Archard.
Ruthveyn tinha puxado seu relógio de ouro.
— Sinto muito, cavalheiros, mas devo deixá-los. — Disse. —
Lady Anisha está me esperando para jantar.
— E não devemos fazer esperar a sua irmã. — Bessett pôs as
Palmas das mãos sobre a mesa com firmeza. — Muito bem, DuPont,
já temos suas instruções. Se tivermos alguma pergunta, enviaremos
um homem a Paris com a mesma contrassenha que empregamos
esta noite.
— Peço-lhes que não esbanjem tempo ao fazer isso. —
Recomendou DuPont. — O Jolie Enjoe permanecerá ancorado no
porto de Ramsgate durante uma semana. Animo-os a que o usem
quando o necessitarem.
— Certamente, certamente! — Sutherland sorriu com
benevolência. — Bem, cavalheiros, agora devo partir. Logo
iniciaremos um novo coroinha, monsieur DuPont. Se quer ficar um
par de dias, posso lhe emprestar uma toga.
Entretanto, o francês negou com a cabeça e se levantou para
partir.
— Merci, mas vou imediatamente a St. Katherine para me
reunir com um amigo, e dali ao Havre. — Voltou-se e ofereceu de
novo sua enorme mão a Bessett. — Bon voyage, lorde Bessett. —
Acrescentou. — Et bonne chance.
— Obrigado. — Disse Geoff em voz baixa. Então, seguindo
um impulso, pôs uma mão entre os largos ombros. — Vamos,
DuPont. As ruas deste bairro não são muito seguras. O
acompanharei ao cais.
O francês se limitou a lhe oferecer outro de seus sorrisos
disformes.
— Très bem, mon frère. — Disse. — Não acredita que meu
aspecto seja suficiente para espantar os salteadores?

*****

Maria Vittorio atravessava a zona portuária, à noite, em uma


enorme carruagem tão pesada que meio batalhão poderia estar nela.
Desgraçadamente, não dispunha de meio batalhão para que a
acompanhasse em sua viagem ao submundo de Londres. Só contava
com um lacaio e um cocheiro, ambos quase tão velhos como ela.
Mas, como ocorria com os sapatos velhos, sentiam-se cômodos
juntos depois de tantos anos e a senhora Vittorio era bem conhecida
por desconfiar profundamente das mudanças. Perto de Nightingale
Lane a carruagem se deteve bruscamente, com os arnês tilintando.
Ouviram-se uns quantos gritos na rua e depois Putnam, o lacaio,
desceu lentamente e abriu a porta da senhora.
— Dizem que o Sarah Jane está descarregando na parte de
Burr Street, senhora. — Disse com sua frágil voz. — Quase
chegamos ao botequim King George, mas o caminho está fechado
por carretas e coisas assim.
A senhora Vittorio se levantou com cansaço do assento.
— Voltem para o princípio da rua e esperem. Enviarei um
portador com a bagagem.
— Sim, senhora. — O lacaio se desceu a franja. — Está segura?
É uma noite muito fria e está começando a ter névoa.
— Sim, sim, vá. — Disse. — Meus joelhos não estão tão
artríticos como os teus.
A senhora Vittorio tirou suas pernas curtas e rechonchudas da
carruagem para descer, enquanto, Putnam a segurava pelo cotovelo.
A medida que o veículo se afastou, a mulher ficou a um lado da
calçada, a uns poucos metros do King George, assimilando toda a
confusão e os gritos que lhe chegavam do pátio bem iluminado.
Ao passar pela porta do botequim, um homem baixo e magro
com um casaco esfarrapado de cor verde saiu de repente e quase a
atirou no chão na penumbra. Deteve-se um instante e lhe pediu
perdão em tom zombador.
A senhora Vittorio levantou o queixo e levou uma mão
instintivamente ao colar de pérolas ao se afastar. Mas podia sentir o
olhar do homem sobre ela.
— O que há puta gorda de olhos negros? — Gritou à suas
costas.
A senhora Vittorio não olhou atrás.
Conseguiu abrir espaço através da massa de pessoas e de
cavalos até o St. Katherine e viu que o Sarah Jane estava, certamente,
amarrado nesta doca. E levava um carregamento urgente. Apesar da
hora tardia, estavam descarregando caixotes, sacos e barris a grande
velocidade e se amontoavam aqui e lá nos cais. Os homens atavam
de novo muitos desses pacotes com correntes e ganchos e os
elevavam até colocá-los nos armazéns.
A senhora Vittorio levantou o queixo um pouco mais ao vê-lo.
Ela, que tinha crescido na exuberante beleza dos vinhedos da
Toscana, nunca poderia acostumar-se aos cais sombrios e cheios de
gente, aos botequins, aos armazéns e aos estivadores. De fato,
bastava o aroma do Tâmisa para lhe revirar o estômago.
Alguns dias lhe parecia perverso ter entrado por matrimônio
em uma família destinada a ganhar vida por terra e por mar, já que
alguns dos caixotes, a maior parte, em realidade, estavam marcados
com o símbolo dos Castelli: um grande e elaborado C marcado a
fogo na madeira e sobre ele, uma coroa de folhas de parreira. Mas
lhe bastou um só olhar aos caixotes para saber que aquele
carregamento era especial.
Era a última remessa de Vino Nobile di Montepulciano, o vinho
sobre o qual se construíram os alicerces do império Castelli. E
embora a companhia havia se diversificado nos últimos quarenta
anos, o prezado vinho ao que poetas e deuses tinham cantado,
seguia sendo distribuído nas adegas internacionais, diretamente do
cais de Livorno e transportado em caixotes especiais, só nas
embarcações fretadas pelos Castelli.
Nesse momento, sua jovem prima a chamou aos gritos.
— Maria! Maria, aqui em cima!
Anaís estava no convés, agitando a mão com frenesi.
A senhora Vittorio levantou as saias e abriu passo entre o
tumulto, se esquivando com cuidado dos caixotes, das gruas e dos
malandros imundos que esperavam que alguém os mandassem
levar algum recado ou a possibilidade de roubar, porque a zona
portuária não era precisamente conhecida, por seu ambiente
agradável.
Quando alcançou a sua jovem prima, Anaís estava no cais,
junto a um monte de baús e levava uma bolsa de couro sob um
braço.
— Maria! — Gritou lhe rodeando o pescoço com o outro braço.
A senhora Vittorio a beijou em ambas as bochechas.
— Bem-vinda a casa, cara!
— Obrigado por vir me receber. — Disse Anaís. — Não queria
alugar uma carruagem a estas horas da noite e tenho muita
bagagem para ir andando.
— É obvio! — Disse a senhora Vittorio. — E o Sarah Jane?
Suponho querida, que não tem feito toda a viagem em navio, Certo?
Não está suficientemente verde para havê-lo feito.
— Não? — Anaís riu e a beijou de novo. — Em que tom de
verde estou, então?
A senhora se afastou um pouco e a olhou.
— Só tem uma ligeira cor cinza esverdeada, como esse mofo
que se vê nas árvores.
Anaís voltou a rir.
— É líquen, Maria. — Disse e levou uma mão ao ventre. — E
em realidade, vim pela França, de trem a última parte. Mas me reuni
com o capitão Clarke no Havre, porque jurei ao Trumbull que ia ver
como descarregavam esta remessa. É muito valiosa, já sabe e quase
está vendida.
— Seu irmão Armand deveria tomar conta disto. —
Acrescentou a senhora Vittorio com amargura. — Ao invés disso,
está perseguindo mulheres nas festas das casas de campo.
Anaís encolheu os ombros.
— De qualquer modo, o rio não esteve tão mal e teria que
cruzar o canal de algum jeito. — Disse, estirando o pescoço para
olhar a seu redor. — Além disso, não vomitei desde o Gravesend.
— Não fale tão cruamente, querida. — Repreendeu
brandamente a senhora. — O que diria sua mãe? Catherine é uma
dama elegante. E o que leva aí, debaixo do braço?
Anaís tirou a pasta.
— Papelada para Trumbull do escritório de Livorno. — Disse.
— Cartas, faturas, contas vencidas de algum viticultor de Paris em
bancarrota. Clarke se limitou a me dar isso. — Fez uma pausa para
olhar a seu redor. — Onde está a carruagem? Tem uma chave do
escritório? Quero deixar isto.
— Tenho uma chave, sim. — Respondeu a senhora Vittorio
com vacilação. — Mas Burr Street está bloqueada. Enviei à
carruagem de volta para que carregassem sua bagagem.
— Bom, irei caminhando.
Anaís apanhou um pequeno baú de viagem de couro que
havia sobre a montanha de baús e colocou a pasta dentro.
— Mas não sozinha. — Disse a senhora Vittorio.
— É uma boba. — Respondeu Anaís. — Muito bem, me faça
companhia. Clarke enviará a bagagem amanhã a Wellclose Square.
Putnam poderia levar as bolsas menores?
A senhora Vittorio deu ordens para que as levassem a sua
carruagem. Anaís ainda tinha na mão o pequeno baú quando dois
homens altos passaram a seu lado conversando, no caminho do
Sarah Jane.
Ela deu a volta, seguindo-os com o olhar.
— Meu deus, é o francês mais feio que vi em minha vida. —
Sussurrou.
— Sim. — Disse a senhora secamente — Mas o outro... o alto...
ah, che bell'uomo!
— De verdade? — Anaís girou, mas somente pôde lhes ver as
costas. — Não o vi bem.
— É uma pena. — Disse a senhora em voz baixa. — Porque eu
sim, o vi, sou velha, querida, mas não estou morta.
Anaís riu.
— Ah, mas aprendi a lição Maria, não é assim? Essa lição que
se aprende tão frequentemente sobre os homens atraentes e
galantes. Já não me incomodo em olhar.
Ao ouvi-la, Maria ficou séria. A alegria desapareceu de seus
olhos.
Anaís voltou a rir.
— Oh, Maria, não. — Rogou-lhe. — Giovanni se
envergonharia de ver essa cara se ainda estivesse vivo. Vamos, nos
apressemos. Quero chegar em casa.
Maria voltou a sorrir. De braços dados e tagarelando como
gralhas, puseram-se a andar com passo surpreendentemente rápido,
esquivando-se dos caixotes e barris que ficavam caminho. Saíram à
parte posterior do lodaçal de St. Katherine e entraram nas ruas do
leste de Londres.
Ambas conheciam essa zona, embora poucas vezes tinham ido
ali à noite. Mesmo assim, quando a agitação do cais se foi e a
escuridão se assentou sobre elas, nenhuma se preocupou. A névoa
não tinha conseguido ocultar toda a luz da lua e Maria sabia que
Anaís nunca ia ao East End sem estar preparada... nem ao West End,
para falar a verdade.
Logo entraram na rua estreita que levava a entrada dos
Castelli. Mas logo que tinham caminhado outra dúzia de passos,
ouviram que alguém corria apressadamente atrás delas. Em um
instante, tudo se tornou impreciso. Com um ruidoso uf! Maria se
lançou para um lado e bateu tão forte contra a porta mais próxima
que a campainha soou.
— Chupe essa, puta arrogante!
Com rapidez, o homem estendeu a mão para a anciã.
— Oh, não, não vais fazer isso!
Anaís jogou para trás o baú para tomar impulso e golpeou o
homem em um lado da cabeça.
Cambaleando, o assaltante amaldiçoou e pôs-se a correr,
metendo-se por um escuro beco logo acima.
— Minhas pérolas! — Maria levou uma mão ao pescoço. — As
pérolas de Sofia!
Mas Anaís já tinha saído correndo, jogando o baú de lado.
— Parem o ladrão! — Gritou, correndo tão rápido que ficou
consciente do segundo par de pisadas que se aproximava na
distância.
Alcançou o homem em uma dúzia de pernadas, agarrou-o
pelo pescoço da roupa e o jogou contra a cristaleira da loja de um
fabricante de velas para navios. Ele brigava com dureza, mas ela o
fazia com inteligência, fazendo um bom uso dos cotovelos e de sua
altura. Em um instante, teve-o com a cara apertada contra a loja, e
tirou um estilete do forro da manga.
— Entregue as pérolas. — Disse-lhe com determinação.
— Me largue, maldita amazona! — Disse o homem,
revolvendo-se.
Anaís apertou a lâmina do estilete contra sua garganta e o
sentiu estremecer.
— Entregue as pérolas. — Repetiu. — Ou farei com que
sangre.
Na penumbra, sentiu mais do que viu, que abria uma mão. O
colar caiu no chão e duas ou três pérolas escaparam quando golpeou
a calçada.
— Me diga seu nome, cão covarde. — Disse ela com os lábios
apertados contra a orelha do homem.
— Não é teu assunto, esse é meu nome.
Revolveu-se outra vez e ela levantou um joelho, golpeando-o
onde mais doía.
O homem gritou e conseguiu girar um pouco. Fez um
movimento com uma das mãos e ela ouviu o suave clique de uma
navalha ao abrir-se. A lâmina brilhou à luz da lua quando ele a
levantou.
Anaís só levou um segundo para agarrá-lo com mais força e se
armou de coragem para suportar o ataque. Mas a lâmina não
chegou a encontrar sua carne. Um braço comprido surgiu da
escuridão, agarrou o punho do homem e o retorceu até lhe arrancar
um grito.
Surpreendida, soltou-o um pouco. A navalha repicou ao cair
ao chão. O vilão conseguiu liberar-se completamente e saiu na
escuridão.
— Maledizione! — Exclamou ela, vendo como partia.
— Está ilesa, senhora?
Uma profunda voz masculina surgiu a sua direita.
Anaís deu a volta rapidamente, ainda com o estilete na mão.
Viu uma figura alta e esbelta na escuridão, apenas uma sombra que
levantou as duas mãos.
— Só estava tentando ajudar. — Disse-lhe.
— Maldição! — Disse ela, zangada consigo mesma e com ele.
O homem deixou cair as mãos. A noite se tornou
completamente silenciosa. Então sentiu que sua ira abrandou e que
seus sentidos começavam a retornar à normalidade.
— Obrigado. — Acrescentou. — Mas eu já o tinha pego.
— O que você quase tinha, era uma punhalada na coxa. — A
corrigiu com calma. Ela viu que olhava o brilho de seu estilete. —
Por outra parte, parece estar bem preparada.
— Uma punhalada na coxa, uma punhalada na garganta. —
Disse com frieza. — Quem você crê que teria sobrevivido para
contá-lo?
— Hmm. — Disse ele. — Então, o teria atacado?
Anaís inspirou profundamente. Embora não podia distinguir
sua cara, podia sentir seus movimentos, sua presença... e o quente e
intenso aroma de tabaco e a colônia cara que diziam quem era. Um
homem endinheirado, do tipo que raras vezes era visto nessas ruas
infames. E era alto, mais alto que ela... o que era uma façanha.
— Não, não o teria atacado. — Respondeu por fim. — Não a
menos que tivesse que fazê-lo.
— E, agora. — Disse o homem com calma — Já não tem que
fazê-lo.
Ela se deu conta de que tinha razão. Não a tinha salvado do
perigo: tinha a salvado de si mesma. Tinha falta de sono, estava
exausta de levar vários dias viajando e ainda sentia náuseas da
travessia. Nem seu julgamento nem sua intuição estavam em seu
melhor momento.
— Obrigada. — Disse um pouco humilhada.
Por cima deles, em uma moradia, alguém abriu uma janela e
tirou uma lamparina. Mesmo assim, a débil luz logo chegou até
onde estavam. Entretanto, foi suficiente, aparentemente, para que
ele se agachasse, recolhesse as pérolas de sua bisavó e as pusesse na
mão.
— Obrigado, senhor. — Repetiu, sentindo a o peso das pérolas
na palma da mão. — Foi muito valente.
Mas o homem não disse mais nada. Em lugar disso, ainda envolto
na penumbra, tirou o chapéu, fez uma elegante reverencia e entrou
na escuridão a passos largos.
Capítulo 2

"Na batalha só há dois métodos de ataque: o direto e o indireto;

entretanto, combinados resultam em uma infinidade de

manobras."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Embelezado com as austeras vestimentas da Fraternitas Aureae


Crucis, o Conde de Bessett permanecia na galeria de pedra que
rodeava o templo da Sociedade. No piso inferior, a sala estava
lotada de homens com túnicas marrons e poderia passar por
qualquer pequena capela privada, se não fosse pela ausência de
bancos de igreja e pela quase monástica falta de ornamentos. Em
realidade, iluminada por candelabros titilantes, as paredes de pedra
e o chão pareciam tão sérios e cinzas como a balaustrada, com cada
nível quebrado por arcos de pedra alternados que arrojavam
sombras intermitentes sobre a assembleia.
A austeridade do templo se intensificava pelo fato de que
estava construído clandestinamente, muito mais abaixo das ruas de
Londres. Por debaixo, inclusive, das adegas da elegante Sociedade
de Saint James, porque o templo foi construído debaixo delas e os
escombros se retiraram ao amparo da escuridão. Poucos homens
conheciam aquela sala subterrânea, ou a própria seita, porque ao
longo dos séculos, a Fraternidade tinha sido destruída muitas vezes
pelos reveses da religião, do poder e da política.
Entretanto, a fraternidade tinha ressurgido uma e outra vez. E
embora agora vivessem uma época de iluminação, esta só era tão
boa como o eram os homens que se atreviam a defendê-la e a
Fraternidade se converteu em uma Sociedade profundamente
hermética e defensiva.
Agarrando-se com ambas as mãos à balaustrada, lorde
Lazonby se inclinou para frentre e observou com seus sardônicos
olhos azuis a multidão que se congregava abaixo, enquanto Bessett
o olhava de forma escrutinadora.
— O que fez com esse tipo do Chronicle na outra noite? —
Perguntou Bessett em voz baixa.
— Atraí-o até o Petticoat Lane e o perdi nos rookeries.5
— Céus, esse lugar pode ser seu fim. — Disse Bessett. — De
todas as formas, o que pode estar procurando? Certamente, o
público já não está interessado em ti. Está fora do cárcere e
absolvido de qualquer delito.
Com o olhar fixo no horizonte, Lazonby encolheu os ombros.
— Não sei. — Respondeu. — Começou a ser algo... pessoal.
Bessett hesitou uns instantes antes de dizer:
— E eu comecei a me perguntar se você não está burlando
dele... e desfrutando com isso.

5
Rookery é um término coloquial que se empregava nos séculos XVIII e XIX para
referir-se a um subúrbio habitado por pobres e frequentada por criminais e prostitutas
(N. da T.)
— Isso é uma tolice! — Os olhos do Lazonby brilharam. — O
que te disse Ruthveyn?
Era uma pergunta estranha. Mas ao longo dos últimos meses,
o jornalista do Chronicle, e sua missão de perseguir o conde
Lazonby até a tumba, tornou-se muito irritante para todos eles.
Entretanto, não havia maneira de negar que o volúvel passado de
Rance o fazia vulnerável às fofocas e às suposições.
— Agora que o menciona, ultimamente tenho sentido certa
tensão entre o Ruthveyn e você. — Disse Bessett.
Lazonby ficou calado durante uns segundos.
— Faz algum tempo, ofendi involuntariamente sua irmã. —
Admitiu. — E preferiria não contar mais nada.
Bessett passeou o olhar pela multidão, que aumentava.
— Então, o ardor de lady Anisha por ti se esfriou, não é certo?
Lazonby o olhou com incredulidade.
— Por que sou o último a me inteirar desse suposto ardor da
dama? — Espetou-lhe. — Como disse a seu irmão quando advertiu
sobre o tema, Nish não é meu tipo. Adoro-a, sim. Paqueramos um
pouco, sim. Mas ela... diabos, é quase como uma irmã para mim.
Bessett soprou.
— Pois para mim não é.
— Então, corteja-a. — Replicou Lazonby.
— Pode ser que o faça.
De fato, não era uma má ideia. Tinha estado lhe dando voltas
na cabeça fazia algum tempo.
Lady Anisha Stafford era uma beleza deslumbrante cujos
filhos rebeldes necessitavam desesperadamente de um pai. E se um
homem tinha que limitar-se a deitar com uma só mulher o resto de
sua vida, ninguém poderia ser melhor que Anisha.
Porém, mais importante que a beleza da dama e seu caráter
era o fato de que ele nunca tinha que lhe dar explicações. Ela não o
julgava. Compreendia a débil fachada, cuidadosamente forjada, que
ele mantinha, o débil muro que tinha construído para separar sua
mente consciente da escuridão que havia detrás.
Talvez essa fosse a chave de sua inquietação. O que parecia
estar exorcizado em sua vida. Possivelmente fosse só que desejava
algo... mais.
— Então, o farei. — Murmurou. — Se você de verdade não for
reclamar.
Sem olhá-lo, Lazonby agitou uma mão, como se o convidasse a
fazê-lo.
Incômodo, Bessett pigarreou.
— Não está nada nervoso pelo novo coroinha?
Lorde Lazonby girou a cabeça e a comissura dos lábios lhe
curvou com um estranho sorriso.
— Por que deveria estar?
— Os últimos dois dias parecia... diferente. — Bessett inclinou
ligeiramente a cabeça e observou seu velho amigo. — Distraído.
Lazonby jogou para trás a cabeça e riu brandamente.
— Não pode ler minha mente, Geoff. — Respondeu— Assim
deixa de tentá-lo. Além disso, esta é uma ocasião solene... isso é o
que não para de me dizer nosso prior.
— Parece-me estranho que nunca tenha concordado em
apadrinhar um coroinha. — Murmurou Bessett. — Parece que não
leva a sério essa parte da Fraternidade. Tem medo de que o novo
discípulo esqueça seus votos? Ou de que dê um tropeção?
Lazonby arqueou uma sobrancelha.
— Se o tipo cair de bruços no chão aos pés de Sutherland, não
é meu assunto. — Disse sem alterar a voz. — Depois de tudo, quem
o preparou foi o velho Vittorio e foi Sutherland quem me fez fazer
isto.
— Era seu turno, Rance. — Disse Bessett.
— Sim, e o tenho feito. — Tirou as mãos da balaustrada de
pedra e se endireitou. — E o que Vittorio e eu unimos, que não o
separe nenhum homem. Recorda-o, certo?
Nesse momento soou um gongo e os graves ecos ressonaram
pelos muros. Lazonby lhe piscou um olho com picardia e pôs o
capuz.
— Ah, a hora da bruxa chegou. — Disse. — Que suba o pano
de fundo!
Bessett ainda duvidava.
— Maldição, Rance, o que tem feito? — Perguntou-lhe,
agarrando o braço do amigo. — Você não gosta do moço? Desconfia
dele?
— Já está outra vez tentando ler minha mente.
— Oh, pelo amor de Deus, eu não faço isso.
— Não? — Lazonby deu a volta e começou a descer as
escadas. A borda de sua túnica de lã marrom arrastava sobre os
degraus enquanto Bessett o seguia. — Mas para responder a sua
pergunta, Geoff, sim, em realidade, eu gosto muito do coroinha. —
Seguiu falando por cima do ombro — Embora não estou muito
seguro de que os outros vão gostar dele.
Depois de descer à sala principal, Bessett e Lazonby ocuparam
seus lugares ao fundo, com o resto dos guardiões. A cerimônia
começou imediatamente, com todos eles respondendo algo
mecanicamente à liturgia de Sutherland. Disseram as orações
tradicionais e depois se passou o cálice de vinho, mas Geoff bebeu
sem prestar muita atenção.
A verdade era que, embora acusasse Rance de não tomar a
sério tais assuntos cerimoniosos, ele também passava com
frequência por cima dos pontos mais sutis do rito durante o ritual.
Aos dois preocupava muito mais como ressuscitar e reestruturar
uma organização que, só alguns anos antes, disseminou-se por uma
Europa devastada pela guerra, caindo em um trágico e
potencialmente perigoso, caos.
A cerimônia de iniciação sempre era realizada em latim, a
língua dos últimos manuscritos cerimoniais que ainda existiam da
Fraternidade. Ao longo dos séculos, muitos dos registros escritos da
irmandade tinham sido destruídos, frequentemente para poder
sobreviver, em especial durante a Idade Média, quando o dom
virtualmente tinha desaparecido, bem como com a Inquisição,
quando tinham torturado a muitos profetas.
Embora os profetas não fossem queimados como hereges nem
afogados como bruxas, esse era um destino bastante comum para
aqueles a quem a história tinha interpretado mal gravemente. Entre
tanta crueldade e ignorância tinham surgido os guardiães, para
proteger os profetas mais débeis.
Agora iriam receber outro no rebanho. Seguindo a tradição, o
jovem que agora estava oculto atrás do grande altar devia ser um
familiar de um dos profetas e devia ter nascido sob o signo do fogo e
da guerra. Poderia possuir o dom, em maior ou menor medida. Mas
teria sido doutrinado desde sua juventude por um membro da
Fraternidade, provavelmente um dos defensores, ou por algum
familiar de confiança.
A avó de Geoff era um exemplo desse último. Apesar de ser
proibida de ser membro por ser uma mulher, tinha sido uma agente
leal da Fraternidade na Escócia, onde a seita sempre se manteve com
força. Também tinha tido um poderoso dom, um que Geoff desejava
com todo seu coração poder lhe devolver.
Retornou bruscamente ao presente, quando o senhor
Sutherland terminou a invocação e desceu do púlpito de pedra. Fez-
se um grave silêncio na sala, como sempre ocorria nas estranhas
ocasiões em que chegava um novo membro a Fraternidade e a
iniciação de um guardião era a mais estranha de todas.
Sutherland se dirigiu ao altar que tinha atrás dele, pegou a
chave de metal que pendurava de uma corrente de ouro atada a sua
cintura e abriu uma antiga caixa de ferro com dobradiças. Jogou
para trás a tampa, tirou com cuidado um livro envelhecido, já aberto
e marcado com uma larga fita de cor vermelha sangue.
O Liber Veritas, o Livro da verdade, era o volume mais valioso
da Fraternidade. O antigo tomo descrevia todos os ritos que
conhecia a irmandade e de uma forma ou outra, era usado desde o
surgimento de Roma.
Com a mão direita levantada no eterno gesto de bênção e a
esquerda sustentando o livro aberto, o prior leu umas poucas
palavras, convidando o solicitante a oferecer sua vida à causa e
pedindo a Deus que o protegesse em seu trabalho.
Depois deixou cair a mão e fez o sinal.
Encravado entre duas grossas colunas, o grande altar começou
a vibrar e a chiar, fazendo um som como o da pedra de um moinho.
A princípio devagar, e depois com surpreendente rapidez, o altar
deu meia volta.
O primeiro que Geoff viu foi que, curiosamente, o coroinha
não estava nu.
Embora o tipo estivesse amarrado como devia, pelos pulsos e
com os olhos vendados, não se encontrava totalmente nu, mas sim
levava uma túnica de linho sem mangas que lhe chegava até
debaixo dos joelhos.
E o segundo que viu foi que o coroinha não era um homem.
Alguém abafou um grito.
E não foi ele. Ele não podia respirar.
Sutherland também ficou imóvel diante do altar. Com os olhos
muito abertos, aferrava o Liber Veritas contra seu peito como se
quisesse estrangulá-lo. Abriu e fechou a boca em silêncio e depois
emitiu um estranho som de fervura, como a água descendo pelo ralo
da cozinha.
Impulsionado por esse som, Ruthveyn abriu rapidamente
espaço entre a multidão, agarrou o livro e girou para ficar frente à
multidão.
— Que tipo de brincadeira é esta? — Perguntou, agitando o
livro por cima de sua cabeça. — Por Deus, que o desgraçado
responsável por isto dê um passo adiante!
E o terceiro que Geoff descobriu foi que o coroinha quase
estava nu, porque essa túnica, camisa ou o que fosse que usava
deixava pouco à imaginação. Mesmo assim, a jovem permanecia no
altar, erguida e orgulhosa, apesar de ter os pulsos torpemente
amarrados à frente do corpo. Era alta, com peitos pequenos e
arrebitados, que subiam e baixavam muito rápido, uma juba
selvagem de cachos escuros que lhe chegava até a cintura e esbeltas
pernas que pareciam surpreendentemente fortes.
Surpreendentemente?
Todo aquilo era surpreendentemente... algo. Por não dizer
erótico, com todas essas cordas, vendas e sim, essas pernas...
A sala se converteu em uma confusão. Ruthveyn tinha
encontrado uma adaga em alguma parte e estava cortando as cordas
dos pulsos. A seu lado, Geoff podia ouvir Rance rindo baixo.
Nesse instante, a moça girou um pouco e a fina túnica lhe
deslizou pelo quadril de uma forma sugestiva. Repentinamente
excitado, Geoff fulminou Rance com o olhar, apressou-se a subir ao
estrado, tirando sua túnica e a cobrindo cuidadosamente, com ela.
A moça se encolheu ligeiramente quando a tocou.
Depois, muito mais devagar, Ruthveyn cortou a venda dos
olhos, que tradicionalmente levava o coroinha até que se votava sua
admissão.
A garota olhou a multidão com uns olhos negros muito
abertos, piscou e surpreendeu a todos ao dizer com voz alta e clara:
— Solicito humildemente ser admitida na irmandade — pediu
com um latim perfeito e preciso. — Ganhei esse direito com minha
devoção, com minha força e com minha linhagem. E prometo, por
minha honra, que defenderei por meio da palavra e da espada o
dom, minha fé a minha irmandade e a todos os que dependem dela,
até que o último fôlego abandone meu corpo...
— Não, não, não! — Exclamou Ruthveyn agitando uma mão.
— Minha querida menina, não sei quem te colocou nesta
brincadeira, mas...
— Fui eu. — A voz de Rance também soou
surpreendentemente potente. — Eu apadrinho esta mulher para que
se inicie na mais antiga e nobre ordem, a Fraternitas Aureae Crucis.
Não são essas as palavras mágicas para apadrinhar?
—Você o que? — Disse Geoff. — Mãe de Deus ficou louco?
— Certamente, Rance. — Sutherland por fim tinha recuperado
a fala. — Está brincando com um ritual respeitado e sagrado. Isto é
totalmente inadmissível.
— Isso! — Gritou alguém entre a multidão de túnicas marrons.
Geoff ficou diante da moça para protegê-la, mas ela o afastou
com força e ficou no meio do estrado.
— Por que é inadmissível, senhores? — Perguntou ela. Não
cabia dúvida de que sua forma de falar era de alguém da alta classe.
— Treinei durante dez longos anos. Fiz tudo o que me pediram e
mais, apesar de não ter solicitado nunca nada disto. Mas porque me
pediram... não, me ordenaram, que cumprisse com meu dever,
sacrifiquei grande parte da minha juventude e o tenho feito
unicamente para cumprir com as tarefas que me encomendaram. E
agora me querem negar o direito de pertencer à irmandade?
O rosto sombrio de Ruthveyn se contraiu em uma careta.
— Esse é o problema — Replicou. — Isto é uma fraternidade,
senhora...
— Senhorita De Rohan — Espetou-lhe. — Anaís de Rohan.
— Senhorita De Rohan. — Ruthveyn estava um pouco pálido.
— Bem. Como dizia, isto é uma fraternidade, uma associação de
homens, não de mulheres. Não é uma grande família feliz. — Deu a
volta sobre o estrado. — Rance, deveríamos te açoitar. Pelo amor de
Deus, chamem o Safiyah para que se leve esta pobre moça, e que lhe
busque roupa apropriada.
Senhorita De Rohan.
Por que Geoff achava familiar esse sobrenome?
Não importava. Ruthveyn estava se dando conta, igual a ele,
de que aquela não era uma mulher comum. E não era casada, o que
fazia com que a situação ficasse ainda mais precária. Além disso,
falava e se comportava como uma aristocrata... uma aristocrata
zangada. Apesar disso, permanecia ali, diante de um monte de
homens, praticamente nua e friamente sossegada.
O velho Vittorio lhe tinha ensinado algo, isso estava claro.
Rance, em troca, tinha começado a discutir.
— Onde, cavalheiros, está escrito que uma mulher não pode
pertencer à irmandade? — Gritava. — Giovanni Vittorio, um de
nossos defensores mais leais, acreditou em tomar esta jovem sob seu
amparo e formá-la com nossos métodos.
— Tolices — Replicou Geoff. — Vittorio estava doente. Não
pensava com claridade. Deixaria sua vida em suas mãos, Rance?
Faria? Porque isso é o que está pedindo que façam todos os profetas.
— Esquece que revisei toda a documentação de Vittorio e falei
com a garota. — Respondeu Rance. — Não é esse o dever do
padrinho? Assegurar-se de que o neófito está qualificado? Pois te
posso assegurar que em muitos aspectos, está muito mais
qualificada que eu.
— Isso. — Disse Geoff com severidade. — Não o duvido
absolutamente.
— Sua arrogância me ofende velho amigo. — Disse Rance.
— A mim também. — Interveio a jovem com frieza. — Estou
qualificada. E você, senhor, é um ignorante.
Geoff deu a volta para olhá-la. Ela não tinha feito nenhum
esforço para fechar a túnica que lhe tinha jogado sobre os ombros e
isso, inexplicavelmente, zangou-o. Percorreu-a com o olhar de cima
abaixo e além de irritação, sentiu algo mais na boca do estômago.
— Se, de verdade você for o seguidor de Vittorio. — Disse com
firmeza. — Terá a marca.
Ela levantou o queixo e a raiva brilhou em seus olhos negros.
— Oh, tenho-a. — Disse, levando uma mão à borda da túnica.
— Quer ver a prova?
— Deus Santo, Bessett. — Queixou-se Rance. — Tem a marca.
Me assegurei disso.
Bessett girou na outra direção.
— Te asseguraste? — Repetiu com incredulidade. —
Importaria em me dizer...? Não, não importa. — Voltou a dar a volta
e segurou a moça pelo antebraço. — Você vem comigo.
— Aonde me leva?
Belkadi, um dos defensores, tinha aparecido junto a Geoff.
— A ver o Safiyah. — Respondeu Geoff em voz baixa. —
Parece evidente, embora Rance não o creia assim, que uma mulher
solteira e de boa família não deve estar meio nua, em um local que é
um clube de cavalheiros.
— Oh, obrigado! — Exclamou ela com amargura. — Dez anos
da minha vida atirados na lata do lixo, por uma questão de etiqueta!
Geoff não respondeu, mas sim a levou para que subisse as
escadas. Atravessaram a adega e se adentraram no laboratório.
Outro lance de escadas os levou a planta baixa e por fim, à relativa
intimidade das escadas dos serventes. Durante todo o caminho, ia
falando bruscamente.
Mas não era uma garota.
Não, absolutamente.
E o que acabava de fazer... Deus santo, era buscar a ruína. Será
que não lhe importava nada?
— Está machucando meu braço, caipira. — Disse-lhe. — O que
teme tanto? Afinal, só sou uma mulher.
— Temo por você, pequena estúpida. — Sussurrou. — E cale-
se, antes que alguém, que não possamos ordenar que guarde
silêncio, a veja.
Ao ouvir aquilo, ela se encorajou e se deteve em um patamar.
— Não me envergonho do que sou. — Afirmou, fechando com
força a túnica com uma mão. — Trabalhei muito duro para aprender
minha habilidade.
— Você, senhora, não tem "uma habilidade." — Respondeu com
frieza. — Pelo amor de Deus, pense em outras pessoas, já que não o
faz por você. O que pensaria seu pai, se soubesse onde está neste
momento?
Ante aquelas palavras, ruborizou levemente.
— Para ser sincera, pode ser que não aprovasse.
— Pode? — Contra sua vontade, Geoff voltou a olhá-la da
cabeça aos pés. — Pode ser que não aprovasse? Que sua filha
passeie meio nua por um clube de Londres?
Ela entreabriu seus olhos negros.
— Não é assim. — Disse. — Simplesmente, não contei tudo.
Ainda.
Geoff olhou incrédulo.
— Quer dizer que lhe contou algo?
Ruborizou-se um pouco mais, embora seu tom de voz não se
suavizou.
— Pelo amor de Deus, cada vez que ia à Toscana passava
meses com o Vittorio. — Replicou. — O que acredita que lhe contei?
Que estava fora acabando os estudos em Gênova? Parece-lhe que
estou acabada?
Não, não o parecia.
Parecia algo... selvagem e totalmente inacabada.
Como algo que um homem nunca acabaria... embora não era
precisamente bela. Mas era intrigante, singela e com uma vitalidade
que ele nunca poderia ter. E, fosse o que fosse, não se parecia com
nenhuma mulher que tivesse conhecido... e tinha conhecido muitas.
A ira de seu pai, entretanto, não era assunto dele.
Estranhamente zangado consigo mesmo, girou de novo para ela
conduzindo-a ao seguinte lance de escada. Mas a pegou
despreparada. Um de seus pés se enredou na borda da larga túnica
de lã dele e se balançou perigosamente para frente.
— Oh! — Gritou, e agitou a mão livre em busca do corrimão.
Instintivamente, ele a agarrou. Enlaçou-a pela cintura com o
braço, apertando-a com força contra seu peito.
De repente, o tempo e o espaço se desvaneceram. Foi como se
os dois deixassem de respirar... um instante de pura sensualidade
que fez desaparecer a lógica. E quando ele a olhou nos olhos, olhos
da cor de chocolate quente rodeados de umas pestanas espessas e
negras, sentiu que algo em seu interior se retorcia e se dobrava como
o metal esquentando-se com o fogo de alguma forja sobrenatural.
Seu lábio inferior era carnudo, como um pêssego amadurecido
e por um momento, tremeu quase sedutoramente.
Então a moça o salvou de cometer o disparate que tinha estado
pensando.
— Uff. — Resmungou, afastando-se um pouco. — Se quer me
matar, Bessett, me lance por cima do corrimão e acabe rápido.
— Não me tente. — Grunhiu ele.
Mas, inexplicavelmente, não podia deixar de olhá-la. As
formas de seus extraordinários seios se viam claramente de onde se
encontrava e que Deus o ajudasse, porque não era nenhum anjo.
Com os olhos jogando faíscas, a senhorita De Rohan se
endireitou.
— Importa-lhe, senhor? — Disse, subindo a parte dianteira da
túnica. — Não estou acostumada a expor meus encantos a menos
que estejam dentro de um vestido de baile.
— Mas, como. — Respondeu ele em voz baixa—
Possivelmente isso não acontece muito frequentemente.
Ela se ruborizou violentamente.
— Peço-lhe perdão. — Disse ele. — Mas você escolheu usar
isso, senhorita De Rohan. E, depois de tudo, eu só sou um homem
comum.
Ela fungou com desdém.
— Comum é? Não acredito que ninguém aqui seja comum.
— Acredite querida, quando se trata de mulheres atraentes,
todos os homens são iguais. — Estendeu uma mão com um gesto
mais amável. — Outra razão por que temo por você.
— Está sugerindo que não estou segura nesta casa? —
Perguntou bruscamente.
— Sua reputação não. — Respondeu-lhe — Mas ninguém lhe
fará mal enquanto esteja aqui, senhorita De Rohan. Pode confiar sua
vida a todos e cada um de nós... apesar de eu não deixar de olhá-la.
Com evidente receio ela lhe deu a mão.
— Agora, sobre seu pai... — Seguiu dizendo Geoff com voz
firme. — Acredito que estava a ponto de me dizer quem é.
— Exatamente? — Durante uns segundos, ela mordeu o lábio
inferior. — É um nobre. O visconde De Vendenheim-Selestat.
Geoff olhou atentamente os olhos de cor chocolate.
— E não exatamente? — Insistiu. — Vamos senhorita De
Rohan. Apostaria que você nasceu e cresceu em Londres. Talvez eu
seja um lascivo, mas sou suficientemente sagaz, para saber quando
estão me contando uma verdade pela metade.
Por fim, ela afastou o olhar.
— Faz muito tempo, se fazia chamar Max de Rohan. Ou,
simplesmente, De Vendenheim. Está no... Ministério do Interior.
Algo assim.
Bem. Isso era muito. Geoff reprimiu uma maldição e girou
para levá-la ao seguinte lance de escadas.
De Vendenheim! Precisamente ele! Rance devia estar louco.
Essa merdinha do Chronicle por fim tinha conseguido deixá-lo
completamente insano.
Não sabia muito sobre o título de De Vendenheim, mas estava
seguro de que não era o tipo de homem que se devia contrariar. E
não estava "no Ministério do Interior”, ou algo assim. Ele era o
Ministério do Interior... ou, mais exatamente, era a crueldade que
havia atrás do organismo. Politicamente, era intocável... não eleito,
imparcial e mais ou menos não oficial... a última éminence grise6
Como se fosse um gato negro com nove vidas, esse homem
magro de nariz afiado tinha sobrevivido a uma revolta política atrás
da outra. Tinha presenciado a fundação da Polícia Metropolitana, as
revoltas da Reform Bill, as sangrentas obras dos ladrões de
cadáveres de Londres e todo o cortejo dos ministros do Interior que

6
A locução “eminência parda” é sem dúvida uma tradução do francês éminence grise, termo usado com
intenções depreciativas pelos críticos do padre Joseph, que nas primeiras décadas do século 17 foi uma
figura tão influente na política francesa como braço direito do cardeal Richelieu, o mais importante
ministro do rei Luís XIII.
tinham passado pelo cargo. Deveria estar morto, depois de toda a
agitação, conflitos e violência que tinha visto de primeira mão.
E sua filha tinha sido treinada para ser uma guardiã? E
aparentemente, sem seu consentimento?
Santo Deus.
— Apresse-se. — Disse bruscamente. — Vai se vestir agora
mesmo.
— Uma ideia excelente, dada a corrente de ar que há nestas
escadas. — Espetou-lhe ela. — Não podem comprar carvão? Pensei
que todos eram ricos. Estou descalça e não tive o traseiro tão frio
desde o inverno de...
— Senhorita De Rohan — Interrompeu Geoff. — Não estou
interessado no estado de seu traseiro.
Mentiroso, mentiroso, mentiroso.
— Estou destroçada, milorde! — Disse em tom zombador. — É
obvio, supunha-se que devia estar completamente nua, segundo a
cerimônia... mas nem sequer eu pude ter a coragem necessária para
fazer isso.
— Um pouquinho de bom julgamento pelo que todos
devemos estar agradecidos. — Disse Geoff com os dentes apertados.
E o dizia de verdade. A última coisa necessitava nesse
momento era ter a mente ocupada com a visão de Anaís De Rohan
nua.
Entretanto, já estava imaginando. Evocando essas pernas
longas e perguntando-se se chegariam a...
Não. Não devia saber nada sobre a longitude de suas pernas.
O que tinha que fazer era desfazer-se dela.
Graças a Deus, já tinham chegado ao piso mais alto da casa,
onde Belkadi tinha sua área privada. Uma vez na porta, Geoff
chamou duas vezes com o dorso da mão, forte, sem soltar a harpia.
Necessitou toda boa educação inglesa para não a lançar no interior e
sair correndo assim que a porta se abriu. Sua parte escocesa queria
atá-la a uma rocha e joga-la no Tâmisa.
Safiyah abriu a porta e os contemplou com seus enormes olhos
marrons de corça.
— Milorde. — Disse, surpreendida. — Onde está Samir?
— Seu irmão se encontra ainda no templo. — Respondeu
Geoff, arrastando à senhorita De Rohan ao interior. — Foi uma noite
muito estranha. Sinto irromper desta maneira, mas necessito da sua
ajuda.
— É obvio. — Safiyah baixou o olhar. — Quem é ela?
— O iniciado. — Replicou a senhorita De Rohan. — E tenho
um nome.
Safiyah se ruborizou violentamente e olhou para outro lado.
— Porei um bule no fogo.
A prisioneira de Geoff sentiu remorsos imediatamente.
— Peço-lhe desculpas. — Disse a senhorita De Rohan. — Não
o merecia.
— Não, é certo. — Safiyah apertava as mãos com calma. — Me
perdoem. Só será um momento.
— Sou Anaís. — Disse ela, ao estender a mão. — Anaís de
Rohan. Desculpe-me. Ter sido maltratada nas escadas me pôs de
mau humor. E eu adoraria tomar uma xícara de chá. Por certo, tenho
roupa, lorde Bessett, não vim nua pela rua. Por que você é lorde
Bessett, não é assim? Depois de tudo, não se apresentou antes de me
tirar do templo arrastada para me fazer subir as escadas.
— Onde deixou a roupa? — Perguntou ele, ignorando o resto
do ataque verbal.
Ela abriu muito os olhos, irritada.
— Em uma pequena sala da planta baixa. Entrei pelos jardins.
Geoff se dirigiu imediatamente à porta para chamar um
empregado, mas em seguida, se deu conta de que era uma
estupidez.
— Sente-se e permaneça calada. — Ordenou-lhe. — Eu irei por
ela. E seja amável com Safiyah. Pode ser que ela seja a única amiga
que tenha nesta casa quando acabar essa horrível noite.
Capítulo 3

"O combatente inteligente impõe sua vontade ao inimigo, mas não

permite que o inimigo lhe imponha sua vontade."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Anaís observou o seu captor afastar-se, esfregando


distraidamente os pulsos doloridos. Lorde Bessett era um arrogante
e um cabeçudo. Mas, o que poderia ter esperado? Os aristocratas
arrumados e ricos estavam acostumados a ser exatamente isso.
Aparentemente, o fato de que fosse um membro da Fraternitas não o
fazia necessariamente um modelo de humildade... ou humanidade.
E ela... bom, parecia uma idiota com essa roupa destroçada
que vestia, coberta agora, pela túnica de Bessett, áspera e
horrivelmente gótica. A lã áspera arrastava pelo chão e poderia ter
se envolvido duas vezes com ela. Mesmo assim, sabia que devia
estar agradecida por vesti-la.
Suspirando, se sentou na cômoda poltrona onde Bessett a
tinha empurrado, fervendo de humilhação. É obvio que deveria
sentir-se humilhada. Sabia que deveria. As coisas tinham saído tão
mal como o primo Giovanni lhe tinha advertido que aconteceria.
Mas agora, Giovanni Vittorio estava morto. Sua nonna estava
morta. De fato, todos os que tinham contribuído para levá-la até
aquele estranho e momento de sua vida tinham desaparecido,
deixando-a confusa e só, na parte mais dura do caminho.
Vittorio nunca tinha acreditado que educá-la fosse
especialmente prudente. Nunca o havia dito, é obvio. De fato,
sempre lhe tinha dedicado toda sua atenção. Entretanto, ao longo
dos anos, quando seu carinho mútuo se intensificou, ela pôde sentir
sua preocupação. Uma vez, depois que o bastardo do Raphaele
tinha quebrado seu coração, Vittorio inclusive, tinha sugerido
cuidadosamente, que talvez ela preferisse outro tipo de vida. Uma
vida comum. Que talvez a Fraternitas, os guardiões e inclusive o
próprio dom, não tinham vez no mundo moderno que estava se
desenvolvendo a seu redor.
Mas, inclusive com o coração quebrado, ela tinha querido...
não, necessitado, honrar a memória de sua bisavó. Assim colocou
isso cabeça. Enquanto Anaís fazia todo o possível por aprender tudo
o que se requeria dela, seu velho primo guardava muitas dúvidas. E,
nesse momento, era como se todas essas dúvidas tivessem
fundamento. Anaís se deu conta de que estava piscando para não
chorar.
Ergueu o corpo bruscamente. Além disso, essa sensação de
desesperança não duraria, ela não o permitiria. Nonna Sofia sempre
dizia que a desesperança era própria de covardes e que só lhes
resultava útil às mulheres que se deleitavam na angústia e aos
poetas que procuravam inspiração.
Mesmo assim, por um momento, Anaís se permitiu fechar os
olhos com cansaço e um pouco trêmula, respirou profundamente.
Mas isso só lhe serviu para lhe recordar o arrogante Lorde Bessett,
porque o aroma que inalou foi, inequivocamente, o seu,
envolvendo-a na nuvem estranhamente reconfortante da pesada lã
da túnica.
Uma túnica que a tinha vestido cuidadosamente, recordou.
Era cabeçudo e machista, sim. Tinha-a percorrido com um olhar
atrevido e abrasador mais de uma vez. Não tinha dúvidas de que,
em sua imaginação, tinha visto seus seios nus. Mas pelo menos, sua
preocupação tinha sido autêntica.
Era o suficientemente arrumado para conseguir que uma
garota desmaiasse, se essa garota fosse dada a atos melodramáticos.
Ela não era. Tinha conhecido homens muito atraentes e sabia que
sempre eram conscientes de seu aspecto... e que o usavam. O fato
que soubesse, não suavizava os duros rasgos do rosto desse homem,
nem dessa mandíbula perfeita que parecia esculpida em mármore.
Sob suas sobrancelhas escuras e retas, brilhantes olhos frios e o
nariz era ligeiramente aquilino. Somente seus lábios carnudos,
quase hedonistas, salvavam-no de uma masculinidade
incontrolável. Entretanto, não tinha linhas de expressão que
indicassem que estava acostumado a rir. De fato, Anaís tinha a
estranha impressão de que esse homem carecia totalmente de
humor.
Talvez um homem não necessitasse senso de humor quando
cheirava de maneira tão atrativa. Voltou a captar o aroma de pele
masculina e cítricos. Barbeou-se recentemente, supôs que nas
últimas duas horas, o que provavelmente significava que se
barbeava duas vezes ao dia. Por isso parecia, sentir-se orgulhoso de
seu aspecto, e muito presunçoso.
Aquilo era injusto. Giovanni sempre lhe dizia que o rancor era
indigno dela.
A verdade era que Lorde Bessett não parecia ser consciente de
seu aspecto. Movia-se como um animal esbelto da selva,
instintivamente elegante e delicado, como se fosse o dono do mundo
e apenas lhe dedicasse um pensamento. Os homens superficiais e
egocêntricos eram fáceis de entender... e de manipular, Anaís sabia.
De repente, lhe ocorreu que Bessett poderia não resultar tão
fácil. Caso estivesse disposta a tentar sair quanto ao que se dizia a
respeito dele.
Mas que opções tinha? Ali ele era um líder. Giovanni o havia
dito desde o começo. De fato, havia se sentido profundamente
agradecido pelo esforço que tinha feito Bessett para reconstruir a
Fraternitas e estabelecê-la em Londres, ali, nessa casa, na chamada
Sociedade de Saint James. E a julgar pela patente opulência, gastou-
se muito dinheiro no projeto.
Nesse momento, um débil som a tirou de seus pensamentos.
Sentou-se totalmente reta e viu que a formosa mulher morena tinha
retornado e que trazia uma bandeja com o bule de chá e duas
xícaras.
Deixou-a sem dizer nenhuma palavra e fazendo uma leve
reverência, fez gesto de partir.
A Anaís pareceu divertido que uma criatura tão encantadora e
régia lhe dedicasse uma reverência.
— Sinto muito. — Voltou a dizer. — Fui tremendamente
grosseira e você é muito amável, senhora...
Por fim a mulher levantou o olhar para ela, mas não parecia
nada humilhada.
— Belkadi. — Respondeu tranquilamente. — Senhorita
Belkadi.
— E você vive aqui? — Perguntou Anaís. — Nesta casa?
— Moro com meu irmão Samir.
— Surpreende-me que o permitam. — Comentou com
amargura. — Montou-se um bom escândalo pelo fato de que eu
estivesse aqui.
A senhorita Belkadi passeou o olhar pelo traje insuficiente de
Anaís, mas não fez nenhum comentário.
— Meu irmão é o administrador da casa. — Respondeu com
frieza. — Eu cuido as contas e dirijo os serviçais.
Como uma ama de chaves, pensou Anaís.
Exceto que essa mulher tinha o mesmo aspecto de ama de
chaves como a rainha Vitória o tinha de vendedora. Entretanto,
vestia um traje singelo, um vestido de lã merina cinza escuro que a
cobria até o pescoço e o cabelo negro estava penteado com um coque
do mais simples. Contudo, apesar de tanta severidade, não parecia
muito mais velha que ela mesma.
— Não quer sentar-se, senhorita Belkadi? — Disse
abruptamente. — Sei que não estou sendo muito educada, mas seria
bom ter por perto alguém amável.
De algum jeito, Anaís sabia que sua reticente anfitriã era muito
cortês para negar-se.
— Muito bem. — Respondeu, sentando-se com cuidado com
as saias enquanto se sentava. — Sirvo-lhe?
Anaís sorriu.
— Tem um sotaque encantador. É francesa?
A senhorita Belkadi levantou um instante o olhar.
— Em parte. — Disse. — Açúcar?
— Não, nada, obrigado.
O chá estava quente e era incrivelmente forte. Para sua
surpresa, Anaís o encontrou reconfortante. Apesar de toda sua
fanfarronice, a cerimônia daquela noite a tinha afetado
emocionalmente mais do que queria admitir e uma parte dela se
sentia aliviada de que tivesse acabado.
Só que não tinha terminado.
Anaís estava decepcionada, mas não vencida. Quantas vezes
nonna Sofia lhe havia dito que sua vida não ia ser fácil? Não tinha
havido uma mulher na Fraternitas fazia séculos; talvez desde que
desapareceram as últimas grandes sacerdotisas celtas.
Uma vez que todos superassem a comoção daquela noite, só
devia convencer a Fraternitas de Londres de que a aceitasse. Ou
supunha que podia retornar à Toscana e recorrer aos contatos do
primo Giovanni. A família Vittorio tinha muitos. Mas como grande
parte da Europa, a Toscana era cada vez mais instável e o dom...
bom, não ficava ninguém que a necessitasse. As poucas pessoas que
ainda restavam tinham sido enviadas ao estrangeiro com parentes,
com outros guardiões ao outro lado do continente... todos tinham
ido em busca de uma vida melhor em um oceano de agitação
política.
A senhorita Belkadi pigarreou, fazendo-a retornar ao presente
e a seus deveres de convidada.
— Este chá é incrivelmente forte. — Comentou. — É algo
especial?
— É chá negro do Assam. — Disse sua anfitriã. — Perto do
Himalaya. Lorde Ruthveyn, fez que o trouxessem.
— Ah, Ruthveyn. — Disse Anaís pensativa. — Vi-o esta noite.
Como ele é?
O olhar da senhorita Belkadi se endureceu imediatamente.
— É um cavalheiro.
— E é... hindu? — Insistiu Anaís, que não se dava por vencida
facilmente.
A senhorita Belkadi se esticou visivelmente.
— Acredito que é cristão, mas nunca acreditei que devesse
perguntá-lo.
— Não, queria dizer se for...
Anaís se interrompeu e sacudiu a cabeça. Não importava o
que tinha querido dizer.
— Volto-lhe a pedir desculpas, senhorita Belkadi.
Normalmente não sou tão desrespeitosa. Só posso atribuí-lo a ter
tido uma noite estressante.
Pela primeira vez, Anaís viu um brilho de curiosidade em seus
olhos.
— Sinto ouvi-lo. — Disse com suavidade.
Anaís baixou a vista para seu estranho traje.
— E suponho que deve estar perguntando-se...
A senhorita Belkadi seguia tranquilamente sentada,
arqueando uma sobrancelha perfeita.
— ... Sobre meu adorno. — Conseguiu dizer Anaís. — E sobre
o que estou fazendo aqui.
A expressão da mulher seguia sendo passiva.
— Não estou em posição de perguntar tal coisa.
Nesse momento, alguém bateu na porta e Lorde Bessett entrou
rapidamente.
Em algum momento pôs um casaco, o que era uma pena,
porque em mangas de camisa estava muito atraente. Tinha enrolado
sua roupa em um fardo e a levava sob o braço, embora uma das
pernas de suas calçolas aparecia por abaixo.
De repente, Anaís sentiu desejos de rir. Lorde Bessett,
entretanto, parecia mais indignado. Sem dúvida, não estava
acostumado a fazer os trabalhos de uma donzela.
— Safiyah, há algum lugar onde a senhorita De Rohan possa
se vestir? — Perguntou sem preâmbulos.
— É obvio. — A senhorita Belkadi assinalou uma das portas
que davam à pequena sala de estar. — Em meu dormitório.
Bessett deixou cair o fardo no regaço de Anaís.
— Fiz vir minha carruagem para que a leve a Henriett Place.
— Disse ele. — Eu posso ir andando para casa, assim...
— Obrigado, mas não vivo em Westminster. — Interrompeu-o
Anaís.
Lorde Bessett a olhou com estranheza.
Ele sabia quem era seu pai e inclusive onde vivia. Ela tinha
suspeitado que ele sabia, pelo fato de como tinha mudado seu
comportamento nas escadas.
— De qualquer forma, neste momento meus pais estão no
estrangeiro, lorde Bessett. Em seus vinhedos. Vivo no Wellclose
Square.
Ele abriu muito os olhos pela surpresa.
— No East End? — Perguntou abruptamente. — Sozinha?
— Não. Não vivo sozinha. — Anaís se mantinha inexpressiva,
já que tinha decidido que havia muito que aprender de Safiyah
Belkadi. — E meu cocheiro me espera no Blue Posts. Devo me reunir
ali com ele.
Lorde Bessett voltou a olhá-la com estranheza e Anaís se
descobriu perguntando-se de que cor eram seus olhos. Com a tênue
luz da sala de estar, era difícil de dizer.
— Bom, a noite resultou muito interessante. — Disse ele
finalmente. — Mas não vou permitir que vá sozinha a um vulgar
botequim. Não a estas horas da noite.
A senhorita Belkadi não deixava de passear o olhar de um à
outro.
— É bastante tarde. — Interveio, levantando-se com elegância
de seu assento. — Eu acompanharei à senhorita De Rohan. Talvez
você, milorde, possa me seguir.
Bessett pareceu duvidar uns instantes.
— Se seu irmão estiver de acordo, sim. Obrigado.
— Meu irmão está de acordo. — Afirmou. Havia tornado a
agarrar as mãos e pela primeira vez, Anaís viu a força e a tenacidade
que ocultava esse gesto.
Bessett olhou Anaís.
— Bem. Então, está decidido. — Disse com um tom de voz
mais suave. — Agora, por favor, apresse-se, senhorita De Rohan. Se
passar uma hora mais, compartilharemos a rua com os carrinhos de
mão matutinos de verduras.

*****

Na manhã seguinte, o ambiente que havia entre as sagradas


paredes cobertas de seda da sala de café da Sociedade de Saint
James era estranho. Lorde Ruthveyn estava de pé junto a uma das
amplas janelas, com uma mão na nuca enquanto observava a
entrada do local de jogos de azar de Ned Quatermaine, que era,
aparentemente, um clube privado para os mais elegantes que não
pertenciam à alta sociedade.
À direita de Geoff estava sentado o tenente e lorde Curran
Alexander, que tinha aspecto de não ter dormido nada. Lorde
Manders tinha ido ao aparador, como se quisesse preencher o prato
do café da manhã, que deixou ali, esquecido.
Inclusive o senhor Sutherland, tinha deixado sua xícara de
café, esfriando na mesa.
Quanta consternação pensou Geoff, por uma pequena mulher.
E Rance, é obvio o causador de toda aquela discórdia, ainda
não se dignou a apresentar-se, já que era o tipo de cavalheiro que
não se via antes do meio-dia, a menos que houvesse alguma
guarnição a que atacar ou fora a temporada das perdizes.
Sutherland pigarreou bruscamente e fez um gesto a Ruthveyn.
— Não acredito que devamos esperar mais, Adrian. — Disse-
lhe. — Como prior, estou aqui para arbitrar, não para decidir. Esse
trabalho deve recair em todos vós, os fundadores.
Alexander tinha levantado o olhar para o lorde Sutherland.
— Não pode haver nenhuma dúvida em rechaçar essa mulher,
não é assim?
— Pergunta incorreta, velho amigo. — Ruthveyn fez uma
careta enquanto se sentava. — A questão é se açoitamos Rance pela
brincadeira de ontem à noite ou se só lhe damos uma patada no
traseiro.
— Cavalheiros, não nos precipitemos. — Sutherland tirou seus
óculos de prata e os deixou de lado com ar pensativo. Era um
homem alto com maneiras militares e tinha sido eleito como Prior
por sua sabedoria e seu temperamento. — A participação na
Fraternitas é para vida. Todos sabemos. Quanto à chamada
Sociedade de Saint James, não há normas de atuação nos
regulamentos para expulsar um fundador. E seria muito
precipitado.
— Mas o que aconteceu ontem à noite se passou dos limites,
Sutherland. — Disse lorde Manders, afastando sua xícara de café. —
Colocar uma mulher entre nós? Pense no que ela viu. Imagine tudo
o que contará. Como compatriota de Lazonby, como leal escocês,
estou furioso.
— Os escoceses não têm uma grande influência na Fraternitas,
milorde. — Replicou Sutherland com cansaço. — O dom é mais forte
nas linhagens dessa nação, sim, mais que em outros, isso o admito.
Mas não temos ninguém em mais estima, ou em menos, por sua
raça.
— Além disso, há uma mulher entre nós cada dia. — Interveio
Geoff. — Esquecem que Safiyah Belkadi vive sob nosso teto.
— A senhorita Belkadi somente trata com os empregados. —
Disse Manders. — Ninguém a vê nunca. Logo que fala e,
definitivamente, não fala com homens. E não sabe nada do que
ocorre aqui.
Geoff estava disposto a apostar que a irmã do Belkadi sabia
mais do que ocorria na Sociedade de Saint James do que sabiam a
metade de seus membros, mas se calou prudentemente.
— Além de tudo isso, é irmã de Belkadi e se pode confiar nela.
— Continuou Alexander. — Mas essa mulher De Rohan... Me
atreveria a dizer que não é mais que uma condenada brincadeira do
Rance.
— Cavalheiros, oxalá fosse tão singelo.
Geoff se virou para olhar o Prior, que estava apertando a ponte
do nariz.
— O que quer dizer, Sutherland? — Perguntou Ruthveyn.
O Prior deixou escapar o ar pesadamente.
— Estive acordado toda a noite, lendo os informes que Rance
me deu. A verdade é que são bastante... extraordinários.
— Extraordinários? — Repetiu Geoff. — Em que sentido?
Sutherland assentiu com a cabeça.
— Agora o explicarei. — Disse. — Mas primeiro me deixem
acrescentar que também havia uma carta escrita antes que Giovanni
Vittorio morresse. Suponho que Rance não me deu isso antes
porque teria arruinado sua pequena brincadeira... ou talvez seja
melhor dizer sua surpresa. E é possível, que Rance passasse por
cima, ou que imaginasse que era a carta de um moribundo para um
velho amigo.
O rosto do Alexander se escureceu como uma nuvem de
tormenta.
— Com todo o respeito, senhor, por que tenho a impressão de
que está a ponto de justificar o comportamento de ontem à noite de
Lazonby?
— Ou de nos dizer algo que não queremos escutar. —
Resmungou Ruthveyn.
Também Geoff podia notar uma mudança no ambiente. Tinha
começado a senti-lo na noite anterior, na residência de Belkadi. A
senhorita De Rohan se mostrou muito imperturbável acima de tudo.
Não derrotada, mas sim,... resignada. Tinha perdido os estribos uma
ou duas vezes, mas no fundo, era como se esperasse uma batalha
campal e aquilo fosse somente a salva inicial.
— O que dizia a carta do Vittorio? — Perguntou Geoff com
voz mais calma do que realmente ele se sentia.
— Que a garota é bisneta de sua prima mais velha, uma
vidente chamada Sofia Castelli. — Disse o Prior. — A família tem
suas raízes na Fraternitas desde muito antes de que se conservassem
registros escritos.
— Ela tem o dom? — Disse Ruthveyn.
Sutherland assentiu.
— Em um grau moderado. Mas sua técnica é bastante
incomum... i tarocchi.
— As cartas do tarot! — Exclamou lorde Manders. — Isso só
são palavrórios de ciganos.
Mas Ruthveyn negou com a cabeça.
— Frequentemente o dom se manifesta de maneiras estranhas.
— Disse mal-humorado. — Vejam, podem ser técnicas ligadas à
cultura de cada um. Na Índia, educaram minha irmã na sabedoria
do Jyotish... poderíamos chamá-lo astrologia, e também na
quiromancia. Mas se lhe perguntassem se é uma mística, como
nossa mãe, riria de vocês.
— Lady Anisha pensa que é uma habilidade, não um dom. —
Interveio Bessett. — E, até certo ponto, talvez o seja.
— Até certo ponto. — Mostrou-se de acordo Ruthveyn. —
Talvez.
— E, como seu irmão. — Acrescentou Geoff. — Negou-se que
nosso erudito, o doutor Von Althausen, o estudasse em seu
laboratório.
— Deixa-o já, Bessett. — Advertiu-lhe Ruthveyn.
Geoff sorriu.
— Muito bem. Então, essa prima do Vittorio jogava as cartas.
— Virou para o Prior. — Mas como mencionei antes, a senhorita De
Rohan me confessou quem é seu pai. Como terminou aqui a família?
— Os Castelli comercializavam com vinho por toda a Europa.
— Disse Sutherland, acariciando pensativamente a barba. — A filha
de Sofia se casou com um francês que tinha muitos vinhedos na
Alsacia e Cataluña, mas o homem morreu como consequência da
Revolução. A anciã, senhora Castelli transladou todo o negócio
familiar a Londres para escapar de Napoleão. Era dura como o aço e
governou a família com mão de ferro.
— Castelli. — Murmurou Alexander. — Sim, vi suas carretas
frente a Berry Brothers. E têm armazéns no East End.
Sutherland assentiu.
— O neto da senhora Castelli odiava o negócio familiar e
preferiu os trabalhos policiais, coisa que a anciã pensava que estava
abaixo dele... e acredito que com razão. Causou um grande conflito
na família. Mas em sua maturidade terminou casando-se bem, com
uma viúva de Gloucestershire. A irmã do conde do Treyhern.
Por um instante, Geoff acreditou que tinha ouvido mal. Sentiu
que empalidecia. Treyhern, ou qualquer membro de sua família, era
a última pessoa a quem desejaria zangar.
— Está brincando? — Conseguiu dizer.
Sutherland o olhou de maneira estranha.
— Não. Têm cinco filhos. Os mais velhos são gêmeos, Armand
do Rohan e sua irmã, Anaís. E houve um filho mais velho, a quem
acolheram.
Lorde Manders tinha aberto muito os olhos.
— Conheço Armand do Rohan. — Disse. — Um tipo muito
razoável com montões de dinheiro. Santo Deus. Meu tio e seu pai
são unha e carne.
— Esse deve ser Do Vendenheim. — Disse Sutherland
bastante mal-humorado. — Devemos andar com cuidado,
cavalheiros.
— Eu diria que não deveríamos andar absolutamente. —
Afirmou Ruthveyn. — Em realidade, acabamos com isto, não é
assim? Exceto por dar ao Rance uma boa surra. É obvio, há uma
possibilidade de que a garota fale, mas...
— A garota não dirá nada. — Sutherland voltou a tirar os
óculos bruscamente e os deixou sobre a mesa. — Cavalheiros,
acredito que não me entendem. Vittorio treinou essa mulher
sabendo o que fazia. Instruiu-a amplamente nos textos antigos da
Fraternitas, ao igual em filosofia natural, religião e inclusive, táticas
militares. Fala seis idiomas com fluidez, incluindo latim e grego, e
sabe cavalgar como um homem. Além disso, Vittorio diz que é uma
das melhores espadas que treinou.
— Santo céu. — Sussurrou Alexander. — Nem a École Militaire
oferece uma formação melhor. Mas o manejo da espada? Isso é uma
arte em extinção.
— Talvez esteja em extinção, mas não morto. — Advertiu-lhe
Sutherland. — Nunca se sabe quando pode ser útil tal habilidade.
Em qualquer caso, Vittorio afirma que a garota foi "oferecida" por
sua família.
— Por seu pai? — Ladrou Geoff. — Tolices!
— Pela Sofia Castelli. — Respondeu Sutherland. — Se o pai
estiver a par de tudo o que esteve fazendo a moça... bom, Vittorio
não foi tão claro nesse ponto. Mas disse claramente que Sofia
Castelli estava decidida, completamente decidida, a que se fizesse
isto. Que a moça estava destinada a levar a túnica dos guardiães. E,
conforme dizia Vittorio, a signora Castelli não estava nada contente
com isso. Mas estava segura.
— O que está dizendo, Sutherland? — Perguntou Alexander.
— Que deveríamos... aceitá-la? A Fraternitas não admite mulheres,
nem como priores nem defensores. Nem sequer como eruditos. E, é
obvio, não podem ser guardiães.
— Não posso refutar essas afirmações. — Disse Sutherland —
Mas na Antiguidade houve sacerdotisas celtas, e muito poderosas.
Quanto a épocas anteriores, temo que não possa saber o que se fazia,
ou o que não se fazia.
— Bem. — Respondeu Alexander a contra gosto. — Tem razão
no das sacerdotisas.
— E mais, passei a noite revisando os textos antigos e em
nenhum lugar, em nenhum lugar, insisto, diz que as mulheres não
possam pertencer a Fraternitas. Não se menciona absolutamente o
assunto do sexo. Surpreende-me não me haver dado conta antes.
— Mas isso é ridículo. — Disse Ruthveyn. — As mulheres não
estão capacitadas para fazer esse trabalho.
— Não sei. — Disse Geoff quase sem dar-se conta. — Posso
imaginar perfeitamente a sua irmã Anisha como guardiã, sobretudo,
se algum de seus meninos está em perigo. Pelo menos, eu gostaria
de ver o tipo que se atrevesse a zangá-la.
Sutherland inclinou a cabeça com teima.
— A verdade é, Adrian, e rezei toda a noite por isso, que a
senhorita De Rohan está idealmente capacitada para a tarefa que nos
propuseram esta mesma semana em Wapping.
Ruthveyn ficou gelado.
— Esse assunto do DuPont?
— Exatamente. — Disse Sutherland. — E me pergunto... Bom,
pergunto-me se em tudo isto não está a mão de Deus.
Geoff de repente se deu conta do que estava sugerindo.
— Não. — Disse, levantando-se bruscamente da cadeira. —
Não, Sutherland, isso não funcionará.
Sutherland abriu as mãos, com as Palmas para cima.
— Mas, e se houver algo aqui que nenhum de nós vê? —
Sugeriu. — E se essa menina, Giselle Moreau, está de verdade em
perigo? E se sua segurança depende de algo vital?
— Não te entendo, Sutherland. — Geoff tinha cruzado a sala,
até ficar no lugar que antes ocupava Ruthveyn, junto à janela, e
estava olhando sem ver o exterior. — O que está propondo
exatamente?
— Que escutemos a senhorita Do Rohan. — Disse o prior. —
Cavalheiros, todos acreditam no destino. E se tudo o que nos levou
a este ponto: o fato de que DuPont viesse até aqui, a firme decisão
da senhora Castelli, que Vittorio treinasse com perseverança à
garota, e se tudo é parte de um plano muito mais importante?
— Sutherland, com todo o respeito. — Disse Geoff. — Não
pode estar sugerindo que leve isso a Bruxelas.
— Acaso não somos todos guerreiros que trabalhamos a cada
dia? — Insistiu Sutherland. — Não estamos aqui para o que nos
necessitem? Para proteger aos mais vulneráveis? Alguns de vocês...
todos vocês, em realidade, possuem o dom em maior ou menor
medida. Talvez a senhorita Do Rohan não seja diferente.
Geoff apertou a mandíbula.
— E a sua reputação?
— Isso é decisão da jovem, não te parece? — Replicou
Sutherland. — Em algum momento, decidiu seguir trabalhando
com o signor Vittorio. Tinha que saber onde a levaria isso. Além
disso, faz só uns dias que chegou da Toscana. Irão a Ostende em um
veleiro privado. Se ela tiver cuidado e for inteligente, ninguém se
dará conta de suas idas e vindas.
Geoff passou uma mão pela mandíbula recém barbeada, ainda
olhando pela janela. Sutherland tinha razão com tudo isso? E sobre
Anaís de Rohan? Tinha permanecido acordado a maior parte da
noite refletindo sobre isso... obcecado com isso, em realidade.
Para ele, era a mais estranha das criaturas femininas,
descarada, teimosa e era evidente que possuía uma mente
penetrante. Não havia nada recatado nela... e muito pouca modéstia,
pensou. E, mesmo assim, encontrava-a fascinante.
A verdade era que não conhecia muitas mulheres
intimamente. Tinha tido amantes ocasionais, é obvio, mas o sexo
não era intimidade. Sabia. Igual a Ruthveyn, ele era muito exigente
com as mulheres com as quais se deitava. Um homem que levava
com força o dom no sangue devia escolher com cuidado onde
plantava sua semente.
Sua mãe, a quem ele amava com todo seu coração, era uma
mulher tremendamente tradicional. O lar, a casa, seus deveres e a
família significavam tudo para ela. Lady Madeleine MacLachlan
tinha sido rigorosamente educada para ser o modelo vivente da
moderação feminina e, ao menos em uma ocasião, tinha pago um
preço muito alto por isso.
Talvez não fosse tão mal que uma mulher fosse atrevida. Que
perseguisse o que desejava.
Se sua mãe tivesse se liberado das expectativas da sociedade e
tivesse feito precisamente isso, acaso ele não teria tido uma vida
diferente? Talvez lhe tivessem economizado, ao menos em parte,
uma infância dolorosa e a incômoda certeza de que não era como
outros.
O contraste que sua mãe fazia com uma mulher como Anaís
de Rohan lhe pareceu tremendamente estranho, como essa
misteriosa mulher com a que topou aquela noite perto de St.
Catherine. A senhorita De Rohan também era muito mais intrigante
que qualquer pessoa que tivesse conhecido. O que era bastante
desconcertante, sobretudo, ao dar-se conta de que o argumento de
Sutherland tinha bastante sentido.
Poderia viajar a Bruxelas com ela? Como seria estar em sua
companhia dias inteiros? Sem dúvida, o chatearia durante horas...
mas também saciaria essa fascinação, ou isso esperava.
Aí o tinha. Algo que estava desejando fazer.
Mas era uma loucura.
As vozes estavam subindo de intensidade ao redor da mesa de
café da manhã que tinha atrás dele. Seguiam discutindo uns com
outros, enquanto que ele... Bom, ele estava discutindo consigo
mesmo.
— Então, crê que devemos aceitá-la. — Resmungou Ruthveyn
de mau humor. — Muito bem, cavalheiros. Nada do que façam
poderá arruinar minha felicidade. O dia de minhas bodas está a
ponto de chegar e depois, irei a casa, onde estarei por muitos meses,
possivelmente.
— Em realidade, não sei o que devemos fazer. — Respondeu
Sutherland, que parecia exasperado. — Mas acredito que veio até
aqui por uma razão que nem sequer ela entende. E pelo que li sobre
ela ao ler os informes de Vittorio, sei que não se renderá.
Lentamente, Geoff deu a volta e ao redor da mesa se fez
silêncio.
— Acredito que tem razão nisso. — Disse. — Notei-o ontem à
noite... Que não se sente derrotada, mas sim está esperando o
momento apropriado. E agora estou seguro.
Sutherland se levantou com indecisão.
— Teve uma visão, Geoffrey?
— Não. — Geoff passeou o olhar pela mesa. — Não. Mas
acabo de vê-la descendo de uma carruagem. Está a ponto de bater
na porta.
Capítulo 4

“Se conhecer seus inimigos e te conheces a ti mesmo, nem em cem

batalhas correrás perigo.”

Sun Tzu, A arte da Guerra

Sutherland passou uma mão pelo cabelo prateado.


— E então cavalheiros, estamos de acordo? Nos reuniremos
com a senhorita De Rohan e lhe perguntaremos se está disposta a
nos ajudar? Pelo menos com este assunto?
— Não. — Disse Geoff, abrindo passo entre os demais
homens. — Não, eu falarei com ela.
— Sozinho? — Perguntou Sutherland.
Quase com a mão no trinco da porta, Geoff girou e os olhou
com intensidade.
— Alguém quer ir a Bruxelas em meu lugar?
Todos ao redor da mesa o olharam sem compreender.
— Então, acredito que este assunto é algo entre a dama e eu.
— Disse com firmeza.
Geoff desceu rapidamente a branca cascata que eram escadas
de mármore que se derramava com elegância até o vestíbulo do
clube, com cada degrau um pouco mais largo que o anterior. O
clube era talvez o mais refinado de toda Londres, com seus luxuosos
lustres de cristal, seus esplêndidos tapetes e a coleção de paisagens
europeias que enfeitavam as paredes forradas de seda.
Ruthveyn, Lazonby e ele tinham construído um legado
duradouro em muitos sentidos, a melhor etapa de sua vida. Pela
primeira vez, tinha estado rodeado de homens como ele, homens
que acreditavam na causa da Fraternidade e juntos tinham
conseguido grandes coisas.
Entretanto, não havia se sentido especialmente satisfeito.
Às vezes lhe parecia que sua vida podia dividir-se em três
capítulos. Sua infância, esses anos escuros e espantosos de não saber
quem era ou o que lhe ocorria. Depois tinha chegado o que lhe
pareceu uma iluminação, o tempo que passou com sua verdadeira
avó na Escócia, sua educação acadêmica e ao final, sua bem-
sucedida carreira no MacGregor & Company.
E logo Alvin, maldito fosse, tinha decidido ir caçar sob a
chuva... justo quando a metade da pequena população de Yorkshire
estava de cama, afligida de uma febre virulenta. E isso tinha sido o
começo do terceiro capítulo.
Logo, tinha estado esperando o quarto capítulo.
Mas por que estava pensando nisso agora, parado ao pé das
escadas principais? A senhorita De Rohan não tinha as respostas
que necessitava. Nem sequer podia imaginar quais eram as
perguntas.
Entretanto, estava esperando em algum lugar e merecia
receber a gentileza de um encontro.
O lacaio que estava de serviço o informou que a dama tinha
chegado, tinha pedido para ver o reverendo Sutherland e a tinham
acompanhado à sala de leitura do clube, uma biblioteca privada que
não era aberta ao público.
Obrigado a que se faziam passar por uma sociedade dedicada
ao estudo da filosofia natural, o que não era totalmente mentira, a
Sociedade de Saint James estava acostumada a permitir que gente de
fora, inclusive mulheres, acessasse a suas bibliotecas, arquivos e
manuscritos antigos. A coleção era vasta e abrigavam meia dúzia de
salas de leitura suntuosamente mobiliadas, disseminadas pela sede
central da Sociedade.
A biblioteca privada, entretanto, era uma sala pequena e
íntima que continha seus volumes mais apreciados e estava
reservada ao uso dos membros e seus convidados. Geoff abriu a
porta e por uns momentos, deteve-se na quietude sombria do
corredor, observando como ela se movia pela sala.
Banhada pelos raios oblíquos do sol da manhã, a elegante
jovem parecia a deusa terrestre que tinha conhecido na noite
anterior. A senhorita De Rohan estava perambulando ao longo de
uma das estantes, detendo-se ocasionalmente para tirar um livro,
abrindo-o e voltando a deixá-lo em seu lugar, como se nada a
satisfizesse.
Aquele dia usava um vestido de passeio brilhante na cor azul,
com cetim negro na parte frontal, penteou a juba negra com um
coque frouxo e descuidado, que dava a sensação de que o tivesse
feito no último momento. O instável coque estava coroado por um
pequeno chapéu um pouco torcido; uma criação com laços e cordões
negros decorado com três plumas da mesma cor. Para completar seu
traje, uma bolsinha de veludo negro sujeita com um cordão de seda
com borla pendurava alegremente de seu punho.
Não era precisamente bonita, não, e seu adorno era
possivelmente mais chamativo que estritamente na moda. Mas o
chapéu... Ah, o chapéu lhe dava certo toque de falta de pudor. Em
conjunto, era uma visão arrebatadoramente adorável.
Ela deixou a última de suas leituras em seu lugar com um
pequeno suspiro.
— Rogo-lhe que não me mantenha as escuras, lorde Bessett. —
Disse sem olhá-lo. — Imagino que ainda está zangado comigo, não é
assim?
Surpreso, Geoff entrou na sala com as mãos às costas. Como
demônios o tinha visto, se não tinha virado a cabeça nenhuma só
vez?
— E o que importa se estou zangado? — Perguntou.
Ela voltou a suspirar e virou para olhá-lo.
— Só para que fique claro, eu não sou uma dessas senhoritas
tolas que vão por aí causando problemas por puro prazer. —
Respondeu. — Sim, importa. Trata-se do que você pensou ontem à
noite? Que eu não voltaria? Que tudo era uma brincadeira?
Geoff já não estava seguro do que pensar.
— Senhorita De Rohan, posso lhe perguntar o que a levou a
este estranho ponto de sua vida?
— Como diz? — Arqueou as sobrancelhas. — Que ponto é
esse?
Ele escolheu com cuidado as palavras, mas havia coisas que
tinha que compreender.
— Certamente, saberá que suas ações da noite passada
puseram sua reputação em perigo. — Disse-lhe. — Uma dama
solteira de boa família...
— Vestindo roupa de baixo e mostrando os tornozelos em
público? — Terminou ela a frase, com as mãos agarradas quase
humildemente diante do corpo. — É obvio, mas também sei o que
requer a cerimônia e quanto o valoriza seu Prior, fiz o que pude
fazer. Comprometi-me. Não sou uma... descarada, lorde Bessett.
Bom, não nesse sentido.
Geoff tentou não franzir o cenho.
— Se pretendia fazer esse disparate, deveria haver-se reunido
primeiro com o reverendo Sutherland ...
— E lhe oferecer a possibilidade de me rechaçar diretamente?
— Lhe pedir uma isenção especial.
Deu um passo para ele, com as mãos ainda agarradas com
força e a bolsa negra balançando-se no punho.
— Uma vez que se começa, terá que continuar, lorde Bessett.
— Disse com voz muito rouca para seu gosto. — Uma mulher não
pode esperar que a trate com igualdade se começa pedindo favores
especiais. Além disso, ambos sabemos que a cerimônia estabelece
claramente que o padrinho deve apresentar o candidato na
iniciação, um ritual que data do século XII. A tradição é tudo para a
Fraternidade. Não estava disposta a ser a pessoa que a rompesse...
não mais do que já tenho feito.
— Sei perfeitamente o que a tradição significa para nós,
senhorita De Rohan. — Respondeu, suavizando o tom de voz. —
Mas também sei o que significa a reputação para uma jovem dama
na Inglaterra. Pode ser que os tempos tenham mudado um pouco
para as mulheres solteiras bem-educadas. Mas nem tanto.
— Para ser completamente sincera, Lorde Bessett, minha
educação não é nada do que possa presumir. — Disse a senhorita De
Rohan com frieza. — Por um lado tenho o comércio e por outro,
uma larga fila de libertinos e patifes. Em sua juventude, meu pai
trabalhou durante algum tempo como mensageiro em Bow Street.
Nas estranhas ocasiões em que entrava na casa de algum cavalheiro,
estava acostumado a fazê-lo pela porta de serviço. Sabia isso dele?
Não, suponho que não.
E não sabia.
— Bom, se o fez, foi porque escolheu fazê-lo. — Respondeu
com suavidade. — Não tinha que fazer algo assim para ganhar a
vida.
Ela levantou o queixo e o olhou com ar de reprovação.
— Então, quando um homem se rebaixa é um nobre sacrifício,
mas quando tenta fazê-lo uma mulher é só uma brincadeira? —
Sugeriu. — Meu pai tinha uma obsessão com a justiça, sim. Se você
visse os revolucionários queimando vivo seu pai, faria o mesmo. E
eu poderia fazer coisas piores que seguir seus passos.
Geoff entreabriu os olhos.
— É assim como você vê isto?
Ela estremeceu levemente.
— Veja-o como o vejo, sua preocupação por mim é ridícula. —
Continuou. — Ambos sabemos que se jura manter em segredo a
Fraternidade com sangue. E todos vocês viram já muitos tornozelos.
Entretanto, não estou segura de que se trate disso.
— Não, não é. — Disse ele.
Ela se aproximou de um dos amaciados sofás de couro,
detendo-se para passar os dedos lentamente, com um gesto quase
sensual, por um busto de mármore de Parménides que descansava
sobre uma mesinha, junto ao sofá. Ele não podia deixar de olhá-la. E
esse dia, uma vez passada a quebra de onda de mau gênio e
emoção, a mulher lhe parecia estranhamente familiar.
Estava quase seguro de que a tinha visto antes, mas quando
tentou recordá-lo, ficou em branco. Devia estar equivocado. Ela
nunca se mesclaria com a multidão de belezas afetadas e pálidas que
pertenciam à alta sociedade. Nunca seria o tipo de mulher que um
homem esquecia depois de conhecê-la.
A senhorita De Rohan levantou seus penetrantes olhos
castanhos e os cravou nele.
— Não vou, lorde Bessett. — Disse brandamente. — Não
posso me render tão facilmente. Devo muito a minha bisavó e ao
Vittorio. Quero saber se o Prior revisou meus informes. Quero saber
se há alguma razão pela qual a Sociedade de Saint James me
rechaça, além de meu sexo. Pode me responder a essas perguntas,
senhor? Ou devo acampar à porta de sua casa até que o Prior saia? E,
por favor, lhe diga que não se incomode em usar os jardins traseiros
e esse passadiço oculto que leva a Saint James Park. Conheci esse
truque quando tinha dez anos.
Ao ouvir aquilo, Geoff riu. A ideia de que Anaís de Rohan
assediasse o pobre e velho Sutherland era... Bom, em realidade, era
completamente plausível.
— Me alegro, Lorde Bessett, de que me encontre tão divertida.
— Disse ela.
— Devo confessar que estou começando a gostar disso. —
Então, ficou sério. — Mas nunca se aceitará uma mulher na
Fraternidade. Sinto muito. Não sei por que sua bisavó pensou que
seria possível.
— Mas fiz tudo o que...
Ele levantou uma mão.
— E eu acredito. Os informes do Vittorio o deixam claro. Ele
era nosso defensor mais forte no Mediterrâneo. Sempre estava
disposto a lutar por aquilo em que acreditava e não era nenhum
néscio.
Algo doloroso escureceu o rosto dela.
— Não, não era. Era... era...
Apagou a voz, deu a volta e se dirigiu para a janela.
Embora Geoff nunca tenha sido especialmente compassivo,
algo se moveu dentro de seu coração.
— Senhorita De Rohan. — Disse, seguindo-a até tocá-la
levemente no ombro. — Não pretendia...
Ela estava enxugando os olhos com o dorso da mão.
— Está bem. — Respondeu apressadamente. — É que... Era
meu familiar. Meu mentor.
— Toda a Fraternidade sente muito. — Disse Geoff com
suavidade, afastando sua mão.
Ela levantou o olhar para a janela e olhou para baixo, para
Saint James Place. Ele podia ver parte de seu reflexo reluzindo no
cristal. Sua boca, um pouco trêmula sob uns olhos alagados pela
tristeza.
Assim vistos, eram como a luz e a escuridão: seu vestido
escuro e suas mechas de cabelo negro contra seu próprio cabelo
clareado pelo sol e seu lenço de pescoço, de um branco brilhante.
Era só a mais evidente de suas diferenças, não tinha nenhuma
dúvida. Haveria muitas mais ocultas e seria muito mais difícil lhes
dar sentido.
Mas ele não precisava dar sentido a nenhuma maldita coisa
com Anaís de Rohan. Não precisava conhecê-la absolutamente.
Somente queria que o acompanhasse a Bruxelas por algumas
semanas.
O que era o mesmo que dizer que queria que estragasse sua
reputação.
Como trabalhar e viajar, cotovelo com cotovelo com uma
mulher tão vivaz como ela e não conhecê-la? Deus, era impensável.
Mas não impossível. Poderia suportá-lo. Sobretudo porque a
vida de uma menina estava em jogo. Uma menina que, inclusive
agora, certamente estaria aterrorizada e confusa. O guardião de
Giselle Moreau estava morto. A menina não tinha ninguém que a
guiasse, nem que a protegesse, nos anos mais difíceis de sua vida,
esses anos em que teria que confrontar a terrível verdade sobre ela
mesma. Aceitar que era diferente. Que estava amaldiçoada com um
dom que em realidade não era nenhum dom.
Sabia pelo que passaria Giselle Moreau porque ele o tinha
vivido.
Tinham que trazer a menina para a Inglaterra e lhe atribuir um
novo guardião. Ela devia estar segura durante aquela fase terrível e
vulnerável. E se isso significava que tinha que viver com Anaís de
Rohan, que tinha que olhar esses olhos da cor do chocolate quente
todos os dias durante o café da manhã sem lhe pôr uma mão em
cima, então, sim. Era possível. Sobreviveria à experiência.
Ela o estava observando pelo reflexo da janela, consciente de
que a estava observando. Geoff procurou desesperadamente um
tema inofensivo de conversação.
— Me diga, como era Vittorio? — Perguntou-lhe finalmente.
— Velho. — Disse com uma débil risada. — Velho e muito,
muito tosco. Mas desde que eu tinha doze anos, passava alguns
meses do ano com ele e cheguei a querê-lo como a um avô. Embora
a princípio... A princípio não queria ir. Mas sei que ele desejava o
melhor para mim.
Geoff lhe fez dar a volta com suavidade.
— Ele queria... tudo isto para você? — Perguntou, abrindo os
braços. — A decisão foi de sua bisavó, mas o que pensava Vittorio?
Durante um instante, seu olhar se endureceu e ele pensou que
não ia responder.
— Tinha suas dúvidas. — Admitiu finalmente. — E quem não
as teria? Mas Vittorio era de outra época. Com um modo de vida
diferente. Vivemos em um mundo em transformação, Lorde Bessett.
Inclusive a Fraternidade está mudando e vocês foram os
instrumentos dessa mudança. Céus, consolidaram todos os registros
e genealogias, construíram laboratórios e bibliotecas e reuniram um
grupo que estava disperso por todo o continente. Por que os custa
tanto acreditar que uma mulher pode oferecer algo como guardiã?
— As mulheres têm muito a oferecer. — Admitiu. — Sempre o
tiveram. Por exemplo, quem me treinou foi minha...Bom, uma
amiga muito querida da família. Uma vidente escocesa. Uma
mulher que tinha muita influência na Fraternidade e muito poder.
Deu tudo de si mesma. Muitos de nossos mestres mais capitalistas
são mulheres, e sempre o foram.
— E mesmo assim, não há lugar para mim? — A senhorita De
Rohan levantou o queixo, desafiante. — O certo é que eu não sou
uma mestra, Lorde Bessett. Sei ler o tarô, nonna Sofia me ensinou. E
às vezes... Bom, às vezes adivinho o que outros estão pensando, ou
sinto sua presença. Apesar disso, sou forte, resolvida e bem-
disposta. Acredito na Fraternidade Aureae Crucis e em sua nobre
missão. Assim volto a lhe perguntar: não há lugar para mim aqui?
— Você é uma amiga da Fraternidade, senhorita De Rohan.
Sempre o será. Vittorio e sua bisavó se encarregaram disso. Com o
tempo, sim, poderia converter-se em uma dessas mulheres que têm
grande influência na seita.
— Então, isso é tudo? — Baixou o tom de voz, desalentada. —
Essa é a resposta final da Fraternidade a meus dez longos anos de
esforço?
Durante uns segundos, Geoff pensou no que estava a ponto de
dizer... e suas motivações para dizê-lo. Tinha a estranha sensação de
estar se afundando em algo que não tinha fundo. Algo que, sem
dúvida, seria fresco, refrescante e impactante para o corpo ao tocar a
superfície e mergulhar nisso. Mas nessas profundidades, havia um
mistério.
— Em realidade, pode ser que haja, se você quiser, há algo no
que pode nos ajudar.
— Ajudá-los? — Perguntou com incredulidade. — Não me
querem, mas tenho que ajudá-los?
— Primeiro me escute. — Disse-lhe. — E depois, negue-se, se
isso a satisfaz. Sinceramente, acredito que deveria fazê-lo. E não
tenho nenhuma dúvida sobre o que seu pai desejaria que fizesse.
— Lorde Bessett. — Deu uns passos para aproximar-se dele —
Sou uma mulher madura e posso enfrentar às esperanças de meu
pai. E francamente, não tem muitas. Não é exatamente o típico
cavalheiro inglês.
— Nem sequer é inglês, não é assim?
— Talvez não por linhagem. — Dedicou-lhe um sorriso
sarcástico. — Mas como adivinhou, eu nasci e me criei na Inglaterra.
Cresci em Gloucestershire e em Londres, exceto esses meses ao ano
em que ia à Toscana. Mas, voltemos para suas esperanças... O que
querem de mim?
Geoff pensou qual seria a melhor maneira de explicar-lhe.
— É algo incômodo. — Disse. — Necessito uma mulher...
Ela riu.
— De verdade? Com esse cabelo de cor bronze e essa
mandíbula que tem, não acredito que isso seja um problema.
— Senhorita De Rohan...
— Devem ser esses olhos sombrios. — Interrompeu-o, dando
voltas a seu redor como se ele fosse um cavalo no leilão de
Tattersall. — Oh! São bonitos, mas não inspiram poesia... não o tipo
de poesia que encantaria uma mulher, em qualquer caso.
Geoff a olhou arqueando uma sobrancelha.
— Um golpe que me esmaga, certamente. — Murmurou. —
Mas a habilidade com a pluma não é exatamente um dos talentos
que procuro em uma mulher.
Ao ouvi-lo, um sorriso preguiçoso curvou a boca dela.
— Ah, não? — Murmurou. — Então, talvez não aponte
suficientemente alto, milorde.
Ele sorriu.
— Estamo-nos desviando do tema. Me deixe tentar retornar à
conversação que nos ocupa. — Assinalou dois sofás de couro que
havia perto da lareira, — Quer sentar-se, senhorita De Rohan? O
teria pedido antes, mas há algo em você que me desconcerta.
— Já me disseram que causo esse efeito nas pessoas. — Disse
ela. — Bem, obrigado. Me sentarei. E você me dirá o que é que
querem que faça.
Geoff ganhou um pouco de tempo pedindo café ao criado. A
senhorita De Rohan lhe assegurou que tomava quente, puro e muito
forte. Era estranho, mas ele poderia tê-lo adivinhado.
Enquanto esperavam, Geoff se obrigou a iniciar uma insípida
e formal conversa sobre o tempo inglês, o início da temporada de
eventos sociais londrinos e a alta sociedade em geral.
Mas a senhorita De Rohan não participava muito. Estava
indecisa sobre o primeiro tema, desconhecia o segundo e se
mostrava depreciativa sobre o terceiro, lhe recordando que, por
muito que o tentasse, possivelmente nunca a veria como uma
mulher qualquer.
Quando lhes serviram o café, Geoff se rendeu e foi direto ao
assunto, repetindo quase textualmente a história que DuPont tinha
contado sobre Giselle Moreau e a prematura morte de seu pai.
Quando ela terminou o café, deixou a xícara vazia na mesa e
se reclinou no sofá.
— E esse endereço de Bruxelas é uma casa, imagino.
— Isso me disseram.
— Sabe você escalar?
— Escalar?
— Árvores. — Disse ela. — Calhas, cordas. Em resumo, você
ainda é ágil, milorde? Ou a rigidez da idade se instalou em você
junto a sua inflexível atitude?
— Santo Deus, senhorita De Rohan! — Geoff se sentia
insultado. — Ainda não tenho trinta anos. — E era verdade, embora
por pouco tempo. — Sim, sei escalar. O que isso tem há ver com o
tema?
— Bom, quer me levar com você a Bruxelas. — Disse ela. — Se
não fosse assim, outra pessoa estaria me contando tudo isto. Assim
iremos juntos. Me farei amiga dessa mulher, ganharei seu favor
inclusive, e depois darei um jeito para entrar no quarto da menina e
abrir uma janela. Então você poderá escalar de noite... ou o farei eu e
nós levaremos a menina enquanto uma carruagem nos espera
abaixo. Poderemos partir para Ostende...às duas ou as três da
manhã.
— Assim simplesmente? — Disse secamente.
— Assim simplesmente. — Respondeu ela. — Não pode estar
a mais de cento e trinta quilômetros para a costa. Uma vez que o
trem fique em marcha... por volta das cinco e meia, diria eu,
poderemos abandonar a carruagem no Gante e chegar ao porto, a
tempo para tomar o café da manhã.
— Começo a pensar que Lazonby e você deveriam cuidar
disto. — Resmungou. — São iguais. Isso destroçaria o coração da
pobre mulher.
— Que pobre mulher? — A senhorita De Rohan abriu muito
os olhos. — Oh! Sim, já sei o que quer dizer. A mãe. Bom, sempre
podem lhe enviar uma nota quando a menina estiver a salvo em
solo inglês. Provavelmente não seja cúmplice em nada disto, embora
sua sensatez ao envolver-se com esse Lezennes é, no melhor dos
casos, questionável.
Geoff não disse nada, mas não podia negar que tinha pensado
o mesmo. O período de luto nem tinha terminado. De verdade
estava pensando já no matrimônio?
— Acredito que é mais provável que a mulher se encontre na
miséria. — Disse ele pensativo.
A senhorita De Rohan pareceu considerá-lo.
— Uma razão a mais para reconciliá-la com seus parentes
ingleses. Enquanto estamos fora, seu Prior pode indagar essa família
de Colchester. Ao fim e ao cabo, ele é o genealogista, não é assim? E
um ministro ordenado pela Igreja?
— É ambas as coisas, sim. — Respondeu Geoff.
A senhorita De Rohan lhe dedicou um sorriso mordaz.
— Bom, segundo minha experiência, ninguém pode
prodigalizar o remorso como um sacerdote dedicado a procurar a
redenção para a alma de algum pobre diabo. E me parece que
Sutherland poderia fazer esse trabalho.
Geoff baixou sua xícara de café muito lentamente.
— Bom, senhorita De Rohan, parece ter tudo bem planejado.
— Murmurou. —Mas lhe falta um elemento imprescindível.
— E qual pode ser?
— Um convite.
Pelo menos, ela teve a decência de ruborizar-se.
Bom, a verdade era que ia convidá-la. Era impulsiva, mas não
estúpida. E tinha feito uma opinião dele bastante acertada. Além
disso, o plano que tinha proposto era precisamente o que Rance
teria feito.
Entretanto, não era o que ele teria feito.
Olhou-a do outro lado da mesa de café.
— Senhorita De Rohan, quantos anos tem?
Ela levantou o queixo e lhe brilharam os olhos.
— Que grosseiro. Uma dama nunca diz sua idade. Embora,
para falar a verdade, nenhuma vez pretendi ser uma dama, não é
certo?
— Acredito que esta dando voltas para não responder.
Ela sorriu.
— Muito bem. Tenho vinte e dois anos, ou logo os terei.
— Você é muito jovem. — Disse ele. —Acredito que ainda
possui a impetuosidade e a impaciência da juventude.
— Isso espero, e o otimismo. Essa maravilhosa sensação de
que tudo é possível. Sim, sou culpada de todos os cargos. Além
disso, a impaciência nem sempre é ruim.
Geoff se recostou contra o assento do sofá e a olhou fixamente.
— Me permita lhe explicar algo, senhorita De Rohan. — Disse
com suavidade. — Se correr o risco de me acompanhar a Bruxelas,
terá que aceitar as consequências.
— Para minha reputação, quer dizer. — Sorriu-lhe, mordaz. —
Entendo-o, lorde Bessett. E, por certo, não estou procurando marido.
— É bom saber, porque aqui não vai encontrar. E os riscos, é
obvio, podem ir além de uma reputação manchada. Exceto pelo que
DuPont nos há dito, não sei nada do Lezennes, nem sequer se é um
homem muito perigoso. Em realidade, nem sequer conheço o
DuPont. Nosso contato da Fraternidade em Roterdam fará o
possível, é obvio, mas a verdade é que podemos estar nos colocando
na guarida do leão.
— Anotado. — Disse ela.
— E sua família. — Insistiu ele. — Não posso imaginar o que
lhes vai contar, mas é sua decisão enfrentar isso. Não me faria muita
graça que seu pai me jogasse uma luva na cara, senhorita De Rohan.
— Por favor, me chame Anaís, já que está contemplando
intimidades tais como um encontro à alvorada.
— Falo a sério. — Disse ele. — Sei da influência que seu pai
exerce em Whitehall e particularmente, importa-me um nada. A
Fraternidade também é muito poderosa. Inclusive tem poder nos
níveis mais altos do governo. Estamos entendidos?
Ela arqueou as duas sobrancelhas e o fulminou com o olhar.
— Ontem à noite vi um ministro do gabinete, dois
subsecretários e um membro do conselho secreto debaixo desses
capuzes marrons. Não sou tão impetuosa Milorde, para não
entender que a Fraternidade chega às esferas mais altas de nosso
governo.
— Há uma coisa mais que deve compreender. — Continuou
ele. — Se seguirmos adiante, eu estou no comando. Tomarei todas
as decisões nesta operação. Não terei tempo para discutir com você,
ou rebatê-la. Sou um homem franco, mas implacável, senhorita De
Rohan. Trarei essa menina, o asseguro. Entretanto, não romperei o
coração dessa pobre mulher no processo nem pisotearei seus
desejos... a menos que a vida de alguém esteja em perigo.
Compreende o que lhe estou dizendo?
— Que vou ser um simples peão em seu plano, professor? —
Sugeriu ela.
— Isso e que não tenho um plano. Mas elaborarei um de
acordo com as circunstâncias. E você se ajustará a ele a cada passo
do caminho ou farei que Dieric Van de Velde a leve em pessoa de
volta a Ostende e a meta nesse barco ele mesmo.
— Sim, sim, capitão. — Brincou a senhorita De Rohan.
— Então... parece-lhe aceitável?
Ela sorriu amplamente.
— Pensava que me ia espantar com seus latidos e suas
ameaças, Milorde? Não funcionará. Isto é o que se supõe que tenho
que fazer, ajudar a fazer justiça em um mundo injusto.
— Tão singelo como isso, não é assim?
—Pensava que me meti nisso pelo vestuário? — Disse rindo.
— Francamente, essas coisas marrons ásperas têm aspecto de
albergar animais medievais.
— Então, isto é o que você desejava? — Disse ele. — Não a
participação na Fraternidade?
Todo o humor desapareceu.
— Oh, definitivamente, eu não disse isso. — Sua voz rouca fez
com que ele estremecesse. — O que estou dizendo é que isto é...
Bom, é um começo, possivelmente.
— Um começo. — Repetiu ele.
O sorriso dela esquentava como o sol.
— Sim e um muito promissor. Sim, Lorde Bessett, estarei
encantada de acompanhá-lo a Bruxelas e de tomar nota de seus
latidos e grunhidos o melhor que possa. Agora, estou oficialmente
convidada?
Durante um segundo, ele hesitou.
Sem dizer uma palavra, Anaís de Rohan estendeu uma mão
por cima da mesa de café.
Muito a contra gosto, Geoff apertou essa mão, pequena e fria.

*****

Ao início da tarde, algo típico londrino se instalou sobre o rio,


uma neblina fétida tão espessa que os cocheiros que a atravessavam
mal podiam ver as cabeças de seus cavalos e de tão pestilento os
fazia chorar.
Ao longo de Fleet Street, os jornalistas corriam para cima e
para baixo com a esperança de cumprir com a data limite da tarde,
chocando uns com os outros entre maldições e empurrões enquanto,
abaixo, a carreta carregada procedente de Blackfriars não se deu
conta de que se aproximava a carruagem do correio.
Essa desafortunada circunstância fez que a carreta virasse
bruscamente, deixando os quatro cavalos da carruagem tremendo e
chutando e o lorde Lazonby, manchado de carvão até os tornozelos.
Amaldiçoando sua má sorte, sacudiu o asqueroso pó negro das
botas e passou rapidamente junto aos condutores que, sem deixar de
discutir, estavam agarrados, um no casaco do outro.
Lazonby cruzou a rua driblando os veículos parados,
atravessou a bruma a grandes pernadas e depois girou para o beco
que levava até St. Bride. As maldições e o barulho de Fleet Street
logo começaram a desvanecer-se, como se tivesse posto algodão
tapando os ouvidos.
Com a astúcia de um homem que sabia o que era ser de uma
vez caçador e caça, rodeou a igreja mais por instinto que porque o
vissem, e entrou no cemitério. Depois de avançar cuidadosamente
entre as lápides, escolheu um lugar. Uma pequena curva coberta de
musgo que se encontrava detrás de uma das tumbas maiores, junto
às janelas da igreja que davam ao norte.
Sentindo que a raiva lhe fervia na boca do estômago, o conde
se apoiou contra a fria pedra de St. Bride e ficou cômodo para o que
podia ser uma longa e úmida vigília.
Porém, meia hora depois ouviu umas pegadas, amortecidas e
imateriais na névoa, aproximavam-se dele desde o Bride Court.
Com a mandíbula bem apertada pela ira, Lazonby viu que
Hutchens, que trabalhava como seu segundo lacaio durante três
meses, materializava-se na penumbra. O maldito idiota ainda usava
o uniforme vermelho. Isso e o som de sua respiração, nervosa e
nasal, faziam-no inconfundível.
Embora normalmente, Lazonby não dava importância a seu
traje, usando sem pensar o que seu novo criado de quarto lhe tinha
deixado sobre a cama, nesse dia se vestiu cuidadosamente,
escolhendo peças com tonalidades cinzas e de cor carvão. Assim se
fundia com a névoa e a pedra, como se fosse um fantasma.
Jack Coldwater, entretanto, brilhava como sempre. Esse
bastardo dobrou a esquina da igreja, quase roçando-o ao passar pela
última das lápides e entreabriu os olhos para ver melhor na
penumbra.
— Eu não gosto nada disso, Jack. — Queixou-se Hutchens
quando se aproximou. — Os cemitérios me dão calafrios.
— Tendo em conta o que está me custando, pode tremer até
que o inferno se congele. — Replicou Coldwater firmemente. — O
que tem?
Lazonby viu que Hutchens metia uma mão no bolso.
— Muito pouco. — Disse, lhe estendendo um papel dobrado.
— Esta noite vai ao clube Quatermaine... uma farra que faz com
regularidade, isso ouvi. E vi seu criado de quarto escovando seu
segundo melhor casaco, o que provavelmente significa outra rápida
visita à senhora Farndale, mas não saberia dizer se o fará esta noite
ou amanhã.
— Esse homem tem as inclinações sexuais de um vira-lata
ofegante. — Disse Coldwater com os dentes apertados enquanto lhe
arrebatava o papel. — E depois?
— Depois do que? — Disse Hutchens na defensiva. — Já te
disse quando começamos isto que Lazonby não está acostumado a
ajustar-se a uma agenda. Tem sorte de conseguir isto. — Fez uma
pausa e estendeu uma mão, com a palma para cima. — E agora,
onde está meu dinheiro?
Coldwater meteu o papel no bolso e tirou seu moedeiro.
— Por isso, só te dou a metade. — Resmungou.
Hutchens abriu a boca para protestar. Na penumbra, Lazonby
se inclinou para frente e deixou cair umas moedas na mão
estendida.
Hutchens uivou, deu um bote e jogou o dinheiro à névoa.
— Santo Deus! — Gritou Coldwater ao ver como caíam as
moedas. — Mas o que...?
— Isto é o que te deve desde a Anunciação, Judas. — Lazonby
olhou o lacaio, que estava encolhido de medo detrás de um pequeno
monumento de mármore. — Gasta-o sabiamente, porque não vou
dar nem meio penique mais, nem sequer uma recomendação.
— M...mi...milord? — Grasnou o lacaio.
— Assim é. — Disse Lazonby friamente. — A névoa pode
ocultar uma grande quantidade de pecados, não crê? Agora, fora
daqui Hutchens. Se vai correndo até Ebury Street, pode ser que
chegue a tempo de recolher suas coisas antes que os meninos da rua
as levem. Vai encontrá-las amontoadas no beco.
O lacaio saiu correndo, esquecendo as moedas. Lazonby girou
e viu que Coldwater se afastava, caminhando lentamente para trás.
Seguiu-o com uma mão apertada em punho ao flanco, preparado
para lhe dar um murro.
— Quanto a ti, pequeno descarado maquinador. — Disse
Lazonby, fazendo com que o jornalista desse outro passo atrás. —
Onde as dão, tomam. E, diferente de Hutchens, seus empregados do
Chronicle vão ter tempo de comer um bolo e uma bebida.
Por um instante, Coldwater ficou sem palavras. Com os olhos
muito abertos, deu outro passo para trás, mas o salto topou com a
base de uma lápide mortuária que tinha encontrado recentemente
seu próprio descanso eterno. A lápide se balançou de maneira
precária, fazendo que Coldwater caísse para trás, movendo os
braços.
Lazonby se inclinou para frente, agarrou o braço e puxou o
homem para ele.
— Agora, me escute, e me escute bem, seu merdinha. —
Grunhiu. — Se alguma vez souber que olha a algum de meus
serventes, te deixarei sem trabalho. Comprarei seu maldito jornal e
me assegurarei de que não volte a trabalhar. Ouve-me?
Coldwater estava tremendo, mas não intimidado.
— Sim, você e sua Sociedade de Saint James acreditam que
podem governar o mundo, não é assim, Lazonby? — Acusou. —
Pois os tenho vigiado, sei que algo está ocorrendo nessa casa.
— Não sabe nada, Coldwater, exceto como levantar fofocas e
insinuações. — Grunhiu Lazonby.
— Ah, não? E quem era esse enorme francês que estava no
Boteqim do Whitby? que você não queria que visse?
— Se havia algum francês, faria bem em esquecê-lo.
— Eu não esqueço nada. — Replicou o jornalista com tom
ameaçador. — E sei que navegou até Dover em um barco francês
com ao menos uma dúzia de homens armados. E levava algo mais:
documentos diplomáticos falsificados em uma pasta marcada com
um estranho símbolo.
A raiva e uma estranha mescla de emoções estavam
começando a explodir na cabeça de Lazonby. Tomou ar para
acalmar-se.
— Você... Você não sabe do que está falando.
— Essa marca misteriosa. — Insistiu o jornalista. — A que está
gravada em pedra na frente da Sociedade. Sei que significa algo,
Lazonby. E você está fugindo de mim por alguma razão.
— Qual o seu problema? — Lazonby puxou o tipo com tanta
força que os dentes tocaram castanholas. — Por alguma razão,
parece decidido a converter minha vida em um inferno.
Coldwater entreabriu os olhos.
— Porque você, senhor, não é mais que um valentão assassino
com colete de seda fina. — Rugiu. — E é responsabilidade do jornal
persegui-lo se o governo não pode fazer... ou teme fazê-lo.
Nesse momento, Lazonby quis matá-lo. Lhe rodear o pescoço
com as mãos e... Deus Santo, não sabia o que queria fazer com ele.
Essas vis e terríveis sensações estavam surgindo de novo em seu
interior.
Ia se sentir assim cada vez que passasse um maldito momento
em companhia de Coldwater? De repente o ar pareceu espessar-se
com o aroma do jovem: medo misturado com sabão e algo que
quase lhe resultava familiar.
Lazonby engoliu em seco com dificuldade e se obrigou a soltá-
lo.
— Não. — Disse em voz baixa, e deu um passo para trás. —
Não, isto não tem nada a ver com minhas loucuras de juventude,
Jack. Isto é algo pessoal.
Coldwater ajeitou o casaco.
— Talvez creia que o público tem direito de saber, ou seja,
como é possível que um homem que foi sentenciado à forca por
assassinato agora está livre, acotovelando-se com os ricos e
capitalistas de Londres.
— Suponho que refere a Ruthveyn e a Bessett.
— Há mais ricos e poderosos? — Replicou Coldwater. — Por
certo, ouvi que Ruthveyn se agenciou à companhia do Star of
Bengal. Se incomodaria de me dizer o que vai fazer a Sociedade de
Saint James na Índia?
— Pelo amor de Deus, Coldwater. — Lazonby se inclinou e
recolheu um xelim do chão. — Não tem mais o que fazer? Ruthveyn
se casou. Vai levar a sua mulher a Calcutá.
Mas só lhe respondeu o silêncio.
Lazonby se levantou e viu que estava falando com os mortos.
Jack Coldwater tinha desaparecido na névoa.
Capítulo 5

"O general que vence uma batalha faz muitos cálculos mentais

antes que se livre da batalha."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Dois dias depois das peripécias de Anaís na Sociedade de


Saint James, um grupo pequeno, mas intrépido partiu antes do
amanhecer para fazer a primeira etapa da viagem a Bruxelas.
Viajaram em uma carruagem particular até Ramsgate, o que
significava que Anaís foi na carruagem, o lacaio e o cocheiro de
lorde Bessett foram no exterior da cabine. O conde cavalgava junto a
ela em um enorme cavalo marrom de aparência desagradável e com
tendência a morder... características que segundo Anaís, lembravam
seu dono.
Para manter a farsa, ela tinha insistido que nenhum servo os
acompanhasse durante a travessia. Sua filosofia era " perdidos no
rio", e nenhuma donzela ia poder salvá-la da indecência que estava
a ponto de cometer.
Depois de uma longa discussão, Bessett finalmente tinha
cedido e enviado uma nota ao senhor Van de Velde para lhe pedir
que contratasse uma empregada e um criado de quarto para que os
recebessem em Ostende. E assim foi como Anaís passou o dia todo
só na cômoda carruagem de Bessett, sem outra coisa por companhia
que não fosse um monte de revistas.
Como acabava de passar muitos dias em viagem desde a
Toscana, aquele trajeto a estava aturdindo. E também a obrigou a
admitir que tinha tido a secreta esperança de que Lorde Bessett a
acompanhasse... só para aliviar o aborrecimento, é claro. Não
pensava nem por um momento em seu cabelo clareado pelo sol nem
em sua mandíbula, dura e forte. E esses olhos brilhantes... Bom,
apenas prestava atenção.
Mas o tempo estava agradável, os caminhos estavam secos e
Bessett não se dignou a desmontar, exceto nas esporádicas paradas
que faziam. Parecia decidido a manter distância.
Chegaram a uma pousada caindo aos pedaços perto do porto
de Ramsgate justo quando se formava uma forte ventania. Anaís
observou a placa com o nome da pousada que estava pendurada
oscilando incontrolavelmente e começou a temer a travessia.
Metendo-se em seu novo papel de esposa solícita, esperou
impaciente na carruagem até que Besstt retornou após fazer todos os
preparativos. No pátio da pousada, ele a ajudou a descer, sempre
com o cenho franzido.
— Não conhece ninguém em Ramsgate? — Perguntou-lhe
pela terceira vez.
Anaís levantou o olhar para a entrada da pousada.
— Nenhuma alma. — Respondeu. — Como é a cozinha deste
lugar?
— Tolerável, acredito. Farei com que lhe sirvam o jantar às
sete.
— Não vai jantar comigo?
— Ainda estamos na Inglaterra. E tenho coisas para fazer.
— Muito bem. — Respondeu ela sem alterar o tom de voz. —
Que seja algo leve. Sopa, talvez.
Ele entreabriu os olhos contra o sol da tarde e olhou o pátio da
pousada pela quinta vez.
— Escolhi este lugar porque não é especialmente popular... o
que significa que não é o melhor. Mas têm uma pequena suíte, assim
Gower pode dormir em uma cadeira, em sua sala de estar.
Anaís olhou com cautela o jovem lacaio de Bessett, que tinha
começado a descer a bagagem.
— Estou segura que pretende ser gentil. — Disse-lhe. — Mas
não seria melhor que eu dormisse na sala de estar para cuidar dele?
Bessett a insultou com um olhar inexpressivo.
Anaís levantou um pé e ergueu uns centímetros das saias. Ele
viu o cano de seu pequeno revólver, que por um momento brilhou
com um raio de sol.
— Acredito que arrumarei isso.
Bessett deslizou o olhar para cima lentamente. Talvez muito
lentamente. E esses olhos, uns olhos que ela já tinha visto fazia
tempo que eram de cor azul claro, pareceram estranhamente frios e
quentes ao mesmo tempo e a fizeram estremecer.
— Já vejo. — Disse ele finalmente. — Mas...
— Mas? — Anaís o olhou com impaciência e baixou a voz. —
Me diga Bessett, acredita que estou qualificada para fazer isto ou
não? Se começarmos esta missão com você se preocupando comigo
o tempo todo, serei um estorvo, não uma ajuda.
— Só queria dizer que...
— Sei o que queria dizer. — Interrompeu-o com firmeza. —
Obrigado. Você é um cavalheiro. Mas eu não sou exatamente uma
dama e posso lhe assegurar que o pobre Gower não viu nada do
mundo comparado comigo. Tenho uma navalha na bolsa, um
estilete oculto na manga e o ouvido de um cão de guarda bem
treinado. Entretanto, esse pobre moço... Francamente, parece que
acaba de cair de uma carreta de uma granja de Dorset. Além disso,
não parece haver problemas em Ramsgate.
As maçãs do rosto do Bessett se coloriram ligeiramente e
Anaís pôde sentir literalmente como ele lutava por controlar o seu
aborrecimento... e a sua preocupação.
— Muito bem. — Espetou-lhe. — Mas se te matarem, não
assistirei ao funeral.
— Não esperaria que o fizesse. — Replicou ela. — Sua única
preocupação, e a minha, deve ser Giselle Moreau.
Nesse momento, Gower passou ao cocheiro o baú de viagem
de Anaís. Ela começou a andar para atravessar o pátio da pousada.
— Vamos, venha comigo. — Ordenou a Geoff. — Quero saber
aonde vai e quando você planeja voltar.
Bessett a seguiu, ruborizando um pouco mais.
— Já se colocou no papel de esposa controladora?
Anaís seguiu caminhando, mas jogou um olhar de frustração.
— Não, estou atuando como sua companheira nesta missão. —
Sussurrou. — Ambos devemos saber o que o outro está fazendo a
todo momento... começando por agora mesmo. O contrário nos
levaria ao fracasso, e você sabe.
Ele sabia. Ela viu em seus olhos que o admitia a contra gosto.
— Vou ao porto para ver o barco de DuPont e seus homens. —
Respondeu finalmente. — Voltarei antes de que anoiteça.
— Excelente. Eu arrumarei tudo aqui para que nos instalemos.
Bessett não disse nada mais. Quando atravessavam o saguão
escuro para entrar na estalagem, a dona da pousada, uma mulher
usando um avental, dirigiu-se ansiosamente para eles.
— Bem-vinda, senhora Smith!
— Oh, obrigado. — Anaís enlaçou seu braço com o do Bessett.
— Estava comentando com meu amado senhor Smith que
conseguiu encontrar uma hospedagem encantadora.
Ao ver o sorriso que Anaís tinha estampado no rosto, Bessett
deixou esse assunto em suas mãos e desapareceu. Depois de dar as
ordens oportunas para que se ocupassem da bagagem e de trocar os
lençóis de aspecto duvidoso da pousada pelos seus próprios, Anaís
se aproximou da janela e ficou olhando para os telhados de
Ramsgate.
No porto, que estava mais abaixo, podia diferenciar alguns
mastros nus e, mais à frente, o farol ao final do píer oeste. Mas,
muito mais perto, a sua esquerda, podia ver a janela do quarto de
Bessett, já que a estalagem estava construída ao redor de um pátio
de estábulos e seus quartos estavam situados em um ângulo reto.
Como o cavalheiro que era, frio e contido, o conde tinha insistido em
ficar com o quarto individual menor.
Suspirando, se afastou da janela e fechou as cortinas finas.
Depois de tomar um banho e de trocar a roupa de viagem por outra
limpa, voltou a revisar o monte de revistas gastas. Logo, jogando
uma última olhada para a janela, ela finalmente cedeu a seu
impulso.

O caminho pela High Street, uma rua em curva, não era


comprido e, embora os lojistas já estivesem varrendo suas soleiras
preparando-se para fechar, as vitrines ainda estavam cheias de todo
tipo de artigos dispostos para chamar a atenção. Anaís passou por
elas indiferente. Quando chegou aos subúrbios da cidade, desceu
com cuidado para o pier. Um barco a vapor estava entrando no
porto enquanto que um pequeno cachorro corria ao longo do cais,
latindo sem parar.
Ao passar o olhar pelas pequenas embarcações comerciais. Viu
um elegante navio que devia ser o de DuPont, um pequeno e esbelto
barco com mastros amontoados que parecia desenhado para o
contrabando. Uma vez localizado seu objetivo, passou junto aos
marinheiros que estavam terminando de descarregar a pesca do dia
e saiu do cais. No meio do caminho se deteve, girou e colocou a mão
sobre os olhos para se proteger do sol.
Sim, esse era o navio. Inclusive de longe podia ver a marca da
Fraternitas Aureae Crucis, a irmandade da cruz dourada, esculpida na
proa, se a pessoa sabia onde olhar.
O antigo símbolo consistia em uma cruz latina sobre uma
pluma e uma espada. "Defenderei por meio da palavra e da espada o
dom, minha fé, a minha irmandade e todos os que dependem dela, até a
morte." Essas eram as palavras, igualmente antigas, que
tradicionalmente acompanhavam o símbolo. As palavras que ela
tinha se impedido de pronunciar.
Nas ilhas britânicas, a cruz dourada estava geralmente situada
sobre um cartucho com forma de cardo. Mas na França e no resto do
continente, era mais comum a versão mais simples, a menos que a
família do membro tivesse sangue escocês. Anaís tinha visto
frequentemente ambas as versões do símbolo em suas viagens:
esculpido na frente edifícios, pintado nos tetos e inclusive gravado
em lápides.
Bessett e lorde Lazonby o levavam nos alfinetes de seus lenços
de pescoço. Ela tinha a versão simples tatuada no quadril. A marca
do guardião. Como a Rosa Tudor, a pirâmide maçônica e a flor de
lis, eram dessas florzinhas que passavam despercebidas às pessoas,
pois tinha se tornado popular com o passar dos séculos.
Anaís caminhou mais alguns metros pelo cais para ver melhor
o convés. De onde estava podia ver ali lorde Bessett, com uma mão
apoiada no mastro maior e, a outra, no quadril, com o cotovelo se
sobressaindo enquanto falava concentrado, com um membro da
tripulação. Outro homem estava içando a bandeira francesa. No dia
seguinte, quando já estivesse a certa distância da costa, longe de
olhos indiscretos, a tripulação içaria provavelmente a insígnia
inglesa. A Fraternitas era muito flexível.
Bessett tinha tirado o casaco, sem dúvida para ajudar em
alguma tarefa náutica, e tinha ficado com o colete e as mangas
brancas da camisa ondeando ao vento, brilhantes em contraste com
os longínquos penhascos de Ramsgate. Dado o comportamento
diferente de todos os que o rodeavam, estava claro que ele estava no
comando.
Ela observou, fascinada, seu cabelo, que o vento tirava de seu
rosto. Ele deixava muito comprido para estar na moda e não tinha
barba nem bigode que suavizasse um pouco os ângulos elegantes de
seu rosto. Bessett também era alto, mais alto e mais magro que
qualquer um dos homens que havia a bordo, e ela se surpreendeu
ao ver quão cômodo estava se movendo pelo convés, assinalando
vários pontos dos equipamentos do barco. O homem que parecia ser
o capitão francês assentiu, deu a volta e deu uma ordem a dois
subordinados. Desdobrariam as velas para aproveitar a força do
vento, suspeitou Anaís, e colocou distraidamente uma mão sobre o
estômago.
Ah, bom. Sobreviveria.
Nesse momento, lorde Bessett deu meia volta e, intuitivo,
passeou o olhar pelo porto. Ela soube o instante exato em que ele a
viu. No seu rosto se refletiu uma emoção inescrutável e depois ele
voltou a dirigir sua atenção ao capitão apenas o suficiente para
apertarem as mãos.
Tendo terminado com ele, Bessett olhou por cima do ombro
para ela e, com um movimento da cabeça, indicou-lhe que se
encontrariam junto ao cais.
Anaís deu a volta e reconstituiu seus passos.
Quando ele chegou ao cais, já tinha posto o casaco e ajeitou
um pouco o cabelo. Não a repreendeu como ela tinha pensado que
ele faria, mas sim lhe ofereceu o braço.
— Senhora Smith? — Disse, dobrando o cotovelo. — Vamos
dar um passeio?
Ele estava muito atraente com a luz do entardecer, apesar das
marcas de cansaço que rodeavam os olhos e da sua expressão séria.
Tinha ficado sem palavras, coisa estranha, ela entrelaçou um braço
com o seu. Deu-se conta de que haveria se sentido mais cômoda se
ele a tivesse repreendido.
Passearam entre a multidão sem falar até que deixaram para
atrás o cais e as multidões. O silêncio que os rodeava estava quase
incômodo e Anaís teve a estranha sensação de que Bessett não sabia
o que dizer.
Sua intuição se confirmou quando, no início da High Street,
ele se deteve e se virou para olhá-la.
— Eu estive pensando sobre sua queixa. — Disse-lhe
bruscamente.
Ela conseguiu sorrir, embora o calor do olhar de Bessett fosse
muito intenso e inesperado.
— Estou acostumada a me queixar de muitas coisas. —
Respondeu-lhe. — Pode ser mais específico?
Um leve sorriso iluminou o se olhar.
— Na pousada. — Respondeu-lhe. — Quando você me disse
que eu devia confiar em você, ou você seria uma carga. Você tinha
razão.
Anaís retrocedeu uns centímetros.
— Você precisa de mim, Bessett. — Eu disse com calma. —
Não pode me pedir que faça as malas.
Ele negou com a cabeça.
— Não. Quero dizer... Sim, preciso de você. Mas terá que me
aguentar. Isto não é algo que...
— Que seja fácil para um homem como você? — Sugeriu. —
Sim, eu conheço esse tipo de homem, os autoritários e controladores.
Esta vez ele sorriu, mas com ironia.
— Olhe quem fala.
— Eu diria que alguns homens nasceram para mandar. — Ela
replicou, embora não havia ira em seu tom de voz. — Você tinha
passado uma hora no convés e já estava dando sermão no pobre
capitão sobre os equipamentos do barco e dispondo tudo segundo
sua vontade.
— Porque as coisas ficariam ruins se tivéssemos um atraso
inesperado. O capitão Thibeaux não pagará um grande preço por
isso. — Disse Bessett com calma. — Mas Giselle Moreau pode ser
que sim.
Anaís o olhou com gravidade.
— Essa menina...o seu dilema... Eu acredito que o preocupa a
um nível pessoal. — Murmurou ela. Ao ver que não lhe respondia,
continuou. — E estou totalmente de acordo com tudo o que disse.
Eu me atreveria a dizer que você não está acostumado a confiar em
uma mulher, nem sequer a trabalhar com uma.
— Não.
Ele desviou o olhar para o caminho que acabavam de subir.
Tinha uma mão na cintura esbelta, apartando as dobras do casaco.
Parecia pensativo, como se estivesse relembrando a confluência de
acontecimentos que o tinham levado até esse lugar, talvez inclusive
a esse ponto de sua vida.
— Não, eu não estou acostumado. Mas não acredito que você
seja uma ingênua. Nem tola. Se fosse assim, Vittorio nunca teria
enviado você para nos ver.
Anaís desviou o olhar.
— Obrigado por dizer isso.
Depois de uns instantes de indecisão, Bessett recomeçou a
andar. Ela em seguida o alcançou, mas não voltou a agarrá-lo pelo
braço. De repente sentia como se o tato dos duros músculos de seu
braço fora a última coisa que precisava notar. E sua amabilidade...
Sim, talvez também teria ficado melhor sem ela.
A situação estava se transformando em lamentável. Deixando
de lado as palavras de Bessett, ela estava começando a sentir-se um
pouco ingênua... em alguns sentidos que não queria pensar.
Nesse instante, entretanto, ele inclinou a cabeça e a olhou.
— Quando chegarmos a Bruxelas, nós deveríamos ter um
sobrenome um pouco mais convincente que Smith, não acha?
— Então, quem seremos? — Ela manteve um tom de voz
falsamente alegre. — Suponho que deveríamos escolher algo um
pouco parecido com nossos próprios nomes para nos sentirmos
mais cômodos.
Durante um longo momento, ele não disse nada. No lugar
disso, adequou suas longas pernadas aos passos mais curtos dela e
caminhou a seu lado sem impaciência... e sem franzir o cenho.
— MacLachlan. — Ele disse finalmente, com voz firme. — Eu
serei Geoffrey MacLachlan.
— Um sobrenome escocês? — Comentou Anaís e por alguma
razão, voltou a segurá-lo pelo braço.
Como se fosse a coisa mais normal do mundo, Bessett pôs sua
mão sobre a dela.
— É o sobrenome de meu padrasto. — Disse ele. — Sempre
posso dizer que estou relacionado com sua empresa de construção
se me vejo em perigo. E você?
— Meu nome é estranho, mas ninguém me conhece. Serei
Anaís MacLachlan.
— É incomum. — Ele se mostrou de acordo. — Embora
bonito.
— Devo ele a minha bisavó. — Explicou. — Ela era da
Cataluña. Ainda temos vinhedos ali.
— Mas não na Alsacia?
Anaís negou com a cabeça.
— A fazenda queimou durante a Revolução. Meu pai nunca
tentou reclamar a terra, embora talvez poderia ter feito.
— Assim ele tem um título francês, mas não terras. —
Murmurou Bessett.
Anaís sorriu fracamente.
— Ele nunca usou o título até que conheceu a minha mãe. —
Respondeu. — Ele pareceu pensar que não poderia casar-se com ela
sem ele. Mas eu não acredito que ela se importasse com os títulos.
Minha mãe se criou no campo e em uma... como é esse eufemismo?
Pobreza refinada? Só que a pobreza nunca é refinada, eu diria,
quando a gente mesmo tem que sofrê-la.
— Pelo menos, a sua mãe parece original. — Bessett parecia
estar entusiasmado falando de sua família. — E você tem um irmão
gêmeo, não é mesmo?
— Sim, Armand.
— Então, vocês nasceram de uma vez...
Ela riu.
— É o que costumam fazer os gêmeos.
Bessett não lhe devolveu o sorriso.
— E mesmo assim, não escolheram ele para ser guardião?
Anaís levantou um ombro.
— Não sei por que. — Respondeu. — Nonna dizia que não
estava escrito nas cartas. E talvez o meu irmão não tenha o caráter
adequado. Armand é um jovem urbano. Mas Maria segue se
queixando pela decisão de nonna.
— Maria?
— Minha prima, Maria Vittorio. — Anaís se deteve para evitar
chutar uma pedra no caminho. — Ela era a companheira de minha
bisavó e a viúva do irmão de Vittorio. A Maria é uma velha
resmungona. Vive comigo em Wellclose Square. Nonna nos deixou
a casa e estamos acostumadas a viajar juntas.
— À Toscana, quer dizer?
— Sim. — Anaís suspirou. — Mas Maria sempre acreditou que
era Armand quem deveria ir, não eu. Que eu deveria estar em casa
bordando almofadas de sofá e enchendo essa casa cavernosa de
meninos.
— E o que você pensa?
Anaís voltou a encolher os ombros, desta vez elevando ambos.
— Eu não tenho paciência para costura. — Respondeu. —
Além disso, nonna Sofia levava uma vida pouco tradicional. Teve
somente uma filha, a minha avó, que morreu jovem. E todos os seus
maridos também morreram jovens. Assim, que bem fazia a tradição?
Quebrou o seu coração. Ao final, ela se dedicou de corpo e alma no
negócio e nos fez ricos.
— Uma vida nada convencional, certamente. — Murmurou
ele. — Mas a sua vida não tem por que ser assim. Não se você não
quer que seja.
— Acredito que devemos nos contentar com a vida que o
destino nos oferece. — Disse ela. — Eu tenho uma meta na vida que
muito poucas mulheres têm.
— Mas...?
— Por que acredita que há um "mas" nesta conversação?
— Noto em sua voz.
Ela o olhou de esguelha.
— Será melhor que lance esse seu dom em outra direção. —
Advertiu-lhe.
Geoff sorriu fracamente.
— Não tenho esse tipo de capacidade.
— E eu não sou muito profunda, nem difícil de entender. —
Disse ela, decidida a mudar o tema. — Agora, me diga, querido
marido, há quanto tempo estamos casados?
— Três meses. — Ele respondeu após pensar uns instantes.
Ela assentiu.
— Isso explicará porque nos conheçamos pouco.
Ele inclinou a cabeça para olhá-la.
— Então foi um casamento de conveniência? — Perguntou
Geoff. — Não uma união por amor?
Ela voltou a olhar de relançe.
— Lhe parece que isto é uma união por amor, Bessett?
— Será senhor MacLachlan, querida. — Disse rápido.
Ela riu.
— Então, nosso casamento foi acertado. — Disse ela. —
Ninguém se interessava por mim e o meu pai pagou a você montes
de dinheiro para que se casasse comigo.
Geoff riu.
— Estava tão desesperado?
— Por que não? — Anaís o olhou com receio. — Reconheço
que não sou bonita. Talvez a minha virtude estivesse
comprometida? Ou eu era uma paqueradora intolerável? Sem
dúvida, você fez um grande favor ao meu pai se ocupando de mim.
Ele ficou sério.
— Não diga essas coisas. — Disse em voz baixa. — Nem
sequer de brincadeira.
— Cuidado, MacLachlan. — Ela sorriu. — Vou começar a
pensar que tem coração. Então, o que sabemos um do outro?
Deveríamos decidir isso.
— Igual aos nomes, deveríamos fazer que os detalhes fossem
os mais verídicos possível. — Respondeu ele.
— Muito bem. Criei-me sobretudo na granja da minha mãe,
em Gloucestershire. Além de Armand, tenho duas irmãs e outro
irmão, todos mais jovens e que seguem em casa e o enteado de meu
pai, Nate, que é mais velho e que já é independente. E você?
Bessett hesitou uns momentos.
— Eu me criei no estrangeiro. — Respondeu finalmente. —
Bessett era um estudioso das civilizações antigas, assim nós
viajávamos bastante.
Ela abriu muito os olhos.
— De verdade? É fascinante.
— Sim, mas ele morreu quando eu era jovem. Minha mãe
retornou a Yorkshire e uns anos depois, mudamos para Londres.
— Que estranho que ela levasse você da fazenda da sua
família para educá-lo na capital. — Murmurou Anaís.
— Não foi fácil me criar. Ela... não me compreendia. E eu
tampouco me compreendia. Em Yorkshire nós estávamos muito
isolados. Em qualquer caso, eu não era o herdeiro. Bessett tinha um
filho de um matrimônio anterior: Alvin, meu irmãodastro.
— Quer dizer seu meio-irmão?
— Sim. — Respondeu rapidamente. — Ele era muito mais
velho que eu e não nos parecíamos em nada, mas... eu o adorava.
— É o mesmo que ocorre entre o Nate e eu. — Disse Anaís,
sorrindo. — Eu penso que não há nada tão reconfortante como um
irmão mais velho.
— Oh, sim, firme como uma rocha, assim era Alvin. — Bessett
parecia extasiado. — Entretanto, quando se casou, minha mãe
pensou que seria melhor que nós saíssemos do Loughtin, para a
propriedade de Yorkshire. Infelizmente, desse matrimônio
tampouco nasceu nenhum herdeiro, assim, quando Alvin morreu...
— Oh. — Disse ela em voz baixa. — Sinto muito. Ter um
título é muito bom, mas não à custa de um irmão muito querido.
— É o mesmo que eu penso. — Respondeu Bessett apertando
a mandíbula.
— Faz tempo que faleceu?
— Um tempo, sim. Eu já era adulto e minha mãe tinha casado
novamente. Eu havia voltado de Cambridge e passei uns anos
trabalhando no negócio de meu padrasto.
— Então, você constrói coisas? — Perguntou ela.
— No início, somente desenhava. E depois de um tempo, ele
começou a me mandar ao exterior para fiscalizar certos projetos.
Trabalhamos bastante para o governo colonial no norte da África.
— Assim você navegou muito. — Murmurou Anaís. — É tão
viajado quanto eu.
— Isso lhe surpreende?
— Oh, já sabe como são a maioria dos ingleses. — Ela agitou a
mão expressivamente. — Acreditam que o mundo começa em
Dover e acaba na Muralha de Adriano.
— Ah. — Disse em voz baixa. — Bom, confie em mim
senhorita De Rohan, eu não sou como a maioria dos ingleses.
Ela franziu os lábios e levantou o olhar para ele. Isso era algo
que acreditava com convicção.
— Acredito sinceramente que deveria me chamar Anaís. —
Afirmou com suavidade. — Será melhor que você se acostume a
isso antes que cheguemos a Bélgica.
Ele voltou a inclinar a cabeça e lhe sorriu. Esta vez o sorriso
alcançou totalmente seus olhos de cor azul clara.
— Anaís, então. — Disse. — E eu sou Geoff... ou Geoffrey, se
gostar mais.
— Que seja Geoff, a maioria das vezes. — Ela lhe piscou o
olho. — Reservarei Geoffrey para os momentos em que me
incomode mais.
— As duas sílabas, né? — Disse ele, justo quando o pátio da
pousada aparecia na frente deles. — Tenho a sensação de que é a
isso a que deveria me acostumar.

*****
Em Londres fazia frio e o vento açoitava as flores primaveris
do Hyde Park quase com violência. Entretanto, essa brutalidade
botânica não tinha impedido que os conhecidos da boa sociedade
desfrutassem da dupla diversão de ver e ser vistos, já que a
temporada de eventos sociais tinha começado formalmente e havia
vestuários à criticar, rumores para espalhar e agendas sociais para
comparar.
Para a maioria dos assíduos do parque, era um ritual
agradável, embora exaustivo. Apesar disso, para os ocupantes da
pequena carruagem negra e dourada do lorde Lazonby, a
temporada de eventos tinha pouco atrativo. Lady Anisha Stafford a
desdenhava e a única relação de lorde Lazonby com a alta sociedade
era a conversação que se dava em sua carruagem.
— Então, é verdade que Bessett está te cortejando? —
Perguntou ele enquanto passavam pelo Cumberland Gate. — Deve
estar se exibindo como um pavão real.
— É verdade que fui ao teatro com lorde Bessett. — Disse lady
Anisha mal-humorada — Assim, como meu irmão. Mas, pelo que
sei, ele não está cortejando nenhum de nós.
— Não seja tímida, Nish. — Disse Lazonby. — Nos
conhecemos muito bem.
— De verdade, Rance? — Dedicou-lhe um de seus misteriosos
olhares de olhos negros. — Às vezes me pergunto se eu conheço
algo de você. Mas muito bem, sim. Bessett pediu permissão ao meu
irmão para me tratar com mais atenção. Muito pitoresco da parte
dele, não acredita? Principalmente porque deveria ter perguntado
para mim.
— Bessett é deliciosamente antiquado. — Mostrou-se de
acordo Lazonby. — Acredito que é um de seus maiores atrativos.
— Bom, Adrian e eu tivemos uma pequena discussão sobre o
tema. — Disse Anisha com amargura. — Eu disse muitas vezes para
o meu irmão que tenho intenção de ter um amante antes de voltar a
me casar.
Lazonby sorriu.
— De verdade?
— Sim, alguém diferente e... talvez perigoso. — Anisha
levantou um pouco o queixo. — Embora Bessett não era o que tinha
em mente, agora que penso nisso, seu atrativo físico compensa que
seja tão arcaico.
Lazonby pôs uma mão sobre a sua e a apertou brandamente.
— Olhe querida... — Procurou as palavras apropriadas. —
Eu... eu não sou para você. Você sabe a verdade, Nish?
Ela se ruborizou.
— Meu Deus, Rance você é um presunçoso!
— Presunçoso de te ter como uma amiga muito querida.
Deveria parar?
Lady Anisha se remexeu no assento, alisou as saias, que não
precisavam ser alisadas, e ajustou a aba de seu chapéu.
— Não. — Disse finalmente e suspirou. — Então continue. O
que você quer de mim?
— O que eu quero?
Olhou-a com curiosidade.
— Rance, estive muito tempo casada e sei como os homens
pensam. Voce não colocou esse fraque tão elegante, eu nem sabia
que você tinha algo tão bom, a propósito, só para conduzir diante de
gente que não poderia te importar menos. A mesma gente que sabe
que não nos daria nem um bom dia para Adrian ou para mim se não
fosse pelo dinheiro e o título do meu irmão.
— Anisha, não se subestime dessa maneira.
Ela o olhou com arrogância.
— Oh, eu não faço! Eu sou tão altiva como qualquer deles. A
minha mãe era uma princesa Rajput, se por acaso não se recorda.
Não me importa em nada a sociedade londrina.
— Boa garota. — Disse ele, sorrindo.
Lady Anisha levou uma mão ao elegante chapéu quando uma
rajada de ar o moveu.
— Então, o que quer?
— Quero que venha comigo a Scotland Yard.
— Aonde?
— Bom, ao número quatro, em realidade. Fazer uma visita a
Napier, o ajudante do inspetor. Sei que não é um lugar muito
refinado, mas te vi falando com ele no café da manhã das bodas e
pensei... Bom, pensei que se entendiam maravilhosamente bem.
— Céus, eu não diria tanto. Eu não o conheço realmente. Mas
ele era um convidado na casa de meu irmão e fui educada com ele.
— Mas você gosta dele. — Sugeriu Lazonby. — Ou isso, ou
pensou que estava roubando a prata de Ruthveyn, porque não
tirava os olhos de cima.
Lady Anisha pareceu pensar nisso.
— Oh, não seja ridículo. — Disse finalmente. — Ele foi muito
agradável, é certo, mas Napier sabe muito bem por que foi
convidado.
— Sim. — Respondeu Lazonby com firmeza. — Para deixar
claro a todos os fofoqueiros que lady Ruthveyn foi completamente
absolvida do assassinato de seu patrono. Depois de tudo, ele tinha
acusado ela publicamente. Era isso ou fazer com que Ruthveyn
sofresse a ira dos políticos.
— As pessoas sempre subestimam o alcance da Fraternitas,
certo? — Murmurou lady Anisha, que seguia agarrando o chapéu.
— Em qualquer caso, Napier estava me fazendo perguntas sobre a
Índia. Ofereceram-lhe um posto ali.
Lazonby olhou para o céu.
— Por favor, me diga que ele vai embora da Inglaterra para
sempre.
— Acredito que já rejeitou. — Disse lady Anisha. — Tinha
algo a ver com alguém que morreu em sua família. Não, acredito
que você não se liberará do Napier tão facilmente. E sim, Rance, sei
que esteve te assediando sem piedade. Sei que foi seu pai quem te
enviou a prisão para que apodrecesse ali. E somente por essas
razões Napier sempre será meu amigo.
— Mas você me acompanhará? — Perguntou-lhe Lazonby. —
Como representante do seu irmão, já que foi para a Índia? Agora
Napier se sente em dívida com sua família... talvez, inclusive um
pouco envergonhado. E te acha intrigante. Não me expulsará tão
rapidamente se você estiver comigo.
Anisha pôs os olhos em branco.
— E Lucan? Não pode ir com ele?
Lazonby riu.
— Seu irmão mais novo não tem dignidade, querida. —
Afirmou. — E você é, se me perdoar, mais homem do que ele nunca
poderá ser.
— Tolice. — Espetou-lhe. — É só um moço... e um libertino em
potencial, sim, mas já me ocuparei disso ao seu devido tempo.
Muito bem, admito que ele não serviria.
— E...?
Anisha suspirou pesadamente.
— Escolhe o dia. Eu irei... mas te vai custar algo, querido.
— Uma libra de carne, né, Shylock?7 — Disse, sorrindo.

7
Shylock é um personagem central na obra do Shakespeare O Mercador de Veneza, e fez a famosa demanda de "uma libra de
carne" que devia lhe ser entregue do próprio Antonio, o personagem a que se refere o título da obra, no caso em que este não
cumprisse com o pagamento de um empréstimo (N. da T.)
— Isto requereria mais que uma libra8. — Replicou ela,
sentando-se muito eréta. — Como compensação, no sábado de noite
me acompanhará à ópera.
— À ópera? — Repetiu, horrorizado. — Mas eu não gosto de
ópera. Não a entendo.
— É L'elisir d'amore do Donizetti. — Disse asperamente. — E
é simples. Apaixonam-se, há um grande mal-entendido, um elixir
mágico e depois os dois...
— Morrem tragicamente? — Sugeriu Lazonby. — E só estou
tentando adivinhar.
Ela lhe dedicou um olhar de advertência.
— Rance, você tem que ser tão caipira?
Lorde Lazonby riu.
— Ou só um deles morre, deixando o outro com o coração
partido? — Sugeriu. — Ou talvez envenenam um ao outro
acidentalmente? Ou se apunhalam mutuamente? E tudo isso
cantado, nem mais nem menos, em um idioma desconhecido que
um homem sensato não pode entender.
Os olhos de Anisha brilharam.
— Oh, pelo amor de Deus, não tem que entender! Somente
tem que pôr uma roupa apropriada e se apresentar no Upper
Grosvenor Street às sete em ponto. Lady Madeleine necessita de
outro cavalheiro para formar todos os casais... e é você!
— Ah, bem! — Disse Lazonby. — Outro trato com o diabo
para o velho Rance!

8
1 libra = 450 quilogramas
Capítulo 6

"Em geral, o Tao do invasor é este: quando as tropas penetraram

profundamente, serão unificadas."

Sun Tzu, A arte da Guerra

O Jolie Enjoe zarpou do porto real de Ramsgate logo depois da


alvorada, seguindo a esteira do primeiro navio de correio da manhã.
O capitão Thibeaux, era o filho de um ancião erudito francês que
tinha servido a Fraternitas durante décadas e que tinha sobrevivido
às revoltas francesas com a cabeça intacta. Como todos os eruditos
da irmandade, o ancião Thibeaux era um homem com grandes
conhecimentos, um astrônomo e matemático de ofício.
Segundo os cálculos de Thibeaux, a viagem através do mar do
Norte lhes tomaria algo menos de dois dias, e Geoff lhe tinha
ordenado que navegasse a toda vela.
Entretanto, os problemas começaram assim que os escarpados
de Kent desapareceram do horizonte, o qual, tendo em conta o
vento que havia, foi muito breve. Anaís, que tinha permanecido
firmemente agarrada no corrimão de popa olhando para Ramsgate,
começou a passear pelo convés de proa a popa assim que a costa
desapareceu. Seu xale e a borda de seu vestido ondeavam
fortemente a seu redor e não fazia falta ter um dom especial, seja
físico ou de outro tipo, para sentir seu desgosto. Embora "desgosto"
não era talvez a palavra mais apropriada.
Duas vezes ao passar lhe sugeriu que fosse à parte de baixo,
mas ela negou com a cabeça. Geoff temia que estivesse
arrependendo-se de sua impetuosa decisão. Apesar de que não
tinham visto ninguém conhecido com o passar do dia anterior, a
crua realidade do que tinha escolhido fazer estava fazendo estragos
nela.
Ele tinha curiosidade de saber, embora não se permitiu a
satisfação de perguntar o que teria dito a sua família.
Evidentemente, Maria Vittorio sabia que havia voltado a sair da
Inglaterra, embora seus pais não estivessem cientes. E era bastante
provável que seu irmão também soubesse.
Isso poderia ser algo desagradável.
Mas poderia ocupar seu tempo com um cachorrinho
impetuoso como Armand de Rohan... caso fosse necessário. E o
temperamento do moço, impulsivo ou não, não tinha nada que ver
com o atual estado de ânimo de Anaís. A verdade era que tinha
estado distante durante toda a manhã, até o ponto de recusar o café
da manhã que ele tinha disposto na sala privada da estalagem. E,
estranhamente, ele havia se sentido um pouco ofendido por isso.
Tinha iniciado aquela viagem tentando evitá-la, era certo.
Havia dito a si mesmo que devia estar concentrado ao máximo na
tarefa que o aguardava, não na sedutora curva do traseiro de sua
companheira. Tinha-o perturbado vê-la subir e descer da carruagem
e sorrir aos serventes em cada parada que tinham feito desde que
haviam saído de Londres. E ele não era um homem que se
desconcentrava facilmente.
Mas durante o passeio que tinham dado no porto na tarde
anterior, com os braços enlaçados, Geoff tinha começado a ver algo
mais, além de seu adorável traseiro. Havia sentido, durante um
instante fugaz, como se tivesse vislumbrado seu interior, igualmente
adorável.
Apesar dessas castas noções, não tinha sido em seu bom
caráter que tinha pensado quando por fim se despiu e se colocou na
cama na noite anterior, totalmente esgotado e com sentimentos
profanos. Não, tinha sido em sua ampla e flexível boca. Nessa risada
rouca que parecia ferver do interior e ficar provocativamente presa
na garganta. Nesses intensos olhos marrons e nessa alvoroçada juba
negra, que sempre parecia estar a ponto de se soltar.
Observou-a enquanto passeava pelo convés do Jolie Enjoe,
com as mechas de cabelo negro como tinta frisando-se
incontrolavelmente devido à umidade, e não pôde evitar imaginar-
se soltando essa juba por cima de seus seios e afundando as mãos
nela. E desejou com todas suas forças ter fechado as cortinas na
noite anterior. Ou que sua cama estivesse debaixo da janela, em vez
de está na parede em frente. Ou, melhor ainda, que tivesse descido
ao bar da estalagem para embebedar-se. Porque parecia que Anaís
era uma coruja noturna. Tinha mantido o abajur aceso até passada a
meia-noite.
Durante um bom tempo, simplesmente tinha observado sua
silhueta, longa e elegante, enquanto passava uma e outra vez diante
da janela, enquanto se perguntava o que estava fazendo acordada
tão tarde. E depois se perguntou por que lhe importava. Ela não era
seu tipo. Era jovem. Mais jovem e muito mais inocente que o tipo de
mulheres que estava acostumado a povoar sua imaginação.
Bessett preferia mulheres com experiência que conheciam o
jogo, exuberantes e amadurecidas que não procuravam romance e
tinham poucas expectativas. E por essa ausência de sentimentos
estava disposto a pagar muito bem... embora em estranhas ocasiões
tinha que fazê-lo.
Não, Anaís não era para ele, mas, inexplicavelmente, não
podia deixar de imaginar, por isso ficou obcecado com uma sombra,
fantasiando com ela enquanto se acariciava, procurando satisfação,
ou algo parecido, da maneira mais vulgar. Ao jogar a cabeça para
trás e deixá-la cair no suave travesseiro tinha pensado em seu cabelo
e, ao respirar, tinha recordado seu aroma. E não, não tinha sido sua
beleza interior o que o tinha motivado nem o que tinha permanecido
com ele quando tinha gritado aliviado.
E mesmo assim, entretanto, a luxúria que sentia não se
aplacou.
Deveria ter recordado seu juramento original: que não tinha
nenhuma necessidade de conhecer essa mulher para trabalhar com
ela. Somente tinha que saber que compartilhavam a mesma
preocupação pela menina a que tinham sido enviados proteger-la.
Isso deveria ter bastado. Mas nesse momento, enquanto a observava
dar a volta novamente a percorrer o convés, Geoff sentiu uma
pontada da insatisfação como se tivesse uma pulga na nuca.
Mas logo, era possível que ela o sentisse. Sim, era possível que
ela soubesse bastante sobre seus pensamentos e desejos mais
íntimos. Embora era certo que os que possuíam o dom, embora
muito levemente, não podiam ler-se uns aos outros, sempre havia
sutilezas e categorias.
É obvio, como faziam muitos deles, ela tinha minimizado sua
capacidade. Mas ele tinha ouvido as mesmas negações da boca de
Rance e inclusive de lady Anisha, a irmã de Ruthveyn. E, embora
era certo que poucos estavam malditos com o dom como estavam
Ruthveyn e ele, Geoff não podia evitar ter a sensação de que muita
gente ocultava a verdade.
Bom, se ela sabia, que assim fosse. Ele era um homem, com
desejos de homem... e Anaís faria bem em recordá-lo.
Mas perdeu essa linha de pensamento quando ela se deteve
perto da escotilha para agarrar com força o corrimão, olhando a
estibordo com intensidade, como se a França fosse materializar-se
por arte de magia naquela imensidão de cor azul resistente de água
e céu. Inclinou-se tanto para diante que, por um instante, ele se
perguntou se pretendia jogar-se de cabeça nas águas revoltas e
nadar até Calais.
Mas que tolice. Anaís de Rohan era muito sensata para fazer
algo assim.
Geoff relaxou, agarrando-se com uma mão ao mastro para
conservar o equilíbrio, e passeou o olhar por ela. Aquele dia estava
vestida de verde escuro, outro de seus vestidos eminentemente
práticos, cuja simplicidade ressaltava a esbelta elegância de sua
figura. Deu-se conta de que tinha curvas suficientes para satisfazer a
um homem, mas não mais, e desejou havê-la observado mais
minuciosamente aquela noite no clube de Saint James. Apreciaria ter
lembranças mais claras desses seios perfeitos e pequenos para ajudá-
lo a aliviar sua tortura à noite.
Pensou que, em outra vida, Anaís de Rohan poderia ter sido
uma bailarina, ou uma elegante cortesã, possivelmente, porque
embora ela tivesse razão ao dizer que não era formosa, transbordava
encanto terrestre e graça celestial.
Apesar disso, naquele momento não parecia encantadora nem
graciosa.
Parecia estar a ponto de vomitar por cima do corrimão.
Ele tinha se separado do mastro maior e se dirigiu a ela
rapidamente, antes de dar-se conta do que estava fazendo. Quando
a alcançou, ela tinha os nódulos brancos sobre o corrimão e estava
mais branca que um pergaminho.
Pôs uma mão no ombro e se inclinou para ela.
— Anaís, o que está acontecendo?
Ela girou a cabeça para olhá-lo com um lânguido sorriso.
— É só mal de mar. — Disse ela. — Às vezes sofro enjoos.
Colocou-lhe um braço pela curva das costas.
— Então é isso. — Disse, quase para si mesmo. — Deveria ir
para baixo e se deitar.
Ela negou com a cabeça e voltou a olhar para o corrimão.
— Tenho que olhar o horizonte. — Replicou enquanto o vento
lhe açoitava as mechas de cabelo. — Ajuda-me. Agora vá. Estarei
bem.
Mas Geoff nunca tinha visto ninguém com um aspecto tão
cinzento.
— Posso ordenar ao capitão Thibeaux que reduza a velocidade
do navio. — Sugeriu.
— Não se atreva a fazê-lo. — Respondeu com voz trêmula. —
Não temos tempo, e só prolongaria o sofrimento.
Ele pôs ambas as mãos sobre o corrimão, uma a cada lado do
corpo dela, protegendo-a com o seu. O medo irracional de que
saltasse ou caísse ainda o afligia. Podia sentir que ela tremia.
— Anaís, isto acontece frequentemente?
Ela deixou escapar uma pequena risada patética.
— Eu disse "às vezes"? — Mentiu.
— Mas... suas viagens. — Murmurou. — À Toscana. A todas
partes, em realidade.
— Olhe, a verdade é que... — Não deixava de olhar fixamente
ao horizonte. — A verdade é que não posso cruzar o Tâmisa sem
vomitar. Já te avisei. Se ficar, não serei responsável por esse bonito
colete que usa.
Pôs-lhe uma mão no ombro.
— Então, por que o faz? Quero dizer, viajar.
— Porque o sofrimento fortalece o caráter? — Sugeriu com
amargura. — Nunca me importou fazer longas viagens por terra.
Estar longe de minha família. Inclusive as incessantes agitações
políticas que às vezes me obrigavam a partir. Mas teria preferido
enfrentar uma revolução Toscana a passar um dia no mar.
Entretanto, a Inglaterra é uma ilha, assim, que opções tenho?
— Ficar em casa. — Sugeriu Geoff, e baixou o tom de voz. —
Bordar almofadas, talvez?
— De maneira nenhuma.
— Hmm. — Disse ele. — Por isso não desceste para tomar o
café da manhã?
— Acreditava que sua companhia me parecia insuportável? —
Riu. — Asseguro-te, Bessett, não é o caso. É que sei que é melhor
não comer antes de navegar.
Pôs-lhe uma mão na cintura e inclinou a cabeça.
— Geoff. — Recordou-lhe. — Me chame Geoff. Pobre moça.
Deve estar muito débil.
Ela voltou a rir, incômoda.
— Que mulher não estaria com todo seu corpo apertado
contra ela?
— Não vou permitir que desmaie e caia de cabeça no mar do
Norte. Por isso, sim, possivelmente esteja um pouco perto.
— E eu desejaria ser capaz de apreciá-lo. — Disse ela.
— Oh, por favor, Bessett! Temos que manter esta conversação?
Posso me envergonhar sozinha. Vai. Agora.
— Venha para o centro do navio. — Ordenou-lhe, e a afastou
com suavidade do corrimão. — Está um pouco mais firme. Talvez
possamos te buscar um assento.
Ela aceitou a contragosto e, ao seu devido tempo, Étienne, o
moço de cabine, tirou uma espécie de espreguiçadeira da adega.
Bessett sentou Anaís nela, cobrindo-a com uma grossa manta. A
preciosa manhã primaveril em Ramsgate tinha dado espaço aos
caprichos do mar e, com a velocidade que mantinham, cada vez
havia mais água salpicando a proa.
Bessett retornou à suas tarefas, mas não deixou de olhá-la
durante o resto do dia. O capitão lhe ofereceu em repetidas ocasiões
chá com gengibre, com um toque um pouco mais forte, mas ela
sempre recusou. Mais tarde, quando ele e o resto da tripulação
foram para baixo em turnos para comer um pouco de pão e carne
fria, Anaís se limitou a negar com a cabeça e, quando a escuridão os
envolveu e baixou a temperatura, já não havia horizonte, nem
impreciso de nenhum outro tipo, a conservar a compostura.
Finalmente, Geoff não teve outra opção a não ser obrigá-la a
descer, levando-a ele mesmo pelas escadas.
O Jolie Enjoe dispunha de dois camarotes privados: o quarto
de proa do capitão e outro para os convidados. Essa minúscula
cabine tinha dois estreitos beliches com gavetas na parte inferior,
uma pequena mesa e uma bacia debaixo. Esta resultou ser muito útil
porque, conforme anoitecia, Anaís começou a suar e a sofrer
violentas ânsias.
Geoff, preocupado, encheu a bacia de água, molhou um pano
e lhe refrescou a frente.
— Deveria tentar dormir. — Sugeriu-lhe.
— Oh, que situação mais lamentável! — Com as mãos ao
redor da cintura, ela estava sentada na borda do beliche, depois de
ter repelido os pedidos de Geoff de que se deitasse. — Acredito que
vou vomitar outra vez. Por favor, vá fazer algo melhor e me
economize a humilhação, certo?
Ele sorriu fracamente.
— Que tipo de guardião deixa a sua companheira sozinha? —
Perguntou em voz baixa.
— Que tipo de guardião fica enjoado?
— Muitos, sem dúvida, nas circunstâncias apropriadas. —
Colocou-lhe um caprichoso cacho atrás da orelha. — Hoje o mar está
muito revolto. Olhe-me. Está desfazendo o penteado.
Anaís levou uma mão na cabeça e tirou a forquilha
equivocada e a metade do cabelo lhe caiu sobre o ombro.
Murmurando um juramento nada próprio de uma dama, jogou a
forquilha ao outro lado da cabine.
Geoff se sentou na borda, a seu lado.
— Dê a volta. Vou tirar essas forquilhas. E depois vais se
deitar.
— Não. — Respondeu fracamente, apoiando um ombro contra
a parede do beliche.
Mas em realidade não resistiu a seu plano. A princípio, os
dedos de Geoff eram torpes e quase arrancavam as forquilhas, que
pareciam estar colocadas a esmo. Mas, conseguiu tirar-lhe todas e
lhe deixou solto o outro lado da juba, maravilhando-se por seu
comprimento e textura.
Como tinha imaginado, o cabelo do Anaís era uma brilhante
massa de glória feminina que lhe chegava até a cintura, e se
perguntou como demônios conseguia pentear-se.
Incapaz de resistir à tentação afundou as mãos em seu cabelo.
E enquanto sentia seu calor deslizar como cetim entre seus dedos,
deu-se conta de que nunca tinha desfeito o penteado de uma mulher
simplesmente pelo prazer de fazê-lo. Só por permitir que essa seda
cálida e sensual corresse entre seus dedos como se fosse ar, luz e
água, tudo de uma vez.
Abriu a boca para dizer... Bom, algo estúpido, certamente. Mas
foi salvo por alguém que batia na porta.
Geoff a abriu e encontrou o moço de cabine com uma taça
fumegante na mão.
— Thé au gingembre pour madame. — disse Étienne. — Avec
opium. O capitaine, ele o envia. Para dormir?
— Merci. — Disse Geoff, segurando a xícara. — Desta vez
tomará.
E o fez, embora não deixava de dizer que terminaria
vomitando-o.
— Não comeste nem bebeste nada em vinte e quatro horas. —
Disse ele, lhe pondo a xícara nos lábios. — Somente isso já faz com
que enjoe. Agora, beba isso.
Se tivesse em condições Anaís jamais teria se rendido. Ele
sabia. Mas como estava tão débil, deu-se por vencida, olhando-o
entre os goles com esses enormes e redondos olhos marrons de
cachorrinho até que algo no peito de Geoff deu um estranho salto.
Santo Deus. Estava doente, pálida e, em geral, como um
desastre. Que demônios acontecia com ele?
Não teve muito tempo para pensar. Quando tinha bebido meia
xícara, o gengibre e o ópio fizeram seu trabalho com assombrosa
rapidez. Estava bebendo e, no instante seguinte, lhe golpeou o peito
com o queixo e caiu contra ele com todo o peso de seu corpo.
Graças a Deus.
Deixaria de sofrer pelo menos até que amanhecesse. E, com a
velocidade que mantinham, deveriam avistar terra a tarde do dia
seguinte.
Afastou as mantas no beliche estreito, tomou Anaís nos braços
e a deixou nele, perguntando-se até que ponto se atreveria a despi-
la. Começou por tirar a pequena pistola que tinha atada ao redor da
panturrilha, depois lhe tirou os sapatos tentando não olhar suas
pernas, uma questão de conduta cavalheiresca em que fracassou
miseravelmente.
Ardia em desejos de levantar suas saias, até acima, para ver, entre
outras coisas, onde tinha a marca de guardião. E, inexplicavelmente,
enfureceu-o que Rance tivesse visto o que ele não tinha visto,
quando nenhum deles tinha direito de olhar o quadril nu da dama.
Ao final, Geoff permitiu o pequeno e malvado prazer de
passar uma mão pela curva da panturrilha, maravilhando-se pelos
duros músculos que podia sentir sob a pele, enganosamente
delicada. Logo, um pouco a contragosto, pegou seus tornozelos e os
cobriu com a manta.
Mas o beliche era tão pequeno que inclusive Anaís estava
encolhida. Amaldiçoando em voz baixa, desabotoou a parte frontal
do vestido verde. Como tinha suspeitado, ela levava um moderno
espartilho com ganchos de osso. Soltou rapidamente os colchetes.
Seus delicados seios se moveram e se aplanaram sob a fina malha da
camisa e jogou para trás os ombros, relaxada. Com um suspiro que
parecia de puro prazer, ela se retorceu e começou a respirar
profundamente.
Pronto. Era tudo o que podia fazer. Tudo o que se atrevia a
fazer.
Mas ela estava adormecida e cômoda.
Jogando-lhe um último olhar, Geoff a cobriu completamente
com a manta, ajeitando-a ao redor do corpo.
E imediatamente desejou não ter visitado Lady Anisha
Stafford no dia seguinte as bodas de Ruthveyn. Nem havê-la
convidado, a ela e a seu meio irmão, Lorde Luzam, ao teatro com
sua mãe no dia seguinte pela tarde.
Inclusive, tinha feito sua mãe prometer que visitaria Lady
Anisha durante a ausência de seu irmão. Que a levaria tomar o chá e
a jantar. Tudo isso tinha feito com que sua mãe o olhasse de forma
especulativa. Assim que lhe tinha contado a verdade... caso
houvesse alguma verdade a contar. Que admirava profundamente à
dama. Que pretendia cortejá-la.
Provavelmente estariam comprando o enxoval quando
voltasse de Bruxelas.
De repente, ele também se sentiu enjoado.
Lady Anisha era óbvio, uma amiga muito querida, e sempre o
seria. Era tão querida que Geoff não desejava fazer nada que a
fizesse sentir-se incômoda. Desejava não ter iniciado nada que
causasse precisamente isso.
Pousou brandamente uma mão na bochecha de Anaís. Parecia
com a irmã de Ruthveyn, no sentido de que, com apenas um olhar
para seu cabelo negro e sua cálida pele, as pessoas sabiam que não
era nenhuma rosa inglesa, a não ser uma orquídea de estufa,
estranha e exótica. Não bastasse, em todo o resto não podiam ser
mais diferentes.
Deixou cair a mão e desejou poder pensar em outra coisa.
Fazendo um esforço por distrair-se, agarrou seu baú de
viagem e tirou os documentos que DuPont lhe tinha entregue. Além
dos informes e das notas, DuPont tinha incluído alguns objetos
pessoais, entre os quais se encontrava uma carta com a assinatura de
madame Moreau e uma longa fita amarela de cabelo etiquetada com
o nome de Giselle Moreau.
Geoff tirou esta última e durante um momento se sentou à
pequena mesa, passando a fita pensativamente entre os dedos. Às
vezes os artigos pessoais podiam ser úteis, mas como a menina era
uma adivinha, veria muito pouco. A mãe, entretanto, era outra
história. Era possível que sua carta conseguisse lhe abrir o vazio,
mas aquela noite não tinha ânimos. Não queria ver o futuro de
Giselle nem sentir os medos de sua mãe. Não queria notar, nem
sentir as lembranças de madame Moreau.
Seria dolorosamente familiar.
Deixou a fita de lado. Levantou-se e reduziu a luz do abajur
que havia sobre a mesa, deixando apenas luz suficiente para
observar Anaís. Depois tirou as botas de um puxão, lançou o casaco
e o colete sobre uma cadeira e se deitou com cuidado no beliche em
frente, com as pernas um pouco encolhidas no peito.
Ficou de lado, passeou o olhar pelo corpo de Anaís e deixou
escapar um suspiro. Estava contraído, molhado e bastante obcecado.
Como Anaís havia dito, era uma situação lamentável.
Deus seria uma noite muito longa.
Capítulo 7

"Na arte prática da guerra, o melhor é tomar o país do inimigo

completo e intacto."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Bruxelas era uma bonita cidade na primavera. Abrindo por


completo as janelas de seu dormitório, Anaís olhou a rue de l'Escalier
e inspirou profundamente o ar que era, no momento, fresco, graças
ao aroma da chuva. Infelizmente, não duraria, tinha lhe assegurado
o novo mordomo, porque o efluente local, como ocorria em Londres,
era transportado por um rio que atravessava a cidade.
Mas, nesse instante, Bruxelas era adorável e, ao contrário do
Jolie Enjoe, muito, muito estável. E para ela, nem sequer o
desagradável fedor do rio Sena podia diminuir a beleza disso.
Ao longo da estreita rua havia vasos de barro de flores
colocadas nos balcões de ferro forjado. Justo debaixo, dois homens
idosos estavam descarregando a carruagem que os tinha seguido
desde a estalagem em Ostende, grunhindo um com o outro no que
pareciam três idiomas diferentes.
A contragosto, Anaís se retirou da janela, porque podia sentir
a promessa da chuva. Tinha estado garoando durante quase todo o
trajeto que tinham feito por terra, mas não lhe tinha importado,
agradecida por pisar em chão firme, que estivesse seco ou não.
— E aqui, madame, está seu armário. — Ouviu que dizia o
mordomo a suas costas.
Ela deu a volta sorrindo amplamente.
— Vá na frente, Bernard.
O mordomo a conduziu a um amplo corredor com um par de
armários, com capacidade de armazenagem para vários baús e uma
pequena mesa de penteadeira. Era um espaço reduzido onde ainda
se notava o aroma de pintura.
— Ao outro lado desta porta, madame, está o dormitório do
senhor MacLachlan. — Informou Bernard. — O banho é
compartilhado e todos os quartos estão conectados.
O sorriso de Anaís se desvaneceu. Não tinha pensado naquilo
quando aceitou à sugestão de Geoff de fingir um matrimônio,
inclusive aos olhos da tripulação e dos serventes, reduziria as
possibilidades de colocar tudo em risco.
— Estou certa, Bernard, de que aqui estaremos muito bem. —
Conseguiu dizer.
O servente se inclinou ante ela e saiu ao corredor para
fiscalizar os baús, que nesse momento estavam sendo levados pelos
serventes aos tropecões pelas escadas. Anaís o observou partir e
depois se aproximou da janela.
Bernard era muito mais formal que qualquer servente que sua
família tivesse contratado. Ele mesmo tinha explicado que procedia
diretamente da casa de Paris do senhor Van de Velde, igual às duas
criadas. Os lacaios vinham da casa de monsieur DuPont e, o pessoal
de cozinha, de algum lugar de Amsterdam.
Embora todos fossem leais e de confiança, formavam um
pequeno grupo, havia-lhes dito Bernard. Além disso, seu misterioso
anfitrião (que, ao final, não tinha sido tão misterioso) tinha estado
acompanhado por uma donzela e um criado de quarto quando os
receberam no porto.
O senhor Van de Velde era um banqueiro muito rico de
Roterdam, baixo e gordo, com um bigode impressionante e
numerosos assuntos financeiros na França, Bélgica e nos Países
Baixos. Como Bessett, levava o símbolo da Fraternitas no alfinete de
seu lenço de pescoço, embora sem o cartucho do cardo.
Depois de umas cálidas boas vindas e outra advertência sobre
a reputação de Lezennes, proveu-os de mapas, chaves e uma lista de
contatos por toda Bruxelas. Depois partiu rapidamente porque,
conforme lhes explicou, era muito conhecido para ser visto fora da
privacidade de sua carruagem fechada.
Atrás dela, Bernard pigarreou com suavidade.
— O Palácio Real, madame, está por ali. — Disse-lhe,
assinalando para a colina. — A igreja de madame Moreau está a um
curto passeio, atravessando a grande praça e o mercado de flores.
Por favor, tome cuidado quando sair, porque toda Bruxelas está em
construção.
Anaís sorriu.
— A Revolução propiciou os negócios?
— Em certa maneira. — Bernard lhe dedicou um sorriso tenso
e baixou a voz. — Foi especialmente boa para os banqueiros.
Monsieur Van de Velde tem muitos interesses por aqui.
— Incluindo esta casa?
Bernard encolheu os ombros com um gesto tipicamente
francês e abriu as mãos.
— O antigo proprietário jogava muito as cartas. — Murmurou.
— Obrigaram-no a deixar a casa durante um ano. Para cumprir com
os gastos da hipoteca.
— Um empréstimo do qual Monsieur Van de Velde obteve
benefícios, sem dúvida. — Disse ela ironicamente.
Bernard arqueou uma magra sobrancelha.
— É proprietário de muitas hipotecas, estou seguro.
Ela virou para a janela, perguntando-se uma vez mais, até
onde chegavam os tentáculos da Fraternitas nos governos e nas
economias da Europa. E Van de Velde tinha alugado a casa durante
um ano? Santo Deus. Certamente não demorariam tanto tempo em
fugir com a família Moreau ou o que sobrou dela.
Com a reticente cumplicidade de Maria, Anaís poderia se
esquivar da curiosidade de seus pais durante uma temporada, um
par de meses talvez, agora que tinha começado a temporada de
cultivo. Com um pouco de sorte, Armand estaria muito ocupado
tentando causar boa impressão em Londres para dar-se conta de que
ela tinha retornado da Toscana. E Nate... Oh, Nate era como um
sabujo se captava o aroma do escândalo. Nem sequer a engenhosa
Maria seria capaz de despistá-lo. Mas Nate estava tremendamente
ocupado e acostumado a que ela viajasse.
Oh, era certo que um guardião, inclusive um não oficial como
ela, tinha que fazer frequentemente sacrifícios pessoais. Ela faria o
que fosse necessário. Entretanto, pensava que, com um ano de
ausência teria que se conformar. Seria sua ruína na sociedade. E só
Deus sabia como se arrumaria vivendo com Bessett, com Geoff,
durante tanto tempo.
Talvez fosse mais fácil se voltasse a ser esse cavalheiro altivo e
dominante que tinha conhecido na Sociedade de Saint James. Em
lugar disso, parecia decidido a mantê-la constantemente desfocada
com suas ocasionais avalanches de amabilidade. De vez em quando,
inclusive esses olhos de cor azul claro pareciam capazes de derreter-
se.
Bernard seguia atrás dela, como se esperasse ordens.
— A casa com as tulipas vermelhas e amarelas. — Murmurou
ela. — É a casa de Lezennes?
Bernard se aproximou um pouco.
— Madame. — Disse, baixando o tom de voz. — Já
conseguimos fazer muitas coisas. A senhora Janssen conheceu à
cozinheira do Lezennes no mercado do Grand Sablon, e nosso lacaio
Petit está... como dizem vocês? saindo com a donzela. Poderão lhe
contar muitas coisas do ritmo e das intrigas da casa.
Anaís afastou as finas cortinas e olhou com mais atenção para
a casa que estava só duas portas na rua íngreme.
— E a menina? — Perguntou pensativa. — A viu entrar ou sair
da casa?
— Muito pouco. — Respondeu o servente. — A maioria dos
dias madame Moreau a leva ao parque para dar um passeio ao
meio-dia. Lezennes se reúne com elas ali e as acompanha de volta à
casa. Também contratou uma governanta que vai ali cada dia.
Nesse momento, ouviram as firmes pisadas de Geoff subindo
as escadas. Anaís deu a volta e o viu atravessando o corredor, com
um de seus baús em equilíbrio sobre o ombro direito. Esse dia
levava o liso e denso cabelo recolhido à nuca com um cordão de
couro, como se estivesse muito ocupado para pensar nele. Sua nova
donzela francesa corria atrás dele, incapaz de seguir o passo que
marcavam suas longas pernas.
— Bom, este é o último. — Disse ele, entrando no quarto. — A
casa está magnificamente situada, Bernard.
— É certo que a vista ao outro lado da rua não poderia ser
melhor. — Anaís se dirigiu à porta do quarto enquanto Geoff
deixava no chão o baú com um grunhido. — E olhe, querido. —
Seguiu dizendo ela, e cruzou os braços sobre o peito. — Nossos
quartos estão conectados... e compartilharemos o banho.
De onde estava ajoelhado, Bessett lhe dedicou um sorriso
zombador.
— Sim, bom, pelo menos há encanamentos. — Disse sem
alterar a voz. — Em Yorkshire ainda levamos à mão a água às casas,
a quente e a fria.
Claire, a nova donzela de Anaís, fez uma rápida reverência e
disse em francês que ia começar a desfazer a bagagem.
— Merci. — Respondeu-lhe Anaís.
Atrás deles o mordomo voltou a pigarrear.
— Ah, Bernard. — Disse Geoff, levantando-se. — Disse que
havia algo no sótão que queria que víssemos?
O mordomo fez uma de suas rígidas reverências.
— Se madame e monsieur têm a amabilidade de me seguir...
Como as casas de Londres, a de Bruxelas era profunda e
estreita, e consistia em um andar inferior para o serviço das
cozinhas, três andares principais e um espaçoso sótão. Anaís e Geoff
seguiram o mordomo até o último lance de escadas, esperando
encontrar os alojamentos dos serventes.
Em lugar disso, a maior parte do sótão estava vazio, com teto
branco, um polido chão de madeira e uma grande claraboia elevada
na parte traseira. Em um quadrante destacava-se uma mesa de
bilhar, talvez um pouco mais estreita que um bilhar inglês. No
espaço oposto estava uma bolsa de couro pendente em uma corda,
como a que estavam acostumados a usar os cavalheiros para
praticar boxe. Entre os dois havia um grosso colchonete, para
praticar luta, supôs Anaís, já que seus irmãos sentiam debilidade
por esse tipo de violência selvagem.
A outra metade do sótão estava vazia, exceto por uma
prateleira vertical que expunha uma seleção de floretes e espadas,
junto com diversas lâminas e artigos de esgrima. E frente as duas
claraboias, haviam pequenos telescópios montados em tripés como
os que se usavam em navegação, e um par de cadeiras.
Geoff passeou o olhar lentamente pelo cômodo e deixou
escapar um assobio de admiração.
— O paraíso de um cavalheiro, net-ce paz? — Disse Bernard. —
O proprietário é um fanático por esporte.
— Por isso seu contínuo endividamento. — Murmurou ela,
cruzando o sótão para apanhar um dos floretes.
— Estes telescópios são um detalhe extraordinário. — Disse
Geoff enquanto se sentava em uma cadeira para olhar. — Ah.
Compreendo.
— São nossos. — Disse Bernard. — Talvez deseje levar um a
seu quarto. Até agora, fazíamos turnos para vigiar o refeitório de
Lezennes e o que acreditam que é o salão principal.
— Viram algo? — Perguntou Geoff, ainda com os olhos
entreabertos.
— Às vezes, madame Moreau. — Disse Bernard. — Parece
mover-se livremente pela casa e sai as compras, e vai à igreja duas
ou três vezes por semana.
— No relatório que DuPont nos entregou diz que é católica. —
Comentou Anaís pensativa. — É muito religiosa?
Bernard encolheu os ombros.
— Seu finado marido sim era, certamente. — Respondeu. —
Nossos contatos em Paris acreditam que talvez ela não seja tanto.
Pode ser que a igreja seja uma via de escape de Lezennes. Ou talvez
a dama esteja rezando desesperadamente por algo.
Anaís pensou nisso.
— E aonde vai?
— Ao Saint Nicholas. — Respondeu o mordomo.
— Ah. — Disse ela. — Talvez seja hora de que eu também vá
me confessar.
Geoff se levantou de trás do telescópio e a olhou com
estranheza. Por um lado, grande parte de seu cabelo escapou do
cordão.
Bernard se limitou a inclinar-se de novo.
— Agora devo ir para situar em seus postos, seus novos
serventes pessoais. Também, senhor, monsieur DuPont enviou um
envelope para você. Diz que não é urgente. O deixo no escritório?
— Sim, é claro. — Geoff que havia voltado a centrar sua
atenção no telescópio. — Obrigado, Bernard.
Quando a porta do sótão se fechou, Anaís devolveu o florete à
prateleira, deslizando-o em seu lugar com um ruído metálico.
— Não parece que haja ninguém em casa. — Disse Geoff,
dando-se por vencido e levantando-se da cadeira.
— Sim, vamos ter que fazer amigos logo. — Murmurou ela,
segurando uma espada. — Confesso que estou um pouco nervosa.
Separou-se da prateleira e viu que Geoff estava olhando a
arma que tinha na mão.
— Bom, pelo menos parece que sabe o que faz com isso.
Sorrindo, Anaís ficou em posição e investiu.
— Em garde!
Geoff se limitou a piscar.
— Oh, acredite, querida, estive em guarda do primeiro
momento que te vi. — Disse, aproximando-se dela com sua habitual
elegância e agilidade. — Mas me perguntava se o velho Vittorio não
teria te ensinado um par de truques.
O sorriso de Anaís se desvaneceu.
— Sim, era um professor e espadachim em seu tempo. —
Disse com suavidade. — Era... surpreendente. E conhecido em toda
a Toscana. De fato, alguma vez chegou a ouvir...?
— O intento secreto de assassinato no Congresso de Viena? —
A admiração suavizou um pouco os brilhantes olhos do Geoff. —
Essa façanha fez famoso o Vittorio na Fraternitas. Por isso ouvi, a
adaga ia dirigido ao cardeal Consalvi.
— Sim, o assassino desembainhou a arma, mas nunca teve
oportunidade de atacar. — Anaís fez um movimento com a espada.
— Vittorio o atravessou às cegas, assim...
— Por detrás das cortinas do estrado. — Terminou Geoff a frase.
— Sim, sim, porque esse era seu dom! — Ela baixou a mão
esquerda e desviou o olhar ao intrincado punho da espada. — Seu
dom, sua maldição. Podia sentir o ser de uma pessoa, sua força vital,
se prefere chamá-lo assim. E conhecia o mal. Podia cheirá-lo, já sabe,
como o fedor da morte. Tentou me ensinar um pouco, mas eu...
acredito que talvez não desejasse aprender essa lição em particular.
De fato, não invejo a ninguém que tenha um dom tão forte.
Uma emoção indecifrável se refletiu no rosto do Geoff, como
um instante de dor, muito rápida e pura para ser identificada.
Imediatamente, ele trocou de tema, falando com um tom de voz
mais alegre.
— Então, senhora MacLachlan. — Disse-lhe. — Que arma
prefere?
— O florete com adaga.
— Ah, a escola tradicional!
— Se algo era Vittorio, era tradicional. — Admitiu ela. —
Exceto no que se referia para mim.
— Não, decididamente, você não é nada tradicional. —
Murmurou. — Que mais te ensinou Vittorio... além dessa delicada
investida e de pressentir sem ver?
— Eu não tenho esse dom. — Respondeu sem alterar a voz
enquanto passava um dedo pela parte lisa da espada, como se a
avaliasse. — E ao final, sim, contratou um professor florentino de
esgrima para mim. Vittorio disse que se sentia muito velho para me
ensinar corretamente os movimentos mais rápidos e complexos.
Que para esse trabalho se requeria um homem jovem.
Levantou o olhar e viu que Geoff estava observando sua mão
como se estivesse hipnotizado.
— Imaginava que alguma vez teria que te defender com uma
espada?
Anaís negou com a cabeça.
— Acredito que somente queria que aprendesse rapidez e
elegância. Claridade de pensamento sob pressão. Que aprendesse
todo o sensorial. Bom, meus instintos estão acima da média, isso o
admito. Maria diz que sou como um gato na escuridão. Mas nunca
serei como Vittorio.
O olhar de Geoff se suavizou.
— Pergunto-me o que pensou esse pobre professor de
esgrima. — Murmurou. — Deve ter lhe parecido uma beleza letal.
Provavelmente estava meio apaixonado por ti quando acabaram as
lições.
Anaís sentiu que o calor lhe subia pelas bochechas.
— Não seja ridículo. — Disse, e deu a volta apressadamente
para pendurar a arma. — Pensava que tinha boa mão para as
espadas, nada mais. Tentou me ensinar a espada larga, para
trabalhar o equilíbrio, mas eu não podia elevar essa maldita coisa
com precisão.
Quando se voltou, Geoff a estava olhando com intensidade.
— Por que tenho a impressão, Anaís. — Disse em voz baixa —
De que te concentra mais em seus fracassos que em seus êxitos?
Ela encolheu os ombros.
— Acaso não o faz todo mundo? — Replicou. — Refiro-me a
quem quer converter-se em alguém de proveito.
Durante um instante, ele se limitou a olhá-la com a cabeça
inclinada, avaliando-a.
— Acredito que você já se converteu em alguém de proveito,
quero dizer. Mas tenho a sensação de que te entrega ao máximo...
inclusive para cumprir os desejos de outros. O fato de que te
enjoasse no mar é um exemplo claro.
— Então, o que está sugerindo que faça? — Perguntou-lhe. —
Que fique em casa para evitar as náuseas? Que abandone por
completo o sonho de minha bisavó?
Viu que Geoff apertava a mandíbula de forma reveladora,
embora foi um movimento muito leve.
— Estou dizendo que seu caso de mal de mar é o pior que vi na
vida... e vi homens feitos, chorar. — Afirmou ele com voz rouca. —
E estou sugerindo que talvez deveria viver seu próprio sonho, se
alguma vez lhe dedicaste tempo a decidir qual é.
Ela levantou o queixo.
— E você? Está fazendo o que desejas? E recorda que vi sua
cara na noite, em que falou de seu trabalho com seu padrasto.
Ele desviou o olhar durante um instante.
— Minha vida mudou quando Alvin morreu. Até então, sim,
dedicava-me a fazer o que mais eu gostava. É obvio, sempre tinha
presente que a Fraternitas podia encomendar uma missão em
qualquer momento, mas a organização estava tão fraturada...
— Que, ao final, decidiu recompô-la você mesmo. —
Interrompeu-o ela, aproximando-se um pouco. — E assim, sua vida
mudou para sempre.
— Sim. — Respondeu ele. — Sim, diria que é uma forma de
ver.
Seguindo um impulso, Anaís lhe acariciou brandamente a
bochecha e lhe virou o rosto de novo para ela.
— E graças a Deus que o fez, porque influiu vida a Fraternitas.
— Não estou seguro de que não começasse tudo de forma
egoísta. — Murmurou ele, olhando para outro lado. — Ao recordá-
lo, acredito que o fizemos motivados pela raiva. Por Lazonby.
— Por Lazonby?
Anaís franziu o cenho.
— Sempre estávamos juntos no Marrocos, Ruthveyn, ele e eu.
— Disse Geoff em voz baixa. — Companheiros dissolutos, poderia
dizer-se. Eu acabava de terminar um projeto para o governo francês,
Lazonby estava de licença da Legião Estrangeira e Ruthveyn... bom,
dedicava-se a fumar nos antros de ópio do norte da África. Era todo
um grande bacanal até que os guardas prenderam Lazonby e o
levaram à Inglaterra. Assim Ruthveyn e eu o seguimos.
— E o que ocorreu?
— Compramos uma casa e fundamos a Sociedade de Saint
James. — Respondeu. — Estávamos acostumados a falar de
ressuscitar a Fraternitas, e isso fizemos. Para que serve uma
irmandade se não para poder proteger aos seus de um
encarceramento injusto?
— Foi lorde Lazonby injustamente encarcerado? — Perguntou
ela. — Segundo os jornais, uma partida de cartas se complicou e
houve um assassinato.
— Não matou o homem pelo qual foi condenado por
assassinato. Mas foi culpado de tomar uma má decisão? Sim. Um
homem com um dom como o seu, não pode jogar cartas. Disso, só
pode resultar uma amarga situação. Mas naquela época, Lazonby
somente era um moço... e inclusive agora nega que o que tem é um
dom.
— Mas sua família o marcou como guardião. — Murmurou
ela.
—Igual a ti, ou isso diz ele.
Durante um instante, o olhar do Geoff voltou a ser frio.
— Sim, como disse aquela noite no templo. — Respondeu ela.
— Foram as instruções que nonna Sofia deu a Vittorio: que, uma vez
me treinassem, devia ser marcada e oferecida à causa.
— Por que? — Insistiu ele.
Anaís encolheu os ombros.
— Não sei. Pouco antes de morrer, minha bisavó só disse que
havia algo que eu estava obrigada a fazer, e que o destino me
revelaria isso. E sim, compreendo que uma pessoa pode ser um
guardião sem ter capacidades metafísicas. Unicamente se requer ter
bom julgamento, determinação e um pouco de valentia. Mas a
linhagem escocesa de lorde Lazonby é muito forte... A maioria das
linhagens escocesas o são, já sabe.
— Oh, sim. — Respondeu Geoff firmemente. — Sei bem.
— E também alguns dos franceses. — Acrescentou ela com ar
distraído. — Mas em algumas partes da Europa a Fraternitas é algo
quase cerimonioso. A gente bem que poderia estar unindo-se à loja
maçônica local... ou inclusive, ao clube do bife, dado o bem que
fazem. Mas não faz falta que lhe diga isso. Graças a toda a
investigação e documentação, a Sociedade de Saint James começou a
arrumar as coisas.
Geoff fez um som ligeiramente depreciativo. Havia lhe
tornado a segurar a mão e a tinha girado para lhe passar o dedo
indicador pelas linhas, como se lhe quisesse ler a palma.
Mas Anaís fechou a mão sobre a sua.
— Me escute, Geoff. — Disse com veemência. — Por que
tenho a sensação de que agora é você que está menosprezando seus
atos? Quando faz isso, despreza a todos. E, pense o que pense de
mim, independentemente de a Fraternitas me querer em suas filas ou
não, sempre acreditarei no que tem feito a Sociedade de Saint James.
— Ah, que palavras tão amáveis, Anaís! — Disse.
— Não são só palavras. — Tremia-lhe um pouco a voz. —
Com frequência ouvi o Vittorio elogiar o trabalho da Sociedade.
Acreditava que, ao final, conseguiria identificar e pôr a salvo a todos
os que possuem o dom. Especialmente aos mais vulneráveis. Como
Giselle Moreau.
— Dizia isso?
Geoff lhe agarrou a mão quase com rudeza quando tentou
soltar-se.
Ela assentiu.
— Oxalá minha bisavó tivesse vivido o suficiente para ver
ressurgir de suas cinzas a Fraternitas. Para ter a certeza de que
chegaria a ser algo mais que contos de fadas. De que voltaria a ser
uma sociedade secreta dedicada a fazer o bem.
— Parece muito nobre quando o diz assim. — Murmurou,
levantando um pouco a mão dela, como se fosse roçá-la com os
lábios. — Talvez, Ruthveyn e eu só estávamos cansados de nos
sentir diferentes. Talvez somente quiséssemos ter algo no que nos
manter ocupados, o suficiente como para não ter tempo para olhar
em nosso interior e nos perguntar no que tínhamos nos tornado.
— Não acredito. — Sussurrou. — Geoff, talvez eu não... não
tenha muito dom. Mas posso te ver. E acredito que você sabe.
Levantou a vista para olhar seus olhos frios e implacáveis e
viu que a tinha atraído sem esforço para ele. Foi como se a tivesse
atraído através do tempo e do espaço em lugar do brilhante chão do
sótão. Uma energia, uma espécie de emoção tangível, parecia brilhar
no ar a seu redor, e todo pensamento lógico deslizou de sua mente
como se fossem bolas de gudes.
Permaneciam peito contra peito sob a prateleira de espadas.
Lentamente, como se estivesse debaixo da água, Geoff levantou a
outra mão e lhe acariciou a bochecha. Se despertar na manhã
anterior com o vestido desabotoado e o espartilho aberto lhe tinha
parecido íntimo, aquilo o era mil vezes mais.
— Ah, Anaís, isto é muito imprudente. — Murmurou ele. — Me
diga... me diga que nós dois sabemos.
Capítulo 8

"Conheça a ti mesmo, conhece teu inimigo; mil batalhas, mil

vitórias."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Anaís respirou com dificuldade, sentindo o olhar preso no seu.


— Muito imprudente. — Sussurrou. — Mas...
Suas palavras se desvaneceram.
Oh, não era o homem apropriado para ela. Sabia. Entretanto, o
momento era inevitável.
Ele também devia havê-lo sentido. Geoff deslizou a mão
esquerda entre seu cabelo à altura da nuca e pousou os lábios sobre
os seus, com calidez e firmeza. Resolutamente. Como se ela fosse
incapaz de negar-se a seus desejos e ele pensasse em tomar seu
tempo.
Oh, sim, por favor, Deus, que tome seu tempo...
Sua boca era suave, mas tinha uma força que mostrava suas
intenções. Sua intenção de possuí-la, pelo menos durante esse breve
momento. E, com um suspiro, Anaís se rendeu. Seus lábios e seu
corpo se derreteram contra o dele enquanto jogava a cabeça para
trás. Geoff se inclinou sobre ela. Seu cabelo era uma cortina de
bronze reluzente enquanto caía e lhe ocultava o rosto.
Ela sabia, é obvio que se arrependeria disso, e ele também.
Mas quando ele emitiu um som gutural e a envolveu com um braço,
atando-a a ele, Anaís se esqueceu dos remorsos. Em lugar disso,
entrecerrou os olhos e abriu a boca, mordiscando brandamente seu
carnudo lábio inferior.
Aquilo poderia ter sido um engano. Certamente, foi um
convite, e Geoff o aceitou afundando a língua em sua boca.
— Hmm. — Sussurrou ela, e levou as mãos para cima, muito
mais acima, até abraçá-lo pelo pescoço enquanto se moldava a ele.
Com um suspiro de prazer, ele se afundou um pouco mais,
deslizando de maneira sinuosa a língua ao longo da dela e
empurrando-a ritmicamente até que ela começou a notar que os
joelhos lhe abrandavam como se fossem manteiga quente. Lhe pôs a
mão direita no traseiro, onde começou a fazer quentes e firmes
círculos, subindo pouco a pouco a musselina do vestido.
Quase sem poder respirar, Anaís afundou os dedos no cabelo
dele e lhe sugou a língua com força. Como resposta, ele deslizou
uma mão por debaixo do quadril, levantando-a firmemente contra a
inconfundível dureza de sua ereção. Lhe pareceu sentir toda sua
longitude, a grossura e inclusive o desejo palpitante e insatisfeito no
interior de seu corpo, e voltou a sentir aflita por essa profunda
sensação do inevitável.
Sem ser consciente do que fazia, Anaís levantou uma perna e
enlaçou com ela uma das dele, e depois a subiu até seu quadril.
Geoff aprofundou o beijo, estremeceu um pouco entre seus braços e
se apertou contra ela com um movimento que deveria ter parecido
vulgar, mas que, simplesmente, não foi. E durante um momento
infinito, sentiu-se perdida no desejo. Todo seu corpo desejava o dele
enquanto se pressionava contra ele e o sentia palpitar contra ela.
Com um intenso estremecimento, Anaís afastou a boca da sua.
— Geoff... — Sussurrou. — ... O colchonete. Poderíamos...
Ele desviou o olhar ao grosso colchonete e ela pôde sentir
como tremia.
— Por Deus, Anaís. — Disse com voz rouca.
Fechou os olhos sem deixar de apertar os quadris dela contra
os seus. Ela sentiu contra o ventre que a ereção de Geoff se sacudia.
Viu-o respirar com dificuldade e cheirou o calor sensual que
despendia de sua pele feito ondas.
— Me deseja. — Sussurrou-lhe.
Ele deixou escapar uma risada discordante e abriu os olhos.
— Isso quer dizer pouco. — Lentamente, começou a deslizá-la
para baixo por seu corpo. — É como uma chama para a isca.
Anaís pôs um pé no chão e deslizou a outra perna pela dele
até que ficou de novo de pé, firmemente ancorada à realidade.
Baixou o rosto até a frente de sua camisa e inalou o aroma de amido
e desejo não satisfeito. Geoff lhe tinha posto uma mão na nuca com
um gesto tenro, quase protetor.
— Não acredito. — Disse em voz baixa. — Que seja prudente
que volte a te beijar. Nunca.
Ela tentou sentir-se agradecida por seu bom julgamento.
E estava agradecida... ou o estaria, assim que lhe acalmasse a
respiração e cessasse esse molesto batimento do coração que sentia
entre as pernas.
Nesse instante, as dobradiças da porta chiaram. Bernard
emitiu outro de seus sons guturais.
— Perdão. — Disse enquanto eles se separavam bruscamente.
— Ah, recém-casados! — Exclamou Geoff com naturalidade.
— Deve nos perdoar, Bernard.
O mordomo se limitou a inclinar o pescoço com rigidez.
— É obvio. — Murmurou. — A senhora Janssen gostaria de
saber o que desejam jantar.

*****

Aquela tarde, Anaís fechou com chave as portas do banheiro e


passeou pelo cômodo ladrilhado com cerâmica de Delft, notando os
indícios de ocupação masculina: o sabão de barbear sobre o suporte
do lavabo, a escova de dentes com alça dourada, uma navalha de
barbear jogada sobre uma estante próxima e uma pequena maleta
de couro sobre o armário de roupa. Estava aberto e deixava ver só os
artigos de asseio mais básicos de um cavalheiro.
Assim, depois de tudo, não era um pavão presunçoso.
Seguindo um impulso, tirou uma garrafa da maleta e lhe tirou
o plugue. O sedutor aroma familiar a especiarias e cítricos se
propagou. Fechou-o, deixou em seu lugar apressadamente e depois
lavou o rosto com água fria. Não fazia nenhum bem pensar em
Geoff dessa maneira. Estava ali para levar a cabo uma importante
missão. Não podia permitir que seu coração traiçoeiro voltasse a
converter-se em seu pior inimigo.
Depois de ter recuperado um pouco o julgamento com a água
tonificante, pôs as mãos em ambos os lados do lavabo e se olhou no
espelho. A verdade era que tinha tido sorte. O jantar poderia ter
sido muito incômodo, mas a chegada de Petit, o lacaio, tinha-os
salvado. No transcurso da comida, tinha-lhes apresentado o rígido
horário dos ocupantes da casa que havia no outro lado da rua e lhes
tinha contado tudo o que a senhora Janssen e ele tinham descoberto
da casa.
Parecia que Lezennes passava a maior parte do dia na corte ou
em despachos diplomáticos da capital. Madame Moreau se ajustava
mais a sua agenda que, como Bernard tinha explicado, consistia
sobre tudo em ir à igreja e as compras. À pequena Giselle apenas lhe
permitia sair da casa. Não parecia que a família tivesse amizades.
Assim, no dia seguinte começariam a fazer seu trabalho.
Provavelmente, madame Moreau faria sua visita matutina de
domingo à igreja para confessar-se e depois iria ao mercado da
Grand Place. Anaís pensava estar ali antes que ela chegasse.
Mas quando comentou suas intenções, Geoff a tinha olhado
com intensidade e lhe havia dito:
— Petit te acompanhará. Quero que tome todas as precauções
possíveis.
Levava o comprido cabelo penteado para trás e a luz das velas
fazia que os rasgos de suas bochechas e da dura mandíbula
parecessem ainda mais severos, e dava a impressão de ser um
arrogante príncipe medieval em seu trono, dando ordens aos
mortais inferiores a ele.
O cabelo parecia mais escuro e, o nariz, algo mais comprido e
magro do que o normal.
Ela tinha se limitado a levar a taça de vinho aos lábios, sem
dizer nada. Uma ordem absurda não merecia muita consideração. Se
Geoff estava aborrecido por tê-la beijado, teria que acalmar-se
sozinho. Se estava zangado com ela por havê-lo beijado... Bom, pois
já eram dois. Esse homem não era mais que um descarado disposto
a seduzir uma mulher incauta. Por isso ela, ao mostrar-se
descuidada, tinha sido uma estúpida.
Ela terminou de escovar os dentes com muito ímpeto e se
perguntou, enquanto enxugava a escova, se não deveria golpear a
cabeça dele com a escova, ou, possivelmente, com algo maior. Olhou
a escova de cabelo e suspirou.
Desejava Geoff.
Não havia volta. Tinha-o desejado... Bom, não desde que o
tinha conhecido, talvez, mas quase.
Fechou os olhos e voltou a apoiar as mãos na bancada do
lavabo. Quase podia sentir a presença dele no quarto contíguo.
Sabia que ele estava ali. Ela o desejava e ele estava passeando pelo
dormitório como um leão enjaulado, indo da cadeira à janela,
provavelmente com uma taça de brandy na mão.
Um estremecimento a percorreu: algo profundo e cheio de
necessidade. Pelo que parecia, trocava de opinião com muita
facilidade, porque as carícias dele faziam com que atirasse a lógica
pela janela. Mas no momento devia manter a cabeça fria.
Dessa vez, tinha que esperar o homem adequado. Não o
homem arrumado.
Devia recordar, como era evidente que Geoff fazia, a menina a
quem tinham ido ajudar. A pequena Giselle o obcecava de uma
maneira que ela não podia compreender. Era evidente pela forma
como lhe entrecortava a voz cada vez que a mencionava.
Havia outra coisa que não compreendia, e era a natureza do
dom de Geoff. Ele nunca falava disso, embora Vittorio uma vez
tinha insinuado que Lorde Bessett e Lorde Ruthveyn se
encontravam entre os videntes mais poderosos da Fraternitas. Que
eram místicos. Como os antigos sacerdotes celtas dos quais
descendia a Fraternitas e cujas poderosas capacidades de
prognóstico quase tinham caído no esquecimento em favor da
história e da lenda.
Fosse o que fosse, e viesse de onde viesse, era evidente que
Geoff não permitia que suas emoções mais básicas interferissem
com seu trabalho, e por isso, ela deveria elogiá-lo.
Suspirando, tirou o ferrolho das duas portas do banheiro e
atravessou o closet para dirigir-se a seu dormitório. A donzela
partiu e graças a Deus, tinha deixado a cama aberta para que ela se
deitasse e tinha baixado a intensidade do abajur de azeite até
conseguir uma luz tênue.
Anaís abriu seu baú de viagem e tirou a Bíblia e a caixinha de
madeira de ébano que continha o tarot; depois deixou tudo sobre a
mesinha. Abriu a tampa e tirou a carta de cima, cujas bordas
estavam mais desgastadas que as que estavam embaixo.
Deu uma última olhada no rei de ouro, ré dava dischi, levantou-o
perto da luz como sempre fazia, percorrendo com o olhar seu
atrativo rosto e sua armadura de cor vermelha sangue. Depois,
rapidamente, apagou a luz.
Um príncipe de paz com armadura escarlate.
Mas essa noite parecia que seu príncipe se esqueceu dela.
Ou que talvez nunca a tenha esperado.

*****

Geoff esperou na mais completa escuridão. Esperou até que já


não ouviu Anaís no quarto ao lado. Esperou até que desapareceu o
desejo de atravessar seu closet e entrar em seu dormitório e teve
alguma esperança de dormir sem que o perturbassem as lembranças
desse beijo abrasador e do impacto que tinham compartilhado.
Que estúpido era. Desde o começo tinha sabido que ocorreria
isso. Que a desejaria. Que sonharia com ela. Seria um milagre que
pudessem trabalhar juntos.
Mas só tinha que pensar em Giselle, olhar através das janelas
de seu dormitório para onde Petit lhe havia dito que era o quarto da
menina, para saber que se sentia completamente sozinha. E
completamente aterrorizada.
Isso fazia que o desejo carnal lhe parecesse uma tolice.
Quando o silêncio absoluto invadiu a casa, ele se levantou e
foi para a janela, fez chiar as dobradiças ao abri-la. Apareceu a Rue
de l'Escalier e ele inspirou profundamente o ar fresco da noite.
Entretanto, já se podia sentir o fedor do rio assentando-se sobre a
cidade como uma espessa névoa. Cheirava a podridão e águas
residuais, como todo esse assunto do visconde de Lezennes, a
verdade fora dita.
Nos pisos superiores da casa de Lezennes as luzes seguiam
acesas, exceto no quarto que Petit havia dito que era o de Giselle.
Geoff inspirou lentamente, aproximou uma cadeira à janela, abriu
sua maleta de viagem e tirou o envelope de DuPont. Debaixo dele
viu a fita amarela do cabelo de Giselle e, por um momento, deteve a
mão. Talvez poderia conectar-se com a mãe, se não o fazia com a
menina.
Fechou a caixa com um golpe seco, acendeu uma vela e, pela
segunda vez nesse mesmo dia, começou a revolver entre as coisas
que DuPont lhe tinha enviado. Não havia muito, só um punhado de
faturas atrasadas e algumas cartas de pêsames dirigidas a madame
Moreau. Não tinha nem ideia de como DuPont as tinha conseguido.
Depois de folhear as cartas, tirou a que lhe parecia mais
prometedora, uma missiva muito dobrada de seu pároco. Dessa vez
a leu atentamente, concentrando-se nos sentimentos dolorosos
enquanto a sustentava nas mãos. Tentando imaginar como a tinha
feito sentir-se quando tinha a carta entre suas mãos. Como poderia
sentir-se, inclusive agora.
Depois apagou a vela, fechou os olhos e se abriu
deliberadamente a esse infinito abismo entre o tempo e o espaço. Era
como apertar um torniquete no braço e abrir uma veia. Enquanto o
silêncio noturno caía sobre ele, Geoff tentou sentir madame Moreau.
Tentou aproximar-se de sua pena, de seus pensamentos e da
essência do que havia nesse vazio.
Era uma tarefa que odiava fazer. Mas era só isso, uma tarefa, o
que decidia fazer quando já não tinha mais alternativas.
Entretanto, tinha havido uma época, não fazia muito tempo,
em que não tinha sido uma escolha. Quando sua mente se deslizou
sem restrições pelo tempo e o espaço, uma e outra vez, fugidia como
uma enguia ziguezagueando através da luz do sol. Como brilhos
oscilantes de uma luminosidade que cegava e uma claridade
perfeita e incontrolável, que às vezes revelava insinuações de coisas
que nenhum menino deveria ver.
E que, entretanto, via, totalmente impotente.
Não, não gostava de fazê-lo. Mas graças a longos anos de
prática e rígida autodisciplina tinha conseguido que a escolha fosse
dele e não do destino.
E mesmo assim, essa noite não sentiu nada.
Nas estranhas ocasiões em que a visão o assaltava
espontaneamente, sentia-se como se fracassasse. E em ocasiões como
aquela noite, quando não podia invocar a visão, sentia-se.... Bom,
supunha que igual.
Consolou-se, se a palavra podia ser usada nesse contexto,
pensando que não conhecia Giselle Moreau e que não sabia nada de
sua mãe, exceto a tinha visto brevemente aquela tarde, quando tinha
saído da casa com a cesta do mercado. Uma mulher loira, elegante e
baixa com uma longa capa negra.
Era difícil aferrar-se aos fios dos pensamentos ou as emoções
do presente, e mais ainda aos sucessos do futuro, quando não havia
tocado, ou ao menos visto, a outra pessoa. Mas tinha que tentá-lo.
Deixando escapar um suspiro, ele lançou a carta ao monte.
Pela primeira vez em sua vida, quase sentia falta das visões. Essa
noite estaria sozinho.
Só com seus sonhos febris sobre Anaís de Rohan.

*****

A Église St. Nicholas era uma formosa igreja antiga situada em


uma curva entre as Rues au Beurre, justo debaixo da Grand Place, nos
limites das vizinhanças mais abarrotadas e não tão nobres de
Bruxelas. Estava mais afastada do centro da Bruxelas real que outras
igrejas, e era uma escolha interessante, pensou Anaís enquanto
perambulava sob os tetos em forma de cúpula.
E, por alguma razão, era a preferida de madame Moreau.
Talvez tivesse algo a ver com sua simplicidade. Com as cores
relaxantes e os poucos dourados que apresentava. Apesar disso,
inclusive ali, nesse lugar de paz, eram evidentes os sinais das
agitações políticas da cidade. Ao longo dos séculos, a igreja tinha
sido repetidamente bombardeada e queimada, e um padre lhe disse
que na capela da Sagrada Virgem ainda havia uma bala de canhão
francesa alojada em um dos pilares.
Anaís lhe agradeceu, mas não foi investigar. Preferiu esperar
perto da entrada e da fila de confessionários, onde os congregantes
se aproximavam em intervalos. Acendeu uma vela por sua nonna
Sofia e tomou um momento para fazer uma prece.
Embora tivesse sido batizada na igreja anglicana de sua mãe,
Anaís havia se visto imersa no catolicismo muito cedo. Quando era
uma menina tinha acompanhado com frequência sua bisavó e Maria
à missa em St. Mary, porque seus pais tinham sido liberais nessas
questões. Na Toscana, não tinha havido outra igreja a que ir. A ela
as religiões pareciam... Bom, não confundidas precisamente.
Complementares, possivelmente, era a palavra apropriada, e muito
mais parecida do que alguns pensavam.
Assim tinha entrado na Église St. Nicholas com a comodidade
de visitar uma velha amiga. Um quarto de hora depois, uma mulher
pequena e gordinha com o cabelo loiro entrou no vestíbulo com
uma cesta de mercado adornada com um brilhante laço de cor
vermelha. A cesta era justamente como Petit a havia descrito.
A mulher a deixou no chão, junto à porta, cobriu um pouco
mais o cabelo com um lenço e foi diretamente a um dos
confessionários abertos. Anaís a seguiu e se instalou no que havia ao
lado.
— Me perdoe padre, porque pequei. — Disse em francês, com
os lábios muito perto do ralo de madeira. — Sou anglicana. Ouvirá
minha confissão?
O sacerdote hesitou um instante.
— É obvio filha. — Disse com voz suave. — Se quer alcançar o
estado de graça com nosso Senhor, aqui pode encontrar o
sacramento da reconciliação.
— Obrigada. — Respondeu ela. — Passaram quatro meses
desde minha última confissão. Estes são meus pecados: menti uma
vez a meu pai e a minha mãe. Em várias ocasiões usei uma
linguagem imprópria de uma dama. E tive pensamentos impuros
sobre um homem com quem não estou casada. Em realidade, foi...
Bom, algo mais que pensamentos.
— Ah. — Disse o padre. — Isso último... quer dizer te casar
com ele?
— Não, padre. — Ela fechou por um instante os olhos com
força. — Há... algo mais.
— Está casada com outro homem? — Seu tom de voz se
endureceu. — Prometida a outro?
— Não, nada disso, padre. Estou... estou esperando o homem
adequado.
— Então, deve tentar ser mais paciente, filha. — Repreendeu-a
com suavidade.
— Estou segura de que tem razão, padre. Estou arrependida
por estes pecados, e por todos os outros que tenha podido esquecer.
— Muito bem. Não te vou impor penitência. Em lugar disso,
deve refletir sobre todas estas coisas seriamente e rezar para pedir
paciência com esse último assunto.
— Sim, padre.
Anaís disse rapidamente sua habitual oração improvisada de
contrição. Viu pela extremidade do olho que Charlotte Moreau se
levantou do confessionário e se dirigia a sua cesta.
— Seus pecados foram perdoados. — Disse o padre quando
ela terminou. — Pode ir em paz.
— Graças sejam dadas a Deus. — Respondeu ela.
Apressou-se a descer os degraus e se dirigiu ao vestíbulo.
Seguiu madame Moreau até sair a mais brilhante luz do sol e
arrumou para se chocar levemente com a cesta.
— Oh! — Exclamou, agarrando-a para segurá-la — Me
perdoe. Quero dizer... zut! Excusez moi!
— Mais certainement. — Madame Moreau se colocou ao lado
como se fosse passar junto a ela, mas então se deteve e abriu muito
os olhos. — Oh, mas você é inglesa!
Anaís fingiu surpresa.
— Sim. — Disse. — Você também? Pareceu-me que a
conhecia.
— Sou inglesa, sim. — O rosto da mulher se suavizou, mas a
dor não desapareceu de seus olhos. — Ou era, deveria dizer. Mas
não, não acredito que nos conheçamos. Faz muitos anos que não
vivo na Inglaterra.
Anaís riu.
— Bom, se eu tivesse que viver muitos anos fora da Inglaterra,
também escolheria a Bélgica. — Baixou a voz ligeiramente. — Mas
acredito que de verdade a conheço ou, melhor dizendo, já a vi antes.
Pela rua, quero dizer. Na Rue de l'Escalier?
A mulher piscou com ar indeciso.
— Vivo ali, sim.
Anaís sorriu amplamente e lhe estendeu uma mão.
— Sou a senhora MacLachlan. — Disse-lhe. — Anaís
MacLachlan. Acredito que somos vizinhas.
A mulher tomou a mão com cautela.
— Sou madame Moreau.
Com um entusiasmo próprio do vivaz cachorro de Nate, Anaís
quase saltou sobre a dama.
— Oh, é um prazer conhecê-la! Mudamo-nos ontem. Bruxelas
é maravilhosa, certo? Há tanta vida por toda parte...! E as lojas. —
Fez uma pausa e abriu muito os olhos. — Hoje mesmo dizia ao
senhor MacLachlan... estamos em nossa lua de mel, já sabe, que vou
o arruinar por completo comprando rendas e porcelana. E esses
pequenos azulejos azuis... são do Amberes, conforme me disse
alguém, não? Em qualquer caso, juro que levarei um carregamento
quando voltarmos a casa. — Ficou um pouco séria. — Quando
voltarmos para casa de verdade, é obvio.
Madame Moreau parecia um pouco aturdida.
— Bom, felicidades por suas bodas. — Conseguiu dizer. — E
bem-vinda a Bruxelas.
— Oh, obrigado. — Anaís voltou a sorrir. — Bom, foi um
verdadeiro prazer.
— Sim, um prazer. — Repetiu madame Moreau.
— Espero que me visite algum dia.
Anaís começou a subir a colina.
— Bom, obrigado. — Disse, mas não respondeu como ela
esperava.
Anaís assinalou a rua.
— Eu gostaria de ir aos postos das flores. É o caminho correto?
— Oh, sim. — A plácida expressão de madame Moreau estava
retornando pouco a pouco. — Quer que a acompanhe? Eu vou a
Grand Place...
Anaís tentou parecer esperançosa.
— Oh, viria comigo? Eu não gosto nada de comprar sozinha,
mas a casa é um pouco sombria e quero levar flores. E a cozinheira
também necessita algumas coisas.
— Eu adoraria. — Disse madame Moreau, e ambas
começaram a caminhar juntas. — Devem estar na casa de monsieur
Michel, não é assim? Um dos serventes mencionou ontem que tinha
visto a bagagem.
— Sim, alugamos a casa por um ano. — Respondeu Anaís. —
Embora não estou segura de quanto tempo nós vamos ficar.
Madame Moreau a olhou de esguelha.
— Espero que monsieur Michel esteja bem...
Anaís levantou um ombro.
— Acredito que está viajando pelo estrangeiro. Dispusemo-lo
tudo através de agentes e banqueiros. Não conhecemos ninguém
aqui.
— Sim, entendo. — Murmurou ela. — Por que decidiram
escolher Bruxelas para a lua de mel?
— OH, foi meu marido! — Anaís agitou uma mão. — Crer-se
um artista. Ou um arquiteto, talvez. Queria fazer desenhos de todos
estes maravilhosos edifícios.
— E você? — Perguntou-lhe. — Não teria preferido Paris? É
melhor para fazer compras.
Anaís pôs uma expressão triste.
— Eu sim o preferia. — Confessou-lhe — Mas acredito que
meu marido não.
— Você crê? — Madame Moreau a olhou com curiosidade. —
Mas não está segura?
Anaís negou com a cabeça.
— Para falar a verdade, ainda não o conheço muito bem. —
Disse, baixando a voz enquanto subiam a pequena colina. — Meu
pai organizou o casamento. Disse que já era hora de que voltasse a
me casar.
— OH, é viúva. — Murmurou madame Moreau.
— Infelizmente, sim. Meu finado marido... Bom, foi uma união
por amor. Meu pai não aprovava porque John não tinha nem dois
xelins, mas fomos felizes. Entretanto, tenho em alta estima o senhor
MacLachlan. Estou segura de que nós três ficaremos bem quando
nos acostumarmos uns aos outros.
— Os três?
O rosto do Anaís se iluminou.
— Sim, tenho uma filha. Jane tem quatro anos. E sinto tanto a
sua falta que poderia começar a chorar.
Madame Moreau fez um som gutural de compreensão.
— Não veio com vocês?
Anaís negou com a cabeça.
— Meu marido pensou que não lhe conviria viajar. E acredito
que tem razão. Além disso, isto é uma lua de mel. Embora deva
confessar que não esperava... ah, mas devo estar aborrecendo-a,
madame Moreau, e nós acabamos de conhecer. Olhe, isso deve ser a
Grand Place! Oh, céus! Que edifícios tão magníficos!
— Sim, me permita que lhe faça um pequeno percurso.
Acredito que vivi aqui o tempo suficiente para poder lhe dizer o que
é cada coisa.
— Que amável é você.
Fazendo um pequeno som de prazer, ela entrelaçou um braço
com o de madame Moreau.
Deram uma volta pela praça passeando relaxadamente,
admirando a prefeitura e o Hotel de Ville com suas agulhas de
adornos impregnados, enquanto Anaís deixava escapar exclamações
de assombro nos momentos adequados. Em seguida teve nos braços
um montão de flores e estava escolhendo fruta de estufa em um dos
postos situados na praça.
— Então, você crê que deveria convencer o senhor
MacLachlan para que me leve a Paris durante uns dias? —
Perguntou. — Conhece a cidade? Vale a pena ir?
Madame Moreau a olhou com estranheza.
— É obvio, é esplêndida. — Respondeu. — Eu vivia ali até faz
alguns meses.
Anaís fingiu surpresa.
— De verdade? E Bruxelas gosta? O que a trouxe aqui?
Enquanto se afastavam do posto de frutas, madame Moreau
disse, com uma expressão pensativa no rosto:
— O ano passado eu também fiquei viúva. Agora vivo com o
tio de meu marido. É agregado ao corpo diplomático aqui, em
Bruxelas.
— Oh, é reconfortante ter uma família para poder contar,
certo? — Anaís se deteve para revolver um montão de lenços em um
posto instalado em frente ao hotel. — Eu me sinto muito afortunada.
— A vida de uma viúva pode ser muito dura. — Mostrou-se
de acordo madame Moreau.
— Oh, sim. — Anaís escolheu um lenço e o deu ao vendedor
— Você tem família na Inglaterra?
Madame Moreau mordeu o lábio e por um instante, Anaís
acreditou ver um brilho de medo em seus olhos.
— Não. — Respondeu finalmente. — Não tenho ninguém.
— Oh. — Disse Anaís com suavidade enquanto contava
moedas. — Deve ser terrível. Não sei o que Jane e eu teríamos feito
se meu pai não nos tivesse acolhido apesar de tudo.
— Acolheu-as apesar de tudo? — Perguntou madame Moreau
enquanto punham-se a andar de novo.
Anaís assentiu.
— Quando John e eu nos casamos, afirmou que não o faria. E
inclusive depois de nascer minha filha, suas cartas eram muito frias.
— Oh, querida. Isso é muito triste.
— Oh, não. Quando viu Jane... Bom, o que posso dizer? Ficou
encantado. Veio por nós justo depois do funeral. Um neto muda
tudo. Tudo pode perdoar-se. Oh, olhe, é isso um tocador de realejo?
Assinalou ao outro lado da praça.
— Pois sim. — Respondeu Madame Moreau, embora de
repente parecia sumida em seus próprios pensamentos. — Acredito
que sim.
— É delicioso. — Anaís sorriu e lhe ofereceu o braço. — Por
que não nos aproximamos um pouco mais?
Nesse momento, uma larga sombra caiu sobre seu caminho.
Ao levantar o olhar, Anaís viu Geoff no posto em frente,
esperando que os transeuntes passassem. Sua expressão era escura
como uma nuvem de tormenta.
— Oh. — Disse ela com certo desdém. — Olhe. Aí está meu
marido.
Capítulo 9

"Lutar e vencer em todas as batalhas não é a maior excelência; a

maior excelência consiste em romper a resistência do inimigo sem

lutar."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Era muito tarde. Geoff já estava atravessando a praça


pavimentada, andando sobre ela como uma fragata bem armada
enquanto tirava seu alto e caro chapéu. Aquele dia estava vestido
como um jovem cavalheiro rico na moda, com um casaco escuro de
manhã, cujo corte revelava a esbelta curva de sua cintura, e um
colete de cor cinza de seda. O lenço que levava ao pescoço era de cor
negra, com um nó alto e firme que contrastava com o branco
brilhante da camisa.
Aproximou-se enquanto o caminho se limpava a seu passo,
apoiando-se em um bastão com punho de latão.
— Querida.
Colocou o chapéu debaixo do braço e se inclinou com rigidez.
Estava abatido e com olheiras, como se não tivesse dormido.
Anaís se obrigou a sorrir.
— Que casualidade, Geoffrey. — Disse ela alegremente. —
Tive a sorte de me encontrar com uma de nossas vizinhas.
Fez rapidamente as apresentações.
— É um prazer, senhor MacLachlan.
Madame Moreau fez uma reverência bastante acentuada.
Dado o esplendor da roupa feita sob medida de Geoff e de seu
penetrante olhar, até a própria rainha o teria feito.
— O mesmo digo senhora. — Ele se inclinou sobre sua mão. —
Posso te oferecer o braço, querida, e te convencer a retornar a casa
comigo dando um passeio? — Perguntou à Anaís, e colocou de novo
o chapéu.
— Bom, em realidade, acabávamos de...
Mas viu algo nesses profundos e brilhantes olhos que a deteve.
Madame Moreau sentiu seu nervosismo.
— Por favor, senhora MacLachlan, parta. — Disse, lhe
apertando a mão. — Foi um prazer conhecê-la.
Mas Anaís se aferrou a seus dedos durante uns segundos a
mais do que deveria.
— Me prometa que virá amanhã, tomar o chá. — Disse
abruptamente. — Às quatro. Parece-lhe bem?
Madame Moreau parecia um pouco inquieta.
— Bom, suponho que sim. Se não puder, lhe enviarei uma
mensagem.
Anaís lhe soltou a mão e se inclinou levemente.
— Então, desejo-lhe que tenha um bom dia. Obrigado por esta
manhã tão encantadora.
Deixaram madame Moreau junto à loja de lenços, com certo ar
de tristeza, e se dirigiram à casa passando junto ao Hotel de Ville.
Anaís ia agarrada ao braço dele. E embora ele não a afastasse, ela
não pôde evitar se recordar como a tinha arrastado pelas escadas
aquela noite na Sociedade de Saint James.
Mas neste momento, ele não parecia simplesmente irritado.
Dele emanava uma fúria fria e contida.
Não disse nenhuma palavra até que entraram pela porta
principal da casa. Deu uma portada e virou para olhá-la.
— E agora, Anaís, por favor, me diga. — Disse com os dentes
apertados— Que parte de "Petit te acompanhará" não entendeu?
— Mas Geoff, pensei que isso era...
— O que? Ambíguo? — Lançou o chapéu à mesa do saguão.
— Opcional? Uma mera sugestão?
— Desnecessário — Disse.
— Oh! — Exclamou ele, alargando a palavra exageradamente.
— Então, o que tem em "quero que tome todas as precauções possíveis?"
Essa ordem tampouco cumpriu seu objetivo? Era desnecessária?
Anaís entreabriu os olhos e começou a lançar suas coisas no
cabide.
— Não. — Respondeu, tirando com um puxão o cachecol. —
Mas pensei...
— Por Deus, Anaís, não lhe cabe pensar. — Ele a estava
fuzilando com o olhar e lhe falava com dureza. — Disse ou não te
disse que seria eu quem, e repito textualmente, tomaria todas as
decisões nesta operação?
Uma das donzelas apareceu por uma esquina e se voltou a
partir rapidamente.
Ela suspirou.
— Geoff, por que está tão aborrecido? Não é como se
houvesse...
— Sim. Sim o que é. — Quase estava grunhindo. — Esse era
seu regateio? Porque o momento de negociar já passou.
— Oh, como se tivesse dado pé à negociação!
Levantou as saias e passou por seu lado para subir as escadas.
— Anaís. — Disse bruscamente. — Volta aqui embaixo. Agora.
Não tinha levantado a voz; mas bem, esta era letalmente
calma. Ela olhou por cima do ombro e viu que Geoff tinha um olhar
estranho e distante de uma vez, parecia que via tudo. Sentiu que um
estremecimento a percorria.
— Agora. — Disse ele com tom áspero.
Ela se desfez do calafrio e voltou a olhar para diante.
— Não. Se quer me repreender, Geoff, veem acima e o faz em
meu dormitório. Não aqui, na entrada principal, como se fôssemos
um par de lavadeiras.
Ele empalideceu levemente e atravessou o saguão a grandes
pernadas.
— E aceitou o desafio. — Murmurou ela, subindo o resto dos
degraus.
— Pergunto-me por que demoraste tanto em me desafiar. —
Replicou.
Uma vez no quarto, Anaís manteve a porta aberta e deixou
que ele passasse. Depois a fechou ela mesma, para evitar que ele
desse outra portada.
— E agora, Geoff. — Começou a dizer. — Seja razoável.
Seus olhos brilharam frios e azuis, como uma pedra de gelo ao
sol.
— Eu não tenho que ser razoável. — Replicou, fazendo que ela
retrocedesse até a parede. — A não ser você.
— Mas por que...?
— Porque eu o digo! — Respondeu entre dentes. — Porque
Lezennes é um homem perigoso.
— E não estava por nenhuma parte! — Disse Anaís,
levantando as mãos.
— Isso não sabe. — Apertou a mandíbula. — E se estava?
Anaís tentou controlar seu mau gênio, e foi uma dura prova.
— Pelo amor de Deus, Geoff, não estou cega. Nem sou
nenhuma estúpida.
— E se ele estava fazendo com que a seguissem? — Inclinou-se
para frente, pondo uma mão em cada lado de seus ombros, contra a
parede. — Santo Deus, Anaís, e se DuPont está equivocado e ela é
tão malvada como ele?
— Mas não é. — Replicou com veemência. — Isso eu sei.
— Não, não sabe. — Afirmou. — Não pode sabê-lo. Estiveste
com ela... quanto? Menos de uma hora? Maldita seja mulher, faça o
que lhe digo!
Ela sabia que era uma loucura provocá-lo, mas estava furiosa.
Algo mais que furiosa, talvez. Podia sentir o sangue correndo por
suas veias, como não lhe tinha ocorrido em anos. Separou-se da
parede e levantou o rosto para ele, endurecendo o olhar.
— Então, tenho que fazer o que me diga, cegamente e sem me
questionar sobre isso?
Em um instante, ele a agarrou, afundando os dedos entre o
cabelo da nuca, e lhe virou o rosto para que o olhasse.
— Se não, que Deus me ajude, Anaís, porque lhe colocarei
sobre meus joelhos e lhe açoitarei o traseiro.
Ela o olhou com intensidade.
— Oh, isso crê? — Sussurrou ela. — Por que não o tenta,
Geoff? Sim, é rígido e se controla perfeitamente, até que alguém te
desafia...
Lhe cobriu a boca com a sua antes que ela pudesse sequer
respirar.
Nesse momento não houve suavidade no beijo. Abriu a boca
sobre a sua, urgente e exigente. Passou-lhe um braço ao redor da
cintura e lhe jogou a cabeça para trás, contra a parede, enquanto
enredava os dedos em seu cabelo, imobilizando-a para submetê-la
aos decididos embates de sua língua.
Durante um longo momento a beijou, lhe saqueando a boca
sem lhe dar oportunidade de responder e pressionando-a contra a
parede com o peso de seu corpo. Cobriu-lhe um seio com a mão com
avidez e lhe acariciou o mamilo com o polegar fazendo círculos até
que se endureceu. Colocou uma coxa entre as suas e ela sentiu que o
desejo voltava a afligi-la fazendo com que se curvasse contra a
parede, desejando mais, embora ainda estivesse indignada.
Queria lhe dar uma tremenda bofetada na face.
Queria arrastá-lo a sua cama e deslizar as mãos por baixo
dessa fachada feita sob medida de cortesia que sempre apresentava.
Queria acariciá-lo, tentá-lo e tocá-lo até que a pele nua dele tremesse
sob seus dedos.
Sem dúvida, inclinava-se por fazer esse último. Mas antes que
pudesse se decidir, ele afastou o rosto e deixou escapar um
juramento.
Anaís escolheu a primeira opção, com o dorso da mão.
O resultante paf! Não foi inteiramente satisfatório porque
ficaram muito perto um do outro, mas ela conseguiu seu propósito.
— Por todos os diabos!
Abrindo muito os olhos, Geoff deu um passo atrás, tocando a
comissura de sua boca com o dorso da mão.
— A próxima vez, me peça permissão.
Ele ficou olhando-a.
Anaís arqueou uma sobrancelha deliberadamente.
— Inclusive pode pedir isso agora. — Acrescentou — Desde
que o faça educadamente.
— Per... perdão?
— Sim, essa é outra boa ideia. — Respondeu ela. —
Definitivamente, deveria me pedir perdão. E agora, vais me
convidar a sua cama ou não? É para saber em que posição estou.
— Santo Deus, Anaís. — Sussurrou ele. — Nós dois nos
tornamos loucos?
Deu a volta e se dirigiu com grandes pernadas à janela, com
uma mão na nuca e a outra apoiada no quadril, jogando para trás o
casaco com uma postura pensativa que já quase resultava
dolorosamente familiar a ela. Entretanto, ainda flutuava no ar uma
sensação estranha e incômoda.
Anaís o seguiu e o observou enquanto ele olhava pela janela,
respirando com dificuldade.
Geoff voltou a falar sem olhá-la; em sua voz se notava o
desconcerto.
— A verdade é que não sei se devo te levar a cama ou te pôr
sobre meus joelhos.
— Tem muitas mais possibilidades de sobreviver ao primeiro.
— Advertiu-lhe.
— Anaís, não podemos seguir assim.
— Não sou nenhuma menina para que me dê uns açoites,
Geoff. — Estava junto a ele, resistindo ao impulso de lhe pôr uma
mão no braço. — Se quer me convidar a sua cama, diga-me isso. Se
quer me afastar de você, tenta fazê-lo. Mas, se está zangado porque
me deseja... e se for me superproteger a menor oportunidade por
isso, então é você quem se arrisca a comprometer a missão, não eu.
— Sim. — Sua voz era surpreendentemente suave, mas seus
olhos voltavam a ter esse olhar perdido em outro mundo. — Sim,
possivelmente tenha razão. Mas pelo amor de Deus, Anaís, não...
— Não... o que?
Ela admirou a curva belamente esculpida de seu rosto,
iluminada por um raio dourado de sol, e desejou lhe suplicar que
respondesse.
Oh, desejava lhe suplicar que fizesse muitas outras coisas.
Entretanto, apesar de seu aborrecimento, dos lábios inchados e de
que tinha o cabelo caindo sensualmente sobre os ombros, ainda lhe
restava um pouco de orgulho.
— O que quer, Geoff? — Perguntou-lhe em voz baixa. — O
que quer de mim? Simplesmente, diga-o.
Ele deixou escapar o ar bruscamente e a surpreendeu quando
estirou o braço para ela. Quis atraí-la para ele e, inexplicavelmente,
ela o permitiu.
Geoff apoiou a testa na dela com os olhos fechados.
— Não se negue a fazer o que lhe digo Anaís. — Sussurrou. —
Não me obrigue a te mandar fazer as malas, ouve-me? Porque o
farei. Juro Por Deus que o farei.
Ela se deu conta de que era verdade. De fato, tinha-lhe
advertido de que isso era exatamente o que faria... muito antes de
que saíssem de Londres.
Ainda estava zangada, sim. Mas, possivelmente, só
possivelmente, não tivesse dirigido bem a situação. Como a sua mãe
sempre gostava de assinalar, ela era como seu pai, frequentemente
bem-intencionada, mas emocionalmente torpe.
Se não houvesse mais remédio, poderia controlar Lezennes,
estava segura. Mas, Geoff não sabia e, embora soubesse, seus
instintos protetores pesariam mais que esse conhecimento. A ele não
só era movido pelo desejo. Era um cavalheiro até a medula. Apesar
disso, ela não estava preparada para admiti-lo. Ainda não.
Geoff, entretanto, tinha afrouxado o abraço. Ela levantou o
olhar e viu que ele estava olhando de novo pela janela, com mais
atenção dessa vez. Ela deixou cair um braço e se virou para olhar.
Abaixo, na rua, Charlotte Moreau caminhava rapidamente,
ansiosa por chegar em casa. Uma vez na porta de Lezennes, deixou
no chão a cesta, abriu sua bolsa e revolveu nela, como se procurasse
uma chave.
Apesar disso, nesse mesmo momento a porta se abriu de
repente e uma menina saiu em disparada dando um grito de alegria,
seguida de perto por uma criada vestida de cinza.
Madame Moreau deixou cair a bolsa e abraçou à pequena.
Junto a ela, Geoff se esticou. O ar do quarto pareceu
imobilizar-se e, depois, voltar-se tremendamente frio.
Anaís sentiu de novo esse estranho estremecimento, mas nesse
momento parecia medo.
— Geoff?
Como se não a tivesse ouvido, ele se aproximou ainda mais do
cristal. Levantou uma mão para tocá-lo enquanto seguia olhando a
rua. Madame Moreau ainda estava ajoelhada no chão, abraçando
com força à menina. Todos os músculos de Geoff pareciam haver
ficado rígidos e seus olhos voltavam a ter esse olhar estranho e
distante.
Engoliu em seco.
— Está assustada. — Disse com voz profunda e oca. —
Aterrorizada. Ela... vê a escuridão.
Anaís lhe pôs uma mão na omoplata.
— Quem? — Murmurou. — Charlotte?
Mas não era Charlotte a quem ele olhava.
— Sim. Madame Moreau. Sua escuridão é...
Calou-se e exalou lenta e profundamente.
Algo ia mal.
Ela o havia sentido, quase desde que tinham entrado na casa.
Não, desde que lhe havia tocado sua mão na praça do mercado. Era
como se as emoções de Geoff estivessem tão tensas que a corda fosse
se romper. Como se estivesse aferrando-se a... algo com todas as
suas forças. Ou fechando-se a algo.
Nesse momento deu-se conta de que esse temperamento
explosivo, esse beijo selvagem e sensual, tudo o tinha provocado a
paixão e a fúria, sim, mas ele tinha estado um pouco desenfreado
debaixo dessas emoções, como uma corrente subterrânea erodindo
as firmes rochas emocionais de Geoff.
Era um homem que guardava sob chave suas emoções, e
aquele dia era como se tivesse se aproximado na borda de um
precipício.
O ruído de uma portada fez com que Anaís voltasse para o
presente. Levantou o olhar e viu que Charlotte e a menina tinham
desaparecido e que a porta de Lezennes estava fechada.
Insistiu com ele para afastar-se da janela, já que não tinha mais
que nada para olhar.
Ele obedeceu, mas seus movimentos eram os de um autômato.
Tinha o rosto tenso, pálido, e esse olhar arrepiante e frio, como se
fosse uma criatura selvagem, como um lobo, como se olhasse
através dela, ou mais à frente. Como se não estivesse vendo esse
quarto, a não ser outro tempo ou outro lugar.
Na Toscana, Vittorio lhe apresentou a um homem como Geoff.
Na realidade, era um moço a quem sua família encontrou desde
Malte. Tinham chegado procurando respostas desesperadamente,
porque o jovem vivia com a metade de sua mente no presente e a
outra metade, no futuro, sem ser capaz de ver os limites. Estava
constantemente possuído por sonhos e visões e, ao conhecê-lo, tinha
sido como ver em seus olhos a entrada do inferno.
Mas havia pouco que Vittorio pudesse fazer, exceto confirmar
o que já sabiam: que o menino não estava louco. Tinha sido maldito,
maldito com o dom, o nome mais inapropriado que Anaís tinha
ouvido.
De volta a casa, o moço tinha decidido encarregar-se do
assunto. Atou uma âncora ao tornozelo e saltou do porto de La
Valeta. Nunca mais voltou a vê-lo.
Anaís pôs uma mão na suave lã de seu casaco.
— Geoff? — Disse em voz baixa. — Quanto tempo leva
lutando contra isto?
Ele levantou uma mão de repente, fazendo que ela se
sobressaltasse. Mas se limitou a levar-lhe à têmpora, pondo dois
dedos por cima da sobrancelha.
— Não posso recordá-lo — Admitiu, tentando concentrar-se.
— Desde... ontem à noite? Tentei ver, abrir o vazio, mas não pude.
Entretanto, depois, a primeira hora da manhã, quando não podia
dormir, a senti. Era a escuridão, penetrando pelas bordas. Mas
mesmo assim, não veio nada. Depois... depois a conheci.
— Quer dizer madame Moreau?
— Sim. — Sussurrou. — Conheci-a. Toquei sua mão.
E agora a porta do inferno se abriu.
Anaís sabia que às vezes funcionava assim. Agarrou-o pelo
braço.
— Vêm, sente-se junto à lareira.
Mas Geoff não se moveu. Tinha a outra mão rígida em seu
flanco, com o punho apertado tão forte que os nódulos haviam se
tornado brancos.
— Geoff. — Disse ela com indecisão. — Vêm se sentar. Me
conte o que sente.
— Não... eu... não...
Fechou os olhos com força e as narinas dilatadas. Ainda tinha
uma mão na têmpora e ela podia sentir que todo seu corpo começou
a tremer. Uma nuvem cobriu o sol, atenuando a luz do quarto, e foi
como se um torvelinho de maldade percorresse o quarto, embora
apenas a janela estivesse aberta.
Anaís voltou a sentir como se a temperatura baixasse, lhe
fazendo sentir de novo esse estremecimento frio e horrível, além de
náuseas. As cortinas se levantaram sinistramente com o vento,
flutuando ao redor deles como se fosse levada por uma nuvem
invisível. Geoff abriu muito os olhos, embora seu olhar seguia sendo
distante. Agarrou os pulsos dela e a aproximou dele. Ela começou a
tremer com tanta violência que temeu que os dentes tocassem
castanholas.
— Anaís. — Disse com voz rouca. — Deve se manter afastada
dela. A menina. Há maldade, posso senti-lo, ao redor dela. Ao redor
de você.
De repente, ela compreendeu.
— Quem? — Sussurrou. — Pode ver a fonte? É Lezennes?
Santo Deus, não pode ser madame Moreau.
Ele negou com a cabeça.
— Não... não sei. — Disse, lhe afundando os dedos na carne.
— Não posso vê-lo. Há algo... há algo negro e muito potente. Como
uma sombra sobre todos nós. Sinto-a. Conheço-a e ela me conhece.
Sabe que estou aqui.
Ela resistiu ao impulso de jogar-se em seus braços.
— Ge..Geoff. — Sussurrou. — O que está acontecendo?
Então o vento se desvaneceu e o quarto voltou a ficar em
calma. Esse frio surrealista se esfumou e, com ele, a estranha e
repentina inquietação dela. Foi como se seu sangue recuperasse seu
pulso e fluxo normais, e seus sentidos voltassem a entrar em contato
com o mundo real. Pisadas pesadas de um servente passando em
frente de sua porta, o aroma de algo sendo assado na casa, o arrulho
de uma pomba no batente da janela, todas essas coisas retornaram a
ela: o mundo como deveria ser.
Com Geoff ainda lhe agarrando os pulsos, inclinou-se para ele
e apoiou a bochecha em sua lapela.
— Tudo está bem. — Acalmou-o. — Deixa-o ir. Deixa-o ir por
agora. Voltará quando estiver mais claro.
— Deus, espero que não.
Exaltou profundamente, quase como se fosse um suspiro de
esgotamento, embora não era isso absolutamente. Anaís sentiu que
os últimos retalhos de tremor se acalmavam no interior dele e que a
rigidez de seus braços e ombros se reduzia enquanto a tranquilidade
começava a rodeá-los lentamente. E quando ela por fim notou que
lhe agarrava os pulsos com menos força, separou a bochecha da
cálida lã e levantou o olhar para ele.
— Vêm, sente-se — Disse-lhe. — Vou servir um xerez9 forte
para nós dois.

9
O xerez (em castelhano, jerez) é um tipo de vinho fortificado, licoroso, típico da Espanha, envelhecido no sistema de
soleira. Seu nome é derivado da região onde é elaborado, Xerez da Fronteira (em castelhano, Jerez de la Frontera).
Conduziu-o ao sofá que havia em frente ao fogo e depois se
dirigiu a mesa auxiliar, onde estava uma bandeja de prata com duas
taças. Tirou o plugue do decantador, encheu ambas as taças e voltou
para ele.
— Aqui. — Disse-lhe, deixando a bandeja.
Geoff levantou o olhar e agarrou uma taça. Ainda tinha uma
expressão tensa e estava pálido.
— Anaís. — Disse em voz baixa. — Sinto muito.
Não perguntou a que se referia. No lugar disso, tirou os
sapatos de um chute e se sentou a seu lado, colocando uma perna
debaixo do corpo.
— Sempre é assim? — Perguntou-lhe, virando para olhá-lo. —
Tem que... invocar a visão? Ou simplesmente vem?
Ele deixou o vinho na mesa de café e passou as duas mãos por
seu reluzente cabelo de cor bronze.
— Eu... abro-me. — Sussurrou por fim. — Deixo que o que já
está aí, saia de... o relatório. Não me pergunte o que quer dizer,
porque não sei explicá-lo.
— É como se estivesse atrás de um véu vaporoso, não é assim?
— Sugeriu ela. — Uma espécie de cortina na mente.
Olhou-a durante uns instantes. O esgotamento lhe refletia no
olhar.
— É bastante parecido. Por que? Você tem...?
— Não, mas uma vez conheci um jovem. — Interrompeu-o. —
Sua família o levou a Toscana e Vittorio tentou lhe ensinar como
fazê-lo. Como fechar a cortina, suponho que é a melhor maneira de
dizê-lo.
— É tão boa comparação como qualquer outra. — Disse ele. —
E esse jovem... conseguiu? Pôde fechá-la?
— Não, eu... não acredito. — Respondeu, elevando um pouco
a voz. — Nunca voltei a vê-lo.
Geoff a olhou com uma pena profunda e imutável, sem
dúvida dando-se conta da mentira.
— A Ruthveyn ocorre igual. — Murmurou. — Embora ele
aprendeu alguns truques ao longo dos anos: não tocar as pessoas,
não olhar as pessoas diretamente nos olhos, manter uma distância
emocional de quase todo mundo... E tentou com todas suas forças
reprimir a esses demônios com a bebida, e com coisas piores.
— E isso funciona?
Ele assentiu lentamente.
— Oh, sim, funciona. Se pode suportar o tipo de homem em
que se converte.
Ela o olhou com inquietação.
— Você provou?
— Durante um tempo. — Admitiu. — Sobretudo quando
estava no norte da África. Mas por então aprendi... a fechar a
cortina. Aprendi a manter levantado o muro a maior parte do
tempo. A ter a mente fechada A menos que desejasse o contrário.
Meu mentor na Escócia me ensinou. A única coisa que conseguia
com os narcóticos era... Oh, não sei, umas quantas horas de alívio,
suponho.
— Parece exaustivo. — Disse ela. — Como se sempre tivesse
que estar em guarda contra seu... sua força, imagino.
— Contra sua vontade. — Disse ele, franzindo o cenho. — Às
vezes, Anaís, é como se essa coisa quisesse te possuir. Não sei por
que o chamam de um dom de Deus quando é mais como se
estivesse lutando contra o demônio.
Anaís fez um som gutural que indicava compreensão.
— Não me estranha que Ruthveyn recorresse ao ópio.
— Sim, e por certo... — Dedicou-lhe um sorriso torcido,
agarrou sua taça de xerez e a esvaziou de um gole. — Tomarei
outro, se lhe parecer bem.
Ela assentiu e inclinou o decantador sobre sua taça.
Beberam em silêncio durante um momento. Ela seguia tendo a
perna recolhida sob o corpo, e o joelho roçava levemente a coxa de
Geoff através das saias. Ainda havia uma sensação de incerteza no
quarto, e o incômodo peso das palavras não pronunciadas. De fato,
sentia os lábios machucados, igual ao orgulho. Estava convencida de
que ele não tinha tido intenção de beijá-la. Não a princípio.
Quando teve a taça meio vazia, Anaís a afastou e ficou a
brincar com as fitas de seu vestido. Estava a ponto de fazer algo
desmesuradamente estúpido. Algo que prometeu a si mesma que
não faria.
— Geoffrey. — Disse em voz baixa — Sobre esse beijo...
— Anaís, eu... — Ele divagou, com o olhar fixo no pé de sua
taça. — Queria dizer exatamente o que disse sobre o que estivemos
de acordo em fazer, ou sobre o que te ordenei fazer, se prefere dizer
de maneira mais crua. Mas, a preocupação e uma noite sem dormir
crisparam os nervos. E o sinto. Não tinha direito ... de me comportar
assim.
— Muito bem. A próxima vez que estiver equivocada, me
assegurarei de lhe dizer isso em seguida. — Afirmou ela. — Em
lugar de ignorar suas ordens.
Ele a olhou de maneira zombadora.
— Vittorio não te ensinou grande coisa sobre diplomacia,
certo?
— Vittorio pensava que se podiam solucionar os conflitos com
a parte plaina da espada. — Respondeu sem alterar a voz. — Mas
voltemos para esse beijo.
Ele desviou o olhar à taça e a intensa cor âmbar apanhou a luz
do sol enquanto a fazia girar uma e outra vez em suas longas mãos.
— Anaís, não sou o homem adequado para ninguém. — Disse
finalmente. — Não sou... para você. Isso o entende, não é mesmo?
— Oh, Geoff, já sei. — Ela se levantou e começou a
perambular pelo quarto, apanhando e voltando a deixar
distraidamente livros e adornos. — Não, você e eu não
encaixaríamos nem em um milhão de anos. Não nesse sentido, pelo
menos.
— Não? — Cravou nela seu olhar de cor azul claro. — Em que
sentido estava pensando?
Anaís agarrou uma figura de porcelana de uma prateleira.
Tinha a estranha sensação de que algo importante, mais importante
possivelmente do que era capaz de compreender, pendia de um fio.
— Bom, isto é o que ocorre. — Disse por fim, deixando a
figura com um ruído surdo. — Quando me beija, me retorcem os
dedos dos pés e algo na boca do estômago... Oh, não sei. Suponho
que são seus olhos, azuis como o Adriático, e essa voz, baixa e
suave, como se pudesse fazer que uma mulher... Ah, mas essa não é
a questão.
— E qual é a questão?
Tinha a voz um pouco rouca.
— Bom tudo isto... me faz me perguntar se você poderia ser...
— O que?
— Bom, não o homem adequado. — Respondeu, olhando por
cima do ombro. — Mas possivelmente, o homem adequado no
momento, se sabe o que quero dizer.
Ele jogou a cabeça para trás, como se ela o tivesse esbofeteado
de novo.
— Se eu sei? Mas, bem me sinto como se me esmurrassem com
essa ideia. — Dedicou-lhe um de seus estranhos sorrisos torcidos. —
Você sim que sabe como pôr a um homem em seu lugar.
— Céus, não me diga que feri seus sentimentos. — Ela
retornou à mesa, e apanhou sua taça. — Geoff, eu tampouco posso
ser seu tipo.
— Agora nos atamos aos tipos? — Percorreu-a com o olhar e
ela pensou que este se tornou um pouco mais cálido. — Então, qual
é seu tipo?
Anaís se aproximou da janela, pensando em quanto deveria
lhe dizer.
— Bom, é toscano. — Respondeu finalmente, depois de dar
um gole no xerez. — É.. majestoso. Tem o cabelo escuro, embora não
tanto como o meu, e olhos bondosos. Seu nariz é forte, como sua
personalidade, mas é por natureza tranquilo e pacífico.
Geoff ficou calado uns instantes.
— Compreendo. — Murmurou finalmente. — Já o conheceste,
não é assim?
Ela não se voltou.
— Pensei que o tinha feito. — Respondeu uns segundos
depois. — Faz muito tempo.
— E era encantador? — As palavras do Geoff pareciam flutuar
no ar, algo irônicas. — Estava loucamente apaixonada por ele?
Anaís ficou olhando a rua com fixamente.
— Sim e sim, desesperadamente apaixonada. Mas não
funcionou.
— Assim que o deixou na Toscana faz muito, muito tempo. —
Murmurou Geoff. — E depois não o viu?
Anaís desejou não o haver feito.
Afundou as unhas no batente da janela enquanto recordava a
última conversação que tinha mantido com Raphaele, cuja vida
tinha mudado drástica e inesperadamente, enquanto que a sua não
tinha mudado em nada. Certamente, ela seguia pensando igual.
Não, Por Deus, não tinha trocado nem um ponto.
— Em realidade, o vi faz algumas semanas. — Respondeu com
frieza. — Em São Gimignano. Veio à missa do funeral do Vittorio.
Ele se deu conta da advertência que havia em sua voz.
— Ah. — Foi a única coisa que disse. — Muito bem. E qual é
meu tipo?
Por fim, Anaís olhou em sua direção e soprou de forma pouco
digna.
— Formosa. — Disse. — Seu tipo é uma mulher formosa.
Como você.
Geoff curvou os lábios com um sorriso irônico e, sem dizer
nada a ela, encheu sua taça.
— E você não é... formosa?
Ela negou com a cabeça.
— Sabe que não. — Replicou, passando junto a chaminé. —
Não sou... feia, isso sei. Mas meu nariz é muito forte, meus olhos são
muito grandes e meu cabelo é negro como o carvão e a maior parte
do tempo está revolto.
Ele riu.
— Nisso último estou de acordo. E esses são todos seus
defeitos?
Ela levantou um ombro com indiferença.
— Mais franqueza? — Murmurou. — Muito bem. Sei que
minha pele é muito escura para ser inglesa, e sou muito alta para ser
delicada. Mas tenho graça, e uma certa elegância continental. Estou
em paz comigo mesma, não me compadeço.
— Não, não me parece que seja desse tipo de mulheres que
sentem lástima de si mesmas.
Ela girou para olhá-lo de frente.
— Assim estamos de acordo em que eu não sou seu tipo e
você não é o homem adequado, não é assim?
A expressão dele trocou e se voltou indecifrável.
— E se admitir isso...?
Ela apoiou ambas as mãos no braço do sofá e se inclinou sobre
ele.
— Então, é o homem adequado por agora?
Ele levantou o olhar para ela, por cima da borda de sua taça.
— Bem jogado, querida. — Murmurou. — Mas não, não
acredito que esse seja o papel que me corresponde.
— Faz o que queira, então. — Respondeu ela.
— Oh, não estou fazendo o que quero, Anaís. — Disse em voz
baixa e calma. — Estou fazendo o melhor para sua família. Para seu
futuro. Para seu pai. Necessitava-lhe para esta missão, sim, e agora
rezo para que, quando acabar, não signifique sua ruína. Mas não
serei eu quem lhe arruíne por um capricho, ou por um desejo ruim.
— O desejo é ruim?
— A maior parte do tempo, sim. — Inclinou-se para frente e
deixou a taça sobre a mesa. — E, para os homens, o desejo é só
desejo. Não há nada romântico nisso, se for isso no que está
pensando.
— Então, alguma vez estiveste apaixonado? — Inclusive a ela
lhe pareceu que sua voz soava ofegante.
Ele riu sem vontades.
— Nem por indício, graças a Deus.
— Tem aversão ao matrimônio?
Geoff encolheu os ombros.
— Não tenho herdeiro. — Respondeu. — Nem sequer um
primo longínquo. Sendo assim, pretendo cumprir com meu dever
para o título. Mas, não há muitas mulheres que estariam dispostas a
viver com uma espada sobre suas cabeças. Com um homem que
sente coisas anormais. Acaba de ver como pode ser e acredite, esse
pequeno toque de escuridão não foi nada.
— Céus, Geoff, deve pensar que todas as mulheres são umas
covardes. — Murmurou ela. Voltou a sentar-se e se inclinou para
ele. — Pode ser que eu não tenha tanta experiência como algumas
das mulheres às que está acostumado. Mas não sou uma virgem sem
experiência.
Durante um instante, a curiosidade se refletiu no rosto dele.
— Acaso é... algum outro tipo de virgem?
— De maneira nenhuma. — Disse, sorrindo docemente.
— Entendo. — Engoliu em seco e os músculos de sua garganta
subiram e baixaram. — E sobre o homem adequado?
— Quando o encontrar. — Disse ela, aproximando-se dele
ainda mais. — Não lhe importará nada se for virgem ou não.
Geoff pigarreou incômodo.
— E como sabe?
— Porque, se não for assim, não seria o homem adequado. —
Respondeu. — Porque ele é perfeito para mim. Está destinado a
estar comigo. E ponto final.
— Acredito que este deveria ser o final desta conversação. —
Disse Geoff, passando uma mão pelo respaldo do sofá para
levantar-se. — Sou consciente de quando forcei muita minha sorte.
Anaís se sentou no sofá.
— O que quer dizer?
— Não importa. — Disse ele. — Acredito que sairei a dar um
passeio. Um passeio muito longo. A verei no jantar?
— Oh, muito bem. — Respondeu ela. — Mas isso não servirá
para aliviar meu aborrecimento.
— Então, sugere algo. — Disse ele, que já tinha uma mão no
trinco da porta. — Algo que não inclua os dois nus em uma cama.
— Eu adoro como isso soa em seus lábios. — Disse Anaís,
virando para olhá-lo por cima do respaldo do sofá. — E, para ser
completamente sincera, eu adoraria lhe ver nu.
— Anaís. — Disse ele com um tom de advertência na voz. —
Sugere algo.
— Muito bem. — Sorriu amplamente. — Acredito que cruzarei
a rua e me apresentarei ao visconde de Lezennes.
— Não pode estar falando a sério.
— Por que não? Tenho intenção de convidá-los para jantar.
Amanhã à noite. Se não posso lhe convencer, aperfeiçoarei minhas
armas femininas com Lezennes.
Capítulo 10

"Aquele que é sábio e está espionando um inimigo que não

desconfia, sairá vitorioso."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Ao final, Anaís não foi ao outro lado da rua. Durante o jantar e


com pouca dificuldade, Geoff conseguiu convence-la de que seria
imprudente aparecer de forma tão atrevida e que seria melhor
lançar o anzol e recolher pouco a pouco a linha em vez de dar um
golpe na cabeça de Lezennes com a vara de pescar.
Durante a sobremesa, Anaís ficou zangada por algumas vezes,
ou pretendeu zangar-se, pensou ele, porque tudo passou rápido e
ela sugeriu que jogassem uma partida de piquet.
Geoff, entretanto, quase tinha medo de ficar a sós com ela. Era
um cavalheiro, ou isso supunha, embora servisse de pouco, mas
ninguém nunca o tinha acusado de ser um santo. E se ela seguia
pressionando-o, pressionando seu corpo com tanta avidez contra o
dele e olhando-o com esses olhos que pareciam escuros poços de
desejo, estava decidido a lhe dar precisamente o que lhe tinha
pedido.
O que seria muito insensato, tendo em conta que ela estava
esperando seu príncipe azul. E, pelo que parecia, não era ele.
Assim, ele se desculpou e saiu para uma outra caminhada.
Pensou com amargura que antes que aquele inferno de missão
terminasse, certamente conheceria Bruxelas de cabo a rabo, até a
última boca de lobo que levava as águas residuais ao Sena.
Mas, que outra opção tinha? Embebedar-se estava fora de
questão. Estava em uma missão, e inclusive o crescente desejo que
sentia por Anaís, não lhe tinha feito esquecer isso. Além disso, a
embriaguez seria provavelmente a melhor maneira de encontrar-se
diante da porta de seu dormitório à meia noite, com uma mão no
trinco.
E, o que era pior, ela saberia.
Ele se deu conta disso. Inclusive antes de sair da Inglaterra,
tinha tido a estranha sensação de que Anaís tinha olhos na nuca.
Talvez se queixasse de que não tinha o dom, de que não tinha
aprendido nada com Giovanni Vittorio. Mas sentia com certeza sua
presença em um local.
Tinha visto ela dirigir-se aos serventes para lhes dar alguma
ordem sem sequer levantar o olhar de sua mesa, e chamá-los por seu
nome, quando ele nem se deu conta de que estavam ali. E, além
disso, estava aquela noite... essa noite que parecia ter ocorrido fazia
tanto tempo, quando ele se dirigia com o DuPont para St. Catherine.
Topou com uma mulher em um beco escuro, uma dama, a
julgar pelo som de sua voz, que tinha posto uma adaga na garganta
de algum degenerado que tinha roubado um colar de pérolas.
Mostrando uma atitude fria como água de manancial, ela o tinha
golpeado nos testículos e depois tinha afastado a adaga com a
mesma indiferença com que qualquer outra mulher teria alisado as
rendas do vestido. Sim, ficou pensando nisso naquele momento.
Durante os dias seguintes, enquanto vigiavam os movimentos
da casa do outro lado da rua, Geoff a observou com mais atenção.
Quer dizer, observou algo mais, além do intrigante balanço de seus
quadris e de como iluminavam-lhe os olhos quando ele entrava na
sala.
Uma manhã, durante o café da manhã, perguntou a Petit por
que a omelete que tinham trazido a ela tinha um sabor estranho. O
lacaio desapareceu rapidamente e retornou ligeiramente ruborizado
para admitir que a cozinheira tinha usado, sem dar-se conta, salvia,
quando em realidade queria acrescentar pimenta. Esses ovos tinham
servido aos criados, mas não tinham lavado a tigela.
Alguns dias depois, estavam trancados no sótão, fazendo
turnos para olhar pelo telescópio. Embora ocupada folheando o
último monte de papéis que DuPont lhes tinha enviado, Anaís
ouviu abria-se a porta principal de Lezennes. Ele, que tinha estado
observando uma donzela limpando o batente da janela do quarto de
Giselle, não tinha se precavido disso até que Anaís apareceu a seu
lado.
— Pergunto-me aonde vai. — Murmurou Anaís enquanto a
babá saía. — Os últimos dias se foi às quatro.
— É quinta-feira. — Disse Geoff, inclinando-se para apontar
algo no registro. — Teve um dia curto, talvez?
— Talvez. — Murmurou ela, vendo como a elegante figura
cinza desaparecia na rua.
— Tem um ouvido extraordinário. — Comentou ele,
levantando o olhar do papel.
— De verdade? — Anaís sorriu e se separou da janela. —
Mamãe sempre se queixava de que eu tinha um ouvido seletivo. De
que podia ouvir o som que fazia um alfinete ao cair no chão se
queria, e ignorar seus gritos quando me chamava para jantar
enquanto eu estava brincando no jardim.
Geoff fechou o livro de registros e tentou aliviar a tensão em
seus braços.
— Acredito que já nos inteiramos de tudo o que pudemos
descobrir. — Disse, levantando-se. — Já é hora de fazermos algo
mais para que nossos vizinhos teimosos não nos ignorem.
— Bem, finalmente. — Disse ela. — Agora, podemos ir visitar
Lezennes?
— Não, acredito que não. — Disse Geoff. — Isso seria muito
óbvio. Lembra que madame Moreau se desculpou por não vir tomar
o chá com você... e apostaria que Lezennes teve algo que ver com
isso.
Anaís, que tinha estado passeando pela sala, retornou à janela.
— Desconfio que ele não quer que nenhuma delas tenha
contato com o mundo exterior. — Disse com os braços cruzados
enquanto olhava para o outro lado da rua.
— E ela tem medo dele. — Murmurou Geoff. — Posso senti-lo.
— Não são imaginações tuas. — Disse ela. — Esse lugar
irradia maldade. Estou certa de que é a fonte do que viu outro dia.
Lezennes quer que estejam isoladas.
— Sim, porque se ela não conhecer ninguém, não terá a
ninguém a quem pedir ajuda. — Acrescentou ele. — Assim devemos
parecer tão inúteis e bondosos como for possível.
— Poderíamos nos apresentar como uns pobres... — Apontou
Anaís.
— Sim, vamos sugerir a madame Moreau que vivemos de
uma pequena mesada que meu pai nos dá. — Propôs ele. — Que é
ele quem paga todas nossas faturas e vigia até o último centavo.
Anaís ofegou.
— E quando iremos sugerir? Nem sequer permite a ela cruzar
a rua para tomar um chá.
— Não, mas vai ao parque todos os dias há uma hora. — Ele
apanhou seu casaco, que estava sobre o encosto da cadeira, e o pôs.
— E ali se reúne com Lezennes.
— E...?
— Pegue tua capa. — Ordenou-lhe. — Levarei meu cavalete.
Talvez seja hora de conhecer Lezennes e lhe mostrar o quanto
frívolos e inofensivos nós somos.

*****

Localizado no centro de Londres do governo da nação, o


número quatro do Whitehall Place era uma modesta casa com um
infame pátio traseiro que, segundo a lenda, em seus tempos tinha
pertencido aos antigos reis de Escócia. E, enquanto uma dama
podia, embora em ocasiões excepcionais, aventurar-se a atravessar a
porta do número quatro, sob nenhum pretexto deveria ser vista no
pátio, porque a Scotland Yard logo se converteu na delegacia de
polícia de Londres com pior reputação, e um ponto comum de
acesso e de saída de grande parte do que constituía a gentinha mais
implacável de Westminster.
E assim foi como uma preciosa tarde de primavera, o conde de
Lazonby subiu junto a lady Anisha Stafford nos degraus da entrada
administrativa, ligeiramente mais decente, manteve-lhe aberta a
porta e se inclinou enquanto ela entrava.
Lady Anisha passou com rapidez a seu lado, com o queixo
levantado, não de tudo satisfeita com o trato que tinha feito. Ao
entrar, havia uma espécie de portaria, mas estava vazia. Assim
olhou a seu redor sem saber o que fazer.
— Vamos. — Disse Lazonby bruscamente. — Subiremos.
Lady Anisha levou uma mão ao peito.
— Como? Sem que nos anunciem?
— É o número quatro, não o palácio do Buckingham. —
Resmungou ele, guiando-a para as escadas. — Além disso, você
prometeu.
— E você prometeu ir comigo à ópera. — Replicou ela.
— Mas fiz como...
— Fez, sim. — Interrompeu-o. — Mas só para roncar durante
a última ária de Donizetti.
— Essa canção não acabava nunca, Nish, era lenta como um
cavalo coxo puxando um arado torcido. Teve sorte de que
terminasse antes que eu morresse de aborrecimento e o rigor mortis
se instalasse em meu corpo. Como teria descido meu cadáver rígido
por essas escadas tão estreitas?
— Era uma furtiva lagrima! — Gritou. — Comovedora! E,
possivelmente, a melhor ária de tenor do mundo.
— Confesso, sou um inculto. — Grunhiu Lazonby. — Sinto ter
arruinado a tarde com sua futura família política. Mas foi você,
Nish, quem decidiu me levar. Já sabe o que sou.
Lady Anisha seguiu resmungando e se queixando enquanto
Lazonby a arrastava escada acima, mas em voz baixa, lhe dizendo
claramente que esse lugar era um pouco sórdido e que cheirava a
verduras fervidas e a suor rançoso. Explicou-lhe, de maneira
cortante, como sempre, que o tipo de gente que ia ao número quatro
estava acostumado a ter boas razões para suar.
Ao terminar de subir o segundo lance de escadas, entraram
em uma sala longa e estreita dividida por uma porta baixa, como as
que haviam em um tribunal. Lady Anisha nunca tinha posto os
olhos em um, mas sim tinha visto as caricaturas do senhor
Cruickshank da sala do tribunal nas lojas de litografias que havia
pela cidade, o que era quase o mesmo.
Depois da mureta tinha sentado um par de empregados
combinados, ou ao menos ela supôs que estavam combinados
porque, como se fossem um par de lacaios, os tipos, ambos vestidos
de negro, tinham altura e peso similar, quer dizer, que eram muito
altos e magros e estavam sentados em tamboretes, um a cada lado
da mesa alta, por isso pareciam um jogo de morcegos negros, unidos
para sempre como se fossem um.
Junto à parede que estava mais perto de lady Anisha havia
umas cadeiras com o encosto muito reto e sem estofados. Nem
sequer tinham uma almofada.
— Não querem que a gente fique confortável aqui, Nish. —
Disse lorde Lazonby quando lhe fez notar o desconforto. — Este
lugar é para sofrer e para estar incômodo.
— Pois eu estou sofrendo muito desconforto graças a você.
Lady Anisha agitou uma elegante mão ante a desagradável
confusão de aromas de tinta, fumaça de carvão e nabos cozidos que
flutuava no ar.
— Quanto tempo teremos que ficar aqui sentados?
Lazonby apontou para uma grande porta de madeira ao fundo
da sala.
— Até que essa porta se abra e eu consiga colocar um pé
dentro.
Sendo muito mais solícita que lorde Lazonby, a porta escolheu
esse preciso momento para abrir-se. Saíram dois homens, um
corpulento e com ar pretensioso, com uma grossa corrente de
relógio de ouro lhe cruzando a barriga e poucos cabelos negros
cobrindo sua cabeça careca fixados com pomada até criar uma
espécie de corte de cabelo arredondado gordurento.
O segundo homem, muito mais alto, era muito mais
interessante. O ajudante do inspetor da polícia metropolitana era
um homem bonito de costas largas com um nariz que parecia uma
faca de açougueiro e abundante cabelo negro cortado com precisão.
Seu rosto enxuto estava totalmente barbeado, livre de barba ou
bigode, nada na moda, e seus olhos duros e escuros fizeram lady
Anisha pensar em uma ave de rapina.
Reconheceu-o imediatamente e se levantou rapidamente,
passando junto a Lazonby.
— Ajudante de inspetor Napier. — Disse alegremente, lhe
oferecendo uma mão enluvada. — Que agradável vê-lo de novo.
Podemos falar um momento?
O homem corpulento tinha desaparecido e Royden Napier
olhava com receio a seus visitantes.
— Lady Anisha, é um prazer. — Disse com rigidez. — E com
esse "podemos" você quer dizer...
— Lorde Lazonby e eu. — Respondeu, sorrindo.
Napier queria recusar, não poderia ter sido mais claro.
Entretanto, por muito desconforto que lhe produzira, agora
estava em dívida com o irmão de lady Anisha, embora só um pouco.
E sentia curiosidade, muita curiosidade, sobre ela.
Apesar de que o tinha negado para lorde Lazonby, lady
Anisha se fixou em Napier nas bodas de seu irmão. Antes e depois
de que os apresentassem brevemente, o ajudante do inspetor não
tinha deixado de olhá-la pela extremidade do olho. E quando por
fim se aproximou, tinha-a tratado com fria formalidade. Mas esses
olhos! Oh, não se tinham afastado dela.
Talvez recordasse de alguém do submundo criminal. Ou
possivelmente, como ocorria a muitas pessoas da alta sociedade, o
homem só desconfiava de sua pele de cor mel e de seu cabelo
escuro.
Fosse o que fosse, como Lazonby tinha previsto, foi suficiente
para evitar que os mandasse ao inferno. Em lugar disso, convidou-
os a passar a seu escritório que, para os desafortunados que se
viram obrigados a entrar ali, poderia ter sido mesmo o inferno, isso
lady Anisha sabia.
Definitivamente, Royden Napier parecia o tipo de homem que
se dava bem com o diabo.
— E bem. — Disse severamente quando estiveram sentados
diante da sua maciça escrivaninha de carvalho. — A que devo o
prazer?
— Queremos que reabra um caso. — Disse lorde Lazonby,
deixando de lado as formalidades. — O assassinato de lorde Percy
Peveril.
— Mas já condenamos alguém por esse caso. — Disse Napier,
olhando com mordacidade a Lazonby. — A você.
Lazonby ficou em pé de um salto.
— E a condenação foi anulada. — Replicou, plantando uma
mão no meio da escrivaninha do ajudante do delegado. — Mas
nunca me liberarei dela, Napier, a menos que encontrem e
condenem o verdadeiro assassino do Peveril. Você sabe.
— Confio em que me perdoe, milorde, se lhe disser que as
retratações feitas no leito de morte me parecem um pouco suspeitas.
— Disse Napier com frieza. — Sobretudo, quando a afligida viúva
herda depois uma enorme soma de dinheiro.
— Eu estava no cárcere quando ocorreu, imbecil. — Grunhiu-
lhe Lazonby na cara.
— Sim, é verdade. — Disse Napier. — Embora demorou
muitos anos para tirá-lo do norte da África e colocá-lo atrás das
grades. Mas seu pai, o anterior conde, não estava no cárcere. Estava
livre para...
— Não se atreva a sujar o nome de meu pai com isto, Napier.
— Lazonby tinha se posto perigosamente pálido e se agarrava com
força aos braços da cadeira. — Não fez nada para merecer que esse
repugnante assunto lhe caísse sobre a cabeça.
— Nada exceto ter um filho temperamental, trapaceiro e
folgazão. — Replicou Napier. — Se deitar-se com cães, Lazonby,
despertará com pulgas.
— É você um estúpido. — Disse Lazonby com veemência. —
Armaram para que eu levasse a culpa de outra pessoa. Sou o único
que quer saber porque? A Coroa não importa que um assassino
ande solto?
— Pelo que me lembro, seu caso estava muito claro.
— Sim, e foi seu finado pai quem se encarregou de esclarecê-
lo, Napier, e o fez com a mesma precaução com que qualquer outro
homem ceifaria um campo de feno: sem preocupar-se com o que
poderia haver escondido entre a erva. Simplesmente, o fez em
pedaços.
— O que quer dizer, milorde? — Perguntou Napier.
Agora os dois homens estavam de pé, observou lady Anisha,
inclinados sobre a escrivaninha, quase nariz com nariz.
— Alguma vez você olhou seus papéis com mais atenção? Você o
fez? Ou simplesmente aceitou suas investigações como se fossem a
palavra de Deus, quando herdou este escritório?
Nesse momento lady Anisha também se levantou,
pigarreando pronunciadamente.
— Cavalheiros, há uma dama presente. — Disse com calma.
Os dois homens afastaram uns centímetros e Napier ruborizou
de vergonha.
— Peço-lhe perdão. — Disse.
Lady Anisha dedicou um olhar doce a Lazonby.
— Rance?
— Me desculpe. — Disse bruscamente. — Mas já sabe onde
isso ia nos levar.
— Onde, aos punhos? — Perguntou ela com sarcasmo. —
Rance, tenha a amabilidade de nos deixar sozinhos.
Virou para ela, com os olhos muito abertos diante da surpresa.
— Que faça o que?
— Saia. — Disse-lhe. — Vá para baixo. Está muito alterado. Eu
gostaria de falar com o senhor Napier a sós. Se quiser, pode voltar
quando eu tiver acabado.
Lazonby começou a dar a volta para partir e dedicou a Anisha
um olhar ofendido.
Lady Anisha endireitou-se até ficar completamente erguida,
desdobrando sua altura de algo mais que um metro e meio.
— Vá. — Ordenou bruscamente. — Estou falando sério. Você
tentou a sorte comigo pela última vez, Rance.
Surpreendentemente, ele partiu, fechando a porta com força.
Napier tinha se aproximado da janela e estava olhando para
Whitehall Place, meio que lhe dando as costas e com uma mão na
nuca. Ela esperou que falasse. Podia sentir que uma forte emoção
sobrecarregava o ambiente e desejou saber o que era.
— Bom, assim é como começa, lady Anisha? — Perguntou
Napier por fim em voz baixa, mas evidentemente zangado.
— O que você quer dizer? — Ela cruzou a sala para
aproximar-se. — Assim é como começa o que?
Ele deu a volta com uma expressão de asco.
— Agora é quando me ameaça com a ira de seu irmão? —
Perguntou. — Ou quando menciona a Sua Majestade como
advertência?
— Oh, Meu Deus. — Disse lady Anisha com suavidade. —
Que círculos mais nobres.
Ele curvou para cima o lábio superior, como se fosse um cão
grunhindo.
— Oh, sei tudo sobre a "relação especial" de Ruthveyn com a
rainha. E, na verdade, sei muito mais sobre Lazonby, Bessett e seu
pequeno sabat de bruxos em Saint James..., embora ainda não possa
provar nada.
— Não tenho nem ideia do que está falando. — Disse ela. —
Não tenho necessidade que meu irmão me faça o trabalho sujo, se
for isso o que pensa. Sou perfeitamente capaz de fazê-lo sozinha.
Quanto à relação de Ruthveyn com a rainha, qualquer lealdade que
tenha conseguido ganhar de sua parte, a ganhou em pulso, com
esforço, suor e, sim, inclusive com sangue, tudo porque ama a seu
país. E se nossa bendita rainha está agradecida por isso, que merda,
já pode estar sim agradecida.
Se esse palavrão tão impróprio de uma dama o surpreendeu,
Napier não demonstrou. Em lugar disso, ficou uns momentos junto
à janela, com as costas iluminadas pelo sol do meio-dia como se
fosse um dos anjos coléricos de Miguel Arcanjo descendendo dos
céus. Tinha uma mão firmemente apoiada em sua estreita cintura,
jogando para trás a parte dianteira de seu casaco negro. Debaixo, o
colete se deslocou o suficiente para revelar o que parecia o cabo de
uma adaga astutamente inserida sob a cintura das calças.
Um anjo vingador, talvez.
— Então, o que quer, lady Anisha? — Perguntou-lhe
friamente.
Ela levantou um ombro com fingida naturalidade.
— Quero saber. — Disse em voz baixa. — Por que não para de
olhar para mim quando estamos na mesma sala.
Capítulo 11

"Finge inferioridade e fomenta sua arrogância."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Por volta das doze e meia, Anaís se apoiou contra uma árvore
no Parque de Bruxelas com o último folhetim do senhor Reynolds
aberto no colo. Sentado em um banquinho dobrável, Geoff estava
inclinado sobre seu caderno de desenho a mais ou menos um metro
de distância, meio dando as costas a ela e com o cabelo acobreado
movendo-se ligeiramente com a brisa.
Sob sua mão aparecia um esboço muito bom do palácio real,
com traços audazes, negros e certeiros. Era uma vista do edifício
através das sólidas grades do parque, e Anaís estava fascinada pela
rapidez de seus movimentos. Ao olhar o esboço, alguém imaginaria
que Geoff tinha estado trabalhando nele durante horas, ao invés de
apenas quinze minutos.
— Tem um dom para isto. — Murmurou ela.
Ele se voltou e sorriu, sorriu de verdade, e Anaís sentiu que
ficava sem respiração.
— Obrigado. — Respondeu. — Sempre senti paixão pelos
edifícios formosos. Foi, pelo que me lembro, a única coisa que
salvou uma infância passada no estrangeiro.
— Sabe desenhar retratos?
O sorriso de Geoff se desvaneceu, ele deu a volta e tirou o
caderno de desenho do cavalete. Virou a folha e a pôs no colo, com o
comprido cabelo caindo para frente lhe escurecendo o rosto
enquanto se inclinava sobre o esboço.
Durante uns minutos, moveu a mão rapidamente pelo papel,
jogando de vez em quando olhadas de soslaio em sua direção. Por
fim, ergueu-se e o separou um pouco dele, como se o estivesse
estudando.
Aparentemente satisfeito, arrancou o papel e o estendeu a
Anaís.
Ela o agarrou e abafou um grito.
Em realidade, era um desenho muito singelo. Só algumas
linhas rápidas e um par de sombras, mas a tinha capturado com
incrível realismo.
Anaís se prendeu em cada detalhe. Ainda tinha o nariz grande
de seu pai, mas de algum jeito no esboço parecia correto, e
perfeitamente proporcionado com seu rosto. E embora ele a tenha
esboçado sentada contra uma árvore, com um joelho levantado,
como em efeito estava, no desenho o cabelo se esparramava sobre os
ombros, lhe chegando quase à cintura.
Entretanto, o mais impressionante eram os olhos. Grandes,
embora não excessivamente, e davam a impressão de olhar
diretamente, quase com atrevimento, ao espectador. Mesmo assim,
não deixavam transpassar nada, como se fossem dois enigmáticos
poços de ébano.
Era, em seu conjunto, perfeitamente impressionante.
— Geoff, é precioso. — Conseguiu dizer, ainda com o esboço
na mão. — Mas temo que me favoreça em demasia.
— Como? — Ela podia sentir a curiosidade dele. — De que
maneira?
Anaís levantou o olhar para ele, mas em seu rosto não viu
nenhum tipo de subterfúgio.
— Não estou segura de que esse seja meu aspecto.
Ele inclinou a cabeça e a observou.
— Assim é como eu te vejo.
Havia uma sinceridade em seu rosto que ela não esperou
encontrar, e também doçura, embora ele pertencesse a um tipo de
homem com quem normalmente não se associaria essa palavra. E
para sua extrema vergonha, sentiu, de repente e inexplicavelmente,
como se fosse chorar. Como se o que tivesse estado esperando
durante toda sua vida fosse algo incorreto, como se ela não fosse a
pessoa que sempre tinha acreditado que era. Definitivamente, não
era essa mulher bela e misteriosa.
Devolveu-lhe o papel bruscamente.
— Não o quer?
— Não. — A palavra lhe saiu dos lábios com voz rouca. —
Quero dizer... sim, o quero. Muito. Mas eu gostaria que assinasse
isso. E que o datasse.
Sorrindo suavemente, ele o fez. Estampou uma assinatura
chamativa e angular na esquina inferior direita e, debaixo, pôs a
data.
— Aqui está. — Disse-lhe, estendendo-lhe. — Acredito que é o
primeiro retrato que tenho feito em uma década, ou mais.
— Então, sinto-me honrada. Obrigado.
Tinha-o assinado como "Geoffrey MacLachlan", uma precaução,
supôs ela, para manter o engano.
Justo então, algo captou sua atenção. Deixou o esboço de lado.
O estranho e agradável interlúdio tinha terminado oficialmente.
— Acredito que deveríamos começar a nos fazer de cabeças
ocas, porque vejo madame Moreau aproximando-se desde Place des
Palais.
Geoff se esticou, mas não se voltou para olhar.
— Com quem?
— Um cavalheiro E uma menina.
Ele assentiu e voltou para seus esboços. Anaís se levantou e
fez que sacudia a saia. Depois, levantou o olhar e sua expressão se
iluminou.
— Madame Moreau! — Chamou-a. — Oh, céus! Que boa
sorte!
Madame Moreau sorriu, mas olhou com nervosismo ao
homem magro e elegante em cujo braço estava agarrada.
— Bom dia, senhora MacLachlan. — Disse quando Anaís se
precipitou para eles. — Como vai?
— Oh, formigas! — Disse Anaís, entrando no caminho. —
Acredito que me sentei sobre um formigueiro! Pode-se ser tão tola?
Agora me parece senti-las por toda parte e é horrível.
Retorceu-se um pouco para apoiar suas palavras.
O sorriso de madame Moreau se desvaneceu um pouco.
— Senhora MacLachlan, permite-me lhe apresentar a meu...
meu tio, Visconde de Lezennes? E ela é Giselle, minha filha.
Quando tiveram feito todas as apresentações, Anaís lhe fez
uma profunda reverência, quase cômica, a Lezennes. Era um
homem esbelto e elegante de meia idade, com o cabelo muito curto e
quase tão escuro como o seu. Tinha um nariz fino e magro e uma
barba bicuda que parecia, definitivamente, satânica. A menina era
uma pequena brincalhona que não dizia nada e que evitava seu
olhar... compreensivelmente, talvez.
— Oh, sua senhoria, é uma honra. — Disse Anaís
efusivamente. — Um nobre francês... justo aqui, em Bruxelas. E
diplomático, além disso!
Lezennes lhe dedicou um sorriso condescendente.
— Minha querida dama, Bruxelas está alagada de nobres
franceses, o asseguro. — Disse em perfeito inglês. — E de
diplomáticos. O que trouxe vocês aqui?
Anaís abriu muito os olhos.
— Oh, estamos em nossa lua de mel. — Disse apressadamente.
— Perdoe minhas maneiras. Geoffrey! Oh, Geoff, venha aqui.
Recorda de madame Moreau, certo?
Geoff levantou a vista tranquilamente do cavalete, fingindo
que demorava um momento em reconhecê-la.
— Sim, claro, é óbvio!
Por fim se levantou e se dirigiu a eles. Anaís lhe apresentou o
visconde.
Geoff lhe estendeu a mão com o entusiasmo do típico inglês.
— Oh, encantado de conhecê-lo, colega. — Disse alegremente.
— Minha mulher não para de falar de sua amiga inglesa... não fala
nenhuma palavra deste estranho idioma holandês, já sabe.
O desgosto se refletiu no rosto de Lezennes, mas o ocultou
rapidamente.
— Tecnicamente, senhor MacLachlan, é flamenco. — Disse o
visconde — Mas o francês também se fala aqui. Não fala sua mulher
um pouco de francês?
Geoff olhou a Anaís sem expressão.
— Sim, acredito que sim.
— Bom, o suficiente para me fazer entender, mas não gosto. —
Queixou-se Anaís, entrelaçando um braço com o de Geoff. — Deve
perdoar a meu marido, milorde. Nos casamos há poucas semanas.
Quanto a porque viemos, Geoff gosta de fazer desenhos de edifícios.
— De edifícios?
Lezennes olhou a Geoff com curiosidade.
— Sim, sim, estou pensando em ser arquiteto. Não posso viver
da mesada de meu pai para sempre, certo? — Piscou um olho a
Lezennes com cumplicidade. — Ou isso é o que ele sempre me diz.
Tem montes de dinheiro, mas é agarrado a eles como a bolsa de um
clérigo.
— Oh, deviam ver este desenho! — Anaís fez um gesto com a
cabeça para o cavalete. — Vão ficar impressionados.
Como Lezennes não viu maneira de negar-se, educadamente,
inclinou o pescoço com rigidez.
— Après vous, madame. — Disse, fazendo um meneio com a
mão.
Atravessaram a rua e, claro, Geoff ia se queixando em voz alta
do quão tremendamente caro que era viver em Bruxelas e
perguntando se Paris seria algo mais barato. Lezennes lhe assegurou
que não era. Quando lhes mostrou o desenho, elogiaram-no
adequadamente e Charlotte declarou com educação, que era o
esboço de palácio mais bonito que já tinha visto.
Anaís pensou que provavelmente era o único esboço que tinha
visto, mas lhes agradeceu efusivamente.
— Bom, Charlotte. — Disse por fim. — Posso te chamar de
Charlotte?
A mulher voltou a dirigir um olhar de incerteza a Lezennes.
— É óbvio — Disse. — E você é Anaís, não é assim?
— Assim é, e me senti muito decepcionada ao me inteirar de
que tinha enxaqueca no domingo. — Pressionou-a. — Queria te
perguntar sobre o melhor lugar para comprar rendas. E livros. —
Agachou-se e mostrou o folhetim. — Sabe onde posso encontrar
uma boa livraria? Que tenha este tipo de novelas inglesas?
Madame Moreau parecia surpreendida.
— Folhetins?
O visconde estava olhando a capa com desgosto dissimulado.
— Mon Dieu, madame, o que é esta coisa?
Anaís abriu muito os olhos.
— Um folhetim. — Sussurrou. — São muito emocionantes,
milorde. Este é sobre um homem lobo.
Lezennes fez uma careta com a boca.
— E o que é um homem lobo?
— Um homem que se transforma em lobo quando há lua está
cheia. — Respondeu Anaís, estremecendo. — Vendeu sua alma ao
diabo em troca de juventude e riqueza, mas há uma armadilha. Não
há sempre uma armadilha quando alguém faz uma estupidez
semelhante? Em qualquer caso, é deliciosamente horrível. Sei que as
damas geralmente não compram, mas eu sou da opinião de que,
pelo menos, deveriam ler uma.
— Oh, ela lê qualquer tolice. — Interveio Geoff, que estava
guardando suas coisas. — Tenha piedade de nós, madame Moreau,
e leve-a a algum lugar onde possa encontrar um bom livro.
— Mas em inglês? — Perguntou a mulher, franzindo sua
delicada testa. — Na verdade não acredito que...
— Poderíamos falar disso enquanto tomamos o chá um dia? —
Sugeriu Anaís. — Se se sentir melhor, é claro.
De novo, Charlotte Moreau olhou a seu acompanhante.
— Bom, não estou segura...
Mas Lezennes estava passando o olhar da novela tola de Anaís
à expressão bovina de Geoff.
— Sinta-se à vontade para ir, querida. — Disse o visconde. —
Acredito que será algo inofensivo.
Parte da tensão de madame Moreau desapareceu e, pela
primeira vez, dedicou a Anaís o que parecia um sorriso autêntico.
— Estarei encantada. — Disse. — Quando?
— Na segunda-feira? — Sugeriu Anaís, tentando não parecer
muito ansiosa. — Oh, e traga a pequena Giselle. É muito bonita e me
recorda muito a minha querida Jane.
Apesar do comentário, a menina não estabeleceu contato
visual. Em lugar disso, escondeu-se atrás das saias de sua mãe.
O visconde, entretanto, a olhou.
— Temo que Giselle seja delicada e não é como outras
meninas. — Disse com voz firme. — Não está acostumada a sair de
casa.
A compreensão se refletiu no rosto do Anaís.
— Não, claro. — Disse. — É óbvio, não seria conveniente.
Pobrezinha. Que bom é você, milorde, por preocupar-se tanto por
seu bem-estar.
Geoff levantou o olhar do cavalete que estava fechando... e
provocou um desastre, pois tinha enganchado o casaco em uma das
dobradiças.
— Por Deus, tenho uma ideia excelente. — Disse, soltando-se
por fim entre puxões e ruídos estrepitosos. — Os dois devem vir
para jantar! Que tal na terça-feira? Temos uma cozinheira fantástica.
Assa a carne como uma verdadeira inglesa. O que lhes parece às seis
em ponto? Temo que ainda tenhamos o horário inglês.
Lezennes levantou o queixo.
— A governanta de Giselle se vai pelas tardes, e Charlotte não
pode sair de casa depois disso. Temo que não possamos ir a sua
casa.
— Bom, se insistir... — Disse Geoff em tom amistoso. —
Embora odeie incomodá-los.
— Como diz? — Perguntou Lezennes.
Geoff seguiu dizendo rapidamente:
— Direi que... os compensarei. Um barril do melhor uísque de
meu pai caiu acidentalmente em minha carruagem quando saía para
Bruxelas. O que me dizem se lhes levar uma garrafa?
— Uísque? — O visconde deu um passo atrás. — Feito de grão
fermentado?
Geoff fechou de repente o banquinho dobrável.
— Sim, e aposto o quer que seja, que não voltará a beber esse
morno brandy francês, lorde Lezennes, uma vez que tenha cheirado
a glória da Escócia. Então, às seis em sua casa?
Lezennes tomou ar profundamente.
— Oui, às seis. — Disse em um tom que sugeria que, quanto
antes saísse daquilo, melhor. Depois inclinou a cabeça para olhar a
sua acompanhante. — Acredito que a Charlotte verá bem a
diversão.
Charlotte seguia mostrando seu sorriso autêntico.
— Oh, claro que sim! — Afirmou. — Obrigado, tio. É muito
amável.
Assim ficou tudo decidido. Depois de uma série de educadas
despedidas, Anaís e Geoff ficaram vendo como os três se afastavam
em direção a Rue da Loi, no extremo oposto do parque.
— Santo Deus! — Disse ele quando o trio já não podia ouvi-
los. — Foi horrível. Nem sequer eu gosto de como somos.
— Stupide rosbifes, não é assim? — Anaís lhe sorriu. — E agora
o pobre Lezennes nos terá que aguentar para jantar. Muito bem
feito, por certo.
— Tratou-lhe como esterco de cavalo, certo? — Geoff lhe
devolveu o sorriso. — E quem haveria dito que você podia ser tão
pateta?
— Ou você tão vulgar. — Acrescentou ela.
— Oh, tenho meus momentos.
— Acredito que o casaco enganchado na dobradiça foi um
detalhe muito convincente. — Disse ela, buscando em seu bolso. —
Se não pudermos ser bons guardiões, acredito que poderíamos atuar
no teatro.
Tirou um lenço de renda e linho e o agitou diante dele.
Geoff arqueou uma sobrancelha.
— Obrigado, Anaís, mas ainda não me fez chorar.
— Não, tolo, tirei-o do bolso de Charlotte. — Respondeu,
colocando-o no bolso do colete de Geoff. — Vittorio me ensinou.
— A roubar?
— A fazer muitas coisas. — Disse vagamente. — Vittorio dizia
que às vezes, em um artigo muito pessoal ficavam marcadas as
emoções do proprietário. E, a menos que esteja equivocada, eu diria
que este lenço esteve empapado em lágrimas mais de uma vez. Pode
ser que se torne útil.
— Sim, pode ser que sim. — Geoff o guardou e olhou as costas
de Charlotte enquanto os três se internavam no parque. — E o que
estava fazendo com esse livro de mau gosto, por acaso?
— De mau gosto, né? — Anaís cruzou os braços sobre o peito.
— Tem ideia, Geoff, de quanto dinheiro ganha o senhor Reynolds
vendendo isto? Mais que o senhor Dickens e as irmãs Brontë juntos,
diria eu.
Ele também cruzou os braços, como se estivesse a imitando.
— E com isso quer dizer...?
— Bom, eu... — Fechou a boca e a voltou a abrir. — Não é teu
assunto.
— Não, é óbvio que não! — Mostrou-se de acordo, começando
a sorrir.
— Mas, pensei, francamente, que deveria conhecê-lo. — Disse
ela, levantando o queixo. — E não ria. Faz tempo que sei que os
membros da Fraternitas tentariam me rechaçar e queria ter algo que
fazer até... até...
— Até que apareça seu homem ideal? — Sugeriu ele.
— Até que consiga que superem sua estupidez e prejuízos. —
Terminou de dizer ela. — Já sabe. Não me vou render, Geoff. E
agora, nos ponhamos sérios. O que acha da situação em que se
encontra Charlotte Moreau?
Geoff se serenou imediatamente e deixou cair os braços.
— Nada bom. — Admitiu, sem deixar de olhar as costas de
Charlotte. — Sente-se intimidada, por não dizer aterrorizada, por
Lezennes. Não precisa ter o dom para dar-se conta.
Anaís franziu o cenho.
— É óbvio que não. Geoff tenho a horrível sensação de que
talvez não disponhamos de muito tempo. Sente algo?
Ele negou com a cabeça.
— Somente um pouco de desassossego, mas acabo de conhecê-
la, de criar uma conexão com ela. E estou de acordo contigo. É
inocente e Lezennes não atua em seu melhor interesse
absolutamente. E o que é pior, não acredito que tenhamos meses,
possivelmente nem sequer semanas, para solucionar este assunto.
— É mais importante ser rápidos do que ser sensatos. — Disse
Anaís enquanto o trio saía do caminho principal e desaparecia entre
as árvores. — Vou ter que ser atrevida, Geoff. Me fazer de amiga
dela rapidamente. Mas, o tiro poderia sair pela culatra se for tão
assustada como acredito.
Geoff pegou seu caderno de desenho e estava dando
golpezinhos com ele na coxa com ar pensativo. Seus olhos de cor
azul claro, ainda estavam fixos no caminho e tinha a mandíbula
firmemente apertada.
— Então, deixo-o a seu critério. — Disse finalmente,
carrancudo. — E não, não perca tempo.
— E se fracassar? — Perguntou ela. — E se a espantar? Está
decidido a fazer o que deve fazer?
— Sequestrar à menina? — Disse ele. — Preferiria não fazer.
Mas sem a menina, Lezennes não necessitaria de Charlotte. Deixaria
ela partir. Deve tentar convencê-la para que fique em contato com
sua família, Anaís. Se por acaso há alguma esperança.
— Oh, farei isso. — Respondeu. — Pensarei em algo, prometo-
lhe.
Geoff não disse mais nada, sem deixar de olhar para o
caminho.
Tinha sido um dia insólito. Um dia no qual Anaís havia se
sentido mais confusa do que nunca, no que dizia respeito do homem
que agora estava a seu lado. Ombro com ombro, literalmente,
pareciam coexistir com tanta facilidade e comodidade como fariam
duas pessoas em sua situação.
Como se estivesse escrito.
Mas não o estava. Não podia ser. Nonna lhe tinha explicado
seu destino fazia muito tempo, e ela faria bem em recordá-lo.
— Venha. — Disse depois de uns momentos. — Me dê o
caderno e os lápis. Ajudarei a levar tudo para casa.

*****

Talvez Anaís e Geoff não tivessem o destino a seu favor, mas


parecia que Charlotte Moreau sim. Na segunda-feira, Anaís desceu
para almoçar e viu que com o correio da tarde tinham recebido uma
carta com carimbo de Colchester.
Bernard levou a Geoff em uma bandeja e fez uma ligeira
reverência.
— Espero monsieur, que sejam boas notícias.
— Está nas mãos de Sutherland. — Respondeu Geoff
enquanto a apanhava.
— Seu Prior está em Colchester? — Perguntou Anaís,
seguindo-o saltitando.
— Sim, saiu de Londres no dia seguinte após sugerir que
partíssemos. — Rasgou o envelope e abriu a carta. — Não estamos
tão imersos em... como disse? Ah, sim, em nossa estupidez e
prejuízos para não reconhecer uma boa ideia quando a ouvimos.
Anaís se inclinou por cima de seu ombro.
— Oh, lê a carta e deixa de sarcasmos.
Geoff tirou a carta e a leu a toda velocidade.
— Santo Deus. — Murmurou. — Têm-no feito muito rápido.
— O que? — Disse ela. — O que?
Geoff a olhou.
— Tinha razão outra vez.
— Outra frase que soa muito bem em seus lábios. — Disse
Anaís. — Mas segue. Fui muito brilhante?
Geoff não se incomodou em responder.
— A família de Charlotte Moreau espera sua volta com os
braços abertos. — Disse-lhe, e o alívio se refletiu em seu rosto. — A
ideia de uma neta os deixa loucos de contentamento. E não sabiam
da viuvez de Charlotte.
— Como iam saber se a deserdaram? — Disse Anaís com
amargura.
— Algo do que estão profundamente arrependidos. —
Comentou Geoff entre dentes, voltando a olhar a carta. — Parece
que estiveram lamentando por todos estes anos perdidos. Anaís,
querem lhe dar um lar.
Ela fechou os olhos.
— Graças a Deus.
— Deus nos ajudou graças a ti e ao Sutherland. — Estendeu-
lhe a carta. — Muito bem feito, os dois. Toma, lê, mas não a queime.
Pode ser que a necessitemos.
— Obrigada.
Começou a ler rapidamente, sem atrever-se a acreditar nas
palavras escritas.
Mas Geoff tinha começado a perambular com impaciência
pela sala.
— A Fraternitas tem dois bons homens perto de Colchester. —
Disse pensativo, passando uma mão pelo cabelo. — Os dois são
guardiões, homens nos quais se pode confiar. Podemos atribuir
agora um a Giselle, para que esteja segura e, mais tarde, para que a
ajude a entender o dom e a enfrentá-lo.
Sentindo-se imensamente aliviada, Anaís dobrou a carta e a
meteu no bolso.
— Mas primeiro temos que levá-la ali.
— É óbvio. — Quase distraidamente, Geoff tirou o lenço de
Charlotte e o olhou. — Primeiro temos que levá-la... sã e salva.
Nesse momento, Petit entrou para anunciar que o almoço
estava servido. Comeram em relativo silêncio e Anaís expressou sua
esperança de que Charlotte viesse, dessa vez tomar o chá, em vez de
enviar outro cancelamento de última hora.
Geoff parecia absorto em seus pensamentos, mas não estava
tão tenso nem tão zangado como o tinha estado durante os
primeiros dias em Bruxelas. Por sua parte, Anaís não podia evitar
acreditar que o breve tempo que fossem passar juntos estava se
esgotando rapidamente.
Uma parte dela se sentiria aliviada.
Enquanto observava Geoff do outro lado da mesa, pensou que
ele também se alegraria de voltar para a Inglaterra. Ou talvez, só se
alegraria de afastar-se dela. Não pensava que a favorecesse imaginar
que havia uma grande atração física entre eles que foi forjando com
o passar da viagem. Mas ele tinha lutado contra essa atração,
enquanto que ela não o tinha feito.
Bom, não de tudo.
Talvez fosse afortunada. Um homem sem moral teria aceitado
seu oferecimento e não teria mostrado tanta preocupação por ela.
Ou talvez, não era unicamente uma questão de preocupar-se
com ela?
Geoff tinha deixado bem claro que não tinha nenhuma
intenção de casar-se. Anaís o compreendia. Mas talvez fosse algo
mais complicado. Teria uma amante leal? Uma querida secreta? Não
tinha pensado na possibilidade de que houvesse alguém mais em
sua vida. Deus sabia que não seria a primeira vez que caía nessa
armadilha.
Voltou a percorrer Geoff com o olhar e sentiu esse
estremecimento familiar, uma doce dor que se assentou na boca do
estômago. Com sua juba leonina e esse olhar intenso, quase de lobo,
ele a fascinava como uma criatura a ser domesticada, sem estar
unido a ninguém, perambulando sozinho pelos bosques da vida.
Mas não ia ganhar nada deixando que seus pensamentos
corressem nessa direção e, entretanto, Charlotte e Giselle Moreau
ganhariam muito se as levassem a solo inglês, o mais rapidamente
possível.
Terminou sua comida em silêncio, tentando manter o olhar
fixo no prato, e depois se desculpou e foi fazer os últimos
preparativos para o chá.

Essa tarde, Charlotte Moreau a surpreendeu ao chegar dez


minutos antes.
Anaís pensou que era um bom sinal. Apesar disso, não lhe
levou muito tempo dar-se conta de que a escuridão se instalou de
novo sobre ela. O brilho que de seus olhos na tarde anterior tinha
desaparecido.
Sentaram-se no salão principal, junto às janelas que davam
para a Rue de l'Escalier e à entrada da casa de Lezennes, falando
sobre o tempo enquanto Petit dispunha o serviço do chá.
— Alegrei-me muito de conhecer seu tio no parque. — Disse
Anaís, uma vez servidas e depois de falar de coisas sem
importância. — Parece um cavalheiro muito distinto.
— Sim, é. — Disse Charlotte sem comprometer-se. — E foi
muito generoso com Giselle e comigo.
— Que tipo de trabalho faz para os franceses? — Anaís fez
uma pausa para dar um gole ao chá. — Um terrivelmente
importante, imagino.
Charlotte afastou o olhar.
— Não estou segura. — Disse, deixando sua xícara no pires. —
Não fala disso e acredito que não me corresponde lhe perguntar.
— Mas deve conhecer rei Leopoldo, não? — Perguntou Anaís,
abrindo muito os olhos. — Talvez, Charlotte, você também termine
conhecendo-o! Não seria emocionante? Depois de tudo, ainda é
incrivelmente arrumado.
Por um instante, Charlotte hesitou.
— Meu tio tem reuniões privadas com o rei. — Murmurou. —
Ouvi um de seus ajudantes falando disso. Que ia ocorrer uma
reunião... muito discreta. E me perguntei, é óbvio... — Calou-se de
repente e agarrou outra bolacha da bandeja que havia na mesa. —
Estão deliciosas. Pedirá à senhora Janssen que me dê a receita?
— Ele vai se sentir adulada ao saber que a quer. — Assegurou-
lhe Anaís. — Quanto ao rei, ainda há muita gente na Inglaterra que
o aprecia profundamente, já sabe. Depois de tudo, em uma ocasião
esteve previsto que fora nosso rei.
— Bom, o consorte, acredito. — Admitiu Charlotte. — E sua
sobrinha Vitória o estimava muito, sobretudo quando era uma
menina.
Anaís sorriu e se inclinou para frente para preencher as
xícaras.
— Se as coisas não tivessem mudado entre eles ao longo dos
anos, pergunto-me se a posição de Leopoldo seria diferente agora.
— Murmurou de maneira insinuante.
— É óbvio. — Charlotte estava misturando lentamente seu chá
com a colherinha. — É um rei poderoso por direito próprio, e meu
tio diz que...
Anaís se inclinou atentamente para frente.
— Oh, segue, Charlotte! — Rogou-lhe. — Parece que sabe
alguma fofoca... e quem pode resistir a mexericar tomando chá?
Charlotte se ruborizou com ar de culpabilidade.
— Meu tio diz que Leopoldo agora deve olhar por ele mesmo
e cuidar de seus interesses a longo prazo. — Sussurrou. — Diz que
suas relações com a Inglaterra, por muito imprecisas que sejam,
algum dia podem desfavorecê-lo politicamente.
— Oh. — Disse Anaís. — Bom, tudo isto é muito complicado
para mim. Eu somente acredito que ele é elegante. E sua mulher...
alguém me disse que sofre tísica. Pergunto-me se é verdade...
Charlotte pareceu esticar-se ligeiramente.
— A rainha está muito doente. — Respondeu. — Acredito que
não viverá muito mais.
Anaís se inclinou muito para frente.
— E ouvi que a amante do rei está grávida. — Sussurrou,
deixando cair uma das fofocas mais saborosas de DuPont. — Ou
pode ser que já tenha dado à luz.
Ao ouvir Anaís, Charlotte ficou muito afetada.
— Mas... Isso é uma tragédia! — Exclamou, levando uma mão
ao peito. — Dizem que sua mulher o adora, embora fosse um
matrimônio acertado politicamente.
Anaís encolheu os ombros.
— Pouco bem faz isso a Leopoldo agora que tiraram seu sogro
do trono da França. — Assinalou. — Não surpreende que esteja
preocupado por fazer novas alianças francesas. Quanto à pobre
rainha Luisa, pergunto-me se vale a pena sofrer tanto por amor.
Acredito que me alegro de haver casado esta vez por pragmatismo.
Charlotte voltou a baixar o olhar para seu chá.
— Pois eu não o farei! — Disse ardentemente. — Não
desprezo sua escolha, Anaís. De verdade não. Mas prefiro sentir a
dor da perda, por mais intenso que seja a me casar com alguém a
quem não amo.
Anaís deixou sua xícara de chá com estrépito.
— Pobre Charlotte, está pensando em seu marido, não é
assim? — Murmurou, sentindo-se como um rato. — Deduzo que
não faz muito que enviuvou...
Os traços de Charlotte se suavizaram com uma mescla de pena
e de evidente afeto.
— Pierre morreu no ano passado. — Disse em voz baixa. —
Mas parece que foi ontem. Alguns dias... a maioria, me acordo pela
manhã e, por um momento, espero encontrá-lo deitado a meu lado.
E a tristeza volta a me invadir, porque não está.
Anaís se inclinou para ela e lhe tocou a mão.
— Que desconsiderada sou. — Murmurou. — Charlotte, sinto
muito. Mas não tem que te casar de novo. Tem a seu tio. Não
sugeriu que deveria sair de sua casa, certo?
Mas Charlotte não levantou o olhar.
— Pensei muito em ti, Anaís, desde que nos conhecemos. —
Disse. — Pensei no muito que temos em comum. Ambas nos
casamos por amor, contra os desejos de nossas famílias, com
homens que não eram ricos, e nenhuma de nós se arrependeu, certo?
Anaís sentiu que uma pontada de remorso lhe atravessava o
coração, mas sacudiu a cabeça.
— Não, nunca.
— E ambas temos filhas que adoramos. — Continuou
Charlotte. — Somos viúvas jovens de procedência similar em um
país estrangeiro onde nem sempre podemos falar o idioma.
Sim, pensou Anaís com culpabilidade, ou isso é o que acredita.
— Mas você voltou a casar. — Acrescentou Charlotte — E
felizmente, espero.
— Isso, acredito. — Disse Anaís com indecisão, pensando
rapidamente em outra mentira e odiando-se por isso. — Mas
Charlotte, meu pai é muito velho e queria que me casasse para ter
alguém que se ocupasse de Jane e de mim quando ele se for. Você
tem a seu tio. É evidente que adora a Giselle.
— Oh, sim. — Disse, quase melancólica. — Não a adora
cegamente, mas se preocupa constantemente por seu bem-estar... e
quer que a trate como se fosse feita de cristal.
— E eu tenho a sensação de que a ti tudo isso inquieta. —
Continuou Anaís. — Sim, querida, odeio te ver afligida, embora
tente esconder. Quer me contar o que ocorre?
— Mas é que às vezes... às vezes estou muito confusa. —
Baixou a voz até que foi um sussurro. — Muito confusa e aqui não
tenho a ninguém com quem falar.
E isso é exatamente o que Lezennes tinha planejado.
Parecia que todos estavam usando Charlotte.
Anaís estava começando a sentir-se suja. Estava tentada a
contar-lhe tudo. Mas tinha que pensar na menina e temia que
Charlotte não fosse o suficientemente forte para suportar a verdade.
A expiação de seus pecados teria que esperar.
— Sim, tem a alguém com quem falar Charlotte. — Replicou.
— Tem a mim. Pode ser que eu não seja a criatura mais inteligente
da Terra, mas é minha amiga e pode confiar em mim. E,
sinceramente, inclusive um ganso se daria conta de que há algo
sobre Lezennes que a preocupa.
Charlotte engoliu em seco com dificuldade e os músculos de
sua pálida garganta se contraíram tanto que Anaís pensou que ia
engasgar-se.
— Bom... — Sussurrou ao final. — É simplesmente que não é
meu tio.
— Mas é o tio de seu marido, querida. — Disse Anaís
meigamente — E segundo a lei canônica, é o mesmo.
Charlotte parecia haver-se fechada em si mesma.
— Bom, sempre acreditei que era o tio de meu marido, embora
nunca tiveram uma relação muito estreita. — Explicou-lhe. — Mas a
verdade é que a mãe de Pierre era uma criada na propriedade de
sua família. Os pais de Pierre nunca foram casados.
— Oh. — Disse Anaís em voz baixa. — Bom. Mas, mesmo
assim, não importa. Lezennes está cuidando de ti em nome da
família.
— Não importa? — Charlotte a olhou com dureza. — A
princípio, eu também pensava isso.
— O que quer dizer com "a princípio"?
Anaís a olhou com curiosidade.
— Pensei que Lezennes era o tio do Pierre, mas agora diz... —
Interrompeu-se, desviando o olhar para um local da sala e negou
com a cabeça. — Oh, Deus, por que estou falando disto?
— Porque se preocupa. — Anaís estendeu um braço para tocá-
la com suavidade. — Charlotte, querida, nada alivia mais que
compartilhar a carga. O que diz agora?
Charlotte deixou escapar um suspiro trêmulo, como se
estivesse esforçando-se para não chorar.
— Diz que seu irmão de fato sempre negou ser o pai de Pierre.
— Sussurrou. — Que seu verdadeiro pai era provavelmente um dos
muitos convidados que frequentavam a propriedade. Ou um dos
serventes.
— Que estranho. — Disse Anaís. — O que pensava seu
marido?
Encolheu os ombros fracamente.
— Pierre dizia que era o neto ilegítimo do velho visconde, e
que por isso a família o tinha educado e lhe tinha procurado um
posto na corte... um trabalho singelo de empregado. Mas o pai de
Pierre morreu quando ele tinha três anos, assim imagino que é
possível que se confundisse.
Anaís duvidava muito.
— E o que diz Lezennes agora?
— Que a mãe de Pierre afirmava que o irmão de Lezennes era
o pai de seu filho, e por isso a família fez o correto. — Respondeu
Charlotte, desconcertada. — Mas agora, sugeriu, em realidade,
ninguém nunca acreditou. De fato, assegura que seu irmão mais
velho era...
Interrompeu e se ruborizou violentamente.
— O que era? — Pressionou Anaís.
— Antinatural! — Sussurrou Charlotte, abrindo muito os
olhos. — Lezennes diz que seu irmão nunca se interessou por
mulheres. Que o velho visconde se aproveitou do filho bastardo da
serviçal para pô-lo como prova de que seu filho era... não era o que
todo mundo murmurava que era. E que a família pensou que era
uma bênção que esse rumor se estendesse.
— Oh, querida. Tudo é muito estranho. — Anaís franziu o
cenho. — E Lezennes segue cuidando de Giselle e de ti, apesar de
que acredita que não é... Oh, Charlotte! Tem medo de que te jogue
na rua?
Charlotte negou com a cabeça veementemente.
— Não, não o fará. — Disse, olhando as mãos. — É muito
protetor com Giselle. Diz que não há necessidade de que nada mude
a menos que...
— A menos que...?
Charlotte levantou o olhar e Anaís viu que as lágrimas
estavam por sair.
— A menos que deseje me casar com ele. — Sussurrou. — Diz
que é a melhor maneira... a única maneira, de proteger Giselle. Não
existem registros escritos sobre quem era o pai de Pierre. Diz que a
Igreja não pode pôr nenhum impedimento a nossas bodas.
— Oh, céus.
Anaís ficou calada um bom momento. Era justo o que DuPont
temeu desde o começo. Lezennes a tinha prendido das duas
maneiras... e, ao final, tinha distorcido as coisas até pôr a pobre
Charlotte em um horrível dilema. Ela era religiosa, nunca poderia
ter violado os decretos da Igreja casando-se com o tio de seu marido.
Mas agora estava pondo a prova sua moralidade de outra maneira.
Anaís se perguntou se Lezennes tinha contado com isso.
— Assim, tal e como estão as coisas agora. — Disse finalmente
— Está vivendo com um homem que pode ser que não seja teu
parente?
— Sim! — Chiou Charlotte. — Oh, Anaís, o que devo fazer?
Não posso viver com um homem que não é de minha família! É
moralmente censurável, inclusive para uma viúva. Como se
estivesse vivendo uma mentira. Mas não posso, e não farei, me casar
com um homem a quem não amo, como amava a Pierre.
— Disse isso a Lezennes? Que não a ama?
— Sim, sim, é óbvio que sim! Tampouco posso mentir a ele. —
Agora as palavras saíam aos borbotões de sua boca. — Não quando
nos acolheu e nos deu um lar. Mas pareceu tão... desconcertante...
Oh, Anaís, acredito que inclusive se zangou comigo. Ficou
vermelho, cuspiu, e depois saiu correndo da sala.
A perfídia de tudo aquilo fazia Anaís tremer de raiva.
Lezennes sabia que o matrimônio faria que Charlotte fora sua ante a
lei. Teria todo o poder, o poder de controlar tudo o que era dela,
incluindo Giselle. O poder para pegá-la, provavelmente. Inclusive o
de trancá-la em um manicômio se quisesse.
— Charlotte, o visconde não tem direito a zangar-se contigo.
— Disse Anaís em voz baixa, mas firme. — Não deve acreditar que
o tem.
— Mas ele nunca me pediu nada e eu lhe devo muito. Não
tínhamos a ninguém a quem recorrer quando Pierre morreu. Nada
de valor para vender, exceto umas poucas joias, que se foram faz
muito tempo. Quando Lezennes apareceu na porta e nos ofereceu
um lar, foi como um presente do céu.
— E o que disse quando recuperou a compostura?
— Que não deveria tomar uma decisão precipitada. — Disse
Charlotte. — Que não queria substituir Pierre e que simplesmente
precisávamos passar mais tempo sozinhos, os três. Umas férias
possivelmente, disse. Soa muito bem, e pode ser que Giselle goste da
praia..., mas não sei como lhe dizer...
— Que não acredita que algum dia poderá amá-lo? —
Terminou Anaís a frase por ela, arqueando uma sobrancelha.
— Mas é assim, Anaís! — Gritou. — Sei. Às vezes é tão estrito
com Giselle... Suspeita de todas as pessoas que conhecemos. Em
ocasiões me sinto como se vigiasse todos meus movimentos, mas no
momento seguinte me dou conta de que são apenas minhas
imaginações. Como posso me zangar com ele quando não tem feito
nada mau? Sou uma ingrata desprezível!
— Não, Charlotte. Não é ingrata absolutamente.
Anaís se inclinou para frente e lhe segurou uma mão, embora
por dentro estivesse um pouco alterada.
Teria que perguntar se a frustração de Lezennes estaria
chegando a seu limite. Certamente teria imaginado que Charlotte
estaria tão contente de ter um teto sobre sua cabeça que desprezaria
seus dilemas morais. Isso teria feito ele.
Durante um instante, Anaís esteve tentada de colocar a mão
no bolso e lhe mostrar a carta de Sutherland. Mas só era isso, uma
carta de Sutherland, não dos pais dela. E, junto com a carta, teria
que lhe dar muitas explicações.
Charlotte desconfiaria dela imediatamente. Toda a operação
poderia desmoronar-se porque, quem lhe assegurava que ela era
menos malvada que Lezennes? Entretanto, cada vez estava mais
segura de que aquela mulher se dirigia ao desastre. Se tentasse levar
Giselle e afastar-se de Lezennes, o que seria esse homem capaz de
fazer para detê-la?
Tinham que andar com pés de chumbo.
Anaís se obrigou a relaxar e deu a Charlotte alguns tapinhas
na mão.
— Querida, talvez aprenda a amá-lo. — Murmurou. — Coisas
mais estranhas passaram. Não se preocupe por isso. E não te
precipite, rogo-lhe isso. Dê tempo, e possivelmente... Bom,
possivelmente comece a sentir um pouco de carinho para ele.
— Quanto tempo? E como poderia chegar a ocorrer isso
quando quão único sinto agora é... repugnância? — Charlotte se
interrompeu, ficou pálida e tapou a boca com uma mão trêmula. —
Oh, Deus! Não deveria ter dito isso. Foi horrível. Sou uma ingrata.
Anaís pensou com cuidado o que dizer a seguir.
— Não é horrível nem ingrata. — Respondeu. — É mãe..., o
que significa que deve andar com cuidado, Charlotte. Sempre deve
confiar em seus instintos. Deve fazê-lo. Eles manterão a sua filha a
salvo.
— A salvo? — Repetiu bruscamente.
Anaís sorriu fracamente e voltou a lhe segurar a mão.
— Soou muito veemente. — Apressou-se a dizer. — Nós duas
nos havemos posto melodramáticas. Estamos imaginando coisas que
não vão ocorrer. Já sei o que necessitamos. Uma taça de xerez em
vez do chá.
— Oh, ficaria muito agradecida! — Estava começando a
recuperar a cor. — E tem razão. Estou imaginando coisas, verdade?
— Sim, assim que o que precisamos é nos distrair um pouco.
— Anaís se obrigou a sorrir amplamente e se levantou de um salto
para puxar o cordão. — E tenho justo o que necessitamos. Cartas.
— Cartas? — Charlotte a olhou com curiosidade. — Então,
vamos jogar Piquet?
— Não. — Respondeu Anaís. — Espera aqui... Ah, Petit! Aqui
está. Por favor, leve o serviço do chá e nos traga um pouco do xerez
forte de Bernard, por favor.
O lacaio se inclinou para ela.
— Sim, madame.
— Só demorarei um momento. — Disse Anaís, e saiu
rapidamente do salão para subir as escadas.
Uma vez em seu dormitório, agarrou a caixa de ébano da
nonna Sofia que estava na mesinha e, quando voltou a descer as
escadas, viu que Petit já lhes estava servindo duas taças de vinho.
Anaís deixou a caixa na borda da mesa e a abriu. Recordou-se, um
pouco culpada, que não tinha desencardido as cartas ultimamente.
Embora, naquele caso, importava? Em realidade, não ia ler.
Não, ia lhe contar outro montão de mentiras. Ia inventar umas
quantas tolices, polvilhadas com a suficiente dose de verdade para
manter Charlotte em guarda. Quase estava começando a acreditar
que sequestrar à menina e à mãe seria muito mais fácil que tudo
isso: pôr uma mentira sobre outra como se fossem cal e gesso para
tapar uma rachadura no teto.
— Oh, céus! — Charlotte tinha se inclinado sobre a caixa. — O
que vais fazer, Anaís?
Esta se obrigou a rir com despreocupação.
— Vou conseguir que te relaxe, Charlotte. Vou conta-te o que
te proporciona o futuro. O que te parece?
Ela se voltou para trás com os olhos muito abertos.
— É isso um tarot? — Perguntou. — De verdade que sabe usá-
lo?
— I tarocchi, sim. — Disse Anaís, dando voltas nas cartas em
suas mãos. — Assim o chamava minha bisavó.
— Céus, tinha ouvido falar destas coisas, mas nunca as tinha
visto. — Disse Charlotte. — Estas cartas parecem muito antigas.
— Sim, são. — Respondeu Anaís com sinceridade, deixando o
maço sobre a mesa. — E terrivelmente delicadas. Nunca deixamos
fora da caixa a menos que estejamos lendo. Estiveram neste cofre de
ébano pelo menos durante dois séculos.
O maço se deslizou um pouco para um lado, abrindo-se na
mesa. Com indecisão, Charlotte tocou a carta superior com a ponta
de um dedo.
— Esta carta, o ré dava dischi, parece mais gasta que as outras
— Comentou. — De onde as tiraste?
Anaís a olhou nos olhos.
— O dom do i tarocchi o leva minha família no sangue. —
Disse honestamente. — Embora esteja acostumado a saltar uma ou
duas gerações. Minha nonna foi a última, e depois o dom, a
habilidade e as cartas, quero dizer, passou para mim.
Para ouvir a palavra "dom", Charlotte ficou sem fôlego, mas se
recuperou rapidamente.
— Ela podia ler o futuro de verdade?
— Viveu até os noventa e dois anos, e nunca se equivocou. —
Disse Anaís, e lhe encolheu um pouco o coração ao recordá-la.
Desgraçadamente, havia uma ou duas coisas nas que ela desejaria
que sua nonna se equivocasse.
— Mas não pode estar falando sério. — Charlotte levou uma
mão ao peito. — Sabe fazê-lo?
— Já o verá. — Respondeu Anaís embaralhando com cuidado.
— Depois poderá decidir se o i tarocchi diz a verdade. — Deixou as
cartas em meio da mesa. — Agora, pega as cartas e segura na mão.
— Pediu-lhe. — Deixe que sintam sua energia, Charlotte. Suas
emoções. As embaralhe se quiser. Logo, quando estiver preparada,
deixe o maço e separe três montes com a mão esquerda, dividindo
as cartas por onde queira, mas as levando só à esquerda cada vez
que faça um monte.
Charlotte a olhou com cautela.
— Muito bem.
Anaís a observou enquanto fazia o que lhe tinha pedido,
dividindo ao final o maço em terços uniformes que dispôs sobre a
mesa.
— Excelente. Agora, volte a juntar, da maneira que queira.
Quando o fez, Anaís dispôs as cartas seguindo o modelo
favorito de sua nonna: o círculo atravessado.
— O tarot é verídico, Charlotte, mas às vezes é caprichoso. —
Murmurou Anaís, jogando a última carta. — Não podemos lhe
ordenar nada. Mas me diga se houver algo que queira saber em
especial, e farei o que posso para obter as respostas.
— N...não. — Disse ela. — Suponho que só... meu futuro.
Deixou escapar uma breve risada.
Anaís desejou sentir-se leve sobre o assunto. Mas de repente já
não lhe pareceu uma brincadeira, a não ser uma carga. Poucas vezes
tinha tentado usar as cartas, embora fosse em brincadeira, porque
era algo a que resistia instintivamente. Havia visto muitas coisas,
sentada no colo de sua bisavó e respeitava o poder do i tarocchi, se
não suas próprias habilidades.
Fechou os olhos e passou a mão com a palma para baixo pelo
círculo, sem chegar a tocar as cartas. Era uma tradição, uma forma
de pedir a Deus que a guiasse para as interpretar, mas nesse
momento o maço parecia irradiar um calor surpreendente.
Alarmada, abriu muito os olhos e olhou o círculo. Parecia
perfeitamente normal. Nenhuma força sobrenatural lhe tinha
acendido fogo nem tinha empilhado tijolos quentes sob a mesa de
chá. Nos últimos dias tinha os nervos aguçados, isso era tudo.
Mesmo assim, voltou a primeira carta com reticência. Era o
três de espadas, um trio de espadas inseridas em um coração
sagrando. Uma carta muito significativa, e uma que nunca lhe tinha
aparecido a princípio.
Charlotte tinha retrocedido um pouco.
— Que aterrador. — Disse com voz débil. — Por favor, me
diga que essa carta não tem nada a ver comigo.
O temor de Anaís ia crescendo por momentos.
— É estranho que uma imagem ou um número prediga algo.
— Disse. — A interpretação de cada carta troca segundo sua posição
no círculo, e dependendo da carta que tenha ao lado e de outras
muitas variáveis.
— Então, vais virar mais cartas?
Anaís assentiu e apanhou três mais.
— Ah. — Disse.
Charlotte riu com nervosismo.
— O que vê? Espero que algo que não esteja relacionado com
espadas nem com sangue.
— Não, nada definitivo. — Murmurou ela.
Seguiu o caminho do círculo, sentindo-se cada vez mais
incômoda, como se a roupa lhe apertasse ou fizesse muito calor na
sala. Sentia a palma da mão direita como se estivesse queimada e a
pele lhe formigava com uma espécie de sensação desagradável... sua
própria culpa aguda, sem dúvida.
Mesmo assim, desejou com todas suas forças não ter ido
buscar as cartas. Aquele dia as sentia estranhas. Disse a si mesma
que era pelo medo que tinha de Lezennes.
Quando teve virado todo o círculo, recostou-se na cadeira e
jogou os ombros para trás para aliviar a tensão. Charlotte tocou a
carta que tinha mais perto.
— Esta carta é bonita. — Disse. — O que pode dizer dela?
— Pouca coisa que não saibamos já. — Respondeu Anaís,
fazendo um movimento circular com a mão pela parte esquerda do
círculo. — Aqui vemos que tem feito uma longa viagem. Esta ordem
quer dizer que viajaste da Inglaterra acredito, não sua viagem a
Bruxelas. Teve uma vida feliz, a maior parte do tempo.
— Oh, sim. — Disse Charlotte com melancolia. — Fui
abençoada.
Anaís apanhou a seguinte carta e sentiu uma cãibra, como
uma pequena descarga de eletricidade estática na mão. Hesitou uns
instantes. Ainda não era tarde para começar a rir e atirar as cartas ao
chão.
— Anaís?
A voz de Charlotte parecia proceder de muito longe.
— Sinto muito. — Respondeu, e passou o dorso da mão pela
têmpora para afastar um cacho que lhe tinha soltado do coque. —
Tinha perdido o fio de meus pensamentos.
Charlotte tocou a carta levemente com um dedo.
— Parece triste.
— Está triste. — Respondeu Anaís com voz um pouco
tremula. — Esta carta, o guerreiro, representa a pessoa que te
deixou. Vê como olha para outro lado? E a lua em quarto
minguante?
— Sim. — Disse Charlotte, pronunciando a palavra com
vacilação. — Quem é? Uma pessoa real?
Anaís sabia sem dúvidas.
— Este guerreiro poderoso é seu marido. É o mensageiro de
Deus que passou deste mundo para o seguinte.
— Oh! — Exclamou Charlotte, que se ergueu na cadeira. —
Anaís! Está certa de que não está inventando isso?
Anaís negou com a cabeça. Logo que pôde afastar o olhar das
cartas.
— Não, está muito claro. — Murmurou. Tremia-lhe um pouco
a mão. — Este homem era sua força e sua luz. A lua minguante que
está perto desta carta, o quatro de copas, assim o diz. Mas a luz está
desvanecendo. Passou feliz, Charlotte. Está em paz e te espera ao
outro lado do véu.
— De verdade? — Sussurrou ela.
— Estou convencida. — Disse com sinceridade, porque nesse
momento a sinceridade parecia a melhor opção. Apanhou a carta
que estava junto à anterior. — Esta carta, o seis de espadas... esta
pessoa leva uma carga muito pesada. — Disse Anaís. — Vê a bolsa
que leva? Uma bolsa cheia de armas. Representa seu passado mais
recente. Estiveste lutando uma batalha longa e exaustiva, Charlotte,
e aqui na Terra há muita responsabilidade que recai em ti.
— Oh! — Exclamou Charlotte rapidamente.
— Esse dever, como a bolsa cheia de espadas, cai pesadamente
sobre teus ombros. Mas a carta anterior, o guerreiro, está sentado
sobre ti, metafórica e celestialmente. Cuida de ti. Confia que levará a
cabo suas tarefas e atuará com o maior cuidado possível. Está
seguro de que escolherá corretamente.
O rosto do Charlotte se contraiu de pena.
— Oxalá eu tivesse essa fé em mim mesma!
— Mas aqui. — Anaís voltou a seguinte carta e lhe deu uns
golpezinhos — Aqui vemos algo que ameaça sua paz. Esta carta...
ah, sim, representa uma grande preocupação. Algo que esteve te
seguindo durante algum tempo, diria eu.
— Sim? — Disse Charlotte ansiosa.
Anaís girou a carta que estava debaixo.
— O fante dava dischi. — Murmurou. — E esta, acredito que é.
Sim, é Giselle.
Charlotte ofegou.
— Giselle! Mas... É um moço, não é assim?
— Sim, mas o que devemos entender é o simbolismo. —
Respondeu Anaís. — Há algo sobre Giselle que a preocupa,
verdade? Algo que seu marido compreendia. E agora se sente
perdida. É algo que te supera.
A carta representava um jovem guerreiro andrógino com um
falcão em uma mão. Somente levava uma bota e tinha deixado o
escudo a um lado. O significado não poderia estar mais claro. Com
pouca convicção, Anaís girou as seguintes cartas, resistindo ao
impulso de as atirar ao chão com um varrido do braço.
— Charlotte. — Disse em voz baixa. — Entende o que significa
o termo "augúrio"? O significado original da palavra?
— Eu... Sim. Por quê?
Anaís passou o dedo pela borda gasta da carta.
— O fante dava dischi representa uma pessoa jovem que tem
um segredo. O pássaro é o símbolo das coisas ocultas. Do
conhecimento que não se liberou. Do augúrio, literalmente.
Entretanto, é um poder que a jovem guerreira ainda não pode
controlar e está receosa de usar. Tem um escudo para a batalha, vê?
Mas não o agarrou. Não está preparada. Em lugar disso, olha a sua
direita, ao guerreiro Carbone, de forma inquisitiva.
— Sim? — Disse Charlotte com voz rouca. — Continua.
— Esta jovem guerreira procura um guia. — Disse Anaís com
simplicidade. Voltou a tocar brandamente a primeira carta do
guerreiro. — Mas Carbone está se afastando por volta do quarto
minguante. Necessita, urgentemente, um novo guia um novo
mentor.
— Mas... Mas o que significa tudo isso? — Perguntou
Charlotte fracamente.
— Que a carga de Giselle é muito pesada, Charlotte, e você
não pode continuar carregando-a. Necessita ajuda.
Anaís levantou o olhar e viu que Charlotte tinha começado a
chorar. As lágrimas lhe deslizavam silenciosamente pelas
bochechas, como se não quisesse enxugar-las para não as fazer reais.
Anaís sentia náuseas, como se estivesse presenciando um acidente
espantoso e, mesmo assim, não pudesse afastar o olhar. Não tinha
querido isso. Nunca deveria ter começado.
"O poder do i tarocchi é muito forte, bela", podia ouvir o que dizia
sua bisavó. "Agarra-o como agarraria a uma serpente, agarrando-a com
força por debaixo da cabeça."
— Quer que pare? — Perguntou Anaís, rezando para que lhe
dissesse que sim. — Diga-o, Charlotte, e tirarei de um golpe as
cartas da mesa.
Charlotte deixou escapar um suspiro tremente.
— Não. Continua.
— Acredito que vimos o passado e também o presente. —
Disse Anaís pensativa. — Vejamos agora o futuro. — Levantou
todas as cartas exceto as duas últimas. — Quando deixou seu lar
pela primeira vez, Charlotte? Quando partiu da Inglaterra?
— Faz mais de dez anos — Respondeu com voz vacilante. —
Parti para ir à escola em Paris.
Anaís a olhou como se a avaliasse.
— E me disse que não tem família. — Murmurou.
— N...não.
— Não. — Anaís arqueou uma sobrancelha. — Entretanto...
Charlotte estava limpando as lágrimas com o dorso da mão.
— Entretanto, o que?
— Esta carta, o oito de ouros, uma cesta cheia de fortificações,
significa que seu mundo está cheio. — Disse Anaís. — Sua colheita
foi abundante, Charlotte. Houve riqueza e amor em abundância.
Um mundo singelo, mas cheio de... Sim, de muita gente, acredito.
Deixou para trás tudo isso?
— Eu... não queria. — Disse Charlotte fracamente. — Parti
para ir à escola. Sempre quis retornar. Mas então conheci Pierre e
tudo mudou.
Anaís virou a penúltima carta.
— E este homem, IL cavaliere dava spade, o cavalheiro de
espadas, é um guerreiro que se entristece por você. — Disse,
pedindo a Deus para terminar essa leitura tão terrível. — Deixaste-o
para trás. Está preparado para lutar por ti, Charlotte, mas sente o
coração pesado e sua espada... olhe-a, deixou-a cair.
Charlotte deu um pequeno grito e levou as pontas dos dedos à
boca.
— É meu... pai?
— Bom, não é um homem que esteja morto. — Respondeu
Anaís. — Isso está claro. Mas não me ocorre quem mais pode ser.
— Oh! — Exclamou Charlotte, ruborizando-se. — Oh, eu
gostaria tanto de retornar a casa!
— É isso o que quer? — Perguntou-lhe rapidamente. — Voltar
para casa?
— Eu não... não posso.
De repente se fechou em si mesma e Anaís, prudentemente,
deixou-a estar. Em lugar disso estendeu o braço e, com uma mão
que tremia visivelmente, virou a última carta, que estava quente
como se fosse estalar em chamas em qualquer momento.
— Santo céu. — Murmurou, olhando-a. — Muitas espadas.
— O dois desta vez. — Sussurrou Charlotte. — Anaís, o que
significa?
— O guerreiro jovem e o guerreiro de mais idade. —
Murmurou Anaís, estudando as duas figuras. — Giselle está
olhando para ele em busca de guia. Vê estas pequenas flechas? As
maldades do mundo real voam para eles, mas têm suas armas
preparadas. Estão bem preparados para a batalha.
— Por que há dois? — Perguntou Charlotte.
— Porque o jovem guerreiro encontrou seu novo mentor.
Olhe, leva o joelho ao chão em deferência a seu poder. Ele olha para
baixo e lhe oferece o braço. Sua força.
— Mas não é.. Lezennes, certo?
Anaís negou com a cabeça lentamente.
— Definitivamente, não. Este homem é alguém de sua mesma
espécie. Não pode ser outro.
— De sua mesma espécie?
Anaís levantou o olhar para observar a Charlotte e pôs os
dedos firmemente sobre a carta.
— Não é Lezennes. — Repetiu. — É seu guardião.
Charlotte ficou sem fôlego.
— Seu... guardião?
Anaís pôde ver entendimento em seu olhar.
— Sim. — Disse com tristeza. — É o homem que está
procurando, Charlotte. Lezennes não pode te ajudar.
— Mas quem é? Quero dizer, qual é seu nome? E onde o
encontrarei?
— Não sei. — Respondeu Anaís com sinceridade. — Mas ele a
está esperando. IL cavaliere dava spade, o homem aflito; através dele
ocorrerá tudo. Sabemos por sua posição no centro do círculo.
— Oh. — Charlotte se inclinou para diante e pôs a palma no
centro das cartas. — E tudo isto... isto é o que vai ocorrer a Giselle?
— É o que deveria lhe ocorrer. — Respondeu Anaís, passando
um dedo pelo círculo de cartas. — Mas vê isto? E isto? Estas cartas
representam as difíceis eleições que terá que fazer enquanto isso.
Terá que cruzar muitas pontes.
— O que devo fazer? — Sussurrou Charlotte. — Como devo
começar? Oh, Anaís, não posso dar um passo em falso. Estamos
falando de minha filha.
Por fim, Anaís afastou as cartas da mesa.
— Começa com muito cuidado. — Respondeu. — Não faça
nada, nem diga nada, até que as coisas se esclareçam.
— E o farão? — Charlotte a olhou, suplicante. — Esclarecer-se,
quero dizer...
Muito mais alterada do que parecia, Anaís guardou as cartas
no cofrinho de madeira.
— Farão. — Disse com calma. — Quando, e de que maneira,
não sei. Você não faça nenhuma tolice. Observa e espera.
— Observar e esperar. — Repetiu, como um eco oco.
Tinha espremido seu lenço na mão e voltou a recostar-se na
cadeira, com um ar de derrota. Tinha sido muito. Quase tinha sido
cruel. Mas nada disso tinha sido incorreto.
O plano que Anaís tinha tido de usar as cartas para divertir-se
tinha fracassado estrepitosamente. De fato, teria sorte se, ao final,
não tinha piorado as coisas. Se sua desastrosa massa de cal e gesso
não se rachava e caía sobre suas cabeças.
Uns minutos depois, Anaís estava acompanhando a sua
convidada à porta principal. Charlotte ainda parecia um pouco
aturdida.
— Charlotte. — Disse-lhe Anaís, voltando para sua
personalidade feliz de antes. — Eu não entendo nada disto. Só tenho
lido as cartas. Talvez o que tenha dito faça sentido para ti, mas para
mim não significa nada. Entende-o?
Charlotte assentiu e se deu a volta para partir.
— Mesmo assim. — Acrescentou Anaís detrás dela. —
Acredito que seria sensato se não contasse a ninguém o que ocorreu
não te parece?
Charlotte sacodiu lentamente a cabeça.
— Como poderia sequer descrevê-lo? — Replicou. — Nem
sequer acabo de entender o que passou.
Seguindo um impulso, Anaís se inclinou para diante e deu em
Charlotte um rápido abraço.
— Talvez lhe encontre sentido mais tarde. — Sugeriu. — Mas
Geoff diz que sou um pouco boba.
— Não acredite nele. — Disse Charlotte, claramente sem saber
no que acreditar. — Mas, Anaís, se perceberes algo mais claro, me
dirá?
— Pode contar com isso. — Ela lhe segurou as duas mãos e as
apertou com um gesto reconfortante. — Agora, vai Charlotte, e fica
tranquila se puder. Nós veremos amanhã à noite. E, enquanto isso,
tentarei pensar o que posso fazer para desviar o interesse de
Lezennes, ao menos temporalmente.
Anaís a observou enquanto descia os degraus e corria entre
duas carruagens que passavam. Com as mãos apertadas aos flancos,
fechou a porta e se apoiou nela, resistindo ao impulso de esmurrá-
la.
Santo Deus, que idiota era! O que tinha começado como uma
brincadeira se converteu em um pesadelo. Passou as mãos pelas
saias, como se assim pudesse sacudir a sujeira do que acabava de
fazer. Mas não podia. Tinha sido uma néscia ao faltar com respeito
ao i tarocchi. Ao tratá-lo como se fosse uma brincadeira. Não, pior
ainda: ao tratá-lo como um meio para manipular uma pessoa
inocente.
Tudo o que tinha ocorrido aquela tarde a fazia sentir-se suja.
Usada. E por sua própria mão, além disso. A única coisa que tinha
conseguido foi aterrorizar Charlotte.
Amaldiçoando, separou-se da porta como se impulsionada
por uma mola e subiu correndo as escadas.
Capítulo 12

"Quem sabe quando pode lutar e quando não, sairá vitorioso."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Geoff retornou a casa depois de ter passado a tarde rondando


pelas galerias de arte e as cafeterias de Bruxelas, uma aventura em
que tinha incluído um encontro, aparentemente casual, com um dos
contatos de DuPont, um homem que tinha Lezennes sob vigilância.
Era uma tarefa bastante complicada, tinha-lhe explicado o
contato, porque grande parte do chamado trabalho diplomático do
visconde tinha lugar no interior dos palácios de Bruxelas. Apesar
disso, o homem tinha sido testemunha, na tarde anterior, de um
rápido intercâmbio em La Monnaie, o teatro real da ópera, com um
homem que, quase com segurança, era um capanga do Antigo
Regime.
Cada vez, parecia mais provável que Lezennes tivesse
tendências legalistas, embora Geoff não se importasse com a política
da França. Só lhe preocupava Giselle Moreau. Quando ela fosse
suficientemente mais velha e tivesse a suficiente força emocional,
podia dar sua vida pelos velhos reis borbones se quisesse. Entretanto,
até então, os guardiães da Fraternidade tinham que protegê-la.
Geoff ainda não sabia como ia conseguir isso. Assim, se sentia
bastante enfastiado quando entrou na casa da Rue de l'Escalier e
lançou o chapéu à mesa do saguão. Dirigiu-se imediatamente ao
salão e se serviu de três dedos de uísque. Esvaziou o copo em dois
goles e foi ao andar superior para trocar de roupa para o jantar.
Entretanto, ao chegar acima escutou uns débeis ruídos surdos,
como se alguém estivesse chutando uma bola em algum dos andares
superiores. Esqueceu o fato e, depois de lançar o casaco sobre uma
cadeira, puxou o cordão para pedir água quente para a banheira.
Estava arrancando as botas de um puxão quando entrou seu criado
de quarto, para ver o que necessitava.
Os golpes rítmicos no piso superior se voltaram mais intensos.
— Que demônios é esse ruído, Mertens? — Perguntou, tirando
o colete.
— Acredito que é madame MacLachlan. — Disse o valete
enquanto segurava o casaco e lhe alisava as rugas. — Parecia estar
em um estado de ânimo estranho, senhor, se me permitir a
expressão. Subiu ao sótão faz uma hora.
— Ao sótão? — Repetiu, lançando as botas ao chão. — Para
fazer o que? Dançar o ghillie callum10?
Aparentemente, Mertens não soube traduzir o gaélico para o
flamenco, porque ficou olhando-o inexpressivamente.
— Não importa.
Geoff jogou olhou o relógio suspirou e começou a vestir, outra
vez, as calças.

10
O termo "Dança da Espada" invariavelmente se refere a "Ghillie Callum", interpretada por um
dançarino solitário sobre duas espadas, postas como uma cruz, no chão.
Apostaria qualquer coisa que algo tinha ido mal no chá com
Charlotte Moreau. Talvez a dama tampouco tivesse aparecido
aquele dia. Ou talvez sim o tivesse feito...
Depois de fechar o último botão, dirigiu-se à porta.
— Diga à senhora Janssen que não se preocupe com o jantar.
— Disse. — Pediremos que nos subam algo frio mais tarde. Vou
acima, descobrir a causa do estado de ânimo da senhora
MacLachlan.
Subiu os dois lances de escadas em meias três quartos, abriu a
porta do campo de jogo de cavalheiros de monsieur Michel e olhou
a seu redor. Viu com surpresa que Anaís estava no amplo e
ensolarado espaço que rodeava o saco de boxe, com um comprido
florete cintilando na mão.
Com o braço esquerdo elevado elegantemente por detrás,
permanecia em guarda ante o saco, que oscilava ligeiramente. Usava
umas calças cômodas de nanquim e uma ampla camisa branca.
Recolheu o cabelo em uma trança, presa com um laço branco. Como
se estivesse se movendo ao ritmo de uma música que unicamente
ela pudesse escutar, deu uma estocada, afundando a lâmina no saco.
Era evidente que não se tratava da primeira vez que o fazia. Já
se podia ver as vísceras do saco por diversas fendas e buracos,
sangrando serragem e bolinhas de algodão que caíam ao chão.
Depois de tirar de um puxão a lâmina, Anaís levou a cabo uma
retirada perfeita e começou a mover-se de um lado a outro,
enfrentando seu inimigo invisível enquanto executava os passos
com uma habilidade que ele poucas vezes tinha visto.
Durante alguns momentos ficou ali, com um ombro apoiado
no marco da porta de forma que ela não podia vê-lo. Perguntou-se
se ela não sentiria sua presença, mas parecia que seu único objetivo
era o saco de couro e era claro que já estava ali há algum tempo.
Respirava fortemente, embora não chegasse a ofegar mas os cachos
que lhe rodeavam a fronte estavam úmidos de suor.
Ele sabia, é obvio, que era de má educação observar alguém
sem ser anunciado. Mas estava desfrutando muito para entrar na
zona iluminada do sótão.
Ela se aproximava de seu objetivo uma e outra vez, com suas
esbeltas costas perfeitamente alinhadas, atacando o saco como se
estivesse imersa em uma destruição elegante e planejada. O florete
era uma arma longa que requeria paciência e uma cadência
metódica. Apesar de seu evidente mau humor, parecia que ela
possuía ambas as coisas em abundância. Geoff sentia uma poesia
inegável em seus movimentos, uma fluidez e uma elegância que
desmentiam a violência de seus atos.
Sob a camisa, seus peitos arredondados se balançavam e
bamboleavam, tão desatados como seu mau gênio. As calças de
nanquim se ajustavam a seus quadris de uma forma que era
decididamente atlética e deliciosamente feminina.
Também era profunda e carnalmente erótica.
E, com a seguinte estocada, deu-se conta de uma coisa. Algo
muito mais inquietante que a ferocidade, algo que reprimia Anaís.
Desejava-a.
E estava se cansando disso.
Queria Anaís entre seus braços. Debaixo dele. Arqueando-se
para sair a seu encontro, ofegando.
Oh, o desejo em si não era nada novo: tinha-a desejado no
primeiro momento. O anseio não tinha desaparecido. Não, mas bem
ao contrário. Viver junto a ela nos últimos dias tinha sido um
inferno. Vê-la do outro lado da mesa durante os jantares, um
exercício de controle físico. E saber que dormia sozinha em sua
cama, cada noite, a poucos metros dele, a mais horrível das torturas.
E agora isto.
Por que negar-lhe pensou, observando como voltava a
afundar o florete no saco. Sua lógica estava começando a fraquejar.
Durante a maior parte do tempo era um homem de honra, mas não
estava comprometido com ninguém. E ela... Bom, ainda estava
chorando seu amante perdido e esperando que chegasse seu
príncipe, isso estava claro. Fosse quem fosse por quem ela se
interessasse... Bom, não seria ele, e melhor assim.
Mas Anaís o desejava, o tinha convidado à sua cama. Não
tinha expectativas e não carecia de experiência. E, embora ele tivesse
desconhecido essa informação, seus movimentos lhe haveriam dito
que essa mulher tinha perfeito controle sobre seu corpo. E ele
confiava o suficiente em suas habilidades para saber que, quando
por fim ela gritasse de prazer embaixo de seu corpo, teria esquecido
seu Romeo toscano... ao menos durante um momento.
Sentiu que seu pênis lhe sacudia na coxa com insistência.
Trocando de postura, manteve a vista fixa na esbelta figura de
Anaís, enquanto esta seguia movendo-se pelo chão de madeira.
Com os olhos brilhantes e a mandíbula bem apertada, em um
determinado momento, Ela ricocheteou contra a borda da mesa de
bilhar, girou e voltou a introduzir o florete em metade do saco
fazendo um corte uniforme. Em seus movimentos havia uma
inexplicável fúria, mas era um tipo de raiva cuidadosamente
contida, porque Giovanni Vittorio lhe tinha ensinado bem.
Em sua seguinte retirada, caminhou para trás até a borda da
mesa de bilhar, golpeando-a com força como se um inimigo
implacável a estivesse fazendo retroceder. Então o surpreendeu ao
saltar e dar uma cambalhota para trás, rodando literalmente pela
toalha da mesa com o florete ainda na mão, e caindo de pé do outro
lado.
Ergueu-se ofegando, mas perfeitamente estável.
Ele saiu das sombras que rodeavam a porta e aplaudiu
devagar.
— Bravíssima!
Ela levantou o queixo. Seus olhos escuros e expressivos
pareciam ainda maiores do normal.
— Geoff?
Ele se aproximou lentamente.
— Vittorio te ensinou tudo isso?
— Algumas coisas. — Com receio, ela o olhou enquanto se
aproximava. — Quanto tempo leva aí?
— O suficiente.
Quando ele ainda estava cortando a distância que os separava,
ela assinalou à parede com a cabeça.
— Não terminei. — Disse. — Pega uma espada.
Ele apoiou o quadril na borda da mesa de bilhar.
— Céus, sim estás de mau humor. — Murmurou, passando o
olhar por seu corpo. — Mas sinto debilidade pelas mulheres com
armas letais.
Anaís deve ter percebido algo em seu tom de voz, porque se
aproximou.
— Sabe esgrima, certo? — Perguntou-lhe, olhando-o de cima
abaixo.
— Você o que crê?
Ela levantou o queixo.
— É bom?
Ele deu um meio sorriso e levantou um ombro.
— Não acredito que pudesse dar uma cambalhota para trás e
cair com a espada ainda na mão. — Disse. — Mas sim, acredito que
poderia te satisfazer.
Ela encolheu os ombros.
— Certamente sabe que esse movimento era puro espetáculo.
Em uma briga de verdade, possivelmente faria que lhe cortassem o
pescoço. — Voltou a fazer um gesto com a cabeça para a prateleira
de madeira. — Venha. Vejamos o que podemos fazer.
— Não tiveste suficiente, não é?
— Não, ainda não.
Geoff se separou da mesa de bilhar, dirigiu-se à prateleira e
apanhou o primeiro florete que viu. Ela o seguiu e trocou sua arma
por outra.
— É muito atenta, querida. — Disse, assinalando a arma com a
cabeça. — Um homem mais inteligente se limitaria a te pedir que se
sentasse e que lhe contasse por que está tão alterada.
— Em outro momento, possivelmente. — Ela jogou o braço
para trás para manter o equilíbrio e levantou o queixo e a espada de
uma vez. — Em guarda!
— Acredito que já tivemos esta conversação antes. —
Murmurou ele. Mas também ficou em guarda.
Durante uns vinte minutos lutaram com ferocidade. Geoff não
lhe dava folga, sabia que era o melhor. Anaís era suficientemente
boa para dar-se conta de que ele não fazia uso de sua vantagem.
Mas, em realidade, sua única vantagem era sua altura, seu
alcance e o fato de que ela já estava cansada. Entretanto, a ofensiva
de Anaís não diminuiu. Arremeteu contra ele várias vezes e em cada
uma das ocasiões ele bloqueou sua investida e a atacou. Fez ameaça
de atacá-la em um flanco e logo foi ao pescoço. Ela o esquivou à
perfeição e depois se dirigiu para ele com uma rápida estocada, lhe
agarrando a manga. Assim continuaram, Anaís frequentemente na
defensiva, mas sem ceder nada.
E enquanto se moviam pelo polido chão de madeira de
carvalho, raspando-o e golpeando-o com os pés e chocando as
lâminas, ele se deu conta de que uma coisa que Rance havia dito era
verdade. Pelo menos naquele aspecto, ela estava tão qualificada
como qualquer um para ser um guardião. Nem um homem entre
cem, teria sobrevivido a seu arremesso.
Mas ele era esse homem entre cem... ou deveria havê-lo sido.
Durante um instante, baixou a guarda e ela o atacou por baixo,
para a artéria femoral.
— Attenzione! — Exclamou ela.
Mas as lâminas colidiram antes que pudesse terminar de
pronunciar as palavras.
— Oh, já o faço. — Respondeu ele, riscando círculos com o
florete e obrigando-a a retroceder. — Dá-te conta de que está
falando outra vez em italiano?
— Perdão. — Sorriu com malícia e se esquivou de novo. —
Mas, por isso vejo, entende-o.
— Sì, signorina.
Com as lâminas chocando-se furiosamente, fazendo um
estrépito som quase ensurdecedor, Geoff a fez retroceder lentamente
com movimentos pesados e precisos e, dada a crescente fatiga de
Anaís, muito efetivos. Ela fez uma ameaça e logo lhe atacou à altura
da bochecha, mas sua coordenação não chegou a ser perfeita. Ele
apanhou seu florete e o tirou de cima, jogando-a outra vez para trás.
No seguinte segundo ela cometeu seu engano. Fez uma rápida
retirada dupla, aproximando-se muito do grosso colchonete de
boxe. Tropeçou com o calcanhar na borda. Cambaleou para trás e o
florete lhe escapou, caindo no chão e fazendo um ruído metálico.
Aterrissou sobre o traseiro, com o braço do florete estendido, mas a
mão vazia.
Respirando pesadamente, Geoff cravou um joelho no chão,
entre os dela, e lhe pôs a lâmina sobre o ombro.
— Touché. — Disse ela entre ofegos.
— Non. — Replicou Geoff, atirando a arma a um lado. — Pas
de touché.
— Oh, não. — Cravou nele seus olhos negros com um olhar de
advertência. — Não te atreva a fazê-lo.
— O que?
— Não me conceda nem um ápice. — Ordenou-lhe, girando
sobre os cotovelos. — Maldito seja, nenhuma vez me deixe ganhar,
Geoff, ouve-me?
— Oh, pelo amor de Deus! — Ele caiu sobre seu quadril e o
cotovelo, frente a ela, e passou um braço pelo rosto para secar o
suor. — Não te dei nada, Anaís. Se tivesse estado descansada,
provavelmente teria me vencido.
Ela olhou para outro lado. Sua respiração estava se acalmando
enquanto tinha a vista perdida pela sala.
— Então, deixa que me recupere. — Disse finalmente. —
Começaremos de novo.
Roçou a bochecha com uma mão para fazer que voltasse a
olha-lo. Ela tinha perdido o laço do cabelo e seu cabelo se
derramava sobre o colchonete de couro.
— Anaís, o que ocorre?
Seus olhos brilharam.
— É que me sinto... prisioneira nesta casa. — Queixou-se. —
Frustrada. Tenho que fazer algo físico.
Talvez fosse sua oportunidade para lhe fazer uma oferta que
esperava que ela não rechaçasse.
Mas deixou passar e preferiu olhá-la nos olhos. O ar que havia
entre os dois crepitou com uma vibração sensual e mesmo assim ele
sentiu uma tristeza que o preocupava. Queria seduzi-la, sim. Mas
não assim. Ainda não.
— Anaís — Repetiu. — O que ocorreu?
— Por que tem que ter ocorrido algo?
Ela se sacudiu como se fosse se levantar, mas ele a impediu,
lhe enredando uma perna na sua.
— Querida, estivemos convivendo durante dias inteiros. —
Murmurou enquanto ainda lhe sustentava o rosto com uma mão. —
Acredito que sei reconhecer sua fúria desatada.
— Oh, esse é seu dom? — Murmurou ela, baixando o olhar a
sua boca. — A habilidade de colocar esse perfeito nariz anglo-saxão
nos assuntos de outros e chegar a uma conclusão?
— Até que esta missão tenha terminado querida, este assunto
é dos dois. — Respondeu, baixando a cabeça para a sua. Roçou-lhe
com a boca o pequeno montículo que tinha sob o olho.
Em resposta, ela o empurrou.
— Me deixe sozinha.
Mas ele não tinha vontade de cooperar. Sentia-se frustrado...
em mais de um sentido.
— Oh, acredito que terminamos com essa estratégia. —
Murmurou.
Se ela não falava, então domaria a esse animal selvagem.
Morria por sustentar essa chama contra seu peito, inclusive por
queimar-se com ela. E, de repente, o que mais convinha a Anaís, a
beleza assustadora de lady Anisha, e inclusive a ira de lorde De
Vendenheim... tudo deixou de importar.
Girou até colocar-se sobre ela, introduziu os dedos no cabelo
de sua têmpora e abriu a boca sobre a sua. Neste momento não
hesitou, mas sim a beijou da maneira mais carnal, profundamente,
na primeira investida e depois, impondo um ritmo lento e constante
que deixava claro o que queria dela.
Como se estivesse protestando, Anaís levantou o joelho direito
e o empurrou pelos ombros. Ele lhe apanhou as mãos com as suas
com decisão e as passou por cima da cabeça, sujeitando-lhe palma
contra palma enquanto continuava saboreando-a.
Tremendo debaixo dele, ela era como fogo e mercúrio de uma
vez: quente, vibrante e difícil de apanhar. Geoff desejava perder-se
em seu interior. Fazer que se rendesse a ele da forma em que uma
mulher se entregava a um homem. A cabeça estava começando a lhe
dar voltas ao respirar seu aroma e os testículos lhe estavam
esticando perigosamente.
Embaixo dele, ela se retorceu e fez um ruído de indignação,
lhe esfregando o pênis inchado contra o tecido das calças e
endurecendo-o até o limite.
Lhe apanhou a boca com a sua uma última vez e, a
contragosto, levantou a cabeça.
— Isso significa "para", amor? — Murmurou. — De verdade?
Embora lhe brilhasse os olhos, o desejo os tinha escurecido.
— Você pararia?
— Não de boa vontade. Mas sim, se a dama assim o desejar.
Ergueu-se e viu que Anaís estava tombada debaixo dele como
se fosse uma deusa lasciva. O decote da camisa estava aberto até o
esterno e seus cachos escuros brilhavam como mil diamantes
diminutos com o sol da tarde. Ao olhá-la, o coração lhe encolheu
com um desejo que não pôde compreender e teve a poderosa certeza
de que, pelo menos, nesse momento, seria capaz de fazer algo que
lhe pedisse.
Anaís não disse nada mais. Ele começou a passar o peso de
seu corpo ao outro braço, mas o brilho de satisfação no olhar dela o
deteve.
Amaldiçoou entre dentes, pressionou a frente contra a sua,
ainda respirando com dificuldade.
— Disse que queria o homem adequado por agora, amor. —
Disse com voz rouca. — E isso é o que te estou oferecendo. Quer que
te suplique?
— Não. — Sussurrou ela com voz misteriosa e sugestiva. —
Não quero que pronuncie palavras bonitas. Simplesmente, diz o que
desejas. E depois quero que seja você quem me faça suplicar.
Ia lhe deixar louco.
Estava seguro. Agarrou-a ainda com mais força e subiu as
mãos por sua cabeça, apanhando-a sob o peso de seu corpo.
— Anaís, quero te foder. — Disse-lhe. — Aí o tem. Está o
suficientemente claro? Desejo-te tanto que não posso respirar. E sim,
posso fazer que suplique. Conseguirei que ponha os olhos em
branco.
— Hmm. — Respondeu ela. — Isso sim que está claro. Segue
falando.
Lhe olhou a face, sua incrivelmente formosa face.
— Às vezes não posso dormir sabendo que está no quarto ao
lado. — Sussurrou. — Se dormir, sinto o calor de seu corpo em
sonhos. Sinto a pressão de seus seios em meu torso e seu cabelo
enredado em mim...
Ela o interrompeu com a boca, levantando a cabeça para beijá-
lo enquanto fechava os olhos, posando na bochecha suas pestanas,
impossivelmente negras.
Lhe soltou as mãos e deixou cair o peso de seu corpo nos
cotovelos, lhe embalando o rosto entre as palmas enquanto a
saboreava.
— Anaís. — Murmurou, lhe roçando a bochecha com os
lábios. — É preciosa.
— Não diga isso. — Replicou, lhe deslizando as mãos pelos
ombros até a parte baixa das costas. — Geoff, não tem que dizê-lo.
— Muito bem. Então, te demonstrarei isso. — Disse com voz
rouca, e a beijou de novo.
E o demonstrou com a língua e as mãos, lhe explorando a boca
lenta e docemente enquanto tomava com uma mão um seio
exuberante e perfeito, lhe acariciando o mamilo com o polegar.
Anaís suspirou de prazer e ele se levantou até colocar-se
escarranchado sobre ela, e depois tirou a camisa.
— Será melhor que feche a porta com chave. — Sussurrou.
— Sim. — disse ela, lhe percorrendo o peito com o olhar. —
Mas Geoff, eu...
Anaís se calou e engoliu em seco com dificuldade. Ele se
inclinou para voltar a beijá-la, enredando os dedos em sua gloriosa
cabeleira.
— O que é Anaís?
Ela fez uma careta.
— Passou muito tempo. — Disse. — E não sou muito... hábil.
Não como as mulheres à que está acostumado.
— Anaís, amor, uma mulher como você não necessita
habilidade. — Roçou-lhe a fronte com os lábios. — Para mim
também aconteceu muito tempo. Mas acredito que lembro como se
faz.
— Quanto tempo?
Ela o olhou com seriedade.
Ele pensou sobre isso e logo pôde recordá-lo. Era como se ela
tivesse deslocado todas as demais de sua mente.
— Uns meses, suponho. — Respondeu. — Nunca fui o tipo de
homem que mantém uma sucessão de amantes.
— Então, não há ninguém mais? — Perguntou com um débil
sorriso.
Ele negou com a cabeça.
— Não. — Murmurou. — E quando olho para você, pergunto-
me se alguma vez houve alguma.
— Mentiroso. — Disse, mas sorriu. Foi um sorriso lento e
sensual que sugeria que poderiam ter uma longa noite por diante.
Então levantou os braços. — Me dispa belo mentiroso.
Ele inclinou a cabeça e fez o que lhe pedia, despojando-a da
roupa devagar e com decisão, beijando-a sobre o rubor que apareceu
ao fazê-lo. Sua pele perfeita e perolada ia ficando descoberta
gradualmente, e ele se detinha para acariciá-la com prazer. Os seios
dela eram muito mais formosos do que recordava, apesar de que
não os tinha visto tão nus. Não lhe surpreendeu descobrir que tinha
umas pernas longas, mais musculosas que magras e que,
estranhamente, gostou disso.
A trança lhe tinha desatado por completo esparramava-se
como a seda entre suas mãos e lhe recordava da noite em que a
tinha segurado no Jolie Enjoe... recordava-lhe tudo o que então tinha
desejado. O que tinha temido. Que essa mulher era diferente.
Que poderia lhe custar caro.
O sol estava se pondo e Geoff se deu conta vagamente de que
tinha perdido a noção do tempo. Tirou com rapidez as calças e viu
satisfeito como ele abria muito os olhos com desconcerto, e depois
seu olhar voltava a esquentar-se.
Ele deu a volta e desceu para ela.
Anaís lhe aproximou os joelhos, balançando-o intimamente
enquanto jogava para trás a cabeça.
— Desejo-te. — Sussurrou. — Geoff, morro para te ter dentro
de mim.
A simplicidade dessas palavras lhe chegou ao coração. Beijou-
a na boca de novo, pensando que já podia morrer feliz por havê-la
beijado, e logo lhe deslizou os lábios para baixo, por seu flexível
pescoço. Beijou-lhe a clavícula e levou a boca para um mamilo,
sugando brandamente.

*****

Anaís sentiu que a boca de Geoff se fechava em torno de seu


seio e gritou pela intimidade. Afundou os dedos em seu cabelo,
jogou a cabeça para trás e a sensação a fez ofegar. Podia sentir o
delicioso desejo girando em seu interior, chamando-a ofegante, até
chegar a seu ventre.
Ele lhe acariciou o mamilo com a língua fazendo círculos até
que se endureceu, e depois desviou sua atenção ao outro seio.
— Geoff. — Ela inclinou a pélvis de maneira sedutora. —
Geoff, por favor.
— Supõe-se que tenho de fazer que suplique amor, não te
lembra? — Sussurrou, deixando um rastro de beijos por seu ventre.
— Mas como... — Fez uma pausa para ofegar. — Isso não era
suplicar?
— Para nada.
Rodeou-lhe o umbigo com a língua e seguiu para baixo.
— Geoff? — Sussurrou ela, indecisa.
Ele posou os lábios na face interna da coxa.
— Posso? — Murmurou.
Ela entendeu vagamente o que lhe pedia. Não era
inexperiente... não de tudo. Apoiou as mãos no colchonete e se
aferrou a ele.
— Não sei. — Respondeu.
Lhe beijou a outra coxa.
— Ah. — Disse. — Então, temos que descobrir.
Com a mesma suavidade com a que acariciaria uma flor,
abriu-a com o polegar e o indicador e deslizou a língua em sua
calidez, fazendo com que ela se afogasse de prazer. O desejo que
estava encolhido em seu interior brotou imediatamente. Geoff a
acariciava ligeira e delicadamente, de uma forma tão íntima que ela
teria morrido de vergonha se a sensação não tivesse sido tão
perfeitamente maravilhosa.
Em lugar disso, parecia bem mais que ia morrer de prazer.
— Anaís, você é formosa. — Murmurou com os lábios contra
seu lugar mais íntimo. — Me deixe que lhe demonstre isso.
Nesse momento a acariciou mais profundamente, fazendo que
estremecesse. Ela deixou escapar um som gutural e qualquer
esperança que tivesse tido de resistir a seus encantos se esfumou.
Queria perder-se naquilo, nessa carícia mágica que parecia
desenhada para dobrá-la a sua vontade.
Geoff não parava de acariciá-la, provocando-a com a língua
até que ela tremeu. Ele deslizou primeiro um dedo e logo outro em
sua intimidade. Estava úmida e palpitante. Seu canal feminino
empurrava traiçoeiramente para ele, lhe rogando que lhe desse
mais.
E então, algo impossível começou a acontecer.
Algo novo e inesperado.
Sua respiração se voltou rápida e ofegante e afundou as mãos
no colchonete enquanto se retorcia. Foi como se perdesse a
consciência, como se sua mente se unisse a seu corpo ou partisse a
outro lugar. Os franceses o chamavam de "a pequena morte", e ela
estava começando a temer que sabia por que.
Quando o prazer a alagou com toda sua força, foi como
inundar-se em um mar quente que se propagava por todo seu corpo
e a enchia de êxtase. Rendeu-se a isso. Perdeu-se na sensação,
permitindo que a arrastasse em uma onda de deleite delicioso e
erótico.
Pouco a pouco foi recuperando os sentidos, sendo consciente
do mundo que a rodeava. Sentiu a cabeça de Geoff comodamente
instalada sobre seu ventre, e a barba, que lhe raspava ligeiramente a
pele. Ouviu os últimos pássaros do dia cantando ao outro lado das
janelas. Levantou a cabeça e viu que o céu estava tingido de
púrpura, o último estalo de vida em um dia que chegava a seu fim.
E com essa espetacular luz do entardecer, ela pôde ver com
claridade a inconfundível marca tatuada na pele de Geoff, de cor
negra azulada acima do cremoso montículo de sua nádega
esquerda. A marca da cruz dourada, a Fraternitas Aureae Crucis,
colocada sobre um cardo para indicar sua descendência da linha
mais poderosa da ordem. A linha escocesa.
Isso a surpreendeu e lhe fez recordar de novo quem era ele.
Por que estavam ali. E o breve que seria esse prazer.
Com um grunhido, deixou cair a cabeça para trás sobre o
colchonete.
— Muito bem. — Disse, colocando o dorso da mão no rosto. —
Agora nem sequer tenho forças para suplicar. Faz comigo o que
queira.
Ele riu entre dentes sem levantar a cabeça, um som leve que
retumbou em seu peito e que vibrou no corpo do dela como se
fossem um só.
Como se fossem um só.
Oh, agora ela sabia como começava aquilo, como podia
perder-se. Recordou uma vez mais como o desejo podia a afastar de
sua natureza boa e sensata. E não lhe importava. Por uma vez não
queria pensar em ninguém que não fosse ela mesma, que não fosse o
prazer que esse homem podia lhe dar. Tomou a mão e puxou-o para
cima, separando as pernas para acolhê-lo.
Geoff fechou os olhos e se ajoelhou, sujeitando com uma mão
sua ereção, que era grossa, venosa e de uma longitude um pouco
desconcertante.
Sim, esse homem que ela não merecia e que mesmo assim
desejava, parecia delicioso e magnífico. Seu peito era largo e suave, e
seus músculos, duros e finamente delineados, como se estivessem
esculpidos em mármore. Lhe pôs as mãos no peito e o sentiu
estremecer, sentiu a vida e a calidez que ferviam nele.
Curvando os lábios em um sorriso, ele se inclinou sobre ela. O
cabelo de cor bronze brilhante lhe caía para diante, escurecendo as
maçãs do rosto enquanto se movia e começava a introduzir-se nela.
Deixou escapar um pequeno grunhido de esforço... ou mas
bem de controle. Como resposta, Anaís lhe pôs as mãos na cintura e
o atraiu ainda mais para ela, levantando de uma vez os joelhos. Ele
apoiou as mãos no colchonete por cima dos ombros dela e jogou seu
peso para diante, empurrando e enchendo-a tão profundamente que
ela começou a temer que não fossem se encaixar.
Mas encaixaram.
Oh, encaixaram. Perfeitamente.
Moveu os quadris com impaciência para lhe permitir que
aprofundasse naquela deliciosa intimidade. Ele voltou a grunhir e os
tendões do pescoço lhe esticaram como cordas de suspensórios. Saiu
dela e voltou a entrar, mais profundo ainda, fazendo que esse doce
estremecimento começasse de novo.
— Oh. — Sussurrou ela. — Isto é... delicioso.
E era. A boca dele tinha sido maravilhosamente pecaminosa,
mas aquilo era ainda mais. E, entretanto, resultava completamente
natural, como respirar. Como algo que estivesse destinado a ser
assim. Algo perfeito.
Investindo de novo, Geoff esticou os braços e lhe marcaram os
músculos e os tendões.
— Anaís. — Sussurrou. — Somos nós, amor. Juntos somos
perfeitos.
Mas parecia que, juntos, eram bem mais como querosene em
uma fogueira.
Geoff impôs um ritmo, investindo profunda e lentamente,
metendo-se nela com precisão implacável. Anaís se elevava para ele
instintivamente, sentia que seu corpo ia ao encontro do dele em uma
sinfonia de prazer, como se tivessem feito aquilo já mil vezes. E,
entretanto, era completamente novo. Começava a temer que sempre
seria assim: sempre antigo, sempre novo e que uma parte dela se
sentiria desprotegida quando ele parasse.
Mas esse temor era para outro momento. Não para aquele,
para esse instante inesquecível de sorte perfeita. Acariciou-lhe as
costas com as mãos, deleitando-se no prazer da largura firme e
curvilínea de seus ombros e depois desceu pelos músculos
esculpidos até os montículos arredondados do traseiro, que se
esticava e estremecia com suas investidas.
A essência pura de Geoff a rodeava como se fora uma nuvem
sensual: almíscar masculino, um toque de tabaco e o aroma intenso e
quente de sua colônia. Ela jogou para trás a cabeça e inalou
profundamente. Acolheu-o profundamente. Enroscou uma perna
em sua cintura e se impulsionou para ele, como se fossem fundir os
dois corpos.
Dedicou-lhe um olhar ancestral, com o rosto escurecido pela
barba da tarde. Passou-lhe uma mão de dedos longos pela
panturrilha e a surpreendeu ao lhe levantar as pernas, primeiro uma
e logo outra e as pendurar em seus ombros para depois atrair seus
quadris ainda mais contra a pélvis, abrindo-a completamente a suas
investidas.
Imediatamente, algo mudou. Geoff deixou escapar um
profundo grunhido e pronunciou seu nome. Seus olhos de cor azul
gelo estavam se derretendo. Ela também acelerou o ritmo,
acoplando-se a ele, se elevando para ele, acolhendo-o em seu
interior cada vez mais profundamente. Ele não deixava de olhá-la
nos olhos enquanto empurrava, levando os dois em uma espiral que
subia mais e mais.
Esses olhos. Esses olhos surpreendentes e eternos: tão quentes
e tão frios. Ela ia se afogar neles. A calidez azul de seu mar estava a
atraindo irremediavelmente para as ondas como uma
contracorrente. Sentiu-se separada de qualquer ancoragem terrestre.
Depois disso, só havia uma luz brilhante, uma crista perfeita e o
sussurro de seu próprio nome nos lábios dele.
Alcançaram o clímax juntos e foi como se sua alma voasse
para a dele. As profundidades revoltas e deliciosas a alagavam e
soube que, dessa vez, estava perdida.
Capítulo 13

"A estratégia sem táticas é o caminho mais lento à vitória. As

táticas sem estratégia são o ruído que se escuta antes da derrota."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Ficaram tombados na luz agonizante, enlaçados um no outro


como se fossem gatos. Geoff tinha se colocado atrás dela, com os
quadris apoiados contra o traseiro de dela e o braço esquerdo sobre
sua cintura, perfeitamente acoplado a seu corpo. Inclinou a cabeça
para a curva de seu pescoço e posou os lábios no ponto onde
pulsava, permanecendo aí tanto tempo que ela começou a
perguntar-se se estaria dormindo.
— Geoff? — Murmurou sonolenta.
Ele se moveu e lhe mordiscou o lóbulo da orelha.
— Humm. — Disse, e o som vibrou contra a pele dela.
Depois ele encostou a cabeça na sua e voltou a ficar em
silêncio. Durante um instante, Anaís sentiu que passava de estar
sensualmente saciada a algo que se parecia perigosamente a um
sonho profundo, mas despertou bruscamente.
— Hora de jantar? — Sugeriu, estirando um braço.
Ele deixou um rastro de beijos por seu pescoço.
— Cancelei o jantar antes de subir. — Respondeu.
— Oh? — Disse, girando a cabeça para trás para olhá-lo. —
Tão seguro estava de ti mesmo?
— Deus, não. — Apanhou um de seus cachos e começou a
enrosca-lo ao redor de um dedo. — Não, Anaís, contigo nunca estou
seguro de nada, nem da circunstância que me resulta, e não deveria
dizer isto, é completamente estimulante. E um pouco exasperante.
— Exasperante?
Tinha-lhe picado a curiosidade, assim se retorceu entre seus
braços, um pouco envergonhada de estar nua.
Como se a entendesse instintivamente, ele jogou um braço
para trás, agarrou sua camisa e a jogou por cima dela.
— Toma. — Disse-lhe. — Isto foi uma loucura. Temos duas
formosas camas lá embaixo, e não quero ser o responsável por que
passe frio.
Mas ela ainda estava pensando no que ele havia dito antes.
— Geoff. — Murmurou, procurando seu rosto com o olhar. —
Não pôde... nos ver? Quero dizer, não poderia haver previsto isto, se
tivesse querido?
Ele inclinou a cabeça para olhá-la.
— Já te disse que, em meu caso, não é assim.
— O que quer dizer?
Abraçou-a com mais força e apoiou o queixo na parte superior
de sua cabeça.
— Um adivinho não pode ver seu próprio futuro. — Disse em
voz baixa. — E poucas vezes o de outro de sua espécie.
Frequentemente, sinto coisas quando estou perto de outras pessoas,
emoções, sobretudo as mais fortes, se me abrir a isso. Coisas como o
medo, a malícia ou a falsidade.
— Sim. — Murmurou ela. — Dei-me conta.
— Mas não vejo coisas involuntariamente. — Continuou. —
Não, a menos que esteja doente, possivelmente, ou em um estado de
debilidade. Quando eu era pequeno, sim, as estranhas visões
frequentemente me enchiam a cabeça. Um roce ou inclusive um
contato visual o desencadeava. Nesse sentido, era como Ruthveyn.
— Até que aprendeu a manter a cortina fechada.
— Sim, e agora é o reverso. Agora, quase sempre, tenho que
tentar ver coisa que quase nunca quero fazer.
— E a intimidade não... abre algum tipo de conexão? —
Perguntou ela.
Ele pensou durante um momento.
— Talvez poderia, mas nunca ocorreu. — Respondeu. — E
suponho que depende do que alguém entenda por "intimidade". Me
deitei com algumas mulheres, sim, mas não posso dizer que tenha
tido intimidade com nenhuma.
— Então, algo como isto... é somente sexo para ti. — Assinalou
ela, afastando o olhar.
— Não. — Levantou-lhe o queixo quase rudemente, e lhe
virou o rosto para que o olhasse. — Não. Estou falando de outras
pessoas, Anaís. Além disso, nunca poderia ser assim para nós.
— Como sabe?
— Sei. E você é uma adivinha Anaís. Como Giovanni Vittorio,
descende dos grandes profetas celtas, ou talvez do povo dos quais
que eles descendiam. E os adivinhos não podem ler uns aos outros.
Não profundamente. Não da forma que diz. Assim é como sempre
funciona..., um pequeno presente de Deus, conforme diz Ruthveyn.
Anaís sacudiu a cabeça.
— Mas como puderam os celtas chegar à Toscana?
Geoff encolheu um ombro.
— Tem lido Tácito?
Ela o fulminou com o olhar.
— Vittorio me obrigou a fazê-lo. — Disse. — Fiz o que pude.
Ele sorriu e lhe acariciou o cabelo.
— Estou seguro de que também te contou que houve uma
forte influência celta nas províncias do norte de Roma. Alguns
acreditavam que o próprio Tácito tinha sido um celta.
— Sim, recordo-o.
— Mas, o que é mais importante, seus escritos sugerem que os
sacerdotes celtas, todos eles, especialmente os adivinhos e os
druidas, fascinavam aos romanos. Às vezes eram capturados e os
levavam a Roma, e ao final os romanos se mesclaram com as tribos
celtas.
Anaís negou com a cabeça e seu cabelo varreu o chão.
— Suponho que tudo isso é verdade, Geoff, mas eu não sou
como você. — Disse em voz baixa. — Não sou como Ruthveyn.
— Quase ninguém é. — Replicou. — E dou graças a Deus por
isso. Mas o dom é algo amorfo, Anaís. Estou seguro que sabe.
Algumas pessoas sonham com o que vai se passar. Outros somente
têm uma grande intuição. Alguns vaticinam com as folhas de chá
que ficam no fundo das xícaras... e sim, quase todos são
enganadores. Mas uns poucos, alguns desafortunados como
Ruthveyn, podem te segurar a mão, te olhar nos olhos e te dizer
como vais morrer.
Em seus braços, Anaís se estremeceu.
— Eu não entro em nenhuma dessas categorias.
— Não, você possui algo um pouco mais sutil. — Disse ele. —
Vittorio o viu e o aperfeiçoou, porque sabia como.
Ela baixou a cabeça e não respondeu.
— Você tem um sexto sentido, Anaís. — Disse ele, lhe roçando
o cabelo com os lábios. — Como disse Maria Vittorio, é como um
gato na escuridão. E talvez não possa apunhalar alguém no coração
às cegas, como fez Vittorio, mas pode sentir a psique humana,
acredito. A menos que, é obvio, esteja completamente concentrada
em algo. Praticando esgrima, por exemplo. Ou fazendo amor. — Fez
uma pausa para lhe segurar o rosto com ambas as mãos. — E, além
disso, há o tarot.
Ela levantou a cabeça.
— O que acontece com ele?
Geoff lhe acariciou a bochecha com os lábios.
— Sua bisavó era uma profissional, não? — Murmurou quase
com indiferença. — E, para ser sincero, o outro dia vi uma carta do
tarot apoiada contra o abajur de seu criado mudo, assim assumi...
Bom, supus que isso é o que guarda nessa velha caixa negra que
leva por aí.
Anaís não respondeu. Não tinha nenhuma vontade de pensar
nas predições de sua nonna, sobretudo, em uma. Não nesse
momento, que se sentia resplandecente depois de ter feito amor com
Geoff. Em lugar disso, retorceu-se sobre um flanco e enterrou o
rosto em seu peito. Ele cheirava a suor, a homem e a algo que a fazia
sentir, ao menos por agora, consolo.
Ficou ali durante uns momentos, coberta com sua camisa,
segura em seus braços, e pensou na única coisa, bom, na segunda
coisa, em que tentava não pensar nunca.
Sempre tinha estado disposta a fazer o que lhe pediam. A
trabalhar duro para ser uma guardiã, se isso era o que sua bisavó
desejava. Era uma filha solícita, bem, a maioria das vezes, e uma
irmã leal para Nate, Armand e os meninos. Também tinha sido uma
boa prima. Sentou-se junto à cama do Giovanni, tinha-lhe dado
colheradas de caldo e lhe tinha pego a mão até que o câncer lhe
tinha arrancado a alma do corpo e a tinha liberado.
Inclusive tinha sido uma boa garota, ao menos no final,
quando Giovanni e Maria se sentaram com ela para lhe explicar,
entre as lágrimas dos três, que tinha que abandonar os sonhos que
forjou sobre Raphaele. Que tinha esposa e um filho e que, embora
fosse um mentiroso tremendo e um descarado, tinha uma família
que dependia dele para viver.
Assim, sim, tinha sido uma boa garota. Tinha deixado de lado
seus sonhos tolos.
Mas o que não queria ser, o que não podia suportar ser, era
uma maldita adivinha.
E também estava extremamente farta e cansada de ser uma
boa garota, agora que pensava nisso. Preferia ser uma garota má... e
deixar que o malvado lorde Bessett a despisse e lhe fizesse as coisas
mais perversas. Porque, depois de passar uma hora em seus braços,
ser uma boa garota tinha perdido todo seu atrativo.
Entretanto, sabia que algumas coisas nunca mudariam.
Algumas coisas estavam predestinadas, como sempre dizia nonna
Sofia. Raphaele não tinha sido sua ré dava dischi. E, certamente,
Geoff, o típico inglês elegante, tampouco era. Mas seu príncipe
toscano chegaria, cedo ou tarde. E ela estava destinada a ser... Bom,
se não uma garota boa para sempre, pelo menos, sempre honesta.
Suspirou, estremeceu um pouco entre os braços de Geoff e,
estranhamente teve vontade de chorar.
— Fiz uma leitura para ela. — Sussurrou contra o suave pelo
que salpicava seu peito.
Mais que vê-lo, sentiu que a olhava.
— Para quem? — Murmurou ele. — Para Charlotte?
— Sim.
Agora Geoff parecia totalmente acordado.
— Então, pode ler as cartas?
Ela se encolheu de ombros.
— Qualquer um pode, não? — Disse — Para fazê-lo não é
necessário ter o dom.
Ele soltou uma gargalhada.
— Isso não acredito.
Anaís suspirou.
— Pode ser que tenha razão. — Murmurou. — De fato, não
pensava fazê-lo. Era uma brincadeira. Uma brincadeira estúpida. Só
pretendia lhe dizer o que eu desejava que escutasse. Mas as cartas,
Geoff...
Interrompeu-se e negou com a cabeça.
— O que? — Pressionou-a com suavidade.
Ela levantou a cabeça de seu peito e o olhou, sentindo-se
completamente perdida.
— As cartas... Elas sozinhas disseram a verdade. Eu sabia.
Cobraram vida. Sim, eu as li. Não tive outra opção.
— Quer dizer que as leste daqui. — Murmurou, lhe pondo
uma mão sobre o coração.
Ela assentiu lentamente.
— E soube o que queriam dizer. Não só por todos os anos que
passei vendo minha avó fazendo, mas também... de outra forma,
soube. Assim que o disse. E... a assustei. Santo céu, inclusive, me
assustei.
— Anaís. — Murmurou ele, apertando os lábios contra sua
cabeça. — Pobre garota.
— Pobre Charlotte! — Corrigiu-o. — A princípio,
simplesmente me sentia suja, como se a estivesse usando. Lhe
mentindo. Mas depois estava furiosa. Comigo mesma, quero dizer.
O tarot é perigoso, não é algo com o que se deva brincar. Isso sabia.
— O tarot é perigoso para alguém que tenha o dom de lê-lo. —
Disse ele brandamente. — Para quem não o tem, amor, é só um
maço de cartas.
Anaís apoiou a bochecha em seu peito.
— Suponho, Geoff, que estive enganando a mim mesma. Mas
não quero ter nenhum dom.
— Sei. — Sussurrou. — Oh, acredite em mim, Anaís, sei bem.
Antes de que ela pudesse responder, ele lhe deu um abraço
rápido e intenso e girou até ficar deitado de costas, levantando-a
para que ficasse sobre ele, com um joelho a cada lado de suas
costelas. Até que estiveram olhando-se nos olhos.
Com muita suavidade, ele pegou sua camisa e a pôs nela e
depois levantou uma mão para lhe colocar uma mecha detrás da
orelha.
— Assim que isso explica tudo. — Murmurou, olhando-a. —
Essa fúria. Esse inferno que desatou contra o saco de boxe de
monsieur Michel.
Ela moveu os ombros, um pouco incômoda.
— Geoff, quero que se acabe isto. — Sussurrou. — Não quero
seguir mentindo para Charlotte sobre quem e o que sou. E não
quero ter que pensar no que sou.
— Eu também quero que acabe. — Disse ele com calma. —
Mas diria que hoje há dito mais verdades a Charlotte das que ouviu
desde que seu marido morreu. Nada disto é tua culpa.
Ela levantou o olhar para o céu e as escassas nuvens que havia
estavam tingidas de violeta.
— Eu vi, Geoff. — Sussurrou. — O mal de que falou. A
escuridão. Charlotte está em perigo... Talvez corra mais perigo que
Giselle.
— Que tipo de perigo?
Ela mordeu o lábio e negou com a cabeça.
— Oxalá soubesse. Mas havia algo mais, algo fora de meu
alcance. Algo que as cartas queriam me mostrar. Tenho a horrível
sensação de que nos falta uma peça do quebra-cabeças. Sei que não
podemos deixá-la aqui. Devemos levar as duas para longe e logo.
Geoff tinha as mãos na cintura dela e a olhava com
intensidade.
— Muito bem. Temos que acabar com isto. Mas primeiro
necessitamos toda a informação que possamos reunir, o quanto
antes possível.
— De que tipo? E como?
Geoff franziu o cenho.
— Amanhã à noite jantaremos com eles. — Disse. — Estou
seguro de que Lezennes manterá à menina afastada. Um de nós terá
que distraí-lo. Necessito um objeto, algo que pertença a Giselle,
possivelmente, que sua mãe lhe tenha dado de presente. Algo que
possa estar marcado com as emoções de ambas. Isso, junto com o
lenço de Charlotte... Sim, pode ser que nos ajude a escolher o
momento adequado para levar a cabo nossa estratégia.
— Ou nossa fuga. — Acrescentou ela com seriedade. —
Encontrarei algo que pertença a Giselle, confie em mim. Por certo,
Lezennes já tem proposto matrimônio a Charlotte, e a está
pressionando muito. Ao menos eu posso lhe dar um pouco de
tempo.
— E como pensa fazê-lo?
Anaís percorreu com o olhar seu formoso rosto.
— Darei umas olhadas a Lezennes descaradamente. — Disse.
— Talvez assim pense que pode me usar para fazer ciúmes a
Charlotte.
— Muito perigoso. Nem sequer o tente.
— Mas você estará comigo. — Replicou. — E...
Ouviram um ruído em alguma parte da casa, como o que fazia
o cabo de uma vassoura ao golpear a parede. Geoff abriu muito os
olhos.
— Santo Deus. — Disse. — Já retorna o mundo real. E esqueci
de fechar a porta com chave.
Anaís sorriu.
— Tomarei como um elogio. — Murmurou.
— Sim, deveria. — Respondeu e seu olhar esquentou quando
a percorreu com ele. Deslizou suas grandes mãos de dedos longos
pelas costelas até lhe cobrir os seios. — Ah, Anaís, há algo em ti que
não seja completamente perfeito?
— Oh, acredito que já sabe a resposta. — Disse, e passou uma
perna por cima dele para sentar-se no colchonete, a seu lado.
Geoff lhe lançou um olhar de reprovação e ficou em pé com
elegância, como um grande felino. Atravessou a sala para fechar a
porta.
— Será melhor que nos vistamos. — Disse. — Pedirei que nos
subam algo frio para jantar.
Ela não respondeu, mas sim o observou enquanto se
aproximava a grandes pernadas da claraboia e apoiava nela os
cotovelos, como se estivesse vigiando a rua. Como todo cavalheiro,
estava lhe dando um momento de intimidade para vestir-se.
Depois de dar um último olhar à gloriosa nudez de Geoff, ela
se vestiu com rapidez, tirando a camisa que levava e vestindo a sua
própria. Depois fechou os botões das calças. Estranhamente, ele não
havia dito nada de sua marca. Talvez não a tivesse visto. Recolheu
sua camisa, atravessou cômodo com ela e a entregou.
Geoff se virou e a olhou de esguelha, inquisitivamente.
— De onde tiraste essas calças? — Perguntou, colocando os
braços na camisa e ajustando-lhe. Anaís baixou o olhar, um pouco
envergonhada.
— São de Armand. — Respondeu. — Os trajes que usava para
escalar. Ou para ter algo com o que te seduzir.
Mas Geoff já se aproximou do colchonete, com suas longas e
musculosas pernas ainda nuas sob a aba da camisa. E, de repente,
Anaís desejou segui-lo. Levantar a fina malha de cambraia da
camisa e beijar a marca que tinha no quadril, a marca que o tinha
impulsionado a seu destino e que talvez, em parte, o tinha levado a
uma vida que não desejava mais do que ela desejava.
Santo Deus. Assim era como se sentia?
Obviamente, Geoff teria rechaçado seu dom em um abrir e
fechar de olhos se tivesse tido a oportunidade. Mas possivelmente,
para ambos, tudo era mais profundo que isso. Estava ressentida por
ter perdido a oportunidade de levar uma vida normal e de ter
tomado aquele caminho tão estranho? Estava ressentida pelo que
nonna chamava "seu destino"? Ou simplesmente se cansou de
esperar que aparecesse seu príncipe?
Certamente, na sua idade, já não ia ser frívola, não se
converteria em uma dessas mariposas de sociedade que revoavam
de uma festa em um jardim a um chá e depois a uma soirée11,
sempre procurando marido. Mas se não era assim, por que sentia
esse peso no coração? Essa sensação de ter perdido... algo?

11
Reunião social, serão, sarau ou de outro tipo, que ocorre à noite.
Não sabia. E, em realidade, não tinha muito sentido pensar
nisso. A vida era o que era, esperança e pena incluídas.
Geoff se vestiu em silêncio e ambos desceram as escadas.
Já na intimidade do dormitório de Anaís, ele a tomou entre
seus braços.
— Não sei quanto tempo mais poderemos estar juntos, Anaís.
— Disse-lhe, olhando-a nos olhos. — Acredito que não muito. E
sentirei tua falta.
— E eu de ti. — Sussurrou ela.
Mas não era tão singelo como isso. Já não.
Lhe pôs um dedo sob o queixo para fazer que o olhasse.
— Estaremos de volta a Londres muito em breve, se Deus
quiser. — Acrescentou. — De volta ao mundo real, com todas suas
expectativas.
— Sim. — Respondeu ela simplesmente.
No rosto dele se refletiu uma emoção indescritível. Então,
como se quisesse ocultá-la, inclinou a cabeça e a beijou de novo,
lenta e sensualmente, explorando as profundidades de sua boca com
a língua. Separaram-se com a respiração um pouco agitada.
— Sigo sendo o homem adequado no momento, Anaís? —
Perguntou-lhe ao ouvido com voz cálida e rouca. — E, se o for,
passará esta noite em minha cama?
— Sim.
Sim, pensou ela, e a seguinte, e a seguinte, e a que vem depois
também, se me convidar...
Mas era uma ideia muito tola.
Geoff tinha uma vida em Londres a qual retornar.
E o destino tinha outros planos para ela.
Capítulo 14

"A qualidade de uma decisão é como a oportuna descida em

picado de um falcão, que lhe permite atacar e destroçar a seu

inimigo."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Na manhã seguinte, Anaís despertou encolhida nos braços de


Geoff. O sol já tingia os cortinados com uma luz cálida e dourada.
Saiu com cuidado de debaixo do braço dele, levantou-se e entrou no
banheiro. Pôs as mãos ao lado do lavabo e olhou seu reflexo no
espelho.
Sua face vulgar e bastante longa lhe devolvia o olhar sob uma
juba desordenada de cabelo rebelde.
Mas não sou precisamente ordinária, consolou-se.
Não, era de montão de uma maneira extraordinária ou, como
sua mãe sempre o tinha expressado, diplomaticamente, era "aposta".
Às vezes, se vestia o vestido apropriado e a iluminava a luz
adequada, inclusive, era surpreendente.
Deixou cair as mãos e suspirou. As horas que tinha passado
nos braços de Geoff a tinham feito se sentir formosa, sensual e
profundamente desejável, e isso teria que bastar. Não era como
essas mulheres que estavam acostumadas a pensar muito em seu
aspecto, e era hora de que voltasse a adotar essa boa disposição.
Lavou o rosto e as mãos com água fria, foi para seu quarto e
abriu com força as portas de seu armário. Sem os braços protetores
dele rodeando-a, sentia frio. Ao apanhar a bata do gancho que havia
na porta, viu o vestido que tinha colocado no dia anterior. O vestido
que tirou de um puxão por causa da raiva e tinha atirado na cama,
deixando que a pobre Claire fizesse cargo dele.
E sim, se encarregou dele, porque lhe tinha dado tempo a
engomá-lo e a remendar a parte de renda do punho que ela tinha
rasgado em seu frenesi.
De repente, recordou a carta de Sutherland que tinha
guardado no bolso. Alarmada, procurou entre as dobras até
encontrar a abertura do bolso.
Ainda estava ali, precisamente onde a tinha deixado.
Deixou escapar um suspiro de alívio.
Mesmo assim, tinha sido uma descuidada. Confiava nos
serventes, é obvio, e Sutherland tinha redigido a carta com muito
cuidado: tinha usado iniciais em lugar de nomes e, pelo resto, tinha
empregado vagas referências. Entretanto, o bolso de um vestido não
era lugar para tal coisa.
Enquanto voltava lentamente para o quarto de Geoff, voltou a
ler as palavras do prior, sentindo-se reconfortada por sua confiança.
Se pudessem levar Charlotte e à menina sãs e salvas a Inglaterra,
tudo sairia bem.
Uma vez na soleira, levantou o olhar e viu que Geoff seguia
dormindo na mesma postura: de bruços e com um de seus grandes
braços estendido sobre o oco que ela tinha deixado no colchão. Seus
largos ombros musculosos brilhavam calidamente com o sol da
manhã.
Uma mecha de cabelo dourado lhe caía sobre um olho e uma
sombra de barba negra lhe cobria o rosto, rebatendo a perfeição
aristocrática de seu duro nariz aquilino e lhe outorgando certo ar de
pirata. Tinha afastado a roupa de cama até o montículo perfeito das
musculosas nádegas, chamando a atenção sobre a tatuagem negra
que ficava logo a cima.
Ao vê-lo, algo em seu peito deu um traiçoeiro salto: seu
coração temia, e se aproximou da cama com intenção de despertá-lo.
Então recordou a carta que tinha na mão.
A pasta de viagem de Geoff, onde ele guardava todos os
papéis relevantes, estava aberto sobre uma pequena mesa junto à
janela. Cruzou rapidamente o quarto e colocou a carta do prior
debaixo de uma pilha do que pareciam cartas pessoais,
introduzindo-a entre o grosso monte de papéis dobrados que
reconheceu como os informes de DuPont.
Entretanto, quando já dava a volta, um monte de livros no
outro lado da mesa lhe chamou a atenção. Depois de olhar à cama,
começou a folheá-los. Pelo que parecia, Geoff era um homem do
Renascimento. Suas leituras incluíam poesia de Coleridge e Burns,
uma manuseada cópia do castelo perigoso de Scott, um manual de
engenharia, algo a ver com válvulas e vapor e, debaixo, um livro de
desenhos arquitetônicos gregos.
Mas foi o livro de cima o que mais lhe interessou: L'Art da
Guerre do famoso general e filósofo Sun Tzu. Traduzido para o
francês por um sacerdote jesuíta, o antigo manual de estratégia
militar, A Arte da Guerra, tinha sido um dos livros favoritos de
Giovanni, e para ela também, tinha chegado a sê-lo.
Sorriu levemente ao recordá-lo e se moveu um pouco, como se
fosse partir. Então, como fazem frequentemente as mulheres
apaixonadas, com uma vã esperança de que uma posse pessoal
revelasse algo oculto e íntimo, olhou novamente, agora de forma
mais curiosa, à pasta de viagem.
Era uma grande caixa antiga de mogno forrada de latão com
um dos tinteiros vazio e, o outro, cheio até a borda. O acabamento
de couro para escrever estava fechado, e no compartimento
principal, o lenço de Charlotte descansava à direita da
correspondência de Geoff, sob o laço de cabelo amarelo de Giselle.
Com cuidado, levantou a tampa e viu que a placa de latão
mostrava o monograma de Geoff e, debaixo, a marca completa da
Fraternitas. Não havia brasão, nenhuma heráldica. Evidentemente,
levava muito tempo sendo de sua propriedade, desde antes de
adquirir em título, quase com segurança.
Voltou a baixar a tampa e nesse momento lhe chamou a
atenção a carta de cima do monte, que estava escrita com uma
caligrafia elegante e, evidentemente, feminina. Inclinando a cabeça,
viu que era da mãe de Geoff.
Lady Madeleine MacLachlan era uma destacada beleza que
tinha surpreendido a sociedade ao renunciar a seu título de
condessa de Bessett quando se casou em segundas núpcias com um
plebeu, embora por costume, se não por lei, algumas viúvas não o
faziam, preferindo aferrar-se ao título mais alto de seu finado
marido. Anaís tinha em grande estima à mulher por aquilo, e se
perguntou se mãe e o filho se pareceriam.
Incapaz de conter a curiosidade olhou mais atentamente a
carta.
Igual a quando escutava às escondidas, ler a correspondência
de outra pessoa não levava a nada bom. O primeiro parágrafo,
entretanto, era bastante inocente: continha quentes desejos de boa
saúde para Geoff e lhe perguntava sobre o tempo. O segundo, não
era tão benigno:
Como me pediu, voltei a convidar lady A. para que devesse tomar o
chá. Oh, Geoff, quanto mais a vejo, mais convencida estou de que escolheste
sabiamente. Só espero que tenha escolhido por amor, e não levado pelo
dever, como tem por costume fazer...
Anaís deixou cair a carta como se tivesse estalado em chamas.
Durante um instante, não pôde respirar. Foi como se toda a doçura
do momento anterior tivesse se evaporado, levando o ar com ela.
Girou para olhar Geoff, que continuava dormindo. Então, de
algum jeito, conseguiu ordenar a suas pernas trêmulas que se
movessem e se dirigiu ao banheiro. Fechou com chave, sentou-se na
borda da banheira e levou uma mão à boca, sentindo que o horror a
invadia.
Só espero que tenha escolhido por amor.
Essas palavras a obcecavam. Repetiu-as uma e outra vez,
esforçando-se por lhes dar outro sentido além do mais evidente.
Não havia nenhum.
Não havia nenhum, porque estava ocorrendo outra vez.
Não. Não, não era assim.
Não era o mesmo. Ele não estava casado. Simplesmente, havia
"eleito sabiamente."
Mas o que importava? Já tinha se apaixonado por ele, por
muito que tentasse negá-lo. E o resultado ia ser o mesmo. Um
coração quebrado. Uma vida tingida de decepção, por não dizer de
vergonha. Tinha sido ela quem o tinha provocado, e nesse momento
não podia se consolar dizendo que era uma ingênua, que tinha sido
seduzida por alguém experiente e cínico.
Não, colocou-se nisso ela sozinha, tinha-o pedido.
Não soube quanto tempo permaneceu ali, com uma mão lhe
tapando a boca e a outra tremendo em cima de seus joelhos. Mas ao
final, o atordoamento se dissipou e retornou à consciência, dolorosa
como o calor de um fogo abrasador depois de um frio intenso. E
com ele trouxe uma pena pesada e entristecedora que lhe alagou o
peito e lhe esmagou as extremidades.
Se o que tinha feito a Charlotte tinha lhe sujado as mãos,
aquilo a deixava podre no interior. Era quase, quase, como se o
inominável estivesse se repetindo.
Com mãos trêmulas se levantou, tampou a banheira e abriu a
torneira, que jorrou água enquanto ela tirava sua fina roupa de
dormir e se metia dentro. A água gelada lhe rodeou os tornozelos e
somente então, recordou que não havia aquecimento, portanto, não
havia maneira de que saísse água quente da torneira.
Santo Deus, nem sequer podia tomar um banho em boas
condições.
Era a gota d´água. Meteu-se na água fria, puxou as pernas com
força para o peito e deixou cair a cabeça sobre os joelhos, reprimindo
um soluço.
Justo então foi consciente de uma presença ao outro lado da
porta. Obrigando-se a prestar atenção, levantou a cabeça e a girou
para escutar melhor, mas durante uns momentos não ouviu nada.
Entretanto, sabia que ele estava ali.
— Anaís? — Disse finalmente Geoff. Sua voz logo que era
audível por cima do som da água.
Ela fechou a torneira com um som desagradável que
certamente o tinha despertado, e rezou para que a voz não lhe
tremesse.
— Sim?
— O que está fazendo?
Era uma pergunta pessoal.
— Tomando um banho.
As palavras ressonaram ocas, como seu coração no cômodo
frio e ladrilhado.
Ele ficou calado uns instantes.
— Já sabe que não sai água quente da torneira, certo?
Anaís fechou os olhos e deixou de novo cair a cabeça para
frente.
— Sim, obrigado. — Disse, olhando a água reluzente. — Estou
bem.
Passaram outros quantos segundos e depois ele disse com
suavidade:
— De acordo. Sinto sua falta.
Anaís ouviu suas pegadas afastar-se da porta. Podia visualizá-
lo em toda sua glória nua enquanto voltava para a cama. Como se
sentava na borda do colchão com as pernas separadas, apoiava os
cotovelos nos joelhos e deixava cair a cabeça entre as mãos.
Sabia exatamente o que Geoff estava fazendo; podia senti-lo.
Podia sentir a ele, embora não tão claramente como sentia a outras
pessoas. Às vezes lhe ocorria isso e não sabia por que, mas podia
inclusive ver o cabelo dele caindo para frente enquanto se inclinava.
Via seus dedos entrelaçados com ar pensativo.
Então, se estava comprometido, ou algo assim, com outra
mulher, por que demônios ela não podia senti-lo?
Talvez porque ele era um adivinho? Ou possivelmente porque
não estava comprometido?
E ele nem sequer tinha mentido. Não com palavras, pelo
menos.
Sim, havia dito. "Pretendo cumprir com meu dever para com o
título."
Era o mesmo que dizer que pretendia casar-se. E isso não a
tinha surpreendido. Dos nobres sempre se esperava que tivessem
um herdeiro. Tudo o que eles representavam, de fato, muito do que
a Inglaterra representava, baseava-se nessa hipótese.
Também lhe havia dito que não era o homem adequado para
ela.
E Anaís sabia. Sabia por que o i tarocchi de sua bisavó o havia
dito muito tempo atrás e nunca se equivocou. Talvez tivesse sido
vago e misterioso, mas sempre tinha sido certeiro. Esse pensamento
a obrigou a abafar outro soluço. Tudo aquilo, sua crença no tarot,
sua teimosia com Geoff, a inquietante solidão que tinha começado a
acossá-la nos últimos anos, brotou e a fez se sentir miserável.
Somente então se deu conta de que se permitiu ter esperanças.
Oh, só um pouco, porque tinha aprendido da maneira mais dura
que tinha que controlar-se, tinha aprendido a importância da
moderação. Que era necessário não confiar nunca.
Mas Geoff tinha mentido?
"Estou convencida de que escolheste sabiamente."
Assim tinha escolhido. E tinha compartilhado suas esperanças
com sua mãe. Ela devia superar. Apesar das náuseas que sentia e
que seguia tremendo, disse a si mesma que ele era mais oportunista
que mentiroso.
E por que não? O que lhe tinha devotado ela? O que lhe havia
dito?
Que estava esperando a alguém. Que unicamente procurava
algo temporario.
Inspirou profundamente, passou os dedos pelo cabelo e tentou
pensar de maneira racional. Era isso tão diferente do que ele havia
dito?
Bom, sim. Mas só se estava prometido... E ela tampouco se
incomodou em perguntar-lhe antes de se lançar em seus braços no
dormitório aquela tarde.
Assim, havia tornado a apaixonar-se, e naquele momento era
pior que o anterior. Esta vez tinha ido contra seus instintos. Geoff
não era bom para ela, era muito implacável e autocrático, muito
inglês, muito masculino. Não era, em resumo, o homem adequado.
E, de todas as formas, apaixonou-se por ele. Entregou-se a ele.
Entregou-se a um homem o qual estava previsto que, pelo
menos, ao final, pertencesse a outra mulher.
E lhe tinha dado exatamente o que lhe tinha pedido nada
mais. Não tinha sentido zangar-se com Geoff.
Com violência logo que controlada, voltou a abrir a torneira,
apanhou a esponja e começou a esfregar-se. Esfregou-se como se
nunca mais voltasse a estar limpa. Era como se quisesse tirar de
cima de si o manto de estupidez que tinha posto.
E quando terminou, quando se tinha esfregado até ficar
vermelha e quase em carne viva, lançou a esponja ao outro lado do
banheiro. Olhou-a, desejando que tanto aquele artigo como ela
mesma se fossem ao inferno, e voltou a apoiar a cabeça nos joelhos.
E, essa vez, chorou de verdade.
Chorou por essa parte de seu coração perdido para sempre
por ele, e porque tinha vinte e dois anos e a solidão era mais difícil
de levar com cada ano que passava. Porque seu príncipe não tinha
chegado e o príncipe que tinha encontrado já tinha escolhido
sabiamente. Chorou por todas essas coisas longa e silenciosamente,
porque fazia tempo que ela era uma professora em lágrimas mudas.

*****
Geoff retornou a sua cama e ficou sentado um momento.
Apoiou os cotovelos nos joelhos e esperou que Anaís voltasse. Podia
sentir uma emoção forte a seu redor, muito diferente ao desejo.
Esperava que não fosse arrependimento. Inclusive a aversão, em sua
opinião, era melhor que isso.
Talvez estivesse equivocado. Não era especialmente hábil no
que se referia às emoções de Anaís. Fechou os olhos e aspirou o que
ficava de seus aromas mesclados, recordando a noite. Os suspiros
sussurrados. A risada. A deliciosa intimidade. Reviveu cada
momento até que por fim ouviu a água da banheira saindo pelo ralo.
Mesmo assim, ela não retornou. E quando soou o débil estalo
do fecho ao abrir-se e a porta não se abriu, soube que não pensava
em voltar.
Algo lhe encolheu dentro do peito.
Tinha suposto...
Ah, mas isso era insensato, não? Passou a mão pelo rosto,
arranhando pensativamente a barba de um dia, e se deixou cair na
suavidade da cama. Agora que o pensava à luz do dia, agora que
seu corpo estava satisfeito e sua mente, mais racional, tinha que
admitir que, em realidade, nada tinha mudado entre eles. Mas a
tinha agradado. Nesse aspecto, estava satisfeito.
Fizeram amor três vezes: a primeira, de forma um pouco torpe
e vacilante enquanto aprendiam os desejos mais íntimos um do
outro e a segunda, de maneira lenta e deliciosa. Tinha posto as
palmas das mãos nos ombros, investindo, provocando e
apaixonando-a com o desejo e depois a tinha posto em cima dele
para fazê-la baixar sobre seu corpo. Baixando cada vez mais, até seu
coração, temia.
Tinha exultado em ver como Anaís jogava para trás a cabeça e
a tinha atravessado com seu membro suspirando. O comprido
cabelo dela fazia cócegas nas suas coxas e sua presença enchia as
sombras de um quarto que só umas horas antes, lhe tinha parecido
mais frio.
Mas a terceira vez, nas primeiras horas da madrugada,
quando ele a tinha virado de costas e a tinha montado sem dizer
nada, Anaís tinha se elevado para ele como a lua e as estrelas se
elevavam no céu noturno. Deliciosamente. Infalivelmente. Como se
fosse o mais natural do universo. Como se os dois se conhecessem
da maneira mais íntima e perfeita possível.
Mas poucas coisas eram perfeitas, e menos coisas ainda, eram
permanentes.
Afundou o rosto nos lençóis, estendeu um braço para o
travesseiro de Anaís e imaginou por um momento que ela ainda
estava a seu lado, que suas longas pernas ainda estavam
entrelaçadas com as suas e que sua selvagem juba negra permanecia
sobre os lençóis, estendida como seda tecida. Inspirou seu aroma.
Ela sempre cheirava a algo intenso e doce, como uma estranha
combinação de água de rosas e anis. Como sua mesma essência.
Mas nesse momento, tudo isso eram só lembranças. E não era
provável que se convertessem em algo mais, dado o seu
desaparecimento no banheiro. Aquela noite ele tinha sido o que ela
chamava de o amante adequado no momento, uma expressão que ele
tinha começado a odiar. Apesar disso, as lembranças de sua calidez,
sua risada e seu aroma teriam que lhe bastar por agora.
Reprimiu uma repentina e irracional onda de frustração.
Tinham por diante um dia a que enfrentar e um trabalho importante
a fazer. Fosse o que fosse o que teria que esclarecer entre Anaís e ele,
porque o esclareceriam, teria que esperar. Mas temia que ela tivesse
que renunciar ao amante de seus sonhos e contentar-se com algo
diferente.
Não, não estava seguro de deixá-la partir tão alegremente
como ela esperava.
E talvez o destino tampouco o permitisse.
Sempre podia haver graves e inesperadas consequências de
uma longa e avivada noite de paixão. Era algo do que não tinham
falado entre todos os suspiros e risadas, apesar de sua reputação de
ser sempre muito precavido. Era um descuido no que era resistente
a pensar nesse momento.
Não, por agora, tinha assuntos prementes que atender, todos
eles relacionados com os misteriosos acontecimentos que se
desenvolviam do outro lado da rua. Mas antes de ocupar-se de
Lezennes, havia um par de cartas urgentes que devia escrever, e a
primeira seria para sua mãe porque, segundo sua experiência,
quanto antes dissesse, ou não, coisas difíceis, antes elas ficariam
para trás.
Com um só movimento, Geoff se ergueu e saltou da cama.
Dirigiu-se imediatamente ao puxador para pedir água quente.
Talvez Anaís tivesse se armado de coragem para tomar um banho
frio, mas ele tinha um árduo dia pela frente e, nesse momento, o frio
que sentia no coração ameaçava durar muito tempo.

*****

Anaís se entreteve o quanto pôde antes de descer a tomar o


café da manhã. Quando chegou a ensolarada sala de jantar, tudo era
civilidade e silêncio, exceto pelo rítmico tic-tac do relógio de bronze
dourado que havia sobre o suporte da chaminé, que aquele dia
parecia terrivelmente alto.
Como tinha esperado, Geoff tinha descido antes dela e tinha
um aspecto extremamente austero com o casaco de cor carvão e um
colarinho branco impossivelmente alto. Estava barbeado. Tinha uma
expressão indecifrável e estava lendo uma carta e bebendo uma
xícara de café puro e espesso, como gostava.
Durante uns segundos, ela hesitou na soleira da porta. Parecia
que ele já tinha tomado o café da manhã, porque tinham retirado o
prato.
— Bom dia, Geoffrey. — Murmurou enquanto Petit lhe
afastava uma cadeira.
Seu olhar de lobo obscureceu. Dedicou-lhe uma olhada
bastante fria, deixou de lado a carta e se levantou, fazendo uma
reverência mais formal.
— Bom dia, querida. — Respondeu. — Dormiste bem?
— Sim, obrigado. — Assentiu com a cabeça em direção a Petit
para que lhe servisse café. — Chegou uma carta esta manhã?
— Sim, do contato de Van de Velde aqui, em Bruxelas. —
Disse Geoff. — Parece-me que vou estar fora grande parte do dia.
Ela sentiu que uma onda de alívio a invadia.
— Oh. — Murmurou. — Ocorreu algo?
No rosto dele se refletiu a frustração.
— Há um oficial aposentado do governo que quer que eu
conheça. Um tipo no Mechelen que pode, ou pode ser que não, que
tenha visto Lezennes subornar a alguns de seus colegas de trabalho
e que talvez saiba, ou talvez não, por que lhes estava pagando.
— Vá. — Disse ela. — Nessa frase há uma horrível quantidade
de "pode" e "pode ser que não".
— Sim, assim provavelmente farei uma longa viajem para
nada. — Respondeu. — E, embora aprenda algo, não estou seguro
de que sirva para melhorar nossa situação, porque não me preocupa
especialmente o bem-estar do governo francês... ou dos belgas, para
falar a verdade. Só estou aqui pela menina.
— Mesmo assim, não se sabe de que maneira poderá nos
ajudar. — Disse ela pensativa. — Talvez apareça algo sobre o caráter
de Lezennes, algo que possamos dizer a Charlotte.
— Precisamente. — Disse ele. — Por isso vou. De todas
formas, neste momento não há nada mais que fazer.
O mordomo passou pela porta da sala de jantar.
— Sua carruagem chegou, senhor.
— Obrigado, Bernard. — Geoff deixou a carta de barriga para
baixo sobre a toalha e jogou para trás a cadeira. — Petit, quão bom é
seu domínio do flamenco? Sabe ler?
O lacaio ficou alerta.
— Oh, sim, senhor. É muito parecido ao holandês.
— Então, faz o favor de vir comigo hoje. — Ordenou-lhe. — E
nos deixe a sós um momento, sim?
Ela sentiu o estômago encolher quando o lacaio partiu,
fechando a porta.
Mas Geoff não se levantou. Em lugar disso, ficou a brincar
com ar distraído com sua xícara de café e depois passou uma mão
pelo cabelo.
— Tenho que te dizer algo, Anaís. — Disse por fim. — Sobre
ontem à noite.
— Sim. — Ela pigarreou. — E eu a ti, Geoff. Ontem à noite
foi... mágico.
Ele lhe dedicou um triste olhar, quase cínico.
— Sim, foi. — Mostrou-se de acordo. — E, francamente, não
tinha por que acabar tão logo.
— Mas o fez, Geoff. — Disse ela, levantando-se da cadeira. —
Tinha que fazê-lo. Todas as coisas boas devem terminar. E estive
pensando sobre esta noite. Sobre como me senti.
— Eu também. — Interveio ele com voz um pouco rouca. — E
isto merece uma conversação mais longa em um momento mais
apropriado, mas...
— Agora. — Disse ela bruscamente. — Agora está bem, Geoff.
— Tinha começado a caminhar sem parar pela sala, passando por
um aparador carregado de comida que não lhe abriu o apetite. —
Ontem à noite não foi precisamente um engano...
— Alegra-me ouvir que pensa isso.
— Mas, provavelmente, foi uma insensatez. — Deteve-se
frente à lareira e virou para olhá-lo, com as mãos agarradas com
força à frente. — Oh, Geoff, é maravilhoso, embora essa palavra não
te faz justiça. Deixou-me sem fôlego.
— Mas...?
Seu rosto se obscureceu.
— Mas provavelmente deveria ser o fim. — Disse, obrigando-
se a continuar. — Vejo-me claramente, Geoff, me afeiçoando muito
contigo e nos complicando a vida. É muito encantador. Muito
elegante. E muito... bom, digamos que é muito dotado, e não quero
dizer metafisicamente.
— Obrigado. — Disse ele com rigidez. — Mas me perdoe se
não consigo ver onde está o problema.
— Sou eu, Geoff. — Sussurrou. — O problema sou eu. Pensei
que poderia fazer isto de forma leve, mas...
— De forma leve? — Repetiu ele.
— Sim, mas você... — Fez uma pausa e sorriu
melancolicamente. — Oh, você não é a classe de homem que uma
mulher se relacionaria de forma leve. Estou brincando com fogo. E
sou o suficientemente inteligente para saber que deveria deixá-lo
agora. Os dois têm obrigações.
Ele curvou os lábios em um sorriso amargo.
— Então, vou ser vítima de meu êxito? É isso?
Ela se obrigou a pôr uma expressão mais alegre.
— Se alguém tiver que ser vítima de algo. — Replicou. —
Suponho que, melhor que isso, impossível.
— Tolices, Anaís. — Falou. — Isso são tolices e você sabe.
Além disso, pode ser que não importe o que nenhum dos dois pense
ou queira.
Ela titubeou e sentiu o suporte da lareira cravada nas costas.
— Como diz?
Ele baixou o olhar para a leve curva de seu ventre.
— Às vezes, o destino toma as rédeas quando duas pessoas se
comportam precipitadamente... e nós o fizemos várias vezes.
— Oh. — Instintivamente levou uma mão ao abdômen. — Oh,
não, tudo deveria estar bem, Geoff. De verdade. Não se preocupe. A
coordenação das coisas... Bom, deveria estar bem.
— Deveria. — Disse ele com os dentes apertados. — Mas pode
ser que não esteja. Não pode estar segura, certo?
Ela assentiu, incapaz de afastar os olhos dos seus.
— Estará. — Respondeu. — Terá que estar.
Ele afastou por fim o olhar e voltou a levar a mão à xícara de
café. Cobriu-a, em realidade, como se com esse gesto pudesse
ocultar nela suas próprias emoções.
— Não é tão singelo como desejá-lo. — Disse com calma. —
Mas deveria ter sido mais cuidadoso. Me perdoe.
Anaís conseguiu reunir a coragem necessária para ir para ele e
lhe pôs uma mão no ombro.
— Sou eu quem deveria pedir perdão. — Sussurrou. —
Lancei-me sobre ti. Mas agora... agora estou me arrependendo,
Geoff. Logo estaremos de novo na Inglaterra. Voltaremos para
nossas vidas, às esperanças e aos sonhos que deixamos ali. Devemos
ser livres para persegui-los, sem nenhuma culpa que nos deixe
obcecados.
Durante um bom momento ele não disse nada, como se
estivesse dando voltas a algo.
— Então, me diga, Anaís. — Disse finalmente sem deixar de
brincar com a xícara, negando-se a olhá-la. — Isto tem a ver com seu
príncipe azul? Por que começo a suspeitar que esse homem tem
nome?
Ela fechou os olhos.
— E não tem todo mundo? — Respondeu ela em voz baixa. —
Quanto às expectativas, suponho que sua família também tem
algumas.
— Assim que isto vai no que quer sua família? — Disse com
voz fria. — Acordaram essa união?
— Em certo modo, sim. — Sussurrou. — Quando eu era
pequena, nonna Sofia dizia...
A explosão de Geoff a interrompeu.
— Oh, Deus, não me fale outra vez de Sofia Castelli! —
Exclamou, jogou para trás a cadeira e ficou em pé. — Essa mulher
move os fios de sua família da maldita tumba?
— Como diz? — Sussurrou ela, levando uma mão ao peito.
— Me responda, ela o faz? — Estava de pé junto a ela,
dominando-a com sua altura, e golpeou com um punho a mesa tão
forte que o faqueiro de prata deu um salto. — Treinou-te como se
fosse a uma missão suicida, como se fosse um homem, coisa que não
é. E da tumba ainda dita com quem deve casar? Todo mundo tem
que dançar ao som dessa intrometida? Muito bem, pois eu não.
Ela sentiu aumentar seu aborrecimento.
— Temo que seu orgulho tenha vencido o bom julgamento,
Geoff. — Disse com voz trêmula. — Não pode te deitar comigo e
supor que já te pertenço. Nem sequer quer que isso ocorra.
— Não, não quero. — Afirmou. — Porque tem uma língua
viperina. Mas se ocorresse o pior...
— Oh, voltamos para isso, né?
Ela levantou as mãos, deu a volta e se dirigiu à porta.
— Anaís, não vá quando te estou falando.
— Terminamos de falar. — Afirmou, abrindo a porta de
repente. — E sim, Geoff, se "o pior" ocorresse, certamente que você
será o primeiro a sabê-lo... e que Deus me ajude.
Deu uma tremenda portada ao sair e ouviu satisfeita que um
dos quadros de paisagem golpeava a parede.
— Anaís! — Bramou ele. — Maldita seja, volta aqui!
Mas ela seguiu caminhando. Passou junto ao pobre Petit que,
imperturbável, estava no corredor fingindo que não tinha ouvido os
golpes e os gritos ao lado de Bernard, que fazia guarda na porta
principal, e subiu as escadas para seu quarto. Uma vez ali, lançou-se
à cama, decidida a não chorar.
Não choraria, maldita fosse.
Não o faria.

*****

Meia hora depois, Geoff observava os subúrbios de Bruxelas


do guichê de sua carruagem, a preciosa paisagem plana do Flandes
rural que começava a desdobrar-se ante seus olhos. Campos verdes,
água brilhando com o reflexo das nuvens e o céu, inclusive algum
moinho de vento girando ao sol; tudo era impressionante. Mas nem
sequer a perfeição do Flandes podia distraí-lo aquela manhã.
Fechou uma mão com força, levantou-a e resistiu ao impulso
de golpear algo, fazendo ricochetear o punho na coxa.
No assento em frente, Petit levantou o olhar das notas
traduzidas que estava revisando.
— Senhor?
Geoff voltou a olhar pelo guichê.
— Não é nada, Petit. Obrigado.
Observou a paisagem passar rapidamente até que por fim o
sol caiu sobre o guichê em certo ângulo, lhe devolvendo sua própria
expressão carrancuda. Quase de maneira indiferente, passeou o
olhar por seu rosto.
Supunha que era um homem arrumado. Pelo menos, isso era o
que as mulheres sempre lhe diziam. Exceto pelo cabelo, parecia-se
muito a sua mãe, felizmente. Se fosse parecido com seu pai... Bom,
que Deus os ajudasse a todos.
Mas não era assim. Era um Archard até a medula, porque sua
mãe tinha sido a prima de lorde Bessett. Esse matrimônio entre uma
jovem e um homem que lhe tinha o dobro a idade tinha sido
acordado por seu avô por interesses políticos. O Conde de Jessup
tinha desejado livrar-se de sua única filha, e de seu futuro neto, o
mais rapidamente possível. Assim que os tinha inserido na família
de sua esposa morta e tinha seguido com suas ambições.
Mas o sangue Archard de Geoff tinha continuado vigente, ao
menos no exterior. Era alto, esbelto e possuía os tradicionais olhos
dos Archard, embora os seus fossem frios enquanto que os de sua
mãe eram justamente o contrário.
Talvez essa calidez azul fosse uma contribuição da pessoa.
Porque, embora frequentemente suas amantes lhe tinham
sussurrado que era atraente, todas sem exceção, tinham terminado
lhe dizendo, e não precisamente em sussurros, que era frio. Que
tinha olhos como as geadas de inverno em um dia de fevereiro,
havia-lhe dito a última.
Voltou a olhar sua imagem, que flutuava como se fosse água
no cristal ondulante. Pensava Anaís que era arrumado? Isso havia
dito, sim, mas não tinha parecido muito impressionada. Talvez as
mulheres como ela não valorizassem muito o aspecto externo. E não
porque não fosse formosa, pois ela era. Espetacularmente formosa.
Embora não como seria uma bonita flor em um jardim ensolarado.
Não, Anaís possuía a beleza de um bosque fresco e escuro.
E a língua de uma víbora. Ele não tinha mentido ao dizê-lo.
Voltou a fechar o punho. Sentia que uma desagradável ânsia o
invadia, uma emoção tão intensa que nunca tinha esperado sentir
nada igual, e que, mesmo assim, não compreendia. Era amor? Se
desvaneceria? Temia que as respostas fossem "sim" e "não", por essa
ordem.
Desejou poder falar com seu pai nesse momento. Perguntaria
o que se sentia ao sofrer um amor não correspondido durante anos.
Devorava o coração de um homem? Era a isso, aonde ele se dirigia?
Não se podia fazer nada a respeito exceto sofrê-lo?
Ou acaso poderia submeter Anaís a sua vontade?
Oh, já sabia a resposta a essa pergunta.
Anaís de Rohan não se submeteria à vontade de nenhum
homem. E ele não quereria se o fizesse.
Capítulo 15

"De todas as pessoas que há no exército, próximas ao comandante,

ninguém é mais íntimo que o agente secreto."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Para Anaís, a noite na casa do visconde de Lezennes começou


torta e não melhorou.
Geoff chegou a casa com o tempo justo para vestir-se e cruzar
a rua depois de uma infrutífera viagem a Mechelen para encontrar
um homem que, aparentemente, não desejava ser encontrado.
Apoiando-se no pouco que pôde tirar de seus grunhidos e queixas,
concluiu que Petit e ele tinham gasto energias inutilmente e que, ao
final, somente tinham aprendido a localização de todas as ruelas
entre Bruxelas e Mechelen.
Na casa de Lezennes, foram recebidos calidamente por
Charlotte e pelo encanto extremamente refinado do visconde.
Durante a primeira metade do jantar, nenhum dos cavalheiros disse
grande coisa, deixando que Anaís levasse a conversação. A
Lezennes não parecia importar, e se dedicava a lhe prodigalizar a
Charlotte uma atenção quase fria e incessante.
Anaís fez todo o possível por ser engenhosa e coquete, embora
de uma maneira tranquila e quase boba. Isso pareceu suavizar a
tarde, e quando lhes retiraram o segundo prato, tinha conseguido
desviar parte da atenção de Charlotte, fazendo com que sua anfitriã
relaxasse e começasse uma animada conversação com Geoff.
Depois, Lezennes declinou a garrafa de uísque que Geoff tinha
levado e sugeriu que talvez devessem acompanhar às mulheres ao
salão para jogar cartas.
Geoff concordou alegremente.
— Jogamos a bouillotte? — Propôs Charlotte, tirando o baralho.
— Oh, temo que não conheço esse jogo. — Mentiu Anaís.
— Joguemos então umas mãos de whist. — Disse o visconde
com tom apático. — É o que preferem os ingleses, n’est-ce pas?
Anaís tomou Lezennes pelo braço e insistiu em que fosse seu
companheiro, coisa que teria sido de todas maneiras. Mas o gesto
conseguiu arrancar um sorriso do visconde, e ela ficou a jogar como
uma cabeça de passarinho sem parar de rir bobamente e de flertar
um pouco. Geoff, entretanto, ficou calado e seu olhar se tornou frio.
Levavam dez pontos da última mão quando Charlotte tirou o
tema das férias.
— E nunca adivinharia Anaís, o que Lezennes planejou para
Giselle!
Sentada à mesa das cartas, Anaís jogou um dois.
— Não, não, Charlotte, asseguro que não. — Replicou,
dedicando um olhar a Lezennes deliberadamente cálido. — Estou
segura de que será algo esplêndido, dado o delicioso gosto do
cavalheiro.
— Esplêndido, sim. — Disse Charlotte enquanto Lezennes
matava com um triunfo, jogando na mesa sua carta vitoriosamente.
— Alugou uma preciosa casinha junto ao mar durante toda uma
quinzena... para os três.
Anaís tentou ocultar seu alarme.
— É estupendo. — Disse, girando para Geoff, que estava
sentado junto a ela. — Talvez nós devêssemos fazer o mesmo,
querido, se Bruxelas se tornar um pouco aborrecida.
— E por que Bruxelas ia ser aborrecida? — O tom de Geoff era
frio, a atitude que tinha tido durante o café da manhã tinha cruzado
a rua com ele para o jantar. — Bruxelas serve a meus propósitos
admiravelmente. Além disso, uma casa no mar seria muito cara,
estou seguro.
Anaís fingiu interesse.
— Lezennes, conte-nos tudo sobre essa casa. — Pediu-lhe ela
de forma aduladora. — É pitoresca e encantadora? Teria a areia e o
mar a tocar a porta?
— Sim a todas essas coisas. — Respondeu o visconde com
evidente satisfação — Ou isso me disseram. E é algo mais que uma
simples casa, Charlotte. Alugou-nos isso o próprio embaixador
francês.
— Vê, querida? — Interveio Geoff. — Lezennes está bem
situado no governo. Temo que não devemos ter umas expectativas
tão altas em nossos entretenimentos. Terá que te contentar com um
passeio vespertino pela borda do Sena.
Lezennes riu. Anaís enrugou o nariz.
— Charlotte, quando partem? Sentirei falta dos dois, porque
são os únicos amigos que tenho em Bruxelas.
— Depois de amanhã. — Charlotte dirigiu a seu benfeitor um
sorriso que quase poderia ser brilhante. — Estou muito contente por
Giselle. Nunca esteve no mar.
Geoff ganhou as seguintes vezes e o jogo acabou. Charlotte e
ele tinham vencido e, quando Anaís se desculpou por isso, Lezennes
agitou sua elegante mão e disse:
— Oh, não importa.
Entretanto, o visconde não tirava olho de cima de Charlotte e,
quando retiraram as cartas, sugeriu que tocasse o piano para eles.
Ela concordou um pouco envergonhada e foi escolher a música.
Era o momento, pensou Anaís. Talvez não tivesse outra
oportunidade.
Levantou uma mão um pouco trêmula, tirou uma forquilha
estrategicamente colocada no cabelo e se aproximou com cautela de
sua anfitriã.
— Oh, — Disse. — Poderia me dizer, Charlotte, onde posso
colocar a forquilha? Devo ter a donzela mais parva de toda a
cristandade, porque não sabe nem manter um cacho em seu lugar.
Como estava acostumada a fazer, Charlotte olhou com
inquietação para Lezennes.
— Bom, suponho que pode usar meu quarto. — Disse
finalmente. — Está um andar mais acima, a última porta à direita.
— Oh, obrigado — Disse Anaís.
Dirigiu um rápido olhar cúmplice a Geoff e começou a subir as
escadas justo quando começavam a soar as primeiras notas de uma
valsa do Chopin.
Uma vez acima, dirigiu-se diretamente ao quarto de Charlotte,
uma estadia pequena, mas acolhedora, na parte traseira da casa. Aos
pés da cama tinha aberto um pequeno baú de viagem, à espera de
ser cheio com roupa.
Movendo-se com rapidez, fechou a porta, tirou o ferrolho das
duas janelas, em todo caso, e se aproximou do espelho para colocar
o cabelo no lugar. Menos de dois minutos depois estava outra vez
no corredor, olhando às escondidas a ambos os lados.
Justo quando ia fechar a porta a suas costas, sentiu uma
presença. Não é Lezennes, diziam-lhe seus instintos. Deixou escapar
um suspiro de alívio. A porta que tinha em frente se abriu e viu um
grande quarto, mobiliada muito mais ricamente. Dela saiu um
homem magro e bem vestido.
Ao vê-la, deteve-se em seco e se inclinou levemente.
— Bonsoir, madame. — Disse, e passou rapidamente por seu
lado para subir o seguinte lance de escadas.
O ajudante de quarto de Lezennes. Tinha que ser ele. Tinha o
olhar baixo e o passo rápido de um servente arrasado. Mesmo
assim, seus olhos tinham sido furtivos, e Anaís não confiava em
ninguém.
Quando o ruído de suas pegadas se desvaneceu, inspirou
profundamente para acalmar os nervos e se apressou a levar a cabo
o que tinha que fazer.
A primeira porta que abriu era uma espécie de armazém,
cheio de roupa branca e de artigos domésticos. A segunda era um
pequeno dormitório, obviamente desocupado. Frustrada, Anaís
olhou ambos os lados do corredor, tentando ver no que se
equivocou. Petit tinha estado seguro de que o dormitório da menina
estava na parte frontal da casa.
Além da escada, o corredor fazia um giro brusco. Tinha que
haver outro quarto, mas a esquina faria que lhe resultasse mais
difícil ouvir se alguém se aproximava.
No piso de abaixo, Chopin ainda tilintava nas teclas do piano
de Lezennes. Certamente, não tinham passado mais de três minutos.
Jogando um rápido olhar às escadas, Anaís as passou direto e
dobrou o corredor. Havia somente uma porta. Abriu-a em seguida.
Era um quarto pequeno e estreito. Giselle estava encolhida em
uma diminuta cama de ferro forjado, à esquerda da única janela do
quarto. Um abajur brilhava tênue perto do batente e, no extremo
oposto, havia uma poltrona estofada sobre a que descansava um
cesto de costura. Sobre um dos móveis havia uma meia três-quartos,
como se alguém tivesse se ausentado durante um momento.
Lezennes teria ordenado que a menina nunca ficasse sozinha,
pensou Anaís.
Ao olhar atrás da porta viu outra cama, não muito maior que a
da menina. Fechou a porta, afastou as cortinas para abrir o fecho da
janela e jogou um rápido olhar ao redor do quarto. Junto à lareira
havia um cesto de brinquedos. Correu para ele e pinçou,
procurando algo pequeno, suave e gasto.
Encontrou um cão de pelúcia com uma orelha puída e sem um
olho que pareceu ideal, mas era muito grande para guardá-lo no
bolso. Entretanto, era justo o que uma mãe daria a sua filha.
Pensando com rapidez, Anaís o agarrou, levantou a saia e o
meteu em uma perna da calça de maneira que caiu até ficar no oco
de detrás do joelho. Então, ajustando com cuidado a liga, fixou as
meias e a perna da calçola.
Mas quando se ergueu lhe arrepiou o pelo da nuca.
Ficou totalmente imóvel. Fechou os olhos e se abriu ao espaço
que a rodeava. Havia uma presença. Algo se movendo pela casa.
Muito perto. Sentia-o.. malévolo. E nesse momento, não era o criado
de quarto de Lezennes.
Não tinha sentido esconder-se. O visconde a tinha visto subir
as escadas. Procuraria até encontrá-la. E situada no outro lado do
local cego, tal e como estava, com apenas essa porta...
Tirou rapidamente um lenço do bolso e pensou no mais triste
que pôde evocar. Pensou em Giovanni, frio em seu ataúde no
grande salão de São Gimignano. Em Raphaele de pé na soleira, com
o chapéu na mão e um olhar suplicante em seus olhos castanhos.
Abriu a porta de um puxão e se lançou contra ela. Nem sequer
tinha tido tempo de respirar quando alguém a puxou com violência
e a levou para o corredor.
— Madame, como se atreve...?
Anaís o interrompeu ao deixar escapar um feio choramingo.
As palavras de Lezennes ficaram flutuando no ar, mas não a
soltou.
— Mon Dieu! — Exclamou. — O que está fazendo aqui?
— Oh, milorde, me perdoe! — Choramingou ela contra o
lenço. — Somente vim dar uma rápida olhada.
Ele deixou cair a mão, mas ficou tão perto que Anaís podia
sentir o calor e a raiva que emanavam dele.
— Não tem nada que fazer aqui! — Disse. — Onde está a
garota?
Anaís abriu muito os olhos e sentiu que lhe deslizava uma
lágrima pela bochecha.
— Está aí mesmo, milorde! Dormida em sua caminha! Não a
despertei. Será melhor que fechemos a porta antes que desperte. As
crianças devem descansar.
Lezennes se ruborizou levemente e largou seu braço.
— Refiro-me à faxineira. — Disse com os dentes apertados, e
fechou a porta.
— Não sei senhor. — Sussurrou Anaís. — Apareci só um
instante para dar uma olhada na menina e a pobrezinha estava
sozinha.
— E por fez tal coisa? — Perguntou com os olhos
entrecerrados na penumbra.
Anaís relaxou os músculos da face.
— Bom, como já lhe disse, somente queria vê-la. —
Choramingou. — Porque a pequenina me recorda muito minha Jane
e tenho medo de... Oh, me perdoe, senhor! Tenho medo de não
poder tê-la comigo outra vez!
A última frase a disse em um soluço, com o lenço apertado
contra a face.
— Mon Dieu, madame, do que está falando?
Anaís estava tremendo.
— Oh, milorde! — Sussurrou. — Por favor, não o diga a meu
marido!
— Seu marido? — Por fim Lezennes parecia mais irritado que
zangado. — O que tem a ver seu marido com tudo isto?
— Oh, é muito assustador! — Disse Anaís desdenhosamente,
dando pequenos golpes nos olhos com o lenço. — Ele não sente
afeto por ela. Em realidade, não acredito que a queira
absolutamente!
— Quem? — Perguntou ele. — O que está resmungando?
— Não estou resmungando. — Gemeu brandamente. — Estou
falando de Jane, milorde! Não lhe explicou Charlotte? Meu pai
acordou o matrimônio sem falar com ele sobre Jane. E eu lhe
pergunto... por que deve me culpar por isso? Por que culpar à
pequena Jane? Mas você... Oh, você acolheu Giselle e a quer como se
fosse sua!
— Giselle. — Disse Lezennes, ainda com um toque de suspeita
na voz. — É uma menina, diz? Quantos anos tem, madame
MacLachlan? Não será tão mais velha como Giselle...
Anaís sentiu que a avaliava com o olhar, para adivinhar sua
idade.
— Não, Jane somente tem quatro anos, Milorde, mas se parece
tanto com Giselle... — Fez uma pausa para enxugar os olhos. — Oh,
talvez a dor me tenha feito imaginar coisas. Mas Geoff não acha
nada demais, lhe asseguro.
Sentiu que Lezennes começava a suavizar-se.
— Talvez, com o tempo, tenha carinho à menina.
— Talvez, mas por que não pode ser como você? — Perguntou
Anaís. — Você é tão bom! Tão amável com minha querida Charlotte
e seu anjinho! É obvio, zangou-se comigo agora, mas como poderia
eu me queixar por isso? Você ama Giselle. Somente deseja o melhor
para ela.
Os últimos retalhos de fúria tinham desaparecido de seu rosto.
Uma coordenação perfeita.
Anaís se lançou contra ele e caiu entre seus braços.
— Oh! Como é possível que Charlotte seja tão afortunada de
ter você? — Sussurrou, lhe passando um braço pelo pescoço. — Que
pobre viúva não se sentiria afortunada ao contar com seu forte e
bom ombro no que apoiar-se?
Lezennes deslizou uma mão por suas costas e lhe deu uns
tapinhas entre os omoplatas.
— É você muito amável, madame.
Anaís o soltou, lhe oferecendo uma generosa vista de seu
decote.
— Oh, não, falo com o coração de uma mãe.
Um silêncio incômodo se instalou entre eles. O visconde abriu
a boca para dizer algo, mas pareceu pensar-lhe melhor.
Anaís se enxugou suas últimas lágrimas de crocodilo.
— Bom, acredito que estou apresentável. — Conseguiu sorrir,
embora com olhos chorosos. — Acompanha-me abaixo, milorde?
Lezennes lhe ofereceu o braço e começaram a baixar os
degraus.
— Talvez pudesse explicar a Charlotte quão afortunada ela é,
madame MacLachlan. — Sugeriu ele quando chegavam ao final das
escadas. — Às vezes temo por seu bem-estar. Não estou do todo
seguro de que entenda quão difícil pode ser a vida para uma viúva
sozinha.
— O direi, é obvio, e energicamente, além disso. — Simulou
um olhar de desgosto. — Oh, que chorona que sou! — Sussurrou
justo quando estavam ante as portas do salão. — Temo que lhe
estou fazendo pensar muito mal de meu marido. Suponho que é um
bom homem.
— Supõe?
O visconde arqueou uma sobrancelha enquanto entravam
ainda de braços dados.
A música de piano estava aumentando. Geoff, que estava
passando as páginas da partitura, olhou para Anaís. Lhe fez um leve
assentimento com a cabeça para lhe dar a entender que tinha levado
a cabo sua missão e depois voltou sua atenção a Lezennes.
— A verdade é que apenas o conheço. — Confessou em voz
baixa, aproximando-se mais e lhe dando uma melhor vista de seu
decote. — Foi um matrimônio arranjado, embora quando apresentei
Jane ficou vermelho como um tomate e pensei que ia se jogar para
atrás! No que teria estado pensando meu pai?
— A verdade é que não sei. — Disse o visconde com um olhar
cálido. — As crianças são uma bênção.
— É o que eu digo sempre, senhor! — Exclamou Anaís. —
Bom, agora não se pode fazer nada. Prometo não voltar a olhar
Giselle, se assim o desejar você.
— Está delicada. — Anaís se deu conta de que a atenção do
visconde não estava posta em seu rosto. — Giselle tem... um
problema nervoso. Temo que devo...
— Sim...? — Pressionou-o Anaís.
O visconde levantou por fim o olhar.
— É.. insistir. — Terminou. — Temo que devo insistir.
— Muito bem, então. — Anaís lhe dedicou um sorriso
levemente sedutor. — Mas deve me prometer que, em troca, tentará
me distrair com outro passatempo. Algo que possa me fazer
esquecer minha difícil situação.
— De verdade, madame? — A especulação se acendeu nos
olhos de Lezennes. — E o que tem em mente?
— Oh, senhor! — Disse ela quase sem fôlego. — Não saberia
dizê-lo. Talvez possa me contar algo emocionante... sua vida em
Paris? Ou alguma de suas aventuras?
— Aventuras? — Murmurou.
Anaís se inclinou para ele.
— Estou segura, milorde, de que um cavalheiro tão sofisticado
como você teve muitas aventuras.
— Bem, madame. — Curvou a boca com um sorriso. — Uma
ou duas.
Ela riu muito alto e Geoff voltou a olhá-la sombriamente.
Anaís o ignorou e se recordou qual era seu objetivo. Conseguir que
Lezennes atrasasse sua proposta de matrimônio a Charlotte.
Convencer de que ela era uma inofensiva cabeça oca. Talvez, se
chegasse a confiar nela, poderia inclusive estabelecer uma relação
com a pequena Giselle, embora isso lhe parecia altamente
improvável.
E possivelmente, somente possivelmente, estava desfrutando
um pouco com a fúria de Geoff.
Não queria pensar muito nisso.
Em lugar disso, assinalou com a cabeça para o piano.
— Bom, parecem muito ocupados um com o outro. — Disse
com um sorriso provocador. — Por que não damos um passeio pelo
jardim? A escuridão é muito... refrescante. Suponho que têm um
jardim...
Sabia, pelos reconhecimentos que tinha feito Petit, que não o
tinham.
Lezennes começava a olhar como se fosse um apetitoso
bocado.
— Temo madame, que não o temos. — Murmurou, e assinalou
um divã estofado muito pequeno. — Mas por que não nos sentamos
aqui e eu conto a história de quando estive no exército francês?
Anaís abriu muito os olhos.
— O exército francês? — Disse, arrastando-o ao divã que ele
tinha apontado. — Em que regimento, senhor? Oh, me diga que era
um regimento de cavalaria! Sempre pensei que não há nada mais
prazeroso para uma mulher que olhar para cima e ver um homem
arrumado montado em... Bom, quase em qualquer coisa em
realidade.
Durante um instante, Anaís temeu ter ido muito longe. Mas
assim que o assombro desapareceu do olhar de Lezennes, o ardor
retornou três vezes mais forte. Pediu-lhe que se sentasse e durante
um momento a esteve amenizando com suas histórias de guerra, um
processo que incluía muito pouca guerra e uma grande dose de
ostentação.
Também incluiu muitas risadas e cada vez mais olhadas
íntimas.
Entretanto, de vez em quando o visconde olhava também a
Charlotte, como se estivesse comprovando sua reação por haver
levado seu enjoativo encanto a outra parte.
Mas Charlotte não estava olhando e, quando a longa peça
terminou e Geoff pôde se afastar do piano, Lezennes tinha pego
uma mão de Anaís e lhe estava propondo que fossem de carruagem
juntos no dia seguinte, à aldeia de Waterloo, perto da última posição
da grand armée.
Anaís apostaria que ele não pretendia ir mais longe do que
uma estalagem nos subúrbios de Bruxelas.
Geoff, entretanto, apostava que não iriam a nenhuma parte.
— Temo que é impossível. — Disse. — Tenho pensado ir
amanhã esboçar o interior do Kappellekerk. Talvez possamos ir
todos juntos em outra ocasião.
Anaís o olhou com exasperação.
— Mas não me necessita para desenhar. E a Charlotte não
interessam as coisas militares, verdade que não, Charlotte?
Esta confirmou que não.
— Mas quero que me acompanhe. — Disse Geoff friamente. —
Temo que devo insistir.
Anaís puxou levemente o lábio inferior e o mordeu enquanto
olhava para baixo.
Lezennes reagiu e seu olhar se voltou a ser cálido de novo.
Apesar disso, não deixava de observar Charlotte pela extremidade
do olho. Anaís se deu conta de que o visconde estava desfrutando
maliciosamente com tudo aquilo. E se não conseguia pôr ciumenta a
Charlotte, pelo menos esperava conseguir um bom tempo, e tudo
sem sofrer moléstias.
Anaís estava disposta a oferecer-lhe ou, bem, a fingir que o
fazia.
— Está se fazendo tarde. — Disse Geoff. — Anaís, apanha seu
xale. Já roubamos muito tempo de nossos anfitriões.
Depois de uma sequência de xales e beijo na bochecha,
seguida das despedidas na porta principal, Anaís e Geoff cruzaram
a Rue de l'Escalier até sua casa. Ela podia sentir que de Geoff
emanava uma fúria quase desenfreada.
Bom, pois se consuma nela, decidiu. Subiu os degraus,
procurando em sua bolsa em busca da chave. Geoff reagiu tirando a
sua e a introduziu com brutalidade na fechadura.
— Nem te ocorra fazer um truque assim outra vez. — Disse
ele com voz fria como uma tumba.
— Tínhamos um trabalho a fazer. — Passou a seu lado quando
Geoff abriu a porta. — E eu o estava fazendo.
Anaís entrou e jogou o xale sobre a mesa do saguão. Ouviu
que detrás dela a porta se fechava com ferrolho. Depois disso, tudo
aconteceu rapidamente. Geoff a agarrou por um ombro e a obrigou
a dar a volta. Rapidamente, Anaís se encontrou aprisionada contra a
porta.
A atraente face de Geoff se contraiu em uma careta.
— Maldita seja, Anaís. — Disse com voz rouca. — Quer me
deixar louco?
— E isso é possível? Acreditei que foi tão...
— Direi o que sou. — Interrompeu-a e a sacudiu um pouco. —
Sou um homem cansado de ver como você se jogou nos braços de
Lezennes. Te disse que não o fizesse. Ir com ele a sós em uma
carruagem...?
— Geoff, me apanhou no quarto de Giselle. — Sussurrou. —
Tinha que fazer algo. Além disso, sabia que você nunca permitiria
esse passeio e não sou tão estúpida para ir. Agora, faz o favor de me
soltar os braços.
Mas ele não tinha intenção de fazê-lo. Na tênue luz do abajur
da entrada, ela podia ver seus olhos, mais frios e implacáveis que
nunca. O peso e a altura dele a pressionavam contra o sólido bloco
de carvalho. Podia cheirar a mescla de irritação e desejo que
emanava de sua pele, o aroma cítrico e o tabaco misturado com
suor.
Olhou para cima e soube que ia beijá-la. E, vergonha de todas
as vergonhas, ela não pensava impedir-lhe ao final.
Talvez, nem sequer a princípio...
Inclinou levemente a cabeça, entrecerrou os olhos e ouviu que
ele amaldiçoava entre dentes.

*****

Geoff viu as longas pestanas negras de Anaís acariciar suas


bochechas e se rendeu um pouco mais. O medo, a frustração e o
desejo corriam incontrolavelmente em seu interior. Afundou os
dedos no suave cabelo de sua nuca e a imobilizou com um beijo ao
deslizar a língua em sua boca, invadindo-a.
Anaís se abriu a ele e soltou um pequeno som gutural. Ouviu
vagamente o ruído que fez uma forquilha ao cair ao chão. Geoff lhe
pôs uma mão sob o quadril e não se afastou. Sentia-se incapaz de
fazê-lo. Necessitava que ela compreendesse que era dele.
Intercambiaram beijos como tinham intercambiado estocadas,
provocando-se um pouco perigosamente. As línguas se deslizavam,
uma ao redor da outra, como se fossem seda cálida. E quando sentia
que a paixão estava a ponto de afogá-lo, afastou a boca para deslizar
os lábios por seu pescoço. Sussurrando seu nome, começou a
mordiscá-la e a saboreá-la, e depois passou a língua pelo doce ponto
onde lhe palpitava o pulso.
— Anaís. — Murmurou contra sua pele. — Oh, amor, é muito
tarde.
— Muito... tarde?
— Não podemos escapar do que há entre nós.
Tinha o membro pressionado, duro e premente, contra a
suavidade de seu ventre. Parecia alguém apaixonado e demente,
não indiferente e frio. Ardia de paixão por aquela mulher; desejava-
a como não tinha desejado a ninguém em sua vida. Havê-la visto
aquela noite, ter visto como Lezennes a comia com os olhos, o tinha
enlouquecido. Porque certamente, um homem estava louco se fazia
aquilo.
Ocultou o rosto no oco de seu pescoço e subiu uma mão até
tomar um de seus seios. Anaís ofegou. Geoff enganchou o polegar
na borda franzida do decote e puxou para baixo até que o
exuberante seio ficou livre para ser saboreado.
Depois disso, tudo ocorreu com uma rapidez alimentada pelo
desejo.
Mantendo-a ainda prisioneira com seu corpo, meteu um
mamilo na boca. Sugou-o profundamente e depois deslizou a ponta
da língua para frente e para trás sobre ele. Ela gemeu com
suavidade e deixou cair a cabeça para trás, contra a porta.
Era uma loucura, sim. Levantou-lhe bruscamente as saias.
Agora. Tinha que ser agora.
Mais tarde foi incapaz de recordar o momento em que se
aliviou. Somente era consciente de uma necessidade: a de estar
dentro dela. Nem sequer pensou no fato de que havia uma cama só
um lance de escadas mais acima e de que algum servente poderia
vê-los a qualquer momento. Somente queria satisfazer o feroz e
intenso desejo de penetrá-la. De reclamá-la. De derramar-se em seu
interior.
Não lhe pediu permissão. Encontrou a fenda das calcinhas.
Introduziu os dedos em sua umidade e sentiu que todo o corpo dela
tremia.
— Perna. — Disse com voz rouca. — Ponha... Ah...
E de repente se encontrou investindo dentro dela, sem se dar-
se conta de como tinha ocorrido.
Oh, já tinha feito outras vezes, uma união rápida e furtiva
roubada em algum momento oportuno, com alguma mulher que
sabia o que estava fazendo. Mas no fundo de sua consciência lhe
queimava a certeza de que era Anaís.
Anaís, que merecia algo melhor. A mulher a qual estava se
apaixonando loucamente.
E, mesmo assim, não podia parar.
Não estava seguro de que ela quisesse que o fizesse.
— Aah. — Suspirou ela. — Sim...
Ele a sustentava em equilíbrio, com as mãos lhe sujeitando as
nádegas e mantendo suas costas na porta. Ela tinha enroscado uma
perna ao redor dele para elevar-se ansiosamente. Em seus braços, a
sentia leve como uma pluma, como se fosse parte dele. Como se
aquilo fora algo perfeito, em vez de algo sórdido.
Geoff a levantou um pouco mais e introduziu toda sua
longitude na calidez de seu corpo. Ela estava úmida de desejo e se
contraía ao redor do membro invasor, e ele pensou nesse momento
que ia explodir. Investia uma e outra vez, pressionando-a contra a
porta, enquanto que a respiração ofegante dela se entrecortava com
cada investida.
Tinha os olhos quase fechados e, a boca, entreaberta.
— Sim. — Sussurrou. — Assim... Geoff... Oh, não pares...
Chegou ao clímax rapidamente, no calor e a precipitação do
momento. Ele sentiu que a liberação a invadia, viu com prazer que
jogava a cabeça para trás contra a porta e que sua adorável garganta
se movia para cima e para baixo. Ao redor de seu membro, o corpo
dela pulsava e se contraía, com a perna enroscada com força ao
redor de seu quadril para impulsionar-se para ele.
Geoff sentiu vir sua própria liberação, penetrando-a uma e
outra vez, e o prazer foi como se abrisse o céu. Como se o
arrastassem em corpo e alma a essa gloriosa luz branca.
Um bom momento depois, foi vagamente consciente de um
som. O lúgubre tom-tom-tom do relógio de pé no outro lado das
escadas. Ainda sustentava Anaís contra ele, ambos com as testas
úmidas tocando-se levemente.
— Geoff? — Caiu para trás contra a porta, tentando recuperar
o fôlego. — Já...terminou?
— Diabos, não. — Grunhiu. — Nem de longe.
Capítulo 1 6

"Os guerreiros vitoriosos primeiro ganham e depois vão à guerra,

enquanto que os guerreiros vencidos primeiro vão à guerra e

depois procuram a vitória."

Sun Tzu, A arte da Guerra

A realidade do que acabara de fazer começou a tomar conta


dele. Santo Deus, a tinha tomado contra uma porta, como se fosse
uma prostituta que valia dois pence. E na entrada, onde um serviçal
poderia ter aparecido a qualquer momento.
Mas toda casa a estava em silêncio. Os criados foram dormir
como ele havia ordenado, e o relógio batia as horas, como sempre.
Conseguiu ouvir o estrondo de uma carruagem que cruzava a Rue
de l'Escalier.
Depois, tudo voltou a ficar em silêncio. Ninguém tinha
despertado.
Baixou Anaís com suavidade e sentiu que deslizava a perna
por seu quadril até tocar o chão.
— Oh. — Ela voltou a dizer.
Geoff a beijou com suavidade mais uma vez, ajustou-lhe o
vestido de seda verde mar e a pegou nos braços. Foi então que
notou que ela tinha preso no joelho um tecido suave.
— Um cão de pelúcia. — Sussurrou ela. — Espero que não
caia, para você não tropeçar.
Só faltava isso: cair rolando escada abaixo, meio vestido e
ainda acordar os serviçais, que viriam correndo para ver o que era
todo esse alvoroço.
Ele subiu as escadas até o dormitório de Anaís com ela nos
braços. Abriu a porta com o cotovelo e a largou na beira do colchão,
junto a uma mesinha onde ardia um abajur de azeite. A luz suave
piscou, deixando a metade de seu adorável rosto na penumbra.
— Vou te despir Anaís. — Sussurrou ele. — Muito devagar, e
depois vou te deitar nesta cama e fazer amor adequadamente.
— Ah! — Ela o observava com olhos saciados e um sorriso
debochado nos lábios. — E eu não posso dizer nada?
— Quase nada. — Replicou, e passou os braços por suas costas
para desabotoar os botões do vestido. — Suponho que poderia
dizer não.
— E o que você faria?
Ele deslizou um dedo pela borda do espartiho e os mamilos
dela endureceram.
— Convenceria você de outra maneira. — Disse, com voz
rouca, puxando o espartiho para baixo, mas só o suficiente para
deixar livres seus adoráveis seios. — Quer que comece?
Ela levantou um braço e pôs a mão no rosto dele.
— Geoff, eu...
— Não. — Interrompeu ele, beijando-a nos lábios. — Não
gaste o pouco tempo que temos juntos, amor. É o destino, e se
lutarmos contra ele, vamos enlouquecer.
Ela baixou os olhos quase envergonhada, e Geoff a sentiu
estremecer.
Antes que a noite acabasse pensava em conseguir muitas
coisas mais, além de um estremecimento.
Inclinou a cabeça e acariciou o doce mamilo rosado com a
ponta da língua, e viu com satisfação que endurecia. Lambeu-o
lentamente, com pequenos movimentos, seguidos de um círculo
longo e pausado e, quando ela suspirou, passou ao outro mamilo.
— Você é implacável. — Sussurrou, em voz tão baixa que ele
mal a ouviu.
Ele deixou um rastro de beijos até a clavícula, e terminou de
desabotoar os botões. O vestido dela era delicioso, de um tom de
verde reluzente como as águas superficiais do Adriático no por-do-
sol, e quando o deslizou para baixo junto com a anágua, viu que as
ligas eram feitas de seda da mesma cor e que tinham um cós de uma
deliciosa renda branca.
Deixando escapar um som de apreciação, ajoelhou-se e
começou a tirar as meias de seda. O cachorro de pelúcia desceu pela
perna e rolou até ficar debaixo da cama.
Anaís levantou os olhos e o olhou com acanhamento.
— Ninguém nunca tinha me despido assim. — Sussurrou.
— Tiraria sua roupa assim todas as noites da semana. —
Respondeu, acariciando a panturrilha.
Mas não podia. Não por muito tempo. Anaís não era dele e,
provavelmente, nunca seria.
Ao dar-se conta disso, ficou furioso. Era como se antes de
conhecê-la, sua vida só tivesse sido uma medíocre imitação da
paixão. Vagos sentimentos disfarçados de amor, luxúria e desejo.
Depois que baixou as meias e as ligas, ficou de joelhos e
desatou o laço das calcinhas, que deslizaram pelas coxas e caíram
nos tornozelos. Geoff beijou uma coxa e continuou beijando mais
para cima, enquanto mexia em seus cachos com um dedo.
— Oh! — Gritou ela, com voz débil.
— Abra as pernas para mim. — Grunhiu.
Anaís segurou-se a coluna da cama. Ele a acariciou
intimamente, deslizando os dedos em sua calidez, e ela fechou os
olhos com força, emitindo um suave som gutural.
Geoff deixou um rastro de beijos pela curva de seu ventre
pensando na escuridão e no mistério do bosque, nas profundezas
sombrias dela que ainda estava por explorar. Era uma criatura
sensual, misteriosa e sobrenatural. Intrinsecamente erótica, de uma
forma que ela nem sequer compreendia.
Desejava ardentemente instruí-la, vê-la se converter na mulher
formosa e voluptuosa que estava destinada a ser. Seduzir sua
natureza feminina para que se abrisse como uma flor à suas carícias.
Sentindo uma impaciência repentina, levantou-se e começou a
puxar o lenço de pescoço.
Ela abriu os olhos, largou a coluna e levou a mão ao pescoço
dele.
— Pare, e levante o queixo. — Repreendeu-o
Sorrindo levemente, ele fez o que ela pedia.
— Tem uma mandíbula arrogante. — disse ela, enquanto
soltava o laço. — Sabia?
Ele não disse nada e ela terminou de desamarrar o lenço e o
deixou cair no chão. Depois tirou o casaco, deslizando pelos ombros,
e com dedos hábeis e magros desfez rapidamente os botões do
colete que também caiu ao chão, com um leve som.
Geoff não podia deixar de olhá-la. Ela ainda o desejava muito
para recusá-lo, graças a Deus, mas não parecia muito contente com
isso.
Ele jurou que a faria feliz.
Jurou que, quando saísse o sol, não haveria como voltar atrás
para nenhum dos dois.
Com uma mão, tirou rapidamente a camisa por cima da
cabeça. Sem deixar de olhá-la nos olhos, desfez-se dos sapatos com
um chute e desabotoou o único botão da calça.
Anaís posou as cálidas mãos sobre seus quadris e deslizou
para baixo as calças, junto com a roupa de baixo. Sua virilidade
saltou já endurecida. Ela segurou-o com uma das mãos e o
acariciou. Prendendo a respiração e encolhendo o estômago, ele
fechou os olhos e se perguntou se seria possível alcançar o clímax só
com a carícia dos dedos de uma mulher.
Talvez. Se fosse a mulher adequada.
Não podia esperar. Tomou-a em seus braços, a beijou
profundamente, caindo com ela sobre a cama. Anaís separou as
pernas para acolhê-lo.
— Entre em mim, Geoff. — Sussurrou.
Ele obedeceu, mas a penetrou lentamente. Mesmo assim,
sentiu que ela se contraía ao seu redor. Fechou os olhos e tentou se
conter, os braços tremendo. Queria amá-la durante um bom tempo,
até que a respiração dela se convertesse em suaves e doces suspiros
na noite.
Ela voltou a sussurrar seu nome, enroscando uma perna ao
redor da sua puxando-o ainda mais em seu interior, envolvendo-o
com sua umidade e calidez. Ele se afundou em sua carne como um
homem que abraça seu destino. Sentia como se estivesse, por fim, no
lugar ao qual pertencia.
Quantas vezes tinha feito amor com uma mulher, só para
depois deixar sua cama um pouco mais perdido e muito mais vazio?
Com Anaís não era assim. Com ela o desejo era muito mais forte e
dilacerante. Com os olhos fechados, começou a mover-se em seu
interior. Anaís tomou seu rosto entre as mãos e o beijou longamente,
enquanto se elevava para encontrar com ele a cada investida.
Pertencia a ele.
E ele era dela.
Quanto antes se rendessem a essa verdade, melhor.
Era linda, sua ninfa do bosque. Na fresca quietude do
dormitório, penetrou-a um pouco mais, adequando-se a seu ritmo e
suspiros até que o suor banhava seu corpo. Mas ainda não era
suficiente. Nunca seria suficiente.
Deslizaria no interior dela uma perfeita e última vez e aí sim,
se derramaria em seu ventre com incessantes investidas.
Entretanto, estava começando a necessitar muito mais que o
simples alívio.
Neste momento, ela subiu a perna para sua cintura e engoliu
em seco com dificuldade. A maior parte de seu cabelo tinha se
soltado do penteado e estava esparramado sobre a colcha, como um
precioso tecido de seda. A luz do abajur oscilava e dançava sobre a
nudez dela, dando calidez à pele. Com um suspiro entrecortado,
afundou a cabeça na suavidade do travesseiro, o rosto contraído
pela deliciosa busca do prazer.
Ele colocou a mão sob a exuberante nádega e a elevou
ligeiramente, depois investiu um pouco mais para cima, buscando
aquele ponto doce e sensível.
Encontrou-o, e se uniu a Anaís, em corpo e alma. Ela arqueou
contra ele, com o corpo rígido como uma corda tensa, abrindo muito
os olhos enquanto arranhava suas costas com as unhas. E então
estremeceu e convulsionou sob ele, gritando seu nome.
Pertencia a ele.
E ele era dela.
E por isso ele a reivindicou da maneira mais carnal e
selvagem, com Anaí palpitando a seu redor. Um som triunfante
brotou da sua garganta, quase brutal, como se surgisse do fundo do
peito.
Afundando os dedos em seu cabelo, a manteve imóvel
enquanto mordia a pele suave do pescoço, sem deixar de empurrar
furiosamente dentro dela. Quando alcançou o orgasmo sentiu um
tremor desesperado de prazer ardente. Os testículos contraíram e os
braços estremeceram. Então jogou a cabeça para trás e com um
profundo gemido, introduziu-se uma última vez.
Depois disso caiu sobre ela, sentindo o aroma de sexo, água de
rosas e suor. Pousou os lábios em seu pescoço com mais suavidade
que antes, sussurrando seu nome. Anaís o abraçou e ele sentiu que
estava perdido nela para sempre.

*****

Geoff recuperou a consciência ouvindo o relógio no canto da


escada bater duas horas. Podia sentir a cabeça de Anaís ainda
apoiada em seu ombro, na mesma posição que tinha estado quando
ele adormeceu com essa doce e branda letargia que inevitavelmente
seguia ao gozo sensual.
Inclinou a cabeça sobre o travesseiro e, ao olhar para baixo, viu
que ela o observava, com os olhos muito abertos, um olhar sincero e
sem pestanejar.
Beijou-lhe a ponta do nariz.
— Esquecemos apagar o abajur. — Murmurou ele.
— Oh, esquecemos muitas coisas. — Respondeu com um
sorriso um tanto irônico. — Mas eu gosto da luz. Gosto de olhar
você.
Agora, foi ele quem sorriu.
— De verdade?
Ela entrecerrou os olhos, moveu-se até ficar sobre ele, e passou
a ponta da língua ao redor do mamilo, fazendo com que perdesse o
fôlego.
— Oh, sim. — Sussurrou. — Seu rosto é formoso, é obvio, mas
este peito... Ah, é magnífico. Estou segura que você sabe disso.
Ele riu.
— Você nunca deixa de dizer coisas como essa. Como se
esperasse o pior de mim. Muita experiência com homens atraentes e
arrogantes?
Anaís se deixou cair novamente de costas sobre o braço dele.
À luz do abajur, seus seios pareciam pêssegos amadurecidos.
— O suficiente. — Respondeu. — Mas tem razão. Escolhi as
palavras precipitadamente.
Ao ouvi-la, ele jogou a cabeça para trás e riu com vontade.
— Me diga algo gentil, Anaís. Ou você espera sempre o pior
de mim... É isso?
— Geoff, não vamos discutir. — Pediu, voltando a mover-se
para ele, até apoiar a frente do corpo em suas costelas. —
Desfrutemos disto, seja o que for.
Ele colocou um dedo sob o queixo dela para levantar seu
rosto.
— É um assunto muito sério. — Disse-lhe, em voz baixa.
Ela abriu muito os olhos.
— Um assunto muito sério? — Repetiu. — Me diga Geoff,
como sério? Deixei meus sentimentos e meus planos à parte porque
me deu a entender que seus cuidados não estão postos em outro
lugar.
Ao ouvir essas palavras, Geoff sentiu que a irritação o invadia.
— Sou livre para colocar meus cuidados onde me agrade. —
Replicou. — E se algum intrometido, como, digamos meu velho
amigo Lazonby, sugeriu-te outra coisa, asseguro-te que me ocuparei
dele mais tarde.
Ela virou a cabeça para outro lado.
— Não deve culpar Lazonby.
— Então, a quem?
— Não importa. — Murmurou. — É somente algo que disse
naquele dia, na biblioteca da Sociedade de Saint James.
Sim, importava, e muito.
Geoff mordeu a língua e obrigou-se a lembrar o que haviam
dito naquele dia. Havia se sentido desconfortável por viajar a sós
com Anaís, porque, então já se sentia perigosamente atraído por ela.
Só Deus sabe o que havia dito. Algo sobre estar preparado para
cumprir com seu dever para conseguir o título, acreditava. Para uma
mulher tão esquiva quanto ela, talvez fosse o suficiente.
Ficou calado por muito tempo e Anaís levantou o olhar para
ele.
— Vou perguntar outra vez, Geoff, colocaste teus cuidados em
outra parte? E me responda com sinceridade, por favor.
Ele sentiu uma onda de frustração... e ficou inquieto.
— Sim. — Confessou. — Mas em um sentido muito vago.
— Pode ser que para a dama em questão não fosse tão vago. —
Murmurou ela.
Geoff sentiu o rosto quente, como se fosse um colegial que
acabavam de repreender.
— Vou me desculpar com a dama assim que retornarmos a
Londres. — Assegurou. — Sem dúvida, vai se sentir aliviada.
Mas Anaís o olhava com tristeza.
— Isso você não pode saber. — Disse, aproximando mais a
cabeça e enroscando uma perna ao redor da sua. — Que o que
aconteceu seja nosso segredo, Geoff. Não poderia suportar que
alguém mais saísse ferido. E isto, este fogo que há entre nós dois, vai
consumir-se. Estamos destinados a seguir caminhos diferentes.
Ele sentiu um nó na garganta.
— Poderia amar a outro tão facilmente, Anaís? — Perguntou
com voz rouca.
— Não sei. Só sei que prometi a minha... família que me
casaria com alguém que minha bisavó aprovasse. E, se encontro o
homem adequado, o farei.
— Mas já tem vinte e um anos, Anaís. — Recordou-lhe com
suavidade. — Passou grande parte de sua vida na Toscana. E ainda
não encontraste o homem de seus sonhos.
— Obrigado, Geoff, por me recordar que sou uma solteirona.
— Disse, com amargura na voz. — Mas não se trata de mim.
Deixaste algo pendente em Londres, assim, tome cuidado de que
ninguém sofra, alguém que não o mereça, porque eu estive em
ambas as partes dessa situação e te asseguro que dói.
Ele se deu conta de que ela tinha razão. Refletiu sobre isso e
não disse nada, mas por dentro amaldiçoou sua impaciência aquele
dia no templo. Tinha ficado zangado com Rance e com pena de lady
Anisha. Assim, se armou de coragem e tinha feito o que Rance não
faria... Mas estava arrependido.
Anaís voltou a falar.
— E eu tenho vinte e dois anos. — Disse, em um falso tom
alegre. — Meu aniversário foi a semana passada.
— O meu também. — Respondeu ele em voz baixa. — Os dois
são próximos, não? E não é uma solteirona, amor. Está na flor da
vida.
— Pfff. — disse ela.
Ele ficou calado por um instante e passou o dedo pelo quadril
dela, sobre a elegante tatuagem que marcava seu destino. E que
também marcava o dele.
— Não acreditei em Lazonby quando revelou que você levava
este símbolo. — Murmurou. — Não posso imaginar nenhuma
família marcando uma mulher. Mas ele me assegurou que o tinha
visto.
— Se te assegurou, mentiu. — Afirmou ela.
Geoff a olhou.
— O quê? — Disse ela com incredulidade. — Pensou que
mostrei o meu traseiro a Lazonby?
— Não o fez?
Ela voltou a relaxar a cabeça sobre seu peito e colocou a mão
no coração dele, em um gesto protetor.
— Bom, suponho que o teria feito se fosse necessário. — Disse
pensativa. — Sem dúvida, ele já viu mil traseiros nus em sua vida
dissoluta.
— Oh, sem dúvida. — Concordou.
— E ele tampouco acreditava que eu tivesse essa marca. —
Reconheceu ela. — Sugeri que enviasse uma das serviçais, se
desejava ter certeza. Mandou sua ama de chaves, uma enorme bruxa
que falava com um acento irlandês marcado, e ela deu uma olhada.
Imediatamente soube o que era.
— Ah. — Disse ele, sentindo-se aliviado.
Mesmo assim havia dito que mostraria a Lazonby, se fosse
preciso. Anaís era uma mulher solícita, percebeu, talvez demais. Era
uma das características que mais respeitava nela. E também era isso
que o fazia parecer ainda mais malvada.
Ah, mas um homem não podia ter as duas coisas, não? Uma
mulher caprichosa e covarde teria sido intolerável. E Anaís nunca
seria nenhuma dessas coisas.
Entretanto, começava a pensar que sua fidelidade nem sempre
tinha sido recompensada. Alguém colocou essa ponta de amargura
em sua voz. Alguém tinha deixado esse toque de tristeza cansada da
vida em seus olhos castanhos. Agarrou com força o lençol, como se
estivesse estrangulando o responsável.
Mas ela não necessitava que a defendessem. Era forte, e fosse
quem fosse esse homem, teve uma formidável adversária. Relaxou a
mão e a aproximou mais dele.
— Quer falar dele, amor? — Murmurou.
Anaís se esticou levemente entre seus braços.
— Não era do meu conhecimento que você podia ler mentes.
— E não posso. — Respondeu. — Não preciso. Conheço-te
como um amante, Anaís. E sei também que você não merece sentir
nenhuma decepção.
Isso fez que, pelo menos, ela risse um pouco.
— Geoff, depois do que experimentei, pensei que a palavra
"decepção" tinha desaparecido do meu vocabulário. E não, não quero
falar dele. Não merece que eu desperdice um só instante do pouco
tempo que fico contigo.
Aí estava outra vez. Esta frase que ele estava começando a
odiar.
Sentia que os dias que passava com ela se esgotavam
rapidamente, e ansiava abrir os braços para freá-los, como se fossem
uma corrida de cavalos cuja velocidade pudesse reduzir. Mas isso
poria em perigo Charlotte e Giselle. Comprometeria a missão.
— Mesmo assim, uma vez o amou. — Disse ele, mais para si
mesmo que para ela. — Era o homem que pensava que seria seu par
perfeito. E eu... Bom, sinto-me inexplicavelmente ciumento.
Durante um momento ela ficou em silêncio entre seus braços,
e ele pensou que não ia responder. Finalmente, ela suspirou.
— Era meu professor de esgrima florentina. — Disse. — O
homem que Vittorio contratou para que me treinasse.
Geoff sentiu o coração contrair-se.
— Santo Deus. Quantos anos tinha?
— Dezessete. E não era uma ingênua, Geoff. Devia ter
percebido. Mas o que posso dizer? Raphaele sabia como fazer que
seu oponente baixasse a guarda.
— Mesmo assim, com dezessete anos era muito jovem, e ele
deveria ter visto isso. Seduziu você?
— Oh, completamente. Depois de dizer o muito que me
amava, que não podia viver sem mim, que queria casar-se comigo.
Depois de algumas semanas, venceu minha resistência com seus
olhares e seu encanto.
— Que canalha mentiroso. — Disse ele com os dentes
apertados.
Ela tinha o olhar perdido.
— Um canalha, sim. Mas não acredito que fosse um completo
mentiroso. Agora que sou mais velha, olho para trás e penso... Penso
que, naquele momento, falava a verdade. Que me amava, na medida
que um homem como ele podia amar a alguém que não fosse ele
mesmo.
— E estava loucamente apaixonada por ele?
— Ah, sim. — Sussurrou. — Da maneira drástica e
dilaceradora que uma jovem se apaixona pela primeira vez. Mas
agora, quando penso nisso, me pergunto se não estaria apaixonada
pela ideia dele.
— E teria sido uma má união? — Perguntou ele. — Sua
família se opôs?
Ela pensou outra vez.
— A princípio, minha família não sabia. — Disse finalmente.
— Tampouco Vittorio. Raphaele disse que deveríamos manter
segredo até que eu fosse um pouco mais velha. Que Vittorio
pensaria mal dele por ter ido a São Gimignano me seduzir quando
deveria me ensinar.
— E você concordou?
Ela assentiu, colocando a cabeça no travesseiro.
— Fui uma tola. — Disse. — Adorava-o. Ele era mais velho...
tinha vinte e quatro anos! E mais sábio, eu acreditava. E me sentia
como se fosse a mulher mais afortunada do mundo. Que um homem
tão lindo queria casar-se comigo...
— Anaís, pare. — Ordenou-lhe. — Ele era o afortunado por
ter você... e eu diria que mereceu te perder.
Anaís, entretanto, parecia perdida em suas lembranças.
— Mas sim, pensei que era meu homem ideal. Era tão
elegante... Tão engenhoso e encantador... E vê-lo com uma espada...!
— Fez um gesto tipicamente italiano, levando os dedos aos lábios.
— Esse homem era como poesia. Me permitiu amá-lo, mas durante
todo o tempo, o sonho parecia muito tênue, muito frágil. E ao final,
soube por quê.
Inexplicavelmente, ele sentiu frio no coração.
— Por quê?
Anaís fechou os olhos e engoliu em seco.
— Porque nunca poderia casar-se comigo. Não naquele
momento.
— Por quê?
O sorriso dela se torceu com amargura.
— Porque já tinha uma esposa. — Sussurrou. — Tinha casado
há pouco menos de um ano, um matrimônio arranjado. Vittorio não
sabia e Raphaele... Bom, ele achou conveniente não mencionar.
Geoff voltou a apertar a mão em punho.
— Que bastardo.
Anaís riu bruscamente.
— Isso foi exatamente o que Vittorio lhe disse. Isso, e coisas
muito piores. Raphaele procedia de uma família que estava há
muito tempo vinculada com a Fraternitas, na Toscana. Eram gente a
quem Vittorio estava disposto a confiar sua vida... e a mim.
— Santo Deus. — Sussurrou ele. — O que fez Vittorio?
Anaís o olhou vagamente, assombrada.
— O que fez? — Repetiu. — Era toscano. Era Vittorio.
Agarrou seu florete favorito e lhe cravou no rosto, como se fosse um
nabo.
— Santo Deus. — Voltou a dizer.
— Sim. Digamos que, quando a esposa de Raphaele o teve de
volta, já não era tão atraente como quando a deixou.
Todo aquilo enojou Geoff.
Um homem casado.
E um Don Juan atraente e implacável, unido em segredo com
outra mulher...
Era parte do que enojava Anaís. É obvio que era.
Mas ele não era Raphaele. Não estava casado, nem sequer
prometido. Ele somente tinha pedido permissão para cortejar uma
dama solteira.
Coisa que, em seu mundo, era perigosamente perto de lhe
oferecer matrimônio.
Não ia propor matrimônio a lady Anisha Stafford. Não mais.
Sob nenhuma circunstância. Mesmo assim, continuava sendo uma
querida amiga. Ela era uma dama elegante e bem educada, de
deliciosa beleza, que não tinha sido recebida com muito entusiasmo
pela sociedade londrina, porque sua pele não era suficientemente
pálida, e seu sangue suficientemente inglês. Não merecia que
também lhe fizesse mal.
Anaís tinha razão: deixou algo pendente em Londres. Algo
muito importante.
E de repente tinha clareza do que devia fazer, pelo bem de
todos. Ia ter que explicar tudo a lady Anisha, e não com uma carta.
Escrever à sua própria mãe e ao irmão de lady Anisha não era
suficiente. Além disso, Ruthveyn, que nesse momento estava em um
barco mercante das Índias Orientais com destino à Calcutá,
certamente não receberia essa carta em meses.
Suspirou sonoramente e apoiou-se sobre um cotovelo para
olhar ela.
— Vou dar um jeito nisto, Anaís. — Disse em voz baixa. —
Me refiro à minha situação. Essa mulher é só uma amiga, e tanto ela
como eu desejamos a felicidade do outro. Não estamos apaixonados,
teria sido um matrimônio de conveniência.
Ela negou com a cabeça.
— Isso soa como algo que um homem diria... e inclusive
acreditaria. — Sussurrou. — Por favor, não diga nada mais. Não
posso suportar ser a causa de...
— Shh... — Interrompeu-a, pondo um dedo em seus lábios. —
Não causaste nada.
Mas ela se limitou a apertar os lábios, parecendo triste.
— Anaís, amor, eu não sou Raphaele. — Aproximou a mão e
colocou um cacho do cabelo rebelde atrás da orelha. — E Raphaele
se foi, é parte de seu passado. Virtualmente está morto e enterrado.
Ela riu sem humor.
— Oh, não acredite nisso. Não, Raphaele é insistente, isso
tenho que reconhecer. Depois da morte de Vittorio chegou a
conclusão que estava a salvo, suponho.
Algo se acendeu na memória do Geoff.
— Sim, disse que o tinha visto na missa do funeral.
— E não só então. — Falou, com o olhar perdido em algum
lugar do quarto. — Veio à vila do Vittorio, pouco antes.
— Que bastardo atrevido! — Geoff apertou os dentes. — O
que queria?
— Fazer as coisas à sua maneira. — Disse ela com amargura.
— Mas não conseguiu. Raphaele não é desses homens que aceitam
de boa vontade o que não podem mudar... e não pode me fazer
mudar de opinião.
— Pensou que poderiam retomar de onde tinham parado? —
Perguntou, encolerizado. — Pensou que estaria disposta a cometer
adultério com ele?
Anaís voltou a ficar em silêncio. Seu rosto era uma máscara
inexpressiva.
— Ela morreu. — Sussurrou finalmente, com voz distante. —
A mulher de Raphaele morreu no parto, depois que Vittorio o
enviou a Florença com o rabo entre as pernas. E quando Vittorio
morreu, ele pensou que...
Geoff não sabia o que dizer.
— Santo Deus. — Conseguiu falar.
Anaís levantou o rosto para ele com olhos suplicantes.
— Veja o quanto Raphaele me conhecia. — Sussurrou. —
Supôs... Bom, não sei o que supôs. Que eu estive com o coração
partido durante todo esse tempo? Que havia estado esperando-o?
Tudo o que eu queria era cobri-lo com azeite para abajur e lhe atear
fogo. Mas ele não sabia... Porque a verdade era que, apesar de todas
suas palavras bonitas, Raphaele nunca chegou a me conhecer.
— Não. — Disse ele com firmeza. — Não, definitivamente,
não, ou teria pensado melhor antes de te incomodar.
Anaís riu, e foi um som leve e avassalador. Depois o
surpreendeu ao empurrá-lo e colocar as palmas das mãos a ambos
os lados do seu rosto para o beijar.
— Humm... — Disse ele, quando se separaram um momento
depois.
Mas Anaís continuava com seu rosto entre as mãos.
— Me faça amor outra vez. — Sussurrou, suplicando-lhe com
o olhar. — Suponho que, uma vez mais, não vai fazer diferença.
Não quero falar de Raphaele, nem do passado... nem sequer do
futuro. Só me faça amor uma vez mais e me dê algo real e
verdadeiro. Algo que eu possa guardar quando esta noite chegar ao
fim.
E ele fez. Fez amor com uma lentidão doce e certeira,
utilizando todas suas habilidades, todas suas artimanhas
masculinas. Fez, em resumo, tudo o que esteva a seu alcance para
ter certeza de que ela o quisesse tanto quanto ele a queria.
Estava começando a necessitá-la com uma horrível dor no
coração e um profundo desejo na alma, e temia que, sem Anaís, o
futuro que lhe esperava fosse uma paisagem interminavelmente
insípida e incolor.
Como algo que não fosse real. Que não fosse verdade.
Mas enquanto investia, com as últimas e doces penetrações, e
sentia Anaís elevar-se de novo para ele, como a lua e as estrelas se
elevavam no céu, ele sabia que lhe ocultava uma parte de seu
coração. E também sabia que seria a última vez que fariam amor,
por muito tempo.
Somente esperava que não fosse para sempre.
Cochilou em seus braços, mas apesar do prazer e da letargia
que cobria seu corpo, não descansou. Sentia que era o momento de
abandonar Bruxelas. Desejava ir para casa, retornar a Londres,
endireitar sua vida e começar a assediar o coração de Anaís. E
também ver Charlotte e sua filha a salvo na Inglaterra, sob a estreita
vigilância da irmandade.
Aquela noite, na casa dos Lezennes, havia sentido a maldade
no ar e a escura emoção que envolvia a casa. Não era só o interesse
sem importância desse homem por Anaís, era algo muito mais
profundo e sinistro.
Tentou dormir aconchegando-se mais contra ela e inalando
seu exóticante aroma, mas foi em vão. Inclinou a cabeça e a acariciou
levemente com o nariz. Ela deixou escapar um ligeiro som gutural
de felicidade e se abraçou mais ao travesseiro. Durante um
momento, ele se permitiu enredar os dedos no cabelo sedoso das
têmporas dela, e pensou que nunca se cansaria desse prazer tão
simples.
Entretanto, percebeu que não tinha sentido ficar ali dando
voltas, lhe perturbando o sono e a vida. Era hora de começar a fazer
o que devia.
Afastando-se com muito cuidado, moveu-se até ficar sentado
na borda da cama. Apanhou sua roupa, que estava dispersa por
todo o quarto, e quando se inclinou para recolher as calças, viu o
cachorrinho de pelúcia de Giselle Moreau.
O levou também, saindo silenciosamente do dormitório.
Capítulo 17

"Sê extremamente sutil, até te fazer imaterial. Sê extremamente

enigmático, até te fazer silencioso."

Sun Tzu - A arte da Guerra.

Anaís saiu das profundidades escuras de um sonho, e viu que


um débil raio de lua lhe caía sobre os olhos. Levantou uma mão
para bloqueá-lo e se deu conta de que estava tremendo de frio. E
havia algo... Algo mais que estava além de sua mente consciente.
Algo muito pesado, como a sensação da morte iminente. Ou os
restos de um pesadelo.
Ainda meio dormindo, pensou em dar a virar e enterrar o
rosto no peito de Geoff. Perder-se em seu aroma e invocar as
lembranças de suas mãos deslizando-se sobre ela, de seus lábios
saboreando-a e tentando-a. Entretanto, nem sequer as deliciosas
lembranças do que tinham compartilhado podiam rebater o peso da
apreensão. E pelo frio que sentia nas costas sabia que fazia tempo
que Geoff partiu.
Apoiou-se em um cotovelo e olhou o quarto. Estava nua em
cima da colcha e as cortinas não se moviam. Seu vestido de noite e
toda a roupa de baixo estavam sobre o tapete, uns atoleiros de cor
branca e água marinha na penumbra. A roupa de Geoff não estava.
Passou uma mão pelo cabelo e tentou recordar o que a tinha
despertado.
Um som. Tinha ouvido um som.
Levantou-se, vestiu rapidamente o robe que Claire tinha
deixado em uma cadeira, agarrou a adaga que guardava
embainhada sob o travesseiro e caminhou silenciosamente para o
quarto de vestir. Estava totalmente acordada, com todos seus
sentidos alerta.
Aí estava. Ouviu outra vez. Um som muito sutil e quase
lúgubre. E parecia algo não de todo humano, como a corrente de um
rio subterrâneo. Atravessou o quarto para o dormitório de Geoff e
entrou sem chamar.
Com os lençóis enrolados ao redor de sua esbelta cintura,
Geoff estava sentado, quase fora da cama, e a pálida luz da lua o
banhava em um horripilante resplendor branco. Apesar do frio, as
duas janelas estavam completamente abertas. O som se produziu
outra vez, como o sussurro do vento, mas toda a atenção dela estava
posta nele.
— Geoff?
Apressou-se a atravessar o quarto enquanto guardava a adaga
no bolso.
Ele levantou um braço.
— Pare! — Exclamou com voz rouca.
Mas ela já estava na borda da cama.
— O que ocorre? — Sussurrou.
— É a água. — Murmurou ele. Não tinha o olhar fixo nela, a
não ser perdido em algum lugar do quarto. — A água. Não pode vê-
la?
Estava sonhando.
Ela se sentou na cama, com uma perna debaixo do corpo.
— Geoff, acorde. — Disse, estendendo um braço para tocá-lo.
— Não há água. É somente um pesadelo.
— Shhhh. — Sussurrou, com a palma da mão ainda estendida.
— Aí está. Vê? A água.
Uma leve brisa entrou na habitação, movendo as cortinas. Pôs
uma mão na bochecha dele, perguntando-se se deveria despertá-lo.
— Geoff, não há água.
— A escuridão. — Disse com tom áspero. — A areia. Ela a tem
nos sapatos. Sente-a. — Agarrou ela pelos braços e a arrastou para
ele como se não pesasse nada. — Santo Deus, por que não o vê?
Ela caiu suavemente em seus braços.
— O que?
— A lua brilha. — Disse-lhe retorcendo os braços com tanta
força que lhe deixariam marcas. — Não há ondas. Não pode... Não
pode...
Anaís lhe pôs uma mão na bochecha. Estava tremendo como
se tivesse frio, mas a pele estava febril.
— Geoff, quem?
— É muito tarde. — Disse. — Está muito escuro. Diga-lhe que
está muito escuro.
Um pouco assustada, ela o obrigou a girar a cabeça para que
visse a luz da lua.
Não teria podido dizer em que momento se deu conta de que
o frio que fazia no quarto não era simplesmente frio. De que Geoff
não estava dormindo, nem sequer estava presente. Ou, ao menos,
uma parte dele não estava. Seus olhos de lobo a olhavam com
intensidade, tão selvagens como nunca teria imaginado. E, apesar da
penumbra, suas pupilas eram diminutas lascas de ônix, brilhantes e
multifacetadas.
Como se visse através dos olhos de outra pessoa.
E isso era o que estava fazendo. Deus Santo, ele estava
fazendo.
— Geoff? — Disse com voz débil. — Volta. Por favor.
De repente, o ar se levantou em seu redor com uma corrente
surrealista e imprevisível. As cortinas, já revoltas pela brisa,
começaram a flutuar. Ouviu-se um tênue som, como o vento
rugindo em um túnel muito longínquo, seguido de um forte golpe.
Anaís olhou a seu redor e viu que a Arte da Guerra havia caído de
cima da mesa. Estava no chão e as páginas passavam rapidamente
para diante e para trás, como um campo de trigo ao vento. Então, os
papéis que havia sobre a pasta de viagem se elevaram no ar e
começaram a girar pela habitação em um ciclone de folhas.
Anaís observou o quarto e uma mecha de cabelo lhe golpeou o
rosto.
— Geoff, o que está acontecendo? — Gritou, agarrando-se a
ele.
Agarrou-lhe os braços ainda com mais força, se isso era
possível.
— Vai morrer. — Sussurrou. — Vai morrer. Ele a está
empurrando para baixo. Mantenha aí. Ele a está matando.
— Quem? — Gritou. — Charlotte? Pelo amor de Deus, quem?
— Charlotte. — Murmurou. — Pobre Charlotte. Não vê que...
Então ela sentiu que afrouxava as mãos. Geoff caiu para trás,
contra a cabeceira da cama. Seu peito subia e baixava como se fosse
um fole e ela desmoronou sobre ele.
Durante um momento, foi como se o tempo parasse. Como se
nenhum deles respirasse. O rugido se desvaneceu como se fosse um
trem que se afastava. Uma quietude mortal invadiu o quarto. As
cortinas caíram flácidas contra o batente. O ciclone de cor branca se
desvaneceu e os papéis dispersos ficaram no chão como se fossem
folhas mortas.
— Graças a Deus! — Sussurrou ela, apoiando o rosto no
ombro do Geoff.
— Anaís? — Disse.
— Geoff? Está... aqui?
Durante o que pareceu uma eternidade, ele não disse nada.
Mas ela podia sentir que, pouco a pouco, voltava para seu ser.
Então, com a respiração acelerada, Geoff a abraçou com força, e ela
soube que tinha voltado para o presente.
Agarrou-se a ele e enterrou o rosto em seu pescoço, com medo
e tremendo.
Quando Geoff falou, foi como se arrancasse as palavras de seu
interior.
— Será logo, Anaís. — Disse, ainda ofegando. — Não temos
tempo.
Anaís se ergueu e ele a soltou. Os olhos de Geoff voltaram a
ser como antes, e estavam cheios de dor.
— Está tudo bem? — Sussurrou ela, olhando-lhe o rosto em
busca de uma confirmação.
A respiração dele estava se normalizando.
— Sim. — Disse por fim. — Mais ou menos bem.
Uma mecha de cabelo escuro tinha caído sobre um olho. Com
suavidade, ela o afastou.
— O que acabou de acontecer? — Sussurrou. — Pode me
contar isso, ou pode sequer explicá-lo?
Ele negou com a cabeça e levou as palmas das mãos aos olhos.
—Na realidade, não. — Tinha a voz rouca. — Só estava...
tentando ver, sinto muito, te assustei?
— Absolutamente não. — Mentiu. — E não tentou ver? Viu
Algo? Água? A areia? Lembra-se?
Ele deixou cair às mãos, resignado.
— Oh, sim. — Murmurou. — Encontrei o brinquedo de
Giselle. Isso, e o lenço. A carta que trouxe DuPont. Usei-os.
— Tentou abrir a porta. — Passou os olhos pelo dormitório
desordenado. — E parece que funcionou bastante bem.
Ele voltou a negar com a cabeça.
— A princípio não. — Disse em voz baixa. — Mas vê como é.
É como se me invadisse algum tipo de loucura. Odeio, assusta as
pessoas.
Anaís pensou que, realmente era algo mais que assustar.
— Não me assusta. — Voltou a dizer.
Ele deixou escapar uma risada brusca e furiosa.
— Quando era um menino, cada vez que vinham as visões as
ocultava de minha mãe. — Disse. — Estava aterrorizada. Os
médicos... disseram-lhe que eu tinha um transtorno mental. Que ao
final teria que me internar.
— Meu Deus. — Disse Anaís. — Imagino que não os escutou.
Ele ficou calado uns momentos.
— Não, levou-me a ver alguém que não era médico. —
Respondeu por fim. — Uma espécie de instrutora que se formou em
Viena e que trabalhava com meninos que se pensava estarem
mentalmente doentes. Loucos.
Ela colocou um dedo em seus lábios.
— Não diga essa palavra.
Geoff à olhou uns instantes. Seus olhos agora pareciam tão
calmos como a água de um lago.
— Sutherland me explicou que sua mãe é irmã do conde de
Treyhern. — Disse em voz baixa.
Anaís deixou cair à mão.
— Sim. — Murmurou. —Por quê?
Ele baixou o olhar.
— Era sua esposa. Ela era a instrutora.
— A tia Helene? — Anaís estava surpreendida. —Mas... Mas
estavam muitos anos casados.
— Minha mãe não sabia que se casaram. Pensou em afastá-la
do conde. Em lhe oferecer mais dinheiro. Estava desesperada, tem
que entendê-la. Pensava que era isso ou um manicômio.
Anaís riu.
— Eu teria ficado feliz em ser uma mosca para escutar essa
conversa. Mas Helene tem um dom para tratar os meninos... Um
sentido fora do comum.
— Foi isso o que me salvou. — Disse ele. — Disse a minha mãe
que estava perfeitamente bem. Que me deixasse ser eu mesmo e que
ignorasse os médicos.
Uma lembrança se removeu nas profundidades da mente de
Anaís.
— E então encontrou seu mentor. — Disse. — Na Escócia, não
é assim?
Ele sorriu com melancolia.
— Ah, essa é uma história muito longa. Outro conto para
outra noite, possivelmente.
Mas ela não estava segura de que contassem com muitas mais
noites.
Afastou de sua mente esse pensamento.
— Bom você tem o dom. — Disse. — E a única coisa que
importa é que aprendeu a usá-lo.
— Sim, até que o precise. — Disse com uma expressão
sombria. — E então é como se invocasse o diabo. Mas o diabo não
pode ajudar Charlotte Moreau, certo?
Ela voltou a passar uma mão pelo seu cabelo.
— Conta-me. — O animou. — Me conte exatamente o que
aconteceu esta noite. Apanhou o cão e as outras coisas. E logo, o
que?
Ele encolheu os ombros.
— Não via nada. Nada exceto essa horrível escuridão.
Persegue-me, Anaís, desde que estamos aqui. Mas não via nada,
assim tentei dormir. Às vezes ocorre assim, justo quando a
consciência se escapa...
— E você cai nessa pequena rachadura entre o sonho e a
insônia, não é assim? — Murmurou. — Acredito que todo mundo o
sente, em maior ou menor medida. Mas para você é... Bom, você
sabe o que é. E agora está bem?
— Sim, mas Charlotte não. — Respondeu. E voltou a lhe
segurar os braços. — Anaís, pensa. Quando disse que sairiam de
férias?
— Depois de amanhã. — Respondeu rapidamente. — Por que?
Geoff fechou os olhos.
— Lezennes vai afogar Charlotte. — Sussurrou. — Pretende
seduzi-la com um passeio à luz da lua junto ao mar... E declarar-se
pela última vez.
Anaís se ergueu de um salto.
— Oh, Geoff. Não.
Mas ele tinha o olhar perdido.
— Entretanto ela... vai rechaçá-lo. — Continuou. — Ele sabe
que o fará. E está preparado. Por isso a leva longe. Longe da casa e
dos servos. De seu sacerdote. Inclusive de você, possivelmente.
— Meu Deus, seria tão fácil! — Sussurrou ela. — Na
escuridão, com as saias e as anáguas... não teria nenhuma
possibilidade de sobreviver na água.
— Ele dirá que tropeçou. — Sussurrou Geoff. — Que uma
onda veio de repente, como saída de um nada. Que estavam
caminhando junto à beira d’água e que não pôde salvá-la.
Anaís levou uma mão à boca para abafar um grito.
— Um passeio romântico, de mãos dadas. — Geoff tinha os
olhos fechados. — Ele... Ele a mantém sob a água. O fluxo rompe
sobre eles. Não leva muito tempo. Ela é tão pequena... — Calou-se e
engoliu em seco com dificuldade. — É pequena e está cansada.
Depois de tudo pelo que passou, não fica com vontade de lutar.
— Mas... isso é monstruoso! — Exclamou Anaís. — Devemos
lhe dizer...
Nesse momento, o relógio da escada soou quatro horas, e foi
um som lúgubre na penumbra.
Anaís fechou com força os olhos.
— Oh, Geoff! — Sussurrou. — Hoje é quarta-feira! Já é
amanhã!
— Sim, assim é. — levantou-se e se afastou um pouco. —
Anaís, devemos nos preparar para ir. Devemos levá-las à noite. É a
única maneira.
— Sim. — Anaís se levantou e se dirigiu à janela para olhar ao
outro lado da rua, para a casa de Lezennes. — Sim, é a única
maneira. Mas primeiro devo adverti-la.
— Acreditará em você?
Anaís se voltou. A prega do robe ondeou ao redor de seus
tornozelos.
— Farei todo o possível. — Disse com determinação. — Eu
pedirei que me acompanhe ao me confessar esta manhã. Não lhe
parecerá estranho. E, quando estivermos em Saint Nicholas, contarei
tudo. Se for necessário, lhe mostrarei minha marca.
— Sim, a reconhecerá. — Disse Geoff, e ele também saiu da
cama, alto e esbelto. — Pode ser que funcione. Pelo menos, não
acredito que conte a Lezennes o que nós propomos. Mas deve
convencê-la de que está mais segura conosco do que com ele.
Mesmo assim, poderá ser difícil. Não ganhei sua confiança... E pode
que ser que em você tampouco.
— Então, recorreremos à escada e ao sequestro. — Disse ela
gravemente.
— Conseguiu tirar o fecho das janelas?
— Sim, de todas.
— Boa garota. — Disse enquanto recolhia suas calças.
— Oh! — Exclamou ela um pouco com pesar. — Desejaria...
Ele ficou quieto e lhe lançou um olhar na penumbra.
— O que?
— Desejaria que não tivesse que pôr isso outra vez. — Soltou
abruptamente, e mordeu o lábio. — Mas não é o momento, certo?
E, se fosse inteligente, nunca voltaria a ser o momento...
Seria? Seria inteligente desta vez?
Ele fez uma careta com a boca.
— Receio que temos que seguir adiante, amor. — Respondeu,
e colocou uma perna na calça. — Acorde todos na casa. Quero que,
no meio da manhã, esteja tudo recolhido e carregado, a caminho de
Ostende. Petit deve adiantar-se e dizer ao capitão Thibeaux que
esteja preparado. Amanhã partiremos para a Inglaterra.
*****

Às dez e meia Anaís estava na porta do visconde de Lezennes


vestindo seu vestido mais recatado e com o livro de orações metido
na cesta do mercado, que pendurava em seu braço. Surpreendia-lhe
que ninguém ouvisse o ruído que faziam seus joelhos ao chocar
entre si.
A porta se abriu e uma criada vestida de cinza a que Anaís
reconheceu vagamente como uma das donzelas do piso inferior.
Fez-lhe uma reverência, mas não abriu a porta por completo.
Quando ela lhe pediu para ver Charlotte, negou com a cabeça.
— Sinto muito madame. — Disse em um inglês forçado. —
Mas madame Moreau sofre de mal de... de...
Anaís sentiu que o medo lhe acendia o peito.
— Está doente?
— Oui, merci... doente, e não recebe visitas.
— É horrível. — Com cuidado, ela colocou um pé na soleira.
— Ontem à noite parecia estar bem.
A donzela voltou a inclinar a cabeça e baixou o olhar.
— Désolé, madame. Foi... como dizem vocês? rápido. Todos
nós esperamos que se recupere logo.
A criada fez gesto de fechar a porta, mas Anaís não tirou o pé
e, além disso, arrumou para pôr um cotovelo em modo de cunha no
marco da porta.
— Oh, mas se pudesse vê-la só um momento... — Rogou-lhe.
— Somente o suficiente para me assegurar de que não é minha
culpa. Oh, mas é espantoso. À mantivemos acordada até tarde...
tocando o piano para nos entreter! O que desconsiderados que
fomos! Sinto-me muito mal.
— Non, madame. — Disse a garota com voz um pouco
trêmula. — São os desejos de sua senhoria. A madame não deve ser
incomodada.
Anaís colocou o outro pé na soleira e também conseguiu
introduzir a cesta. Como esperava a moça por fim retrocedeu um
passo.
— O visconde, então? — Disse, já que não tinha outra
alternativa. — Posso falar com ele? Só para me assegurar?
A garota olhou rapidamente para cima com o que foi quase
um olhar de advertência. Depois de um instante de dúvida, por fim
abriu a porta.
— Bien sûr, madame. — Disse-lhe. — Quer se sentar?
Anaís fez o que lhe pedia e passeou o olhar pelo saguão. Um
relógio de pé junto às escadas. Um tapete muito elegante. Tudo
parecia perfeitamente normal. Durante uns instantes, fechou os
olhos e tentou mover-se pela casa mentalmente. Não era a primeira
vez que o fazia. E possivelmente tivesse que fazê-lo aquela noite, às
escuras.
Ainda com os olhos fechados, tentou relaxar. Talvez visse algo
se tentasse abrir-se ao vazio. Algum fragmento ou pista do que
Lezennes estava pensando.
Foi inútil. Não viu nada... embora tampouco tinha esperado o
contrário.
A moça retornou em seguida, ainda com o olhar baixo, e lhe
fez gestos para que a seguisse.
Anaís se levantou e seguiu à donzela contando os passos,
fixando-se na distância que havia da entrada até as escadas. O
número de degraus. Dois passos no patamar. Seis passos mais.
Lezennes se uniu a elas na parte superior das escadas e se
inclinou levemente. Levava uma jaqueta da Índia elegantemente
bordada sobre uma camisa branca, com as mangas arregaçadas que
deixavam ver uma franja de cetim negro, e não pôs lenço no
pescoço.
— Madame MacLachlan, voltou. — Murmurou, e a percorreu
friamente com o olhar.
Talvez à luz do dia, e sem vinho, o comportamento de Anaís
na noite anterior agora lhe parecesse suspeito.
— Oh, sua senhoria! — Disse, lhe pondo uma mão no braço
com gesto triste. — Me diga como está a pobre Charlotte. Por favor,
tranquilize-me. Oh, sinto-me mal ao pensar que pudemos lhe haver
exigido muito ontem à noite.
Ele sorriu levemente e agitou com elegância a mão no ar.
— Absolutamente. — Disse. — Fique tranquila, não é nada...
Só uma enxaqueca, e eu queria que descansasse.
— Bom, graças a Deus. — Respondeu ela. — Esperava que
pudéssemos ir juntas à igreja esta manhã.
— Temo que isso seja impossível. — Disse Lezennes.
Anaís abriu muito os olhos e tentou parecer inocente.
— Então, posso vê-la? — Rogou. — Só um momento? Talvez
possa lhe trazer algo. Um pouco de gelatina de mão de vitela,
possivelmente?
Ele hesitou, mostrando um sorriso, e depois inclinou
levemente a cabeça.
— É você muito amável, madame. — Disse-lhe. — Um breve
momento não lhe fará mal. Mas já verá que tudo está bem. Por
favor, me siga.
Anaís esteve a ponto de dizer que sabia muito bem onde se
encontrava o quarto de Charlotte, mas suspeitava que o visconde
não quisesse perdê-la de vista.
E tinha razão. Caminharam pelo corredor, deixaram para trás
o dormitório de Charlotte e chegaram a uma porta que estava no
extremo do corredor. Lezennes a abriu e revelou uma pequena sala
elegantemente mobiliada com outras duas portas em ambos os
lados. Anaís se deu conta de que era uma sala que conectava o
dormitório de Lezennes e o de Charlotte. Aquele homem não tinha
vergonha.
Charlotte estava reclinada em um divã junto à janela, e a porta
que dava a seu dormitório se encontrava aberta.
— Não, Louisa, os vermelhos, por favor. — Disse, fazendo
gestos a alguém a quem ela não podia ver.
— Ma petite, olhe quem eu te trouxe. — Disse Lezennes,
entrando na sala.
Charlotte girou a cabeça lentamente.
— Anaís! — Disse, fazendo gesto de levantar-se.
— Não, não, não deve se levantar! — Exclamou ela. — Sei que
não está bem e só posso ficar um momento.
Uma sombra de emoção indecifrável escureceu o rosto de
Charlotte.
— Lezennes quer que descanse. — Disse. — Amanhã saímos
de viagem. Mas é muito agradável te ver. Sente-se.
— Só um momento. — Respondeu Anaís, olhando ao
Lezennes enquanto se sentava. — Talvez o Visconde possa ficar
conosco. Prometemos não tagarelar sobre chapéus e laços, senhor. E
verá que tenho intenção de cumprir minha promessa. Somente
ficarei uns instantes.
Algo da suspeita pareceu abandonar o rosto de Lezennes que
se sentou perto dela... O que sem dúvida tinha pensado fazer de
todas as maneiras.
— Agradeço aos dois, por certo, por uma noite encantadora.
— Disse Anaís, arrumando as dobras de suas saias. — Foi o melhor
jantar que participamos em muito tempo, Milorde. Charlotte, sua
cozinheira se deixaria convencer a me dar sua receita de suflé para a
senhora Janssen?
— Vou perguntar antes de viajarmos.
Mas Charlotte parecia pálida e inquieta.
Então Anaís se deu conta de que havia uma donzela na porta
que se conectava com o dormitório de Charlotte, com os braços
cheios de roupa.
— Sim, tudo isso, Louisa. — Disse-lhe Charlotte. — Obrigado.
É muito amável.
— Oh. está fazendo as malas! — Disse Anaís.
— Sim. Bom, Louisa as está fazendo por mim.
Anaís moveu um dedo diante dela.
— Pois se tiver intenção de apanhar um trem, tenha muito
cuidado.
— Cuidado? Por quê?
— Coloque todas as coisas importantes em uma bolsa pequena
e a tenha sempre à mão. — Aconselhou-lhe. — Sobretudo, as coisas
de valor sentimental. Uma vez me roubaram os baús... Em
Gloucestershire, nada menos! Ia visitar minha avó e, de algum jeito,
desapareceram. Pode acreditar isso?
— É terrível!
— Oh, sim foi. — Respondeu com seriedade. — Felizmente,
minha mãe foi prevenida e colocou todas as minhas lembranças e
uma muda de roupa em minha bolsa. Se não, não teria tido nem um
par de calçolas limpas quando tivesse chegado a ... Oh, me perdoe,
Milorde!
Lezennes arqueou uma sobrancelha.
— Não tenho que lhe perdoar nada, madame MacLachlan. —
Disse friamente. — Todos os usamos, n’est-ce pas, não é.
Anaís riu bobamente.
— Claro que sim!
Conversaram um momento sobre os prazeres da costa e suas
lembranças de infância. Anaís não tinha nenhum, porque sua
família tinha estado muito ocupada com a granja e os vinhedos no
estrangeiro... E ela com suas viagens à Toscana.
Mas não falou de nada disso, manteve sua fachada burguesa e
contou uma engraçada história sobre como sua irmã tinha caído de
cabeça no porto de Cobb em Lyme Regis, e se algum deles se deu
conta de que o relato era quase igual a um que a senhorita Austen
tinha contado uma vez em uma novela, foram suficientemente
educados para não mencionar. A irmã fictícia de Anaís saiu
mancando, só com o orgulho ferido e as anáguas estragadas, e as
férias familiares não foram alteradas.
Charlotte começou a falar então dos planos que tinha para
entreter Giselle com castelos de areia e procurando conchas durante
a viagem à praia. Mas, como se o tema o incomodasse, Lezennes
ficou em pé de um salto.
— Charlotte, por favor, deve descansar se formos viajar
amanhã.
Anaís soube que era o momento de partir.
— Sua senhoria tem razão, é claro. — Disse, e se levantou
rapidamente. — Não se levante Charlotte. Vou correr para a casa e
enviar aqui à garota da cozinha com uma terrina de minha gelatina
de mão de vitela. Deve esquentá-la e tomar devagar... Oh, e um
livro! Tenho um livro que acredito que você gostará.
— Uma de suas incomuns novelas, madame? — Perguntou o
visconde, enrugando levemente o nariz.
Anaís teve a decência de ruborizar-se.
— Oh, não, milorde, é um volume de poemas do senhor
Coleridge. — Disse. — Pensei que poderia ser uma leitura agradável
para a viagem de amanhã.
— Obrigada. — Disse Charlotte rapidamente. — Lhe seguro
que me distrairá.
Anaís desejou que tivessem umas maravilhosas férias e saiu
do cômodo, contando os passos. Não deixava de olhar ao redor,
procurando obstáculos com os que se poderia tropeçar facilmente na
escuridão.
Lezennes a deixou no alto das escadas depois de lhe desejar
um bom dia voltou para a sala de Charlotte. Anaís o observou
afastar-se, mais agradecida que nunca por não ter o dom de Geoff.
Agradecida por não saber, e não sentir, o mal que espreitava desse
homem. Porque não fazia falta ter um dom para dar-se conta de que
Lezennes vigiava Charlotte como um falcão, e pensava seguir
fazendo-o até vê-la comprometida ou morta.
Anaís estava decidida que não ocorresse nenhuma das duas
coisas.
Pensativa e muito preocupada, atravessou a Rue de l'Escalier e
entrou em casa. Depois de deixar a cesta, seguiu até a cozinha e a
sala de jantar da residência. Como não encontrou ninguém, olhou
pela janela traseira e viu um carrinho no beco que havia ao fundo do
pátio traseiro. Embelezado com botas altas e cômodas calças
bombachas, Geoff estava subido no carrinho, ajudando Petit a atar
com cordas a bagagem.
Depois de permitir-se admirá-lo durante uns momentos,
deixou cair à cortina e foi diretamente ao piso superior, atravessou
seu quarto e entrou no de Geoff.
Seu livro de poemas de Coleridge seguia entre o monte
ordenado de volumes. Depois de folheá-lo para assegurar-se de que
continha o poema que procurava e de que não havia dentro dele
nenhuma nota sentimental, agarrou-o e atravessou o quarto de
vestir.
Atirou-o sobre a cama, abriu a caixa de nonna Sofia e
vasculhou o Tarot até encontrar a carta que queria.
IL cavaliere dava spade. O cavaleiro de espadas.
Durante um instante, fechou os olhos e apertou a carta contra
o peito.
Sabia que era muito possível que não voltasse a vê-la. Depois
de mais de dois séculos passando de geração em geração, o Tarot de
sua família estaria incompleto... E seria culpa dela. O maço ficaria
imprestável.
Ao pensar nisso sentiu um nó na garganta.
Pelo menos, não era sua carta. Não era a o re di dischi, O Rei de
Ouro. Mesmo assim, era estranho, tampouco queria tirar essa carta
da caixa. Suas fantasias de menina, e a previsão de sua bisavó,
pareciam ter ficado longe muito longe em seu passado, e o desejo
que agora sentia não tinha nada que ver com um estúpido maço de
cartas.
Anaís tinha começado a sentir o passo do tempo com mais
intensidade. De repente, sentiu-se cansada de esperar. Na realidade,
sentiu-se quase tola por havê-lo feito. Desejava ter uma vida com
um marido e filhos a quem amar. Já não lhe importava se nunca
apareceria seu arrumado príncipe toscano.
De fato, quase desejava que não o fizesse. Quase desejava...
Embora não quisesse desonrar a nonna Sofia, não havia
dúvida de que algo tinha mudado dentro dela. Estava começando a
questionar a sabedoria de esperar o homem perfeito. Na realidade,
toda a previsão lhe parecia tão amalucada que se perguntou se
alguma vez tinha acreditado nela. E, além de Maria, ninguém mais a
conhecia. A história era muito excêntrica para repeti-la.
Mas nonna Sofia tinha repetido... Ou, ao menos, tinha-o feito o
tarot. Uma e outra vez, a mesma carta tinha aparecido para ela. Uma
e outra vez, o Rei de Ouro tinha sido seu destino.
Mas se atirasse o ré di dischi, Rei de ouro, aos quatro ventos, e se
Charlotte nunca lhe devolvesse IL cavaliere di spade, o Cavaleiro de
espada, por acaso importava? Ela não queria ler o Tarot. Não tinha
intenção de voltar a consultar as cartas a sério. A leitura que tinha
feito para Charlotte ainda lhe preocupava. Não desejava esse dom
com o que sua linhagem a tinha amaldiçoado, não, nem sequer
desejava essa versão débil e aguada.
Isso a fez pensar de novo em Geoff, no menino que tinha sido
assustado e transitando na escuridão sem ninguém que o guiasse.
E, de repente, lhe ocorreu algo muito estranho.
Por que não tinha havido ninguém?
Como era possível que sua mãe não tivesse sabido o que era o
dom? Tinha procedido dela ou de lorde Bessett. Algum deles tinha
que ter reconhecido os sinais, tinha que ter sabido que Geoff
precisava de ajuda... E tinham que tê-la proporcionado. Um
guardião, um prior que o aconselhasse, um mentor em sua
linhagem... Alguém, pelo amor de Deus. Assim era como o dom
tinha sido protegido durante séculos.
Em lugar disso, sua mãe o tinha levado a um monte de
médicos. Tinha temido que estivesse louco.
Pela primeira vez, Anaís se deu conta de que aquilo não tinha
sentido.
Santo Deus, não era à toa que Geoff se compadecesse tanto de
Giselle Moreau... e também de Charlotte. Não era à toa que
compreendesse tão bem o medo e a incerteza que Charlotte sofria
como mãe, que não tivesse querido lhe causar dano nem levar a
menina. Era o que os médicos tinham querido fazer com ele.
E Charlotte sabia que sua filha tinha o dom. Que dura teria
sido sua vida se não o tivesse sabido! Anaís não imaginava o
suficiente para compreender a preocupação que uma menina
estranha e sobrenatural podia infundir no coração de uma mãe
ignorante.
Mas o passado de Geoff era um mistério que teria que
esperar... talvez para sempre, porque tanto seu passado como seu
futuro não pareciam ser assunto dela. Para bem ou para mal, os dias
que estava passando com ele terminariam logo. E não podia evitar
perguntar-se se, quando ele retornasse à Inglaterra, à irmandade e à
sua quase prometida, se sentiria aliviado por afastar-se dela.
Não queria pensar nisso, e suas patéticas choramingações não
ajudariam Charlotte. Agarrou o livro e a carta, saltou da cama,
dirigiu-se ao escritório que tinha junto à porta, e abriu a gaveta para
agarrar um lápis. Pôs a carta na luz e passou o dedo pelo desenho,
observando a cabeça inclinada do cavalheiro. A espada que
pendurava a um lado. O fundo, que era uma paisagem estéril e sem
cor.
Uma vida vazia. O abandono. Um espadachim sem nenhum
inimigo com o que lutar.
Pensou que era parecido com a vida de um guardião
rechaçado.
Fechou de repente a gaveta do escritório e inclinou a cabeça
para levar a cabo sua tarefa. Na pequena margem que havia na
parte inferior da carta escreveu só quatro palavras:

Esta noite. Esteja preparada.

Deixou o lápis de lado e a olhou.


Era bastante vago, mas teria que valer. E era quase
imperceptível. De fato, a simples vista era só uma velha carta, como
a que qualquer um meteria em um livro como marcador de páginas.
Uma carta gasta e incomum, sim, mas a maioria das pessoas não lhe
prestaria atenção.
Charlotte, entretanto, se recordaria muito bem. Era a carta que
a tinha feito chorar. Quando voltasse a ver, certamente a estudaria
com mais atenção, procurando algum sinal de seu pai.
O pai que não estava morto.
O pai que a queria com todo seu coração.
Rapidamente, Anaís passou as páginas do livro de poesia,
procurando seu poema favorito. Era Geada a Meia-Noite, a poesia que
tinha escrito Coleridge à nostalgia que sentia de seu lar, de seu lugar
natal da zona rural inglesa.
Encontrou-o e rodeou com um círculo algumas palavras:

Abundante de presságios contemplei.


Sobre o ferro a esse inquieto visitante,
Quantas vezes, com pálpebras abertas,
Sonhava com o povo de minha infância...

Era improvável que alguém se fixasse nessas poucas palavras


marcadas. Quase todo mundo assinalava passagens de poesia, ou
fragmentos de prosa que alguém queria estudar ou recordar.
Também era improvável que Charlotte se fixasse nelas.
Provavelmente, nem sequer abriria o livro aquela noite.
Anaís amaldiçoou em voz alta e energicamente. Não, o mais
seguro era que o guardasse junto com suas outras coisas, talvez
nessa pequena bolsa de bagagem de mão que lhe tinha aconselhado
que preparasse.
Deixou escapar um grande suspiro. Certamente, aquilo
tampouco ocorreria.
De fato, o mais provável era que Charlotte jogasse o livro no
fundo do baú de viagem e que gritasse como uma louca quando ela
a despertasse aquela noite. E se não o fazia e se por algum milagre
conseguia despertá-la em silêncio e lhe explicasse a situação,
certamente quereria vestir-se, preparar um baú, procurar seu laço
do cabelo favorito ou seus sapatos preferidos... fazer todas essas
coisas tolas que as mulheres estavam acostumadas fazer quando se
iam de casa ou, nesse caso, quando abandonavam tudo.
E depois teriam que desviar-se da donzela e apanhar Giselle.
Santo Deus ia ser impossível.
A Anaís sentia que lhe caiu a alma aos pés. Mas que outra
escolha tinham? Estava claro que Lezennes não pensava em afastar-
se de Charlotte e que queria manter a intimidade na casa. Não ia
permitir que visse Charlotte a sós.
Nesse momento alguém bateu na porta aberta e entrou Geoff.
Os saltos de suas botas ressonavam no chão e levava uma vara na
mão. Anaís girou na cadeira para olhá-lo. Estava incrivelmente
atraente com o casaco e as calças apertadas, e a brisa primaveril lhe
tinha desordenado o cabelo comprido.
Seu olhar, entretanto, era sombrio e inquisitivo.
— Foi tudo bem?
Ela negou com a cabeça.
— Lezennes suspeita. — Respondeu. — Diz que Charlotte não
se encontra bem.
— Então, não a viu.
Sua voz tinha um tom de decepção.
— Sim, consegui vê-la, embora tenha me custado um pouco.
Geoff se sentou na borda da cama dela, com a confiança de
alguém que pertencia a esse lugar.
— Essa é minha garota. — Disse com um leve sorriso. —
Inclusive astuta.
— Mas Lezennes não nos deixou sozinhas. — Continuou. —
Nem por um instante. A empregada está fazendo as bagagens e vão
pela manhã de trem.
— Pelo menos, sabemos isso. — Disse enquanto batia
distraidamente a parte superior da bota com a vara.
Anaís lhe mostrou o livro e a carta e lhe explicou o plano.
— O que você acha? — Perguntou-lhe, sentando-se na cama, a
seu lado. — Muito arriscado?
Geoff arqueou uma sobrancelha e leu o poema.
— Bom, os versos não demonstram nada. — Murmurou. — Eu
mesmo sublinhei uma dúzia de passagens no livro. Quanto à carta, é
velha, está gasta e as palavras quase se fundem com o desenho. Terá
que olhá-la com muitíssima atenção para vê-la. Não, Por Deus,
poderia ser brilhante.
Anaís lhe sorriu um momento e depois ficou séria.
— Ah, Geoff, que probabilidades temos? — Perguntou-lhe. —
Olhará a carta esta noite? E se de verdade tem enxaqueca? O mais
seguro é que não faça conta.
Geoff a segurou pelos braços.
— É uma boa ideia. — Disse-lhe com firmeza. — Além disso, é
tudo o que temos. E se não funcionar... Bom, rezaremos para que
não grite e desperte toda a casa e tentaremos convencê-la para que
venha conosco.
Anaís lhe manteve o olhar com tristeza.
— Oh, vamos convencê-la. — Murmurou. — Deveria tê-la
visto hoje. Parecia... aterrorizada. Acredito que sabe Geoff. É
possível que Giselle haja... não sei... visto algo?
Geoff tinha se levantado e começou a caminhar pelo quarto.
— É difícil dizer. — Murmurou. — As crianças e seus pais em
geral não podem ler uns aos outros.
— Nonna Sofia lia as cartas para mim. — Disse ela.
Geoff pensou.
— Mas você era à quarta geração. — Disse enquanto cruzava
os braços e se apoiava contra o marco da porta. — A linhagem era
débil. Além disso, quem sabe? O dom é estranho, sobretudo quando
é forte. É mais provável que Giselle possa ler a Lezennes, ou sentir a
maldade que há nele. Demônios, até eu posso senti-la sem pôr uma
mão em cima desse bastardo... sinto muito. A frustração me faz falar
palavras más.
— Não importa. — Respondeu ela, e suspirou. — Acredito
que Charlotte sabe que Lezennes pretende lhe propor matrimônio
uma última vez. E também sabe que o vai recusar.
— Sim, e isso pode ser suficiente para fazê-la fugir. —
Murmurou ele, ainda com os braços cruzados. — Peço ao céu,
Anaís, estar fazendo o correto. Que Charlotte esteja bem e que
possamos levar a menina sã e salva. E, por Deus, se tiver que
apunhalar esse bastardo do Lezennes no coração para fazer o
trabalho, que assim seja.
Anaís soube depois, que foi nesse momento em que se
apaixonou completa e loucamente ao que antes era o frio e distante
lorde Bessett. No momento em que o príncipe de seus sonhos se
converteu não no misterioso e galante pícaro toscano, a não ser em
um cavalheiro inglês prático e desumano com olhos que pareciam
gelo ártico e um cabelo beijado pelo sol. O momento no que se deu
conta de que o sonho de sua bisavó não era necessariamente o seu
próprio, e que a sorte, possivelmente, podia alterar-se de verdade se
desejasse.
É obvio que podia alterar-se.
Não era isso precisamente o que estavam fazendo ali?
Estavam salvando Charlotte de um destino horroroso. Estavam
arrebatando Giselle de um homem destinado a utilizá-la para o mal.
Nada disso estava escrito em pedra e, se o estava, por que se
encontravam eles ali? Para que servia então o dom?
A possibilidade a deixou sem respiração e o coração lhe
deixou de pulsar.
Nonna Sofia se foi, e o fato de permitir que seu sonho seguisse
vivo não a devolveria. Não conseguiria que estivesse menos morta...
E tampouco significava que fosse menos importante. Nonna Sofia
tinha tido razão em muitas coisas... bom, na realidade, em tudo.
Mas não nisso.
Nesse assunto se equivocou... ou, ao menos, ela esperava que
assim fosse.
Com passo vacilante, levantou-se da cama e se aproximou
dele. Pois uma mão na sua bochecha ficou nas pontas dos pés e o
beijou levemente.
— Alguma vez lhe disseram Geoffrey Archard, que é
maravilhoso? — Sussurrou.
O olhar de Geoff se suavizou.
— Ah, sim? — Respondeu. — A que vem isso?
Anaís se afastou um pouco, mas não tirou a mão.
— Não estou do todo segura — Admitiu. — Mas lhe direi isso
quando souber.
Ao ouvi-la, ele jogou a cabeça para trás e riu. Ela sorriu com
ironia, foi até cama e tirou a colcha.
Ele deixou cair os braços e franziu o cenho.
— O que vai fazer com isso?
Anaís a jogou em cima do braço.
— Não acredito que monsieur Michel sinta falta dela quando
recuperar sua casa. — Disse — Não mais que essas velhas espadas
que tem acima.
— As espadas? — Geoff abriu muito os olhos. — Nós vamos
levá-las?
— Só as afiadas. — Disse ela, passando por seu lado e
beijando-o de novo. — Depois de tudo, dizem que, se for jantar com
o diabo, é melhor que leve uma colher longa.
— Oh, sim, dizem isso. — Seguiu-a pelo quarto. — E a relação
com nosso caso seria...?
Ela se deteve no corredor, ainda com a colcha sobre o braço.
— Bom, é possível que um de nós tenha que apunhalar
Lezennes no coração. — Disse. — Assim eu gostaria que tivéssemos
uma lâmina longa quando o fizermos.
Capítulo 1 8

"As operações secretas são essenciais na guerra; delas depende o

exército para fazer qualquer movimento."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Como ocorre na maioria das grandes cidades, a noite nunca


cai de todo sobre Bruxelas e, quando os relógios deram três horas, o
tráfego nas principais ruas tinha diminuído. Tomando cuidado de
manter-se nas sombras, Geoff estava agachado contra o muro que
havia atrás da casa de Lezennes, e já tinha um tempo porque suas
pernas estavam inchadas.
Aquela noite a lua aparecia de vez em quando por trás das
nuvens e logo podia se ver o espaço de que dispunham, que
consistia em um banheiro, uma espécie de barraco de jardim na
parte de trás e um abrigo de armazenagem anexo à casa. Mais
abaixo, no beco, os cavalos escoiceavam com impaciência e seus
arreios tilintavam levemente.
Pensou que não teriam que esperar muito. Em uns minutos,
Anaís e ele o teriam conseguido ou teriam fracassado
estrondosamente. Em silêncio, fez um gesto a ela para atrair sua
atenção e moveu a cabeça para o abrigo.
Anaís exibiu os dedos. Dois metros e meio.
Ele assentiu e voltou a pensar em suas opções. Pareceu-lhe que
tinha passado uma eternidade desde que zombou da ideia que ela
tinha tido de entrar pela janela. Mas nenhum dos dois tinha
experiência abrindo fechaduras e, embora tivessem conseguido abrir
a porta, teriam que correr o risco de atravessar a casa e voltar para o
piso inferior para sair, em vez de subir simplesmente a uma janela.
Segundo Petit, havia um servente que estava acostumado a dormir
perto do salão principal.
Assim ia ser pela janela. E grande parte do êxito dependeria
da valentia de Charlotte. À menina, caso fosse tão disciplinada como
Geoff acreditava que era, poderia cair. Charlotte, não.
Voltou a olhar Anaís e se maravilhou da transformação. Tinha
o cabelo trançado na parte superior da cabeça, de maneira que o
poderia cobrir com um chapéu se fosse necessário. Entretanto,
estava apenas com umas botas suaves, uma camisa folgada, um
colete e as calças de seu irmão.
Uma hora antes a tinha visto preparar-se, igual tinha feito ele:
uma adaga amarrada com uma corda ao pulso, outra na bota e uma
corda enganchada à cintura. Tinha estado aparentemente calma ao
vestir-se e, desde que tinham saído, tinha seguido todas suas
indicações, como se compreendesse que essa noite deviam mover-se
e trabalhar como um só.
Entre os dois, levavam duas pistolas, inumeráveis espadas,
uma caixa de fósforos, uma vela e uma garrafa pequena de éter
moderno, que Von Althausen tinha obtido para Geoff antes que
partissem, e que rezava para não ter que usar. Voltou a olhar para a
janela e se decidiu.
Juntou a cabeça a de Anaís e disse em sussurros:
— Sabe se ainda há alguém acordado?
Ela inclinou levemente a cabeça. Saiu dos arbustos e deslizou
para o pátio, agachada e sempre nas sombras, dando passos
certeiros. Realmente era como um gato na escuridão.
Geoff a seguia a meio metro de distância. Na parte traseira da
casa, ela se deteve e começou a mover-se junto ao edifício,
completamente em silêncio, detendo-se de janela em janela. Quando
chegou ao abrigo, ajoelhou-se e apoiou uma mão na pedra da
fachada.
Ele se inclinou para ela.
— Alguém está roncando perto das cozinhas. — Sussurrou. —
Além disso, ninguém se move.
Ele assentiu, levantou-se e subiu ao lado da cobertura, pondo
uma bota contra um barril de chuva e, a outra, contra o marco da
porta. Então se elevou até ficar sobre o beiral inclinado. Uma vez
feito isso, inclinou-se para baixo e puxou Anaís. Como ela já estava
em equilíbrio sobre o barril, subiu fácil e silenciosamente.
Já tinham concordado que ela entraria primeiro pela janela de
Charlotte, embora não gostasse da ideia. Entretanto, se Charlotte
despertasse, era muito mais provável que reconhecesse a voz de
Anaís. Ela se aproximou da canaleta e deu um forte puxão para
comprovar a solidez. Não se moveu. Começou a subir como um
macaco, usando o encanamento, os adornos e inclusive algumas
rachaduras na fachada.
Possivelmente aquilo era o mais difícil que Geoff havia feito,
estar de pé sobre o telhado do abrigo amparado pelas sombras da
casa de Lezennes, vendo que Anaís se dirigia a um possível perigo.
Mas tinha-lhe dado argumentos para fazê-lo, e tinha tido razão. Ele
a seguiria se, e só se, conseguisse abrir a janela.
E isso seria o complicado. Não era tarefa fácil abrir uma janela
do exterior, usando só uma mão enquanto estava pendurada na
canaleta. Mas ela pôs a palma da mão contra a fita de seda
envernizada e levantou o marco inferior centímetro a centímetro, e
os contrapesos se deslizaram brandamente pelo marco.
Ele rezou para que o leve ruído não despertasse Charlotte.
Começou a subir atrás dela justo quando Anaís apoiava as duas
mãos no batente e se impulsionava para entrar. Quando ele colocou
a cabeça entre as finas cortinas, Anaís estava agachada junto a um
grande objeto branco: a cama. Viu assim que seus olhos se
acostumaram à escuridão.
Anaís destacou os olhos com dois dedos e depois apontou o
indicador à esquerda e à direita. Ele virou a cabeça. Um abajur sobre
a mesa e uma poltrona no lado contrário da janela. Geoff assentiu.
Depois, movendo-se habilmente entre os objetos, deslizou para
dentro do quarto.
Charlotte estava deitada de lado, dando-lhes as costas,
abraçada a um travesseiro e coberta com a roupa de cama. Anaís se
levantou e pôs uma mão na boca de Charlotte.
Geoff sentiu o instante no que Charlotte despertou, porque o
medo invadiu o quarto.
— Shh, sou eu Anaís. — Sussurrou. — Só sou eu. Pelo amor de
Deus, Charlotte, não faça ruído. Balance a cabeça se me entendeu.
Geoff escutou o som que fez o cabelo do Charlotte ao esfregar-
se contra o travesseiro.
— Graças a Deus. — Disse Anaís, e afastou a mão.
Charlotte deu a volta e se apoiou em um cotovelo.
— Anaís! Que demônios...?
— Charlotte, não temos tempo. — Sussurrou Anaís. — Você
corre um grave perigo. Acredito que sabe.
— S...sim. — Disse com voz trêmula, e se ergueu da cama.
— Charlotte, tem que nos levar a Giselle. — Murmurou Anaís.
— Acredito que sabe por que. A irmandade francesa da Fraternitas
Aureae Crucis nos enviou. Um homem chamado Du Pont. Conhece-
o?
Charlotte negou com a cabeça e levou a colcha ao peito.
— Posso confiar em você? — Sussurrou com voz cortante. —
Como saberei que posso confiar?
— Não tenho tempo para lhe contar isso tudo. E, e na verdade,
não tem muitas opções. Mas sabemos de seu marido. A irmandade
francesa acredita que Lezennes o assassinou.
— Oh, Deus! Eu... eu também acredito.
Parecia a ponto de começar a chorar.
— Charlotte, agora não é o momento. — Disse Anaís com
dureza. — Mas te direi que estou marcada... levo a marca dos
guardiães, e Geoff também.
Ele saiu de entre as sombras e Charlotte abafou um grito.
— Já sabe o que significa a marca. — Continuou Anaís. —
Quando tivermos mais luz, te mostrarei. Poderá decidir em quem
vais confiar, se em Lezennes ou em mim.
— Em você. — Disse Charlotte, trêmula. — Em qualquer
pessoa menos em Lezennes.
— Bem. Levante-se e pegue uma bolsa. — Ordenou-lhe. —
Não há tempo para vestir-se.
— Já a tenho preparada. Uma bolsa, como me disse. E a carta
no livro... perguntei-me se...
— Muito bem, agarra-a sem tropeçar em nada. Recolheremos
mais tarde as demais coisas... se pudermos.
A pesar do medo que sentia, Charlotte não hesitou.
— É a que está na poltrona. — Sussurrou. — Com isso servirá.
Geoff a agarrou. Rapidamente tinha amarrado a uma corda a
pequena mala e a desceu pela janela enquanto Charlotte colocava os
sapatos. Fez um pouco de ruído ao golpear as tabuletas do telhado
da cobertura, mas além disso, tudo estava em silêncio.
Então tiveram outro golpe de sorte.
— Vou pegar Giselle. — Disse Anaís. — Tem o sono muito
profundo?
— Está aqui. — Sussurrou Charlotte, e assinalou o vulto que,
depois de tudo, não era um travesseiro. — Estava assustada... está
assustada a vários dias. Lezennes não está acostumado a lhe deixar
vir, mas hoje deixou.
Ao ouvir essas palavras, Geoff sentiu um calafrio. Ele sabia
perfeitamente por que a menina estava assustada, e por que
Lezennes tinha deixado. Esse demônio acreditava firmemente que
Giselle seria sua em questão de dias... e que Charlotte estaria morta.
— Acorde-a. — Pediu-lhe Anaís. — Primeiro vamos descê-la
pela janela.
— Pela janela?
Charlotte levou uma mão à boca.
— Não podemos nos arriscar a acordar o lacaio que dorme
abaixo. — Respondeu Anaís. — Estará bem. Fazemos isto
frequentemente.
— De verdade?
— Constantemente. — Repetiu Anaís.
Explicou-lhe o plano com poucas palavras. A voz de Charlotte
começou a tremer até o ponto em que Geoff pôde sentir seu intenso
medo. Era melhor mover-se, pressioná-la.
— Acorde-a, Charlotte. — Ordenou-lhe Anaís. — A mantenha
tranquila e lhe dê ordens claras.
Charlotte assentiu. Sacudiu ligeiramente à menina para
despertá-la e lhe falou em francês tão baixo e tão rápido que Geoff
não pôde entendê-la. Entretanto, em questão de segundos Giselle
estava levantada, embora atordoada, assentindo ante as instruções
de sua mãe. Como Geoff tinha esperado, Giselle cooperou em tudo,
embora não disse nenhuma palavra a ninguém. Era quase como se
soubesse por que estávamos ali... ou talvez simplesmente
compreendesse que havia forças malévolas ameaçando a sua mãe.
Fosse o que fosse, Geoff pensou que era uma carga que
nenhuma criança tão pequena deveria levar, e voltou a encolher o
coração por Giselle Moreau.
Mas não tinha muito tempo para pensar nisso. Com uns nós
que orgulhariam a um marinheiro, Anaís atou à menina pelos
ombros e pela cintura. Em seguida voltou a sair pela janela e caiu
sobre o telhado. Quando Anaís desceu Giselle pouco a pouco, ela
agarrou-se ao encanamento de escoamento, mas além disso, não fez
nenhum ruído. Geoff a agarrou nos braços e imediatamente a
menina o abraçou pelo pescoço. Mesmo assim, seguiu sem dizer
nenhuma palavra.
Em seguida Charlotte começou a descer pela janela, com um
grosso casaco de lã sobre os ombros e a camisola branca balançando
ao vento. Embora Anaís lhe tinha amarrado uma corda ao redor do
peito e a tinha ajustado bem sob os braços, Charlotte conseguiu,
mais ou menos, descer sozinha, perdendo o apoio só uma vez. Fez
um ruído, uma espécie de gritinho agudo, mas em seguida se
agarrou aos tubos.
Anaís puxou forte a corda e Charlotte deixou de balançar-se.
Quando terminou de descer, estava tremendo da cabeça aos pés.
Geoff pensou que teriam muita sorte se ninguém os ouvisse.
*****

Momentos depois, todos estavam em terra firme. Geoff tinha à


menina apoiada no quadril e Giselle seguia abraçando-o fortemente
pelo pescoço, agarrando-se a ele como se colocasse a vida nisso.
— Vamos.
Anaís agarrou a bolsa de viagem de Charlotte e ficou
paralisada.
— O que? — Articulou Geoff, sem falar.
Anaís tentou escutar.
— Alguém está acordado. — Sussurrou. — Alguém dentro da
casa.
Charlotte começou a falar, mas Anaís lhe tampou a boca com a
mão.
— Rápido. — Disse Geoff. — Pelo beco.
Anaís se moveu rapidamente, com um braço preso ao de
Charlotte e o coração na garganta. Até o momento, tudo tinha saído
conforme o planejado, mas não sabia quanto mais os nervos de
Charlotte aguentariam.
Entretanto, deu-se conta de que o cocheiro de Dieric Van de
Velde tinha nervos de aço. Abriu a porta da carruagem e ajudou
Charlotte e a Giselle a subir com muita calma e depois saltou à
boleia com agilidade, como se fugisse no meio da noite uma ou duas
vezes por semana.
Geoff desamarrou seu cavalo e puxou Anaís para levá-la até
porta da carruagem, onde lhe deu um rápido beijo.
— Muito bem, amor. — Disse em voz baixa. — Só espero não
ter que te ver fazê-lo outra vez.
Anaís se inclinou para frente para lhe devolver o beijo, mas
imediatamente, os pelos da nuca arrepiaram-se. Com o coração
encolhido deu uma olhada à casa por cima do ombro.
Alguém tinha acendido uma luz no quarto de Charlotte.
Anaís amaldiçoou entre dentes.
— Fomos descobertos. — Murmurou entrando na carruagem.
— Corre São Jorge, seu dragão despertou.
O cocheiro iniciou a marcha devagar a princípio, tão
silenciosamente como pôde, e foi pegando velocidade conforme se
afastavam do centro de Bruxelas. Depois de fechar as cortinas e
acender o pequeno abajur da carruagem, Anaís ajudou Charlotte e
Giselle a se vestirem. Tinha tomado a precaução de fazer que a
senhora Janssen guardasse mudas extras de roupa, mas Charlotte
faz bem sua pequena bagagem.
— Vejo que seguiu meu conselho. — Disse, sorrindo na
penumbra.
— Sim, e vi a nota na carta. — Confessou enquanto envolvia
Giselle em seu casaco. — Parecia tão velha e tão estranha... embora,
mesmo assim, perguntava-me...
Anaís viu que Charlotte abrigava com ternura à menina e
sentiu admiração... e um pouco de inveja. Giselle era uma menina
encantadora, embora tímida, e obviamente era muito mais normal
do que o visconde acreditava.
— Só me atrevi a escrever com lápis uma mensagem na carta
— Murmurou. — Lezennes já suspeitava muito.
— Oh! — Charlotte começou a remexer na bolsa. Tirou o livro
e dele a carta e a deu a Anaís.
Com sentimentos contraditórios, ela a colocou no casaco que
levava sobre um colete de brocado e um lenço de pescoço colocado
apressadamente. Toda essa roupa tinha pertencido a seu irmão e ela
tinha decidido que levá-la até Ostende era o melhor.
Ela tinha certeza de que a primeira coisa que Lezennes faria
depois de acordar a toda a casa e procurar em todos quartos seria
cruzar a rua e exigir que Geoff as tirassem da cama e as devolvesse.
Entretanto, todos eles encontrariam uma casa vazia, e todos os
serventes tinham desaparecido tão repentinamente como tinham
aparecido.
Mas Lezennes não era nenhum tolo. Tiraria suas próprias
conclusões. No caso de que ele descobrisse qual era seu trajeto e
indagasse sobre eles durante o caminho, e ambas as coisas eram
prováveis, estaria procurando duas mulheres, não a uma dama
acompanhada de um jovem.
No entanto, deviam estar em vantagem. Os caminhos eram
bons, a carruagem era rápida e estava bem preparada com quatro
excelentes cavalos. Virtualmente não levavam bagagem. Petit tinha
se adiantado para ter dispostos para eles cavalos ao longo de todo o
caminho. Se tivessem um pouco de sorte, chegariam à costa no meio
da tarde.
Mas o que movia Lezennes era a raiva. E a raiva era um fator
que jamais deviam subestimar. Podia renunciar à comodidade de
sua carruagem ou, simplesmente, enviar seus subordinados a
cavalo. Ou, se estava muito seguro de quais eram seus planos,
poderia esperar os trens, dirigir-se diretamente a Ostende e chegar
ali antes de que eles pudessem partir. Embora nada disso era
provável, tudo era possível, e Geoff e ela tinham falado sobre isso
durante todo o dia e parte da noite enquanto faziam seus planos.
A única coisa que poderiam fazer era confiar em seu bom
julgamento. Tinha que confiar em Geoff.
Charlotte estava olhando pela janelinha, vendo passar os
subúrbios de Bruxelas.
— Aonde vamos, Anaís? — Sussurrou. Em sua voz se refletia
o medo. — Quem cuidará de nós agora? Os franceses? A Fraternitas?
Quem...?
Anaís se inclinou para frente e a segurou firmemente no braço.
— A Fraternitas, sempre. Mas, esta vez, na Inglaterra. É mais
seguro, Charlotte. E a Giselle lhe pode atribuir um novo guardião.
Charlotte girou de repente a cabeça. Tinha os olhos muito
abertos.
— Seu marido?
Anaís se ruborizou.
— Não, e Geoff não é meu marido. — Confessou-lhe. — Só era
uma cobertura, Charlotte.
— Não é..seu marido? — Charlotte estava boquiaberta. —
Então, quem é?
— Nem o senhor MacLachlan nem nós estamos casados. —
Respondeu. — Nem sequer nossos nomes são... bom, não importa.
Mas Charlotte estava pálida como o leite à luz do abajur.
— E as cartas. — Sussurrou. — Também eram uma mentira?
— Quase desejaria que o tivessem sido. — Murmurou Anaís.
— Mas não. Não o eram. Em todo o caso, a Confederação nos pediu
que protegêssemos Giselle até que alcance a maior idade. A
Fraternitas tem bons homens em Essex. Certamente, lhe atribuirá um
deles.
— Em Essex?
Charlotte abriu muito os olhos.
— Sim. — Anaís colocou a mão em sua bolsa para procurar a
carta de Sutherland. — Nosso superior esteve em Colchester
fazendo os acertos necessários com sua família. — Disse, dando a
carta a Charlotte.
Esta desdobrou a carta e a aproximou do abajur. Então o papel
começou a tremer ligeiramente e, pela primeira vez, sua cara
recuperou um pouco de cor.
— Refere-se a meu pai. — Sussurrou, lendo-a rapidamente. —
Meu Deus! Falou com meu pai! É isso o que significa? Que de
verdade posso voltar para casa?
Por fim, Giselle falou. Foram só umas poucas palavras, mas
pronunciadas com entusiasmo.
— Mamam! Nous allons À l'Angleterre! Mamãe! Estamos indo
para a Inglaterra!
Charlotte a abraçou com força.
— Sim, Ma petite. — Sussurrou contra o cabelo da menina. —
Acredito que sim. Acredito que, por fim, vamos a Inglaterra.
Anaís estendeu o braço e levantou o queixo de Giselle.
— Mas temos um longo caminho pela frente, Giselle. — Disse-
lhe brandamente. — E conhecerá seu avô. Agora, é melhor que
durma um pouco.
Charlotte apertou os lábios até convertê-los em uma fina linha
e deu uns tapinhas no colo.
— Bom conselho. — Disse. — Ponha aqui a cabeça e descanse.
Giselle fez o que lhe pediam. Charlotte passou a mão
brandamente no cabelo, e depois voltou a olhar Anaís.
— Sabe? Sempre soube. — Murmurou em tom acusador. —
Desde o dia em que nos conhecemos na igreja. Havia algo... algo em
seus olhos, que não combinava com seu comportamento. E depois
que me leste essas cartas eu... soube. Para bem ou para mal, algo
muito grave estava a ponto de acontecer.
Algo muito grave quase ocorreu, pensou Anaís com remorso.
Lezennes queria afogá-la no mar. Se não fosse pela visão de
Geoff, e por sua determinação inflexível, Charlotte poderia ter
morrido antes que acabasse o dia. Mas se deu conta que a mulher
estava de novo contendo as lágrimas. Lágrimas de alegria, a menos
que se equivocasse. Não tinha sentido pensar nos horrores dos que
tinha escapado.
Como se tivessem combinado, não disseram nada durante um
momento. Giselle dormia enquanto a planície flamenca passava na
escuridão, mas não caiu em um sonho profundo até que pegaram a
estrada principal para Gante.
Então, Charlotte falou mais claramente.
— Estamos indo à costa. — Murmurou. — A Ostende, não é
mesmo? E Lezennes deve estar nos perseguindo.
— Sim. — Respondeu Anaís. — Um navio está nos esperando
ali. E sim, temo que Lezennes não esteja muito longe.
Charlotte levou os dedos aos lábios.
Anaís lhe contou rapidamente o que tinha visto, e a decisão
que tinham tomado de viajar de carruagem em vez de esperar que o
trem saísse, porque os trens eram muito públicos. Rezou em silêncio
para que não tivessem que arrepender-se de ter tomado essa
decisão.
— E após Ostende?
— Diretamente a Harwich. — Disse Anaís. — Nosso superior
ainda está ali, visitando seus familiares. Esta manhã, Geoff mandou
um homem para que se apressasse no primeiro navio. Com um
pouco de sorte, Charlotte, sua família estará te esperando no porto.
Mas Charlotte tinha baixado o olhar.
— Isso é esperar muito. — Disse em voz baixa.
Depois de tantos anos, Anaís podia entender seus sentimentos.
— Charlotte. — Sussurrou. — O que sabe sobre os planos que
Lezennes tinha para Giselle?
Os olhos do Charlotte se encheram de dor.
— A princípio, era muito estúpida para me dar conta de que
tinha planos, ou de que compreendia o dom de Giselle. —
Confessou-lhe. — Que tipo de mãe poderia ser tão estupida?
Uma mãe desesperada, pensou Anaís.
— Ele compreendia, Charlotte, e queria controlá-la. Sabe por
que?
— Acredito que queria criá-la como se fosse sua própria filha,
tê-la completamente dominada. Queria obrigar Giselle a usar o dom
para ver o futuro e poder usá-lo em seu próprio benefício, política e
economicamente, ou tentar muda-lo por completo.
— Sabe para quem trabalhava?
Charlotte levantou o olhar, receosa e insegura.
— Sempre supus que para o governo francês. — Disse. — Mas
uma noite...
— Sim? — Animou Anaís para continuar.
Por um instante, Charlotte tapou a boca com a mão.
— Veio um homem à casa. — Sussurrou. — Um homem que
eu conhecia de Paris... Um agente dos antigos borbones, dizia-se.
Anaís, há muita gente entre a nobreza francesa que não cessará até
que consigam vê-los de novo no trono. Querem voltar para sessenta
anos atrás! À velha monarquia. Às crueldades de antes. E Lezennes
é um deles. Sei. Escutei atrás da porta. Tinha que saber. E foi então
quando soube que nunca poderia me casar com ele. Que tínhamos
que fugir.
Era justo como Geoff tinha suspeitado. De repente, ocorreu
outra pergunta a Anaís.
— Charlotte, o que o visconde sabia sobre sua família? Sabia
de onde é?
— Não. — Sussurrou. — E eu lhe disse o que digo a todo
mundo: que não tenho família. Parecia mais fácil que a verdade.
Que tinham me abandonado.
Isso era um golpe de boa sorte. Anaís tentou relaxar.
O plano de Geoff era viajar sem pausa, parando apenas para
trocar os cavalos. Quando chegassem ao porto, pensava correr a voz
de que o Jolie Enjoe se dirigia a Dover. Para Lezennes, isso teria
sentido. Com um pouco de sorte, se ele atrevesse segui-los, iria na
direção errada. Talvez nem sequer se atrevesse a segui-los.
Ah, era uma pequena esperança.
Mas agora não podiam fazer nada a respeito. Certamente,
Lezennes não os alcançaria no caminho. Entretanto, Anaís não pôde
evitar tirar as pistolas da carruagem do senhor Van de Velde e as
checar pela quinta vez enquanto Charlotte a olhava com olhos
parecidos com pratos à luz da lua.
— Tudo sairá bem, Charlotte. — Disse-lhe de modo
tranquilizador. — Em dois ou três dias, estará em casa.
—Sabe usar isso? — Perguntou-lhe Charlotte.
— Se tiver que usá-lo, sim. — Respondeu com suavidade. —
Mas não será necessário. Agora, tenta descansar um pouco.
Charlotte assentiu, apoiou a cabeça contra a parede da
carruagem e fechou os olhos.
Depois de voltar a guardar as armas, Anaís ficou confortável
no assento e também deixou que o veículo a embalasse até entrar em
um sono parecido ao sonho. Mas seus sentidos não se adormeceram
por completo e, quando sonhou, o fez com Geoff. Ele estava em um
beco úmido e escuro e pegava com audácia a adaga do homem que
a tinha assaltado. Apanhada nesse lugar que estava a meio caminho
entre a insônia e o esquecimento, Anaís sorriu, sentindo-se
estranhamente a salvo, estranhamente reconfortada.
Capítulo 1 9

"É essencial procurar agentes inimigos que tenham realizado

espionagem contra ti."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Geoff abriu passo entre o mar de pessoas que rodeava o porto


de Ostende. Levava Giselle apoiada no quadril e a menina o
abraçava pelo pescoço. A via impaciente, como se soubesse que algo
estava a ponto de ocorrer. Aquela manhã, quando a tinha descido
da carruagem para entrar em uma estalagem, a menina tinha
começado a falar com sua mãe em sussurros, em francês, e lhe
pareceu que lhe estava transmitindo palavras tranquilizadoras.
Rezou para que a menina soubesse algo que ele não sabia,
porque tinha os nervos à flor da pele.
Atrás dele foram Anaís e Charlotte, que aquele dia estava
pálida e abatida. Anaís ainda usava seu traje masculino, e cobria o
cabelo com um chapéu alto. Se alguém a olhasse com atenção,
entretanto, teria descoberto o engano. Mas ninguém se incomodou
em fazê-lo: outra família jovem no porto não interessava a ninguém.
Diante deles, os passageiros formavam redemoinhos ao redor
de Dover. Geoff se entrou na multidão, levou Giselle à bilheteria e,
empregando um tom de voz ressonante, comprou uma passagem
para quatro pessoas. Depois voltaram a fundir-se com a multidão e
passaram ao outro lado.
Sob o reinado da nova monarquia belga, o porto estava em
processo de modernização e expansão graças ao alargamento dos
canais, um fato que simplesmente se acrescentava à pressão da
gente. Rodeado pela incessante animação da construção, o capitão
Thibeaux tinha estado ocupando um ancoradouro perto da concha
comercial, e a tripulação tinha aproveitado para descansar. Mas
quando Geoff subiu a bordo, todos estavam no convés. Uma suave
brisa soprava do mar do Norte e as gaivotas voavam em círculos,
grasnando por cima deles.
Apesar de algumas nuvens de mau agouro que estavam se
concentrando ao norte, Geoff decidiu tomar como um bom
presságio.
Thibeaux os viu e se apressou em recebê-los.
— Bonjour, bonjour! — O capitão se deteve o suficiente para
beliscar o queixo da pequena enquanto Geoff a descia, e depois fez
um gesto a seu criado de cabine.
— Étienne. — Vociferou. — Viens ici!
O moço se separou rapidamente do cilindro de corda que
estava trabalhando e se aproximou deles.
Depois de jogar um duvidoso olhar ao traje de Anaís, que
estava muito enrugado por ter dormido com ele, Thibeaux fez uma
pequena reverência ante Charlotte e ela.
— Meu sobrinho Étienne as acompanhará abaixo para que se
refresquem. — Disse-lhes. — Senhor MacLachlan, terá a
amabilidade de vir comigo a inspecionar o navio?
Entretanto, Geoff segurou o pulso de Anaís e a fez virar-se.
Então se deu conta de que ela tinha tirado a adaga da manga e a
tinha na mão, agarrando o cabo. Ela também estava muito inquieta.
— Fique embaixo até que estejamos em mar aberto. — Pediu-
lhe em voz baixa. — Muita gente já nos viu embarcar.
Anaís assentiu, voltou a lhe jogar uma olhada ao
embarcadouro e começou a descer os degraus atrás dos outros.
Geoff deu a volta para olhar ao capitão.
— Thibeaux, temo que não temos tempo. — Disse. — Nos tire
daqui.
O capitão assentiu.
— Monsieur Petit disse que vamos ao Harwich, não é assim?
— Sim, e rápido. — Disse Geoff gravemente. — Acredito que
Lezennes nos vem seguindo.
— Mas o vento não é o que esperávamos, monsieur. — Disse
Thibeaux. — Entretanto, pelo menos podemos os tirar da Bélgica.
Geoff não podia estar tranquilo e esteve percorrendo o convés
incessantemente enquanto a tripulação preparava tudo para
navegar. Entretanto, a tarde estava caindo sobre eles e as multidões
enchiam os cais: o mesmo tipo de multidões que alguém via nas
costas por todo o continente. Tanoeiros e estivadores. Prostitutas e
homens vendendo bolos de carne. E os eternos secretários correndo
daqui para lá, com seus casacos negros e as cabeças metidas nos
livros de contabilidade.
Geoff os observou cuidadosamente e não viu ninguém
conhecido. Dirigiu o olhar aos outros navios e não viu nada fora do
normal, exceto um elegante barco longo de três mastros. Era uma
pequena embarcação desenhada para pouca tripulação e para
alcançar uma grande velocidade, mas não tinha bandeira. Até com
vento ligeiro, a embarcação poderia alcançar qualquer navio do
porto, e era acertado aplicar a expressão "desorganizados" ao
punhado de homens que se moviam pelo convés.
Geoff fez gestos a um dos homens de Thibeaux para que se
aproximasse.
— O que sabe desse navio? — Perguntou-lhe, assinalando-o
com a cabeça.
O francês fez um gesto desdenhoso.
— Ora, só são contrabandistas.
— Contrabandistas? — Disse Geoff. — Em Ostende?
O francês deu uns tapinhas em um lado do nariz.
— J'ai du flair. — Disse com cumplicidade. — Estão aqui há
dois dias, e não têm feito outra coisa se não beber e ir às putas.
Marroquinos, espanhóis e um par de bretões. Não falam com
ninguém. Não fazem perguntas. Que outra coisa poderia ser?
Claro, que outra coisa poderia ser?
— Que tipo de bandeira levam? — Perguntou Geoff quando o
homem já se afastava.
O francês girou e lhe sorriu.
— Viva a França. — Disse, lhe piscando um olho. — Agora
todos somos iguais.
Mesmo assim, Geoff sabia que devia lhe prestar atenção à
sensação de naufrágio que tinha. Ou talvez fosse algo mais, não só
uma sensação. Não estava seguro. Mas, de todas as formas, foi para
abaixo, bateu na porta do camarote e fez gestos a Anaís para que
saísse. Agora levava uma longa e grossa trança que lhe caía pelas
costas e tirou o casaco e o lenço do pescoço. Tinha na mão uma
xícara de algo fumegante.
— Vai tudo bem? — Perguntou ele.
Anaís sorriu, mas seus olhos pareciam cansados.
— Giselle está começando a falar como um periquito. E o
jovem Étienne me preparou uma xícara de chá de gengibre e Deus
sabe que mais..., embora me assegurou que não é ópio.
Geoff lhe devolveu o sorriso.
— Vai te ajudar a melhorar.
— Isso diz ele. — Não parecia ter muitas esperanças. — Como
vão as coisas lá em cima?
Ele encolheu os ombros e se apoiou na porta.
— Há um barco francês atracado perto de nós. — Disse
pensativo. — Eu não gosto da cara que tem.
Ela abriu muito seus olhos escuros.
— Crê que poderia ser de Lezennes?
Ele negou com a cabeça.
— Não vejo como. — Resmungou. — Mas tenho um mau
pressentimento.
— Não é algo que se deva ignorar. — Disse ela. — O que
posso fazer?
Ele encolheu os ombros.
— Nada mais. O segundo no comando de bordo diz que só
são contrabandistas passando o momento, e é provável que tenha
razão.
— Talvez, mas o que há mais oportunista que uma tripulação
de contrabandistas aborrecidos? — Assinalou ela.
Geoff pensou nisso. De repente, sentiu-se contente de que
Anaís estivesse ali, e um pouco desconcertado pelo muito que tinha
chegado a depender dela. A confiar nela. Sabia com certeza que
podia contar com ela para que mantivesse Charlotte e Giselle a salvo
até que se puseram em marcha.
Passou as duas mãos pelo cabelo.
— Deveríamos haver ficado com as pistolas de Van de Velde.
— Murmurou.
— Eu levo minha pistola de bolso. — Assegurou-lhe ela. —
Você vai para o convés e não se preocupe conosco.
Geoff assentiu e se separou do marco da porta.
— Muito bem. Mas vou me aproximar desse navio. Talvez...
talvez possa sentir algo.
Fez gesto de ir, mas Anaís o agarrou pelo braço e seu olhar se
suavizou.
— Geoff, eu...
Ele inclinou a cabeça.
— Sim?
Ela baixou a vista.
— Tome cuidado. — Sussurrou.

*****
Momentos depois, Geoff passeava com indiferença pela
prancha de desembarque do navio francês. Seguiu caminhando
durante outros cinquenta metros e depois deu a volta e voltou sobre
seus passos. A débil luz da tarde, podia-se ler o nome do navio, que
estava escrito de maneira grosseira no escudo.
Le Tigre Doré.

O Tigre dourado. Um homem que a Geoff pareceu o


contramestre estava na amurada com as pernas muito abertas,
gritando ordens a um marinheiro que subiu ao cordame para dar
marteladas a algo. Seguindo um impulso, Geoff subiu pela
plataforma. A meia dúzia de homens que havia na parte superior
deixou de fazer o que estava fazendo e o olharam de maneira
ameaçadora. O contramestre, um tipo corpulento com um colete de
couro manchado de graxa, aproximou-se e lhe gritou algo em uma
mescla de holandês e francês.
— Estou procurando o capitão Reynard. — Respondeu Geoff
assassinando o francês. — É um velho amigo. Está a bordo?
A expressão do contramestre se obscureceu ainda mais, mas
trocou imediatamente ao inglês.
— Está equivocado, mon ami. — Disse o homem, curvando o
lábio superior. — Deve ir-se.
Geoff arqueou uma sobrancelha sem deixar de concentrar-se
no homem e nas emoções que surgiam em torno do convés.
Hostilidade. Suspeitas. Estavam o avaliando... e não gostavam do
que viam.
Do outro lado do convés, um tipo magro e com a cara marcada
de varíola meteu a mão no colete, como se estivesse procurando
uma arma.
— Sabot. — Disse. — puis-je t’aider?
— Non, Navarre. — Respondeu o contramestre, e levantou
uma mão. — Não necessito ajuda. Nosso amigo já partia!
Navarre se retirou, com a expressão escurecida pela decepção.
Geoff se obrigou a relaxar, a parecer amistoso e um pouco
tímido.
— Peço-lhe perdão, monsieur Sabot. — Murmurou. — Não é
esta a embarcação do Reynard? O Tigre prateado?
— Non. — Disse o contramestre, e assinalou a popa com o
polegar. — Equivocou-se de navio, mon ami. Eu sou o capitão aqui.
Agora, vá.
Geoff retrocedeu um passo.
— Ah, sinto muito, senhor. Meu francês... não é muito bom. —
Estendeu uma mão, tentando que o tipo também o olhasse nos
olhos. Tentou abrir a mente e concentrar-se. — Então, desejo-lhe que
tenha um bom dia.
— Hmm. — Disse o capitão, que apenas o olhou. Mas aceitou
a mão que lhe estendia e lhe deu um apertão rápido e frouxo.
Nesse instante, algo cintilou na mente do Geoff com uma
labareda de cor e de luz. Fragmentos de pensamentos piscando em
seu cérebro como os raios de sol penetrando entre a ramagem das
árvores. Entretanto, não pôde tirar nada em claro exceto uma
desagradável sensação, uma rajada de algo que não chegava a ser
dor, mas que lhe parecia muito.
— Merci, monsieur. — Conseguiu dizer.
Então, levantou a outra mão como se quisesse se proteger do
sol, retrocedeu pela prancha de desembarque, deu a volta e
caminhou, com fingida despreocupação, na direção contrária ao
Jolie Enjoe.

*****

O trajeto por volta do mar do Norte não foi fácil, porque o


canal estava cheio de embarcações e o vento era fraco contra as velas
do Jolie Enjoe. Quando o navio por fim entrou em mar aberto,
Thibeaux pôs rumo noroeste, enquanto que uma capa de nuvens
altas bloqueava o pouco que ficava da luz do dia.
Amaldiçoando sua sorte, Anaís estava no convés de popa,
seguindo a linha do horizonte com o olhar. Embora a Bélgica tivesse
lhe parecido bonita, de repente sentia como se não pudesse escapar
dela o suficientemente rápido. Desejava que o vento aumentasse.
Pelo menos, não estava enjoada. Ainda não.
Ou talvez o jovem Étienne sabia o que estava fazendo, depois
de tudo.
Geoff estava embaixo, observando o cais cada vez mais
longínquo de Ostende com a luneta de Thibeaux. Seu cabelo de cor
bronze ondeava desordenado com o vento. Anaís percebeu que sua
preocupação tinha aumentado, e com razão.
Justo quando o Jolie Enjoe tinha zarpado, um homem com
uma energia escura tinha subido no barco que para Geoff parecia
suspeito e tinha começado uma acalorada discussão com o tipo que
era, aparentemente, o capitão do navio. Segundo Geoff, os dois
tinham ido à parte inferior e dez minutos depois haviam tornado a
subir apertando as mãos. Em seguida, o navio começou a preparar-
se para zarpar.
A tripulação do Tigre Dourado se dirigia a alguma parte, e
Anaís tinha um mau pressentimento.
Com cuidado, deu um salto para baixo até ficar junto de Geoff.
Ele baixou a luneta e lhe passou um braço pela cintura.
— Sente-se bem? — Murmurou, inclinando a cabeça para
olhá-la.
— Bom, ainda não enjoei. — Admitiu. — Mas essas nuvens
altas e este vento tão tranquilo me põem nervosa. E tenho medo de
que tenhamos cometido um engano em Ostende.
— Sim? — Disse. — Por quê?
— Talvez devêssemos ter feito Charlotte ver esse homem que
subiu no Tigre Dourado. — Disse. — E se for um dos capangas de
Lezennes?
Geoff entreabriu os olhos contra o sol, que caía rapidamente, e
negou com a cabeça.
— Não valia a pena correr esse risco. — Disse com calma. —
Poderia tê-la visto. Mesmo assim, se alguém tivesse perguntado o
suficiente pelo porto, teriam sabido em que navio estávamos. Mas
teriam gasto um tempo precioso fazendo-o.
— Assim esperamos. — Disse Anaís.
— Assim esperamos. — Repetiu Geoff. Então, depois de jogar
um rápido olhar a seu redor, lhe acariciou a bochecha com os lábios.
— No que está pensando? — Murmurou ela.
Ele fez um som que parecia um risinho irônico.
—Que estou cansado de esperar. — Respondeu. — Uma parte
de mim deseja que estejamos já a salvo na Inglaterra, enquanto que
outra está muito contente de estar aqui.
Ela levantou a cabeça e a inclinou para olhá-lo.
— E eu também me alegro que esteja aqui. — Disse ela. — Me
alegro muito.
Ele lhe dedicou um sorriso quase ofegante, colocou-lhe um
cacho rebelde atrás da orelha e deixou cair o braço. Retornou à
vigilância passeando acima e abaixo, com a luneta no olho. Anaís
voltou a subir ao outro convés, com intenção de manter o olhar
sobre a terra firme enquanto houvesse luz.
Não tiveram que esperar muito. O sol acabava de desaparecer
depois do horizonte quando o marinheiro que estava no posto de
vigia gritou:
— Embarcação francesa a estibordo, senhor!
Anaís ouviu que Geoff amaldiçoava entre dentes enquanto
ajustava a luneta.
O vigia desceu e, momentos depois de deliberar, Thibeaux se
dirigiu para eles.
— Pode ser que seja o barco francês. — Disse com voz grave.
— Logo estará muito escuro para sabê-lo.
Geoff dobrou a luneta e o meteu no bolso.
— Temos alguma possibilidade de deixá-los para trás?
— Non, monsieur. — Respondeu Thibeaux. — O vento quase
desapareceu, o que significa que lhes levará algum tempo para nos
alcançar. O que acredita que vão fazer?
— Se estiverem combinados com Lezennes, tentarão nos
abordar. — Disse Geoff com calma. — Querem à menina. Não farão
nada que a ponha em perigo... e nós tampouco.
— Não quer que carreguemos as armas? — Disse Anaís,
olhando os dois pequenos canhões montados no convés de proa.
Geoff apertou os lábios.
— Muito perigoso. — Disse. — Além disso, têm bandeira
francesa. Thibeaux poderia pagar um alto preço por isso... caso
algum deles sobrevivesse. Não, acredito que é melhor que
esperemos o momento adequado.
— Monsieur, são contrabandistas. — Disse o capitão.
— Sim, e, portanto, são ambiciosos e subornáveis. Mas o único
que querem é agarrar à menina... e possivelmente à madame
Moreau. Devemos impedi-los. E logo se darão conta de que somos
um osso duro de roer.
— Muito inteligente monsieur.
Thibeaux parecia aliviado. Entretanto, Geoff seguia olhando
ao mar, como se estivesse pensando em uma estratégia.
— Que tipo de tripulação terá o barco? — Perguntou ao
capitão.
Thibeaux esfregou o queixo com uma mão.
— Uma muito pequena, acredito. — Respondeu pensativo. —
Vinte homens como muito, e dez seriam suficientes. Durante os
últimos dois dias, não vi mais de seis ou oito de uma vez em seu
convés.
— E de quantos homens consta sua tripulação?
—Quatorze, sem contar com Étienne. — Disse o capitão. —
Todos são bons... e estão orgulhosos de lutar para a Fraternitas.
— Obrigado, Thibeaux. — Disse Geoff. — As nuvens estão se
acumulando ao norte. Talvez a escuridão jogue a nosso favor.
— Não poderão abordar o que não podem ver. — Disse o
capitão. — Esta noite não acenderemos nenhuma lanterna no
convés.
Por fim Geoff sorriu, embora foi um sorriso tenso e de
esgotamento. Isso recordou a Anaís que ele tinha passado a metade
da noite e grande parte do dia sobre uma sela, enquanto que ela
pôde se permitir o luxo de dormir, embora não muito
comodamente, em uma carruagem.
— Por outra parte. — Acrescentou Thibeaux — Se nos
encontrarem, poderiam estar em cima de nós antes de que nos
demos conta.
Anaís suspirou. Thibeaux tinha razão. Parecia que ninguém ia
dormir essa noite. Seria muito perigoso. Conseguiu afastar a vista
do rosto do Geoff e olhou a água, mas já estava muito escuro e só
podia ver o brilho ocasional das ondas.
— Chame a todos seus homens, Thibeaux. — Ordenou Geoff.
— Que agarrem espadas e pistolas, por favor. Anaís descerá para
proteger o camarote de popa.
Não pela primeira vez, Thibeaux dedicou a Anaís um olhar
estranho, como se não entendesse por que atribuíam tais tarefas a
uma mulher. Ela ainda vestia as botas e as calças, o que era uma
sorte. Em uns quantos passos alcançou a escotilha e virtualmente
saltou pela escada, algo que nunca teria conseguido fazer com um
vestido.
No camarote, Charlotte e Giselle estavam dormindo. Étienne
ainda estava ali, dobrando mantas nos outros dois beliches à luz de
um único abajur. Anaís o avaliou com o olhar; parecia rápido e
preparado e, além disso, era bastante alto.
— Étienne, viens ici. — Sussurrou.
— Madame?
O moço se aproximou imediatamente. Anaís levantou uma
perna e tirou a pequena pistola da bota.
— Sabe como usar isto?
O menino assentiu. De todas formas, ela o explicou, passo a
passo.
— Sim, madame. — Disse em um inglês perfeito. — Posso
fazê-lo.
Não separou dela o olhar nem um momento, solene, e Anaís
acreditou. Mas voltaram a fazê-lo uma e outra vez, sempre o
mesmo, até que o moço começou a olhá-la com exasperação.
— Excelente. — Disse ela. — Agora, Étienne, vou subir para
proteger o camarote de popa. Aproxima-se uma embarcação... os
contrabandistas, possivelmente, mas não acredito que nos causem
muitos problemas.
O menino sorriu um tanto desconcertado.
— Non, madame. — Disse. — Meu tio tem uma tripulação
muito valente. Mas você... Pardon, madame, mas você é uma mulher.
Não quer que eu proteja o camarote?
Ah, homens. Parecia que eram iguais em todas as partes do
mundo.
— Acredito que poderei arrumar isso. — Disse ela, e apanhou
uma das pequenas cadeiras que havia junto à mesa. — Quando tiver
ido, agarra esta cadeira e coloca-a debaixo do trinco. Não abra para
ninguém embora lhe peçam isso. A menos que reconheça a voz: a
minha, a do senhor MacLachlan, ou a de alguém da tripulação.
— Madame. — Assentiu.
Ela se inclinou para diante e lhe pôs um dedo sob o queixo
dele.
— E agora vem a parte difícil, Étienne. — Disse-lhe. — Se
alguém tenta forçar a porta, deve...
— Disparar. — Disse o menino.
— Antes de que abram a porta. — Insistiu ela, voltando a lhe
ensinar o mecanismo. — Um disparo através da porta como
advertência. E, o segundo, só se for necessário. E se apoie contra a
parede, ou o solavanco te atirará ao chão e não poderá voltar a
disparar.
— Madame. — Disse sério. — Meu tio me ensinou. Posso fazê-
lo.
— Acredito em ti. — Disse ela, e se dirigiu à bagagem que
tinham levado.
Tirou a colcha de monsieur Michel, a colocou debaixo de um
braço e partiu. Só esperou o necessário para escutar como Étienne
punha a cadeira como lhe havia dito.
— Alors, madame. — Disse ele através da porta. — O mar está
muito tranquilo. Sente-se enjoada?
Anaís ficou imóvel, levou a mão livre ao ventre e sorriu.
Sentia-se... bem. Perfeitamente normal. E não tinha a ver com a
calma do mar, a julgar por suas experiências anteriores. Mas não
tinha tempo de pensar nisso.
— Não, Étienne. — Disse em voz baixa. — Merci.
Capítulo 2 0

"A arte da guerra ensina a não confiar em que provavelmente o

inimigo não venha, somente que estejamos preparados para

recebê-lo."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Para Geoff sempre tinha parecido que a noite caía com


surpreendente rapidez quando se estava no mar. Desta vez não foi
diferente. Observou os compartimentos do navio enquanto os
homens de Thibeaux pareciam converter-se em um só com a
penumbra, até que ao final só pôde ver quem estava imediatamente
a seu lado. Logo ele também desapareceu e encontrou-se na mais
completa escuridão, com apenas o suave vaivém das ondas e os
rangidos dos equipamentos do barco como companhia.
Estava começando a preocupar-se com Anaís quando sentiu
seu calor ao seu lado.
— Toma. — Disse ela com voz rouca na escuridão. —Trouxe
uma espada para você.
— Obrigado.
Com cuidado, apalpou até encontrar o punho e a segurou.
Depois, como não tinha bainha, cravou-a na madeira do navio.
— Santo Deus, como está escuro. — Sussurrou ela. — Graças a
Deus que você está aqui.
Ele tinha entrelaçado os dedos no punho, que ainda
conservava o calor de Anaís.
— Sim, ainda estou aqui. — Disse com voz rouca.
Ainda estou aqui... sempre estarei aqui... se isso for o que
desejas.
Mas isso eram só pensamentos, não palavras que devesse
dizer em voz alta, porque não era o momento nem o lugar.
Por outro lado, viviam em um mundo incerto. Quando seria o
momento? Qual era seu lugar? O universo? O coração de Anaís?
Santo Deus, estava cansado de esperar. E, de repente, assaltaram-no
as dúvidas e as perguntas. Seguindo um impulso imprudente,
puxou Anaís para ele e a beijou profundamente na noite escura.
Ela deu um leve grito abafado e depois se abriu a ele,
recebendo o beijo e devolvendo-lhe. E, por um breve momento,
Geoff esqueceu todos os detalhes de sua missão, que ficaram
deslocados pela imperante necessidade de saber.
A ironia de tudo aquilo não se encontrava em seu interior,
nem sequer quando ela deslizava as mãos, quentes e suaves, por seu
corpo, e suas línguas se entrelaçavam sinuosamente, porque nesse
momento de beijos apaixonados e repentino desespero, Geoff teria
dado tudo o que possuía, tudo o que era, para fazer o que sempre
tinha temido: ver o futuro... o futuro de ambos.
Entretanto, foi Anaís quem interrompeu o beijo. Tinha a
respiração um pouco entrecortada quando colocou uma mão em seu
peito, e depois a deslizou para baixo.
— Santo céu. — Murmurou, esfregando sedutoramente a
protuberância que se formou nas calças dele. — É verdade isso que
dizem. A gente nunca sabe que perigosas criaturas espreitam na
escuridão.
Geoff voltou a puxá-la e a pressionou contra seu membro
inchado enquanto deslizava a boca por seu pescoço.
— Para o inferno com a escuridão. — Disse entre dentes. —
Juro, Anaís, que quando saímos dessa situação, vou fazer amor com
você em plena luz do dia.. todo dia, e você vai permitir isso.
Entendeu?
— Umm. — Respondeu ela, afastando-se um pouco.
Mas ele não queria deixá-la partir.
— Fale, Anaís. — Ordenou-lhe. — Fale que acredita em mim.
Diga que sim.
Ela deixou escapar um risinho, baixou a mão e deu um passo
atrás.
— Acho que essa será uma noite muito longa tendo uma
promessa como essa em mente. — Sussurrou.
Nesse momento a deixou ir, embora odiou fazê-lo.
— Sim. — Disse apertando os dentes. — E muito mais longa se
Lezennes nos alcançar. Então, a luxúria não saciada será o menor
dos meus problemas.
Ouviu que Anaís fazia um leve som rouco com a garganta.
Sentiu que duvidava.
— Ele nos alcançará? Você sente alguma coisa?
Sabia o que lhe perguntava. Sabia o que tinha visto, embora só
tinham sido breves brilhos de uma visão. Não tinha sido nada.
Nada, e tudo. E ainda sentia o seu peso.
— Vem para cá. — Disse ele. — Não o vi... mas sei.
— E agora está muito escuro até mesmo para ver a mão diante
do rosto.
— Thibeaux está com os faróis do navio preparados para usá-
los diante do menor choque ou arranhão suspeitos. — Assegurou-
lhe.
— Isso deveria funcionar. — Disse Anaís secamente. — Já que
não há nada de vento para afastá-los. Que tipo de botes tem o Tigre
Dourado?
Geoff pensou um momento.
— Só um pequeno. — Respondeu. — De uns seis metros.
— Então, provavelmente tentarão nos abordar com ele,
deixando-se levar pelo impulso da água no último momento para
que não ouçamos os remos. Por precaução, deixei um par de adagas
e um florete sob uma lona junto à escotilha da popa. O florete não é
o ideal para usar de perto, mas...
Então, os dois o sentiram. Um estremecimento muito leve no
navio, como se tivesse topado com um cais.
Ou com outra embarcação menor.
Geoff agarrou Anaís pelos ombros.
— Por favor, Anaís, vá para baixo. Quero que esteja segura.
Ela escapou de suas mãos e pôs-se a correr. Suas pegadas se
ouviam rápidas na escuridão. Entretanto, Geoff sabia que ela não
iria fugir. Que ficaria e lutaria como um homem... melhor que um
homem, possivelmente.
Ouviu outro ruído, uma espécie de arranhão, e Thibeaux deu a
ordem. Justo quando se acendia o primeiro farol, um gancho passou
voando por cima do corrimão e depois, clonc! clonc! clonc! Outros
três. Em um segundo, uns homens foram subindo ao convés.
Os homens de Thibeaux estavam preparados com uma salva
de balas. Um contrabandista gritou e caiu na água. Geoff apontou a
um tipo moreno e com barba. Quis atirar na sua perna, mas falhou o
tiro. Entretanto, a explosão de madeira estilhaçada atingiu ao
homem de cheio na cara. Caiu no convés, tampando um olho.
Os homens brigavam uns contra os outros, com o ruído das
botas trovejando por todo o convés, fazendo cortes com as facas, que
brilhavam à luz do farol. Mas os homens de Thibeaux tinham
vantagem; a seu redor, os traficantes vacilavam, pilhados
despreparados pelo repentino brilho de luz.
As pistolas não eram apropriadas e em seguida acabou a
munição. Quase imediatamente se desfizeram delas. Tiraram as
espadas e o ruído de choque de metal contra metal encheu o ar. Em
meio a todo o barulho, Geoff viu um brilho de luz. Esquivou-se
movendo-se à esquerda justo quando uma lâmina de espada
passava zumbindo junto a sua orelha direita.
— Alors, mon ami. — Ressonou uma voz rouca. — Voltamos a
nos encontrar!
O capitão do Tigre dourado. A cara rechonchuda e bronzeada
pelo sol de Sabot brilhou na penumbra.
Geoff se moveu à direita e depois à esquerda, esquivando seus
ataques com a espada de Anaís.
— Esta luta não lhe diz respeito, Sabot. — Disse-lhe,
devolvendo suas estocadas com agitação. — Vá enquanto ainda
possa.
O sorriso irônico de Sabot se fez mais profundo.
— Ah, mas um homem está obrigado a lutar! — Disse, e
voltou a investir, uma e outra vez, com estocadas pesadas, mas
efetivas.
Geoff riscou círculos com a espada ao redor daespada de
Sabot.
— A palavra de Lezennes não vale mais que uma bota cheia
de urina. Leve seu dinheiro e esqueça tudo.
Mas Sabot riu, e seus dentes frontais podres eram como poços
negros na escuridão. Durante um momento, os dois homens
atacaram-se e esquivaram-se, alheios ao caos que se desatou a seu
redor. Geoff tentava não pensar em Anaís, pois morto, não lhe
serviria de nada. Em lugar disso, contra-atacou Sabot com uma
rajada de rápidas estocadas, fazendo-o retroceder quase até o
corrimão. Este começou a grunhir pelo esforço, mas não se rendeu.
A seu redor, todos estavam lutando. Dois homens renderam-
se e foram atirados ao mar, mas Sabot continuava, inabalável. Riu
com malícia e riscou um amplo arco, fazendo que a espada quase
roçasse o pescoço de Geoff.
— Ah, mon ami. — Disse entre dentes. — Está preparado para
morrer?
— Os únicos que morrerão serão seus homens. — Replicou, e
fez com que retrocedesse de novo. — Lezennes mentiu para você,
Sabot. Colocou-o em uma armadilha.
Então Geoff viu a oportunidade e lançou a espada contra a
garganta do Sabot.
Entretanto, nesse momento, o armador de Thibeaux empurrou
a um dos contrabandistas entre eles. Tendo perdido de vista o seu
objetivo, Geoff raspou com a ponta da espada na traqueia de Sabot.
Este sangrou, embora não muito. O homem de Sabot estava
cambaleando e o pobre demônio tropeçou no pé de seu capitão.
Muito tarde, Sabot jogou para trás a espada, cortando o
homem no ombro. O marinheiro caiu entre eles, sangrando.
Olharam-se por cima do homem que gemia, os dois ofegando. Então
Geoff jogou-se contra ele, saltando por cima do contrabandista
ferido, e enviou Sabot contra a vela.
Este interceptou a espada e a tirou de cima. Geoff fez ameaça
de atacar e depois o golpeou com força, apanhando a parte plaina
da espada de Sabot. A arma do traficante caiu no convés. Geoff o
empurrou contra o mastro e lhe pôs a espada contra o pescoço sujo
de sangue.
— Não contou com o elemento surpresa, Sabot. — Disse,
ofegando. — E nós os ultrapassamos em número. Seus homens
sabem, embora você não queira ver...
E era verdade. Além disso, não sentiam lealdade para
Lezennes, podia-se ver em suas caras, agora pálidas na vacilante luz
do farol. Sabot amaldiçoou, mas Geoff pôde sentir sua incerteza.
Sem dúvida lhe haviam dito que poderia apanhá-los despreparados
e agarrar à menina antes de que dessem o alarme.
Havia um pequeno bate boca à esquerda de Geoff, fora de sua
vista. Fora isso, o navio estava em silêncio.
— Ordene a seus homens que se retirem, Sabot. — Disse-lhe
com os dentes apertados. — Agora!
O capitão só hesitou um instante.
— Arrêt! — Gritou, e sua voz ressonou por todo o convés. —
Basta! terminamos aqui!
Mas Geoff não se separou de sua espada. Os homens estavam
desaparecendo pelo convés quase tão rápido como tinham
aparecido.
— Lezennes é um descarado maior que toda sua tripulação
junta. — Disse-lhe. — Quero esse bastardo, Sabot. Agora.
Sabot voltou a sorrir com ironia, curvando os lábios para cima.
— Et voilà. — Disse, inclinando a cabeça em direção à
escotilha. — Terá-o, mon ami... se ficar algo dele quando a mulher
tiver acabado com ele.
Somente então girou para ver o que o resto do navio já estava
observando.
Anaís estava fazendo Lezennes voltar para os camarotes da
proa, com um punhal na mão esquerda e sua querida espada na
direita. Aguentava todos os seus golpes esquivando-se com
facilidade, usando a adaga só para manter o equilíbrio. Geoff
começou a caminhar para ela e logo deteve-se, embora fosse o mais
difícil que já tinha feito na vida.
Mas única coisa que conseguiria seria distrai-la. E deu-se conta
de que ela não necessitava. Lezennes lutava com os dentes
apertados, como se fosse um cão raivoso. como se não acreditasse no
que estava vendo.
Uma e outra vez equilibrava-se contra ela com fúria,
entrechocando as espadas. Mas Anaís somente dava-lhe a distância
que ela queria, retirando-se com elegância, quase com ironia, e logo
atirando-lhe uma outra estocada no pescoço ou a um flanco, mas
sempre sem chegar a golpeá-lo, movendo-se sempre como ela
queria, jogando com Lezennes como um gato jogaria com um rato.
— Stupide pétasse! cadela estupida. — Amaldiçoou Lezennes,
investindo furioso, mas imprudentemente.
Rindo, Anaís interceptou a estocada, girou a espada de
Lezennes com a sua e o separou com um empurrão, fazendo quase
que perdesse o equilíbrio. Os homens afastaram-se. Agora o espaço
já não era uma limitação para sua longa espada. Atrás dele, Geoff
ouvia os últimos homens do Sabot cambaleando para descer pelas
cordas, retirando-se enquanto podiam.
Lezennes, entretanto, não tinha intenção de partir. Sem
dúvida, tinha começado aquela luta de espadas com grande
confiança. Mas iria termina-la com sangue.
Nenhum homem se moveu para ajudar Anaís, e Thibeaux
tampouco o ordenou. Pareciam saber, igual a Geoff, que seria em
vão.
Uma e outra vez, ela afastava o visconde e logo o voltava a
atrair. Ele atacava sem parar, investindo com fúria. Anaís se
esquivava e desfazia-se dele engenhosamente. Lezennes girou com
raiva, agarrou no movimento umas cordas do punho das velas com
a ponta da espada e as cortou. Em algum ponto por cima deles, uma
vela se inchou e depois caiu, balançando-se torcida justo atrás dele
como se fosse o pano de fundo de uma representação barata de
Punch e Judy12.
Em resposta, Anaís inclinou-se para frente e o feriu
deliberadamente na lateral da cabeça.
Lezennes gritou, raivoso. Tinha uma expressão selvagem e o
sangue escorregava pela bochecha.
— Cadela inglesa! — Voltou a gritar. — Como atreve-se?
— Está acabado, Lezennes. — Respondeu ela com calma, sem
deixar de fazê-lo retroceder. — Pretendia matar Charlotte... e agora
eu gostaria de matá-lo.
Lezennes sentiu pânico. Investiu contra ela, furiosa e
inutilmente, retrocedendo centímetro a centímetro, até que ao final
topou contra um monte de lonas dobradas, subiu nelas e ficou
contra a amurada.
Foi um engano fatal. A madeira o golpeou com força na parte
traseira das pernas. Moveu os braços em círculos, com o horror
refletido no rosto. Sua espada repicou contra o convés em um
último intento de salvar-se. Muito tarde. Caiu para trás, pela
amurada.
No convés se fez um momento de completo silêncio, até que se
ouviu um forte barulho de queda na água.
Então foi quando Geoff deu-se conta de que estava quase
tremendo. Os homens de Thibeaux começaram a aclamá-la e um
deles aproximou-se para apertar a mão de Anaís. Mas logo se viram

12
O teatro com o casal de bonecos Punch e Judy é uma tradição britânica pelo menos desde o século XVII. A história varia um pouco, mas quase sempre
envolve Mr. Punch não conseguindo cuidar do bebê do casal, e aí levando pauladas da esposa Judy, até que chega um policial para resolver o caso.
interrompidos. Uma enorme explosão procedente da parte inferior
ressonou por todo o navio, como se tivesse explodido algo na adega.
Com o coração na garganta, Geoff correu para a escotilha,
agarrou a borda com as mãos e deixou-se cair. Uma vez embaixo,
correu para o camarote de popa, com Anaís atrás dele.
Do outro lado do mastro, deteve-se em seco. Navarre, o
homem com a cara marcada de varíola, estava caido no estreito
corredor com os braços e as pernas estendidos. Estava coberto de
lascas de madeira e tinha uma perna retorcida debaixo do corpo. A
porta do camarote tinha um buraco do tamanho de uma bola de
críquete.
Anaís saltou por cima do corpo.
— Étienne! — Gritou.
Colocou uma mão pelo buraco e empurrou algo. O objeto
golpeou o chão com um estrépito barrulho e ela abriu a porta. Com
os olhos muito abertos, Étienne Thibeaux seguia com as costas
contra a parede, sustentando a pistola.
Imediatamente, deixou-a cair.
— Bonjour, madame. — Disse. — C'est fini. Está tudo acabado.
Geoff levantou o olhar por cima do contrabandista atirado no
chão. Em cima no beliche, Charlotte estava de joelhos, encolhida de
medo, e Giselle se encontrava atrás dela, como se quisesse protegê-
la. Charlotte caiu quando viu Anaís, levando uma mão ao coração.
— Oh, graças a Deus! — Gritou. — Oh, graças a Deus!
Geoff se ajoelhou junto ao corpo e pôs dois dedos no pescoço
do Navarre. Étienne se aproximou cautelosamente, com
curiosidade.
— Está morto, monsieur? — Perguntou com calma.
— Não. — Respondeu Geoff, enquanto o apalpava em busca
de uma ferida. — Não, acredito que só golpeou a cabeça.
— Oh. — Étienne pareceu decepcionado. — Tant pis! Não
importa.
Capítulo 2 1

"Outorga recompensas que não sejam necessárias por lei; impõe

excepcionais ordens governamentais. Dirige as massas dos Três

Exércitos como se mandasse a um só homem."

Sun Tzu, A arte da Guerra

O reverendo Sutherland era, acima de tudo, um homem de fé.


Como estrito tradicionalista que era, pensava que a mão de Deus
podia ver-se em muitas coisas que o homem estava destinado a não
compreender, enquanto vivesse situava a Fraternitas diretamente
nessa categoria. Isso queria dizer que o bom prior acreditava
firmemente na irmandade e entendia que alguém devia sacrificar-se
de vez em quando pela retidão de sua causa. E nessas estranhas
ocasiões, quando via que seus princípios pessoais entravam em
conflito com suas inclinações naturais, preocupava-se.
Estava preocupado nesse momento, de pé junto a uma das
pequenas torres de tijolo que flanqueavam Colchester Station,
observando enquanto a chuva caía com força, como terminavam de
colocar a bagagem na carruagem de Charlotte Moreau, ou, melhor
dizendo, do pai de Charlotte. Então o cocheiro fustigou os cavalos e
o séquito partiu, uma carreta e uma carruagem de viagem
estralando sob a chuva.
Charlotte se despediu deles com a mão até que o veículo
entrou no caminho principal. E inclusive então, Sutherland pôde ver
a carinha de Giselle no cristal traseiro, olhando-os enquanto se fazia
cada vez menor. Então, no último momento, levantou uma mão e a
colocou contra o cristal... Igual ao nariz, e Sutherland já não pôde
ver mais, embora não poderia haver dito se era pela chuva ou pela
débil neblina que lhe empanava os olhos.
No pavimento, Geoffrey e a senhorita De Rohan deram a volta
e correram da rua até situar-se sob o beiral da estação, baixando os
guarda-chuvas e agitando-os vigorosamente. Vestidos com roupa
escura, com um traje quase formal, ele de fino tecido negro e
deslumbrante linho branco, e ela com objetos de cetim de cor
berinjela escuro, poderiam ser um casal rico de doer.
O conde seguia olhando a carruagem, que já se perdia na
distância.
— Bom. — Disse, Geoff. — Acreditam que estarão bem sem
nós?
Sutherland sorriu beatificamente.
— Não é o único guardião, meu filho, capaz de cuidar dessa
menina... apesar de quanto unidos os três tenham podido estar estes
últimos dias.
Geoff riu.
— O senhor Henfield protegerá bem à menina, Geoffrey. —
Sutherland lhe pôs uma mão reconfortante a seu amigo, entre as
omoplatas. — É um bom guardião... e acredito que Charlotte gosta
bastante dele. A senhorita De Rohan e você têm feito o trabalho do
Senhor, porque Ele tem um objetivo para essa menina, embora ainda
não sabemos qual é.
— Já há predito a queda de uma monarquia. — Disse Geoff
com preocupação. — Dá-me medo pensar qual será a próxima coisa
que diga.
— Precisamente. — Murmurou o prior. — E agora estará a
salvo até que aprenda a compreender o dom. Talvez escolha não
usá-lo, mas ao menos terá escolha. Esse é o dom que vocês dois lhe
deram.
A chuva escolheu esse momento para voltar a cair com força,
salpicando o pavimento e ricocheteando como calhaus.
— Vamos. — Disse Geoff, insistindo com Anaís para caminhar
para a porta. — Entremos.
Uma vez na estação, os cavalheiros se internaram na maré de
passageiros e porta-malas para comprar os bilhetes e ordenar que se
fizessem cargo da bagagem. Reuniram-se com Anaís perto da
entrada, justo quando um trem se detinha, cuspindo vapor e
assobiando.
— Bom. — Disse Sutherland fazendo-se ouvir por cima do
ruído — Suponho que aqui é onde nos separamos. Senhorita De
Rohan, está completamente segura de que não quer vir comigo?
Minha irmã tem uma cozinheira excelente, uma casa muito cômoda
e adoraria ter companhia.
Pela terceira vez desde o café da manhã, Anaís negou com a
cabeça.
— É muito amável, senhor. — Respondeu. — Mas já sinto falta
de minha casa.
— Então, me permita lhe alugar uma carruagem para quando
retornar hoje. — Insistiu o prior.
— O que lhe passa Sutherland? — Perguntou Geoff com
mordacidade. — Há trens que vão e vêm de Londres durante todo o
dia.
O prior apertou os lábios.
— Bom, não se trata disso, Geoffrey, inclusive nestes tempos
modernos. — Disse finalmente. — Uma dama solteira, quero dizer,
em um trem, encerrada em um compartimento de primeira classe?
Com um cavalheiro com o qual não está casada?
Ao ouvir essas palavras, Geoff olhou Anaís de maneira
estranha.
— Pode estar tranquilo, senhor. — Respondeu com certa
severidade. — Pretendo resolver essa falha assim que possa falar
com o pai da dama.
O senhor Sutherland arqueou suas sobrancelhas.
— De verdade?
— Sim, Por Deus. Embora isso não é assunto de nad...
— Parem, os dois! — Exclamou Anaís com expressão sombria.
— Geoff, esse anúncio é um pouco prematuro, não crê? Volta para
casa e acerta o que tem pendente, se puder. Quanto a você, senhor
Sutherland, direi-lhe que passei muitos dias em companhia de
Geoff... a serviço da Fraternitas, devo acrescentar. Acredito que já
passou o momento de nos preocupar com minha reputação.
Esse, era precisamente o conflito que Sutherland se via
obrigado a superar. Estava muito bem sacrificar-se em nome da
Fraternitas quando se era parte dela... e um cavalheiro, protegido
contra o desprezo da sociedade. Entretanto, era muito diferente se
essa pessoa era uma dama. Uma dama a que lhe tinha negado a
participação e que, mesmo assim, tinha respondido à chamada do
dever.
Mas já era muito tarde para lutar com a ambiguidade ética de
tudo aquilo. Ou com a culpa. Apesar disso, esta lhe picava como se
fora um mosquito; continuamente, lhe mordiscando a certeza moral
de que os homens eram o sexo forte. De que não havia lugar para as
mulheres na irmandade. Se só a metade do que tinha ouvido era
certo, essa jovem tinha sido extremamente valente.
O trem tinha deixado escapar outro estalo ensurdecedor e a
maré de passageiros começou a dirigir-se às portas. Anaís tinha uma
expressão sombria.
De repente, Sutherland se deixou levar por um impulso... ou
talvez fora pelo bom julgamento. Tirou o chapéu alto e o deixou
sobre seu baú de viagem.
— Querida. — Disse. — Me dê a mão.
Ela refletiu a surpresa no rosto, mas o fez, pondo seus dedos
largos e frios sobre os do prior.
— Agora. — Continuou ele. — Diga as palavras. E rápido, por
favor.
— As palavras?
Anaís franziu o cenho.
Sutherland agitou a mão livre enquanto o trem voltava a
assobiar.
— "Solicito humildemente ser admitida, etcétera, etcétera" — Disse
Sutherland.
— Para a Fraternitas?
Ela o olhou boquiaberta.
— Sim, sim, só é uma formalidade. — Respondeu o prior. —
Lazonby já disse sua parte.
Geoff o olhou sombriamente.
— Pelo amor de Deus, Sutherland. — Falou. — Em uma
estação de trem?
Mas a senhorita De Rohan já estava falando, em voz baixa,
mas clara, em perfeito latim.
— Solicito humildemente ser admitida na irmandade. — Disse
rapidamente. — Ganhei esse direito com minha devoção, com
minha força e com minha linhagem. E prometo por minha honra
que defenderei por meio da palavra e da espada o dom, minha fé a
minha irmandade e a todos os que dependem dela, até que o último
fôlego abandone meu corpo.
Sutherland lhe pôs a outra mão no ombro.
— Então, que seu braço seja, irmã, como a mão direita de
Deus. — Disse. — E que todos seus dias sejam para a Fraternitas, e
para seu serviço.
— E que também o sejam os teus. — Respondeu ela.
Sutherland deixou cair ambas as mãos e fez uma ligeira
reverência.
— Muito bem. — Disse. — Está feito.
A senhorita Do Rohan ainda estava um pouco confusa.
— E... isso é tudo? — Perguntou. — Já está feito?
— Bom, podemos terminar a cerimônia formal de iniciação
quando retornarmos a Londres, se o desejar. — Sugeriu Sutherland.
— Obrigado, mas não. — Disse Anaís com firmeza. — Já vesti
a túnica.
— Então, sim. — Disse o prior. — Isso é tudo.
— Bom, acredito que deveria haver uma votação. — Interveio
Geoff com indecisão. — A Sociedade de Saint James. Os membros...?
Ela o olhou com intensidade.
— E o que votará você?
O olhar do Geoff se suavizou.
— Já sabe o que votarei. — Respondeu.
— E eu sei o que votarão outros. — Disse Sutherland.
Recolheu o chapéu e o voltou a pôr. — Se não, já podem ir buscando
outro prior.
Geoff deu a mão a Sutherland e a apertou com força.
— Então, antecipo um veredicto unânime. — Disse, e virou
para Anaís com um terno sorriso nos lábios. — Felicidades, querida.
Merece isso.
— Ah, bem. — Sutherland pigarreou. — Em qualquer caso,
estou desejando saber como acaba este pequeno mistério de seu
futuro juntos. — Afirmou, e tirou o chapéu em direção a Anaís justo
quando o trem voltava a assobiar. — E esse é meu trem a Ipswich,
acredito. Me permitam voltar a lhes agradecer pelo exemplar serviço
que emprestastes a Fraternitas Aureae Crucis.
Dito isso, pendurou o guarda-chuva num braço, agarrou o
baú e pôs-se a andar para a plataforma.

*****
Sentindo-se de repente incômoda, Anaís observou Sutherland
enquanto partia. Ainda lhe dava voltas a cabeça pelo que o prior
tinha feito. Isso, por cima de tudo, desorientava-a muito. Quase se
sentia como se a tivessem disparado com um canhão.
Geoff e ela tinham passado quase três dias em Essex,
informando a Sutherland e ao senhor Henfield sobre a missão,
reunindo Charlotte com seus pais e resolvendo as dúvidas de
Giselle. E, agora, a missão tinha terminado. O perigo tinha passado.
Era como se tudo tivesse mudado entre eles.
Então Geoff lhe segurou a mão e lhe deu um firme apertão,
dizendo que tudo voltaria a estar bem.
— Vamos, amor. — Sussurrou. — Vamos para casa.
Frente a eles, outra locomotiva estava soprando e sacudindo-
se enquanto entrava na estação. Deteve-se e a maré de gente voltou
a mover-se, nesse momento, em direção contrária. Anaís tomou o
braço que Geoff lhe oferecia enquanto ele apanhava a bagagem de
ambos com uma mão, levantando-os como se não pesasse nada.
Só lhes levou uns momentos instalar-se no compartimento e
guardar a bagagem de mão. Ao longo de toda a plataforma, as
portas se fecharam com um ruído surdo. A locomotiva deu duas
violentas sacudidas que enviaram Anaís de costas contra o assento.
Passou os últimos cinco dias com os nervos à flor da pele, e agora
sentia como se seu corpo se encontrasse em um estado constante de
alerta.
Geoff lhe pôs uma mão sobre as suas.
— Às vezes é assim. — Disse em voz baixa, como se tivesse
lido os pensamentos. — Logo estaremos em Londres e a vida voltará
para a normalidade.
Disso ela precisamente tinha medo, de retornar para casa
como partiram, como desconhecidos receosos, cada um com sua
própria vida. Tinha medo de que os dias que tinha passado com
Geoff tivessem sido algo fora do tempo, um extraordinário
interlúdio que não cabia na realidade... nem no espaço. Que o desejo
que sentia por ela fosse somente isso, e nada mais, e que a claridade
que por fim tinha encontrado sobre a vida, o amor e os sonhos que
deixava murchar se desvanecesse conforme se afastasse de Bruxelas.
Suas dúvidas tinham aumentado pelo fato de que, desde que
tinham fugido da casa de Lezennes, Geoff e ela não tinham tido nem
um momento a sós, deram um apaixonado beijo na escuridão a
bordo do Jolie Enjoe. Durante dias inteiros tinham vivido cotovelo
com cotovelo e tinham aprendido a confiar o um no outro. Tinham
trabalhado juntos, embora às vezes a contragosto, para conseguir
um objetivo comum. E tinham se convertido em amantes com uma
paixão extraordinária e febril.
E então, tão repentinamente como tinha começado, acabou-se.
E ela sabia bem que as paixões frequentemente se consumiam.
Mesmo assim, sentia-se como se fosse uma pessoa completamente
diferente. Muitas das coisas que acreditava sobre ela mesma tinham
mudado, dando a volta por completo em seu mundo bem
organizado. E agora, aquilo pelo que tinha trabalhado tanto, a
iniciação na Fraternitas Aureae Crucis, era dela. Então, por que se
sentia apática?
O trem vibrou, chiou e começou a mover-se. Anaís viu que a
plataforma se afastava entre uma mistura de vapor e fumaça.
Afastou a vista da janela e se deu conta de que Geoff lhe estava
estendendo uma mão.
— Vêm aqui. — Disse ele. Como todas suas ordens,
pronunciou-a com suavidade, mas firmemente.
Anaís não tinha vontade de discutir. Sentou-se em frente, no
assento que havia ao lado dele, enquanto o trem ganhava
velocidade e começavam a ver passar a campina.
Geoff a rodeou com um braço e lhe fez pôr a cabeça em seu
ombro.
— Anaís de Rohan. — Disse em voz baixa. — Te amo.
Ela se esticou entre seus braços.
Geoff inclinou a cabeça para olhá-la.
— O que? — Disse. — Não esperava que isso mudasse, não?
Parece uma prisioneira no caminho ao patíbulo de Tyburn.
Ela o olhou fixamente, sem pestanejar.
— Passamos extraordinários dias juntos. — Disse — Mas
agora temos que retornar às nossas antigas vidas.
Geoff não disse nada; ficou olhando pela janela uns
momentos. Depois, acrescentou:
— Não estou seguro de que possa retornar a uma vida em que
você não esteja. Mas se não sentir o mesmo, aceitarei-o.
— De verdade?
A ela lhe encolheu o coração.
— Sim, mas só o tempo suficiente para te cortejar
devidamente. Estou esperando o momento oportuno, Anaís. Vou
para casa fazer o que me pediste para fazer. E depois, pretendo te
ganhar trabalhando duro. Vou assediar seu coração. Não vou aceitar
um não por resposta.
— Geoff. — Disse ela, sentindo de repente a boca seca. — Não
disse que não. Não esse tipo de não. Tenta entender a culpa com que
tive que viv...
Ele a interrompeu ao lhe pôr um dedo nos lábios.
— Shh, Anaís. Sei. E pretendo esclarecer coisas com a dama
em questão assim que descer deste trem. Quero explicar-lhe eu
mesmo. Tudo estará feito antes do entardecer, asseguro-lhe isso. E,
provavelmente, ela se sentirá aliviada.
Anaís não sabia o que dizer. Queria Geoff, mas o queria às
custas de outra mulher?
Para sua vergonha, sim. Afastou o olhar e engoliu em seco.
Tinha que confiar em seu bom julgamento e em que Geoff tinha
razão. E que sua nonna tinha estado... bom, equivocada. Mas estava
segura de seu amor. De sua escolha. E agora tinha que viver sua
vida: era sua oportunidade e devia aferrar-se a ela, porque Geoff era
um homem por quem valia a pena esperar.
Viajaram em silencio durante um bom momento, até que
chegaram a seguinte parada e a maré de passageiros e malas
começou de novo. Geoff virava a cabeça de vez em quando para
olhá-la, mas não dizia nada, limitava-se a sorrir. Então as portas
voltaram a fechar-se com estrépito barrulho, uma depois da outra, e
começaram de novo os assobios e as nuvens de vapor.
Geoff posou os lábios na têmpora dela.
— Temo que iremos demorar bastante para chegar a seguinte
estação. — Disse-lhe.
— Oh. — Respondeu ela. — Isso... é promissor.
— Sim? — Geoff levantou a cabeça, perplexo. — Por quê?
— Porque estava me perguntando. — Disse Anaís em voz
baixa. — Como seria fazer amor em um trem em marcha...

*****

Aquela tarde, as nuvens cinzas que cobriam Londres se


limparam milagrosamente e revelaram um céu extraordinariamente
azul, e um sol tão brilhante que as damas que tinham saído às
compras em Saint James tiveram que abrir seus guarda-sóis para
evitar que lhes saíssem sardas no nariz.
Rance Welham, Conde Lazonby, estava descendo os degraus
da entrada da Sociedade de Saint James, sem ter pensado em seu
nariz, quando um faeton negro com rodas de cor vermelha rubi
tomou bruscamente a esquina com a Saint James Place, atravessou
os últimos atoleiros da manhã, salpicando lama, e se deteve a uns
poucos metros.
Os elegantes cavalos negros chutaram e agitaram a cabeça com
impaciência, mas a condutora os controlou com facilidade.
— Boa tarde, Rance. — Disse-lhe lady Anisha. — Que surpresa
tão agradável.
Ele observou estupefato à dama, que desceu e entregou as
rédeas ao lacaio dos Belkadi, que tinha se apressado a baixar os
degraus para inclinar-se ante ela.
— Bom, bom, Nish! — Disse Lazonby, apoiando-se em sua
bengala com punho de latão. — Agora te vale por ti mesma, né?
— A vida é dura. — Lady Anisha sorriu e tirou as luvas
enquanto se aproximava. — Você gosta?
— É.. elegante. — Disse Lazonby, esforçando-se por não ficar
com a boca aberta. — Não estou seguro de que você seja.
— Bom, talvez devesse sê-lo. — Murmurou ela
enigmaticamente.
Lazonby observou o veículo com olhar crítico, encontrando
muito que admirar. Era alto, mas não tanto como para resultar
perigoso. Estava perfeitamente armado, com rodas dianteiras que
chegavam ao ombro de lady Anisha e uma pintura que brilhava
como ônix cercado de rubis. Era uma carruagem que nenhum jovem
da moda teria renunciado voluntariamente... e uma que muito
poucas damas se atreveriam a conduzir.
— Em qualquer caso. — Continuou lady Anisha. — Somente
estou cuidando, por assim dizê-lo, para meu irmão Luzam.
— Ah. — Disse o conde com cumplicidade. — Colocou-se
outra vez em confusões, não é assim?
O sorriso de lady Anisha se esticou.
— Mais ou menos. Neste momento, foi o bacará. Mas
aprendeu que, se quiser minha ajuda, está tem um preço. Esta vez, o
preço é seu faeton. Confesso que estou gostando bastante. Não estou
segura de que meu irmão o vá recuperar.
Lazonby desviou sua atenção da carruagem à formosa mulher.
— Veio visitar outra vez o senhor Sutherland? — Perguntou
com curiosidade. — Porque segue em Essex.
— Bom, dificilmente poderia ter feito a viagem até Colchester
e não visitar sua irmã, não? — Disse Anisha. — Mas, em realidade,
vim buscar Safiyah. Vou tentar convencê-la para que conduza no
parque comigo.
Lazonby deu um passo atrás.
— Pois boa sorte.
— Sei. — Anisha fez uma careta. — Certamente, vai se negar.
E você? Atreveria-te a deixar sua vida em minhas mãos?
— Me ocorrem poucas pessoas nas que confiaria sem dúvidas.
— Disse Lazonby com sinceridade. — Mas não, ia cruzar a rua até o
Quatermaine Clube.
— Rance! — Exclamou com tom de admoestação. — Não vais
voltar a jogar.
Sorriu a ela.
— Não na favela de Ned, isso lhe asseguro. Não deixaria que
ninguém da Sociedade de Saint James se sentasse em suas mesas.
— Céus, pergunto-me por que! Pelo menos, me acompanhe à
biblioteca um momento. Devo te dizer algo, e não quero que seja na
rua.
Com relutância, Lazonby inclinou a cabeça e lhe ofereceu o
braço.
Dois minutos depois, estavam sentados nos grandes sofás de
couro da biblioteca privada do clube, olhando um ao outro com
certo desconforto ante a mesa do chá. Lazonby esperava que lady
Anisha tivesse esquecido a última vez que tinha estado com ele
nesse lugar.
Ele estava em um estado lamentável, fervendo de raiva e
frustração e de algo mais no que não queria pensar. O irmão de Nish
o tinha apanhado no que, aparentemente, era uma situação
aparentemente comprometedora... com esse merdinha do Jack
Coldwater. E o que era ainda pior, Nish tinha estado com Ruthveyn.
Somente esperava que ela não tivesse visto... Bom, o que tivesse
estado ocorrendo.
Seu irmão sim o tinha visto... e lhe tinha dado uma boa bronca.
Não porque Ruthveyn fosse um moralista: não, a briga tinha sido
por causa de Nish.
Nish, que provavelmente era a mulher mais formosa que já
tinha visto.
Observou-a nesse momento. Seus olhos escuros que
brilhavam, seus seios, pequenos e perfeitos, estavam rodeados por
seu vestido negro de seda, seu comprido pescoço era elegante como
o de um cisne e desejou, com um pouco de tristeza, não lhe haver
passado tão rapidamente a Bessett.
Não era que Nish pertencesse a ninguém para passá-la. Não
era assim. Já não. De algum jeito, esse dia o sentia com mais
intensidade.
Como se quisesse romper esse momento incômodo, lady
Anisha levantou uma mão para tirar o comprido alfinete de seu
garboso chapéu, e deixou ambas as coisas ao seu lado.
— Pronto. — Disse com um suspiro. — Estava me cravando. E
agora, Rance... fez muito mal em me abandonar no Whitehall o
outro dia. No que estava pensando?
Ele ficou em pé de um salto.
— Não te abandonei. — Disse de forma impaciente e mal-
humorada. — Deixei-te minha carruagem, meu cocheiro e meus
lacaios... com instruções para que lhe levassem sem incidentes ao
Upper Grosvenor Street. Pensei que seria melhor ir andando para
casa, porque estava muito irascível e não era boa companhia para
uma dama.
— Abandonou-me. — Repetiu, e o seguiu à janela. —
Sinceramente, Rance, não sei o que te aconteceu estes últimos meses.
Comporta-te de maneira muito estranha.
Lazonby olhou para a entrada do Quatermaine Clube, onde
Pinkie Ringgold, um dos valentões do clube, estava abrindo a porta
de uma carruagem que se deteve.
Obrigou-se a se voltar e enfrentá-la.
— Sinto muito. — Disse com voz rouca. — O que era, Nish, o
que queria me dizer?
Lançou-lhe um rápido olhar apreciativo da cabeça aos pés.
— Duas coisas. Primeiro o que sabe das origens do Royden
Napier?
Lazonby encolheu os ombros.
— Nada absolutamente, exceto que é o feto do velho Nick
Napier.
— Rance, cuida sua linguagem! — Anisha pôs os olhos em
branco. — Em qualquer caso, lady Madeleine me disse algo muito
interessante ontem à noite, durante o jantar.
Lazonby sorriu.
— Já está te fazendo íntima de sua futura sogra, não é assim?
Os olhos escuros de lady Anisha brilharam com fúria.
— Você cala e escuta. Faz uns meses, quando Napier foi ao
leito de morte de seu tio...
— Sim, a Birmingham, conforme disse alguém. —
Interrompeu-a Lazonby. — Provavelmente, algum ourives
incompetente. O que aconteceu com ele?
— Porque não era Birmingham. — Lady Anisha tinha baixado
o tom de voz. — Belkadi o entendeu mal. Era Burlingame... como
Burlingame Court.
Durante uns instantes, Lazonby só foi capaz de olhá-la
desconcertado.
— A casa de lorde Hepplewood?
— Bom Hepplewood está morto, não? Ou isso diz lady
Madeleine. — Lady Anisha agitou uma mão com desdém. —
Confesso que não sei nada dessa gente. Mas me parece estranho que
Napier seja o sobrinho de alguém tão bem relacionado.
— Então, seria por parte de lady Hepplewood. — Murmurou
Lazonby.
— Lady Madeleine diz que não. — Argumentou lady Anisha.
— Pergunto-me se talvez Napier é ilegítimo.
— Não, mas o velho Nick poderia havê-lo sido. — Lazonby
voltou a encolher os ombros. — Mas não dou nem dois xelins pelo
sobrenome do Napier. Só quero que mova o traseiro e faça seu
trabalho.
Lady Anisha o olhou detrás dos leques de longas pestanas
negras.
— O que me leva ao segundo ponto. — Disse, e sua voz
pareceu flutuar ao redor dele.
Lazonby sentiu que lhe secava um pouco a boca.
— O que?
— Convenci Royden Napier para que me deixe dar uma
olhada nos informes do caso Peveril. — Afirmou.
— Você fez o que?
Olhou-a com incredulidade.
— Vai me deixar ver os papeis. — Repetiu. — Não os posso
tirar de seu escritório, é obvio. Mas são relatórios públicos... bom,
algo assim, assim que me vai permitir vê-los. As notas de seu pai. As
declarações das testemunhas. Esse tipo de coisas. Assim... o que
quer saber?
Rance não podia deixar de olhá-la.
— Eu... Santo Deus... tudo. Tudo o que possa ler. Mas como...?
Nish afastou o olhar.
— Vinagre e mel, Rance. — Murmurou. — Já conhece o refrão.
Acredito que será melhor que me deixe tratar com o Napier de
agora em diante... sobretudo, porque é incapaz de falar
civilizadamente.
Lazonby fechou os olhos e engoliu em seco.
— Obrigado, Nish. — Sussurrou. — Não sei o que fez, mas...
obrigado.
Quando abriu os olhos, lady Anisha ainda o estava olhando.
Seu rosto formoso tinha uma expressão indecifrável e seus grandes
olhos escuros pareciam profundos poços insondáveis. Às vezes lhe
ocorria isso quando a olhava... ficava sem respiração. Não era amor.
Nem sequer era desejo.
— De nada. — Disse ela em voz baixa.
E, de algum jeito, nesse momento surrealista junto à janela
aberta, escutando o estalo continuado das carruagens e o arrulho
das pombas nos beirais, pareceu-lhe que o mais singelo e natural do
mundo era segurar Nish entre seus braços e beijá-la.
Ela foi a ele com um ofego entrecortado e seus lábios se
encontraram. A princípio, Rance a beijou brandamente, inclinando a
boca sobre a sua enquanto inalava seu aroma, uma mescla
misteriosa e exótica de madeira de sândalo e uma feminilidade, que,
sem adulterar, teria conseguido fazer ferver o sangue de um morto.
Nish lhe devolveu o beijo ficando nas pontas dos pés, porque
apenas lhe chegava ao peito. Ele o aprofundou, deslizou a língua em
sua boca e sentiu que lhe dava um tombo no estômago e que lhe
endurecia o membro. Em resposta, ela gemeu levemente e isso fez
com que Rance fosse percorrido por um estremecimento de luxúria.
Desejava-a.
Poderia levá-la a cama nesse mesmo momento e perder-se em
seu corpo pequeno e sensual. Poderia lhe dar um prazer
extraordinário, e inclusive júbilo. E ela poderia acalmar, ao menos
por um momento, essa profunda insatisfação que parecia agitar-se
constantemente em seu interior.
Mas não podia permitir-se amá-la.
Poderia fode-la. Poderia usá-la... Oh, esplendidamente! Mas
ela merecia algo melhor. A alguém melhor que ele... muito melhor.
Lady Anisha Stafford era como uma pequena joia exótica, a quem as
mulheres tinham ensinado, se os rumores eram verídicos, mil
deliciosas maneiras de agradar um homem, e merecia alguém capaz
de elogiar essa perfeição. E esse homem não era ele. Ele tinha visto
muitas coisas. Tinha provado muitas coisas. Seu paladar estava
embotado pelos excessos da vida.
Lazonby afastou a boca da de Anisha com um pouco de
brutalidade e a separou dele. Tinha a respiração irregular e o corpo,
disposto e ofegante.
— Sinto muito. — Disse com voz rouca, e deixou cair as mãos.
— Santo Deus, Nish! Me perdoe.
Ela baixou o olhar e deu um passo atrás, como se estivesse
envergonhada. Nenhum dos dois viu a sombra que quase tinha
entrado na sala, e que saiu de novo.
Instintivamente, ele estendeu um braço para ela.
— Espera.
— Não. — Respondeu lady Anisha, e retrocedeu outro passo.
— Não vou esperar. O que há entre nós... Alguma vez poderá ser,
verdade, Rance?
Ele negou com a cabeça.
— Não. — Mostrou-se de acordo. — Poderia fazer amor
contigo, Nish. Poderia. Eu... quero fazê-lo. Mas Ruthveyn me
mataria. E Bessett... meu Deus, no que estava pensando?
Por fim ela levantou o olhar. Os olhos pareciam lhe arder.
— Melhor seria perguntar no que estava pensando eu.
— Deveria te casar com ele, Nish. — Disse Lazonby. — É um
bom homem. Te dará um sobrenome antigo, honorável e
irrepreensível..., algo que eu nunca poderia fazer. E será um pai
extraordinário para seus filhos. Deveria te casar com ele.
Ela afastou um pouco o olhar, vacilante.
— Sim. Deveria.
— E o fará? — Perguntou. — Te casará com ele? Espero que
sim.
De novo, uma sombra de incerteza passou por seus olhos.
— Possivelmente. — Disse por fim. — Se me pedir isso...,
porque ainda não o tem feito, então sim, pelo bem dos meninos,
talvez o faça.
Lazonby deixou escapar um suspiro de alívio e sentiu que o
sangue voltava a fluir por onde devia.
— Bem. — Disse com calma. — Nunca te arrependerá.
Ela o olhou fixamente.
— E você tampouco te arrependerá, certo?
Ele apertou os lábios e desviou o olhar.
— Você não me ama, Nish. — Disse em voz baixa.
Sobre eles caiu um silêncio longo e espectador. Então, ela
respondeu:
— Não, não te amo. — Disse finalmente, com uma voz
surpreendentemente potente. — Às vezes te desejo, Rance. É... Bom,
o tipo de homem que tira o pior de uma mulher suponho. Ou,
talvez, o melhor. Mas não, não te amo.
Ele a olhou com certa surpresa, sem saber o que dizer.
— Há algo mais? — Perguntou lady Anisha sem alterar o tom
de voz. — Antes que volte para Whitehall? Não sei quantas viagens
poderei fazer antes que Napier esgote sua paciência.
Havia algo. Algo importante. Lazonby sentiu que a cara lhe
ardia. Não parecia um bom momento para pedir um favor a Nish.
Mas levava muito tempo desesperado.
— Sim. — Disse por fim. — Há algo em especial.
Dirigiu-se ao pequeno escritório que havia perto da porta e
tirou um dos papéis para cartas do clube. Rabiscou com impaciência
um nome nele e o estendeu.
— John Coldwater. — Murmurou ela, e o olhou com certa
irritação.
— Ou Jack. — Disse Lazonby. — Jack Coldwater.
— Sei quem é. — Respondeu Anisha com voz fria.
— Ou qualquer nome que esteja relacionado com alguma
pessoa apelidada Coldwater.
— E como vou saber disso? — Perguntou com aspereza.
— Por isso me dirigia ao clube de Ned Quatermaine. —
Respondeu Lazonby. — Vou contratar um de seus garotos para que
investigue esse tipo. Para que descubra de onde vem e quem é sua
família.
— Por quê? — Lady Anisha apertou os lábios com
desaprovação. — Acreditava que tinha aprendido a lição sobre esse
tema.
Lazonby não se atreveu a perguntar a que se referia.
— Coldwater está me acossando por alguma razão, Nish. —
Respondeu. — Trata-se de algo mais que uma reportagem para o
Chronicle, porque minha história já não é nada novo. Não, isto é
pessoal.
— Pessoal. — Repetiu lady Anisha, e guardou o papel no
bolso. — Te direi no que acredito, Rance. Acredito que sua obsessão
com Jack Coldwater é pessoal.
— Ah, sim? — Perguntou, sarcástico.
— Sim. E muito, muito imprudente.
Por um instante, ele hesitou, perguntando-se se devia lhe dizer
que fosse para o inferno ou simplesmente voltar a beijá-la para fazer
que se calasse.
Entretanto, ao final não fez nenhuma das duas coisas. Tomou
a opção mais covarde.
— Deve me perdoar. — Disse com voz tensa. — Esperam-me
em outro lugar.
Lazonby girou sobre seus calcanhares, saiu da biblioteca e,
quando virou para as escadas, deu de cara com lorde Bessett, que
estava fora do alcance do ouvido, com as costas contra a parede do
corredor e apertando com força a ponte do nariz com os dedos.
Lazonby levantou os braços.
— Cristo Jesus! — Exclamou. — De onde há...?
Deu-se conta muito tarde de que Bessett levou um dedo aos
lábios.
— Pelo amor de Deus, Rance. — Disse com um tom de voz no
que não havia nem ira nem humor. — Fecha essa maldita porta se
for por aí beijando a quem não deve.
— Você! — Disse Lazonby, com os punhos apertados aos
flancos. — Que demônios está fazendo aqui?
— Parece-me que eu poderia te perguntar o mesmo, velho
amigo. — Respondeu. — Mas eu... Bom, vim resolver alguns
assuntos pendentes. Higgenthorpe disse que poderia encontrar Nish
aqui.
— Alguns assuntos pendentes?
— Sim. — Disse Bessett com olhos risonhos. — Embora
sinceramente, velho amigo, parece-me que estava fazendo o
trabalho por mim.

*****

Por volta das sete, Maria Vittorio estava fechando as pesadas


cortinas de veludo na sala de estar no Wellclose Square enquanto
seus saltos repicavam ruidosamente nos polidos chãos de madeira.
Frequentemente se queixava de que necessitavam de um tapete, mas
ainda não tinham feito nada a respeito porque Anaís não tinha
mostrado nenhum interesse em escolher um, preferindo deixar a
residência como tinham estado nos dias de sua bisavó.
Mas nessa época, a residência não tinha estado cheia de
poltronas estofadas e grandes divãs, mas sim de enormes escritórios,
caixotes empilhados e de secretários zumbindo ao redor como
diligentes abelhas: o império que Sofia, tinha mantido à mão
quando tinha envelhecido muito para sair de casa. Entretanto, a
verdade era que Castelli & Company comeu todo o espaço antes de
sua morte, e, acostumaram-se a isso.
E agora o quase vazio das salas resultava elegantes, amplos e
enormes cômodos escassamente mobiliados e pouco usados, porque
a casa era grande e só viviam nela duas pessoas. Duas pessoas que
não estavam acostumadas a relacionar-se com ninguém, que não
tinham nada pelo que retirar-se a outra habitação, porque não
entretinham a ninguém exceto à família.
Entretanto, nesse momento Maria passeou o olhar pelas
amplas salas de tetos altos e se perguntou com o coração de uma
mãe se esses cômodos e essa casa não estavam a ponto de ver outra
mudança. Oh, possivelmente não era, estritamente falando, uma
mãe, já que Deus não a tinha abençoado nesse sentido. Mas sim a
tinha abençoado com Nate, Anaís e Armand, e muito mais gente
que a necessitava.
Não, não estava segura de que Anaís ainda a necessitasse, pelo
menos não como antes, porque aquele dia tinha retornado a casa
como uma pessoa mudada, entre outra enchente de baús e bolsas.
Mudada de uma maneira que ela conhecia muito bem; com uma luz
nos olhos, mas com tristeza no coração. E sempre, sempre, havia um
homem em metade dessas emoções contraditórias e dos silêncios
sutis.
Maria estava fechando as últimas cortinas quando ouviu a
batida na porta principal. Como nunca lhe tinha importado abrir sua
própria porta, deixou a um lado a barra com a que corria as cortinas
e, ao chegar à entrada, encontrou um cavalheiro muito alto e esbelto
com uma roupa negra e um chapéu alto que deviam lhe haver
custado, se não a fortuna de um rei, ao menos a de um príncipe.
Reconheceu-o imediatamente.
E, aparentemente, Anaís não tinha aprendido a lição sobre
homens arrumados e elegantes.
— IL bell'uomo. — Murmurou entre dentes, nada
surpreendida.
— Obrigado. — Respondeu o cavalheiro, e tirou o chapéu. —
Sou Geoffrey Archard. A senhorita De Rohan está em casa?
Entregou um grosso cartão de visita de cor marfim e Maria o
segurou. Mas se deu conta de que nele não punha Geoffrey Archard.
— Sì. — Disse ela, ligeiramente impressionada. — Entre,
milorde.

*****

Anaís se encontrava na sala de recepção familiar, classificando


o monte de cartas que se acumulou em sua ausência, quando sentiu
uma presença na casa. Uma presença masculina pensou, mas não
era Nate. Tampouco se tratava de Armand. Inspirou profundamente
para acalmar os nervos.
Não teve que esperar muito até ouvir Maria subir a velha
escada de carvalho e outras pisadas, mais fortes, detrás dela. Deixou
a um lado a fatura do açougueiro e jogou para trás sua cadeira,
alisando-se nervosa com as mãos a parte frontal de seu vestido de
fustão azul escuro. Era um vestido velho e cômodo, não era dos
melhores que tinha, e a fez sentir-se mal vestida porque sabia, com a
mesma certeza com a qual conhecia a si mesma, que era Geoff.
Esperava que voltasse, porque era um homem que sempre
fazia o correto. Mas uma vez que tivesse retornado a Londres e à
normalidade, o que pensaria ele que era o correto?
Certamente, não teria imaginado que aparecesse tão logo. Não
no mesmo dia em que se despediram na estação de Bishopsgate,
apanhando carruagens alugadas por separado enquanto ela
enxugava as lágrimas.
E aí estava, enchendo a porta da sala com a largura de seus
ombros, com o chapéu alto na mão e seus olhos azuis sombrios.
— Tem uma visita, bela. — Disse Maria, cujos olhos escuros
lhe lançaram um olhar de advertência. — Eu vou... mas não muito
longe.
Geoff lançou o chapéu a uma cadeira e a tomou em braços.
Beijou-a apaixonadamente, até deixá-la sem respiração.
— Oh, Anaís, passou muito tempo. — Murmurou, lhe roçando
a orelha com os lábios. — Suponho que não poderá fazer nada a
respeito por causa do "não muito longe", certo?
Anaís se separou para olhá-lo, mas só viu sinceridade. E, pela
primeira vez desde que patiram de Bruxelas, começou a sentir certa
segurança.
— Por que? — Sussurrou. — Sentiu minha falta?
Voltou a beijá-la com rapidez e intensidade.
— Foram as cinco horas mais longas de minha vida. —
Afirmou. — Vamos, me peça que sente. Me dê um brandy... foi uma
tarde infernal.
Ela assinalou o sofá junto às janelas, que já estavam
obscurecendo, e se aproximou do aparador.
— Onde estiveste? — Perguntou, com um tom de voz ligeiro.
— Onde disse que estaria. — Respondeu, e passou as duas
mãos pelo cabelo. — Fazendo o que disse que faria. É que foi...
estranho, isso é tudo.
Pensando melhor, Anaís também se serviu de um brandy.
Suspeitava que ia necessitar.
Sentou-se junto a ele no sofá e lhe pôs o copo na mão. Mas
Geoff só tomou um gole e logo o afastou com impaciência, deixando
escapar o ar com força.
— Anaís, vem aqui. — Disse, abrindo os braços.
Ela o fez e afundou o rosto em seu pescoço. Inalou seu aroma
familiar e reconfortante e se sentiu como se, por fim, tivesse
retornado a casa.
— Anaís. — Murmurou Geoff, apertando-a contra ele. —
Amo-te desesperadamente. Vim para te avisar de que de verdade
penso em assediar seu coração. Penso fazer você esquecer de
Raphaele e de qualquer outra pessoa. Sempre consegui o que me
tenho proposto..., mas nunca nada me importou mais que isto.
Anaís levantou a cabeça e pousou os lábios em sua bochecha.
— Pode te economizar o assédio. — Afirmou. — Amo-te com
loucura. E isso nunca mudará.
Geoff pousou sobre ela seu olhar cor azul claro e, depois de
lhe levantar o queixo com um dedo, beijou-a brandamente nos
lábios.
— Espero que não. — Disse em voz baixa. — É tudo para mim,
Anaís. Mas tenho que te contar algo. Algo importante.
Ela sentiu que ficava sem ar.
— Sobre o que? — Murmurou enquanto não deixava de olhá-
lo. — Tem algo que ver com a dama a que estava cortejando? Oh,
Geoff, por favor, não me diga que ela...
— Está perfeitamente bem. — Ficou sem palavras durante um
momento e sacudiu a cabeça com pesar. — Oh, ainda necessita um
marido, pelo bem de seus filhos, acredito. Mas agora me dou conta
de que eu não posso lhe solucionar esse problema, apesar do muito
que ela me importa. Pensei que estava disposto a tentá-lo, mas não é
assim. E ela o entende. De fato, sentiu-se bastante aliviada.
Anaís fechou os olhos, aliviada também.
— Então, o que queria me dizer?
— Não tem nada que ver com isso. — Disse, e parecia dizê-lo
com sinceridade.
Mas a reserva de Geoff retornou, apertou a mandíbula quase
imperceptivelmente e ela recordou o homem que tinha conhecido
aquele dia na biblioteca da Sociedade. Era um homem meditabundo
e teimoso, sim... mas também era um bom homem.
E um cavalheiro até a medula.
E Anaís tinha a sensação de que, fosse o que fosse o que o
preocupava, tinha que ver com isso. E tinha estado envenenando-o
durante um tempo.
Geoff pigarreou com certa brutalidade.
— Acredito que chegou a te dar conta, enquanto estávamos
em Bruxelas, do preocupado que estava por Giselle Moreau. —
Disse. — De primeiro momento, sua segurança e seu futuro foram
primitivos para mim.
— Sentia uma grande simpatia por ela. — Admitiu Anaís. —
A um profundo nível pessoal que não consigo compreender. Mas
não sei o que é levar o tipo de carga que as pessoas como Giselle e
você levam... e estou agradecida por isso.
Depois de um momento, ele estendeu um braço e cobriu a
mão de Anaís com a sua, apertando-a com os dedos.
— Minha infância foi muito parecida com a de Giselle. —
Disse. — Ou ao que poderia ter sido a sua. Até que tive doze anos,
não contei com ninguém. Não houve ninguém que me ajudasse.
— Sim. — Disse Anaís devagar. — E, a verdade, perguntei-me
por que.
Geoff curvou a boca em um sorriso um tanto amarga.
— Minha mãe se culpa por isso. — Afirmou. — Mas não foi
culpa dela. Ela... era muito jovem. Só tinha dezessete anos quando
me concebeu, e não podia saber o que esperar.
— Isso é o que não entendo. — Murmurou Anaís, olhando
Geoff nos olhos. — Não era lorde Bessett seu primo? O dom se leva
no sangue. Todos que o tem sabem.
— Minha mãe era a bisneta do quarto conde de Bessett, sim.
Entretanto, o matrimônio com seu primo foi só de conveniência.
Quer dizer, que foi conveniente para todo mundo menos para ela. E
para mim. E...
Anaís o olhou de modo alentador.
— E...?
Geoff tragou saliva com dificuldade.
— E para meu verdadeiro pai. — Terminou de dizer.
Ela demorou um momento em assimilá-lo.
— Ah. — Disse finalmente. — Agora começo a compreender.
O sorriso do Geoff passou de amargo a triste.
— Estou seguro de que não tenho que te pedir que seja
discreta. As conclusões estão claras.
— Geoff, não me importa nada disso. — Respondeu ela
rapidamente, e pousou uma mão em seu rosto. — Sinto-o por sua
mãe... ter tido um menino sendo tão jovem e fora do matrimônio
deve ter sido um horror atroz. Mas não me importa absolutamente
nada quem é seu pai. Tem que me acreditar. Deve fazê-lo.
Ele pôs uma mão sobre a sua, rodeando a bochecha.
— Nunca o duvidei. — Respondeu em voz baixa. — Não é
como essas tolas mulheres as quais lhes importa tanto o sangue e o
decoro. E eu nunca me envergonhei de quem sou, nem do que sou.
— Pensaria mal de ti se o fizesse. — Disse ela.
Ele virou o rosto na mão de Anaís e lhe deu um longo beijo na
palma. Depois entrecerrou os dedos com os seus e colocou as mãos
de ambos em seu regaço, para estuda-las melhor.
— Tampouco nunca me envergonhei de minhas origens. —
Disse com calma. — Fui concebido com amor por duas pessoas que
me queriam muito. E fui concebido dentro do matrimônio... ou
talvez um ou dois dias antes. E aí está a complicação.
Anaís abriu muito os olhos.
— Quer... me falar disso?
Ele encolheu um ombro e suspirou.
— Umas semanas antes de sua apresentação em sociedade,
minha mãe fugiu com um escocês sem dinheiro e se casaram em
Gretna Green. Mas meu avô materno era um homem cruel.
Conseguiu alcançá-los pouco depois e convenceu a minha mãe, com
uns documentos falsos, de que meu pai se casou com ela por seu
dinheiro, que era uma quantidade considerável. Meu avô também
lhe disse que tinha pago a meu pai para que anulasse o matrimônio.
Inclusive chegou a lhe mostrar os papéis.
— Oh! — Anaís levou uma mão à boca. — Isso é monstruoso!
— Era um político poderoso. — Disse Geoff. — Tinha acertado
um matrimônio político para acalmar sua própria sede de poder.
Pensou que poderia ocultar a fuga e intimidá-la, mas não contou
comigo. Uma coisa é enganar um jovem para que tome por esposa
uma mulher que não é virgem, e outra muito distinta é endossar
uma mulher que já está grávida. Inclusive lorde Jessup, meu avô,
não se atreveu a tentá-lo. Portanto, minha mãe era uma pessoa
desprezível a seus olhos.
— Mas ele... não lhe permitiu voltar com seu pai?
Geoff negou com a cabeça.
— Nunca. — Respondeu. — Era muito rancoroso e orgulhoso.
Além disso, fez com que dessem uma surra a meu pai até quase
matá-lo. Minha mãe acreditou que a tinha abandonado. Assim
Jessup a despachou rapidamente ao primo, filho do irmão de sua
esposa, ao pai do Alvin, porque Alvin necessitava de uma mãe e
Bessett estava tão absorto nos livros de história que nem sequer se
incomodava em comportar-se como um pai.
— Isso é muito egoísta.
Geoff hesitou uns momentos.
— Acredito que só estava distraído. — Disse pensativamente.
— Bessett era um homem decente e, a seu modo, preocupava-se com
o Alvin e comigo... e também com minha mãe. Se não tivesse sido
assim, não se teria casado com ela sabendo que estava grávida de
mim. Me consolo com esse pensamento nas noites muito longas.
Anaís estava processando tudo em sua mente. O horror. A
tremenda tristeza.
— Assim Bessett te criou como a seu filho, embora somente foi
seu segundo primo. — Disse. — E o dom... Sua mãe não sabia nada
dele?
— Logo que não sabia nada de meu pai. — Respondeu Geoff.
— Sabia que era escocês e que tinha um temperamento artístico.
Sabia que o amava desesperadamente. Mas tinha vivido sempre em
Yorkshire. Logo que vivia em Londres a dois meses quando
fugiram. E, assim que se celebrou seu matrimônio com Bessett, se é
que se pode chamar assim, partiram ao estrangeiro por vários anos.
Até que me levou a Londres quando viúva para ver sua tia, não
soube que meu pai seguia ali.
— Então, encontrou-o?
Geoff sorriu com tristeza.
— Oh, sim. Encontrou-o... por acaso. E santo Deus, como
saltaram as faíscas. Quando ele se deu conta de que eu era seu filho,
quase lançou chamas pelo nariz.
— Céus! — Anaís abriu muito os olhos. — O que fez?
— Agarrou-me pelo cangote como se fora um gatinho
perdido, lançou-me dentro de sua carruagem e me arrastou a
Escócia antes que a nenhum de nós sequer tivesse tempo de
espirrar. E lhe dou graças a Deus por isso. Imediatamente soube que
o que lady Treyhern havia dito era certo. Que eu não tinha nenhuma
enfermidade mental.
— É incrível! — Disse Anaís. — Sua pobre mãe... O que fez?
— Veio conosco. Meu pai não lhe deixou muitas opções. Ele
ainda tinha os papéis do matrimônio. E eu... bom, passei os
seguintes anos com minha avó, que tinha fortes laços com a
Fraternitas na Escócia. E foram bons anos. Fizeram de mim o que
agora sou. E sei que Charlotte entende, até certo ponto, o que Giselle
é. Mas não é suficiente, Anaís. A menina necessita um mentor e, em
Essex, terá um.
— E o que passou com sua mãe? — Murmurou ela. — E seu
pai? Como se arrumaram?
— Depois de um tempo, voltaram a se casar discretamente.
Não porque o necessitassem, a não ser para guardar as aparências.
Foi tudo para manter a ilusão de minhas origens e para evitar que a
minha mãe fosse acusada de bigamia.
— Oh, Deus. — Disse Anaís sem fôlego. — Não me tinha
ocorrido isso.
— A mim sim. — Respondeu Geoff gravemente. — E nunca
comentarei nada sobre ela. Não permitirei que seja objeto de fofocas.
Sob nenhuma circunstância.
— Então, seu padrasto não é em realidade seu padrasto. —
Anaís sorriu de repente. — O que significa que, quando assinou
meu retrato no parque, fez com seu verdadeiro nome.
— Suponho que sim. — Disse com um leve sorriso. — E o
nome que uso agora... bom, também é meu verdadeiro nome. — Sua
expressão se escureceu um pouco. — Minha mãe queria trocá-lo
quando voltou a casar, mas meu pai... disse que não importava. Que
ele sabia quem era eu, e eu também sabia quem era, e que o resto do
mundo não lhe importava nada.
— Começo a compreender de onde tiraste sua veia
independente. — Disse Anaís. — E acredito que o fez corretamente.
Ele encolheu os ombros.
— Quão único Alvin e eu compartilhávamos era o nome. Não
me importa nada o título de Bessett. Desejaria poder devolver-lhe,
mas agora não posso renunciar a ele.
— Mas descende da linha dos Archard. — Assinalou Anaís. —
Embora o título nunca pudesse ter passado através de sua mãe... ou
sim?
Ele ficou pensativo, com a vista perdida em um lugar da sala
que já estava escura.
— Em realidade, minha mãe diz que o título mais velho e o
atual patrimônio teria sido suficiente. Tem algo que ver com que
uma vez tenha sido ostentado como uma antiga baronia por decreto.
Mas não, não estava estipulado que a linha feminina adotasse o
título de conde.
— Então... tem outro primo em alguma parte? Alguém que...
que...?
— Alguém a quem lhe arrebatei o título de conde? — Como
fazia com frequência, Geoff levantou uma mão e apanhou um dos
cachos de Anaís — Não, Alvin era o último, tanto acima como
abaixo da árvore genealógica. Os condes de Bessett nunca tiveram
muitos filhos... Liam muito, suponho. Assim imagino que minha
mãe em realidade agora poderia ser baronesa, e eu seria seu
herdeiro. Nem sei, nem me importa. Seguirei sendo o conde de
Bessett até que morra, antes de permitir que minha mãe sofra a mais
mínima humilhação.
— Céus, tudo é muito confuso. — Disse Anaís, recostando-se
no sofá. — Mas isto... nada disto influi no que sinto por ti, Geoff.
Não tinha que me contar nada.
— Sentia que devia fazê-lo. — Respondeu com calma. — Mas
talvez não pela razão que imagina.
Pela terceira vez naquele dia, Anaís sentiu um tombo o
coração.
— Então, por que razão?
Ele ficou de lado no pequeno sofá, tarefa nada fácil por causa
de suas longas pernas, e tomou as duas mãos.
— Lhe estou contando isso, Anaís, porque acredito que uma
mulher sempre deveria perseguir seus sonhos. Minha mãe não o fez.
Era jovem, tímida e seu pai a tinha submetido. Mas o pior de tudo
era que não tinha fé em si mesma. Não acreditava em sua
capacidade de ter escolhido sabiamente, de saber o que queria e ir
atrás disso. E todos pagamos um preço por isso.
— E isso como me afeta?
— Nunca seja covarde, Anaís. Acredito que provavelmente é a
última pessoa a quem lhe teria que dizer isto, mas devo dizê-lo.
Persegue o que quer. Proponho-me a ser o que queira que eu seja.
Mas ao final, se não o for, se pensar que Raphaele ou alguém como
ele é realmente o que quer, então, me afaste de seu lado. Mas só
porque você deseja. Não porque sua nonna quis isto ou o outro, ou
porque sua família tenha outras expectativas. As expectativas
familiares fizeram que minha mãe desejasse uma morte prematura,
e se não fosse por mim, acredito que a teria encontrado.
Suas palavras eram sinceras e humildes, Anaís deixou cair a
cabeça.
— Sei o que quero Geoff, e não é isso. — Disse em voz baixa.
— Além disso, de todas formas era uma ideia tola. Algo que nonna
Sofia tinha na cabeça, sem dúvida, e que saía nas cartas porquê...
bom, porque ela assim o queria.
— Nas cartas? — Perguntou ele, evidentemente surpreso.
Anaís levantou o queixo e se deu conta de que, em realidade,
nunca o tinha contado tudo.
— Oh, não importa! — Disse, um pouco envergonhada. —
Agora já nada disso importa Geoff. Sei o que quero... ao menos uma
parte, e é você.
Manteve o olhar durante um bom momento, observando-a
intensamente com seus olhos azuis como se quisesse chegar a seu
coração para assegurar-se por completo. Depois relaxou, soltou-lhe
a mão esquerda e passou do sofá ao chão, caindo sobre um joelho.
— Então, tomo a palavra. — Disse em voz baixa e acalmada.
— Anaís de Rohan, quererá me fazer o homem mais feliz do mundo
e ser minha esposa e minha condessa?
Anaís fechou os olhos e lançou aos quatro ventos pelo menos a
metade do absurdo sonho de sua bisavó.
— Sim. — Sussurrou. — Sim, Geoffrey. Amo-te. Casarei
contigo e me considerarei afortunada por isso.
Lhe beijou a mão e se levantou.
— Graças a Deus que já está acordado. — Disse, e voltou a
sentar a seu lado. — Tinha um pouco de medo de que fosse
correndo à Toscana para fazer uma última busca do homem
adequado.
— Decidi que você é o homem adequado. — Afirmou, levando
os dedos ao coração.
— Oh, Anaís, sempre o soube. — Afirmou Geoff com
segurança. — Mas não estava seguro de que você soubesse. Quando
retornará seu pai? Tenho que falar com ele.
— Dentro de umas semanas, como muito. — Conseguiu dizer
com a garganta encolhida. — Mas ele somente quer que eu seja feliz,
Geoff. Não sabe nada das estranhas ideias de nonna. Não se
preocupe.
— Como não vou me preocupar? — Seu intenso olhar, frio e
quente de uma vez, perfurou-a. — Agora você é tudo para mim,
Anaís.
Ela se deu conta de que estava contendo as lágrimas.
— Oh! — Exclamou brandamente. — Oh, Geoff, quero-te
muitíssimo. E essa história sobre sua mãe e seu pai é tão trágica...
me prometa que nunca, nunca, permitiremos que algo assim nos
ocorra.
— Nunca. Jamais. — Com cada palavra, beijou-lhe uma
lágrima para enxugar-lhe. — Mas tenho outra história, uma história
melhor, com um final feliz.
— Oh, bem. — Disse ela. — Vamos ouvi-la.
— Era uma vez. — Sussurrou, lhe roçando a orelha com os
lábios. — Um conde que não era realmente um conde, que se
apaixonou por uma mágica e estranha garota que tinha uma
maravilhosa juba e um nome ainda mais estranho. E se casaram,
romperam a maldição de fertilidade dos Bessett, tiveram uma casa
cheia de meninos e viveram felizes para sempre. Em Yorkshire. Ou
em Londres. Você gosta mais desse final?
— A última parte não importa qual. — Disse, apoiando a
cabeça no ombro do Geoff. — Mas sim, essa história eu gosto muito,
muito mais.
Epílogo

"O paraíso inclui o yin e o yang, o frio e o calor e as limitações das

estações."

Sun Tzu, A arte da Guerra

Anaís Sofia Castelli de Rohan se casou em um dia da


primavera com um elegante vestido vermelho e branco nos jardins
de Wellclose Square, sob um sol brilhante e uma nevasca de flores
de macieira que salpicavam o colete de Geoff, também vermelho, e
ficavam na asa de seu chapéu como se fossem flocos de neve. Talvez
não fosse o lugar mais na moda para celebrar umas bodas em
Londres, mas depois de haver negado a nonna Sofia seu sonho,
Anaís decidiu que era ao menos que podia fazer para honrar a sua
querida bisavó.
O reverendo Reid Sutherland oficiou a cerimônia, com um
brilho especial nos olhos, e os declararam marido e mulher frente a
uma vintena de parentes próximos e a metade da Sociedade do
Saint James. Depois se retiraram aos enormes salões para
perambular sobre os novos tapetes orientais de Maria Vittorio
enquanto comiam iguarias e bebiam vinho nobile dava Montepulciano,
brindando à saúde, a riqueza e a fertilidade do casal, até que lorde
Lazonby começou a olhar lascivamente uma das donzelas.
O senhor Sutherland chamou imediatamente a sua
carruagem... mas não antes que Lazonby se lançasse a contar uma
louca história sobre a ironia de ter conhecido o noivo em um bordel
marroquino. Lady Madeleine abafou um grito e tapou os ouvidos de
sua nova filha. O prior segurou Lazonby com certa violência pela
manga do casaco e o levou fora, até os degraus da entrada, enquanto
levantava seu chapéu a modo de despedida.
A partir desse momento, os convidados começaram a partir
entre um frenesi de xales e carruagens. Incluindo Nate, o conde e
sua nova condessa tinham vários irmãos e irmãs que necessitaram
três carruagens para que os levassem de volta a Westminster.
Outros dez veículos se encarregaram de levar o resto dos
convidados enquanto o feliz casal beijava bochechas e saudava com
a mão, até que somente ficaram os pais de Geoff.
Na soleira, lady Madeleine voltou a abraçar Anaís pela sexta
vez em várias horas.
— Oh, minha queridíssima menina. — Disse com lágrimas nos
olhos. — Parece que era ontem quando levei nos braços Geoffrey
pela primeira vez, assustada até a medula, e temerosa de que nunca
chegasse a casar-se. Mas o tem feito, e estou muito contente, Anaís.
Muito contente de que tenha te encontrado.
— Oh, lady Madeleine, é muito amável! — Anaís se separou
dela, mas seguiu segurando as mãos de sua sogra. — Mas por que
estava assustada? Era um bebê delicado?
Lady Madeleine encolheu os ombros e ruborizou.
— Oh, não, mas eu era muito jovem. E me sentia muito
sozinha e incapaz de enfrentar a todo aquilo. Desmaiei de
esgotamento, acredito, e quando despertei, lembro que as parteiras
diziam em sussurros: "Che carino bambino…" ou talvez era o
reverso? E comecei a chorar, estava tão assustada...
Ao ouvi-la, Geoff riu e beijou a sua mãe na bochecha.
— Que boba é, mamãe! Acredito que somente estavam
elogiando seu formoso bebê.
Ela o fulminou com o olhar.
— Não te atreva a rir de mim, jovenzinho! — Exclamou,
tremula. — Logo que estava consciente e não falava nenhuma
palavra desse idioma! — De repente, girou para seu marido, com os
olhos cheios de lágrimas. — E, por alguma razão, meti na cabeça
que carino significava "não conduz". Que estavam dizendo "não
conduz bebê". Agora parece uma tolice, mas pensei que ele não
estava bem. Que tinha havido algum terrível engano. Ou que talvez
eu tenha imaginado isso tudo.
— Oh, mamãe! — Disse Geoff com suavidade. — Estive muito
tempo sob uma horrível pressão.
— Sim, veja Maddie. — Disse seu marido, que abriu os braços
e a apertou contra seu peito. — Não poderia havê-lo sabido, meu
amor.
Mas foi como se toda a tensão do dia se estivesse com lady
Madeleine.
— Oh, Merrick, pensei que tinha feito algo mal! — Gritou,
soluçando contra seu lenço de pescoço. — Quando o banharam e me
deram ele, tinha o coração quebrado. Passei dois dias lhe contando
os dedos dos pés e das mãos, e não me atrevia a dormir por medo
de que ele morresse! E agora... note! Está casado!
— E tem trinta anos. — Disse o senhor MacLachlan com certo
sarcasmo. — Já cumpriste com seu dever, meu amor. E agora
corresponde a Anaís preocupar-se com todos seus dedos.
Ninguém se deu conta de que Anaís havia ficado pálida,
porque Geoff tinha voltado para o salão para servir a sua mãe um
gole de brandy. Quando retornou, lady Madeleine o bebeu com
gratidão, desculpou-se uma e outra vez por suas lágrimas e voltou a
beijá-los aos dois antes de partir.
O senhor MacLachlan a acompanhou até os degraus da
entrada como se fosse uma frágil flor e a fez entrar com cuidado em
uma carruagem tão elegante que a metade dos residentes da praça
apareceram às janelas para olhá-la embevecidos. O senhor
MacLachlan se despediu com a mão, subiu ao veículo e ordenou ao
cocheiro que ficasse em marcha.
Anaís ficou no degrau superior, dando a mão a Geoff,
enquanto seus sogros rodeavam a praça.
— Geoff. — Disse-lhe em voz baixa quando a carruagem
desapareceu. — Onde nasceu?
— Em Roma. — Respondeu ele. Seguiu-a ao interior e fechou a
porta. — Ou muito perto. Em um lugar chamado Lacio. Conhece-o?
Anaís o olhou com o cenho franzido.
— Sim, mas Lacio é uma região, Geoff. É bastante grande.
— E preciosa, conforme me disseram, embora eu não o
recordo. — Afirmou, e retornou ao salão. — Acredito que foi ao ano
seguinte quando fomos à Campania. E, dali para a Grécia. Como já
sabe, Bessett era um grande investigador das civilizações antigas.
Quando eu nasci, ele estava no Lacio, escavando umas ruínas perto
de um lago ao norte de Roma. Não recordo como se chamavam.
Anaís tomou o copo que lhe oferecia.
— As ruínas etruscas, por acaso?
Ele encolheu os ombros.
— É bastante provável. — Respondeu. — Mas, em realidade,
nunca compartilhei sua paixão pelas antigas civilizações.
Indubitavelmente, Bessett era um homem brilhante, mas, para falar
a verdade, não me surpreendeu me inteirar de que não era meu pai.
— Geoff. — Disse ela com entusiasmo. — Em que localidade?
Ele levantou o olhar do copo que estava enchendo junto ao
aparador.
— Em que localidade, o que?
— Em que localidade nasceu?
Ele deixou a garrafa de vinho e franziu o cenho.
— Me deixe pensar... Tinha um nome encantador... "Piggly-
Wiggly" ou um pouco parecido, dizia minha mãe.
— Pitigliano? — Disse ela entrecortadamente, e se sentou no
sofá.
O arrumado rosto de Geoff se iluminou.
— Sim, isso. — Sentou-se junto a ela no sofá, de lado. —
Pitigliano. Um lugar pequeno, mas algumas parteiras tinham ido ali
vindas de Roma... monjas, acredito, para ensinar a um par de
mulheres. Minha mãe dizia que não estava longe do lago de Bessett,
assim que ele alugou ali uma casa para o parto.
— Dio mio! — Sussurrou Anaís, e deixou o copo com
nervosismo na mesa do chá.
Geoff se inclinou para ela e lhe beijou a ponta do nariz.
— O que? Acaso importa? Já te disse que passei minha
infância no estrangeiro.
Ela se virou para olhá-lo com os olhos muito abertos.
— Mas Geoff, é incrível!
— Incrível? — Girou a cabeça para olhá-la melhor. — Em que
sentido?
— Bom, não sei se lorde Bessett escavou toda a região do
Lacio. — Respondeu. — Mas sim sei que Pitigliano está na Toscana.
Ele a olhou com curiosidade.
— Está segura?
— Bom... sim. — Anaís levou uma mão ao coração. — Está
perto da fronteira, mas, por isso sei, sempre foi uma parte do
ducado da Toscana.
— Bom, pois aí o tem. — Geoff lhe dedicou esse sorriso irônico
tão familiar e levantou seu copo. — Outra fofoca interessante sobre
mim que nem sequer eu conhecia... embora menos impactante que
minha paternidade.
Mas Anaís se recostou no sofá, muda. Ficou olhando seu
colete vermelho, onde um ponto branco de flor de macieira ficou
tenazmente colado à seda.
Ele afastou o copo e a abraçou.
— Anaís, o que ocorre?
— O ré dava dischi. — Murmurou. — Vestido de escarlate.
Geoff, nunca acreditará isto...
Ele deslizou uma mão cálida de dedos longos, uma formosa
mão de artista, por sua bochecha, fazendo que uma onda de calor a
percorresse até a boca do estômago.
— Não, não acreditarei, meu amor. — Sussurrou, olhando-a
fixamente nos olhos. — Sobretudo se não terminar a frase. A
verdade é que te puseste um pouco pálida. Hei dito alguma
inconveniência?
Ela levantou a vista de seu colete.
— Não, não, é que você é o homem adequado. — Disse. —
Durante todo o tempo... era você.
Ao ouvi-la, Geoff jogou para trás a cabeça e riu, com seus olhos
azuis iluminados pela alegria.
— Oh, Anaís, eu sempre o soube. — Disse-lhe pela segunda
vez. — Mas não estava seguro de que você soubesse.
Então, ela o beijou, seu atraente príncipe toscano.
Seu atraente príncipe toscano, de cabelo de cor bronze e olhos
azuis...

Fim

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