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Prólogo
"Trata a seus soldados como a seus meninos e lhe seguirão até os
Londres, 1837
espionagem."
2
O Hermetismo pode ser definido, amplamente, como os escritos que utilizam por base a figura de
Hermes Trimegistus. Tipo uma filosofia ocultista.
— Em que sentido? — Lorde Lazonby, um homem desajeitado
e com costas muito largas, recostou-se torpemente em sua cadeira,
com as pernas separadas e fazia girar uma e outra vez seu copo
sobre a mesa de carvalho. — Os guardiões de Paris não podem
cumprir com seu dever?
DuPont se zangou.
— Devem recordar que nossa nação está muito alterada. — Espetou-
lhes. — Nosso rei agora vive aqui, no exílio e inclusive, nestes
tempos modernos não podemos evitar que a plebe imponha a
nobreza, a guilhotina outra vez. Não, lorde Lazonby. Nem sempre
podemos cumprir com nosso dever. De fato, frequentemente
tememos por nossas cabeças.
Ruthveyn plantou suas escuras mãos de dedos largos na mesa.
— Já é suficiente. — Ordenou. — Sejamos civilizados. DuPont,
nos conte o que ocorreu. E faça-o rapidamente. Pode ser que não
tenhamos muito tempo.
— Sim, rapaz, você vai se casar em uns dias — Disse Lazonby
secamente, indiferente à discussão. — E, depois, irá morar em
Calcuta. Parece-me que Bessett e eu poderemos adivinhar quem
estará a cargo da tarefa.
— Precisamente. — A voz de Ruthveyn era tensa. — E agora,
como se chama a menina? E você está seguro do dom?
— A menina se chama Giselle Moreau. Quanto ao outro,
estamos suficientemente seguros para temer por ela. O dom é muito
forte na linhagem do pai. Sua mãe, Charlotte, é inglesa.
— Inglesa? — Repetiu Ruthveyn com aspereza. — De que
família procede?
— De aristocratas empobrecidos de perto de Colchester. —
Disse o francês. — Conseguiram reunir suficiente dinheiro para
enviá-la ao colégio em Paris e ela agradeceu apaixonando-se por um
humilde empregado da casa real, um sobrinho bastardo do visconde
de Lezennes. Desde então, não tem tido contato com sua família.
— Repudiaram-na?
— Sim, é o que parece.
— Lezennes? — Lorde Bessett intercambiou um olhar de
preocupação com o senhor Sutherland. — Eu ouvi esse sobrenome.
Está acostumado a estar perto das intrigas palacianas, não é?
DuPont assentiu.
— Sempre perto, embora nunca o suficiente para que o
culpem. — Disse com amargura. — Nosso Lezennes é um demônio
muito preparado. Sobreviveu à queda de Luis Felipe e agora ganhou
a simpatia dos bonapartistas... Embora o rumor é de que é só um
legitimista que deseja restaurar o Ancien Régime.
— Você, o que pensa? — Perguntou Bessett.
O francês encolheu os ombros.
— Acredito que é uma barata e as baratas sempre sobrevivem.
Suas ideias políticas não me interessam. Mas acolheu sob seu
amparo essa inglesa para usar a sua menina, e isso sim, me importa.
E agora as levou a Bruxelas, onde trabalha como emissário para a
corte do rei Leopoldo.
Involuntariamente Bessett fechou os punhos com força.
— De uma incerteza política a outra. — Murmurou. — Eu não
gosto de como soa. Isto é precisamente o que queríamos evitar
DuPont, com a unificação da Fraternitas.
— Entendo-o, mas estamos falando da França. — Respondeu
DuPont com calma. — Ninguém confia em ninguém. A Fraternitas
em Paris, tal e como ainda existimos, é insegura. Lezennes não é
conhecido exatamente por seu caráter benévolo. Se levou essa
menina, é com um propósito, o seu próprio, e mau. Por isso me
enviaram aqui. Vocês devem recuperar a menina.
— É obvio que queremos ajudar. — Disse Sutherland. — Mas
por que nós?
— Como já disse, a mãe é inglesa — respondeu DuPont. —
Sua rainha quer que todos seus súditos que se encontram no
estrangeiro sejam protegidos, não é assim? Tem alguns direitos
neste assunto, acredito.
— Eu não sei. — Disse Ruthveyn.
O francês arqueou uma sobrancelha com arrogância.
— Você não é um desconhecido para nós, lorde Ruthveyn.
Como tampouco é o seu trabalho no Industão. A rainha o tem em
consideração. Você conta com seu favor. O rei dos belgas é seu
querido sobrinho. Você tem influência. De verdade castigaria a
Confederação só porque nos fechamos em nós mesmos, quando o
único pedido é que use sua influência para evitar que o nosso dom
seja educado por um diabo? Que a utilizem para propósitos
perversos?
— É obvio que não. — Respondeu Ruthveyn com voz tensa. —
Nenhum de nós deseja isso.
— E o que foi feito do marido dessa mulher? — Perguntou
Bessett.
DuPont apertou seus lábios disformes durante um instante.
— Moreau está morto. — Respondeu. — Mataram-no duas
semanas antes que o rei abdicasse. Uma noite o chamaram a seu
escritório perto do palácio. Não estamos seguros de quem o fez, mas
de algum jeito, as cortinas se incendiaram. Uma tragédia terrível. E
ninguém acredita que foi um acidente.
Lorde Ruthveyn endureceu sua expressão.
— O morto... Era um guardião?
— Oui. — Respondeu em um sussurro. — Não tinha muito
dom, embora possuísse um grande coração e muita valentia.
Durante todos estes meses sentimos muito sua falta em nosso grupo.
— Tinha contato com seu tio?
O sorriso amargo de DuPont se intensificou.
— Apenas se conheciam. — Disse — Até que começaram a
correr pela corte os rumores sobre a habilidade da pequena Giselle.
— Santo Deus, descobriram-na? — Perguntou Bessett.
O francês suspirou sonoramente.
— Como dizem vocês? — Murmurou. — As crianças e os
loucos dizem as verdades? A pequena Giselle previu a abdicação de
Luis Felipe. Disse de maneira muito inocente, mas em público...
Diante da metade de seus cortesãos.
— Oh, céus. — O senhor Sutherland deixou a cabeça cair entre
as mãos. — Como pôde acontecer tal coisa?
— Organizou-se um piquenique para a corte no Grand Parc.
— Relatou o francês. — Todos os habitantes da casa real e sua
família estavam convidados. O rei, é obvio, saiu durante uns
instantes de noblesse oblige3 para saudar as pessoas. Infelizmente,
topou-se com madame Moreau e decidiu pegar no queixo de
Giselle. Olhou-a diretamente nos olhos e não deixou de olhá-la.
Bessett e Ruthveyn grunhiram ao uníssono.
— E ainda piora. — Disse DuPont, disposto a contá-lo tudo. —
Perguntou-lhe por que tinha um olhar tão triste em um dia tão
agradável. Ao ver que não respondia, brincou com ela ao dizer que,
como rei, ordenava que falasse. Assim a pequena Giselle tomou ao
pé da letra e disse, não só a queda da Monarquia em Julho, mas
também profetizou que à sua abdicação, seguiria uma terrível
perda... a morte de sua filha, Luísa Maria.
— Santo Deus, a rainha dos belgas?
— Sim, e se fala que Luis Felipe também teve algo a ver. —
Continuou DuPont. — Desejava que sua filha fosse a rainha de
Leopoldo e em troca, a França aceitaria a independência da Bélgica.
— Acreditava que somente se tratava de um rumor. —
Apontou Ruthveyn.
— Talvez. — O francês abriu ambas as mãos em um gesto
expressivo. — Mas o exército francês se retirou, afastaram à esposa
nobre de Leopoldo e Luísa Maria se acomodou no trono da Bélgica.
Entretanto, agora se diz que a rainha a cada dia está mais débil.
— A predição da menina, está se fazendo realidade. —
Murmurou Bessett.
3
Esta expressão é utilizada quando se pretende dizer que o fato de pertencer a uma família de
prestígio, ou ter uma certa posição social, ou ter um nome honrado, ou famoso, obriga a
proceder de uma forma adequada, à altura do nome que se tem.
— O rumor, é de tuberculose. — Disse DuPont. — É possível
que a rainha não chegue ao fim do ano e a amante do rei já está
exercendo um pouco de influência.
Um terror frio estava se apoderando de Bessett. Aquilo era o
que mais temiam os guardiões da Fraternitas: que os adivinhos da
antiga seita, fossem explorados, pois a maioria eram mulheres e
crianças.
Ao longo da história, os homens perversos tinham arriscado a
controlar o dom em seu próprio benefício. De fato, era a principal
razão da organização existir, embora a Fraternitas Aureae Crucis
tenha tido um começo misterioso e druídico, com o passar dos
séculos foi se transformando em uma tropa quase monástica,
dedicada a proteger aos seus. Mas a modernidade vinha abrandar
seus limites... e sua estrutura. Essa menina, com esse dom, corria
grande perigo.
Parecia que DuPont estava lendo a sua mente.
— Há mil coisas perigosas que poderia fazer Lezennes, mon
frères, para conseguir poder e influência. — Disse com um tom de
voz ainda mais baixo. — Conspirar com os antigos borbones, avivar
as chamas de uma revolução no continente, talvez inclusive romper
a amizade entre a Inglaterra e Leopoldo... Ah, a imaginação não tem
limites! E tudo será muito mais fácil se puder adivinhar o futuro...
ou se uma inocente seja capaz de fazer por ele.
— Você acredita que ele matou seu sobrinho?
O terror frio como gelo tinha endurecido a boca do estômago
de Bessett, até converter-se em uma fúria glacial.
— Sei que o fez. — Respondeu o francês com seriedade. —
Queria apoderar-se de Giselle. Agora ela vive sob seu teto, sob a sua
caridade. Nosso homem em Roterdam enviou seus espiões, é obvio,
mas nenhum está dentro ainda. Lezennes está a conquistar a
confiança da menina, pois, tudo depende disso.
— Estão trabalhando com Van de Velde? — Perguntou
Sutherland. — É um veterano.
— De total confiança. — Mostrou-se de acordo o francês. — E,
de acordo com seus espiões, parece que Lezennes está cortejando a
esposa de seu sobrinho.
— Por Deus, pensa casar-se com a viúva inglesa? — Disse
Ruthveyn. — Mas... e a afinidade e a lei canônica? O que diz sua
Igreja sobre isso?
De novo encolheu os ombros.
— Lezennes não se preocupa com a opinião da Igreja. Além
disso, Moreau era ilegítimo. Que documento não pode queimar-se
ou falsificar-se? Quem sabe a verdade sobre seu nascimento? Talvez
nem sequer sua mulher.
— Cada vez pior. — Disse Sutherland. O prior suspirou e
passeou o olhar pela mesa. — Cavalheiros? O que propõem?
— Raptar à menina e acabar com isto. — Sugeriu lorde
Lazonby, seguindo com o olhar o rebolado dos quadris de uma das
taberneiras. — Trazê-la a Inglaterra... com a permissão da rainha, é
obvio.
— Muito apropriado... mas tremendamente insensato. —
Disse Ruthveyn. — Além disso, a rainha não pode aprovar uma
infração tão evidente da diplomacia. Nem sequer por um dos
adivinhos.
— Isso não importará se não nos pegarem, não é assim, velho
amigo? — Mas Lazonby falou com tom ausente, com o olhar fixo em
algum ponto perto da porta principal. De repente, afastou sua
cadeira. — Me desculpem, cavalheiros, devo deixá-los.
— Santo Deus, homem. — Bessett dirigiu a seu amigo um
olhar sombrio. — Essa menina importa muito mais que o balanço do
traseiro de uma taberneira... por mais atrativo que seja, devo admiti-
lo.
Sentado no extremo da mesa, Lazonby pôs a mão no ombro de
Bessett e se inclinou para ele.
— Em realidade, acredito que me seguiram até aqui. — Disse
discretamente. — E não foi uma meretriz bem-disposta. Contam
com meu representante. Agora, será melhor que eu afaste o cão de
caça de meu rastro.
Sem mais, Lazonby saiu da sala e desapareceu entre o mar de
mesas lotadas.
— Que demônios...?
Bessett olhou a Ruthveyn, que estava ao outro lado da mesa.
— Maldito seja. — Ruthveyn só olhava pela extremidade do
olho. — Não se vire. É esse tipo infernal do jornal.
Inclusive o senhor Sutherland amaldiçoou entre dentes.
— O do Chronicle? — Perguntou Bessett em voz baixa e com
incredulidade. — Como pôde saber de DuPont?
— Não sabe nada, me atreveria a dizer. — Com os olhos
brilhantes pelo aborrecimento, Ruthveyn olhou deliberadamente
para outro lado. — Mas, para meu gosto, tornou-se muito curioso
sobre a Sociedade de Saint James.
— E muito curioso sobre Rance. — Queixou-se Bessett. —
Quanto ao Rance, frequentemente me pergunto se não começou a
tomar gosto por esses joguinhos. O que devemos fazer?
—Desta vez, nada. — Disse Ruthveyn. — Rance se interessou
por um jogo de dados junto à chaminé e se sentou com uma das
empregadas nos joelhos. Coldwater ainda está interrogando o
taberneiro. Não nos viu.
— Confiemos que Rance se encarregue dele e se assegure de
que não nos veja. — Sugeriu Sutherland. — Voltando para problema
que nos ocupa... DuPont, nos diga exatamente o que quer que
façamos.
O francês entreabriu os olhos.
— Enviem um guardião a Bruxelas para que vá procurar à
menina. Lezennes não conhece nenhum de vocês. Tomamos a
liberdade de alugar uma casa, não longe do palácio real..., muito
perto de Lezennes e fizemos correr o rumor de que uma família
inglesa chegará logo para habitá-la. Inclusive escolhemos os
serventes, criados de confiança de nossas próprias casas em
Roterdam e em Paris.
— E depois, o que? — Perguntou Bessett. — Deixando de lado
a sugestão do Lazonby, não podemos arrebatar a menina de sua
mãe. Nem sequer nós, somos tão desalmados.
— Non, non, convençam à mãe. — A voz do francês soou, de
repente, tão suave como a seda. — Ganhem sua amizade.
Recordem-lhes a Inglaterra e a vida feliz que poderia levar aqui.
Sugiram que, se for possível, reconcilie-se com sua família. E, se
todo o resto não funcionar, se Lezennes a tiver nas mãos, as
sequestrem.
— As sequestrar? — Repetiu Sutherland.
DuPont se inclinou sobre a mesa.
— Meu barco privado vai a caminho de Ramsgate, equipado
com uma tripulação de homens fortes e de confiança. Os levará a
Ostende em segredo e esperará sua fuga.
— Isso é uma loucura. — Disse Bessett. — Além disso, se
Lezennes pretende casar-se com a mulher e é tão conspirador como
você diz, não deixará que nenhum de nós crie amizade com ela.
— Não um de vocês. — Respondeu o francês com cansaço. —
Sua esposa, talvez? Alguém que possa...
— Nenhum de nós é casado — interrompeu-o Bessett. — Bem,
Ruthveyn o estará em breve, mas vai partir logo após.
— Então, uma irmã. Uma mãe. — DuPont agitou a mão com
desdenhosa impaciência. — Mon Dieu! Uma mulher que ganhe sua
confiança, isso é único necessitamos.
— É completamente impossível. — Disse Ruthveyn. — A irmã
de Bessett é uma menina. A minha é inglesa, mas tem dois meninos
pequenos. Lazonby é um soldado, não tem a sutileza necessária para
levar a cabo esta missão. Somente recorremos a ele quando temos
que submeter alguém.
— E se contratarmos uma atriz? — Sugeriu Sutherland. — Ou
possivelmente a Maggie Sloane. É uma... bem, uma mulher de
negócios, não é assim?
Bessett e Ruthveyn intercambiaram um olhar.
— Estamos confiando em um padre que sugere contratar uma
pessoa com ambição. — Disse Bessett secamente. — Mas é certo que
às vezes Maggie tem um ponto teatral.
— Sim, cada vez que Quatermaine se deita com ela, sem
dúvida. — Interveio Ruthveyn com sarcasmo.
— Maldição, Adrian, isso é muito frio. — Bessett sorriu
levemente. — Nem sequer Ned Quatermaine merece isso, embora
nos tenha posto um antro de jogos de azar na nossa porta. E não
serviria Maggie. Mas sim, alguém como Maggie... seria tão difícil?
— Ah! — DuPont, que parecia aliviado, colocou uma de suas
enormes mãos em um bolso interior do casaco e tirou um montão de
papéis dobrados. — Aqui está toda a informação que vão precisar,
mon frères4. O endereço da casa. A lista dos criados. Detalhes da
história que nós inventamos. Relatórios completos de Lezennes e
madame Moreau. Inclusive desenhos.
Bessett tomou os papéis e começou a folheá-los. Ruthveyn e
Sutherland olhavam por cima de seu ombro. Estava detalhado
minuciosamente, devia conceder esse mérito aos guardiões de Paris.
— A arte e a arquitetura da Bélgica? — Murmurou, lendo em
voz alta. — Supõe-se que esse é o propósito de seu homem inglês ao
visitar Bruxelas?
O francês encolheu os ombros.
— Acaso não são aficionados a isso muitos ingleses? A política
teria sido algo muito complicada... e inquietante. Um homem de
negócios? Ora, muito convencional para Lezennes. Agora, o que
4
Meus irmãos.
poderia ser mais inofensivo que um aristocrata rico e aborrecido que
vem para dar uma olhada e fazer alguns desenhos, né?
— Parece uma tarefa feita para você, amigo. — Ruthveyn
olhou a Bessett com algo parecido a um sorriso. — Bessett é nosso
arquiteto, DuPont. De fato, viajou por toda a Itália, França e o norte
da África fazendo desenhos... na realidade, construindo-os.
Sutherland estava esfregando o queixo.
— Parece que este encargo vai cair a ti, Geoff. — Murmurou o
prior. — Quando tivermos lido tudo isto, o submeteremos a
votação.
— Você tem que preparar uma cerimônia de iniciação. —
Recordou-lhe Ruthveyn. — Passe-me isso, eu o lerei esta noite.
Com sentimentos encontrados, Bessett jogou para trás sua
cadeira. Embora não conhecia bem Bruxelas, perguntava-se se não
lhe viria bem passar um pouco de tempo fora de Londres.
Ultimamente havia se sentido invadido por uma sensação de
inquietação e com frequência, pela nostalgia de sua antiga vocação.
Por sua antiga vida, em realidade.
Houve uma época, não fazia tanto tempo, antes da morte de
seu irmão colocar tudo a perder, em que tinha sido obrigado a
ganhar a vida. Agora trabalhava muito pouco, vivendo de suas
terras e dos frutos amargos do trabalho dos outros. Apesar de que
conhecia a Fraternitas desde que era um jovem, tinha aprendido seu
propósito e seus princípios, literalmente, nos joelhos de sua avó, não
tinha se entregado por completo a seus nobres objetivos até o trágico
falecimento de Alvin.
Era possível que tenha se convertido em um aristocrata rico e
aborrecido?
Deus santo. Era muito repugnante para pensá-lo.
Mas fosse o que fosse que o agoniava, Sutherland estava lhe
oferecendo uma via de escapamento durante algum tempo. Essa
missão em Bruxelas era, possivelmente, uma forma de fazer o bem
para a Fraternitas, para a Sociedade, enquanto escapava das
correntes de lorde Bessett em quem se converteu durante uma
temporada. Uma oportunidade para voltar a ser, brevemente, o
simples Geoff Archard.
Ruthveyn tinha puxado seu relógio de ouro.
— Sinto muito, cavalheiros, mas devo deixá-los. — Disse. —
Lady Anisha está me esperando para jantar.
— E não devemos fazer esperar a sua irmã. — Bessett pôs as
Palmas das mãos sobre a mesa com firmeza. — Muito bem, DuPont,
já temos suas instruções. Se tivermos alguma pergunta, enviaremos
um homem a Paris com a mesma contrassenha que empregamos
esta noite.
— Peço-lhes que não esbanjem tempo ao fazer isso. —
Recomendou DuPont. — O Jolie Enjoe permanecerá ancorado no
porto de Ramsgate durante uma semana. Animo-os a que o usem
quando o necessitarem.
— Certamente, certamente! — Sutherland sorriu com
benevolência. — Bem, cavalheiros, agora devo partir. Logo
iniciaremos um novo coroinha, monsieur DuPont. Se quer ficar um
par de dias, posso lhe emprestar uma toga.
Entretanto, o francês negou com a cabeça e se levantou para
partir.
— Merci, mas vou imediatamente a St. Katherine para me
reunir com um amigo, e dali ao Havre. — Voltou-se e ofereceu de
novo sua enorme mão a Bessett. — Bon voyage, lorde Bessett. —
Acrescentou. — Et bonne chance.
— Obrigado. — Disse Geoff em voz baixa. Então, seguindo
um impulso, pôs uma mão entre os largos ombros. — Vamos,
DuPont. As ruas deste bairro não são muito seguras. O
acompanharei ao cais.
O francês se limitou a lhe oferecer outro de seus sorrisos
disformes.
— Très bem, mon frère. — Disse. — Não acredita que meu
aspecto seja suficiente para espantar os salteadores?
*****
manobras."
5
Rookery é um término coloquial que se empregava nos séculos XVIII e XIX para
referir-se a um subúrbio habitado por pobres e frequentada por criminais e prostitutas
(N. da T.)
— Isso é uma tolice! — Os olhos do Lazonby brilharam. — O
que te disse Ruthveyn?
Era uma pergunta estranha. Mas ao longo dos últimos meses,
o jornalista do Chronicle, e sua missão de perseguir o conde
Lazonby até a tumba, tornou-se muito irritante para todos eles.
Entretanto, não havia maneira de negar que o volúvel passado de
Rance o fazia vulnerável às fofocas e às suposições.
— Agora que o menciona, ultimamente tenho sentido certa
tensão entre o Ruthveyn e você. — Disse Bessett.
Lazonby ficou calado durante uns segundos.
— Faz algum tempo, ofendi involuntariamente sua irmã. —
Admitiu. — E preferiria não contar mais nada.
Bessett passeou o olhar pela multidão, que aumentava.
— Então, o ardor de lady Anisha por ti se esfriou, não é certo?
Lazonby o olhou com incredulidade.
— Por que sou o último a me inteirar desse suposto ardor da
dama? — Espetou-lhe. — Como disse a seu irmão quando advertiu
sobre o tema, Nish não é meu tipo. Adoro-a, sim. Paqueramos um
pouco, sim. Mas ela... diabos, é quase como uma irmã para mim.
Bessett soprou.
— Pois para mim não é.
— Então, corteja-a. — Replicou Lazonby.
— Pode ser que o faça.
De fato, não era uma má ideia. Tinha estado lhe dando voltas
na cabeça fazia algum tempo.
Lady Anisha Stafford era uma beleza deslumbrante cujos
filhos rebeldes necessitavam desesperadamente de um pai. E se um
homem tinha que limitar-se a deitar com uma só mulher o resto de
sua vida, ninguém poderia ser melhor que Anisha.
Porém, mais importante que a beleza da dama e seu caráter
era o fato de que ele nunca tinha que lhe dar explicações. Ela não o
julgava. Compreendia a débil fachada, cuidadosamente forjada, que
ele mantinha, o débil muro que tinha construído para separar sua
mente consciente da escuridão que havia detrás.
Talvez essa fosse a chave de sua inquietação. O que parecia
estar exorcizado em sua vida. Possivelmente fosse só que desejava
algo... mais.
— Então, o farei. — Murmurou. — Se você de verdade não for
reclamar.
Sem olhá-lo, Lazonby agitou uma mão, como se o convidasse a
fazê-lo.
Incômodo, Bessett pigarreou.
— Não está nada nervoso pelo novo coroinha?
Lorde Lazonby girou a cabeça e a comissura dos lábios lhe
curvou com um estranho sorriso.
— Por que deveria estar?
— Os últimos dois dias parecia... diferente. — Bessett inclinou
ligeiramente a cabeça e observou seu velho amigo. — Distraído.
Lazonby jogou para trás a cabeça e riu brandamente.
— Não pode ler minha mente, Geoff. — Respondeu— Assim
deixa de tentá-lo. Além disso, esta é uma ocasião solene... isso é o
que não para de me dizer nosso prior.
— Parece-me estranho que nunca tenha concordado em
apadrinhar um coroinha. — Murmurou Bessett. — Parece que não
leva a sério essa parte da Fraternidade. Tem medo de que o novo
discípulo esqueça seus votos? Ou de que dê um tropeção?
Lazonby arqueou uma sobrancelha.
— Se o tipo cair de bruços no chão aos pés de Sutherland, não
é meu assunto. — Disse sem alterar a voz. — Depois de tudo, quem
o preparou foi o velho Vittorio e foi Sutherland quem me fez fazer
isto.
— Era seu turno, Rance. — Disse Bessett.
— Sim, e o tenho feito. — Tirou as mãos da balaustrada de
pedra e se endireitou. — E o que Vittorio e eu unimos, que não o
separe nenhum homem. Recorda-o, certo?
Nesse momento soou um gongo e os graves ecos ressonaram
pelos muros. Lazonby lhe piscou um olho com picardia e pôs o
capuz.
— Ah, a hora da bruxa chegou. — Disse. — Que suba o pano
de fundo!
Bessett ainda duvidava.
— Maldição, Rance, o que tem feito? — Perguntou-lhe,
agarrando o braço do amigo. — Você não gosta do moço? Desconfia
dele?
— Já está outra vez tentando ler minha mente.
— Oh, pelo amor de Deus, eu não faço isso.
— Não? — Lazonby deu a volta e começou a descer as
escadas. A borda de sua túnica de lã marrom arrastava sobre os
degraus enquanto Bessett o seguia. — Mas para responder a sua
pergunta, Geoff, sim, em realidade, eu gosto muito do coroinha. —
Seguiu falando por cima do ombro — Embora não estou muito
seguro de que os outros vão gostar dele.
Depois de descer à sala principal, Bessett e Lazonby ocuparam
seus lugares ao fundo, com o resto dos guardiões. A cerimônia
começou imediatamente, com todos eles respondendo algo
mecanicamente à liturgia de Sutherland. Disseram as orações
tradicionais e depois se passou o cálice de vinho, mas Geoff bebeu
sem prestar muita atenção.
A verdade era que, embora acusasse Rance de não tomar a
sério tais assuntos cerimoniosos, ele também passava com
frequência por cima dos pontos mais sutis do rito durante o ritual.
Aos dois preocupava muito mais como ressuscitar e reestruturar
uma organização que, só alguns anos antes, disseminou-se por uma
Europa devastada pela guerra, caindo em um trágico e
potencialmente perigoso, caos.
A cerimônia de iniciação sempre era realizada em latim, a
língua dos últimos manuscritos cerimoniais que ainda existiam da
Fraternidade. Ao longo dos séculos, muitos dos registros escritos da
irmandade tinham sido destruídos, frequentemente para poder
sobreviver, em especial durante a Idade Média, quando o dom
virtualmente tinha desaparecido, bem como com a Inquisição,
quando tinham torturado a muitos profetas.
Embora os profetas não fossem queimados como hereges nem
afogados como bruxas, esse era um destino bastante comum para
aqueles a quem a história tinha interpretado mal gravemente. Entre
tanta crueldade e ignorância tinham surgido os guardiães, para
proteger os profetas mais débeis.
Agora iriam receber outro no rebanho. Seguindo a tradição, o
jovem que agora estava oculto atrás do grande altar devia ser um
familiar de um dos profetas e devia ter nascido sob o signo do fogo e
da guerra. Poderia possuir o dom, em maior ou menor medida. Mas
teria sido doutrinado desde sua juventude por um membro da
Fraternidade, provavelmente um dos defensores, ou por algum
familiar de confiança.
A avó de Geoff era um exemplo desse último. Apesar de ser
proibida de ser membro por ser uma mulher, tinha sido uma agente
leal da Fraternidade na Escócia, onde a seita sempre se manteve com
força. Também tinha tido um poderoso dom, um que Geoff desejava
com todo seu coração poder lhe devolver.
Retornou bruscamente ao presente, quando o senhor
Sutherland terminou a invocação e desceu do púlpito de pedra. Fez-
se um grave silêncio na sala, como sempre ocorria nas estranhas
ocasiões em que chegava um novo membro a Fraternidade e a
iniciação de um guardião era a mais estranha de todas.
Sutherland se dirigiu ao altar que tinha atrás dele, pegou a
chave de metal que pendurava de uma corrente de ouro atada a sua
cintura e abriu uma antiga caixa de ferro com dobradiças. Jogou
para trás a tampa, tirou com cuidado um livro envelhecido, já aberto
e marcado com uma larga fita de cor vermelha sangue.
O Liber Veritas, o Livro da verdade, era o volume mais valioso
da Fraternidade. O antigo tomo descrevia todos os ritos que
conhecia a irmandade e de uma forma ou outra, era usado desde o
surgimento de Roma.
Com a mão direita levantada no eterno gesto de bênção e a
esquerda sustentando o livro aberto, o prior leu umas poucas
palavras, convidando o solicitante a oferecer sua vida à causa e
pedindo a Deus que o protegesse em seu trabalho.
Depois deixou cair a mão e fez o sinal.
Encravado entre duas grossas colunas, o grande altar começou
a vibrar e a chiar, fazendo um som como o da pedra de um moinho.
A princípio devagar, e depois com surpreendente rapidez, o altar
deu meia volta.
O primeiro que Geoff viu foi que, curiosamente, o coroinha
não estava nu.
Embora o tipo estivesse amarrado como devia, pelos pulsos e
com os olhos vendados, não se encontrava totalmente nu, mas sim
levava uma túnica de linho sem mangas que lhe chegava até
debaixo dos joelhos.
E o segundo que viu foi que o coroinha não era um homem.
Alguém abafou um grito.
E não foi ele. Ele não podia respirar.
Sutherland também ficou imóvel diante do altar. Com os olhos
muito abertos, aferrava o Liber Veritas contra seu peito como se
quisesse estrangulá-lo. Abriu e fechou a boca em silêncio e depois
emitiu um estranho som de fervura, como a água descendo pelo ralo
da cozinha.
Impulsionado por esse som, Ruthveyn abriu rapidamente
espaço entre a multidão, agarrou o livro e girou para ficar frente à
multidão.
— Que tipo de brincadeira é esta? — Perguntou, agitando o
livro por cima de sua cabeça. — Por Deus, que o desgraçado
responsável por isto dê um passo adiante!
E o terceiro que Geoff descobriu foi que o coroinha quase
estava nu, porque essa túnica, camisa ou o que fosse que usava
deixava pouco à imaginação. Mesmo assim, a jovem permanecia no
altar, erguida e orgulhosa, apesar de ter os pulsos torpemente
amarrados à frente do corpo. Era alta, com peitos pequenos e
arrebitados, que subiam e baixavam muito rápido, uma juba
selvagem de cachos escuros que lhe chegava até a cintura e esbeltas
pernas que pareciam surpreendentemente fortes.
Surpreendentemente?
Todo aquilo era surpreendentemente... algo. Por não dizer
erótico, com todas essas cordas, vendas e sim, essas pernas...
A sala se converteu em uma confusão. Ruthveyn tinha
encontrado uma adaga em alguma parte e estava cortando as cordas
dos pulsos. A seu lado, Geoff podia ouvir Rance rindo baixo.
Nesse instante, a moça girou um pouco e a fina túnica lhe
deslizou pelo quadril de uma forma sugestiva. Repentinamente
excitado, Geoff fulminou Rance com o olhar, apressou-se a subir ao
estrado, tirando sua túnica e a cobrindo cuidadosamente, com ela.
A moça se encolheu ligeiramente quando a tocou.
Depois, muito mais devagar, Ruthveyn cortou a venda dos
olhos, que tradicionalmente levava o coroinha até que se votava sua
admissão.
A garota olhou a multidão com uns olhos negros muito
abertos, piscou e surpreendeu a todos ao dizer com voz alta e clara:
— Solicito humildemente ser admitida na irmandade — pediu
com um latim perfeito e preciso. — Ganhei esse direito com minha
devoção, com minha força e com minha linhagem. E prometo, por
minha honra, que defenderei por meio da palavra e da espada o
dom, minha fé a minha irmandade e a todos os que dependem dela,
até que o último fôlego abandone meu corpo...
— Não, não, não! — Exclamou Ruthveyn agitando uma mão.
— Minha querida menina, não sei quem te colocou nesta
brincadeira, mas...
— Fui eu. — A voz de Rance também soou
surpreendentemente potente. — Eu apadrinho esta mulher para que
se inicie na mais antiga e nobre ordem, a Fraternitas Aureae Crucis.
Não são essas as palavras mágicas para apadrinhar?
—Você o que? — Disse Geoff. — Mãe de Deus ficou louco?
— Certamente, Rance. — Sutherland por fim tinha recuperado
a fala. — Está brincando com um ritual respeitado e sagrado. Isto é
totalmente inadmissível.
— Isso! — Gritou alguém entre a multidão de túnicas marrons.
Geoff ficou diante da moça para protegê-la, mas ela o afastou
com força e ficou no meio do estrado.
— Por que é inadmissível, senhores? — Perguntou ela. Não
cabia dúvida de que sua forma de falar era de alguém da alta classe.
— Treinei durante dez longos anos. Fiz tudo o que me pediram e
mais, apesar de não ter solicitado nunca nada disto. Mas porque me
pediram... não, me ordenaram, que cumprisse com meu dever,
sacrifiquei grande parte da minha juventude e o tenho feito
unicamente para cumprir com as tarefas que me encomendaram. E
agora me querem negar o direito de pertencer à irmandade?
O rosto sombrio de Ruthveyn se contraiu em uma careta.
— Esse é o problema — Replicou. — Isto é uma fraternidade,
senhora...
— Senhorita De Rohan — Espetou-lhe. — Anaís de Rohan.
— Senhorita De Rohan. — Ruthveyn estava um pouco pálido.
— Bem. Como dizia, isto é uma fraternidade, uma associação de
homens, não de mulheres. Não é uma grande família feliz. — Deu a
volta sobre o estrado. — Rance, deveríamos te açoitar. Pelo amor de
Deus, chamem o Safiyah para que se leve esta pobre moça, e que lhe
busque roupa apropriada.
Senhorita De Rohan.
Por que Geoff achava familiar esse sobrenome?
Não importava. Ruthveyn estava se dando conta, igual a ele,
de que aquela não era uma mulher comum. E não era casada, o que
fazia com que a situação ficasse ainda mais precária. Além disso,
falava e se comportava como uma aristocrata... uma aristocrata
zangada. Apesar disso, permanecia ali, diante de um monte de
homens, praticamente nua e friamente sossegada.
O velho Vittorio lhe tinha ensinado algo, isso estava claro.
Rance, em troca, tinha começado a discutir.
— Onde, cavalheiros, está escrito que uma mulher não pode
pertencer à irmandade? — Gritava. — Giovanni Vittorio, um de
nossos defensores mais leais, acreditou em tomar esta jovem sob seu
amparo e formá-la com nossos métodos.
— Tolices — Replicou Geoff. — Vittorio estava doente. Não
pensava com claridade. Deixaria sua vida em suas mãos, Rance?
Faria? Porque isso é o que está pedindo que façam todos os profetas.
— Esquece que revisei toda a documentação de Vittorio e falei
com a garota. — Respondeu Rance. — Não é esse o dever do
padrinho? Assegurar-se de que o neófito está qualificado? Pois te
posso assegurar que em muitos aspectos, está muito mais
qualificada que eu.
— Isso. — Disse Geoff com severidade. — Não o duvido
absolutamente.
— Sua arrogância me ofende velho amigo. — Disse Rance.
— A mim também. — Interveio a jovem com frieza. — Estou
qualificada. E você, senhor, é um ignorante.
Geoff deu a volta para olhá-la. Ela não tinha feito nenhum
esforço para fechar a túnica que lhe tinha jogado sobre os ombros e
isso, inexplicavelmente, zangou-o. Percorreu-a com o olhar de cima
abaixo e além de irritação, sentiu algo mais na boca do estômago.
— Se, de verdade você for o seguidor de Vittorio. — Disse com
firmeza. — Terá a marca.
Ela levantou o queixo e a raiva brilhou em seus olhos negros.
— Oh, tenho-a. — Disse, levando uma mão à borda da túnica.
— Quer ver a prova?
— Deus Santo, Bessett. — Queixou-se Rance. — Tem a marca.
Me assegurei disso.
Bessett girou na outra direção.
— Te asseguraste? — Repetiu com incredulidade. —
Importaria em me dizer...? Não, não importa. — Voltou a dar a volta
e segurou a moça pelo antebraço. — Você vem comigo.
— Aonde me leva?
Belkadi, um dos defensores, tinha aparecido junto a Geoff.
— A ver o Safiyah. — Respondeu Geoff em voz baixa. —
Parece evidente, embora Rance não o creia assim, que uma mulher
solteira e de boa família não deve estar meio nua, em um local que é
um clube de cavalheiros.
— Oh, obrigado! — Exclamou ela com amargura. — Dez anos
da minha vida atirados na lata do lixo, por uma questão de etiqueta!
Geoff não respondeu, mas sim a levou para que subisse as
escadas. Atravessaram a adega e se adentraram no laboratório.
Outro lance de escadas os levou a planta baixa e por fim, à relativa
intimidade das escadas dos serventes. Durante todo o caminho, ia
falando bruscamente.
Mas não era uma garota.
Não, absolutamente.
E o que acabava de fazer... Deus santo, era buscar a ruína. Será
que não lhe importava nada?
— Está machucando meu braço, caipira. — Disse-lhe. — O que
teme tanto? Afinal, só sou uma mulher.
— Temo por você, pequena estúpida. — Sussurrou. — E cale-
se, antes que alguém, que não possamos ordenar que guarde
silêncio, a veja.
Ao ouvir aquilo, ela se encorajou e se deteve em um patamar.
— Não me envergonho do que sou. — Afirmou, fechando com
força a túnica com uma mão. — Trabalhei muito duro para aprender
minha habilidade.
— Você, senhora, não tem "uma habilidade." — Respondeu com
frieza. — Pelo amor de Deus, pense em outras pessoas, já que não o
faz por você. O que pensaria seu pai, se soubesse onde está neste
momento?
Ante aquelas palavras, ruborizou levemente.
— Para ser sincera, pode ser que não aprovasse.
— Pode? — Contra sua vontade, Geoff voltou a olhá-la da
cabeça aos pés. — Pode ser que não aprovasse? Que sua filha
passeie meio nua por um clube de Londres?
Ela entreabriu seus olhos negros.
— Não é assim. — Disse. — Simplesmente, não contei tudo.
Ainda.
Geoff olhou incrédulo.
— Quer dizer que lhe contou algo?
Ruborizou-se um pouco mais, embora seu tom de voz não se
suavizou.
— Pelo amor de Deus, cada vez que ia à Toscana passava
meses com o Vittorio. — Replicou. — O que acredita que lhe contei?
Que estava fora acabando os estudos em Gênova? Parece-lhe que
estou acabada?
Não, não o parecia.
Parecia algo... selvagem e totalmente inacabada.
Como algo que um homem nunca acabaria... embora não era
precisamente bela. Mas era intrigante, singela e com uma vitalidade
que ele nunca poderia ter. E, fosse o que fosse, não se parecia com
nenhuma mulher que tivesse conhecido... e tinha conhecido muitas.
A ira de seu pai, entretanto, não era assunto dele.
Estranhamente zangado consigo mesmo, girou de novo para ela
conduzindo-a ao seguinte lance de escada. Mas a pegou
despreparada. Um de seus pés se enredou na borda da larga túnica
de lã dele e se balançou perigosamente para frente.
— Oh! — Gritou, e agitou a mão livre em busca do corrimão.
Instintivamente, ele a agarrou. Enlaçou-a pela cintura com o
braço, apertando-a com força contra seu peito.
De repente, o tempo e o espaço se desvaneceram. Foi como se
os dois deixassem de respirar... um instante de pura sensualidade
que fez desaparecer a lógica. E quando ele a olhou nos olhos, olhos
da cor de chocolate quente rodeados de umas pestanas espessas e
negras, sentiu que algo em seu interior se retorcia e se dobrava como
o metal esquentando-se com o fogo de alguma forja sobrenatural.
Seu lábio inferior era carnudo, como um pêssego amadurecido
e por um momento, tremeu quase sedutoramente.
Então a moça o salvou de cometer o disparate que tinha estado
pensando.
— Uff. — Resmungou, afastando-se um pouco. — Se quer me
matar, Bessett, me lance por cima do corrimão e acabe rápido.
— Não me tente. — Grunhiu ele.
Mas, inexplicavelmente, não podia deixar de olhá-la. As
formas de seus extraordinários seios se viam claramente de onde se
encontrava e que Deus o ajudasse, porque não era nenhum anjo.
Com os olhos jogando faíscas, a senhorita De Rohan se
endireitou.
— Importa-lhe, senhor? — Disse, subindo a parte dianteira da
túnica. — Não estou acostumada a expor meus encantos a menos
que estejam dentro de um vestido de baile.
— Mas, como. — Respondeu ele em voz baixa—
Possivelmente isso não acontece muito frequentemente.
Ela se ruborizou violentamente.
— Peço-lhe perdão. — Disse ele. — Mas você escolheu usar
isso, senhorita De Rohan. E, depois de tudo, eu só sou um homem
comum.
Ela fungou com desdém.
— Comum é? Não acredito que ninguém aqui seja comum.
— Acredite querida, quando se trata de mulheres atraentes,
todos os homens são iguais. — Estendeu uma mão com um gesto
mais amável. — Outra razão por que temo por você.
— Está sugerindo que não estou segura nesta casa? —
Perguntou bruscamente.
— Sua reputação não. — Respondeu-lhe — Mas ninguém lhe
fará mal enquanto esteja aqui, senhorita De Rohan. Pode confiar sua
vida a todos e cada um de nós... apesar de eu não deixar de olhá-la.
Com evidente receio ela lhe deu a mão.
— Agora, sobre seu pai... — Seguiu dizendo Geoff com voz
firme. — Acredito que estava a ponto de me dizer quem é.
— Exatamente? — Durante uns segundos, ela mordeu o lábio
inferior. — É um nobre. O visconde De Vendenheim-Selestat.
Geoff olhou atentamente os olhos de cor chocolate.
— E não exatamente? — Insistiu. — Vamos senhorita De
Rohan. Apostaria que você nasceu e cresceu em Londres. Talvez eu
seja um lascivo, mas sou suficientemente sagaz, para saber quando
estão me contando uma verdade pela metade.
Por fim, ela afastou o olhar.
— Faz muito tempo, se fazia chamar Max de Rohan. Ou,
simplesmente, De Vendenheim. Está no... Ministério do Interior.
Algo assim.
Bem. Isso era muito. Geoff reprimiu uma maldição e girou
para levá-la ao seguinte lance de escadas.
De Vendenheim! Precisamente ele! Rance devia estar louco.
Essa merdinha do Chronicle por fim tinha conseguido deixá-lo
completamente insano.
Não sabia muito sobre o título de De Vendenheim, mas estava
seguro de que não era o tipo de homem que se devia contrariar. E
não estava "no Ministério do Interior”, ou algo assim. Ele era o
Ministério do Interior... ou, mais exatamente, era a crueldade que
havia atrás do organismo. Politicamente, era intocável... não eleito,
imparcial e mais ou menos não oficial... a última éminence grise6
Como se fosse um gato negro com nove vidas, esse homem
magro de nariz afiado tinha sobrevivido a uma revolta política atrás
da outra. Tinha presenciado a fundação da Polícia Metropolitana, as
revoltas da Reform Bill, as sangrentas obras dos ladrões de
cadáveres de Londres e todo o cortejo dos ministros do Interior que
6
A locução “eminência parda” é sem dúvida uma tradução do francês éminence grise, termo usado com
intenções depreciativas pelos críticos do padre Joseph, que nas primeiras décadas do século 17 foi uma
figura tão influente na política francesa como braço direito do cardeal Richelieu, o mais importante
ministro do rei Luís XIII.
tinham passado pelo cargo. Deveria estar morto, depois de toda a
agitação, conflitos e violência que tinha visto de primeira mão.
E sua filha tinha sido treinada para ser uma guardiã? E
aparentemente, sem seu consentimento?
Santo Deus.
— Apresse-se. — Disse bruscamente. — Vai se vestir agora
mesmo.
— Uma ideia excelente, dada a corrente de ar que há nestas
escadas. — Espetou-lhe ela. — Não podem comprar carvão? Pensei
que todos eram ricos. Estou descalça e não tive o traseiro tão frio
desde o inverno de...
— Senhorita De Rohan — Interrompeu Geoff. — Não estou
interessado no estado de seu traseiro.
Mentiroso, mentiroso, mentiroso.
— Estou destroçada, milorde! — Disse em tom zombador. — É
obvio, supunha-se que devia estar completamente nua, segundo a
cerimônia... mas nem sequer eu pude ter a coragem necessária para
fazer isso.
— Um pouquinho de bom julgamento pelo que todos
devemos estar agradecidos. — Disse Geoff com os dentes apertados.
E o dizia de verdade. A última coisa necessitava nesse
momento era ter a mente ocupada com a visão de Anaís De Rohan
nua.
Entretanto, já estava imaginando. Evocando essas pernas
longas e perguntando-se se chegariam a...
Não. Não devia saber nada sobre a longitude de suas pernas.
O que tinha que fazer era desfazer-se dela.
Graças a Deus, já tinham chegado ao piso mais alto da casa,
onde Belkadi tinha sua área privada. Uma vez na porta, Geoff
chamou duas vezes com o dorso da mão, forte, sem soltar a harpia.
Necessitou toda boa educação inglesa para não a lançar no interior e
sair correndo assim que a porta se abriu. Sua parte escocesa queria
atá-la a uma rocha e joga-la no Tâmisa.
Safiyah abriu a porta e os contemplou com seus enormes olhos
marrons de corça.
— Milorde. — Disse, surpreendida. — Onde está Samir?
— Seu irmão se encontra ainda no templo. — Respondeu
Geoff, arrastando à senhorita De Rohan ao interior. — Foi uma noite
muito estranha. Sinto irromper desta maneira, mas necessito da sua
ajuda.
— É obvio. — Safiyah baixou o olhar. — Quem é ela?
— O iniciado. — Replicou a senhorita De Rohan. — E tenho
um nome.
Safiyah se ruborizou violentamente e olhou para outro lado.
— Porei um bule no fogo.
A prisioneira de Geoff sentiu remorsos imediatamente.
— Peço-lhe desculpas. — Disse a senhorita De Rohan. — Não
o merecia.
— Não, é certo. — Safiyah apertava as mãos com calma. — Me
perdoem. Só será um momento.
— Sou Anaís. — Disse ela, ao estender a mão. — Anaís de
Rohan. Desculpe-me. Ter sido maltratada nas escadas me pôs de
mau humor. E eu adoraria tomar uma xícara de chá. Por certo, tenho
roupa, lorde Bessett, não vim nua pela rua. Por que você é lorde
Bessett, não é assim? Depois de tudo, não se apresentou antes de me
tirar do templo arrastada para me fazer subir as escadas.
— Onde deixou a roupa? — Perguntou ele, ignorando o resto
do ataque verbal.
Ela abriu muito os olhos, irritada.
— Em uma pequena sala da planta baixa. Entrei pelos jardins.
Geoff se dirigiu imediatamente à porta para chamar um
empregado, mas em seguida, se deu conta de que era uma
estupidez.
— Sente-se e permaneça calada. — Ordenou-lhe. — Eu irei por
ela. E seja amável com Safiyah. Pode ser que ela seja a única amiga
que tenha nesta casa quando acabar essa horrível noite.
Capítulo 3
*****
*****
"O general que vence uma batalha faz muitos cálculos mentais
*****
Em Londres fazia frio e o vento açoitava as flores primaveris
do Hyde Park quase com violência. Entretanto, essa brutalidade
botânica não tinha impedido que os conhecidos da boa sociedade
desfrutassem da dupla diversão de ver e ser vistos, já que a
temporada de eventos sociais tinha começado formalmente e havia
vestuários à criticar, rumores para espalhar e agendas sociais para
comparar.
Para a maioria dos assíduos do parque, era um ritual
agradável, embora exaustivo. Apesar disso, para os ocupantes da
pequena carruagem negra e dourada do lorde Lazonby, a
temporada de eventos tinha pouco atrativo. Lady Anisha Stafford a
desdenhava e a única relação de lorde Lazonby com a alta sociedade
era a conversação que se dava em sua carruagem.
— Então, é verdade que Bessett está te cortejando? —
Perguntou ele enquanto passavam pelo Cumberland Gate. — Deve
estar se exibindo como um pavão real.
— É verdade que fui ao teatro com lorde Bessett. — Disse lady
Anisha mal-humorada — Assim, como meu irmão. Mas, pelo que
sei, ele não está cortejando nenhum de nós.
— Não seja tímida, Nish. — Disse Lazonby. — Nos
conhecemos muito bem.
— De verdade, Rance? — Dedicou-lhe um de seus misteriosos
olhares de olhos negros. — Às vezes me pergunto se eu conheço
algo de você. Mas muito bem, sim. Bessett pediu permissão ao meu
irmão para me tratar com mais atenção. Muito pitoresco da parte
dele, não acredita? Principalmente porque deveria ter perguntado
para mim.
— Bessett é deliciosamente antiquado. — Mostrou-se de
acordo Lazonby. — Acredito que é um de seus maiores atrativos.
— Bom, Adrian e eu tivemos uma pequena discussão sobre o
tema. — Disse Anisha com amargura. — Eu disse muitas vezes para
o meu irmão que tenho intenção de ter um amante antes de voltar a
me casar.
Lazonby sorriu.
— De verdade?
— Sim, alguém diferente e... talvez perigoso. — Anisha
levantou um pouco o queixo. — Embora Bessett não era o que tinha
em mente, agora que penso nisso, seu atrativo físico compensa que
seja tão arcaico.
Lazonby pôs uma mão sobre a sua e a apertou brandamente.
— Olhe querida... — Procurou as palavras apropriadas. —
Eu... eu não sou para você. Você sabe a verdade, Nish?
Ela se ruborizou.
— Meu Deus, Rance você é um presunçoso!
— Presunçoso de te ter como uma amiga muito querida.
Deveria parar?
Lady Anisha se remexeu no assento, alisou as saias, que não
precisavam ser alisadas, e ajustou a aba de seu chapéu.
— Não. — Disse finalmente e suspirou. — Então continue. O
que você quer de mim?
— O que eu quero?
Olhou-a com curiosidade.
— Rance, estive muito tempo casada e sei como os homens
pensam. Voce não colocou esse fraque tão elegante, eu nem sabia
que você tinha algo tão bom, a propósito, só para conduzir diante de
gente que não poderia te importar menos. A mesma gente que sabe
que não nos daria nem um bom dia para Adrian ou para mim se não
fosse pelo dinheiro e o título do meu irmão.
— Anisha, não se subestime dessa maneira.
Ela o olhou com arrogância.
— Oh, eu não faço! Eu sou tão altiva como qualquer deles. A
minha mãe era uma princesa Rajput, se por acaso não se recorda.
Não me importa em nada a sociedade londrina.
— Boa garota. — Disse ele, sorrindo.
Lady Anisha levou uma mão ao elegante chapéu quando uma
rajada de ar o moveu.
— Então, o que quer?
— Quero que venha comigo a Scotland Yard.
— Aonde?
— Bom, ao número quatro, em realidade. Fazer uma visita a
Napier, o ajudante do inspetor. Sei que não é um lugar muito
refinado, mas te vi falando com ele no café da manhã das bodas e
pensei... Bom, pensei que se entendiam maravilhosamente bem.
— Céus, eu não diria tanto. Eu não o conheço realmente. Mas
ele era um convidado na casa de meu irmão e fui educada com ele.
— Mas você gosta dele. — Sugeriu Lazonby. — Ou isso, ou
pensou que estava roubando a prata de Ruthveyn, porque não
tirava os olhos de cima.
Lady Anisha pareceu pensar nisso.
— Oh, não seja ridículo. — Disse finalmente. — Ele foi muito
agradável, é certo, mas Napier sabe muito bem por que foi
convidado.
— Sim. — Respondeu Lazonby com firmeza. — Para deixar
claro a todos os fofoqueiros que lady Ruthveyn foi completamente
absolvida do assassinato de seu patrono. Depois de tudo, ele tinha
acusado ela publicamente. Era isso ou fazer com que Ruthveyn
sofresse a ira dos políticos.
— As pessoas sempre subestimam o alcance da Fraternitas,
certo? — Murmurou lady Anisha, que seguia agarrando o chapéu.
— Em qualquer caso, Napier estava me fazendo perguntas sobre a
Índia. Ofereceram-lhe um posto ali.
Lazonby olhou para o céu.
— Por favor, me diga que ele vai embora da Inglaterra para
sempre.
— Acredito que já rejeitou. — Disse lady Anisha. — Tinha
algo a ver com alguém que morreu em sua família. Não, acredito
que você não se liberará do Napier tão facilmente. E sim, Rance, sei
que esteve te assediando sem piedade. Sei que foi seu pai quem te
enviou a prisão para que apodrecesse ali. E somente por essas
razões Napier sempre será meu amigo.
— Mas você me acompanhará? — Perguntou-lhe Lazonby. —
Como representante do seu irmão, já que foi para a Índia? Agora
Napier se sente em dívida com sua família... talvez, inclusive um
pouco envergonhado. E te acha intrigante. Não me expulsará tão
rapidamente se você estiver comigo.
Anisha pôs os olhos em branco.
— E Lucan? Não pode ir com ele?
Lazonby riu.
— Seu irmão mais novo não tem dignidade, querida. —
Afirmou. — E você é, se me perdoar, mais homem do que ele nunca
poderá ser.
— Tolice. — Espetou-lhe. — É só um moço... e um libertino em
potencial, sim, mas já me ocuparei disso ao seu devido tempo.
Muito bem, admito que ele não serviria.
— E...?
Anisha suspirou pesadamente.
— Escolhe o dia. Eu irei... mas te vai custar algo, querido.
— Uma libra de carne, né, Shylock?7 — Disse, sorrindo.
7
Shylock é um personagem central na obra do Shakespeare O Mercador de Veneza, e fez a famosa demanda de "uma libra de
carne" que devia lhe ser entregue do próprio Antonio, o personagem a que se refere o título da obra, no caso em que este não
cumprisse com o pagamento de um empréstimo (N. da T.)
— Isto requereria mais que uma libra8. — Replicou ela,
sentando-se muito eréta. — Como compensação, no sábado de noite
me acompanhará à ópera.
— À ópera? — Repetiu, horrorizado. — Mas eu não gosto de
ópera. Não a entendo.
— É L'elisir d'amore do Donizetti. — Disse asperamente. — E
é simples. Apaixonam-se, há um grande mal-entendido, um elixir
mágico e depois os dois...
— Morrem tragicamente? — Sugeriu Lazonby. — E só estou
tentando adivinhar.
Ela lhe dedicou um olhar de advertência.
— Rance, você tem que ser tão caipira?
Lorde Lazonby riu.
— Ou só um deles morre, deixando o outro com o coração
partido? — Sugeriu. — Ou talvez envenenam um ao outro
acidentalmente? Ou se apunhalam mutuamente? E tudo isso
cantado, nem mais nem menos, em um idioma desconhecido que
um homem sensato não pode entender.
Os olhos de Anisha brilharam.
— Oh, pelo amor de Deus, não tem que entender! Somente
tem que pôr uma roupa apropriada e se apresentar no Upper
Grosvenor Street às sete em ponto. Lady Madeleine necessita de
outro cavalheiro para formar todos os casais... e é você!
— Ah, bem! — Disse Lazonby. — Outro trato com o diabo
para o velho Rance!
8
1 libra = 450 quilogramas
Capítulo 6
completo e intacto."
vitórias."
*****
*****
*****
lutar."
9
O xerez (em castelhano, jerez) é um tipo de vinho fortificado, licoroso, típico da Espanha, envelhecido no sistema de
soleira. Seu nome é derivado da região onde é elaborado, Xerez da Fronteira (em castelhano, Jerez de la Frontera).
Conduziu-o ao sofá que havia em frente ao fogo e depois se
dirigiu a mesa auxiliar, onde estava uma bandeja de prata com duas
taças. Tirou o plugue do decantador, encheu ambas as taças e voltou
para ele.
— Aqui. — Disse-lhe, deixando a bandeja.
Geoff levantou o olhar e agarrou uma taça. Ainda tinha uma
expressão tensa e estava pálido.
— Anaís. — Disse em voz baixa. — Sinto muito.
Não perguntou a que se referia. No lugar disso, tirou os
sapatos de um chute e se sentou a seu lado, colocando uma perna
debaixo do corpo.
— Sempre é assim? — Perguntou-lhe, virando para olhá-lo. —
Tem que... invocar a visão? Ou simplesmente vem?
Ele deixou o vinho na mesa de café e passou as duas mãos por
seu reluzente cabelo de cor bronze.
— Eu... abro-me. — Sussurrou por fim. — Deixo que o que já
está aí, saia de... o relatório. Não me pergunte o que quer dizer,
porque não sei explicá-lo.
— É como se estivesse atrás de um véu vaporoso, não é assim?
— Sugeriu ela. — Uma espécie de cortina na mente.
Olhou-a durante uns instantes. O esgotamento lhe refletia no
olhar.
— É bastante parecido. Por que? Você tem...?
— Não, mas uma vez conheci um jovem. — Interrompeu-o. —
Sua família o levou a Toscana e Vittorio tentou lhe ensinar como
fazê-lo. Como fechar a cortina, suponho que é a melhor maneira de
dizê-lo.
— É tão boa comparação como qualquer outra. — Disse ele. —
E esse jovem... conseguiu? Pôde fechá-la?
— Não, eu... não acredito. — Respondeu, elevando um pouco
a voz. — Nunca voltei a vê-lo.
Geoff a olhou com uma pena profunda e imutável, sem
dúvida dando-se conta da mentira.
— A Ruthveyn ocorre igual. — Murmurou. — Embora ele
aprendeu alguns truques ao longo dos anos: não tocar as pessoas,
não olhar as pessoas diretamente nos olhos, manter uma distância
emocional de quase todo mundo... E tentou com todas suas forças
reprimir a esses demônios com a bebida, e com coisas piores.
— E isso funciona?
Ele assentiu lentamente.
— Oh, sim, funciona. Se pode suportar o tipo de homem em
que se converte.
Ela o olhou com inquietação.
— Você provou?
— Durante um tempo. — Admitiu. — Sobretudo quando
estava no norte da África. Mas por então aprendi... a fechar a
cortina. Aprendi a manter levantado o muro a maior parte do
tempo. A ter a mente fechada A menos que desejasse o contrário.
Meu mentor na Escócia me ensinou. A única coisa que conseguia
com os narcóticos era... Oh, não sei, umas quantas horas de alívio,
suponho.
— Parece exaustivo. — Disse ela. — Como se sempre tivesse
que estar em guarda contra seu... sua força, imagino.
— Contra sua vontade. — Disse ele, franzindo o cenho. — Às
vezes, Anaís, é como se essa coisa quisesse te possuir. Não sei por
que o chamam de um dom de Deus quando é mais como se
estivesse lutando contra o demônio.
Anaís fez um som gutural que indicava compreensão.
— Não me estranha que Ruthveyn recorresse ao ópio.
— Sim, e por certo... — Dedicou-lhe um sorriso torcido,
agarrou sua taça de xerez e a esvaziou de um gole. — Tomarei
outro, se lhe parecer bem.
Ela assentiu e inclinou o decantador sobre sua taça.
Beberam em silêncio durante um momento. Ela seguia tendo a
perna recolhida sob o corpo, e o joelho roçava levemente a coxa de
Geoff através das saias. Ainda havia uma sensação de incerteza no
quarto, e o incômodo peso das palavras não pronunciadas. De fato,
sentia os lábios machucados, igual ao orgulho. Estava convencida de
que ele não tinha tido intenção de beijá-la. Não a princípio.
Quando teve a taça meio vazia, Anaís a afastou e ficou a
brincar com as fitas de seu vestido. Estava a ponto de fazer algo
desmesuradamente estúpido. Algo que prometeu a si mesma que
não faria.
— Geoffrey. — Disse em voz baixa — Sobre esse beijo...
— Anaís, eu... — Ele divagou, com o olhar fixo no pé de sua
taça. — Queria dizer exatamente o que disse sobre o que estivemos
de acordo em fazer, ou sobre o que te ordenei fazer, se prefere dizer
de maneira mais crua. Mas, a preocupação e uma noite sem dormir
crisparam os nervos. E o sinto. Não tinha direito ... de me comportar
assim.
— Muito bem. A próxima vez que estiver equivocada, me
assegurarei de lhe dizer isso em seguida. — Afirmou ela. — Em
lugar de ignorar suas ordens.
Ele a olhou de maneira zombadora.
— Vittorio não te ensinou grande coisa sobre diplomacia,
certo?
— Vittorio pensava que se podiam solucionar os conflitos com
a parte plaina da espada. — Respondeu sem alterar a voz. — Mas
voltemos para esse beijo.
Ele desviou o olhar à taça e a intensa cor âmbar apanhou a luz
do sol enquanto a fazia girar uma e outra vez em suas longas mãos.
— Anaís, não sou o homem adequado para ninguém. — Disse
finalmente. — Não sou... para você. Isso o entende, não é mesmo?
— Oh, Geoff, já sei. — Ela se levantou e começou a
perambular pelo quarto, apanhando e voltando a deixar
distraidamente livros e adornos. — Não, você e eu não
encaixaríamos nem em um milhão de anos. Não nesse sentido, pelo
menos.
— Não? — Cravou nela seu olhar de cor azul claro. — Em que
sentido estava pensando?
Anaís agarrou uma figura de porcelana de uma prateleira.
Tinha a estranha sensação de que algo importante, mais importante
possivelmente do que era capaz de compreender, pendia de um fio.
— Bom, isto é o que ocorre. — Disse por fim, deixando a
figura com um ruído surdo. — Quando me beija, me retorcem os
dedos dos pés e algo na boca do estômago... Oh, não sei. Suponho
que são seus olhos, azuis como o Adriático, e essa voz, baixa e
suave, como se pudesse fazer que uma mulher... Ah, mas essa não é
a questão.
— E qual é a questão?
Tinha a voz um pouco rouca.
— Bom tudo isto... me faz me perguntar se você poderia ser...
— O que?
— Bom, não o homem adequado. — Respondeu, olhando por
cima do ombro. — Mas possivelmente, o homem adequado no
momento, se sabe o que quero dizer.
Ele jogou a cabeça para trás, como se ela o tivesse esbofeteado
de novo.
— Se eu sei? Mas, bem me sinto como se me esmurrassem com
essa ideia. — Dedicou-lhe um de seus estranhos sorrisos torcidos. —
Você sim que sabe como pôr a um homem em seu lugar.
— Céus, não me diga que feri seus sentimentos. — Ela
retornou à mesa, e apanhou sua taça. — Geoff, eu tampouco posso
ser seu tipo.
— Agora nos atamos aos tipos? — Percorreu-a com o olhar e
ela pensou que este se tornou um pouco mais cálido. — Então, qual
é seu tipo?
Anaís se aproximou da janela, pensando em quanto deveria
lhe dizer.
— Bom, é toscano. — Respondeu finalmente, depois de dar
um gole no xerez. — É.. majestoso. Tem o cabelo escuro, embora não
tanto como o meu, e olhos bondosos. Seu nariz é forte, como sua
personalidade, mas é por natureza tranquilo e pacífico.
Geoff ficou calado uns instantes.
— Compreendo. — Murmurou finalmente. — Já o conheceste,
não é assim?
Ela não se voltou.
— Pensei que o tinha feito. — Respondeu uns segundos
depois. — Faz muito tempo.
— E era encantador? — As palavras do Geoff pareciam flutuar
no ar, algo irônicas. — Estava loucamente apaixonada por ele?
Anaís ficou olhando a rua com fixamente.
— Sim e sim, desesperadamente apaixonada. Mas não
funcionou.
— Assim que o deixou na Toscana faz muito, muito tempo. —
Murmurou Geoff. — E depois não o viu?
Anaís desejou não o haver feito.
Afundou as unhas no batente da janela enquanto recordava a
última conversação que tinha mantido com Raphaele, cuja vida
tinha mudado drástica e inesperadamente, enquanto que a sua não
tinha mudado em nada. Certamente, ela seguia pensando igual.
Não, Por Deus, não tinha trocado nem um ponto.
— Em realidade, o vi faz algumas semanas. — Respondeu com
frieza. — Em São Gimignano. Veio à missa do funeral do Vittorio.
Ele se deu conta da advertência que havia em sua voz.
— Ah. — Foi a única coisa que disse. — Muito bem. E qual é
meu tipo?
Por fim, Anaís olhou em sua direção e soprou de forma pouco
digna.
— Formosa. — Disse. — Seu tipo é uma mulher formosa.
Como você.
Geoff curvou os lábios com um sorriso irônico e, sem dizer
nada a ela, encheu sua taça.
— E você não é... formosa?
Ela negou com a cabeça.
— Sabe que não. — Replicou, passando junto a chaminé. —
Não sou... feia, isso sei. Mas meu nariz é muito forte, meus olhos são
muito grandes e meu cabelo é negro como o carvão e a maior parte
do tempo está revolto.
Ele riu.
— Nisso último estou de acordo. E esses são todos seus
defeitos?
Ela levantou um ombro com indiferença.
— Mais franqueza? — Murmurou. — Muito bem. Sei que
minha pele é muito escura para ser inglesa, e sou muito alta para ser
delicada. Mas tenho graça, e uma certa elegância continental. Estou
em paz comigo mesma, não me compadeço.
— Não, não me parece que seja desse tipo de mulheres que
sentem lástima de si mesmas.
Ela girou para olhá-lo de frente.
— Assim estamos de acordo em que eu não sou seu tipo e
você não é o homem adequado, não é assim?
A expressão dele trocou e se voltou indecifrável.
— E se admitir isso...?
Ela apoiou ambas as mãos no braço do sofá e se inclinou sobre
ele.
— Então, é o homem adequado por agora?
Ele levantou o olhar para ela, por cima da borda de sua taça.
— Bem jogado, querida. — Murmurou. — Mas não, não
acredito que esse seja o papel que me corresponde.
— Faz o que queira, então. — Respondeu ela.
— Oh, não estou fazendo o que quero, Anaís. — Disse em voz
baixa e calma. — Estou fazendo o melhor para sua família. Para seu
futuro. Para seu pai. Necessitava-lhe para esta missão, sim, e agora
rezo para que, quando acabar, não signifique sua ruína. Mas não
serei eu quem lhe arruíne por um capricho, ou por um desejo ruim.
— O desejo é ruim?
— A maior parte do tempo, sim. — Inclinou-se para frente e
deixou a taça sobre a mesa. — E, para os homens, o desejo é só
desejo. Não há nada romântico nisso, se for isso no que está
pensando.
— Então, alguma vez estiveste apaixonado? — Inclusive a ela
lhe pareceu que sua voz soava ofegante.
Ele riu sem vontades.
— Nem por indício, graças a Deus.
— Tem aversão ao matrimônio?
Geoff encolheu os ombros.
— Não tenho herdeiro. — Respondeu. — Nem sequer um
primo longínquo. Sendo assim, pretendo cumprir com meu dever
para o título. Mas, não há muitas mulheres que estariam dispostas a
viver com uma espada sobre suas cabeças. Com um homem que
sente coisas anormais. Acaba de ver como pode ser e acredite, esse
pequeno toque de escuridão não foi nada.
— Céus, Geoff, deve pensar que todas as mulheres são umas
covardes. — Murmurou ela. Voltou a sentar-se e se inclinou para
ele. — Pode ser que eu não tenha tanta experiência como algumas
das mulheres às que está acostumado. Mas não sou uma virgem sem
experiência.
Durante um instante, a curiosidade se refletiu no rosto dele.
— Acaso é... algum outro tipo de virgem?
— De maneira nenhuma. — Disse, sorrindo docemente.
— Entendo. — Engoliu em seco e os músculos de sua garganta
subiram e baixaram. — E sobre o homem adequado?
— Quando o encontrar. — Disse ela, aproximando-se dele
ainda mais. — Não lhe importará nada se for virgem ou não.
Geoff pigarreou incômodo.
— E como sabe?
— Porque, se não for assim, não seria o homem adequado. —
Respondeu. — Porque ele é perfeito para mim. Está destinado a
estar comigo. E ponto final.
— Acredito que este deveria ser o final desta conversação. —
Disse Geoff, passando uma mão pelo respaldo do sofá para
levantar-se. — Sou consciente de quando forcei muita minha sorte.
Anaís se sentou no sofá.
— O que quer dizer?
— Não importa. — Disse ele. — Acredito que sairei a dar um
passeio. Um passeio muito longo. A verei no jantar?
— Oh, muito bem. — Respondeu ela. — Mas isso não servirá
para aliviar meu aborrecimento.
— Então, sugere algo. — Disse ele, que já tinha uma mão no
trinco da porta. — Algo que não inclua os dois nus em uma cama.
— Eu adoro como isso soa em seus lábios. — Disse Anaís,
virando para olhá-lo por cima do respaldo do sofá. — E, para ser
completamente sincera, eu adoraria lhe ver nu.
— Anaís. — Disse ele com um tom de advertência na voz. —
Sugere algo.
— Muito bem. — Sorriu amplamente. — Acredito que cruzarei
a rua e me apresentarei ao visconde de Lezennes.
— Não pode estar falando a sério.
— Por que não? Tenho intenção de convidá-los para jantar.
Amanhã à noite. Se não posso lhe convencer, aperfeiçoarei minhas
armas femininas com Lezennes.
Capítulo 10
*****
Por volta das doze e meia, Anaís se apoiou contra uma árvore
no Parque de Bruxelas com o último folhetim do senhor Reynolds
aberto no colo. Sentado em um banquinho dobrável, Geoff estava
inclinado sobre seu caderno de desenho a mais ou menos um metro
de distância, meio dando as costas a ela e com o cabelo acobreado
movendo-se ligeiramente com a brisa.
Sob sua mão aparecia um esboço muito bom do palácio real,
com traços audazes, negros e certeiros. Era uma vista do edifício
através das sólidas grades do parque, e Anaís estava fascinada pela
rapidez de seus movimentos. Ao olhar o esboço, alguém imaginaria
que Geoff tinha estado trabalhando nele durante horas, ao invés de
apenas quinze minutos.
— Tem um dom para isto. — Murmurou ela.
Ele se voltou e sorriu, sorriu de verdade, e Anaís sentiu que
ficava sem respiração.
— Obrigado. — Respondeu. — Sempre senti paixão pelos
edifícios formosos. Foi, pelo que me lembro, a única coisa que
salvou uma infância passada no estrangeiro.
— Sabe desenhar retratos?
O sorriso de Geoff se desvaneceu, ele deu a volta e tirou o
caderno de desenho do cavalete. Virou a folha e a pôs no colo, com o
comprido cabelo caindo para frente lhe escurecendo o rosto
enquanto se inclinava sobre o esboço.
Durante uns minutos, moveu a mão rapidamente pelo papel,
jogando de vez em quando olhadas de soslaio em sua direção. Por
fim, ergueu-se e o separou um pouco dele, como se o estivesse
estudando.
Aparentemente satisfeito, arrancou o papel e o estendeu a
Anaís.
Ela o agarrou e abafou um grito.
Em realidade, era um desenho muito singelo. Só algumas
linhas rápidas e um par de sombras, mas a tinha capturado com
incrível realismo.
Anaís se prendeu em cada detalhe. Ainda tinha o nariz grande
de seu pai, mas de algum jeito no esboço parecia correto, e
perfeitamente proporcionado com seu rosto. E embora ele a tenha
esboçado sentada contra uma árvore, com um joelho levantado,
como em efeito estava, no desenho o cabelo se esparramava sobre os
ombros, lhe chegando quase à cintura.
Entretanto, o mais impressionante eram os olhos. Grandes,
embora não excessivamente, e davam a impressão de olhar
diretamente, quase com atrevimento, ao espectador. Mesmo assim,
não deixavam transpassar nada, como se fossem dois enigmáticos
poços de ébano.
Era, em seu conjunto, perfeitamente impressionante.
— Geoff, é precioso. — Conseguiu dizer, ainda com o esboço
na mão. — Mas temo que me favoreça em demasia.
— Como? — Ela podia sentir a curiosidade dele. — De que
maneira?
Anaís levantou o olhar para ele, mas em seu rosto não viu
nenhum tipo de subterfúgio.
— Não estou segura de que esse seja meu aspecto.
Ele inclinou a cabeça e a observou.
— Assim é como eu te vejo.
Havia uma sinceridade em seu rosto que ela não esperou
encontrar, e também doçura, embora ele pertencesse a um tipo de
homem com quem normalmente não se associaria essa palavra. E
para sua extrema vergonha, sentiu, de repente e inexplicavelmente,
como se fosse chorar. Como se o que tivesse estado esperando
durante toda sua vida fosse algo incorreto, como se ela não fosse a
pessoa que sempre tinha acreditado que era. Definitivamente, não
era essa mulher bela e misteriosa.
Devolveu-lhe o papel bruscamente.
— Não o quer?
— Não. — A palavra lhe saiu dos lábios com voz rouca. —
Quero dizer... sim, o quero. Muito. Mas eu gostaria que assinasse
isso. E que o datasse.
Sorrindo suavemente, ele o fez. Estampou uma assinatura
chamativa e angular na esquina inferior direita e, debaixo, pôs a
data.
— Aqui está. — Disse-lhe, estendendo-lhe. — Acredito que é o
primeiro retrato que tenho feito em uma década, ou mais.
— Então, sinto-me honrada. Obrigado.
Tinha-o assinado como "Geoffrey MacLachlan", uma precaução,
supôs ela, para manter o engano.
Justo então, algo captou sua atenção. Deixou o esboço de lado.
O estranho e agradável interlúdio tinha terminado oficialmente.
— Acredito que deveríamos começar a nos fazer de cabeças
ocas, porque vejo madame Moreau aproximando-se desde Place des
Palais.
Geoff se esticou, mas não se voltou para olhar.
— Com quem?
— Um cavalheiro E uma menina.
Ele assentiu e voltou para seus esboços. Anaís se levantou e
fez que sacudia a saia. Depois, levantou o olhar e sua expressão se
iluminou.
— Madame Moreau! — Chamou-a. — Oh, céus! Que boa
sorte!
Madame Moreau sorriu, mas olhou com nervosismo ao
homem magro e elegante em cujo braço estava agarrada.
— Bom dia, senhora MacLachlan. — Disse quando Anaís se
precipitou para eles. — Como vai?
— Oh, formigas! — Disse Anaís, entrando no caminho. —
Acredito que me sentei sobre um formigueiro! Pode-se ser tão tola?
Agora me parece senti-las por toda parte e é horrível.
Retorceu-se um pouco para apoiar suas palavras.
O sorriso de madame Moreau se desvaneceu um pouco.
— Senhora MacLachlan, permite-me lhe apresentar a meu...
meu tio, Visconde de Lezennes? E ela é Giselle, minha filha.
Quando tiveram feito todas as apresentações, Anaís lhe fez
uma profunda reverência, quase cômica, a Lezennes. Era um
homem esbelto e elegante de meia idade, com o cabelo muito curto e
quase tão escuro como o seu. Tinha um nariz fino e magro e uma
barba bicuda que parecia, definitivamente, satânica. A menina era
uma pequena brincalhona que não dizia nada e que evitava seu
olhar... compreensivelmente, talvez.
— Oh, sua senhoria, é uma honra. — Disse Anaís
efusivamente. — Um nobre francês... justo aqui, em Bruxelas. E
diplomático, além disso!
Lezennes lhe dedicou um sorriso condescendente.
— Minha querida dama, Bruxelas está alagada de nobres
franceses, o asseguro. — Disse em perfeito inglês. — E de
diplomáticos. O que trouxe vocês aqui?
Anaís abriu muito os olhos.
— Oh, estamos em nossa lua de mel. — Disse apressadamente.
— Perdoe minhas maneiras. Geoffrey! Oh, Geoff, venha aqui.
Recorda de madame Moreau, certo?
Geoff levantou a vista tranquilamente do cavalete, fingindo
que demorava um momento em reconhecê-la.
— Sim, claro, é óbvio!
Por fim se levantou e se dirigiu a eles. Anaís lhe apresentou o
visconde.
Geoff lhe estendeu a mão com o entusiasmo do típico inglês.
— Oh, encantado de conhecê-lo, colega. — Disse alegremente.
— Minha mulher não para de falar de sua amiga inglesa... não fala
nenhuma palavra deste estranho idioma holandês, já sabe.
O desgosto se refletiu no rosto de Lezennes, mas o ocultou
rapidamente.
— Tecnicamente, senhor MacLachlan, é flamenco. — Disse o
visconde — Mas o francês também se fala aqui. Não fala sua mulher
um pouco de francês?
Geoff olhou a Anaís sem expressão.
— Sim, acredito que sim.
— Bom, o suficiente para me fazer entender, mas não gosto. —
Queixou-se Anaís, entrelaçando um braço com o de Geoff. — Deve
perdoar a meu marido, milorde. Nos casamos há poucas semanas.
Quanto a porque viemos, Geoff gosta de fazer desenhos de edifícios.
— De edifícios?
Lezennes olhou a Geoff com curiosidade.
— Sim, sim, estou pensando em ser arquiteto. Não posso viver
da mesada de meu pai para sempre, certo? — Piscou um olho a
Lezennes com cumplicidade. — Ou isso é o que ele sempre me diz.
Tem montes de dinheiro, mas é agarrado a eles como a bolsa de um
clérigo.
— Oh, deviam ver este desenho! — Anaís fez um gesto com a
cabeça para o cavalete. — Vão ficar impressionados.
Como Lezennes não viu maneira de negar-se, educadamente,
inclinou o pescoço com rigidez.
— Après vous, madame. — Disse, fazendo um meneio com a
mão.
Atravessaram a rua e, claro, Geoff ia se queixando em voz alta
do quão tremendamente caro que era viver em Bruxelas e
perguntando se Paris seria algo mais barato. Lezennes lhe assegurou
que não era. Quando lhes mostrou o desenho, elogiaram-no
adequadamente e Charlotte declarou com educação, que era o
esboço de palácio mais bonito que já tinha visto.
Anaís pensou que provavelmente era o único esboço que tinha
visto, mas lhes agradeceu efusivamente.
— Bom, Charlotte. — Disse por fim. — Posso te chamar de
Charlotte?
A mulher voltou a dirigir um olhar de incerteza a Lezennes.
— É óbvio — Disse. — E você é Anaís, não é assim?
— Assim é, e me senti muito decepcionada ao me inteirar de
que tinha enxaqueca no domingo. — Pressionou-a. — Queria te
perguntar sobre o melhor lugar para comprar rendas. E livros. —
Agachou-se e mostrou o folhetim. — Sabe onde posso encontrar
uma boa livraria? Que tenha este tipo de novelas inglesas?
Madame Moreau parecia surpreendida.
— Folhetins?
O visconde estava olhando a capa com desgosto dissimulado.
— Mon Dieu, madame, o que é esta coisa?
Anaís abriu muito os olhos.
— Um folhetim. — Sussurrou. — São muito emocionantes,
milorde. Este é sobre um homem lobo.
Lezennes fez uma careta com a boca.
— E o que é um homem lobo?
— Um homem que se transforma em lobo quando há lua está
cheia. — Respondeu Anaís, estremecendo. — Vendeu sua alma ao
diabo em troca de juventude e riqueza, mas há uma armadilha. Não
há sempre uma armadilha quando alguém faz uma estupidez
semelhante? Em qualquer caso, é deliciosamente horrível. Sei que as
damas geralmente não compram, mas eu sou da opinião de que,
pelo menos, deveriam ler uma.
— Oh, ela lê qualquer tolice. — Interveio Geoff, que estava
guardando suas coisas. — Tenha piedade de nós, madame Moreau,
e leve-a a algum lugar onde possa encontrar um bom livro.
— Mas em inglês? — Perguntou a mulher, franzindo sua
delicada testa. — Na verdade não acredito que...
— Poderíamos falar disso enquanto tomamos o chá um dia? —
Sugeriu Anaís. — Se se sentir melhor, é claro.
De novo, Charlotte Moreau olhou a seu acompanhante.
— Bom, não estou segura...
Mas Lezennes estava passando o olhar da novela tola de Anaís
à expressão bovina de Geoff.
— Sinta-se à vontade para ir, querida. — Disse o visconde. —
Acredito que será algo inofensivo.
Parte da tensão de madame Moreau desapareceu e, pela
primeira vez, dedicou a Anaís o que parecia um sorriso autêntico.
— Estarei encantada. — Disse. — Quando?
— Na segunda-feira? — Sugeriu Anaís, tentando não parecer
muito ansiosa. — Oh, e traga a pequena Giselle. É muito bonita e me
recorda muito a minha querida Jane.
Apesar do comentário, a menina não estabeleceu contato
visual. Em lugar disso, escondeu-se atrás das saias de sua mãe.
O visconde, entretanto, a olhou.
— Temo que Giselle seja delicada e não é como outras
meninas. — Disse com voz firme. — Não está acostumada a sair de
casa.
A compreensão se refletiu no rosto do Anaís.
— Não, claro. — Disse. — É óbvio, não seria conveniente.
Pobrezinha. Que bom é você, milorde, por preocupar-se tanto por
seu bem-estar.
Geoff levantou o olhar do cavalete que estava fechando... e
provocou um desastre, pois tinha enganchado o casaco em uma das
dobradiças.
— Por Deus, tenho uma ideia excelente. — Disse, soltando-se
por fim entre puxões e ruídos estrepitosos. — Os dois devem vir
para jantar! Que tal na terça-feira? Temos uma cozinheira fantástica.
Assa a carne como uma verdadeira inglesa. O que lhes parece às seis
em ponto? Temo que ainda tenhamos o horário inglês.
Lezennes levantou o queixo.
— A governanta de Giselle se vai pelas tardes, e Charlotte não
pode sair de casa depois disso. Temo que não possamos ir a sua
casa.
— Bom, se insistir... — Disse Geoff em tom amistoso. —
Embora odeie incomodá-los.
— Como diz? — Perguntou Lezennes.
Geoff seguiu dizendo rapidamente:
— Direi que... os compensarei. Um barril do melhor uísque de
meu pai caiu acidentalmente em minha carruagem quando saía para
Bruxelas. O que me dizem se lhes levar uma garrafa?
— Uísque? — O visconde deu um passo atrás. — Feito de grão
fermentado?
Geoff fechou de repente o banquinho dobrável.
— Sim, e aposto o quer que seja, que não voltará a beber esse
morno brandy francês, lorde Lezennes, uma vez que tenha cheirado
a glória da Escócia. Então, às seis em sua casa?
Lezennes tomou ar profundamente.
— Oui, às seis. — Disse em um tom que sugeria que, quanto
antes saísse daquilo, melhor. Depois inclinou a cabeça para olhar a
sua acompanhante. — Acredito que a Charlotte verá bem a
diversão.
Charlotte seguia mostrando seu sorriso autêntico.
— Oh, claro que sim! — Afirmou. — Obrigado, tio. É muito
amável.
Assim ficou tudo decidido. Depois de uma série de educadas
despedidas, Anaís e Geoff ficaram vendo como os três se afastavam
em direção a Rue da Loi, no extremo oposto do parque.
— Santo Deus! — Disse ele quando o trio já não podia ouvi-
los. — Foi horrível. Nem sequer eu gosto de como somos.
— Stupide rosbifes, não é assim? — Anaís lhe sorriu. — E agora
o pobre Lezennes nos terá que aguentar para jantar. Muito bem
feito, por certo.
— Tratou-lhe como esterco de cavalo, certo? — Geoff lhe
devolveu o sorriso. — E quem haveria dito que você podia ser tão
pateta?
— Ou você tão vulgar. — Acrescentou ela.
— Oh, tenho meus momentos.
— Acredito que o casaco enganchado na dobradiça foi um
detalhe muito convincente. — Disse ela, buscando em seu bolso. —
Se não pudermos ser bons guardiões, acredito que poderíamos atuar
no teatro.
Tirou um lenço de renda e linho e o agitou diante dele.
Geoff arqueou uma sobrancelha.
— Obrigado, Anaís, mas ainda não me fez chorar.
— Não, tolo, tirei-o do bolso de Charlotte. — Respondeu,
colocando-o no bolso do colete de Geoff. — Vittorio me ensinou.
— A roubar?
— A fazer muitas coisas. — Disse vagamente. — Vittorio dizia
que às vezes, em um artigo muito pessoal ficavam marcadas as
emoções do proprietário. E, a menos que esteja equivocada, eu diria
que este lenço esteve empapado em lágrimas mais de uma vez. Pode
ser que se torne útil.
— Sim, pode ser que sim. — Geoff o guardou e olhou as costas
de Charlotte enquanto os três se internavam no parque. — E o que
estava fazendo com esse livro de mau gosto, por acaso?
— De mau gosto, né? — Anaís cruzou os braços sobre o peito.
— Tem ideia, Geoff, de quanto dinheiro ganha o senhor Reynolds
vendendo isto? Mais que o senhor Dickens e as irmãs Brontë juntos,
diria eu.
Ele também cruzou os braços, como se estivesse a imitando.
— E com isso quer dizer...?
— Bom, eu... — Fechou a boca e a voltou a abrir. — Não é teu
assunto.
— Não, é óbvio que não! — Mostrou-se de acordo, começando
a sorrir.
— Mas, pensei, francamente, que deveria conhecê-lo. — Disse
ela, levantando o queixo. — E não ria. Faz tempo que sei que os
membros da Fraternitas tentariam me rechaçar e queria ter algo que
fazer até... até...
— Até que apareça seu homem ideal? — Sugeriu ele.
— Até que consiga que superem sua estupidez e prejuízos. —
Terminou de dizer ela. — Já sabe. Não me vou render, Geoff. E
agora, nos ponhamos sérios. O que acha da situação em que se
encontra Charlotte Moreau?
Geoff se serenou imediatamente e deixou cair os braços.
— Nada bom. — Admitiu, sem deixar de olhar as costas de
Charlotte. — Sente-se intimidada, por não dizer aterrorizada, por
Lezennes. Não precisa ter o dom para dar-se conta.
Anaís franziu o cenho.
— É óbvio que não. Geoff tenho a horrível sensação de que
talvez não disponhamos de muito tempo. Sente algo?
Ele negou com a cabeça.
— Somente um pouco de desassossego, mas acabo de conhecê-
la, de criar uma conexão com ela. E estou de acordo contigo. É
inocente e Lezennes não atua em seu melhor interesse
absolutamente. E o que é pior, não acredito que tenhamos meses,
possivelmente nem sequer semanas, para solucionar este assunto.
— É mais importante ser rápidos do que ser sensatos. — Disse
Anaís enquanto o trio saía do caminho principal e desaparecia entre
as árvores. — Vou ter que ser atrevida, Geoff. Me fazer de amiga
dela rapidamente. Mas, o tiro poderia sair pela culatra se for tão
assustada como acredito.
Geoff pegou seu caderno de desenho e estava dando
golpezinhos com ele na coxa com ar pensativo. Seus olhos de cor
azul claro, ainda estavam fixos no caminho e tinha a mandíbula
firmemente apertada.
— Então, deixo-o a seu critério. — Disse finalmente,
carrancudo. — E não, não perca tempo.
— E se fracassar? — Perguntou ela. — E se a espantar? Está
decidido a fazer o que deve fazer?
— Sequestrar à menina? — Disse ele. — Preferiria não fazer.
Mas sem a menina, Lezennes não necessitaria de Charlotte. Deixaria
ela partir. Deve tentar convencê-la para que fique em contato com
sua família, Anaís. Se por acaso há alguma esperança.
— Oh, farei isso. — Respondeu. — Pensarei em algo, prometo-
lhe.
Geoff não disse mais nada, sem deixar de olhar para o
caminho.
Tinha sido um dia insólito. Um dia no qual Anaís havia se
sentido mais confusa do que nunca, no que dizia respeito do homem
que agora estava a seu lado. Ombro com ombro, literalmente,
pareciam coexistir com tanta facilidade e comodidade como fariam
duas pessoas em sua situação.
Como se estivesse escrito.
Mas não o estava. Não podia ser. Nonna lhe tinha explicado
seu destino fazia muito tempo, e ela faria bem em recordá-lo.
— Venha. — Disse depois de uns momentos. — Me dê o
caderno e os lápis. Ajudarei a levar tudo para casa.
*****
10
O termo "Dança da Espada" invariavelmente se refere a "Ghillie Callum", interpretada por um
dançarino solitário sobre duas espadas, postas como uma cruz, no chão.
Apostaria qualquer coisa que algo tinha ido mal no chá com
Charlotte Moreau. Talvez a dama tampouco tivesse aparecido
aquele dia. Ou talvez sim o tivesse feito...
Depois de fechar o último botão, dirigiu-se à porta.
— Diga à senhora Janssen que não se preocupe com o jantar.
— Disse. — Pediremos que nos subam algo frio mais tarde. Vou
acima, descobrir a causa do estado de ânimo da senhora
MacLachlan.
Subiu os dois lances de escadas em meias três quartos, abriu a
porta do campo de jogo de cavalheiros de monsieur Michel e olhou
a seu redor. Viu com surpresa que Anaís estava no amplo e
ensolarado espaço que rodeava o saco de boxe, com um comprido
florete cintilando na mão.
Com o braço esquerdo elevado elegantemente por detrás,
permanecia em guarda ante o saco, que oscilava ligeiramente. Usava
umas calças cômodas de nanquim e uma ampla camisa branca.
Recolheu o cabelo em uma trança, presa com um laço branco. Como
se estivesse se movendo ao ritmo de uma música que unicamente
ela pudesse escutar, deu uma estocada, afundando a lâmina no saco.
Era evidente que não se tratava da primeira vez que o fazia. Já
se podia ver as vísceras do saco por diversas fendas e buracos,
sangrando serragem e bolinhas de algodão que caíam ao chão.
Depois de tirar de um puxão a lâmina, Anaís levou a cabo uma
retirada perfeita e começou a mover-se de um lado a outro,
enfrentando seu inimigo invisível enquanto executava os passos
com uma habilidade que ele poucas vezes tinha visto.
Durante alguns momentos ficou ali, com um ombro apoiado
no marco da porta de forma que ela não podia vê-lo. Perguntou-se
se ela não sentiria sua presença, mas parecia que seu único objetivo
era o saco de couro e era claro que já estava ali há algum tempo.
Respirava fortemente, embora não chegasse a ofegar mas os cachos
que lhe rodeavam a fronte estavam úmidos de suor.
Ele sabia, é obvio, que era de má educação observar alguém
sem ser anunciado. Mas estava desfrutando muito para entrar na
zona iluminada do sótão.
Ela se aproximava de seu objetivo uma e outra vez, com suas
esbeltas costas perfeitamente alinhadas, atacando o saco como se
estivesse imersa em uma destruição elegante e planejada. O florete
era uma arma longa que requeria paciência e uma cadência
metódica. Apesar de seu evidente mau humor, parecia que ela
possuía ambas as coisas em abundância. Geoff sentia uma poesia
inegável em seus movimentos, uma fluidez e uma elegância que
desmentiam a violência de seus atos.
Sob a camisa, seus peitos arredondados se balançavam e
bamboleavam, tão desatados como seu mau gênio. As calças de
nanquim se ajustavam a seus quadris de uma forma que era
decididamente atlética e deliciosamente feminina.
Também era profunda e carnalmente erótica.
E, com a seguinte estocada, deu-se conta de uma coisa. Algo
muito mais inquietante que a ferocidade, algo que reprimia Anaís.
Desejava-a.
E estava se cansando disso.
Queria Anaís entre seus braços. Debaixo dele. Arqueando-se
para sair a seu encontro, ofegando.
Oh, o desejo em si não era nada novo: tinha-a desejado no
primeiro momento. O anseio não tinha desaparecido. Não, mas bem
ao contrário. Viver junto a ela nos últimos dias tinha sido um
inferno. Vê-la do outro lado da mesa durante os jantares, um
exercício de controle físico. E saber que dormia sozinha em sua
cama, cada noite, a poucos metros dele, a mais horrível das torturas.
E agora isto.
Por que negar-lhe pensou, observando como voltava a
afundar o florete no saco. Sua lógica estava começando a fraquejar.
Durante a maior parte do tempo era um homem de honra, mas não
estava comprometido com ninguém. E ela... Bom, ainda estava
chorando seu amante perdido e esperando que chegasse seu
príncipe, isso estava claro. Fosse quem fosse por quem ela se
interessasse... Bom, não seria ele, e melhor assim.
Mas Anaís o desejava, o tinha convidado à sua cama. Não
tinha expectativas e não carecia de experiência. E, embora ele tivesse
desconhecido essa informação, seus movimentos lhe haveriam dito
que essa mulher tinha perfeito controle sobre seu corpo. E ele
confiava o suficiente em suas habilidades para saber que, quando
por fim ela gritasse de prazer embaixo de seu corpo, teria esquecido
seu Romeo toscano... ao menos durante um momento.
Sentiu que seu pênis lhe sacudia na coxa com insistência.
Trocando de postura, manteve a vista fixa na esbelta figura de
Anaís, enquanto esta seguia movendo-se pelo chão de madeira.
Com os olhos brilhantes e a mandíbula bem apertada, em um
determinado momento, Ela ricocheteou contra a borda da mesa de
bilhar, girou e voltou a introduzir o florete em metade do saco
fazendo um corte uniforme. Em seus movimentos havia uma
inexplicável fúria, mas era um tipo de raiva cuidadosamente
contida, porque Giovanni Vittorio lhe tinha ensinado bem.
Em sua seguinte retirada, caminhou para trás até a borda da
mesa de bilhar, golpeando-a com força como se um inimigo
implacável a estivesse fazendo retroceder. Então o surpreendeu ao
saltar e dar uma cambalhota para trás, rodando literalmente pela
toalha da mesa com o florete ainda na mão, e caindo de pé do outro
lado.
Ergueu-se ofegando, mas perfeitamente estável.
Ele saiu das sombras que rodeavam a porta e aplaudiu
devagar.
— Bravíssima!
Ela levantou o queixo. Seus olhos escuros e expressivos
pareciam ainda maiores do normal.
— Geoff?
Ele se aproximou lentamente.
— Vittorio te ensinou tudo isso?
— Algumas coisas. — Com receio, ela o olhou enquanto se
aproximava. — Quanto tempo leva aí?
— O suficiente.
Quando ele ainda estava cortando a distância que os separava,
ela assinalou à parede com a cabeça.
— Não terminei. — Disse. — Pega uma espada.
Ele apoiou o quadril na borda da mesa de bilhar.
— Céus, sim estás de mau humor. — Murmurou, passando o
olhar por seu corpo. — Mas sinto debilidade pelas mulheres com
armas letais.
Anaís deve ter percebido algo em seu tom de voz, porque se
aproximou.
— Sabe esgrima, certo? — Perguntou-lhe, olhando-o de cima
abaixo.
— Você o que crê?
Ela levantou o queixo.
— É bom?
Ele deu um meio sorriso e levantou um ombro.
— Não acredito que pudesse dar uma cambalhota para trás e
cair com a espada ainda na mão. — Disse. — Mas sim, acredito que
poderia te satisfazer.
Ela encolheu os ombros.
— Certamente sabe que esse movimento era puro espetáculo.
Em uma briga de verdade, possivelmente faria que lhe cortassem o
pescoço. — Voltou a fazer um gesto com a cabeça para a prateleira
de madeira. — Venha. Vejamos o que podemos fazer.
— Não tiveste suficiente, não é?
— Não, ainda não.
Geoff se separou da mesa de bilhar, dirigiu-se à prateleira e
apanhou o primeiro florete que viu. Ela o seguiu e trocou sua arma
por outra.
— É muito atenta, querida. — Disse, assinalando a arma com a
cabeça. — Um homem mais inteligente se limitaria a te pedir que se
sentasse e que lhe contasse por que está tão alterada.
— Em outro momento, possivelmente. — Ela jogou o braço
para trás para manter o equilíbrio e levantou o queixo e a espada de
uma vez. — Em guarda!
— Acredito que já tivemos esta conversação antes. —
Murmurou ele. Mas também ficou em guarda.
Durante uns vinte minutos lutaram com ferocidade. Geoff não
lhe dava folga, sabia que era o melhor. Anaís era suficientemente
boa para dar-se conta de que ele não fazia uso de sua vantagem.
Mas, em realidade, sua única vantagem era sua altura, seu
alcance e o fato de que ela já estava cansada. Entretanto, a ofensiva
de Anaís não diminuiu. Arremeteu contra ele várias vezes e em cada
uma das ocasiões ele bloqueou sua investida e a atacou. Fez ameaça
de atacá-la em um flanco e logo foi ao pescoço. Ela o esquivou à
perfeição e depois se dirigiu para ele com uma rápida estocada, lhe
agarrando a manga. Assim continuaram, Anaís frequentemente na
defensiva, mas sem ceder nada.
E enquanto se moviam pelo polido chão de madeira de
carvalho, raspando-o e golpeando-o com os pés e chocando as
lâminas, ele se deu conta de que uma coisa que Rance havia dito era
verdade. Pelo menos naquele aspecto, ela estava tão qualificada
como qualquer um para ser um guardião. Nem um homem entre
cem, teria sobrevivido a seu arremesso.
Mas ele era esse homem entre cem... ou deveria havê-lo sido.
Durante um instante, baixou a guarda e ela o atacou por baixo,
para a artéria femoral.
— Attenzione! — Exclamou ela.
Mas as lâminas colidiram antes que pudesse terminar de
pronunciar as palavras.
— Oh, já o faço. — Respondeu ele, riscando círculos com o
florete e obrigando-a a retroceder. — Dá-te conta de que está
falando outra vez em italiano?
— Perdão. — Sorriu com malícia e se esquivou de novo. —
Mas, por isso vejo, entende-o.
— Sì, signorina.
Com as lâminas chocando-se furiosamente, fazendo um
estrépito som quase ensurdecedor, Geoff a fez retroceder lentamente
com movimentos pesados e precisos e, dada a crescente fatiga de
Anaís, muito efetivos. Ela fez uma ameaça e logo lhe atacou à altura
da bochecha, mas sua coordenação não chegou a ser perfeita. Ele
apanhou seu florete e o tirou de cima, jogando-a outra vez para trás.
No seguinte segundo ela cometeu seu engano. Fez uma rápida
retirada dupla, aproximando-se muito do grosso colchonete de
boxe. Tropeçou com o calcanhar na borda. Cambaleou para trás e o
florete lhe escapou, caindo no chão e fazendo um ruído metálico.
Aterrissou sobre o traseiro, com o braço do florete estendido, mas a
mão vazia.
Respirando pesadamente, Geoff cravou um joelho no chão,
entre os dela, e lhe pôs a lâmina sobre o ombro.
— Touché. — Disse ela entre ofegos.
— Non. — Replicou Geoff, atirando a arma a um lado. — Pas
de touché.
— Oh, não. — Cravou nele seus olhos negros com um olhar de
advertência. — Não te atreva a fazê-lo.
— O que?
— Não me conceda nem um ápice. — Ordenou-lhe, girando
sobre os cotovelos. — Maldito seja, nenhuma vez me deixe ganhar,
Geoff, ouve-me?
— Oh, pelo amor de Deus! — Ele caiu sobre seu quadril e o
cotovelo, frente a ela, e passou um braço pelo rosto para secar o
suor. — Não te dei nada, Anaís. Se tivesse estado descansada,
provavelmente teria me vencido.
Ela olhou para outro lado. Sua respiração estava se acalmando
enquanto tinha a vista perdida pela sala.
— Então, deixa que me recupere. — Disse finalmente. —
Começaremos de novo.
Roçou a bochecha com uma mão para fazer que voltasse a
olha-lo. Ela tinha perdido o laço do cabelo e seu cabelo se
derramava sobre o colchonete de couro.
— Anaís, o que ocorre?
Seus olhos brilharam.
— É que me sinto... prisioneira nesta casa. — Queixou-se. —
Frustrada. Tenho que fazer algo físico.
Talvez fosse sua oportunidade para lhe fazer uma oferta que
esperava que ela não rechaçasse.
Mas deixou passar e preferiu olhá-la nos olhos. O ar que havia
entre os dois crepitou com uma vibração sensual e mesmo assim ele
sentiu uma tristeza que o preocupava. Queria seduzi-la, sim. Mas
não assim. Ainda não.
— Anaís — Repetiu. — O que ocorreu?
— Por que tem que ter ocorrido algo?
Ela se sacudiu como se fosse se levantar, mas ele a impediu,
lhe enredando uma perna na sua.
— Querida, estivemos convivendo durante dias inteiros. —
Murmurou enquanto ainda lhe sustentava o rosto com uma mão. —
Acredito que sei reconhecer sua fúria desatada.
— Oh, esse é seu dom? — Murmurou ela, baixando o olhar a
sua boca. — A habilidade de colocar esse perfeito nariz anglo-saxão
nos assuntos de outros e chegar a uma conclusão?
— Até que esta missão tenha terminado querida, este assunto
é dos dois. — Respondeu, baixando a cabeça para a sua. Roçou-lhe
com a boca o pequeno montículo que tinha sob o olho.
Em resposta, ela o empurrou.
— Me deixe sozinha.
Mas ele não tinha vontade de cooperar. Sentia-se frustrado...
em mais de um sentido.
— Oh, acredito que terminamos com essa estratégia. —
Murmurou.
Se ela não falava, então domaria a esse animal selvagem.
Morria por sustentar essa chama contra seu peito, inclusive por
queimar-se com ela. E, de repente, o que mais convinha a Anaís, a
beleza assustadora de lady Anisha, e inclusive a ira de lorde De
Vendenheim... tudo deixou de importar.
Girou até colocar-se sobre ela, introduziu os dedos no cabelo
de sua têmpora e abriu a boca sobre a sua. Neste momento não
hesitou, mas sim a beijou da maneira mais carnal, profundamente,
na primeira investida e depois, impondo um ritmo lento e constante
que deixava claro o que queria dela.
Como se estivesse protestando, Anaís levantou o joelho direito
e o empurrou pelos ombros. Ele lhe apanhou as mãos com as suas
com decisão e as passou por cima da cabeça, sujeitando-lhe palma
contra palma enquanto continuava saboreando-a.
Tremendo debaixo dele, ela era como fogo e mercúrio de uma
vez: quente, vibrante e difícil de apanhar. Geoff desejava perder-se
em seu interior. Fazer que se rendesse a ele da forma em que uma
mulher se entregava a um homem. A cabeça estava começando a lhe
dar voltas ao respirar seu aroma e os testículos lhe estavam
esticando perigosamente.
Embaixo dele, ela se retorceu e fez um ruído de indignação,
lhe esfregando o pênis inchado contra o tecido das calças e
endurecendo-o até o limite.
Lhe apanhou a boca com a sua uma última vez e, a
contragosto, levantou a cabeça.
— Isso significa "para", amor? — Murmurou. — De verdade?
Embora lhe brilhasse os olhos, o desejo os tinha escurecido.
— Você pararia?
— Não de boa vontade. Mas sim, se a dama assim o desejar.
Ergueu-se e viu que Anaís estava tombada debaixo dele como
se fosse uma deusa lasciva. O decote da camisa estava aberto até o
esterno e seus cachos escuros brilhavam como mil diamantes
diminutos com o sol da tarde. Ao olhá-la, o coração lhe encolheu
com um desejo que não pôde compreender e teve a poderosa certeza
de que, pelo menos, nesse momento, seria capaz de fazer algo que
lhe pedisse.
Anaís não disse nada mais. Ele começou a passar o peso de
seu corpo ao outro braço, mas o brilho de satisfação no olhar dela o
deteve.
Amaldiçoou entre dentes, pressionou a frente contra a sua,
ainda respirando com dificuldade.
— Disse que queria o homem adequado por agora, amor. —
Disse com voz rouca. — E isso é o que te estou oferecendo. Quer que
te suplique?
— Não. — Sussurrou ela com voz misteriosa e sugestiva. —
Não quero que pronuncie palavras bonitas. Simplesmente, diz o que
desejas. E depois quero que seja você quem me faça suplicar.
Ia lhe deixar louco.
Estava seguro. Agarrou-a ainda com mais força e subiu as
mãos por sua cabeça, apanhando-a sob o peso de seu corpo.
— Anaís, quero te foder. — Disse-lhe. — Aí o tem. Está o
suficientemente claro? Desejo-te tanto que não posso respirar. E sim,
posso fazer que suplique. Conseguirei que ponha os olhos em
branco.
— Hmm. — Respondeu ela. — Isso sim que está claro. Segue
falando.
Lhe olhou a face, sua incrivelmente formosa face.
— Às vezes não posso dormir sabendo que está no quarto ao
lado. — Sussurrou. — Se dormir, sinto o calor de seu corpo em
sonhos. Sinto a pressão de seus seios em meu torso e seu cabelo
enredado em mim...
Ela o interrompeu com a boca, levantando a cabeça para beijá-
lo enquanto fechava os olhos, posando na bochecha suas pestanas,
impossivelmente negras.
Lhe soltou as mãos e deixou cair o peso de seu corpo nos
cotovelos, lhe embalando o rosto entre as palmas enquanto a
saboreava.
— Anaís. — Murmurou, lhe roçando a bochecha com os
lábios. — É preciosa.
— Não diga isso. — Replicou, lhe deslizando as mãos pelos
ombros até a parte baixa das costas. — Geoff, não tem que dizê-lo.
— Muito bem. Então, te demonstrarei isso. — Disse com voz
rouca, e a beijou de novo.
E o demonstrou com a língua e as mãos, lhe explorando a boca
lenta e docemente enquanto tomava com uma mão um seio
exuberante e perfeito, lhe acariciando o mamilo com o polegar.
Anaís suspirou de prazer e ele se levantou até colocar-se
escarranchado sobre ela, e depois tirou a camisa.
— Será melhor que feche a porta com chave. — Sussurrou.
— Sim. — disse ela, lhe percorrendo o peito com o olhar. —
Mas Geoff, eu...
Anaís se calou e engoliu em seco com dificuldade. Ele se
inclinou para voltar a beijá-la, enredando os dedos em sua gloriosa
cabeleira.
— O que é Anaís?
Ela fez uma careta.
— Passou muito tempo. — Disse. — E não sou muito... hábil.
Não como as mulheres à que está acostumado.
— Anaís, amor, uma mulher como você não necessita
habilidade. — Roçou-lhe a fronte com os lábios. — Para mim
também aconteceu muito tempo. Mas acredito que lembro como se
faz.
— Quanto tempo?
Ela o olhou com seriedade.
Ele pensou sobre isso e logo pôde recordá-lo. Era como se ela
tivesse deslocado todas as demais de sua mente.
— Uns meses, suponho. — Respondeu. — Nunca fui o tipo de
homem que mantém uma sucessão de amantes.
— Então, não há ninguém mais? — Perguntou com um débil
sorriso.
Ele negou com a cabeça.
— Não. — Murmurou. — E quando olho para você, pergunto-
me se alguma vez houve alguma.
— Mentiroso. — Disse, mas sorriu. Foi um sorriso lento e
sensual que sugeria que poderiam ter uma longa noite por diante.
Então levantou os braços. — Me dispa belo mentiroso.
Ele inclinou a cabeça e fez o que lhe pedia, despojando-a da
roupa devagar e com decisão, beijando-a sobre o rubor que apareceu
ao fazê-lo. Sua pele perfeita e perolada ia ficando descoberta
gradualmente, e ele se detinha para acariciá-la com prazer. Os seios
dela eram muito mais formosos do que recordava, apesar de que
não os tinha visto tão nus. Não lhe surpreendeu descobrir que tinha
umas pernas longas, mais musculosas que magras e que,
estranhamente, gostou disso.
A trança lhe tinha desatado por completo esparramava-se
como a seda entre suas mãos e lhe recordava da noite em que a
tinha segurado no Jolie Enjoe... recordava-lhe tudo o que então tinha
desejado. O que tinha temido. Que essa mulher era diferente.
Que poderia lhe custar caro.
O sol estava se pondo e Geoff se deu conta vagamente de que
tinha perdido a noção do tempo. Tirou com rapidez as calças e viu
satisfeito como ele abria muito os olhos com desconcerto, e depois
seu olhar voltava a esquentar-se.
Ele deu a volta e desceu para ela.
Anaís lhe aproximou os joelhos, balançando-o intimamente
enquanto jogava para trás a cabeça.
— Desejo-te. — Sussurrou. — Geoff, morro para te ter dentro
de mim.
A simplicidade dessas palavras lhe chegou ao coração. Beijou-
a na boca de novo, pensando que já podia morrer feliz por havê-la
beijado, e logo lhe deslizou os lábios para baixo, por seu flexível
pescoço. Beijou-lhe a clavícula e levou a boca para um mamilo,
sugando brandamente.
*****
11
Reunião social, serão, sarau ou de outro tipo, que ocorre à noite.
Não sabia. E, em realidade, não tinha muito sentido pensar
nisso. A vida era o que era, esperança e pena incluídas.
Geoff se vestiu em silêncio e ambos desceram as escadas.
Já na intimidade do dormitório de Anaís, ele a tomou entre
seus braços.
— Não sei quanto tempo mais poderemos estar juntos, Anaís.
— Disse-lhe, olhando-a nos olhos. — Acredito que não muito. E
sentirei tua falta.
— E eu de ti. — Sussurrou ela.
Mas não era tão singelo como isso. Já não.
Lhe pôs um dedo sob o queixo para fazer que o olhasse.
— Estaremos de volta a Londres muito em breve, se Deus
quiser. — Acrescentou. — De volta ao mundo real, com todas suas
expectativas.
— Sim. — Respondeu ela simplesmente.
No rosto dele se refletiu uma emoção indescritível. Então,
como se quisesse ocultá-la, inclinou a cabeça e a beijou de novo,
lenta e sensualmente, explorando as profundidades de sua boca com
a língua. Separaram-se com a respiração um pouco agitada.
— Sigo sendo o homem adequado no momento, Anaís? —
Perguntou-lhe ao ouvido com voz cálida e rouca. — E, se o for,
passará esta noite em minha cama?
— Sim.
Sim, pensou ela, e a seguinte, e a seguinte, e a que vem depois
também, se me convidar...
Mas era uma ideia muito tola.
Geoff tinha uma vida em Londres a qual retornar.
E o destino tinha outros planos para ela.
Capítulo 14
inimigo."
*****
Geoff retornou a sua cama e ficou sentado um momento.
Apoiou os cotovelos nos joelhos e esperou que Anaís voltasse. Podia
sentir uma emoção forte a seu redor, muito diferente ao desejo.
Esperava que não fosse arrependimento. Inclusive a aversão, em sua
opinião, era melhor que isso.
Talvez estivesse equivocado. Não era especialmente hábil no
que se referia às emoções de Anaís. Fechou os olhos e aspirou o que
ficava de seus aromas mesclados, recordando a noite. Os suspiros
sussurrados. A risada. A deliciosa intimidade. Reviveu cada
momento até que por fim ouviu a água da banheira saindo pelo ralo.
Mesmo assim, ela não retornou. E quando soou o débil estalo
do fecho ao abrir-se e a porta não se abriu, soube que não pensava
em voltar.
Algo lhe encolheu dentro do peito.
Tinha suposto...
Ah, mas isso era insensato, não? Passou a mão pelo rosto,
arranhando pensativamente a barba de um dia, e se deixou cair na
suavidade da cama. Agora que o pensava à luz do dia, agora que
seu corpo estava satisfeito e sua mente, mais racional, tinha que
admitir que, em realidade, nada tinha mudado entre eles. Mas a
tinha agradado. Nesse aspecto, estava satisfeito.
Fizeram amor três vezes: a primeira, de forma um pouco torpe
e vacilante enquanto aprendiam os desejos mais íntimos um do
outro e a segunda, de maneira lenta e deliciosa. Tinha posto as
palmas das mãos nos ombros, investindo, provocando e
apaixonando-a com o desejo e depois a tinha posto em cima dele
para fazê-la baixar sobre seu corpo. Baixando cada vez mais, até seu
coração, temia.
Tinha exultado em ver como Anaís jogava para trás a cabeça e
a tinha atravessado com seu membro suspirando. O comprido
cabelo dela fazia cócegas nas suas coxas e sua presença enchia as
sombras de um quarto que só umas horas antes, lhe tinha parecido
mais frio.
Mas a terceira vez, nas primeiras horas da madrugada,
quando ele a tinha virado de costas e a tinha montado sem dizer
nada, Anaís tinha se elevado para ele como a lua e as estrelas se
elevavam no céu noturno. Deliciosamente. Infalivelmente. Como se
fosse o mais natural do universo. Como se os dois se conhecessem
da maneira mais íntima e perfeita possível.
Mas poucas coisas eram perfeitas, e menos coisas ainda, eram
permanentes.
Afundou o rosto nos lençóis, estendeu um braço para o
travesseiro de Anaís e imaginou por um momento que ela ainda
estava a seu lado, que suas longas pernas ainda estavam
entrelaçadas com as suas e que sua selvagem juba negra permanecia
sobre os lençóis, estendida como seda tecida. Inspirou seu aroma.
Ela sempre cheirava a algo intenso e doce, como uma estranha
combinação de água de rosas e anis. Como sua mesma essência.
Mas nesse momento, tudo isso eram só lembranças. E não era
provável que se convertessem em algo mais, dado o seu
desaparecimento no banheiro. Aquela noite ele tinha sido o que ela
chamava de o amante adequado no momento, uma expressão que ele
tinha começado a odiar. Apesar disso, as lembranças de sua calidez,
sua risada e seu aroma teriam que lhe bastar por agora.
Reprimiu uma repentina e irracional onda de frustração.
Tinham por diante um dia a que enfrentar e um trabalho importante
a fazer. Fosse o que fosse o que teria que esclarecer entre Anaís e ele,
porque o esclareceriam, teria que esperar. Mas temia que ela tivesse
que renunciar ao amante de seus sonhos e contentar-se com algo
diferente.
Não, não estava seguro de deixá-la partir tão alegremente
como ela esperava.
E talvez o destino tampouco o permitisse.
Sempre podia haver graves e inesperadas consequências de
uma longa e avivada noite de paixão. Era algo do que não tinham
falado entre todos os suspiros e risadas, apesar de sua reputação de
ser sempre muito precavido. Era um descuido no que era resistente
a pensar nesse momento.
Não, por agora, tinha assuntos prementes que atender, todos
eles relacionados com os misteriosos acontecimentos que se
desenvolviam do outro lado da rua. Mas antes de ocupar-se de
Lezennes, havia um par de cartas urgentes que devia escrever, e a
primeira seria para sua mãe porque, segundo sua experiência,
quanto antes dissesse, ou não, coisas difíceis, antes elas ficariam
para trás.
Com um só movimento, Geoff se ergueu e saltou da cama.
Dirigiu-se imediatamente ao puxador para pedir água quente.
Talvez Anaís tivesse se armado de coragem para tomar um banho
frio, mas ele tinha um árduo dia pela frente e, nesse momento, o frio
que sentia no coração ameaçava durar muito tempo.
*****
*****
*****
*****
*****
Momentos depois, Geoff passeava com indiferença pela
prancha de desembarque do navio francês. Seguiu caminhando
durante outros cinquenta metros e depois deu a volta e voltou sobre
seus passos. A débil luz da tarde, podia-se ler o nome do navio, que
estava escrito de maneira grosseira no escudo.
Le Tigre Doré.
*****
recebê-lo."
12
O teatro com o casal de bonecos Punch e Judy é uma tradição britânica pelo menos desde o século XVII. A história varia um pouco, mas quase sempre
envolve Mr. Punch não conseguindo cuidar do bebê do casal, e aí levando pauladas da esposa Judy, até que chega um policial para resolver o caso.
interrompidos. Uma enorme explosão procedente da parte inferior
ressonou por todo o navio, como se tivesse explodido algo na adega.
Com o coração na garganta, Geoff correu para a escotilha,
agarrou a borda com as mãos e deixou-se cair. Uma vez embaixo,
correu para o camarote de popa, com Anaís atrás dele.
Do outro lado do mastro, deteve-se em seco. Navarre, o
homem com a cara marcada de varíola, estava caido no estreito
corredor com os braços e as pernas estendidos. Estava coberto de
lascas de madeira e tinha uma perna retorcida debaixo do corpo. A
porta do camarote tinha um buraco do tamanho de uma bola de
críquete.
Anaís saltou por cima do corpo.
— Étienne! — Gritou.
Colocou uma mão pelo buraco e empurrou algo. O objeto
golpeou o chão com um estrépito barrulho e ela abriu a porta. Com
os olhos muito abertos, Étienne Thibeaux seguia com as costas
contra a parede, sustentando a pistola.
Imediatamente, deixou-a cair.
— Bonjour, madame. — Disse. — C'est fini. Está tudo acabado.
Geoff levantou o olhar por cima do contrabandista atirado no
chão. Em cima no beliche, Charlotte estava de joelhos, encolhida de
medo, e Giselle se encontrava atrás dela, como se quisesse protegê-
la. Charlotte caiu quando viu Anaís, levando uma mão ao coração.
— Oh, graças a Deus! — Gritou. — Oh, graças a Deus!
Geoff se ajoelhou junto ao corpo e pôs dois dedos no pescoço
do Navarre. Étienne se aproximou cautelosamente, com
curiosidade.
— Está morto, monsieur? — Perguntou com calma.
— Não. — Respondeu Geoff, enquanto o apalpava em busca
de uma ferida. — Não, acredito que só golpeou a cabeça.
— Oh. — Étienne pareceu decepcionado. — Tant pis! Não
importa.
Capítulo 2 1
*****
Sentindo-se de repente incômoda, Anaís observou Sutherland
enquanto partia. Ainda lhe dava voltas a cabeça pelo que o prior
tinha feito. Isso, por cima de tudo, desorientava-a muito. Quase se
sentia como se a tivessem disparado com um canhão.
Geoff e ela tinham passado quase três dias em Essex,
informando a Sutherland e ao senhor Henfield sobre a missão,
reunindo Charlotte com seus pais e resolvendo as dúvidas de
Giselle. E, agora, a missão tinha terminado. O perigo tinha passado.
Era como se tudo tivesse mudado entre eles.
Então Geoff lhe segurou a mão e lhe deu um firme apertão,
dizendo que tudo voltaria a estar bem.
— Vamos, amor. — Sussurrou. — Vamos para casa.
Frente a eles, outra locomotiva estava soprando e sacudindo-
se enquanto entrava na estação. Deteve-se e a maré de gente voltou
a mover-se, nesse momento, em direção contrária. Anaís tomou o
braço que Geoff lhe oferecia enquanto ele apanhava a bagagem de
ambos com uma mão, levantando-os como se não pesasse nada.
Só lhes levou uns momentos instalar-se no compartimento e
guardar a bagagem de mão. Ao longo de toda a plataforma, as
portas se fecharam com um ruído surdo. A locomotiva deu duas
violentas sacudidas que enviaram Anaís de costas contra o assento.
Passou os últimos cinco dias com os nervos à flor da pele, e agora
sentia como se seu corpo se encontrasse em um estado constante de
alerta.
Geoff lhe pôs uma mão sobre as suas.
— Às vezes é assim. — Disse em voz baixa, como se tivesse
lido os pensamentos. — Logo estaremos em Londres e a vida voltará
para a normalidade.
Disso ela precisamente tinha medo, de retornar para casa
como partiram, como desconhecidos receosos, cada um com sua
própria vida. Tinha medo de que os dias que tinha passado com
Geoff tivessem sido algo fora do tempo, um extraordinário
interlúdio que não cabia na realidade... nem no espaço. Que o desejo
que sentia por ela fosse somente isso, e nada mais, e que a claridade
que por fim tinha encontrado sobre a vida, o amor e os sonhos que
deixava murchar se desvanecesse conforme se afastasse de Bruxelas.
Suas dúvidas tinham aumentado pelo fato de que, desde que
tinham fugido da casa de Lezennes, Geoff e ela não tinham tido nem
um momento a sós, deram um apaixonado beijo na escuridão a
bordo do Jolie Enjoe. Durante dias inteiros tinham vivido cotovelo
com cotovelo e tinham aprendido a confiar o um no outro. Tinham
trabalhado juntos, embora às vezes a contragosto, para conseguir
um objetivo comum. E tinham se convertido em amantes com uma
paixão extraordinária e febril.
E então, tão repentinamente como tinha começado, acabou-se.
E ela sabia bem que as paixões frequentemente se consumiam.
Mesmo assim, sentia-se como se fosse uma pessoa completamente
diferente. Muitas das coisas que acreditava sobre ela mesma tinham
mudado, dando a volta por completo em seu mundo bem
organizado. E agora, aquilo pelo que tinha trabalhado tanto, a
iniciação na Fraternitas Aureae Crucis, era dela. Então, por que se
sentia apática?
O trem vibrou, chiou e começou a mover-se. Anaís viu que a
plataforma se afastava entre uma mistura de vapor e fumaça.
Afastou a vista da janela e se deu conta de que Geoff lhe estava
estendendo uma mão.
— Vêm aqui. — Disse ele. Como todas suas ordens,
pronunciou-a com suavidade, mas firmemente.
Anaís não tinha vontade de discutir. Sentou-se em frente, no
assento que havia ao lado dele, enquanto o trem ganhava
velocidade e começavam a ver passar a campina.
Geoff a rodeou com um braço e lhe fez pôr a cabeça em seu
ombro.
— Anaís de Rohan. — Disse em voz baixa. — Te amo.
Ela se esticou entre seus braços.
Geoff inclinou a cabeça para olhá-la.
— O que? — Disse. — Não esperava que isso mudasse, não?
Parece uma prisioneira no caminho ao patíbulo de Tyburn.
Ela o olhou fixamente, sem pestanejar.
— Passamos extraordinários dias juntos. — Disse — Mas
agora temos que retornar às nossas antigas vidas.
Geoff não disse nada; ficou olhando pela janela uns
momentos. Depois, acrescentou:
— Não estou seguro de que possa retornar a uma vida em que
você não esteja. Mas se não sentir o mesmo, aceitarei-o.
— De verdade?
A ela lhe encolheu o coração.
— Sim, mas só o tempo suficiente para te cortejar
devidamente. Estou esperando o momento oportuno, Anaís. Vou
para casa fazer o que me pediste para fazer. E depois, pretendo te
ganhar trabalhando duro. Vou assediar seu coração. Não vou aceitar
um não por resposta.
— Geoff. — Disse ela, sentindo de repente a boca seca. — Não
disse que não. Não esse tipo de não. Tenta entender a culpa com que
tive que viv...
Ele a interrompeu ao lhe pôr um dedo nos lábios.
— Shh, Anaís. Sei. E pretendo esclarecer coisas com a dama
em questão assim que descer deste trem. Quero explicar-lhe eu
mesmo. Tudo estará feito antes do entardecer, asseguro-lhe isso. E,
provavelmente, ela se sentirá aliviada.
Anaís não sabia o que dizer. Queria Geoff, mas o queria às
custas de outra mulher?
Para sua vergonha, sim. Afastou o olhar e engoliu em seco.
Tinha que confiar em seu bom julgamento e em que Geoff tinha
razão. E que sua nonna tinha estado... bom, equivocada. Mas estava
segura de seu amor. De sua escolha. E agora tinha que viver sua
vida: era sua oportunidade e devia aferrar-se a ela, porque Geoff era
um homem por quem valia a pena esperar.
Viajaram em silencio durante um bom momento, até que
chegaram a seguinte parada e a maré de passageiros e malas
começou de novo. Geoff virava a cabeça de vez em quando para
olhá-la, mas não dizia nada, limitava-se a sorrir. Então as portas
voltaram a fechar-se com estrépito barrulho, uma depois da outra, e
começaram de novo os assobios e as nuvens de vapor.
Geoff posou os lábios na têmpora dela.
— Temo que iremos demorar bastante para chegar a seguinte
estação. — Disse-lhe.
— Oh. — Respondeu ela. — Isso... é promissor.
— Sim? — Geoff levantou a cabeça, perplexo. — Por quê?
— Porque estava me perguntando. — Disse Anaís em voz
baixa. — Como seria fazer amor em um trem em marcha...
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estações."
Fim