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Rio de Janeiro
2009
Maria Fernanda Garbero de Aragão Ponzio
Rio de Janeiro
2009
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
CDU 82.085
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação
__________________________ __________________
Assinatura Data
Maria Fernanda Garbero de Aragão Ponzio
Aprovada em 23/03/2009.
Banca examinadora: __________________________________________________
___________________________________________________
Prof. Dr. Guillermo Francisco Giucci Schmidt (Orientador)
Instituto de Letras – UERJ
___________________________________________________
Profa. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuñez (Co-orientadora)
Instituto de Letras – UERJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Italo Moriconi Junior
Instituto de Letras – UERJ
___________________________________________________
Prof. Dr. Andrea Lombardi
Faculdade de Letras – UFJR
___________________________________________________
Profa. Dra. Terezinha Maria Scher Pereira
Faculdade de Letras – UFJF
Rio de Janeiro
2009
A Eduardo Ariel, pues:
“todas las parcelas de mi vida tienen algo tuyo”
E aos que nascerão de nossas utopias.
AGRADECIMENTOS
A meu Orientador, Prof. Dr. Guillermo Francisco Giucci Schmidt, por haver
acreditado em meu projeto, respeitado meu desejo e orientado este estudo. Sua
interlocução e sua compreensão constantes me deram a força necessária para o trajeto
que, embora árduo, sempre foi compartilhado.
À Professora Doutora Carlinda Fragale Pate Nuñez, minha Co-orientadora, pelos
incontáveis momentos de diálogo, atenção e orientação sobre a abordagem do Trágico,
conceito fundamental à compreensão das Madres. Seu estímulo e seu apoio foram
matérias essenciais em meu percurso.
Às Professoras Doutoras da Universidade Federal de Juiz de Fora, Terezinha
Maria Scher Pereira, Jovita Maria Gerheim Noronha e Silvina Liliana Carrizo, pela
participação, tão companheira e solidária, no esboço do projeto que foi a base dessa
tese.
À Ines Vázquez, Reitora da Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo, às
integrantes da Asociación e da Línea Fundadora, pelas entrevistas concedidas. Ao
professor Raúl Carrizo, pelos interessantes momentos de discussão sobre esse tema tão
caro a nosotros.
Aos companheiros de doutorado, aos funcionários da Pós-Graduação em Letras
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que me ajudaram neste trajeto.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, por conceder-
me, por um ano, a bolsa que viabilizou a continuidade desta pesquisa.
À equipe da Escola SESC de Ensino Médio, por me permitir conciliar meus
projetos discentes à minha prática docente.
Aos meus familiares, que entenderam minhas ausências, dando-me o incentivo
necessário à construção deste projeto. A minha avó Emília e ao meu avô Washington
Garbero, amor em vida, força na memória e no legado. A Deus, firmeza e amparo.
Aos amigos Cristiano Mirandella, Ulício Pinto, Mabel Ciappini, Valeria
Bullaude, Stella Maris de Gasperi e Inah Brider, pela crença de que podemos juntos
vencer moinhos de vento.
A Eduardo Ariel Ponzio, meu companheiro, esposo e amigo, presente em todas
as linhas que escrevem a história desses quatro anos.
Às Madres de Plaza de Mayo, por tudo que aqui se encerra e inicia.
No se sabe nunca cuándo se nace: el parto es una simple convención
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 10
INTRODUÇÃO
Hebe de Bonafini
1
O nome desse movimento será preservado em sua língua original, o espanhol, para que se mantenha a imagem
semântica que dele provém, assim como os termos que compõem o sintagma Plaza de Mayo, utilizado em referência
à Praça de Maio neste estudo. A tradução dos textos é de nossa autoria.
2
Entendida como um conceito artístico, a performance passa a ser reconhecida como meio de expressão
independente a partir da década de 70, com o surgimento de espaços, museus e escolas dedicadas a essa arte. Em
nosso estudo, consideramos esse conceito como um importante fator no movimento das Madres, pois responde à
proposta artística, ao compor o desenvolvimento de uma sensibilidade e colocar questões e novos pontos de vista, a
respeito do papel do corpo na composição dessa personagem desolada pela ausência do filho.
11
aspectos presentes nessa elaboração do sujeito que se reinventa para suportar o dever
assumido: viver para relembrar a dor.
Os aportes teóricos provenientes do enclave da Sociologia, da Psicologia, da
Geografia Cultural e da História constituem um importante arcabouço no diálogo dessas
áreas disciplinares com a Teoria da Literatura, ao esboçar um viés metodológico
fundamental para a construção de uma análise das heterogenias e estratégias escritas na
composição do ator político coletivo Madre.
Numa perspectiva comparativa, a história e a dimensão social das Madres de
Plaza de Mayo permitem paralelos com ficções literárias de consagrada envergadura; os
mitos trágicos, nos quais situações de colapso social deflagram o escândalo pela ação de
mulheres obcecadas por suas obrigações em relação a seus queridos irmãos e filhos.
Antígona (442 a.C), de Sófocles, e As Troianas (415 a.C), de Eurípides, podem ser
vistas, por conseguinte, como textos dramáticos precursores de outras realidades escritas
no século XX. Diante dessa transtextualidade 3 , a peça A Mãe (1932) 4 , de Bertolt
Brecht, representa uma importante diferença no caminho da personagem feminina rumo
à conscientização política, capaz de oportunizar a pesquisa acerca de aspectos como
constituição, permanência e ressignificação do movimento feminino argentino.
O estudo do cenário do qual as Madres emergem como ator político,
problematizado por questões estabelecidas pelo diálogo com a Sociologia e a Geografia
Cultural, é uma proposta à qual nos dedicamos, a fim de entender a cartografia de um
espaço que conjuga dominação e poder, simultaneamente, com a resistência e o
enfrentamento. Nesse cenário, onde o arquivo do imaginário mítico de uma nação se
projeta, mulheres da esfera privada invadem a cena para desestabilizar os poderes
vigentes e tentarem reescrever a história fragmentada pelos anos ditatoriais.
Com efeito, uma simbólica esquina entre luta e resistência se configura nesse
espaço construído pelas Madres, ao transbordar fronteiras e espraiar testemunhos hábeis
à construção de novos sentidos para o saldo deixado pela opressão do Estado militar.
Compreendida como uma questão fundamental, a maternidade é o mote possível para o
nascimento de atores políticos que se formam a partir da tragédia compartilhada. Dessa
3
Referimo-nos aqui, com o termo transtextualidade, à superação dos enquadramentos históricos e da historiografia
das formas literárias. Através da irrupção de formas de expressão e de padrões de sensibilidade independentemente
de seus registros de origem, o peculiar comportamento das Madres se projeta num tempo trans-histórico, capaz de
dimensionar o que aí existe de local e universal, atual e perene, da ordem particular da maternidade ferida, mas
também da latitude mais ampla do humano.
4
A peça é baseada no romance homônimo do escritor russo Máximo Gorki, escrito em 1907. Neste primeiro
momento, a escolha pela obra do teatrólogo alemão é por este se tratar de um texto dramático, assim como as
tragédias presentes em nossa análise.
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5
Diferente da teoria acerca dos “não-lugares”, do antropólogo francês Marc Auge (AUGÉ, Marc. Não-lugares:
introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. (Coleção Travessia do Século)),
para designar um espaço de passagem incapaz de dar forma a qualquer tipo de identidade, nossa análise é baseada na
etimologia proposta para vocábulo “utopia”, proveniente do grego ou-topos, cujo significado, neste momento, será
empregado para definir um lugar marcado pela impossibilidade provocada pelo veto à voz reclamante.
13
Justamente, por não se haver calado e por ter construído uma história na
contramão do poder é que, com seus lenços brancos, essas mulheres conseguem ocupar
a principal praça de Buenos Aires, semanalmente redesenhada e reescrita por elas.
Algumas falam muito, outras falam menos, mas todas têm a história de si como via de
resistência, pois é através de seus discursos, escritos literários e atos performáticos, que
as feridas mais escondidas são expostas, mostrando a vergonha a que há tantos séculos
as sociedades mais distantes e diferidas do planeta são submetidas a formas de
dominação e abuso de poder.
Seguir lutando e tentando 6 reconstituir a memória indicia o caráter durativo
desse empreendimento, no qual a luta é um longo caminho a ser percorrido e a memória
sempre é atualizada e reelaborada. Logo, a composição desse ator político coletivo nos
propõe um olhar sobre o relato como uma alternativa utópica. A resistência passa a
configurar a possibilidade de um caminho que nos remonta à metáfora de Scherazade,
representação literária que ilustra a necessidade narrativa para seguir com vida. Desses
relatos, surge a urgência de uma voz que implora para ser ouvida.
Num contexto como o do Estado militar, as Madres, assim como a personagem
de As mil e uma noites, precisam resistir “aos ditames do rei” (PIGLIA, 1994, p.63). No
panorama ditatorial argentino, o “rei” é o portador de imagens presentes em políticas
que privilegiam o ideal de homogeneização, ao fazer com que desapareçam de sua
história os sujeitos que não condizem com o projeto de nação arquitetado sob silêncio e
temor. Diante disso, o gênero escritural do testemunho emerge como uma possível saída
de diálogo, em que o relato da experiência ganha um lugar privilegiado nos estudos da
academia.
Essa renovação temática e metodológica remete-nos a Richard Hoggart7 , em The
uses of Literacy (1957), livro pioneiro acerca das questões cotidianas, no qual há o
esboço de “um programa de pesquisas futuras que dizem respeito não só aos estudos
culturais, como também às reconstituições do passado” (SARLO, 2007, p.17).
Nesse percurso investigativo, valorizar a escrita testemunhal das Madres de
Plaza de Mayo é inserir no debate acadêmico personagens que, ao alcançarem a
6
Em relação ao processo de conformação e permanência das Madres, em muitos momentos parece-nos oportuna a
noção proveniente do gerúndio, uma vez que essa forma nominal indica uma progressividade da ação.
7
Sobre o autor, ainda é válido mencionar que, ao trabalhar com suas lembranças e experiências de infância e
adolescência, sem uma abordagem fundamentada teoricamente, Hoggart teve sua obra advertida a respeito de sua
legitimidade, uma vez que a experiência autobiográfica não constituía, por si só, um protocolo de observação
metódica naquele momento, como apresentado por Jean-Claude Passeron, em La culture du pauvre, de Richard
Hoggart, Paris, Minuit, col. Le Sens Commun, 1970, coleção dirigida por Pierre Bourdieu. In: SARLO, 2007, p. 121.
14
“Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o
dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida,
não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não
podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício
da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer
também, em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras,
estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de
enxergar com toda a ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode
perceber” (FOUCAULT, 1970, p. 10).
8
Alguns exemplos são o plano econômico “plata dulce” ; o projeto de “nação vitoriosa”, vencedora da Copa do
Mundo de 1978, e a Guerra das Malvinas, em 1982, além dos lemas: “Há que esquecer, não saber”, “Não te metas” e
“Por algo será”, como justificativas aos operativos militares.
Sobre algumas expressões presentes nesta nota, é válido aclarar a que se referem:
“Plata Dulce”: plano econômico desenvolvido pelo ministro da economia durante 1976-1981, José Alfredo Martínez
de Hoz. Tal estratégia financeira promoveu congelamentos salariais das classes menos favorecidas, ao mesmo tempo
em que abria o mercado para o pedido de créditos internacionais. Além do alto índice de inflação a que o país se viu
submetido nesta época, ressalta-se também o enfraquecimento da indústria argentina.
“Hay que olvidar; no saber”, “No te metas” e “Por algo será” são expressões populares usadas na época da ditadura e
que ainda hoje perduram no vocabulário argentino.
16
“Na opção pela recusa do Horror, não é apenas a Razão que se revela destroçada.
Também se destroça a concepção de nação enquanto reduto de identidades
essenciais a serem isoladas e preservadas através do extermínio de toda e qualquer
impureza interna ou ameaça externa. Destroça-se, ainda, a concepção de história
como progresso, como processo contínuo de conquista do futuro, de colonização do
acaso pela previsibilidade. Passa a ser possível, então, que se comece a difundir o
quanto há de inverdade na constituição da nação enquanto força simbólica e, como
conseqüência, do quanto há de manipulação no modelo aparentemente natural da
nação enquanto modelo concreto de organização social. Torna-se possível, assim,
passar a perceber as tradições nacionais como tradições inventadas; a nação como
narrativa” (SANTOS, 1997, p. 95, grifo do autor).
construção discursiva por elas empreendido, já que “a tarefa que a arte do relato
enfrentaria seria, então, oferecer restituição sabendo perfeitamente que toda restituição é
impossível, fazer do reconhecimento da impossibilidade de restituição o seu gesto mais
restitutivo” (AVELAR, 2003, p. 145).
Se restituir é algo impossível, quando se trata da velada morte do corpo
insepulto, o dever é vital para os que estão vivos. Através dos rastros que recuperam a
imagem de Antígona metabolizada na figura das Madres (mulheres que se devotam aos
seus familiares mortos), surge a proposta de reencontro com um tempo que não pôde ser
dito e que, no presente, requisita sua inserção numa memória escrita no gerúndio, com
verbos 9 que, timidamente, (re)escrevem a continuação meta-historiográfica da América
Latina durante um de seus momentos mais dolorosos.
Em Los abusos de la memoria (2000), Tzvetan Todorov discute a apropriação da
memória realizada pelas tiranias do século XX, ao abordar as falhas existentes na
história por questões de supressão, seleção e transformação. Nessa perspectiva, a cada
mudança de poder, a história é reescrita, e cabe ao leitor reconhecer e eliminar
invenções que não condizem com os fatos, os quais, muitas vezes, só sobreviverão
estrategicamente através dos relatos orais ou da poesia, percurso análogo ao que será
empreendido pelas Madres.
A narrativa de base testemunhal e as representações memorialísticas, então, se
configuram como uma importante premissa rumo à compreensão dessa força emergente
da dor. Insepultos os corpos, agora é das Madres a simbólica missão de levantá-los do
chão e os fazer renascer e caminhar em seus lenços brancos.
As oficinas literárias realizadas entre 1990 e 2000 10 , pelas integrantes da
Asociación Madres de Plaza de Mayo, são um exemplo desse intento. Iniciadas como
um projeto de encontro com a escritura, as oficinas oferecidas pelo escritor argentino
Leopoldo Brizuela representam uma possibilidade de transformação do páthos entoado
na Plaza em matéria poética. A reelaboração da ferida do sobrevivente em escritura
passa a ser compreendida como um desafio, no qual o literário surge como uma
proposta despretensiosa para dar forma às memórias daquelas que, neste momento, se
recriam como personagens de si mesmas, mesclando em seus textos a dramaticidade e o
testemunho.
9
Sofrer, chorar, temer e viver.
10
Esse período nos foi informado pelo idealizador do projeto, Leopoldo Brizuela, numa entrevista realizada em abril
de 2007, em Buenos Aires.
18
Desses momentos, são publicados cinco livros, a saber: Nuestros Sueños (1992),
A l’ombre de leur voix (1993), La vida en las palabras (1993), El lugar de reencuentro
(1995) e El corazón en la escritura (1997) 11 . Junto a essas obras, agregam-se à
produção literária das Madres a coleção Poemarios (1981) 12 e o compilado de textos e
pinturas, Pluma Revolucionária (2007), publicados antes e depois do período das
oficinas, respectivamente.
Para entender o percurso da personagem que escreve suas memórias e reelabora
a biografia do filho, para seu projeto de construção de legado, trabalharemos com três
momentos distintos desse encontro com o literário.
A coleção Poemarios é nosso ponto de partida, uma vez que representa um
importante momento para a elaboração discursiva empreendida por essas mulheres.
Fortemente marcada pela dor do desaparecimento e pela necessidade de denúncia, a
Madre que assina esses primeiros textos expurga sua chaga, o que faz com que esse
material seja fruto da tragédia, reelaborado em matéria poética na publicação de Nossos
sonhos. Como uma escrita da transição, o primeiro livro das oficinas traduz um plano
de construção biográfica que se edifica em O coração na escritura, marcando a
passagem que se anuncia na chegada para concretizar-se na despedida. Ao retornarem
com Pluma Revolucionária, dez anos após a publicação do último livro produzido com
a ajuda de Leopoldo, elas confirmam a imagem projetada no primeiro momento,
ratificam os processos de conscientização e engajamento, presentes em O coração na
escritura, e trazem à luz o novo impasse da personagem que escreve; como um ensaio
de despedida da cena pública, as Madres revivem suas narrativas e questionam o lugar
da memória na contemporaneidade.
Constituída por diferentes gêneros textuais, a literatura produzida pelas Madres
ajuda à compreensão de uma memória que se escreve com base na recuperação de uma
voz que por muito tempo foi interdita. Nesse panorama, o aspecto poético, a ficção, a
alusão e a elipse são importantes elementos mediadores entre a construção literária e a
realidade à qual elas se reportam. O tempo dessas narrativas é um passado
presentificado, revivido, verbalmente atualizado, capaz de compreender e imaginar o
11
Títulos traduzidos: Nossos sonhos, À sombra de sua voz, A vida nas palavras, O lugar do reencontro e O coração
na escritura. Em nosso estudo, trabalhamos com o primeiro e o último livro produzido nas oficinas. Nossa escolha
decorre do recorte de dois momentos fundamentais à compreensão do que hoje representa a conformação desse
legado ao revés, proposto discursivamente pelas Madres.
12
Publicado cladestinamente em 1981, a coleção (composta por três volumes) a que hoje se pode ter acesso é uma
versão fac-similar, lançada em 1985, dois anos após o término do regime militar.
19
futuro, que passa a ser idealizado numa perspectiva de transformação pela palavra do
testemunho e por sua relação com a possibilidade de justiça.
As narrativas que integram os livros escolhidos para nossa análise resgatam o
paralelo com os mitos trágicos e com o teatro de Bertolt Brecht, mais especificamente
em relação à peça “A Mãe”. A Madre, ator político que se transforma em personagem
de si mesma ao escrever suas memórias, no encontro com a literatura, revive embates e
adota posturas discursivas que a equiparam às protagonistas de Sófocles, Eurípides e
Brecht.
Assim como na simbólica passagem da mãe (desolada, marcada pela esfera
privada) à Madre (sujeito coletivo, inserido na esfera pública de contestação), no trajeto
de Poemarios a Pluma Revolucionária, podemos enxergar a necessidade de recriação a
que essa personagem se propõe, ao escrever sobre si, suas companheiras de movimento
e sobre aquele que, desde o primeiro dia na Plaza, renasce como o responsável pela
criação de um legado assumido, fruto do laço entranhável da maternidade. Ao dizer-se
parida por seu filho, essa personagem inverte a noção de herança e recria futuros
legatários: os esquecidos, aqueles pelos quais seus filhos não puderam concluir a luta
interrompida pela morte.
Logo, a compreensão dessas etapas nos demanda a abordagem de alguns
aspectos que estão presentes na composição da planta baixa desses textos. O contexto
do qual emergem as Madres e as transformações do cenário atual que elas ocupam
constituem o primeiro passo de nossa proposta, já que os primeiros livros surgem ainda
num contexto ditatorial.
Num segundo momento, buscaremos compreender alguns aspectos que
participam na conformação do movimento, entretanto, com o retorno da democracia,
eles se tornam inconciliáveis, culminado na separação do grupo em Línea Fundadora e
Asociación Madres de Plaza de Mayo. Mais que uma divisão interna, essa etapa traz à
luz novas elaborações discursivas a respeito do corpo insepulto e das relações das
Madres com o projeto de legado dos desaparecidos.
Esse ator político, ao assumir novas posturas, agrega em sua formação uma
imagem muito mais forte de engajamento e resistência. Essa imagem elaborada pelas
Madres da Asociación se chocará com as representações das antigas companheiras, as
quais permanecerão revivendo a dor de um sepultamento inviável. Presentes na
escritura, esses conflitos redimensionam o discurso e a recriação da personagem de si
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13
“O outro sou eu” é um dos lemas adotados pelas Madres da Asociación Madres de Plaza de Mayo, em referência
ao compromisso assumido com a memória dos desaparecidos.
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Apagam-se as luzes. Não há mais carros nem transeuntes perambulando pelas ruas.
Há só alguns automóveis: grandes, estranhos, medonhos. Nas casas, as pessoas dormem em
estado de vigília. O medo tira o sono e impede os sonhos outrora gritados pelas mesmas
avenidas, o silêncio e a escuridão transitam no vazio. Os telefones não mais comunicam;
eles espiam, grampeiam.
Amanhece ainda no escuro. Os grupos de jovens deixam de representar o fulgor da
adolescência; agora são agrupações potencialmente subversivas. Os operários que
reivindicavam um salário mais digno escondem-se embaixo de um teto de outono frio, sem
cobertas e esperanças. As salas de aula se emparedam de silêncio. Os ônibus, os bancos, as
filas, os dias e as noites funcionam da mesma maneira; cotidianamente. Tingidos pelo
medo, nada pode parar, nem os ponteiros do relógio.
A noite volta e a escuridão se confirma. Sob luzes apagadas, acendem-se
escandalosamente as ameaças. Golpeiam-se as portas. Ao contrário do sábado passado, não
é mais o filho chegando de madrugada sem chaves: são os arrestos domiciliares. Chutes,
pontas-pé, gritos, choro, medo. Capuz. O filho que sábado escutava Charly García e
cantava com seus amigos “hubo un tiempo que fue hermoso y fui libre de verdad, guardaba
todos mis sueños en castillos de cristal, poco a poco fui creciendo y mis fábulas de amor se
fueron desvaneciendo, como pompas de jabón” é brutalmente levado para algum lugar
desconhecido. A seus pais, é deixada apenas a esperança de que um dia ele volte,
assobiando, leve e livre, a mesma canção “te encontraré una mañana dentro de mi
habitación y prepararás la cama para dos” 14 .
Um, dois, três, trinta, quarenta, cem... os números de detidos em circunstâncias
parecidas aumentam. O dia se torna tão escuro quanto à noite. As escolas se tornam alvos
daqueles que espiam incansavelmente os que por ali circulam. Fecham-se os grêmios
estudantis, os sindicatos, as saídas. Acorrentados, os detidos gritam em centros de detenção
14
Trechos de “Canción para mi muerte” (1972), de Charly García.
22
clandestinos espalhados pelo país do medo com nome de mulher. Choques, violações,
golpes, mais choques e violações marcam a urdidura de um poder que chega e se instaura
sem pedir licença; arrombando portas e destruindo famílias, colecionando desaparecidos,
apagando identidades e, sem saber, promovendo o nascimento de personagens incômodas
ao projeto sinistro.
Quatorze mães vagam sem saber por onde mais caminhar. Ministério do interior,
organismos de Direitos Humanos, hospitais, delegacias, igrejas, jornais, e sempre a mesma
resposta: “Senhora, se levaram seu filho, por algo será”. Desobedientes, elas se olham e se
encontram nessa angústia. Em silêncio, elas voltam na semana seguinte. Agora numa
quinta-feira, pois entre elas havia uma que dizia ser sexta-feira um dia em que as bruxas
estavam presentes. Elas mudam o dia do encontro, para afastar o perigo da crença, e
desafiam o perigo dessa época: os militares. “Circulem, circulem”, gritam-lhes os homens
vestidos de azul, com armas e poder. Elas dão voltas. Voltas e reviravoltas, abrigadas pelas
pombas brancas que sobrevoam o chão da Plaza de Mayo.
Elas são muitas e caminham por muitos lugares. É preciso reconhecer-se. Seus
olhares são inequívocos, mas agora são centenas. Surge o lenço branco. A fralda guardada
como forma de carinho recebe o nome daquele que um dia a usou. Junto ao nome, a data do
desaparecimento. Surgem os pañuelos blancos. Eles não acenam à paz; eles são a ferida
exposta de um país vitimado pelas violências do Estado militar. Em silêncio, eles
estampam jornais de todo o mundo, delatando o trauma da mãe que nasce com a ausência
física do filho amado, seu mártir extraordinariamente invencível.
Nasce uma flor, sai um tímido sol que alumbra a escuridão: são as mães de
desaparecidos. A elas, acercam-se todos aqueles que com elas compartilham a dúvida e a
busca pela justiça. Um “anjo loiro” se assoma, chorando por um familiar detido-
desaparecido. A mãe, que abriga e acolhe, acredita no anjo caído dos quartéis militares 15 .
Dezembro de 1977: desaparecem as duas mães que formavam, com as outras doze
presentes àquela tarde de abril, a esperança de justiça. Desaparece a terceira mãe. Com
nome de flor, Azucena Villaflor de Vincenti é seqüestrada dois dias após de Mary Ponce e
15
Trata-se de Alfredo Ignacio Astiz, oficial da Marinha Argentina, que se infiltra no movimento das Madres.
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Esther Ballestrino. Três mães e só uma certeza: elas agora são perigosas, subversivas e
sobreviventes. Loucas, elas seguem questionando como “Las locas de la Plaza de Mayo”.
A voz investida pelo poder militar daquele momento responderá: “eu não creio em
16
desaparecidos, eu creio que estão mortos, e aos mortos não se procura, se chora” .
Entretanto, procura-se a memória, a dignidade, a verdade e, de certa maneira, refaz-se na
utopia. E, “se com vida os levaram, com vida nós os queremos” é o que responderão as
mães com sua mais brilhante desobediência.
Entre mates, aventais e xícaras de açúcar, elas se tornam íntimas dos heróis de seus
filhos. Petitórios, boletins, poemas, encontros e novas estratégias de discurso delineiam os
traçados de muitas que nem completaram seus estudos secundários. A esfera privada agora
é só mais um espaço pelo qual elas transitam. O espaço público, desestabilizado, recebe
uma figura coletiva que, integrada à sua cartografia, será conhecida como Madre de Plaza
de Mayo.
Lemas, enfrentamentos, uma sede. “Calle Uruguay” 694, 2º piso. Um endereço, um
espaço físico para dar lugar a tantas representações simbólicas criadas em pouco menos de
quatro anos de luta e resistência ao poder ditatorial. Ali, há poucas quadras da famosa
Plaza que lhes cedeu o nome, elas se reúnem e planejam o trajeto de seus lenços brancos.
Ali, também, seus filhos estampam cartazes e iluminam a jornada rumo a “nenhum passo
atrás”. Elas não retrocedem, não cedem, não fazem acordos. Elas marcham. Adiante, em
busca da luz que precisa ser acessa em meio à névoa e ao apagamento; imagens traumáticas
dos anos de violência do Estado militar.
O público se torna cada vez mais débil e fragilizado. Os dias do general parecem
contados. Parecem, pois ainda estamos em abril de 1982, e essa história só mudará um
pouco com o calor de 1983.
02 de abril de 1982.
Nesse país prateado, com próceres louváveis pela historiografia oficial, uma guerra de
sentidos estranhos e sem munição é declarada contra outro país com nome de mulher e
armas mais potentes: a Inglaterra entra como o pior adversário da Argentina, num jogo sem
vitória e sem segundo tempo, nas “Falkland Islands”. O saldo da estratégia de resgate
16
Texto original: “yo no creo en los desaparecidos, yo creo que están muertos, y a los muertos no se los busca, se los
llora”. Trecho do discurso proferido por Ricardo Balbín, dirigente da União Cívica Radical (UCR). “Aparición con
Vida”, D’ALOISIO, Fabián e NAPOLI, Bruno. In: 30.000 Revoluciones, 2007, p.8.
24
1.2. As personagens
17
Em 27 de outubro de 2007, a escritora Beatriz Sarlo afirmou, no programa “Roda Viva”, exibido pela TV Cultura,
que até as Madres de Plaza de Mayo corroboraram a estratégia desempenhada pelos militares, no tocante à Guerra
das Malvinas. Embora as considerações da autora sejam de grande relevância em vários momentos deste estudo, é-
nos claro que esse comentário não condiz com a reação das Madres naquele momento. Quando o páthos social era a
tragédia daquele confronto, elas vão à Plaza segurando pequenos bilhetes, onde aparecia escrita a frase citada, um ato
capaz de questionar e relembrar que os desaparecidos, assim como os combatentes, também são argentinos.
25
e hipóteses que advêm desses caminhos, começamos apenas com algumas premissas:
se, hoje, temos as Madres é porque houve desaparecidos e, se houve desaparecidos, é
porque houve terror. Logo, a compreensão do que representa esse movimento, bem
como da hipótese literária desempenhada por elas, requer um deslocamento temporal,
transportando-nos aos anos que precederam as estratégias empregadas pelo regime
militar instaurado na Argentina entre os anos de 1976 e 1983.
Com base na perspectiva da tragédia decorrente das violências praticadas pelo
Estado militar, é interessante que nos reportemos a Aristóteles, no capítulo IV da
Poética, onde é definido o conceito de tragédia a partir dos elementos que a compõem.
Segundo o filósofo, o terror e a compaixão são sentimentos fundamentais na
identificação do drama encenado para um público composto por pessoas que, ao
assistirem às dramatizações, sofrem com as personagens e sentem medo, tornando-se
suscetíveis ao sofrimento por um mal igual àquele representado.
Com efeito, para que ocorra a kátharsis, que consiste na purgação dos
sentimentos de terror 18 e compaixão por parte dos espectadores, são necessárias coesas
construções que formarão as partes da tragédia. Para tal empreendimento, a elaboração
das personagens é de extrema importância, pois, concomitantemente, o herói trágico
deve apresentar um caráter elevado e ser propenso ao descomedimento. Também é
preciso que ele se encontre numa situação intermediária; não sendo demasiadamente
benevolente, nem excessivamente perverso. A compaixão, assim, emerge do sentimento
provocado por um homem infortunado perante um fato que é apresentado como justo,
todavia, é percebido como injusto, e o terror nasce do reconhecimento de algo ocasional
que pode acontecer com qualquer um, com alguém como nós.
Centradas na identificação com o público, as tragédias são arquitetadas
cuidadosamente, tramando personagens e ações verossímeis, porque, sendo como nós,
são melhores que nós; pensando como nós, respondem com mais autenticidade e mais
intensidade que nós aos fatos. A mudança de situação (da normalidade para a crise)
ocorre com o erro do herói, quem em sua hamartía 19 migra do estado de felicidade para
o desespero que o conduz ao infortúnio, à catástrofe final. Frente à busca pela solução
18
Lessing, ensaísta e dramaturgo do século XVIII alemão, “corrige” a compreensão da definição aristotélica da
tragédia, e demonstra, na Dramaturgia de Hamburg (1767-1769), que o que Aristóteles chama de “phóbos” significa,
na verdade, medo (XXa parte). Mantemos aqui o sentido tradicional e corrente que consagrou a teoria aristotélica,
por coincidir com o período político terrível de que se originam as Madres.
19
Termo grego usado para designar o erro que pode decorrer da própria capacidade intelectual, mas se origina de
algo externo, que oblitera a visão, e faz o sujeito “errar o alvo”.
26
20
O prazer trágico é um dos fenômenos mais complexos: inclui prazer intelectual (pelo esquema perfeito que leva o
homem justo ao infortúnio), prazer estético, prazer psicológico e, entre outros sentimentos que seria ocioso aqui
mencionar, prazer pela certeza de que a encenação não passa de ficção.
21
Lessing alerta, na “Septuagésima quinta parte” da Dramaturgia de Hamburgo (1769), que espectador experimenta,
na tragédia, compaixão por suas próprias faltas. Em suma, sofre por ele próprio, simulado no outro que vê em cena.
22
Militar e presidente nos períodos entre 1946 -1955 e 1973 - 1974
23
A respeito da relação entre estas duas marcas terríveis da historiografia argentina, é interessante que nos
reportemos a Ulisses Gorini, autor de La rebelión de las Madres. Segundo este autor, “mais além de estimáveis
27
diferenças, é possível afirmar que ambos os momentos tentaram e conseguiram consolidar um sistema e que ambos
os sistemas tiveram sua certidão de nascimento num genocídio” (GORINI, 2006, p. 37).
24
Conhecido como “La Noche de los Bastones Largos” (A noite dos Cassetetes), este momento representou o
desalojamento por parte da Direção Geral de Ordem Urbana da Polícia Federal Argentina, em 29 de julho de 1966,
de cinco faculdades da Universidade de Buenos Aires (UBA).
28
25
O nome deste momento provém da cidade onde ocorreram os atos de protesto que marcaram os últimos dias de
maio de 1969. Situado no centro do país, o estado de Córdoba, cuja capital tem o mesmo nome, é um dos estados de
maior renda econômica da Argentina, como Santa Fé, lugar de onde proveio o Rosariazo, nome também motivado
pela cidade da qual se originou, Rosario.
26
Fundado pelo próprio Juan Domingo Perón, o Partido Justilicialista é conhecido como “Peronismo”, e representa
um partido importante para o contexto político argentino, em decorrência do número de presidentes eleitos, entre eles
Carlos Menem, Nestor Kirchner e Cristina Kirchner.
27
Lopez Rega também é conhecido como “El Brujo”, este epíteto advém de anedotas a respeito de suas crenças
esotéricas, seguidas pela presidente Isabel Perón.
29
Os primeiros dias do outono de 1976 poderiam ser narrados com muitos olhares
e linhas. A alegoria, como a definiu o filósofo alemão Walter Benjamin, em Origem do
drama barroco alemão (1984), explica em muitos aspectos os caminhos possíveis às
estratégias discursivas utilizadas no contexto de temor, instaurado após o golpe militar
argentino.
28
Respectivamente, um grupo de esquerda que atuava dentro do partido peronista e outro de linha marxista.
29
Não é fortuito aqui lembrar que a primeira concepção de orquestra se liga ao espaço circular onde o coro do teatro
grego circulava e no qual se projetavam as ações catastróficas recitadas pelos atores.
30
Em prólogo escrito para este célebre ensaio, Sérgio Paulo Rouanet argumenta a
respeito do uso da alegoria por autores imersos em contextos de impasse e
impossibilidade narrativa. Em suas palavras, o alegorista arranca o objeto do seu
contexto. Mata-o e o obriga a significar. Esvaziado de todo brilho próprio, incapaz de
irradiar qualquer sentido, ele está pronto para funcionar como alegoria. (ROUANET,
1984, p. 40).
Ao silêncio imposto, o caminho da alegoria se torna uma forte opção à
sobrevivência de narrativas produzidas nesse contexto traumático. É também o que
tornará possível que a memória dessa “época distinta” seja encontrada em músicas,
poemas, romances, filmes, peças de teatro, manifestações em que a perspectiva retórica
da sinédoque viabiliza o aparecimento de traços capazes de conduzir ao testemunho.
Em percursos narrativos muito distintos, decorrentes da vivência e da
experiência do trauma, podemos ter acesso aos fatos que sucederam e marcaram os
procedimentos desenvolvidos pelo Processo de Reorganização Nacional. Frente à
perspectiva proposta pela alegoria, se narrar o trauma é algo que se torna inviável por
sua inverossimilhança, é através de elaborações alternativas de discurso que
encontramos textos nos quais a memória dessa época pode ser lida, como os de Rodolfo
Walsh, Juan Gelman, Ricardo Piglia, entre outros escritores que também se propuseram
a esse percurso narrativo. Além dos muitos romances e poemas publicados durante e
sobre o regime militar, vale ressaltar a presença de alguns músicos nesse cenário. Em
canções populares que, nas entrelinhas, denunciavam o terror, compositores como León
Gieco e Charly García 30 trouxeram à luz fatos que torturam a memória dos anos
configurados pelo espanto frente à ameaça do desaparecimento.
30
Com experiências distintas, todos esses escritores e artistas, de certa forma, foram marcados pelas violências do
Estado militar. Rodolfo Walsh, escritor, jornalista e dramaturgo, desapareceu em 25/03/1977, após escrever um texto,
conhecido como “Carta aberta de um escritor à Junta Militar”. Fortemente envolvido nos movimentos de esquerda,
Walsh criou a Agência de Notícias Clandestinas (ANCLA), cujo objetivo era divulgar informações contra o terror
instaurado pelo regime militar. Além disso, participou do grupo dos Montoneros, do qual também fazia parte sua
filha María Victoria, desaparecida em 1976. Numa trajetória não muito distante, o escritor Juan Gelman também
integrou movimentos revolucionários contra o governo, como os Montoneros e as FAR (Forças Revolucionárias
Argentinas), sendo enviado para o exterior, a pedido dos Montoneros, para divulgar um documento a respeito das
violações dos Direitos Humanos na Argentina. Ao percurso de engajamento, acrescenta-se o trágico episódio do
seqüestro de seus dois filhos e de sua nora, grávida de sete meses. No ano 2000, após 23 anos de buscas, Gelman
encontrou sua neta, quem após o nascimento no cativeiro fora entregue à adoção para uma família no Uruguai. Seu
filho e sua nora integram a lista dos 30.000 desaparecidos argentinos.
Em relação ao escritor Ricardo Piglia, é interessante analisar alguns contos escritos durante o Processo, entre eles “A
louca e o relato do crime” e “Prisão perpétua”, além do romance Respiração Artificial, em que a personagem
principal é um desaparecido. Entretanto, é pela alegoria que o autor encontra o caminho viável para sua narrativa, na
qual transforma em personagens Franz Kafka e Adolf Hitler, assim como mistura as noções de espaços destinados às
torturas às referências deixadas por uma personagem louca. Curiosamente, este livro é dedicado a duas pessoas
desaparecidas, dado que só é possível reconhecer através de estudos teóricos acerca dessa composição narrativa.
Sobre os músicos Charly García e León Gieco, é importante mencionar as músicas que fazem referências às
violências do Estado militar. Com propostas diferentes, Charly é mais alusivo, utilizando-se da burla e do escárnio,
31
muitas vezes, como possibilidades discursivas. Já Gieco, até hoje, transparece um forte engajamento em suas letras.
Sobre sua discografia, destaca-se o lançamento de seu terceiro disco, “O fantasma de Caterville” (1976), obra que foi
duramente censurada e rendeu ao compositor a obrigatoriedade de modificar algumas canções.
31
Citação textual do decreto do Poder Ejecutivo Nacional 261/1975: “el comando general del Ejército procederá a
ejecutar todas las operaciones militares que sean necesarias a efectos de neutralizar y/o aniquilar el accionar de los
elementos subversivos que actúan en la provincia de Tucumán. Fonte: http://www.cepc.es/
32
32
Grupo armado integrado por cinco ou seis pessoas ligadas ao governo militar. Em alguns casos, essa “patota”
poderia ser composta por mais de cinqüenta pessoas. In: Nunca Mais, 1984, p. 9.
33
Assim como na justificativa à ausência de tradução para o termo Madre, optamos pela preservação do nome Abuela
(avó), em seu idioma original.
34
Novamente em discordância à terminologia empregada nos registros da CONADEP, preferimos o vocábulo
“apropriação”, utilizado pelas Madres e Abuelas, à palavra “adoção”. Nossa escolha é motivada pelo aspecto que nele
está presente, pois traduz o que foi feito com seus netos e confere o caráter de ilegalidade ao ato cometido: roubadas,
entregues – à revelia de suas famílias – a famílias que, em menor ou maior proporção, mantinham vínculos com as
esferas ditatoriais.
33
“Perguntaram-lhe sobre seu ex-noivo, Hugo Libaak, a que ele se dedicava, que
atividades, com quem se reunia. Em seguida, não obtendo resposta, deitaram-na numa
cama, onde lhe aplicaram a “picana” em diversos locais do corpo. [...] ‘Quando as
pessoas chegavam ali, eram levadas a fossos que eram cavados na terra com
antecedência; enterravam ali as pessoas até o pescoço, às vezes durante quatro dias ou
mais, até que pediam que os tirassem, decididos a falar. Mantinham-nos sem água e sem
comida, ao sol ou sob a chuva. Ao desenterrá-los (eram enterrados nus), tinham vergões
das picadas de insetos e formigas. Dali, levavam-nos à sala de torturas (ao lado existia
um quarto onde ficavam os torturadores) [...] Tinham um instrumento de tortura que era
um telefone’ (‘picana’ simultânea nos dentes e nas orelhas).” (Idem, p. 25)
35
A idéia de terror não representa um fenômeno atual, ainda que sua rentabilidade discursiva tenha crescido muito no
século XX e, principalmente, com os fatos que marcaram o dia 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Suas
origens nos remetem às práticas empregadas, por exemplo, pelo Império Romano, já no séc. III a.C, configuradas
como tática militar, guerras de caráter punitivo ou destrutivo. Tais táticas eram utilizadas pelos exércitos romanos
com o intuito de atingir/alterar o núcleo sociopolítico de regiões dominadas. Através de cruéis atos contra a
população civil, geravam-se terror e pânico, e coibiam o apoio da população local (temente às retaliações) a seus
líderes. Além dos episódios marcados pela atuação dos romanos, os exemplos são inúmeros na história. Segundo o
historiador Caleb Carr, em A assustadora história do terrorismo (2002), as Cruzadas a partir do séc. XII deram à
história um trágico exemplo do emprego de táticas de terror, pois “elas instilaram tamanho desejo de vingança e
violência retaliatória entre mulçumanos e cristãos, que continuamos a ver e sentir seus efeitos até hoje” (CARR, 2002
p. 58). Séculos mais tarde, práticas análogas seriam aplicadas por Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler, ambos em
busca de expansão/dominação territorial na Europa.
35
é a Plaza de las Madres, um lugar de resgate de seus filhos. Ali, num tempo marcado,
elas se encontram com a memória, reescrevendo-a e dignificando a liberdade.
36
A palavra alemã preserva a idéia de sofrimento compartilhado que se perde, nas correspondentes latinas
(compaixão, compasión, compassione, compassion).
37
levará do infortúnio à esperança, elemento presente em suas mais de três décadas contra
o esquecimento.
Entre a onda desmedida de desaparecimentos, as Madres aparecem revestidas
pela imagem da desolação, como mães em busca do filho cujo destino lhes era
desconhecido. É a partir do momento que enfrentam e reconhecem esse desconhecido
que a noção de compaixão será reconfigurada, pois elas, ao assumirem o caráter de luta
proveniente da herança deixada por seus familiares, traçam um novo tempo marcado
pelo protagonismo de seus próprios passos.
A compaixão firma o mote catártico original do movimento por elas
empreendido, e o medo de que sua dor desapareça faz com que esse sujeito coletivo se
materialize publicamente. Ao chegar à Plaza, por não ter mais por onde buscar notícias,
elas serão vistas e suas feridas expostas violentamente, o que convulsiona a ordem do
espaço público e faz com que a sociedade civil, involuntariamente, questione sobre a
presença das Madres. A partir desse momento, já não se pode mais desconhecer o
contexto e, mesmo que a história oficial tente preservar os crimes cometidos pelo
Estado militar, a presença dessas mulheres descortina e faz aparecer o escândalo de seus
insepultos. Nessa perspectiva, a imagem materna é o que lhes permite sair da esfera
privada e incorporar a personagem rubricada pela dor. Seu sofrimento é inquestionável
e incomparável; a elas se juntam aquelas que sofrem e compartilham o mesmo dano.
Unidas, as Madres desfilam diante de olhares temerosos, que, ao mesmo tempo em que
sofre enxergando-as, purga e sente prazer por não fazer parte dessa dor.
Uma nova configuração, então, a respeito da idéia de compaixão é agregada ao
movimento dessas personagens. Num momento de passagem entre o desconhecimento e
a revelação, um passo possível pela consciência e pela urgência de identificação
coletiva, as Madres se tornam o alvo de sua própria busca: o desaparecimento marca a
trajetória de três personagens fundamentais para a conformação, em 1977, do
movimento Madres de Plaza de Mayo. Com o temor de um provável desfecho trágico
ao Processo de Reorganização Nacional, os militares, através de Alfredo Ignacio Astiz,
entram no grupo das mulheres de lenços brancos. O “anjo loiro” (como será chamado
em decorrência de sua pouca idade e aparência física) arquiteta uma possível
familiaridade com um desaparecido e estabelece um laço capaz de aproximá-lo da dor e
do trauma por elas vivenciado.
Em um espaço revestido pela sacralidade, ocorrem os primeiros
desaparecimentos entre as Madres, em 08 de dezembro de 1977. É importante destacar
38
que esse local, a Igreja de Santa Cruz, se convertera num centro de reunião de familiares
de desaparecidos, o que favoreceu a narrativa criada pelo militar que nele se infiltrou. O
tempo do terror se reitera nos ponteiros que marcam a manhã daqueles dias de
dezembro.
Com o intuito de seqüestrar as Madres indicadas por Astiz, vários agentes da
Marinha se espalharam em diferentes pontos da Igreja, durante a missa em que era
realizada a Primeira Comunhão. Nas incansáveis reuniões das quintas-feiras, as Madres
desconheciam o que lhes poderia ocorrer às 20h e 30 min desse dia que marcará um
novo momento na história por elas escrita.
Na saída da Igreja, um grupo sem uniformes militares se identifica como
policiais e interceptam os familiares que se haviam reunido naquele lugar para arrumar
os detalhes finais de uma solicitação que seria publicada dois dias depois no jornal “La
Nación”. Desse operativo, nove pessoas foram detidas, entre elas as Madres María
Esther Ballestrino de Careaga, quem permaneceu junto ao movimento mesmo após o
retorno de sua filha detida, e María Eugenia Ponce de Bianco (foto 1). À glosa do que já
havia sido realizado, dois dias depois é seqüestrada Azucena Villaflor de Vicenti (foto
2), ao sair de sua casa para comprar o jornal onde fora publicada a solicitação. Horas
depois, é detida a freira francesa Leonie Duquet, companheira de Alice Domon
(também levada no operativo realizado em 08 de dezembro), em outra reunião do grupo
de solidariedade aos familiares de desaparecidos.
37
Texto original: “Cuando sientas tu herida sangrar/ cuando sientas tu voz sollozar/ cuenta conmigo”
40
constituem o silencioso pacto, emergido da planta baixa de um tempo sem espaço para o
perdão.
1.5. O espaço
Andar por Buenos Aires é cruzar por espaços que, inevitavelmente, evocam
Carlos Gardel, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Eva Perón, personagens que aparecem
em nosso imaginário ao som dos melancólicos tangos de Astor Piazzolla e Aníbal
Troilo, e deambulam pelos paralelepípedos dos nostálgicos bairros de San Telmo e La
Boca.
A essas paisagens imaginárias agregam-se ainda os charmosos símbolos
portenhos expressos nos cafés, nas livrarias, no frio, ao criar um efeito aurático que
transforma esse espaço num lugar “encantado” pela idéia de intelectualidade que dele se
propaga. Essa imagem modificada do cenário adquire uma autonomia viável à crença de
ingresso num mundo de “cultura”; uma paisagem que não se detém às modernas
máquinas de fotografia digital. Elas interagem (e integram) com o imaginário de quem
busca esse lugar.
Tais aspectos não seriam possíveis se o turismo não houvesse escolhido algumas
das imagens citadas acima. Se em lugar de Gardel fossem os piqueteros que marcaram
os finais de dezembro de 2001, com seus protestos e a construção cinematográfica de
uma Buenos Aires em conflito, esse espaço poderia ser consumido como um lugar
originariamente de luta e resistência. Assim, o turismo garante o ingresso dos que
procuram espaços possíveis ao preenchimento de um imaginário carente do consumo de
símbolos e heróis.
38
Fragmento original: “yo quisiera contar con usted / es tan lindo saber que usted existe /uno se siente vivo / y
cuando digo esto / quiero decir contar / aunque sea hasta dos / aunque sea hasta cinco / no ya para que acuda /
presurosa en mi auxilio / sino para saber / la ciencia cierta / que usted sabe que puede / contar conmigo
41
característica singular que exige uma análise que não se detenha a 1810 – ano de sua
última fundação – tampouco aos dias atuais. Transcendendo os tempos a que ela se
restringe, um olhar que busca o passado e se projeta no futuro para tentar entendê-lo é a
nossa proposta plural de estudo.
Dentro dessa perspectiva, o termo “transecular” ajuda a compreender tal tempo
que se conjuga na líquida fronteira entre a ocupação do espaço público como
instrumento de poder e, posteriormente, a contestação desse mesmo lugar como uma
paisagem investida por manifestações de resistência.
Segundo as considerações de Sigal, a Plaza de Mayo sempre foi um lugar de
poder por dois motivos: por ser um espaço ao qual o povo se dirige para reclamar suas
aflições e necessidades, e por ser onde as datas comemorativas do calendário pátrio são
festejadas, com os sucessivos governos apresentando-se nesse cenário e exibindo seu
poder nestas festividades. Desde o princípio, antes de 25 de maio de 1810 – data que
marca a Revolução de Maio, momento em que se conquista o primeiro governo pátrio –
e depois, durante os anos que sucederam a Revolução, o que acontecia na Argentina
refletia-se nos cenários da Plaza, como vizinhos para pedir mudanças de governo,
levantes militares, lutas entre federais e unitários, entre outros. Em seu entorno, como já
mencionado, situavam-se as sedes institucionais mais importantes: a Igreja Matriz, o
Parlamento, a Corte Suprema e a Casa de Governo. Com o tempo, distintas
transformações e traslados modificaram também as manifestações e os movimentos
desempenhados nesse espaço.
Diante da perspectiva dessa paisagem como um lugar de manifestações e
protestos, é importante ressaltar que a Plaza não representa somente um cenário de
contestação popular. Desde 1899 e até pouco antes de 1930, ela foi um espaço que
abrigou as reclamações de empresários do Centro Comercial e da União Industrial, o
que ratifica seu aspecto plural, ao conjugar num mesmo locus discursos opostos; em
termos marxistas, opressores e oprimidos. Num olhar dialético, a Plaza democratiza
vozes que lutam em situações díspares para serem ouvidas.
Sentidos e usos distintos se sobrepõem numa situação que desestabiliza e
confirma o poder investido em seu uso público. Entre essas diferenças de ocupação, a
socióloga destaca as três Plazas que mais se incorporam ao arquivo imagético-memorial
da nação: as das festividades pátrias, do peronismo e das Madres, ainda que existam
outras que ela aceite como novas propostas de configuração desse território.
44
39
Termo usado para os que nasciam na América Latina colonial
40
Acossado, o Presidente de fato, Edelmiro Farrell, decreta estado de sítio em agosto de 1945, o que gera grandes
manifestações opositoras. Ao final de setembro, um movimento militar contra o governo é abortado em Córdoba. Isto
serve como pretexto ao presidente Farrell para instaurar novamente o estado de sítio, ocupar as universidades e
praticar numerosas detenções. No princípio de outubro, a guarnição do Campo de Maio exige o afastamento de Perón
de todos os seus cargos (Vice-presidente, Ministro de Guerra e Secretário de Trabalho). Farrell aceita e ordena a
prisão de Perón na ilha Martin Garcia. Entretanto, um inesperado movimento popular avança sobre Buenos Aires no
dia 17 de outubro. As pessoas ocupam a Plaza de Mayo e exigem a libertação de Perón. Em liberdade, ele faz seu
pronunciamento na Casa Rosada, anunciando sua retirada do Exército e seu efetivo ingresso na careira política. Em 4
de junho de 1946, Juan Domingos Perón entra na Casa Rosada como presidente da nação Argentina.
41
Texto original: “(…) al insistir sobre su diversidad social o política, construyen una unidad originaria en torno de
un único reclamo”.
45
que se desenham nas Plazas de 1810, 1945 e 1977 restringem-se como importantes
momentos da memória simbólica argentina.
Corroborando a pluralidade da Plaza – como um espaço público aberto –, ela
pode, ainda, simbolizar diversos grupos, o que não é visto num espaço fechado, nos
quais uma possível idéia de santuário exclui o que é típico da Plaza de Mayo: uma
constelação de sentidos que coexistem em sua singularidade. Tal aspecto recupera a
recorrência e co-ocorrência das três datas supramencionadas, bem como as
manifestações a que elas se referem.
Numa sobreposição pela ocupação desse espaço, as Madres adotam a Plaza
como um território privilegiado, sem interferir no significado simbólico das Plazas
peronista e patriótica. Perón, por outro lado, tenta colocar a massa de 1945 como
herdeira dos revolucionários de 1810, uma estratégia populista que integra o ideal de
nação próspera e vitoriosa, aproximando o líder político da convulsão popular que
gritava por seu nome.
Além dos aspectos simbólicos que circundam e transbordam a paisagem
desenhada pela atual Plaza de Mayo, o percurso arquitetônico ao que hoje temos acesso
passou por inúmeras transformações e redefinições. Neste momento, interessa-nos
pensar nas modificações empreendidas neste espaço público, desde sua origem aos dias
atuais, o que nos leva a uma viagem novamente pelo tempo e nos faz “desembarcar” no
século XVI.
A Plaza de Mayo, maior praça de Buenos Aires, é tão antiga quanto a cidade. O
colonizador espanhol Juan de Garay, quando refundou 42 a Ciudad de la Santísima
Trinidad y Puerto de Nuestra Señora del Buen Ayre, em 11 de junho de 1580, deixou
traçado o lugar da Plaza Mayor. Neste espaço de múltiplos usos, eram realizadas as
cerimônias religiosas e oficiais, além de ser um local de comércio em decorrência do
mercado que lá havia. Junto a essas imagens, a Plaza ainda era um cenário para as
corridas de touros, as execuções públicas e as demonstrações de castigo.
Mesmo com o nome de Plaza Mayor, seu espaço era bem menor do que o atual,
pois em sua metade (onde hoje encontramos a Casa Rosada) estavam instalados os
42
Segundo a historiografia oficial, a cidade foi fundada pela primeira vez em 3 de fevereiro de 1536, por Pedro de
Mendoza, com o nome de Nuestra Señora del Buen Ayre, sendo posteriormente abandonada.
46
Jesuítas, durante 1608 e 1665. Quando a ordem religiosa migrou para outro espaço, esta
paisagem se transformou numa zona baldia, composta por restos de edificações, o que
deu origem ao nome Plaza de Armas ou Plaza del Mercado, servindo de palco para os
enforcamentos que ali se praticavam como um mórbido espetáculo público.
Com o propósito de arrecadar impostos, em 1803 é construída uma galeria
comercial com duas alas unidas por um arco central, a Recova (foto3), espaço pelo qual
se cruzava a antiga praça de norte a sul. Assim, divide-se a Plaza. A macabra forca
passa a ocupar o arco central da galeria, donde as pessoas eram penduradas e expostas
por várias horas, como exemplo ao poder que ali se estabelecia.
Foto 3: Maquete da Recova feita pelo artista plástico Miguel Angel Villalba. (Fonte: site
http://www.escultoresescultura.com.ar/).
43
Texto original: (...) la heroína de la fiesta, la dueña del 25 de mayo y el lazo con Sudamérica. Única patria de los
porteños (…) se insertó en una identidad americana preexistente, operación facilitada por la inexistencia de entidades
intermedias (…)”
47
Foto 4: Maquete da Plaza de la Victoria dividida pela Recova, já com a Pirâmide de Mayo em seu centro.
Obra também do artista plástico Miguel Angel Villalba. (Fonte: http://www.escultoresescultura.com.ar).
44
Arquiteto francês que viveu na cidade entre 1891 e 1934.
48
dar passagem às vozes que clamam contra as opressões. Neste momento, a Plaza volta à
voz reclamante de seu povo.
Foto 5: Desenho dos lenços brancos, símbolo das Madres de Plaza de Mayo (Arquivo pessoal).
“Buenos Aires é a outra rua, a que não pisei nunca, é o secreto centro dos quarteirões,
os pátios últimos, é o que as fachadas escondem, é meu inimigo, se o tenho, é a pessoa
a quem meus versos desagradam (a mim também desagradam), é a modesta livraria em
que por casualidade entramos e esquecemos, é essa onda de milonga silvada que não
reconhecemos e que nos toca, é o que se perdeu e o que será, é o ulterior, o alheio, o
lateral, o bairro que não é teu nem meu, o que ignoramos e queremos.”
45
Respectivamente, personagens de Julio Cortázar (Rayuela, 1963), Roberto Arlt (Los siete locos, 1929) e
Macedonio Fernández (El museo de la novela de la Eterna, 1993 (obra editada 41 anos após a morte do autor)).
49
“Buenos Aires é uma tradução da Europa, mas não só uma idéia de Europa, senão de
muitas línguas e muitos textos urbanos em conflito, refratada pelo dado inevitável de
sua localização na América. Há tanto imitação como bricolagem e reciclagem, de
segunda e terceira mão. Buenos Aires, obviamente, não é nenhuma cidade européia,
senão o produto de uma vontade européia na América.” 47 (Idem, p. 29 – grifo
nosso).
46
Texto original: “(...) transformados y deformados por un gigantesco sistema de traducción (...)”.
47
Texto original: “Buenos Aires es una traducción de Europa, pero no solo una idea de Europa, sino de muchas
lenguas y muchos textos urbanos en conflicto, refractada por el dato inevitable de su ubicación en América. Hay tanto
imitación como bricolage y reciclaje, de segunda y tercera mano. Buenos Aires, obviamente, no es ninguna ciudad
europea, sino el producto de una voluntad europea en América.”
50
prefixo /co/, que indica o compartilhamento da consciência acerca de algo. Uma vez que
a idéia acerca da consciência é um aspecto abstrato, a avaliação desse compartilhamento
é complexa e depende da empatia, sentimento mediador entre o sujeito e a Plaza. Um
pouco distante da noção latina de cognoscere, o espaço ocupado pelo turismo não
favorece o compartilhamento de consciência acerca da representatividade dessa
paisagem, tampouco que dali se extraia uma compreensão de suas elaborações
simbólicas. Não há tempo hábil nos programas dos “city tours” para que, realmente, se
efetive um reconhecimento no Outro; não há tempo para vivenciar a empatia.
As fotografias digitais produzidas por turistas que passeiam pela Plaza não
correspondem ao conhecimento acerca desse espaço. O contato que se estabelece é
rápido e composto por estratégias que fazem desse cenário a sua melhor resposta aos
que decidiram por ali cruzar de passagem.
Plural, a Plaza oferece diversas paisagens a seus visitantes. Seus cenários
metamorfoseiam-se. Ela pode servir para grandes protestos obreiros, “revelando” um
país que não se cala frente às reduções salariais, assim como para a tradução latino-
americana de fotos que nos lembram as praças italianas com suas inúmeras pombas. Ali,
podem ser adquiridos souvenires com a bandeira nacional, pagos com moedas de todas
as partes do mundo. A Plaza é, nesta perspectiva, um palco onde se encenam variados
espetáculos. Estar nela – mais do que conhecê-la – é a possibilidade de reflexividade de
uma sociedade do consumo, para a qual a experiência é constituída através de pequenas
lembranças materiais escritas em castellano. A memória que se conserva desse espaço é
uma mistura de emoções advindas do poder de compra e de imagens refletidas no que
ali se foi buscar.
Tudo é transformado em atração, destituindo-se, assim, a “pesada carga de
materialidade” que possam representar os atos desempenhados por sujeitos que atuam
cotidianamente em seu cenário. A Plaza configurada nas tardes de quinta-feira, para ser
fotografada, é autônoma da compreensão história acerca do período ditatorial instaurado
na Argentina em 1976. Hoje, as Madres que ali desfilam seus corpos vitimados pelas
violências do Estado militar podem ser perfeitamente estetizadas e transformadas em
mais um produto legitimamente argentino.
Assim como as Madres, os mendigos que freqüentam esse território podem ser
excluídos, ou não, da imagem que se leva dessa paisagem. Para os turistas europeus e
norte-americanos, muitas vezes, essas personagens miseráveis servem de cenário para a
fotografia de uma América Latina fraturada economicamente. Já para os turistas
53
brasileiros, tal cena pode não representar a Buenos Aires que seu pacote de viagem lhes
ofereceu. Nesse mecanismo cruel, a imagem reflete o recorte e o espelho do imaginário
dos que por ali passam em busca de seus atrativos.
Sobre o entorno da Plaza, vale mencionar ainda as imponentes construções que
lhe servem de moldura. Ao norte, as belíssimas edificações do Banco de la Nación, a
Catedral Metropolitana e a Avenida Diagonal Norte. A leste, a Casa Rosada, caminho
pelo qual podemos ter acesso a Puerto Madero, uma antiga zona portuária hoje
revitalizada, refletindo uma paisagem de luxo e divertimento na capital argentina. Ao
sul, o Ministério da Economia; a zona dos bancos e a Avenida Diagonal Sul, uma
paisagem compostas por matizes que evocam a arquitetura francesa do século XIX, com
suas fachadas de imponentes pórticos com madeira e material dourado. Finalmente, a
oeste, a Casa do Governo Municipal, o Cabildo (antiga sede do governo da cidade), e a
Avenida de Mayo, aberta em 1884, também por iniciativa de Marcelo Torcuato de
Alvear.
Sobre esta avenida, cujo nome provém da Plaza, é interessante pensar nas
estetizações por que passou até chegar ao ideal mimético europeu. A Avenida de Mayo
é demarcada por largas calçadas bordejadas por jardins, com mesas de café e refinados
edifícios, construções que ostentam as representações de uma cidade que viveu o auge
da modernidade e de sua efervescência intelectual.
Construída em estilo art-noveau, a avenida refletia o anseio da elite portenha em
busca de símbolos correspondentes ao seu arquivo imaginário afetivo. Ornamentada por
arranjos florais e arquitetônicos, ela ostenta sua memória de esplendor em edifícios
compostos por figuras oníricas, sereias, imagens de leões, com adornos de ferro
artisticamente trabalhados nas varandas, além dos suntuosos arremates de suas cúpulas.
Neste empreendimento arquitetônico-ideológico, foram incluídos elementos dos estilos
Luis VIII, Luis XV e da ornamentação italiana. É da Avenida de Mayo também a vista
mais alta da cidade de Buenos Aires, além do primeiro elevador que dispensava o uso
de cordas.
Pelos caminhos do entorno, é possível chegar aos bairros de San Telmo e La
Boca, paisagens já mencionadas pelo aspecto simbólico que ambas evocam acerca do
arquivo de imagens míticas da cidade portenha, ou seja, o lugar do tango, da boemia, a
zona portuária com suas casinhas coloridas e seus bares centenários freqüentados pelos
escritores argentinos. Com suas ruas estreitas e seus paralelepípedos, bem como as
antigas casas que compõem o cenário, esses bairros representam – assim como a Plaza
54
48
In: SARLO, 1997: 199.
55
Certamente, o estudo acerca de um espaço como Buenos Aires não é uma tarefa
simples. Podemos compreendê-la em alguns de seus aspectos, mas abarcar todas as
narrativas que compõem seu caráter de metrópole multicultural seria, sem dúvida,
perdermo-nos no “Aleph” de Borges ou, ainda, nos exasperarmos como Ricardo Piglia,
em A cidade ausente, nas superposições de histórias, personagens e relatos.
Diante de nosso recorte, a Plaza traduz uma instabilidade “alephica”, na qual ela
“é um dos pontos do espaço que contém todos os pontos” (BORGES, 1986, p. 130).
Vemos seus momentos, analisamos seus fragmentos e tentamos ir um pouco mais além
de sua superfície.
Por sua planta baixa, chega-se até a “Linea A”, a primeira linha de subterrâneos
da América Latina e a 13ª do mundo. Inaugurada em 1913, a estação de metrô
representou a passagem e o ingresso de Buenos Aires na modernidade. Por seus trilhos,
era possível cruzar distâncias da capital em pouco tempo, revelando o outro lado desse
espaço: seus percursos subterrâneos. Deambular pela metrópole através do novo
itinerário que ligava a Plaza de Mayo à Plaza Miserere (naquela época, Plaza 11 de
Septiembre) representava não só o percurso de pouco mais de cinco quilômetros, mas a
imagem de uma cidade que crescia adotando em sua identidade símbolos equivalentes
aos das modernas capitais européias.
Sua construção demandou um sistema de ventilação natural; outro de
identificação visual das estações (através de diferentes cores, para os que não sabiam
ler), além de escadas compostas por blocos de granito e um aparato sofisticado de
iluminação, detalhes que corroboravam o reflexo da urbe esplendorosa.
O panorama portenho de 1913 condiz com o que García Canclini chama de
“metáfora de aliança nacional”, acerca da cidade do México no início do século, uma
vez que:
próspera cria, então, a imagem de um espaço cujas identidades se imaginam parte de seu
esplendor. Nesse reflexo, seus habitantes revelam os repertórios textuais e iconográficos
produzidos pelas representações afetivas de um imaginário moderno.
Nesse ambiente, proliferam-se os passeios, operando um mecanismo de
“consumo simbólico que integra os fragmentos em que já se despedaça essa metrópole
moderna” (idem: 127). É possível deambular anonimamente nessa paisagem, da qual
emerge o flâneur a observar o espetáculo da cena urbana de que faz parte. Em abismo,
ele observa e é observado, uma cena possível na cidade grande, na qual os conceitos
que remetem a uma categoria ideológica tornam viáveis a mistura de suas personagens à
paisagem urbana, ratificando a “Dialética da flânerie”, proposta por Walter Benjamin:
“por um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por todos, simplesmente o
suspeito; por outro, o totalmente insondável, o escondido. Provavelmente é essa
dialética que o homem da multidão desenvolve” (BENJAMIN, 1989, p. 190, grifo do
autor).
A urbe se torna, nessa perspectiva, o cenário de “atenção flutuante do flâneur
que passeia pelo centro e pelos bairros, bisbilhotando na pobreza nova da grande cidade
e nas formas mais evidentes da marginalidade e do delito” (SARLO, 1997, p. 203). Na
heterogênea Buenos Aires, criollos, imigrantes, índios e negros cruzam por espaços
enlaçados por elementos contraditórios que não se unem numa linha hegemônica. Com
a peculiaridade de uma cultura da mescla, coexistem elementos defensivos e residuais
juntamente aos programas renovadores; com “traços culturais da formação crioula a par
de um processo descomunal de importação de bens, discursos e práticas simbólicas”
(idem, p. 217).
A despeito da experiência do flâneur do início do século, narrar as cenas da
metrópole argentina é perder-se por caminhos que se bifurcam em tempos e “ruínas
circulares”. Os trilhos dos subterrâneos que conduziram a Plaza às imagens de
modernidade cruzam-se com obstáculos, detendo-nos à paisagem de um país que guarda
em si as dolorosas cenas da violência do Estado militar e o saldo de uma nação fraturada
economicamente.
57
49
Dados obtidos através do site: http://www.sbase.com.ar/
58
50
Perspectiva proveniente da Antropologia Interpretativa, de Clifford Geertz, inspirada no filósofo Paul Ricouer.
51
Termos de James Ducan para diferenciar os habitantes locais dos não-locais. In: CORRÊA & ROSENDAHL,
2004: 108.
59
resistência para ser transformado (assim como a Plaza e o nostálgico metrô) num
atrativo, num espetáculo fotografável.
A paisagem da passagem que evoca memórias e práticas políticas, ao montar
uma espécie de “memoriapaisagem” ou “monumentopaisagem” (ACHUGAR, 1996, p.
857), torna-se obsoleta e apaga o importante significado que a luta pela reinserção
simbólica do passado deseja representar. Dessa maneira, é gerada uma silenciosa tensão
entre os termos compreendidos como “próprio” e “alheio” à paisagem, decorrendo num
diálogo entre as tradições desempenhadas nesse espaço e a incorporação destas nas
narrativas que dali emergem.
Ao se desconsiderar a relevância histórica que o ano de 1977 agrega àquele
momento da paisagem, é marcada a incapacidade, tanto dos insiders quanto dos
outsiders, de leitura desses artefatos de memória remanescente desempenhados pelas
Madres. Todavia, segundo James Duncan:
“É esse esquecimento, essa “amnésia cultural”, que permite à paisagem agir como
poderosa ferramenta ideológica. Tornando-se parte do dia-a-dia do que é tido como
dado, do objetivo, do natural, a paisagem mascara a natureza artificial e ideológica de
sua forma e conteúdo. Sua história como uma construção social não é examinada.
Logo, ela é tão inconscientemente lida quanto inconscientemente escrita.”
(DUNCAN, in: CORREA ; ROSENDHAL, 2004, p. 111).
52
Carlos Alvarez, mais conhecido como “Chacho Alvarez”, tornou-se um político reconhecido após a ruptura com o
“Partido Justicialista”, quando Menem outorgou os indultos aos chefes militares em 1989. Junto a outros políticos,
formou, em 1994, o “FrePaSo” (Frente País Solidário). Em 1997, os partidos “União Cívica Radical” e “FrePaSo”
uniram-se para compor a frente eleitoral “Alianza”, resultando na vitória à presidência da república em 1999.
61
53
Nome dado aos protestos realizados com utensílios domésticos e panelas, que em espanhol são chamadas de
cacerolas.
62
O estudo da Plaza e seu importante papel como um espaço onde as mães dos
desaparecidos durante a última ditadura militar adquirem a dimensão política de
Madres, em pleno regime ditatorial, traz consigo a necessidade de compreensão acerca
do termo “memória”. As correlações entre esse lugar de poder e a insurgência
memorialística demandam um olhar atento sobre o testemunho de corpos vitimados pela
violência do Estado militar.
Em um percurso um pouco distinto ao da socióloga Silvia Sigal, optamos por
pensar na Plaza das Madres como um espaço simbólico que surge pelo viés da
memória. Esta exige reparações e ressemantiza a presença materna, ao atribuir-lhe a luta
pela justiça e a conscientização política como um ponto de encontro com seus filhos
detidos-desaparecidos. Sem dúvida, esse espaço representa uma paisagem única para a
constituição do movimento das Madres, cujo nome provém dele mesmo. Não são
“mães” apenas; são as Madres de Plaza de Mayo, um termo com valor semântico que
remete à resistência, ao enfrentamento às leis ditatoriais e, reiteradamente, à memória.
Desta maneira, o passado surge como um tempo que permite a vivência do
corpo, promovendo um diálogo com esse lugar onde o corpo é posicionado em combate.
Sobrevivente, ele narra a história, resgata e dignifica os que caíram. Assim, o tempo e a
Plaza passam a simbolizar uma representatividade discursiva, na qual os atos do
passado metamorfoseiam-se, o passado e o espaço público fundem-se num
55
“lugar/problema de onde se assinalam os vazios das histórias oficiais” (ACHUGAR,
1996, p. 850).
Vitimadas pela lúgubre sinfonia entoada pelo golpe de 1976, as Madres, com
seus corpos ocupando o espaço público, passam a questionar as linhas da narrativa
política argentina, cuja memória representa a operação de mecanismos de censura,
rasura e exclusão. A história, nessa perspectiva de apagamento de suas fissuras, é
54
Texto original: “Y si el mundo sobrevive, los profesores de historia explicarán el siglo XX a través de sus
símbolos: mostrarán a sus alumnos la botella de Coca-Cola, la pelota de fútbol, el televisor, la computadora, la bomba
de neutrones. Y para explicar la dignidad, mostrarán el pañuelo blanco de las rondas de Plaza de Mayo.” Eduardo
Galeano. In: GORINI, 2006, p. 231.
55
Texto original: “un lugar/problema desde donde señalar los huecos de las historias oficiales”.
65
reescrita “(...) com cada mudança do quadro governamental e pede que os leitores da
enciclopédia eliminem por si mesmos aquelas páginas convertidas em indesejáveis”
(TODOROV, 2000, p. 12).
Através das supressão/conservação de fatos que podem ser narrados, a
historiografia oficial seleciona a memória escrita acerca desse tempo, um artifício que
tenta retirar de suas linhas as personagens que não podem pertencer ao imaginário de
um país em paz (baseado no silêncio e na obediência). O mesmo discurso que elide os
desaparecidos pela oposição política qualifica as Madres como subversivas, terroristas,
loucas e inimigas da nação. Entretanto, as feridas seguem abertas, e a Plaza é o palco
onde elas serão expostas.
30 de abril de 1977 é a data da primeira agrupação das Madres na Plaza de
Mayo. Desesperadas por notícias de seus entes desaparecidos, elas se reúnem nesse
espaço de poder, na esperança de entregar uma carta ao General Jorge Videla. Sem o
embasamento político de seus filhos desaparecidos, essas mães – a maioria donas de
casa, o que marca ainda mais a presença da esfera privada – queriam apenas saber o que
se passava com os, até então para elas, detidos.
No livro Las locas de Plaza de Mayo (1983), do jornalista francês Jean-Pierre
Bousquet, podemos encontrar os primeiros relatos sobre a relação entre as Madres e a
Plaza, uma relação que surge da necessidade, a priori, de serem vistas. Composto por
testemunhos, histórias e recortes de notícias oficiais, o livro apresenta uma passagem de
1977 que ilustra o mote daquelas reuniões semanais, encontros que decorrerão na
formação do movimento Madres de Plaza de Mayo: “Nós não fazemos manifestações,
viemos testemunhar nossa dor, tiraram nossos filhos, pedimos ao governo que nos
digam onde estão, o que lhes passou” 56 (BOUSQUET, 1980, p. 48).
Não sendo atendidas e, posteriormente, sendo reprimidas por seus semanais
encontros na Plaza, elas vão tomando dimensão do perigo que representava o páthos
entoado neste cenário fortemente controlado. Entretanto, elas não se intimidam, e o
número de mães aumenta. O que a princípio era constituído por 14 mulheres cresce,
transformando-se num movimento com mais de 200 personagens já investidas de seu
papel político-social de Madres.
Inicialmente, a voz testemunhal das Madres se configura como o “testis, terceiro
elemento na cena jurídica, capaz de com-provar, certificar, a verdade dos fatos”
56
Texto original: “nosotras no hacemos manifestaciones, venimos a testimoniar nuestro dolor, nos han quitado
nuestros hijos, le pedimos al gobierno que nos diga dónde están, lo que les pasó.”
66
“Não foi fácil para estas mulheres, algumas já de idade avançada, levar adiante a
iniciativa. A caminhada foi por si própria cansativa, mas, além disso, se tornou mais
desgastante ainda pela pressão da polícia, pelo clima hostil – em algum momento
começou uma intensa chuva sobre os manifestantes – e pela intimidação que sofreram
durante a noite, quando apagaram as luzes da Plaza para tentar assustá-las [...] Ao ver
tudo o que ocorria, um jornalista francês, Jacques Deprés, disse às Madres algo que
lhes pareceu dar um sentido a todo o terrível esforço que estavam fazendo: ‘Se vocês
permanecem toda a noite, nunca poderão tirá-las da Plaza’. ” (GORINI, 2006, p.
481). 57
57
Texto original: “No fue fácil para estas mujeres, algunas ya de edad avanzada, llevar adelante la iniciativa. La
caminata fue de por sí agotadora pero, además, se volvió más extenuante aún por la presión de la policía, el clima
hostil – en algún momento se largó una intensa lluvia sobre los manifestantes – y la intimidación que sufrían durante
la noche, cuando apagaron las luces de la Plaza para intentar asustarlas. (...) Al ver todo lo que ocurría, un periodista
francés, Jacques Deprés, les dijo algo a las Madres que pareció darle sentido a todo el terrible esfuerzo que estaban
haciendo: “Si ustedes permanecen toda la noche, ya nunca podrán sacarlas de la Plaza”.
68
Quem nasce quando há uma gravidez? Essa foi a primeira coisa que Maria
pensou ao descobrir que há cinco semanas ela já não era um corpo só. Ao ver o exame,
não parava de pensar que alguém crescia dentro dela, com um coração batendo ali junto
ao seu, e duas pernas e dois braços que um dia iram abraçá-la e caminhar a seu lado.
Desde o momento da descoberta, Maria esperava ansiosa pelo duplo parto: o filho que
viria ao mundo e a mãe que nasceria naquela hora, ambos transformando-se ao mesmo
tempo, para sempre.
Pouco mais de oito meses após aquele dia que mudara sua história, Marcos já era
o menino lindo, forte e sadio, a quem o nome do avô materno falecido era a homenagem
que religava Maria ao passado e projetava a esperança de dignidade no futuro. Nenhum
deles seria os mesmos: a vida de Maria renascera em Marcos, cuja promessa do amor
familiar se renovava em seu olhar e escrevia os sonhos da nova mãe.
Cuidadosa e preocupada, ela seguia os rituais que se esperam de todas as
mulheres que com ela compartilhavam a experiência da maternidade. Amamentar,
trocar fraldas, levar à escola, ensinar conceitos éticos e preparar seu filho para a vida
eram clichês que ela desempenhava numa cronologia sem grandes dificuldades.
Repassando um pouco do que havia aprendido, Maria engatinhava junto com o filho
rumo ao mundo, o mundo que herdara de seus pais.
As fraldas iam sendo substituídas por outras vestimentas, indiciando os sinais de
crescimento e independência do ser que lhe deu o nome “mãe”. A escola cedeu lugar ao
trabalho, onde ela não o acompanhava, mas donde o aguardava todos os dias retornar.
Era com Marcos que ela começava a entender (e se preocupar) questões que seus pais
não lhe haviam ensinado. Curiosamente, também, sem dar-se conta, o filho era quem
agora a conduzia à compreensão de certas coisas que ainda ficavam presas ao silêncio.
Juntos, mãe e filho se ensinavam a ler. As historinhas da infância eram
substituídas lentamente por novos heróis; vivos, reais e tangíveis. Nas aventuras lidas, o
filho era quem mais se emocionava, transformando o antigo “El mio Cid” em homens e
mulheres que combatiam a injustiça com pesadas armas e entregues à guerrilha. Maria,
receosa, temia que o filho repetisse suas fantasias de criança, ao voltar a sonhar com
69
seus heróis e se reconhecer neles. A brincadeira de ambos não era mais ficcional; as
personagens lidas existiam e seduziam bravamente o filho ávido por transformá-las em
suas narrativas.
Na mesma estante, biografias dos russos e histórias de revoluções comunistas se
misturavam aos romances que ela lera em sua juventude. Transformada pelo filho,
Maria passava a sonhar com “Rosa”, “Ernesto”, “Karl”, figuras tão distantes e, ao
mesmo tempo, tão encantadoras para ambos. Nos discursos do filho, esses nomes
ganhavam vida, desbancando qualquer imagem das saudosas histórias que ela lia para
que ele dormisse na infância. As novas histórias tiravam o sono, inquietavam-nos de
uma maneira nova, perigosamente necessária para que esse mesmo sono pudesse
chegar-lhes calmamente, dignamente.
Formava-se um segredo: eram só deles aqueles momentos. Suas amigas não a
compreendiam; ofendiam-se quando ela se exaltava falando dos manifestos. Aquilo,
para as outras, era coisa de subversivos. Portanto, era preciso, era ordem, não falar.
Calada, ela voltava para sua casa e aguardava a chegada de Marcos, o cúmplice e
responsável por seus desejos e descobertas proibidas. Todas as noites, como num
cerimonial, eles conversavam, riam e se indignavam juntos. Os outros filhos e o esposo
se sentiam à margem de tudo aquilo, estranhando a mudança de Maria, outrora tão
compassiva e entretida com seus afazeres domésticos.
Um dia, depois de suas tarefas, ela se preparava para o ritual cotidiano: sentar-se
na antiga poltrona e ler os jornais do partido, enquanto esperava pelo filho. No entanto,
as horas começaram a travar um combate doloroso: quanto mais se passavam, mais
adiavam o momento tão esperado por todo o dia. Outro dia chegou, e a ela permanecia
em sua poltrona, nervosa, lembrando-se de uma conversa em que Marcos dizia que,
assim como seus heróis, ele poderia ficar uns tempos sem aparecer. Ao recordá-la,
Maria também resgatava o que havia sentido nesse dia em que o medo começou a
marcar cada minuto que o filho se atrasava para chegar. Outro dia, outros dias, um mês,
dois meses. Começava, ali, uma trajetória em busca daquele que, sem saber, a
transformara anos antes, já antecipando o que mudaria por completo.
Desesperada, Maria passa a rondar por necrotérios, cadeias, hospitais e jornais, à
procura do filho. O silêncio e a ameaça tentam levá-la de volta para casa. Sem gritar, ela
não recua: era-lhe vital saber onde ele estava. Cansada com a presença diária do
desconhecido, um dia ela resolve ir à praça, onde se encontra com outras mães parecidas
com ela. Embora elas não se assemelhassem fisicamente, seus olhares se reconheceram
70
marcados pela mesma dor. A mãe que caminhava sozinha começa a caminhar ao lado
de outras, muitas marias, companheiras de dor e tragédia, com as quais se torna Madre,
gestada e parida pela presença do filho desaparecido.
Os meses passam e os filhos não retornam. O número de mães aumenta a cada
dia e agrega novas miradas e discursos, que requisitam símbolos e imagens capazes de
diferenciá-las entre outras tantas marias temerosas pelo perigo de “Rosa”, “Ernesto” e
“Karl”. A praça se expande para outros espaços possíveis de mostrá-las. No entanto,
para aparecerem e serem reconhecidas, elas precisariam de algo que as identificasse, e a
fralda do filho, guardada como uma doce lembrança, transforma-se no lenço branco.
Revestindo a cabeça, ele se torna o véu que sela o sagrado e eterno laço entre o filho e a
Madre, um figurino capaz de desvelar narrativas de dor e de medo.
Sobre o pano branco, elas bordam nomes e datas em pontos de cruz, e desenham
a imagem do calvário, plasmada numa caminhada em direção ao corpo do filho
desaparecido, provavelmente morto e insepulto. O tempo confirma sua inexorabilidade
e o lenço se faz cada vez mais presente. Da fralda do bebê ao véu que desvela, a
trajetória do tecido é tecida por memórias e testemunhos de mulheres que se dividem
entre o luto e a luta.
O tempo passa levando consigo o período do silêncio. Uma hipótese de
democracia alumbra a jornada de Maria e suas companheiras, rompendo o medo e o
terror que um dia lhes fizeram temer pelos desaparecimentos. Um novo regime político
aparece, enquanto Marcos continua desaparecido. Nesse universo de coisas inovadoras,
aparecem também as possibilidades de que elas sejam ressarcidas economicamente pelo
que passou com seus filhos e ainda possam lutar por escavações capazes de devolver-
lhes, em pedaços díspares e descompostos, aqueles que continuam inteiros ao seu lado.
Só era preciso uma coisa: a declaração familiar de que eles estavam mortos.
Maria, idilicamente, lembra-se dos sonhos de seu filho, de sua promessa de
renascimento desde o primeiro olhar, dos livros compartilhados, dos heróis reais e dos
projetos que por horas embalavam a esperança de um sono tranqüilo; memórias que a
restituição financeira prometida e as imagens partidas nunca poderiam restituir-lhe, pois
tudo surgira e se tornara possível pela presença do ser amado, há tantos anos
desaparecido. Indignada e ofendida, ela não aceita e, com suas fiéis escudeiras, ruma em
direção ao utópico caminho escrito na reivindicação do filho com vida.
Como uma jovem militante, ela se abraça à luta interrompida do ente querido,
transformando a ronda em marcha, e Marcos num exemplo de fraternidade
71
incomensurável. Desmedida em seu amor, Maria se transforma uma vez mais: ela agora
é mãe de todos os desaparecidos, um número inviável biologicamente, porém coerente
com seu posicionamento transgressor. 30.000 vezes grávida é a cor que dá luz à nova
Madre, que clama pela justiça e pela memória de seus mártires, entre eles seu filho.
Ela se distancia das antigas companheiras que rondam em busca dos corpos
insepultos; seu herói é imortal e seu laço com ele é inquebrantável. Na praça, ela segue
com aquelas cujo grito é em uníssono e ressoante. Nos projetos e locais construídos pela
memória dos desaparecidos, ela luta e sonha pela igualdade e pela edificação de uma
sociedade onde não haja medo nem engano. Muitas vezes agressivo, seu discurso é
interdito e vetado. Louca é o que dirão para silenciá-la, e loucura é a resposta que ela
dará para seguir gritando pelos ideais de seu grande amor. Ausente, ele nasce
ininterruptamente em cada abrir de olhos daquela que aprendeu a mirar o mundo pelos
olhos de seu filho. Presente, ele pare cotidianamente os sonhos, discursos e atitudes de
Maria, aquela que, ao renascer como Madre, converteu morte em vida, dor em luta,
perdão em impossibilidade, e o véu num lenço que desvela.
A memória é um tema que, desde o início de nosso estudo, está escrita como a
espinha dorsal da constituição da figura materna que expõe suas dores na Plaza e
ressignifica a presença do filho desaparecido em discursos de combate. Controversos, é
também sobre a memória que surgem impasses capazes de romper com a união que, por
quase nove anos, escreveu a história das Madres de Plaza de Mayo.
Com efeito, é preciso que façamos algumas aclarações a respeito do que hoje se
entende sobre esse movimento, dividido em duas linhas bem distintas ideologicamente.
Conhecidos como Línea Fundadora e Asociación Madres de Plaza de Mayo, ambos
trazem em si a imagem da mãe maculada pelo desaparecimento do ente querido,
entretanto, distanciam-se em aspectos fundamentais, que vão desde os escritos dos
lenços brancos às relações de enfrentamento e resistência por elas desempenhadas.
72
58
Texto original: “Todos los jueves nos llevaban detenidas, y también ahí decidimos que si una iba presa, íbamos
todas. No era que nos llevaban a 40 o 60 porque ellos querían, no, nosotras nos poníamos detenidas, y por eso
también los demás decían que éramos locas. Pero nosotras, cuando iba una Madre presa, decíamos no, si va una
vamos todas. Si no cabíamos en el primer patrullero en el segundo o en el tercero. Si no nos llevaban, nos
presentábamos en la comisaría: "¡señor yo quiero estar presa con todas las Madres!" No entendía nada el comisario
por qué queríamos estar presas, pero juntas hacíamos muchísima fuerza. Y adentro de la comisaría también les
hacíamos los grandes líos. Nos soltaban de a una, a la madrugada, pero había Madres que tenían tanta fuerza que
también se quedaban fuera de la comisaría dando vueltas alrededor hasta que nos iban largando a todas.”
74
59
auxílio das “Mulheres Holandesas” , as Madres publicam, em julho de 1980, seu
primeiro boletim informativo. O apoio externo surge como uma possibilidade de
emersão do silêncio perpetrado nacionalmente. Logo, a voz outrora emudecida passa a
ecoar em outros contextos, a outros ouvintes solidários à tragédia por elas
experimentada.
Além desse importante passo rumo à elaboração escrita de memória, elas
conseguem sua primeira sede, localizada à Rua Uruguai, 694, 2º piso, um lugar capaz de
abrigar a luta e possibilitar a conformação dos novos planos e ideais dessas mulheres
egressas da esfera privada, dispostas a abalar completamente o cenário da esfera
pública.
De autoria desconhecida, o texto que serve de capa para esse primeiro
informativo das Madres revela o sofrimento daquela que nasce com o desaparecimento
do filho e por ele segue, além de resgatar seus ideais e incorporar na cena discursiva
uma referência fundamental à composição desse novo ator político: a imagem da Mãe
Coragem, personagem homônima da peça de Bertolt Brecht (1939) 60 :
“Sabes que o caminho é longo e sinto que tu, Mãe Coragem, estás disposta a caminhá-lo
apesar de todas as dificuldades de portas que se fecham, de noites sem estrelas, mas
estás firme e decidida porque vives a esperança para construir pelo Amor um mundo
mais justo e humano para todos.” 61
59
A escritora Mies Bouhys e a esposa do primeiro ministro holandês, Lizbeth del Uyl, formaram com um grupo de
mulheres (sindicalistas, diretoras de cinema, jornalistas, artistas, modistas, bailarinas) a primeira agrupação de
solidariedade às Madres.
60
Embora haja a referência à personagem brechtiana neste primeiro momento, o que podemos identificar na
composição destes textos é um percurso um pouco distinto das protagonistas criadas pelo dramaturgo alemão. Como
já mencionamos, outra referência será possível de ser traçada, com base na imagem de Pelagea Wlassowa, de “A
Mãe”, cuja relação pelo viés do embate e do enfrentamento se verifica mais no contexto democrático após 1986.
61
Texto original: “Sabes que el camino es largo y siento que tú, Madre Coraje, estás dispuesta a caminarlo a pesar de
todas las dificultades de puertas que se cierran, de noches sin estrellas, pero estás firme y decidida porque vives la
Esperanza para construir por el Amor un mundo más justo y humano para todos” (1º Boletim, fotocópia cedida pela
Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo).
75
“Com o presente damos vida ao BOLETIM que permitirá que todas as mães,
familiares e todo ser SENSÍVEL, se informe sobre nossos problemas, nossas dúvidas,
compartilhe nossa dor e nos ajude a solucioná-los ou pelo menos suportá-los.
A saída deste Boletim será periódica. Desejamos que chegue a mãos de seres
compreensivos, mas também ansiamos ter respostas de nossas inquietações.
A perspectiva é ecumênica, sem vínculos partidários. Seus objetivos são
humanitários. ” 62 (Idem)
62
Texto original: “Con la presente damos vida al BOLETIN que permitirá que todas las madres, familiares y todo ser
SENSIBLE, se informe de nuestros problemas, nuestras dudas, comparta nuestro dolor y nos ayude a solucionarlos o
por lo menos sobrellevarlos. / La salida de este Boletín será periódica. Deseamos que llegue a manos de seres
comprensivos, pero también ansiamos tener respuestas de nuestras inquietudes. / La perspectiva es ecuménica, sin
vínculos partidarios. Sus objetivos son humanitarios.”
76
significados, entre eles, uma possível resposta à declaração de Ricardo Balbín 63 . Outra
justificativa para a criação do lema é o episódio ocorrido na viagem aos Estados Unidos,
em dezembro de 1980 64 . A declaração dos pais de uma desaparecida é motivo de
conflito, ao afirmarem a crença de que os desaparecidos estariam mortos 65 . Indignadas,
as outras Madres presentes argumentaram sobre o equívoco dessa declaração, o que
provocou uma separação entre o grupo e os outros organismos que estavam junto a elas
nesta viagem.
Surge, então, em 5 de dezembro de 1980, um documento no qual as Madres
afirmam seu lema "Aparição com vida", um sintagma preposicionado capaz de
questionar o sistema e ratificar a resistência em relação às possíveis declarações que
afirmassem a morte de seus filhos, sem que para isso houvesse culpados. Alguns anos
depois, essa frase estampará os lenços brancos das Madres que permanecem na
Asociacíon, conferindo-lhes o enfrentamento como um legado marcado pela memória
ao sangue de seus filhos.
Se o boletim abre uma possibilidade discursiva, em 1981 isso se amplia em
outras manifestações textuais. Estampado com a imagem de um pássaro voando, é
66
publicado o primeiro Poemario: Cantos de vida, amor y libertad , cujo nome deve ser
lido como uma referência a Cantos de vida y esperanza (1905), do poeta nicaragüense
Rubén Darío. Na contracapa, uma gaiola vazia com as portas abertas é o desenho que
justifica a frase que o acompanha: “Isto não é uma jaula vazia; é um pássaro em
liberdade” (1985, versão fac-similar da primeira edição). Dedicado à Azucena Villaflor
De Vincenti, o livro traz como epígrafe um trecho de Ernesto Cardenal: “Nossos
poemas não podem ser publicados ainda. Circulam de mão em mão, manuscritos, ou
copiados em mimeógrafo. Mas um dia se esquecerá do nome do ditador contra o qual
foram escritos, e seguirão sendo lidos” 67 (idem).
63
Em 1979, o importante dirigente da União Cívica Radical (UCR), Ricardo Balbín, declara, em viagem à Espanha:
“yo no creo en los desaparecidos, yo creo que están muertos, y a los muertos no se los busca, se los llora”. In: 30.000
Revoluciones, 2007, p. 8.
64
A viagem era composta por uma delegação de Madres, Abuelas e familiares de desaparecidos. Tal momento
consistia na tentativa pressão aos grupos norte-americanos a respeito da situação argentina, além de servir de escala
para as viagens à Suécia e à Noruega, onde os familiares participariam da entrega do Prêmio Nobel a Adolfo Pérez
Esquivel, um importante colaborador para o reconhecimento das Madres, tanto na Argentina quanto no resto do
mundo.
65
O caso se trata de Chela e Emilio Mignone, pais de Mónica María Candelaria, desaparecida em maio de 1976.
66
Ao dedicar-nos Poemarios, em 2007, Juana de Pargament, uma das quatorze Madres presentes à tarde de 30 de
abril de 1977, relatou que os textos foram entregues a uma gráfica, onde quem os recebeu, para que não fosse
reprimido, disse-lhes: “eu não recebi nada, não sei nem quem são vocês”.
67
Texto original: “Nuestros poemas no se pueden publicar todavía. Circulan de mano en mano, manuscritos, o
copiados en mimeógrafo. Pero un día se olvidará el nombre del dictador contra el que fueron escritos, y seguirán
siendo leídos.”
77
A escolha desses poetas nicaragüenses não pode ser vista apenas como uma
mera citação. Ao recortarem um fragmento de Ernesto Cardenal e colocarem em seu
primeiro livro um título que traz em si uma imagem precedente, as Madres delimitam
também as similitudes e personagens afins a essa trajetória por elas traçada. Tal aspecto
pode ser conferido em outros momentos, como na citação do episódio envolvendo o
poema “Hagamos un trato”, de Benedetti, poeta reiterado em outras passagens dessa
escritura. Com efeito, o que vemos surgir dessa inserção de vozes é a formação de uma
“família intelectual”, com a qual a personagem que escreve suas memórias cria novos
vínculos de parentesco pelo viés da literatura. Através da leitura, ela elege seus
parceiros e os integra ao ideal de luta que também constitui esse jogo. Nessa
perspectiva, podemos pensar no diálogo e no resgate de algo que o historiador mexicano
68
Carlos Monsiváis considera como “um culto por Nossa América” , ressemantizado no
plano de construção literária empreendido pelas Madres, ao estabelecerem um pacto
moral entre elas e os intelectuais presentes nesses textos.
O encontro com a literatura acrescenta novas características à composição do
ator político Madre. Parida como mais uma alternativa de contar o horror e dar voz à
dor, essa escritura se distancia dos documentos e discursos proferidos publicamente,
cujos objetivos eram o registro e a busca dos desaparecidos junto às instâncias oficiais.
Com outra perspectiva, Cantos de vida, amor y libertad (posteriormente, composto por
mais dois Poemarios) assinala uma etapa em que a escrita de si propõe o início de uma
projeção testemunhal na poesia. Os textos, reiteradamente marcados pela dor da
primeira pessoa do singular, demarcam a ferida pessoal e intransferível da mãe, quem se
julga semelhante somente às suas companheiras de luta e à Virgem Santíssima, imagem
presente nas repetições de termos que recuperam a via crucis de Jesus Cristo.
Um olhar atencioso sobre esse primeiro intento literário – ainda que o propósito
não fosse o fazer literário – representa uma alternativa de leitura dessas personagens por
outro viés, no qual a escritura lhes confere uma mirada catártica, e o corpo, vitimado
pela ausência, ergue-se inclinado para olhar sua própria condição e escrevê-la em
memórias poéticas. E, se a Plaza é o lugar onde elas se formam coletivamente, a
68
Em “De “las esencias nacionales”” (Aires de Familia –cultura y sociedad en América Latina. Barcelona:
Anagrama, 2000), Monsiváis analisa o posicionamento de alguns intelectuais, no início do século XX, a respeito da
defesa de uma iberoamericanidade, a partir de crenças totalizadoras (como a mítica imagem projetada no povo latino-
americano, com sua fé e autenticidade). Entre os autores mencionados, destacam-se o peruano José Carlos Mariátegui
(1895-1930), com sua proposta de um pensamento genuinamente hispano-americano e seu conceito de “raça”, e o
argentino Manuel Ugarte (1875-1951), com as idéias de uma representação nacional condizente à história do povo
argentino, proposta que o autor desenvolve em seu livro de ensaios Patria Grande (1913).
78
“A máquina, a mulher, a louca Argentina, Amalia, Elena, Molly Bloom, Ana Livia
Plurabelle, Hipólita, Eva Péron: todas, personagens literárias e históricas, nomes
próprios e anônimos – loucas argentinas, mães de Praça de Maio – têm idêntico
estatuto ao aceitar a primeira tarefa encomendada: ser testemunhas, contar, cantar.
Em síntese, é a literatura, mulher e máquina, a encarregada de conservar a memória
comunitária: um belo anacronismo imortal, questionador que salva ao mundo ao dar-
lhe um sentido, a ordem do relato”. 69
69
Texto original: “La máquina, la mujer, la loca Argentina, Amalia, Elena, Molly Bloom, Ana Livia Plurabelle,
Hipólita, Eva Péron: todas, personajes literarios e históricos, nombres propios y anónimos – locas argentinas, madres
de Plaza de Mayo – tienen idéntico estatuto al aceptar la primera tarea encomendada: ser testigos, contar, cantar. En
síntesis, es la literatura, mujer y máquina, la encargada de conservar la memoria comunitaria: un bello anacronismo
inmortal, cuestionador que salva al mundo al darle un sentido, el orden del relato.” (In: “Intelectuales hoy: ni
anfitriones, ni turistas”. PÉRSICO, 1996: 441)
79
70
Texto extraído de Poemarios 3.
80
retido dessa vivência: “No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores,
quase imediatos” (idem).
O conto pode ser lido, ainda, como um ensaio sobre a narrativa de memória, ao
integrar ao projeto literário questões a respeito do problema que marca essa escritura, na
qual a abstração e as generalizações são fundamentais à voz que se situa no presente
para recontar o passado. Em um percurso distinto da personagem borgiana, encontramos
O enteado, de Juan José Saer. Inspirado na vida do grumete Francisco del Puerto, o
autor traz à trama narrativa uma história do século XVI, entretanto, é justamente pela
proposta de uma não-biografia que podemos ter acesso ao relato sobre a personagem
que viveu entre povos originários da América do Sul, convivendo com costumes alheios
à sua experiência inscrita num plano de civilização.
O projeto narrativo dessa memória é o que dá forma à composição de O enteado,
proposta presente na leitura sobre as lembranças junto aos indígenas. O trajeto do
encontro à permanência é a paisagem à qual o narrador volta seu olhar, um cenário
revivido e permeado pelas distâncias de tempo e espaço. Descentrada no presente, essa
matéria que dá forma à escritura do relato passa por uma reelaboração, processo viável
ao projeto de rememória, a partir do ponto em que o retorno ao passado é mediado pela
experiência decantada, selecionada e entregue ao leitor, na medida certa da instabilidade
que sustenta esse intento de resgate:
71
Texto original: “el recuerdo de un hecho no es prueba suficiente de su acaecer verdadero, del mismo modo que el
recuerdo de un sueño que creemos haber tenido en el pasado, muchos años o meses antes del momento que estamos
recordándolo, no es prueba suficiente ni de que el sueño tuvo lugar en el pasado lejano y no en la noche
inmediatamente anterior al día en que estamos recordándolo, ni de que pura y simplemente haya acaecido antes del
instante preciso en que los estamos representando como ya acaecido”
81
Nesse fluido panorama das recordações, após dez anos como cativo da tribo
indígena, o grumete retorna à Europa e, já na posteridade, resolve escrever suas
memórias sobre os anos na América. O olhar da maturidade faz com que as narrativas
sobre os integrantes da tribo adquiram o estranhamento necessário à compreensão desse
encontro com o Outro, entidade que aparece generalizada e é descrita pela sinédoque: os
índios não têm uma forma física específica, mas ganham imagens através das descrições
de seus costumes, entre estes o reiterado banquete antropofágico do qual o grumete
consegue sobreviver:
“Parado imóvel entre os índios imóveis, olhando fixo, como eles, a carne que assava,
demorei uns minutos para me dar conta de que por mais que me obstinasse a engolir a
saliva, algo mais forte que a repugnância e o medo se obstinava, quase contra minha
vontade, que frente àquele espetáculo que estava contemplando na luz das chamas me
fez água na boca” 72 (SAER, 2008, p. 60).
72
Texto original: “Parado inmóvil entre los indios inmóviles, mirando fijo, como ellos, la carne que se asaba, demoré
unos minutos en darme cuenta de que por más que me empecinaba en tragar saliva, algo más fuerte que la
repugnancia y el miedo se obstinaba, casi contra mi voluntad, a que ante el espectáculo que estaba contemplando en
la luz cenital se me hiciera agua en la boca.”
82
73
Texto original: “A lo que vino después, lo llamo años o mi vida – rumor de mares, de ciudades, de latidos
humanos, cuya corriente, como un río arcaico que arrastrara los rastros de lo visible, me dejó en una pieza blanca, a la
luz de las velas ya casi consumidas, balbuceando sobre un encuentro casual entre, y con, también la ciencia cierta, las
estrellas.”
74
A respeito dos volumes 2 e 3 vale ressaltar que não encontramos as referências ao ano em que foram publicados.
Ao analisar os poemas que os integram, concluímos que foram lançados logo após o primeiro livro, uma vez que a
maioria dos textos é de 1981. Em decorrência da impossibilidade de trabalhar com a versão original, por se tratar de
uma impressão de baixa tiragem e clandestina, o material ao qual pudemos ter acesso são as versões facsilimares,
todas editadas em março de 1985, momento em que o país já vivia seu período de democracia e as Madres de Plaza
de Mayo já tinham recursos próprios para financiar suas publicações.
75
Como nosso objeto é a escritura da figura materna, consideramos que tais textos, embora extremamente
representativos para a constituição da Madre, não devam ser aqui analisados. O arquivo poético composto pelos
textos maternos é muito extenso e, para que pudéssemos dedicar-nos a isso, optamos pela leitura dos poemas dos
detidos-desaparecidos, mas não por seu específico conteúdo literário.
83
76
Títulos originais: “Inmaculada Madre de Dios”, “Noche larga, noche oscura”, “El que vive una vez, no muere
jamás” e “¿Dónde están nuestros hijos?”.
84
“[…] Oh, Jesus! Tu também foste uma criança, faça que logo
nos devolvam estes filhos que perdemos...
Ilumina, faça com que entendam a dor que todas sentimos,
porque eles de uma Mulher como todos nasceram.” 80
(Delia Pollolla, 1981, p. 42)
77
Texto original: “Señora de los cielos / con los ojos resecos por la pena / te rogamos / ayudes a los hijos que tuvimos
/ en tu día / obligadas a entregar tres madres fuimos / Esther, María e Azucena. / Ellas fueron las elegidas / nos
sentimos con la fe empalidecida / por la ofrenda sagrada que te hicimos”.
78
Texto original: “ante a cruz do Cristo agonizante /Sua mãe esperava consolo / mas o mundo alheio a seu calvário /
deixou só Maria e sua dor / também nós, mães argentinas / estamos sozinhas ante o sacrifício”
79
Texto original: “Lo crucificaron también al Señor. / Me queda el orgullo de haberte tenido. / No importa, querido,
lo que yo he sufrido”
80
Texto original: “Oh, Jesús ! Tu también fuiste un niño, haz que pronto / nos devuelvan estos hijos que perdimos…/
Ilumina, haz que entiendan el dolor que todas sentimos, / porque ellos de una mujer como todos han nacido.”
85
Aos versos dos poemas acima, o coro troiano dirá: “Agora, Musa, canta Ílion,
canta! / Seu triste fado há de inspirar um hino / à nossa voz plangente, um hino fúnebre.
/ Dedicaremos triste ode à Tróia.” (EURÍPIDES, 1991, p. 189). Juntas no diálogo
intertextual, as vozes das mulheres argentinas e troianas gritam anacronicamente em
defesa de seus filhos, jovens cuja sorte lhes foi negada saber e aos quais seus passos
transformaram-se em promessa de dignidade. Aliada à promessa de honra, sagrada pelo
sangue da maternidade, reúnem-se as imagens capazes de se tornarem reais na
simbologia criada pela mãe à espera do filho. Em “Quando voltes”, Ely – a Madre que
assina – gesta o porvir, ao apostar no projeto de escritura:
81
Título e textos originais: “Plaza Mayor”: “Nuestras llagas al sol, Plaza de Mayo, / te mostramos estas madres
argentinas, / no entendemos porqué tanta injusticia, / no sabemos qué culpa padecemos. / ¿Es que han perdido sus
almas, sus razones, los hombres de esta tierra? / Nos inmolan acaso por mujeres, / que se abrieron en frutos dignos, /
honra de lo humano”
82
Título original: “Tierra de promisión y de paz”. Não é fortuito pensar na escolha do termo promisión em lugar de
promesa, já que por Terra de Promissão nos recordamos da imagem do Paraíso, a Terra de Canaã, prometida por
Deus a Abraão.
83
Textos original: “Tierra con gente que usa capucha / armas en las manos / Tierra que diste mi Patria / hidalgos
varones…patriotas cabales / Tierra… no puede ser tuya esta gente que no tiene alma.”
87
84
Título e textos originais: “Cuando Vuelvas”: “Cuando vuelvas, nenita mía, / sé que habrá sombras en tus ojos / que
nunca podré aventar: / […] Pero te juro, nenita mía, / que yo inventaré sortilegios / hasta ahuyentar las sombras: / que
yo lavaré tus carnes / hasta disimular las heridas; / que yo buscaré el olvido / hasta aquietar tu memoria.”
88
Madre e de seu filho, agora presentificado nos 30.000 desaparecidos e nos lenços
brancos, como símbolos que não conjugam nem o esquecimento, nem o perdão.
Ainda em relação à constituição de Poemario 1, subseqüentes a “Cantos de
Vida” aparecem as partes “Cantos de Amor” e “Cantos de Liberdade”, mescladas por
escritos de familiares, poetas e outras Madres. Com uma mirada distinta da presente nos
primeiros momentos do livro, os textos que integram “Cantos de Amor” são marcados,
predominantemente, pelas vozes daqueles que não puderam lutar: dos 10 poemas, 6 são
de irmãos e filhos de desaparecidos. Além da importância encontrada nesses poemas, a
contribuição imagética é fundamental para delinear o contexto desse “capítulo”: antes
dos textos, aparece a xilogravura de uma mãe que segura um bebê, o qual é abraçado
também pelo pai, que aparece compondo a cena familiar. Na página seguinte, na parte
de trás da imagem, encontramos a nota: “o gravado foi feito no natal de 1980 por uma
detida” (p.52). O texto da epígrafe são os últimos versos do poema “Homem preso que
olha a seu filho ”, de Mario Benedetti:
de Amor”, aparecendo em recordações nas quais o familiar revive os dias em que o ente
desaparecido vivia fisicamente a seu lado:
88
Texto original: “Bueno, ahora esto es un secreto, / resulta que me ha contado un ángel de la luna / que te has
olvidado de mi “cara de queso” […] yo te estaré esperando, PAPA, / con la cara de queso de los doce meses.”
89
Texto original: “¿Dónde estás, papá, / que en mi lecho de fiebre / cuando pregunto “por que” / me responden “que
espere” / mientras en le rostro de mami / una lágrima se pierde?”
90
“Branco lenço,
lencinho branco,
que andas procurando,
que andas caminhando.
Lencinho branco
como a pombinha da paz,
que andas passeando a dignidade
de mulher ferida,
mas não vencida.
Lenço Branco
que acompanhas um sonho,
vais contando uma história,
vais acariciando uma página de glória
vais oferecendo amor,
vais dando calor,
vais semeando a esperança. [...]” 90 (p. 92)
90
Título e texto originais: “Pañuelo Blanco”: “Blanco pañuelo, / pañuelito blanco, / que andas buscando, / que andas
caminando. / Pañuelito Blanco / como la palomita de la paz, / que andas paseando la dignidad / de mujer herida, /
pero no vencida. / Pañuelo blanco / que acompañas un sueño, / vas contando una historia, / vas acariciando una
página de gloria / vas brindando amor, / vas dando calor, / vas sembrando la esperanza.”
91
91
“¿Dónde están los desaparecidos?” “A un año de gobierno radical y de impunidad militar”. (Fonte: Imágenes de la
vida. Buenos Aires: Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2007)
92
Essa lei e sua complementária, “Obediência devida” Nº 23.521, foram anuladas pelo Congresso Nacional em 2003,
sendo declaradas nulas pela Corte Suprema de Justiça, em decorrência da inconstitucionalidade que representavam,
em 14 de junho de 2005. Sobre a segunda, é válido aclarar a que se destinava: aprovada em 4 de julho de 1987, esta
lei considerava que os militares não seriam punidos por terem agido em nome de uma obediência devida.
93
A luta das mães que perderam seus filhos, juntamente ao direito de pranteá-los
numa sepultura, é a mesma de Antígona, pelas leis naturais (de precedência da família
sobre o Estado) e pelos direitos inalienáveis à respeitabilidade de todos os homens,
mesmo na condição de defuntos.
Sobre essa comparação com a imagem da personagem grega, vale recuperarmos
algumas questões, aspectos capazes de confirmar a reinserção de uma aproximação
trágica, outrora já assinalada pela saga das mulheres troianas. Em momentos de crise,
pares complementares podem converter-se em antinomias (homem x mulher, senilidade
x juventude, indivíduo x sociedade, vivos x mortos e homem x Deus ou deuses),
gerando enfrentamentos nos quais não existe possibilidade alguma de negociação e, por
isso, o insolúvel conflito se mostra absolutamente trágico. Cada uma dessas oposições é
posta em ação por Sófocles em Antígona.
Disso provêm sua riqueza significativa e a possibilidade aparentemente
inesgotável de atualizá-la, de “chamar para a vida” o que Hölderlin considerava
verdades ocultas, latentes, o “sentido vivo” (lebendige Sinne) do mito, sem que para
isso existam condicionamentos a tempo ou a lugar. Já em Sófocles ecoa essa
perspectiva trans-histórica da fábula antiga. Além disso, tem sido possível comprovar
que há tempos e lugares mais propícios para o nascimento de novos descendentes dessa
história.
Segundo Hölderlin, “Sófocles é um escritor de tempos de crise, de revolução e
de deslocação temporal” (HÖLDERLIN apud SZONDI, 2004, p. 36). Em tempos de
crise, como é visto o século XX (o mais clássico de todos – pela exploração intencional
da estética clássica – e mais rico em cataclismos históricos), o mito de Antígona
esclarece algumas das mais fundas e dolorosas questões acerca da consciência humana
(respeito aos mortos, amor intra- e extrafamiliar; impasse entre justiça e direito; lei
natural e direito positivo; justiça humana e direito divino; pólis masculina e oikos [lar]
feminino; vida pública e ordem privada; sacralidade e profanação, entre outros
aspectos), tornando possíveis releituras e retornos desse mito.
Com a personagem de Antígona e seu enfrentamento às leis ditadas por seu tio, o
tirano Creonte, surge a colisão entre amor e lei, esta vista sob uma perspectiva alheia às
vontades do indivíduo, pois preconiza ordens que vão de encontro às prerrogativas
divinas. O impasse e a impossibilidade de negociação são oriundos do conflito que se
estabelece entre vontade e liberdade. Sobre esse embate, Sérgio Buarque de Holanda
considera que Creonte, ao encarnar a noção abstrata e impessoal da Cidade, choca-se
95
com a concretude representada pelos direitos da ordem familiar, por que Antígona
entrega sua vida. O traço perene dessa incompatibilidade é algo que, segundo o autor, “é
de todas as épocas e preserva-se sua veemência ainda em nossos dias” (HOLANDA,
1995, p.141).
Antígona é filha de Édipo e Jocasta, nascida de um matrimônio condenado pelo
incesto. Irmã de Ismene (a mulher que, na tragédia, encarna o papel subalterno legado à
figura feminina), assim como de Polinice e Etéocles (os irmãos mortos em uma luta
fratricida), Antígona, ao saber que Creonte proíbe os rituais fúnebres destinados a
Polinice devido à sua oposição ao governo do tio e à luta com o irmão que representava
os interesses do poder constituído, decide enterrá-lo, ciente de suas futuras punições,
ações que decorrerão na morte e no fim dos Labdácidas, um guénos ao revés.
Mulher, jovem e fruto de uma sociedade patriarcal, Antígona se apresenta com
sua “piedosa vilania” (ósia panourguésasa. SÓFOCLES, Antígona, v. 74) e se entrega à
morte. Sepultar o corpo, além de um direito divino, determina a impossibilidade de
negociação entre os termos que instauram o conflito no universo sofocliano. O destino
se mostra inexoravelmente duro e inviável, dando passagem ao trágico caminho das
personagens dessa história. Não há como se salvar. No decorrer dos cinco episódios que
compõem a peça, a figura da jovem tebana vai adquirindo proporções que a equiparam à
tirania de Creonte, embora suas leis e sua língua sejam ditadas pelo amor ao corpo
morto do irmão, que precisa voltar à terra e ser abrigado na sepultura.
Ao se pensar na divisão estrutural de Antígona e nas relações discursivas que se
estabelecem, o embate surge já no prólogo, quando Antígona convoca a irmã Ismene
para cumprirem os rituais fúnebres a Polinice. Ambas se mostram conscientes de suas
devidas punições, porém Ismene se nega, por medo e obediência, ao ato de amor suicida
proposto pela irmã. Antígona, então, abala a tirania sozinha e morre, dignificando a
todos os que, transtemporalmente, combatem a injustiça.
Antígona é humana, não é uma enviada dos deuses, o que favorece ainda mais a
aproximação à possibilidade de enfrentamento e afrontamento que se espera da esfera
feminina. Entretanto, como todo herói trágico, ela pulsa entre a carência e o excesso. Ao
enterrar Polinice, ela, em sua unilateralidade, desconhece a Eros ao privilegiar
Thanatos. Assim sendo, o amor, que por toda peça é o leitmotiv de combate, faz com
que ela caminhe em direção à escolha simbólica por seu autossepultamento. Seu amor é
semeado exclusivamente entre os mortos, daí sua hamartía.
96
Mas a culpa de Antígona não é uma questão subjetiva. O que se lhe apresenta é
uma escolha única: é preciso enterrar o irmão. Diante do inexorável, ela assume as
conseqüências e responsabilidades de sua vontade. Desde sua aspiração à realização do
ato que põe fim a própria vida, Antígona passa por todas as fases que desencadeiam a
catástrofe final. Sua deliberação (decorrente do impulso) e sua decisão (decorrente da
plena consciência) se misturam num processo entre intelecto e debate emocional
interno. Vemos, então, que o que prevalece é a decisão estratégica de desmoralizar o
édito de Creonte 93 . A culminância de uma vontade que cresce da disposição individual
à altitude de uma decisão ética é alcançada com o escândalo da sua morte, capaz de
mostrar o quanto são escandalosas as leis do Estado, e disso ela tem noção desde o
princípio. Dessa maneira, a idéia de vencer o poder opressor através de uma ação
pública capaz de minar o poder creontizado (ensandecido em sua arrogância) torna-se a
expressão de uma simbologia que serve às realidades latino-americanas.
A (re)leitura de Antígona e sua possível relação com a atitude das Madres da
Línea Fundadora reitera a necessidade de cumprimento aos rituais fúnebres, sobretudo
a necessidade dos que vivem para enterrar seus mortos. Uma imagem que endossa essa
urgência é vista quando acidentes envolvendo muitas pessoas ocorrem e, de acordo com
a catástrofe provocada, o reconhecimento imediato dos corpos é impossível. 94
Além dessas diferenças no tocante à exumação e à nova relação que se cria com
o filho após esse encontro funesto, os lenços brancos, característicos desde a
constituição do movimento, recebem as inscrições “Aparição com vida dos
desaparecidos” (foto 8), bordadas à mão pelas Madres da Asociación, reafirmando a
premência de revisão jurídica ao que foi feito com os detidos-desaparecidos. Por outro
lado, a Línea Fundadora segue com seu luto, configurado nos nomes e na data de
desaparecimento de seus filhos (foto 9). Junto a essa imagem de presentificação do
corpo insepulto, elas permanecem com as fotos dos desaparecidos (foto 10), ostentando
a incurável ferida deixada pelo regime de terror.
93
A língua da tragédia sofocliana é precisa. Antígona maneja um vocabulário técnico da área do Direito que a faz
referir-se às leis divinas como lógos e nómos, termos nobres, impregnados de valor religioso, político, enquanto a lei
creôntica é chamada kérugma, palavra que significa proclamação, mero expediente, decisão transitória, édito.
94
Dois acidentes aéreos nos dão a dimensão dessa urgência: o da empresa Gol, em setembro de 2006, envolvendo
154 pessoas, e o da empresa Tam, que transportava 178 pessoas, em julho de 2007. Em ambas as tragédias, as
famílias lutaram, incessantemente, pela identificação de todos os corpos, a fim de que estes pudessem ser enterrados e
pranteados dignamente.
97
Foto 8: imagem atual do lenço usado pelas Madres da Asociación (arquivo pessoal).
Foto 9: Madre da Línea Fundadora: nome e data do desaparecimento no lenço (arquivo pessoal).
Foto 10: Madre da Línea Fundadora: cartaz, broche e lenço com a identificação do filho e data
de desaparecimento (arquivo pessoal).
95
“Ni um paso atrás” é uma frase escrita nas bandeiras da Asociación Madres de Plaza de Mayo.
100
96
possível emersão de um “exílio forçado” , situado em termos que ratificam a
necessidade de que essas bandeiras balancem vivas e irreconciliáveis.
96
Embora a noção de exílio não corresponda diretamente à idéia proposta neste estudo, acreditamos na rentabilidade
semântica proveniente do termo, o que permite pensá-lo em proximidade com a noção de afastamento involuntário. A
relação traçada com o enfrentamento das Madres possibilita uma abordagem que tenta compreender os sujeitos aos
quais elas se reportam em defesa. Logo, a idéia de margem também pode ser estabelecida nessa comparação, uma vez
que esses sujeitos são reconhecidos como apartados socialmente, eleitos por elas como órfãos da luta interrompida de
seus filhos. Essa escolha promove, ainda, a reiteração da crença de um legado abraçado pelo ator político Madre,
personagem que se projeta e recria para dar conta de sobreviver à ausência.
97
Texto original: “Lo irracional, lo inesperado, la bandada de palomas, las Madres de Plaza de Mayo, irrumpen en
cualquier momento para desbaratar y trastocar los cálculos más científicos de nuestras escuelas de guerra y de
seguridad nacional. Sigamos siendo locos madres y abuelas de Plaza de Mayo, exiliados de adentro y de afuera.
Sigamos siendo locos, argentinos: no hay otra manera de acabar con esa razón que vocifera sus slogans de orden, de
disciplina y patriotismo. Sigamos lanzando las palomas de la verdadera patria a los cielos de nuestra tierra y de todo
el mundo.” Julio Cortázar (1980), In: GORINI, 2006, p.14.
101
estabelece-se, então, um silencioso pacto entre essas mulheres e quem deseja conhecê-
las.
Composto por onze “princípios” bem definidos, a palavra utopia, que não
aparece escrita – assim como o pacto testemunhal silencioso – inscreve-se na planta
baixa que serve de base para a existência/criação do folheto impresso pelas Madres.
Para que possamos analisar esse encontro da Madre, que se projeta como herdeira de
um legado, com o seu leitor-legatário imaginado, transcreveremos integralmente o texto
que, embora seja publicado despido de qualquer elaboração literária, nos convida à
leitura da composição da personagem que assina os textos nas oficinas literárias:
Nós, Madres de Plaza de Mayo, sabemos que nossos filhos não estão mortos;
eles vivem na luta, nos sonhos e nos compromissos revolucionários de outros jovens.
Nós, Madres de Plaza de Mayo, encontramos nossos filhos em cada homem ou mulher
que se levanta para liberar seu povo. Os 30.000 desaparecidos vivem em cada um que
entrega sua vida para que outros vivam.
O povo tem o direito de se rebelar contra toda injustiça. Não pode existir
democracia e liberdade sem justiça. Nós, Madres de Plaza de Mayo, lutamos contra a
98
“Nuestras Consignas”. Em decorrência das diferenças sintáticas entre o castellano e a variante brasileira do
português, algumas expressões tiveram que ser adaptadas, com o cuidado necessário à preservação do conteúdo do
documento. O texto original está fotocopiado e presente no anexo 1 desta tese.
103
impunidade e exigimos "Cadeia aos genocidas". Sabemos que estes juízes corruptos que
temos jamais farão justiça. Mas nós, Madres, acreditamos que alguma vez o povo
condenará os assassinos.
4) Rejeitamos as exumações
Nossos filhos nos ensinaram o valor que tem a vida. Eles a colocaram a serviço
de todos os oprimidos, dos que sofrem injustiças.
Nós, Madres de Plaza de Mayo, rejeitamos a reparação econômica e dizemos
que a vida só vale vida. Que a vida só vale algo quando a colocamos a serviço do outro.
A vida de um ser humano não pode valer dinheiro, e muito menos a vida de um
revolucionário. O que há que reparar com justiça não se pode reparar com dinheiro. Os
99
radicais e menemistas que perdoaram os assassinos, agora, querem tapar seus crimes
com dinheiro. Ninguém vai pôr preço à vida de nossos filhos. Nós, Madres de Plaza de
Mayo, seguiremos afirmando que os que cobram as reparações econômicas se
prostituem.
6) Rejeitamos as homenagens póstumas
99
Referências à União Cívica Radical, através de Raúl Alfonsín, a Carlos Saúl Menem (Partido Justicialista, leia-se
“Peronismo”) e seus aliados, respectivamente.
104
100
Políticos que representam discursos contrários aos defendidos pelas Madres.
105
Nós, Madres de Plaza de Mayo, sentimos que a única solução para os povos do
terceiro mundo e, particularmente, para nossa América Latina é o socialismo.
A revolução socialista é a única vereda de construção de um mundo mais justo e
solidário. A luta contra o capitalismo é a tarefa obrigatória de todos os que sonham com
uma humanidade que não se sustente sobre a exploração, a escravidão e a miséria de
outros seres humanos.”
aponta dois motivos pelos quais o homem moderno se encontra insatisfeito. Segundo o
autor, primeiramente, é definida uma sociedade marcada pela disputa e pela competição,
na qual a maioria das pessoas não tem acesso ao fruto da riqueza produzida pelo
trabalho, com isso promovendo o confronto, independentemente do Estado, entre os
grupos e os estratos sociais. Como segundo caminho para o tema, ele aborda a falta de
sentido na vida das pessoas em relação à luta contra o que se lhes apresenta como uma
separação derivada dessa sociedade fortemente marcada pela apologia do cálculo eficaz,
promovendo um inevitável questionamento acerca do trabalho organizado
metodicamente como educador da racionalidade humana.
Dessa maneira, a insatisfação do homem moderno representa um paradoxo nas
sociedades atuais: sobrevivência e tecnologia, visto que a competição tecnológica, ao
mesmo tempo em que aparece como uma necessidade para que as sociedades possam
competir economicamente, também promove a dissolução do núcleo ético-político
dessas mesmas sociedades, o que levaria a um confronto entre a lógica da
industrialização e a racionalidade reveladora da experiência política dos povos, entre o
econômico e o político. Para sobreviver, o homem inserido nessa sociedade procura
privatizar a felicidade, a fim diminuir as contradições geradas pelo paradoxo em sua
vida particular.
Como uma possível saída para a recuperação do sentido da vida do homem
moderno, o filósofo propõe uma separação entre o econômico e o político, uma vez que
o político passa a ter um sentido de ação racional razoável a partir de uma perspectiva
ética. Ao mostrar que há angústias que somente podem ser “curadas” pelo papel central
do Estado, definido por Ricoeur como a organização das comunidades históricas
capazes de tomar decisões, o autor argumenta que a ordem econômica somente satisfaz
às exigências racionais e não ao homem, que procura o razoável no universal concreto.
Então, estas comunidades históricas apresentam um sentido além do formal, pois essa
ordem possibilitaria a preservação de uma identidade narrativa e simbólica de uma
comunidade, com a aceitação do conteúdo dos costumes e dos símbolos como normas.
Há, nessa perspectiva, uma existência de política racional e um Estado com uma
estrutura universal, inspirada em Hegel, cujo significado em Ricoeur adquire outra
conotação. O autor defende um Estado democrático que garanta espaços para a
liberdade, igualdade e não-violência, no qual os conflitos possam ser expressos e
negociados, e a educação através da discussão configura um viés para que os cidadãos
tenham os seus direitos assegurados.
108
101
É importante mencionar que o rechaço aos governantes desse país é atribuído à representatividade que eles
tiveram na formação dos militares argentinos, além do conhecimento tácito acerca da forte pressão norte-americana
para que, naquele momento, o regime ditatorial implantado pelos militares fosse espalhado na América Latina. Na
atualidade, com a eleição de Barack Obama, em 2008, as Madres até o momento têm apostado na presença desse
governante para a tomada de novos rumos nas posturas até então exercidas pelos governos anteriores. O fato de o
presidente eleito ser negro e descendente de muçulmanos coloca-o, em relação a elas, como uma personagem capaz
de reverter um quadro desigual e injusto, justamente por trazer em si as insígnias daqueles que, assim como ele, são
excluídos e ignorados no contexto capitalista a que as Madres se referem como produto desse país.
110
Seus lenços brancos, além de ser a memória de seus filhos, acenam para um
contexto que busca a paz, embora seja justamente a presença deles que nos alerte à
ausência de um contexto efetivo para se viver pacificamente. A esse embate que remete
a tantos contextos de conflito entre cidadãos e Estado, as Madres reagem com suas mais
de 1.600 marchas de quinta-feira. A Tebas de Antígona, a República de Platão e a ilha
de Morus, através dessas mulheres, situam-se numa esquina entre a luta e a resistência,
local imaginário onde o encontro com Antígona, Hécuba e Pelagea Wlassowa resgata o
caráter cíclico desse impasse.
Assim como as marchas, os documentos, os projetos e os discursos proferidos na
Plaza, o literário produzido nas oficinas de escritura traz em si esse compromisso com a
imaginação do porvir. Os direitos e obrigações assumidos pelas herdeiras desse legado
ao revés emergem na elaboração ficcional, através de imagens que recuperam o corpo
do desaparecido em distintos momentos de sua vida e ratificam a biografia daquela que
assina como Madre: a Mãe de um Revolucionário.
111
102
Em ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Tradução de Johannes
Kretschmer. Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.
115
103
Em nossa entrevista, Leopoldo nos contou a respeito desse desafio, uma vez que havia uma grande heterogenia
intelectual entre as Madres, o que possibilitou a pluralidade no trato dos temas propostos antes da escritura.
104
Títulos originais: Nuestros sueños, El corazón en la escritura e Pluma Revolucionaria.
116
Torturados também são os corpos dos que vêem a imperativa ausência daqueles
com quem os laços de amor passam a ser restritos à memória. Desaparecidos, esses
corpos passam a existir – de maneira muito mais forte e presente – nas narrativas
construídas por suas mães, no caso, por suas Madres. Ao contrário do que pode enterrar
e representar uma cerimônia de sepultamento, o corpo de um desaparecido ronda sem
terra, sem túmulo e sem simbologias que possam entregá-lo ao rito de passagem que o
eleva e retira dentre os vivos. A ausência aparece muito mais presente, ao convocar
ainda mais o simbólico, capaz de transmutar a perda em uma imagem inextinguível.
A mãe que se encontra com outras com as quais partilha da mesma dor,
inextricavelmente, caminha ao lado do filho desaparecido que a pare como Madre.
Desse encontro-resgate, surgem inúmeras representações capazes de desestabilizar a
língua-de-espuma 105 falada durante a época de silenciamento perpetrada pela ditadura
militar. Novas significações aparecem gestadas pela necessidade de recriar sentidos
ressonantes que não se calam; desdobram-se (e incomodam). Paralelamente a tantas
imagens criadas pelas Madres para representar os desaparecidos (como os lenços
brancos, os cartazes com fotos, as silhuetas e as máscaras 106 ), os escritos produzidos
durante as oficinas literárias tornam-se mais uma importante oportunidade de encontro
com aqueles que, ao desaparecer, se presentificam para sempre na (re)constituição do
sujeito nascido com sua ausência.
105
Referência à definição de Eni Puccinelli Orlandi, em As formas do silêncio (2007), a respeito de uma língua na
qual os sentidos não ecoam, falada, segundo a autora, durante o golpe militar no Brasil.
106
Em relação aos cartazes, logo no princípio do movimento, elas faziam a ronda com fotos que traziam o nome do
desaparecido e a data, aspecto que ainda se conserva na apresentação da Línea Fundadora. Além dessas
representações, em 1983, durante a terceira Marcha de Resistência, elas decidem criar siluetas de papel, sobre as
quais novamente apareciam o nome e a data de arresto dos desaparecidos. Em 1985, a nova performance será
realizada por inúmeras pessoas trajando máscaras brancas, simbolizando os 30.000 detidos-desaparecidos e
expressando o protesto relativo ao silêncio dos meios de comunicação durante os julgamentos dos envolvidos nas três
primeiras juntas militares.
119
107
Título e textos originais: “Una anécdota santiagueña”. “– Faltaba más, profesor. Sólo estaba pensando si lo mando
“a” o “para la” mierda.” (Idem: 3).
120
108
aprendendo da vida tudo que ela nos dá, e aplicando no momento oportuno.” Nessa
perspectiva, ainda que nos seja permitido desconhecer alguns traços biográficos de
María del Carmen (ser professora), não nos é lícito ignorar que a personagem que
escreve ressalta a importância da vivência para a edificação de seu projeto narrativo.
Com efeito, nessa empreitada, ela compartilha com suas companheiras de luta uma
trajetória que, alheia à sua história docente, será escrita com o material que a vida lhes
deu, encontrado e conformado no grupo. É o desaparecimento do filho que legitima essa
escritura.
A urdidura criada resgata o silencioso pacto presente no texto seminal do
movimento: a carta de apresentação/princípios éticos “Nuestras consignas”, transcrito
integralmente no capítulo anterior. Novamente, na planta baixa dessa construção
textual, lemos a apresentação e a reivindicação ao reconhecimento de um complexo
ethos, constituído pelo sujeito que escreve suas memórias (através da ficção),
recuperando uma trajetória antes e depois do desaparecimento de seu filho, cujas
lembranças se misturam biograficamente à composição da personagem Madre-
escritora.
Além desses elementos, matiza-se um intento de reescritura biográfica do ser
ausente. Contudo, isso se transforma na releitura de um texto apócrifo; não há a voz do
desaparecido, não há escritos de sua história. O corpo, perenemente impossibilitado de
ser sepultado, volta a existir nas linhas da Madre, quem conta uma história do ser
amado tingido, marcado e protegido por aquela que, novamente, será responsável por
trazê-lo ao mundo. Simbióticos, Madre-texto-desaparecidos existem através da
personagem que se cria e, no mais primário sentido da ficção, dá forma ao testemunho e
à memória da imagem, há mais de trinta anos, constitutiva de sua composição cênica.
Embora as narrativas de Nossos sonhos não configurem um relato da tragédia
per si, a autoria dos textos delata o semblante testemunhal dessa escritura. Quem assina
são as Madres de Plaza de Mayo, personagens nascidas com o desaparecimento de seus
filhos. Logo, a arquitetura dessa ficção elaborada textualmente projeta a construção de
um sujeito que, após ter sido vítima do desaparecimento forçado de seus entes queridos,
seguirá lutando para a edificação de um dever de memória, ao propor o esboço de outra
história como legado.
108
Título e texto originais: “La sabiduría”. “(...) La sabiduría consiste en poder vivir bien, aprendiendo de la vida
todo lo que ella nos da, y aplicándolo en el momento oportuno.” (Idem: 3).
121
“Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração
insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezem na história do outro: não
por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica,
assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva
do passado pode nos ajudar a não repetir infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra
história, a inventar o presente” (GAGNEBIN, 2004, p. 85)
109
Títulos originais: Historia de las Madres de Plaza de Mayo e Luchar Siempre.
123
110
Títulos originais: “Nuestros hijos, nuestra lucha”; “Tejiendo sueños (ficciones)” e “Nosotras”.
111
Título original: “El taller (1)”. É interessante ressaltar que os relatos que compõem esta parte não integram um
texto atrelado a um determinado capítulo. Como um prólogo, eles conduzem os primeiros passos do leitor rumo à
compreensão de que os escreve.
124
agora me atrevo a escrever porque com a luta compreendi que tudo tem importância,
tudo tem sentido, de tudo se pode aprender, inclusive do que eu posso escrever, por
estranho que me pareça. Só tem que aprender a olhar como quando alguém lê” e “(...)
Sei que não sou capaz, mas não quero ficar de fora” 112 (1991, p. 1).
Numa mescla de medo do desconhecido e necessidade de contar uma história, o
porvir é escrito com vozes que, mesmo sentindo-se incapazes para tal empreitada, se
dispõem ao intento literário como parte da luta e resgate do filho. Presente não só no
“olhar de Susana”, mas como nos outros 30.000 detidos-desaparecidos que aguardam
(por suas Madres) o dever de contar a “história cotidiana de nossos filhos, a pequena
113
grande história de cada militante revolucionário, a crônica de sua entrega” (idem, p.
8), o desaparecido ganha voz através da elaboração discursiva projetada pela memória
da Madre.
O fragmento acima transcrito é um dos textos que não aparece no índice. Sem
título e autoria, ele pode ser comparado aos prólogos de Macedonio, pois nele se
traduzem os projetos de escritura do livro. Com base no questionamento “quem
escreverá a história de nossos filhos?”, a autora delineia os traçados de uma escritura
futura que, mesmo ausente em Nossos sonhos, se torna presente no plano narrativo,
114
como “algo que ainda devemos a gerações futuras e a eles especialmente” (idem).
Em interstícios, a memória aparece com distintas cores, ao compor um quadro que,
embora fragmentado, representa harmonicamente seu propósito.
Em relação ao que pode configurar o ato de narrar o horror, um breve paralelo
com o contexto brasileiro mostra-se interessante, ao pensarmos na proposta narrativa de
livros como O que é isso companheiro?, de Fernando Gabeira. Com um duplo propósito
de dar voz à experiência traumática e imaginar um intento de denúncia reelaborado no
literário, a narrativa se projeta numa hipótese contra o esquecimento, ao (re)tratar no
presente da escritura as imagens do passado, atualizando o tempo vivido pela crença no
porvir. O ato de narrar se constitui como um desafio que, segundo Renato Franco:
112
Textos originais: “Y ahora me pongo a escribir, y estoy bajo la mirada de Susana y de sus compañeros”, “Sí, ahora
me atrevo a escribir porque con la lucha comprendí que todo tiene importancia, todo tiene sentido, de todo se puede
aprender, incluso de lo que puedo escribir yo, por feo que me parezca. Sólo hay que aprender a mirar como cuando
uno lee” e “Sé que no soy capaz, pero no quiero quedar afuera.”
113
Texto original: “historia cotidiana de nuestros hijos, la pequeña gran historia de cada militante revolucionario, la
crónica de su entrega”.
114
Texto original: “¿quién escribirá la historia de nuestros hijos?”, “algo que todavía debemos a las generaciones
futuras, y a ellos especialmente”.
125
115
“O testemunho: entre a ficção e o “real”, in: História, Memória e Literatura. O testemunho na era das
catástrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
116
Título e textos originais: “Tandil arriba”. “conversar tranquilamente horas y horas proyectando un futuro que no se
cumplió, pero que lo programábamos, todo ello valía la pena vivirlo y sentirlo. / Quiso la vida que todo este sueño
que hoy ha vuelto para mí y que es parte del pasado sea un tónico para el alma: el recuerdo de algo que fue y que
sirve para que, al despertar, diga que no importa, pues giraremos la vela de la nave para tocar otros puertos, y vivir y
disfrutar otros elementos, otras situaciones.”
126
projeta como uma releitura do passado como, também, serve de base para o percurso
futuro que Juanita (como costuma ser chamada) se destina a seguir. Girar a vela, tocar
outros portos e chegar a outras situações são promessas de não esquecimento e
perpetuação de uma luta que a autora considera para seguir em seu sonho, metáfora que
resgata o filho e se projeta no encontro com suas companheiras, com as quais ela
escreve seu desejo de futuro e dá nome ao livro.
Essa aposta no porvir é confirmada em “Marcha da Resistência” (1991, p. 14),
texto também assinado por Juanita, e em “Com este lenço branco” (idem) 117 , de autoria
coletiva. Em relação à rememoração das imagens da primeira Marcha da Resistência,
realizada em dezembro de 1981, a autora rememora o que representou a ocupação da
Plaza por 24 horas para o projeto a que se propuseram construir.
Após uma série de recordações, ela afirma: “sim, nós Madres lutamos pelos que
foram levados, mas também pelos que vêm e virão (...)” (idem), e, sem falar de
desaparecimento, delata o trauma e imagina o futuro; à espera dos que “virão”, a autora
“toca” o inimigo, ao mostrar-se vigilante e fiel àqueles que “foram levados”. O filho
desaparecido é ressignificado na luta compartilhada e na ambição da perpetuidade do
movimento, resgatado em “Com este lenço branco”, nos versos: “com nossos lenços
brancos / atamos um destino / a novas gerações / lhes marcamos um caminho” 118
(idem).
Com efeito, a crença no devir aparece junto às recordações da personagem que
escreve, entremeadas pela imagem do sujeito coletivo constituído pela promessa de
dignificação do desaparecido. Indissociáveis, a memória e o testemunho das autoras se
revelam num plano decorrente do evento trágico, ora reelaborado pelo fazer literário. O
trágico, nesta perspectiva, se configura no mote de: “com nossos lenços brancos / vamos
juntas companheiras / a justiça está na Plaza / 30.000 filhos esperam” 119 .
Em meio aos vários momentos de escrita coletiva de Nossos sonhos, “Com este
lenço branco” reaparece em O coração na escritura, seis anos após a publicação dessa
escrita da transição. Um dado curioso é em relação à sua presença nesse segundo
momento, pois será o único texto de autoria coletiva presente em O coração. Sua
reinserção confirma a voz coletiva clamante por justiça. Nesse texto de conclamação à
117
Títulos originais: “Marcha de la Resistencia” e “Con este pañuelo blanco”.
118
Respectivamente, textos originais: “sí, las madres luchamos por los que se llevaron, pero también por los que
vienen y vendrán (...)” e “con nuestros pañuelos blancos / anudamos un destino / a nuevas generaciones / les
marcamos un camino”
119
Texto original: “con nuestro pañuelo blanco / vamos juntas compañeras / la justicia esta en la Plaza / 30.000 hijos
esperan”.
127
Plaza, é apresentado o ápice dessa comunhão, fruto da herança deixada pelos entes
queridos, os quais passam a representar os 30.000 desaparecidos. Fortalecidas pela
representatividade do grupo, elas se autoconvocam ao encontro marcado na Plaza: “com
esse lenço branco / vamos juntas companheiras / o caminho está traçado / já a Plaza nos
espera (...) a unidade nos dá a força / contra o perdão e o esquecimento / contra todos os
traidores / contra todos os militares” 120 .
Ao chamar para a cena literária a vestidura que completa a criação das
personagens de si mesmas, as Madres assumem o lenço branco como objeto de
identificação pessoal e intransferível, paralelo somente à dor e ao percurso contra o
esquecimento travado há mais de trinta anos. Assim como no teatro grego, em que a
máscara (persona) caracterizava o papel desempenhado no contexto dramático, os
lenços brancos representam imagens que denotam e diferenciam a mãe marcada pelo
desaparecimento do filho entre outras que a miram na multidão: ela é Madre. Em
perspectivas contrárias, eles não dissimulam ou preservam a face de quem se expõe
publicamente. O rosto é mostrado envolto pela fralda-lenço, símbolo da ausência.
A temática do “sujeito coletivo” que escreve o futuro com suas memórias é a
imagem emergente do fragmento de Hebe de Bonafini, texto que, embora não apareça
no índice, indica ao leitor a identidade complexa desse ator político: “Talvez toda nossa
121
história possa resumir-se como um passo do eu ao nós” (idem, p. 25). Vale ressaltar
um aspecto interessante que se agrega a essa composição: a autora usa o pronome
nosotros, primeira pessoa do plural masculina, em espanhol. Ao fazê-lo, há a reiteração
de uma comunidade imaginada, da qual não só as Madres fazem parte, mas sim todos
aqueles que lutam por questões que sustentam o movimento por elas empreendido.
Nessa entidade complexa, nosotros conjuga o filho desaparecido, o sujeito parido por
ele e todos aqueles que se encontram em situações iníquas. Ainda versando sobre sua
constituição, a autora do fragmento volta na página seguinte para afirmar: “eu sou como
a menina de minha infância / eu sou como minha mãe na cozinha / eu sou como meu pai
trabalhando / eu sou como meus filhos me pariram” 122 (idem, p. 26).
A recordação de seus familiares é mais um matiz que se agrega à formação dessa
personagem. Imagens privadas – mãe cozinhando – se mesclam à esfera pública – pai
120
Texto original: ““ con ese pañuelo blanco / vamos juntas compañeras / el camino está marcado / ya la plaza nos
espera (...) la unidad nos da la fuerza / contra el perdón y el olvido / contra todos los traidores / contra todos los
milicos”
121
Texto original: “Quizá toda nuestra historia pueda resumirse como un paso del yo al nosotros”.
122
Texto original: “yo soy como la niña de mi infancia / yo soy como mi madre en la cocina / yo soy como mi padre
trabajando / yo soy como mis hijos me parieron”.
128
trabalhando –, como elementos que, junto ao filho desaparecido, são responsáveis por
aquilo que Hebe considera ser/representar. A forte relação travada com seus mortos faz
com que a autora, além de revivê-los na escritura, aproxime-os moralmente de si
mesma, questionando a noção de tempo, reiterada pela antítese vida e morte.
Ao analisar a importância sobre esse dever de legado, Roberto DaMatta (1997)
propõe uma interessante perspectiva a respeito dessa proximidade moral entre vivos e
mortos. Ainda que o tema por ele tratado não se refira ao contexto das Madres, é-nos
válido pensar num processo semelhante ao percurso de formação descrito por Hebe para
sua composição.
Ao mencionar a abordagem de Gilberto Freyre, em Casa grande e Senzala
(1933), acerca da hierarquia patriarcal derivada da presença dos mortos no governo e na
vigília dos filhos, netos e bisnetos, DaMatta recupera o mito de Inês de Castro, “a que
depois de morta foi rainha”, para exemplificar “o retorno do morto para ocupar o lugar
momentaneamente usurpado por seus inimigos” (DaMatta, 1997, p. 144). Com efeito,
ao propor uma noção de “endocanibalismo”, o sociólogo explica a perpetuação (na
sociedade brasileira) dos mortos nas relações com os vivos, fazendo destes um produto
daqueles.
A discussão seguinte a essas reflexões se distancia completamente da
compreensão contextual das Madres. Preocupado em analisar as relações entre a casa, a
rua e o outro mundo (o mundo dos mortos) no Brasil, DaMatta encaminha sua
argumentação para a justificativa dos estranhos e complexos laços de poder,
desempenhados pelas idéias de compadrio e parentesco. Entretanto, ao falar da
continuidade dos seres ausentes, a analogia com a proposta desempenhada pelas Madres
nos conduz ao problema do corpo insepulto, uma vez que o sujeito não é vivo nem
morto: é desaparecido.
Se uma proposta “endocanibalística” emerge da relação de Hebe com seus pais,
a relação com o filho desaparecido deve ser lida e compreendida sob uma perspectiva
“gestacional”, já que ela se considera parida pelo filho e por seus ideais. Ela não só se
alimenta da imagem por ela criada de seus filhos, como também é disso que provém sua
vida. Dessa forma, o ser com o qual ela afirma seu inquebrantável compromisso é a
imagem mais presente em Nossos sonhos, ao qual poderíamos acrescentar o subtítulo:
“a projeção dos sonhos de nossos filhos”.
A personagem que escreve suas memórias, através da possibilidade poética
oferecida pela literatura, dá voz ao sujeito marcado pelas experiências de perda e resgate
129
do desaparecido, que ora aparece tingido por traços de suas infância e juventude, ora se
presentifica na versão palimpsêstica atualizada verbalmente pela escritura materna.
Entranhados, Madre e filho caminham juntos, tecendo discursos capazes de evocar a
metáfora e a comparação como elementos fundamentais para o nascimento dos textos
escritos nas oficinas.
Na elaboração biográfica do desaparecido, a semelhança criada entre a
identidade dos filhos só pode ser estabelecida com quem, na memória materna, “deu sua
vida para que outros vivessem melhor.” (1991, p. 11). Logo, numa sociedade
predominantemente cristã, a imagem que mais recupera essa relação de parecença é a de
Jesus Cristo, aspecto que confirma a escrita da transição, pela reiteração do arquivo
afetivo mítico mariano, presente em muitos momentos de Poemarios.
E, se nos poemas publicados dez anos antes havia o clamor à Virgem Maria –
ser semelhante na dor –, em “Carta a Jesus desaparecido”, texto também de Hebe de
Bonafini, o que vemos é uma proposta de interlocução epistolar, na qual a autora
escreve ao redentor para questioná-lo a respeito de sua imagem tal como tem sido
explorada pela Igreja, instituição que ela julga responsável por usá-lo para “fins
espúrios”. Nos trechos finais, Hebe reitera sua aposta no porvir, ao afirmar:
“mas quero que saibas que te sinto meu filho, não porque eu seja como a virgem,
senão porque a luta te transformou, porque teu cabelo grande e tua barba foram
símbolo de uma época em que nossos filhos lutavam pela Utopia, e porque 33 anos
foi a idade média de todos os desaparecidos. A história se repetiu e se repetirá, mas
sempre haverá mães e filhos que pensem que esta vida é a única pela que vale a pena
viver, brigar, e se necessário morrer por ela e para que outros vivam.” 123 (Idem, p. 11,
grifo nosso).
123
Textos originais na seqüência em que são traduzidos: “dio su vida para que otros vivieran mejor.”, “pero quiero
que sepas que te siento mi hijo, no porque yo sea como la virgen, sino porque la lucha te transformó, porque tu pelo
largo y tu barba fueron símbolo de una época en que nuestros hijos luchaban por la Utopía, y porque 33 años fue la
edad término medio de todos los desaparecidos. La historia se repitió y se repetirá, pero siempre habrá madres e hijos
que piensen que esta vida es la única por la que vale la pena vivir, pelear, y si necesario morir por ella y para que
otros vivan.”
130
com quem elas ratificam uma maternidade criada na reelaboração biográfica do filho
desaparecido.
Em “nossos companheiros”, as Madres assinam um texto coletivo que, ao trazer
à luz o percurso por elas empreendido, redignifica o filho desaparecido e se projeta
como um plano narrativo de memória. Com fragmentos de várias delas, os textos sem
referências nominais possibilitam a leitura desse indivíduo que, contraditoriamente à
noção de singularidade, é a imagem marcada por uma composição plural, pelo enclave
de biografias escolhidas como parte de um trajeto rumo ao destino selado na herança
(também escolhida) de seus filhos. Ao terminar o texto com a frase “Hasta la victoria
siempre, compañeros” (idem, p. 13), Hebe incorpora em seu relato a voz de Che
Guevara, na seqüência que finaliza outros momentos em que a Plaza e a luta
emblematizam os elementos de união com os “companheiros” do título, evidenciados
em trechos como:
“Deixamos por um momento a plenitude da praça, as idas e vindas dentro da Casa
para unir-nos numa comunhão de sentimentos; sentimentos que souberam despertar
todos os que, dia após dia, hora após hora, compartilham conosco esta luta tão digna
que representa nada mais nem nada menos que a nossos queridos filhos”
“(...) para não esquecer jamais e seguir adiante em busca de mais e mais metas
de amor, necessitamos encontrar-nos, parar-nos, mirar-nos, conhecer-nos. E por isso
encontrei, mãe neste caminho das Madres, estes filhos novos.”
“(...) E, como um tipo de mães muito especial que somos, queremos merecê-
los todos, e esperamos que se sintam, do mesmo modo, nossos filhos.” 124 (Idem –
grifo presente no texto original).
124
Texto original: “Dejamos por un momento la plenitud de la plaza, las idas y venidas dentro de la Casa para
unirnos en una comunión de sentimientos; sentimientos que supieron despertar todos los que, día tras día, hora tras
hora, comparten con nosotras esta lucha tan digna que representa nada más ni nada menos que a nuestros queridos
hijos” “(...) para no olvidar jamás y seguir adelante en busca de más y más metas de amor, necesitamos encontrarnos,
pararnos, mirarnos, conocernos. Y por eso encontré, madre en este camino de las Madres, a estos hijos nuevos.” “(...)
Y que, como un tipo de madres muy especial que somos, queremos merecerlos a todos, y esperamos que sientan, del
mismo modo, nuestros hijos.” É válido lembrar que o termo Madres permaneceu com sua grafia em espanhol, a fim
de preservarmos o sentido analisado neste estudo.
131
atualizada nesses relatos se configura como uma ligação inevitável com a “subjetividade
que rememora o presente” (SARLO, 2007, p. 49), agregando-lhes novas significações e
agentes.
Embora os aspectos de engajamento e consciência política ganhem muito mais
dimensão/projeção em O coração na escritura e Pluma Revolucionária – uma vez que
se encontra entranhado na elaboração poética, não apenas servindo como mote para um
projeto de memória –, em Nossos sonhos esse percurso é sinalizado no anúncio do plano
literário futuro.
Considerado por Hebe de Bonafini como um livro de “escrita ingênua”, Nossos
sonhos ratifica seu caráter de transição, ao conjugar imagens ressignificadas de
Poemarios e antecipar uma escritura que, segundo a presidente da Asociación, será mais
trabalhada posteriormente com a publicação dos contos e poemas que integram O
coração e Pluma. 125 Com efeito, o momento, que embora pareça “ingênuo”, insere uma
perspectiva interessante, pois coteja a presença de uma importante analogia literária já
mencionada: a personagem gorkiana-brechtiana Pelagea Wlassowa.
Ainda que essa comparação se tonifique em outros momentos do intento
literário, a figura da mãe que, com a perda do filho, ergue sua bandeira (e seus ideais)
para dar continuidade à luta, já se insere na concepção da personagem que escreve.
Distantes da obsessão de Antígona pelo corpo insepulto e das vozes do coro
troiano que entoa sua condição desgraçada, as Madres se projetam na frente de batalha
contra a impunidade, ao almejarem que seus escritos se tornem leituras de memória.
Assim como a personagem russa Pelagea Wlassowa, elas não só assumem a fala dos
desaparecidos como ocupam seu lugar, convocando para a ordem pública a
complexidade de um espaço simbólico marcado pela ausência de justiça e pelo vexame
dos anos ditatoriais.
“O coletivo”, “o filho desaparecido” e “a escrita do porvir” compõem o tríptico
indissociável que dá forma ao testemunho materno. Frente a essa perspectiva, a utopia
por um mundo mais digno será escrita pelo viés da recordação, aspecto fundamental
para as narrativas que visam o resgate dos ideais dos desaparecidos. Logo, se a
singularidade do evento ditatorial argentino, marcado por tentativas atrozes de
silenciamento, fez com que não houvesse corpo para narrar o horror e dar seqüência à
125
No programa Pariendo sueños, emitido pela rádio “La voz de las Madres”, Hebe considerou que há dois
momentos importantes para a compreensão das oficinas literárias, ao argumentar que os relatos de Nossos Sonhos se
configuravam como um projeto inicial, sendo mais elaborado nos dois livros seguintes que integram esta tese.
(Entrevista realizada em 19/11/2007, Buenos Aires, Argentina.).
132
Como uma metáfora da estação, o livro aguarda para retornar em outras mãos.
As folhas que não dormem passam a compor a matéria que alumbra e dá forma à crença
de que o passado pode reescrever o futuro, tempo que se inscreve nas funções
prospectiva e projetiva da memória. A valorização dessa narração, em contextos
marcados pela singularidade de determinados eventos, endossa o caráter ético dessa
proposta de rememória, a qual se constitui a partir de um dever assumido pelo
sobrevivente, como considera Jacy Alves das Seixas:
126
Texto original: “Cuando termina el taller / y se recogen las hojas / siento que guardan allí / todas las nuestras
cosas. / Quedan durmiendo tranquilas / adentro de las carpetas / los sueños, las realidades / de todas las cosas
nuestras. / ¿Se quedarán tan dormidas / las hojas de nuestros sueños / o saltarán por ahí / buscando sus propios
dueños?
133
É parte dessa função ética o resgate das ruínas do passado para o plano de
edificação do futuro. Em diálogo com os textos de Nossos sonhos, a memória que
irrompe, e cuja irrupção traz à luz narrativas diversificadas, cria vozes às recordações
anteriormente silenciadas.
Para essa construção, algumas imagens são incorporadas à cena da escritura; a
“viagem” se torna uma estratégia de composição narrativa que viabiliza as lembranças e
projeções oníricas, compostas por novas personagens inseridas na ilustração do plano
literário. Fazem parte da viagem também algumas perspectivas interessantes que se
agregam ao texto: a metáfora do deslocamento, a elaboração da despedida e a
imaginação da morte, cuja inserção é inevitável à memória de quem escreve a partir de
uma identidade coletiva ressignificada pela perda do ente querido.
127
No capítulo “Tecendo sonhos” , as cinco narrativas de autorias distintas
tratam dos deslocamentos como uma metáfora do fio de Ariadne, imagem que se torna
rentável à elaboração de novas possibilidades interpretativas de memória. Entrelaçadas
por um mesmo enredo, essas histórias trazem a viagem como sinédoque da ausência, ao
serem recriados universos oníricos compostos por personagens que, inventadas ou não,
retornam de narrativas anteriores
De acordo com a ordem em que aparecem em Nossos sonhos, os relatos
ficcionais que compõem “Tecendo sonhos” conjugam personagens em trânsito e de
partida. Como um ensaio de despedida, pessoas que deixaram seu lugar de origem,
rumo ao sonho de (re)construir-se em outro espaço, tornam-se importantes elementos à
composição textual erguida pela ossatura memorialística de quem assina tais relatos. É
da Madre escritora o papel (nos dois sentidos da palavra) que dá forma à criação de um
intento ficcional, o qual retoma o compromisso com o projeto de história dos
desaparecidos, pelo viés da escrita imaginativa.
Com efeito, nesse cenário de resgate e modelação narrativa, imagens como a de
um velho espanhol (residente na Argentina) que, ininterruptamente, rememora o tempo
vivido em seu país, bem como a de jovens emigrantes de sua cidade natal em busca de
um caminho mais próspero em outras instâncias, constituem-se como aspectos
127
Curiosamente, a tal capítulo é inserido um indicativo de ficção.
134
128
Essa estratégia literária remete à elaboração proposta por Saer, em O enteado, ao reinserir o diálogo presente no
capítulo anterior sobre a proposta de reelaboração discursiva da memória que se projeta a partir da distância
espaciotemporal.
129
Texto original: “Una fuente escondida y un caminar con sed / y al final del camino / detenerme y beber: no pediría
a Dios en el mundo otro bien. / Y si Dios no pudiera mis ruegos atender / yo diría a Dios: “Nada te pido que me des /
a la fuente renuncio y al camino también / pero hasta que me muera, consérvame la sed”
130
Texto original: “Las estrofas de esa poesía se grabaron para siempre en mi memoria, producto de un sueño que me
dio felicidad y me reconfortó”
135
escutando teus contos, contemplando as ondas, que, quando são altas, me dão um pouco
de medo, mas a teu lado me sinto forte... porque são tuas ondas” 131 (idem, p. 24).
A construção dessa narrativa, com efeito, propõe uma inevitável comparação à
luta empreendida pelas Madres. Como um ensaio de “cerimônia do adeus”, a autora se
despede da história do velho marinheiro, deixando-nos a presença do menino Fidel, cuja
fidelidade ao amor pelos contos de Don Claudio pode ser lida como um projeto de
continuidade ao alumbramento realizado pela metáfora literária plasmada no farol.
Assim como o velho marinheiro, Mimí reconhece que a trajetória de seu lenço
branco é marcada por ponteiros incapazes de deter o tempo. No entanto, é atrelada à
esperança de um projeto do porvir que a narradora propõe a seus leitores – e a si mesma
– a imagem de Fidel, construindo, assim, uma nova mirada acerca do legado cuja
herança reside num caminho, segundo a Madre-escritora, de luz. Para chegar “ao farol”,
Fidel e todos aqueles fiéis à luta por elas traçada reconhecem as altas ondas, porém não
se intimidam. A crença nesse projeto inquebrantável de dignificação da memória, ora
reiterado na escritura do conto, ressalta o valor de uma composição que se imagina
eternizada, ao ensaiar sua primeira despedida.
Ao iluminar, o farol direciona, e os que se guiam por esta imagem sabem que,
com o desvio da rota, podem perder-se. Logo, essa aproximação se torna responsável
pela tradução literária da proposta histórica presente nos outros livros editados pelas
Madres, como História e Lutar Sempre. Inseridos no intento literário, os ideais dos
desaparecidos, ao serem transformados na composição do percurso empreendido pela
Madre, corroboram os referenciais para esse plano de memória e dignidade. É deles a
função – assim como a do farol – de nortear o caminho da personagem que escreve,
bem como de quem “navega” em busca de possibilidades ressignificadas de um passado
indeterminado pelo tempo.
Ademais da noção de deslocamento, as viagens nesses relatos servem de base
para a construção de uma narrativa viável à reiteração de imagens oníricas. O termo
ficção confirma o literário, ao ser escrito numa perspectiva que conjuga a necessidade
da escritura e o imaginário projetado sem sanções. Nessa amplitude interpretativa, a
viagem passa a ser lida como um plano no qual o passado e o presente se cruzam,
entrecortados por aspectos que a Madre projeta no futuro.
131
Título e texto originais: “Ao Farol”, “– No dejaremos de estar a tu lado, abuelo Claudio (...). Y todos los días
estaremos sentados juntos a vos, escuchando tus cuentos, contemplando las olas, que, cuando son tal altas, me dan un
poco de miedo, pero a tu lado me siento fuerte... porque son tus olas.”
137
132
Título e textos originais: “Los ojos de papel”, “los miraba sonriente, pues estaban juntos.”
138
133
A ordem de menção dos livros é referente à que eles aparecem no presente estudo.
139
Assim como nos contos analisados das Madres, a criança que se indicia como
coadjuvante adquire um protagonismo que questiona a história, ao atribuir-lhe outros
sentidos. Um dos momentos apicais de Primavera é em “Uma palavra enorme”, parte
em que Beatriz questiona a palavra “liberdade”, ao tratá-la pelo duplo sentido dentro do
contexto familiar e, conseqüentemente, de seu país. A transposição da relação da
criança com a liberdade faz com que as reflexões de Benedetti sejam projetadas através
de Beatriz, em passagens como:
“Liberdade quer dizer muitas coisas. Por exemplo, se uma pessoa não está presa, diz-
se que está em liberdade. Porém, meu pai está preso, mas está em Liberdade, porque
assim se chama a cadeia onde ele está há muitos anos [...] Meu pai é um preso, mas
não porque tenha matado, roubado ou chegado tarde à escola. Graciela (a mãe) diz
que meu pai está em Liberdade porque teve idéias. Parece que meu pai era famoso por
suas idéias. Eu também tenho idéias, mas ainda não sou famosa. Por isso não estou
em Liberdade, ou seja que não estou presa.” 134 (BENEDETTI, 1982, p. 91, grifo
nosso).
134
Texto original: Libertad quiere decir muchas cosas. Por ejemplo, si una no está presa, se dice que está en libertad.
Pero mi papá está preso y sin embrago está en Libertad, porque así se llama la cárcel donde está hace ya muchos
años. (…) Mi papá es un preso, pero no porque haya matado o robado o llegado tarde a la escuela. Graciela dice que
papá está en libertad, o sea está preso, por sus ideas. Parece que mi papá era famoso por sus ideas. Yo también a
veces tengo ideas, pero todavía no soy famosa. Por eso no estoy en Libertad, o sea que no estoy presa.”
140
à noção de viagem como deslocamento de sentidos, uma vez que integram o plano
traçado desde o texto de abertura: na planta baixa, a memória reelaborada em escritura.
Ricarda agora não voa com seus patins; ela se encontra perdida num labirinto
que, à medida que a narrativa se desenvolve, toma proporções aterradoras, das quais a
personagem só consegue escapar ao projetar um retorno ao útero da mãe, “onde se
sentia protegida e segura na água de seu ventre” 135 (1991, p. 30).
A personagem que escreve resgata a imagem da mãe como locus de proteção, ao
evocar a imagem do útero como espaço de cuidado, onde Ricarda encontra segurança,
assim como um bebê durante a gestação. Novamente, a idéia do ventre e a metáfora de
uma eterna gravidez são inseridas nessa escritura, da qual a narradora não pode – nem
deseja – ser indissociada. Na composição textual, é ratificado o discurso “Nossos filhos
nos pariram”, proferido na Plaza e base constitutiva do movimento.
Nesse encontro com um lugar impossível, no entanto repleto de significações,
um plano de escritura com o desconhecido é realizado pelo viés ficcional elaborado na
oficina. O retorno ao útero traduz a inviabilidade paralela ao regresso do filho
desaparecido. Paralelas, também, são as impossibilidades de retorno de Santiago tal
como Beatriz o espera, presentes na hipótese de leitura do aeroporto, lugar que dá nome
a outro momento no qual a personagem aparece como narradora.
Nesse lugar de passagem, onde se configuram as relações de chegadas e
partidas, Beatriz espera pelo pai, anunciando um encontro que, no livro, não chega a
acontecer. O espaço de deslocamento é tratado como uma das lembranças da menina em
relação à presença paterna, com descrição de imagens que o equiparam aos ambientes
onde se realizam as sanções.
Ao agregar em seu relato um policial que “pega o passaporte e lhe põe um selo
136
que diz Este menino chegou tarde” (BENEDETTI, 1982, p. 180), a personagem
recupera o medo relativo às punições escolares, questões, segundo Beatriz, possíveis de
levá-la à Liberdade, com maiúscula. Assim como Ricarda, personagens representantes
de um medo maior aparecem para denunciar o sujeito que, através do olhar infantil,
enxerga imagens que o aterrorizam. O labirinto e o aeroporto ratificam uma
transitoriedade que, durante o percurso, podem conduzir ao desencontro, à perda do
caminho.
135
Título e textos originais: “El Laberinto de Ricarda”, “(…) donde se sentía protegida y segura en el agua de su
vientre.”
136
Texto original: “Cuando un pasajero llega tarde al aeropuerto, hay un policía que agarra el pasaporte y le pone un
sello que dice Este niño llegó tarde.”
141
“Quando o aeroporto está em greve, é muito mais fácil conseguir um táxi para o
aeroporto. Há alguns aeroportos que além de táxis têm aviões. Quando os táxis estão
em greve, os aviões não podem aterrissar. Os táxis são a parte mais importante do
aeroporto.” 137 (Idem, p. 181).
O táxi que a leva ao aeroporto é lido como a imagem da volta de Santiago, possibilidade
que só se realiza pela idéia que dele provém no relato: veículo capaz de percorrer o
trajeto rumo ao reencontro. Constantemente em ameaça, esse caminho é narrado sob as
intempéries que postergam um final indiciado desde o primeiro momento de Primavera.
O encontro interrompido ocorre em todos os momentos do livro, marcando
confrontos internos capazes de dar voz ao conflito maior: a ausência do ser amado, do
familiar detido. Em Respiração Artificial, Ricardo Piglia eleva tal proposta ao duelo
entre narrativas historiográficas oficiais e perspectivas ficcionais. O autor constrói uma
hipótese de urdidura joyciana, na qual as mesclas de histórias nacionais antigas com
histórias relacionadas ao período ditatorial (em uma espécie de jogo de espelhos, no
qual se diz uma coisa querendo afirmar outra) antecipam ficcionalmente uma idéia que
será defendida, posteriormente, em Crítica e Ficção (1986):
“A ficção trabalha com a crença e neste sentido conduz à ideologia, aos modelos
convencionais de realidade e, logicamente, também às convenções que fazem
verdadeiro (ou fictício) um texto. A realidade está tecida de ficções. A Argentina
destes anos é um bom lugar para ver até que ponto o discurso do poder adquire aos
poucos a forma de uma ficção criminal. O discurso militar teve pretensão de
ficcionalizar o real para apagar a opressão”. 138 (PIGLIA, 1986, p. 10)
137
Texto original: “Cuando el aeropuerto está de huelga, es mucho más fácil conseguir taxi para el aeropuerto. Hay
algunos aeropuertos que además de taxis tienen aviones. Cuando los taxis hacen huelga los aviones no pueden
aterrizar. Los taxis son la parte más importante del aeropuerto.”
138
Texto original: “La ficción trabaja con la creencia y en este sentido conduce a la ideología, a lo modelos
convencionales de realidad y por supuesto también a las convenciones que hacen verdadero (o ficticio) a un texto. La
realidad está tejida de ficciones. La Argentina de estos años es un buen lugar para ver hasta qué punto el discurso del
poder adquiere a menudo la forma de una ficción criminal. El discurso militar ha tenido la pretensión de ficcionalizar
el real para borrar la opresión”. (Piglia, 1986: 10)
142
o que aparece escrito atrás: “A foto é de 1941; atrás ele havia escrito a data e depois,
como se quisesse orientar-me, transcreveu as duas linhas do poema que serve de
epígrafe a este relato” (PIGLIA, 1980, p. 11). O trecho mencionado é um fragmento do
poema “The dry salvages”, do escritor inglês T.S. Eliot, que diz: “Nós tivemos a
experiência, mas perdemos o sentido, e a aproximação ao sentido restaura a
139
experiência” , permitindo, assim, a compreensão da ficção como função mediadora
responsável pela viabilidade de uma história que vai além da narrada por Emílio Renzi.
Após o episódio da carta, dá-se início à narrativa hipotética do reencontro. Renzi
decide ir até Concórdia encontrar-se com Marcelo, porém isso não ocorre e, nessa
angústia pela espera de alguém que não aparece, personagem e leitor se encontram com
o terror da ditadura. Marcelo Maggi é um dos desaparecidos durante o processo.
Embora esse aspecto apareça aporeticamente no texto de Piglia, é reivindicado um
sentido que ocupe o espaço deixado pela ausência do professor de história e, através
disso, surge a possibilidade de falar de uma experiência ressignificada, paralela às
imagens dos aeroportos, do labirinto e do farol.
É nessa atmosfera do não-dito e do alusivo que acontece a trama de Piglia. O ar
“artificial” se faz necessário para falar sobre o que oficialmente não pode ser relatado.
Se respirar artificialmente é a única saída para poder estar vivo e contar sua experiência,
o autor argentino (num percurso análogo à proposta de escritura das Madres) entrega a
seus leitores um jogo no qual é preciso ser audaz e, principalmente, cúmplice de seu
projeto. Logo, o pacto estabelecido entre eles – autor e leitor – consistirá em descobrir,
nas entrelinhas dessa história artificial, uma compreensão “alephica” da história
argentina em seus anos do “Processo”.
A dedicatória de Piglia, “Para Elías e Rubén, que me ajudaram a conhecer a
verdade da história”, possibilita-nos uma leitura análoga à proposta por Nossos sonhos:
o livro é dedicado a dois desaparecidos 140 . Logo, se em Piglia o relato se encontra como
único viés que redime a história do objeto perdido (sabendo-se que toda restituição é
impossível), e o perdão não passa de um pedido retórico, o reconhecimento da
impossibilidade de restituição configura-se “como seu gesto mais restitutivo”
(AVELAR, 2003, 145).
139
Texto original: “We had the experience but missed the meaning, and approach to the meaning restores the
experience” (In: PIGLIA, 1980).
140
Em uma nota de pé, presente no artigo “El significado latente en Respiración Artificial, de Ricardo Piglia y En el
corazón de junio, de Luis Gusmán”, Daniel Balderston menciona a informação de Piglia a respeito dos nomes citados
na dedicatória, esclarecendo que ambos pertencem a desaparecidos durante a última ditadura militar argentina. (in:
BALDERSTON, 1988: 153).
143
141
Título e textos originais: “Dos hermanos” (plan para un relato), “vuelve a salir al mundo. Para cambiarlo.”
144
Nesse impasse entre o fato e o projetado, o leitor que entra pelos bosques de
Nossos sonhos revive ficcionalmente uma sensação similar à de Fred Murdock, “O
Etnógrafo” de Jorge Luis Borges. Assim como esta personagem que, ao voltar da
experiência junto aos feiticeiros indígenas do oeste dos Estados Unidos, opta por não
escrever cientificamente sobre elas, guardando para si o segredo de um percurso que só
pode ser seguido, não revelado, o leitor idealizado das Madres representa uma extensão
da imagem gestada nas tardes de quinta-feira. Alheio à vivência trágica, esse leitor
tampouco pode viver entre elas; não lhe é permitido o uso dos lenços brancos.
Eqüidistante, é lícito o resgate das palavras finais de Murdock, quando questionado por
seu professor a respeito do regresso à convivência com os aborígenes: “– Não. Talvez
não volte à pradaria. O que me ensinaram seus homens vale para qualquer lugar e para
qualquer circunstância” (BORGES, 1986, p. 21).
O desfecho borgiano estaria para o protagonista assim como as folhas, em busca
de leitores, estariam para as Madres. O etnógrafo solitário que se torna bibliotecário em
Yale é a imagem babélica de outras narrativas do autor e, de certa forma, de si mesmo.
Em relação ao intento de Nossos sonhos, as folhas saltitantes deixam seu estado de
inércia ao se tornarem ações, idéias e, sobretudo, memória.
Como uma cena que anseia por seu segundo ato, já que um dos destinos dessas
142
folhas é sair pelo mundo também, “buscando seus próprios donos” , o projeto do
livro retoma o caminho da personagem de “Dois irmãos”: em ambos há a espera pela
mudança. Com efeito, a escritura de dois livros que procedem ao primeiro momento da
oficina ambiciona um traçado depositado nesta crença. Os sonhos serão escritos com
imagens que, em ângulos distintos, reiteram o constante nascimento encenado na Plaza.
É do Coração e da Pluma Revolucionária que novos planos de memória serão escritos
para dignificar a presença de Gregório, Santiago, Marcelo Maggi, Rubén, Elias e os
30.000 desaparecidos presentes. Com eles, não há o reencontro. Contudo, é deles a
bandeira abraçada e o caminho aprendido e empreendido pelos lenços brancos.
142
Trecho referente ao poema “As folhas de nossos sonhos”.
145
Madres
Hemos descubierto
la fuerza poética
del dolor transformado
en bella paloma
que vuela la plaza
en busca de libertad
Queremos sumarnos a la
alegría de esa lucha
al amor de esa lucha
a la conciencia política de esa lucha
al romance invencible con el aire y
con el sol que forjaron
en esa lucha
Autores : Susana Ferroni, Daniel Ballester, Laura Ducos y Marisa Azcue, alunos da “I
Oficina de leitura dos textos poéticos das Madres de Plaza de Mayo” (Universidad
Popular Madres de Plaza de Mayo, janeiro de 2008).
146
desaparecido não deixa de rondar (sem sepultura, mas abrigado pela escritura materna)
os textos assinados por quem se coloca como responsável por pari-lo e alimentá-lo
discursivamente.
As transformações imagéticas, sofridas e ocasionadas pela personagem que
escreve, nos permitem uma leitura de novas aproximações literárias, produzidas pelas
reconfigurações que esse ator político empreende no espaço público e plasma no
momento de encontro com o fazer poético. A devoção ao defunto insepulto, mote que
serve à comparação com a tragédia sofocliana, ao transformar-se na narrativa de sua
própria dor, adquire dimensões hecúbicas capazes de levantar os corpos – dos filhos e
das Madres – e colocá-los em marcha, resistentes ao esquecimento e em compromisso
com uma luta entendida pelos vieses da interrupção e da injustiça.
Com efeito, a voz que dita o tom de Coração e Pluma não é a mesma dos livros
anteriores. Embora proferida pelo mesmo sujeito, ela ressurge com os ecos dos
desaparecidos agora entoados por uma comunidade imaginada nessa partilha ideológica,
investida por imagens recuperadas anacronicamente e revitalizadas por novas
estratégias que sustentam o figurino dos lenços brancos. O ideário da guerrilha escrito
no desaparecimento é resgatado no compromisso de reescritura biográfica daqueles que
não puderam testemunhar, deixando suas Madres como um legado vivo, que sonha e
anseia através dos sonhos e anseios projetados na imagem criada de seus filhos
desaparecidos.
Como toda narrativa de memória, a seleção e a conservação operam na
edificação do filho ausente. Deste, tornam-se biográficos os traços relevantes ao projeto
de dignificação jurado nas tardes de quinta-feira. Paralelamente, é construída a imagem
de quem leva adiante esse intento. Nessa perspectiva, a dor da perda é a cicatriz
carregada pela Madre de um “guerrilheiro” desaparecido, cujas marcas da tortura se
trasladam à face exposta na Plaza, rememorada e recriada na escritura.
A crise entre os interesses do Estado e o círculo familiar permanece e sustenta a
presença dessas vozes. Embora Antígona ceda passagem a outras representações
literárias, o embate entre essas esferas denota seu caráter reiterativo. Ao que foi
realizado durante os anos ditatoriais não há perdão (nem esquecimento), sendo isto uma
proposta a mais de violência. Com a distância temática necessária ao que estamos
tratando, a idéia de que “as boas mães causam, provavelmente, maiores estragos do que
148
144
Publicado como uma proposta de “escrever a luta” , o livro que marca a
configuração de resistência e enfrentamento empreendida pelas Madres da Asociación
Madres de Plaza de Mayo é gestado a partir da pergunta “Como pôde seguir vivendo”,
surgida em unanimidade nas atividades de pré-escritura. A dúvida frente ao trauma
provocado pelo desaparecimento de seus entes queridos é a resposta poética tramada em
O coração na escritura, entregue ao leitor como “a história de uma ressurreição (...), a
indispensável ressurreição dos desaparecidos, sua aparição com vida na palavra, a partir
do mesmo amor que os trouxe ao mundo; e uma vez mais, assim, a ressurreição de nós
mesmos a partir do silêncio e da infâmia dos tempos que nos tocou viver” 145 .
A ressurreição que se repete no prólogo de Leopoldo Brizuela expande-se às
possibilidades que tangem a memória e o testemunho sobre uma época presente não só
na escritura, mas que serve como moldura a um novo quadro, projetado por palavras e
sujeitos fiéis ao pacto de amor expresso nas marchas ao redor da Pirâmide de Mayo.
Junto a essas imagens, o termo “ressurreição” evoca, também, as noções de dor e
sofrimento que dele provém, uma vez que é inevitável a associação semântica dessa
palavra ao martírio cristão na sociedade ocidental.
Com efeito, dessa escritura, renascem os mártires de uma época que “nos coube
viver”. Essa vida escrita na entrega ao sofrimento, logo, ao desaparecimento, é o
material de uma biografia que se constrói sobre as vítimas do silenciamento forçado e
das estratégias de terror implementadas pela última ditadura militar argentina.
Renascidos na palavra de suas Madres, os desaparecidos voltam – sem nunca ter
deixado de existir – para a abertura de um inventário, legado constituído pelas memórias
143
Referência ao trecho retirado (p. 143) do capítulo “O homem cordial”, de Raízes do Brasil (1936), de Sérgio
Buarque de Holanda. Sobre a passagem transcrita é importante destacar que o autor insere em seu texto um ditado
citado por Knight Dunlap, para tratar da noção de base familiar à constituição do indivíduo. Embora não corresponda
ao que pretendemos abordar neste momento, acreditamos que o ditado parece rentável à noção de “legado ao revés”
presente nesta tese, em relação à posição assumida pelas Madres de Plaza de Mayo.
144
Prólogo de Leopoldo Brizuela, presente em O coração na escritura (1997).
145
Texto original: “la historia de una resurrección (...), la indispensable resurrección de los desaparecidos, su
aparición con vida en la palabra, desde el mismo amor que los trajo al mundo; y una vez más, así, la resurrección de
nosotros mismos desde el silencio y la infamia de los tiempos en que nos tocó vivir”
149
146
Texto original: “qué nombre me pondrías / si el del santo del día / o el abuelo muerto / o el que vos elegías”. De
acordo com o castellano, o emprego do pronome vos representa uma maior aproximação entre as pessoas. Sendo
assim, em nossa tradução, optamos pela tradução do termo por você, pronome de tratamento usualmente empregado
na variante brasileira do português para definir relações como as que sugerem o vocábulo proveniente da variante
argentina.
151
“vida” e “esperança” aparecem como ferramentas utilizadas pela personagem para falar
de si: “quando dorme tranqüila / recostada na cadeira de balanço / já está balançando o
sonho / a vida, a esperança” 147 (idem).
O laço entranhável da gestação retorna para ser eternizado na escritura. O ventre,
nessa perspectiva, abriga para sempre o filho desaparecido, o qual reaparece em cada
linha, refletindo a imagem de um parto que sempre está para acontecer. Em “Ventre”, a
tentativa de reescritura autobiográfica se repete através de elementos que denotam, de
certa forma, a metáfora de um nascimento ao contrário, legando ao filho a
responsabilidade por esse novo ator político.
Outro aspecto relevante nessa composição é no tocante à passagem, ao trânsito,
empreendido pela personagem. Inicialmente, seu mundo é seu bairro, uma paisagem que
preserva, através das reminiscências, a presença do universo privado com o qual ela irá
romper ao transformar-se em Madre:
147
Texto original: “cuando dormís tranquila / recostada en la hamaca / ya estás meciendo el sueño / la vida, la
esperanza”.
148
Título e textos originais: “Vientre”: “Cuando en mi vientre / sentí el hijo que iba creciendo / fui la mujer más feliz
del mundo / pequeño / ese mundo de ese barrio / que me tuvo entre sus gentes / que me enseñó tantas cosas / que me
dio todo su afecto / que me enseñó del amor / todo lo que en el vientre llevo”.
149
Texto original: esperando en la noche / que alumbre la justicia / esperando en la Plaza / que lleguen otros hombres
/ que la marcha se agrande / hasta convertirse en un sol / tan gigante y caliente / como el amor que les tengo / en mi
corazón de madre”.
152
Ratificada, a idéia de que “o Outro sou eu” (lema adotado pelas Madres em
referência ao reconhecimento de que seus filhos lhes deixaram como legado) resgata a
noção palimpsêstica dessa escritura, enquanto revigora o laço e os ideais daqueles que,
desaparecidos, voltam fiéis e firmes através do projeto incorporado no percurso traçado
pela Madre. O texto emerge como o cordão umbilical que religa a personagem que
escreve ao “filhinho doce e terno / recém nascido / tão sonhado” 150 , o qual será cuidado
e dignificado em suas linhas, até transformar-se no revolucionário que se despede no
texto “A mãe de um revolucionário” (Idem, p. 38).
Reelaborado em muitos momentos e sob diversas perspectivas, o percurso da
personagem, rumo aos ideais projetados na luta de seus filhos, incide no encontro com
outras mães portadoras da mesma dor. No capítulo “Do eu a nós”, o coletivo se torna o
movimento fundamental para que, no momento da escritura, as memórias possam
aparecer individualmente. Em “Minhas mãos”, a autora se identifica com suas
companheiras, personagens enredadas pela mesma tragédia e cujas mãos que “se
151
encheram de horríveis silêncios” encontram o afeto. De braços dados com aquelas
que lhe permitem enfrentar o esquecimento, a autora de “O berço” e “Ventre” evoca a
luta compartilhada para dar voz à representação imagética de si mesma, num momento
em que já descreve sua consciência a respeito de sua conformação coletiva: “Com
minhas mãos escrevo a meus filhos. Com minhas mãos abraço os dias. Com minhas
mãos aperto as outras que me fazem generosa a vida” 152 .
A consciência dessa transformação na passagem “do eu ao nós” é o ponto de
partida da leitura de O coração na escritura, tornando-se, assim, um aspecto que não se
detém ao capítulo que traduz essa perspectiva. O trajeto do individual ao coletivo é o
que permite, no momento da escritura, o encontro da personagem que escreve com suas
memórias, mesclado por imagens selecionadas e conservadas de um caminho iniciado
com a tragédia.
Em “Bronca”, Evel Petrini (Beba) relata como a insatisfação do filho plasmou-se
à sua história. Neste momento, não é só uma herança que se configura; a personagem se
entrega à escritura de outra forma. Longe de Antígona, afastada dos lamentos
150
Texto original: “hijito dulce y tierno / recién nacido / tanto soñado”. Fragmento de um poema sem título, de
autoria de Hebe Mascia.
151
Texto original: “Se llenaron de horribles silencios”, fragmento do poema “Mis manos” (idem, p. 35).
152
Texto original: “Con mis manos escribo a mis hijos. Con mis manos abrazo los días. Con mis manos aprieto las
otras que me tiende generosa la vida” (idem, p. 35)
153
153
desgraçados de Hécuba, ao afirmar que “hoje, tua bronca é minha bronca” (idem, p.
37), Beba se projeta como uma herdeira literária da personagem de Máximo Gorki,
Pélagué Vlassof, a qual, neste estudo, será analisada através da composição dramática
de Bertolt Brecht, em “A mãe” 154 (1932).
É preciso, entretanto, situar nossa aproximação ao texto brechtiano, uma vez que
sua inserção neste estudo vem ao encontro da possibilidade comparativa com um
momento do movimento das Madres, principal objeto de nossa proposta.
É clara a complexidade textual da dramaturgia de Bertolt Brecht, o que envolve
tanto as questões sociais fortemente inscritas nessa composição, quanto uma série de
consolidados trabalhos sobre a estética do escritor alemão. Dessa forma, acreditamos ser
válido situarmo-nos nessa empreitada comparativa, a qual toma o texto como um
contexto que se amplia na postura assumida pelas personagens argentinas, não se
dispondo ao trato de aspectos que digam respeito às especificidades do teatro
brechtiano.
O caminho traçado pela personagem de Brecht, ou seja, de Pelagea Wlassowa à
“Mãe”, conduz-nos à compreensão da formação intelectual daquela que rompe com os
símbolos da esfera privada em decorrência do embate entre os interesses dessa mesma
esfera em divergência com o público. Pelagea não se entrega à luta por nela acreditar
desde o princípio; ao contrário, seus princípios são originados pela necessidade de
preservação do filho Pavel, o operário insurgente, morto pela polícia russa por se opor à
exploração das massas em relação ao regime de trabalho imposto.
Nesse contexto de lutas de classes desenhado pela sociedade do início do século
XIX, resgatado pelo dramaturgo alemão em 1932, há um projeto de conscientização
daqueles que integram o ideal romântico de revolução construída pelo proletariado, ao
qual a opressão é a personagem simbólica principal à tomada de consciência idealizada
por Marx e Engels, em O Manifesto Comunista (1848). A burguesia que se configura
como antagonista ao intento de protagonismo dos oprimidos aparece na cristalização de
múltiplos aspectos com os quais as personagens brechtianas irão defrontar-se,
estendendo esse rechaço ao discurso incorporado pelas Madres.
153
Texto original: “Hoy tu bronca es mi bronca”. Embora a tradução desse vocábulo corresponda melhor à idéia de
“raiva”, optamos pela tradução homônima ao português, uma vez que em nossa língua o termo também pode referir-
se à noção presente no poema.
154
É importante ressaltar que nossa opção pelo texto brechtiano provém do paradigma comparativo estabelecido com
textos clássicos presentes no corpus desta tese.
154
Antes de morrer, Pavel é exilado na Sibéria durante sete anos, tempo em que a
“Mãe” é aclamada como uma combatente à opressão. Ao lutar contra os “fura-greves” e
conseguir conscientizá-los sobre a importância de tal movimento, Pelagea é enaltecida
num canto em que se reconhecem os componentes de sua firmeza e dedicação,
momento da peça no qual se esboçam as “Wlassoswas do mundo”:
155
Título e texto originais: “La madre de un revolucionario”: “– Mamá, la madre de un revolucionario se debe
preparar para todo.” (1997, p. 39).
158
aos quinze anos, ela já é a única filha, testemunha da violência, dos sofrimentos dos pais
e da luta de sua Madre. É dela o olhar que, na escola, se contrapõe ao de suas
companheiras; é dela o trabalho de pintar as celas de uma cadeia como imagem de sua
família, traçando o local imaginário onde se encontram “os meus, os abraços doces e
ternos dos irmãos”. No momento seguinte, aos dezesseis anos, é a adolescente partícipe
da família alquebrada, que sai para vender as camisas que “nunca vestiriam seus
irmãos”, dando passagem à personagem que se apresenta, aos vinte anos, em perigo.
Nesse contexto, Ale precisa esconder-se e resistir ao medo do desaparecimento,
indiciado em telefonemas anônimos nos quais a pergunta: “Como se escreve morte,
156
desaparecimento e tortura” (idem, p. 56) denotam o destino de seus irmãos e
sustentam o silenciamento forçado.
O trauma da tortura está presente em muitos momentos de Coração. Embora não
sejam relatados os feitos, a noção da crueldade é um dos traços da planta baixa dessas
histórias, ao projetar uma memória coletiva capaz de sobreviver à dor e às ameaças para
narrar o espanto. A aporia emerge como um componente indissociável dessa narração,
pois deixa entrever no não-dito o relato de algo que foge à possibilidade discursiva,
exprimindo, assim, o que Selligmann-Silva considera como o “real” dessa escritura:
156
Título e fragmentos originais: “Ale”: “los míos, los abrazos dulces y tiernos de los hermanos”; “nunca se pondrían
sus hermanos” e “¿Cómo se escribe muerte, desaparición y tortura?”.
159
correriam da Plaza, se nos levariam presas. Mas, sobretudo, de contar a cada uma de
nós algo que havia acontecido na semana [...] as esperanças, os acontecimentos que
passaram, e sempre aparecia algo para fazer – assim marcávamos para realizar alguma
atividade que pudesse ter ressonância.” 157 (EVEL PETRINI, 1997, p. 67)
A esperança acerca das tarefas da próxima semana permite que esse sujeito
consiga construir seu relato composto pela memória de muitos encontros, no momento
da escritura. Esse passado que não passa é o tempo presente de uma proposta narrativa
que emerge para sair do sufoco, do estado limite. Frente a essa perspectiva, a literatura é
o espaço onde isso se torna possível, pois a aporia do trauma encontra, na imaginação, o
auxílio capaz ao preenchimento daquilo que, de tão doloroso, é inverossímil no
testemunho.
Autobiográfico, o relato de Evel Petrini é escrito numa oficina de literatura, o
que nele agrega elementos fundamentais à estruturação de uma narrativa que convoca as
estratégias necessárias à composição literária. A ficção, compreendida como
“modelação que dá forma ao informe” (STIERLE, 2006, p. 13) possibilita a leitura de
um fragmento dessa memória dialógica, na qual as experiências de Evel se mesclam à
memória daquelas com quem a personagem que escreve encontra ressonância.
O que no texto literário aparece subentendido (a perseguição policial às Madres)
nos livros, cuja proposta é narrar a história do movimento, é o material de um relato
que, entre fragmentos de fatos e sensações, busca o detalhamento, a minúcia de um
discurso que visa dar voz a essa experiência:
“então um dia vieram e pediram o documento de uma Madre [...] outro dia, outra vez.
E num terceiro dia, na terceira quinta-feira, quando pedem o documento de uma, todas
nós decidimos dar-lhes os documentos; claro, o “cana” com 300 documentos [...] que
faria, não lhe serviriam para nada. E serviu para que, em vez de estar muito poucos
minutos na Plaza [...] ficássemos muito mais tempo, até que nos devolveu o
documento de uma por uma, nos identificou... Realmente foi uma ação, para nós,
primeiro, de unidade, de muita unidade (porque todas ou nenhuma), e depois também
ao “cana” para que não nos pedisse mais documentos[...]” 158 (HEBE DE BONAFINI,
in: Historia de las Madres de Plaza de Mayo, 1996, p. 17).
157
Título e textos originais: “El primer día en la Plaza”: “Así los jueves pasaron a ser el día. Día de ver qué
podríamos hacer, de pensar juntas nuevas actividades – de imaginarnos qué nos pasaría – si nos correrían de la Plaza,
se nos llevarían detenidas. Pero por sobre todo de contarnos cada una algo que había sucedido en la semana (...) las
esperanzas, los acontecimientos que pasaron, y siempre salía algo para hacer – así quedábamos citadas para realizar
alguna actividad que pudiera tener resonancia.”
158
Texto original: “entonces un día vinieron y le pedieron el documento a una madre (...) otro día, otra vez. Y un
tercer día, un tercer jueves, cuando le piden el documento a una, decidimos dárselos todas el documentos; claro, el
“cana” con 300 documentos (...) que iba a hacer, no le servían para nada. Y sirvió para que, en vez de estar muy
pocos minutos en la Plaza (...) nos quedáramos muchísimo rato, hasta que nos dio el documento una por una de
vuelta, nos identificó... Realmente fue una acción, para nosotras, primero, de unidad, de mucha unidad (porque todas
o ninguna), y después también a la “cana” para que no nos pidiera más documentos (...).” Sobre a tradução do termo
“cana”, optamos por preservá-lo com a mesma grafia, uma vez que, na variante brasileira do português, encontramos
uma correlação à denominação pejorativa empregada aos policiais.
160
159
Título e textos originais: “Ni un paso atrás”: “siempre en el alto, siempre arriba, por encima de sus asesinos y sus
cómplices, a todos les quedó claro que a nuestros hijos nunca los van a poder matar, que siempre van a estar sobre
ellos, marcando el verdadero camino.”
161
160
Tema já discutido em decorrência de sua implicabilidade jurídica.
161
Título e textos originais: “La alegría de la lucha”: “nos acompañen y que recuerden que lo perdido no puede
hacernos olvidar lo que tuvimos; y hemos tenido hijos tan hermosos que sería injusto no los recordarnos así, con la
cabeza alta y el corazón contento.”
162
“Doía-lhe muito as dificuldades dos outros. Tantas vezes trazia-me companheiros para
comer em casa, porque “mamãe, vêm pela manhã ao Industrial e como vivem longe
não podem voltar a sua casa...”! Muitas vezes também presenteava sua roupa aos que
necessitavam, ou me pedia que ajudássemos algum companheiro. ” 162 (ALINE, 1997,
p.97, grifo nosso).
“[...] ele desejava de todo coração que as coisas melhorassem, que houvesse menos
pobres, que a riqueza do país se emparelhasse, que não houvesse tão poucos ricos e
tantos pobres, queria nivelar a situação das pessoas: esse era seu ideal, simples, lindo.
Por isso o levaram.” 163 (Idem, p. 98).
162
Título e texto originais: “Qué hacía mi hijo”: “A mí me dolía mucho esa sospecha, porque lo tenía y lo tengo en
mi corazón y en mi memoria como el mejor de los hijos que uno podría desear” (…) “Le dolía mucho las dificultades
de los demás. ¡Tantas veces me traía compañeros a comer a casa, porque “mami, vienen a la mañana al Industrial y
como viven lejos no pueden volver a su casa…”! muchas veces también regalaba su ropa a los que necesitaban, o me
pedía que ayudáramos a algún compañero.”
163
Texto original: “él deseaba de todo su corazón que las cosas mejoraran, que hubiera tan pocos ricos y tantos
pobres, quería nivelar la situación de la gente: ese era su ideal, simple, hermoso.”
164
Texto original: se me paralizó la mandíbula, se me arruinó la lengua, y no pude hablar durante horas. Y es como si
entre las Madres de Plaza de Mayo, hubiera aprendido a hablar de nuevo.”
164
165
Texto original: “y estoy muy orgullosa de recordarlo aquí, entre las madres de tantos jóvenes iguales a él, y que él
sentía como sus hermanos.”
166
Título e texto originais: “Un poema”: “Me contabas muchas cosas / que yo entonces no entendía / Tratabas, en lo
posible, / que desistieras de lo que hacías. / Cuántos errores entonces cometí: / ahora, sólo ahora / entiendo todo
aquello que decías. / Cómo quisiera en este momento tenerte a mi lado / abrazarte y decirte qué grande y honesto te
siento / Qué orgullosa me siento de haberte parido.”
165
167
próprias vozes” denota o intento de uma escritura que, ao romper com o silêncio,
propõe uma memória a partir do fazer literário. É do corpo da maternidade que essa voz
se recria e reverbera em busca de uma vontade de restabelecimento de verdades.
Elaborados com base na perspectiva corporal, física, a fadiga da idade se torna
testemunha da personagem que descreve suas etapas da juventude à deformação e,
inversamente, da deformação à juventude, passagem que ratifica o semblante cíclico
dessa transformação pelo tempo.
Em “Meu corpo”, aos momentos de “esbelteza”, atribuem-se os anos em que a
autora evoca as reminiscências da mocidade, retrato que se esvai com o
desaparecimento do filho para ser recuperado, posteriormente, no encontro com seus
ideais e na companhia de personagens como ela. Através de elipses, o leitor tem acesso
a essa metamorfose pelos versos que encerram o poema: “(...) voltei a sentir / o calor de
168
meus anosjuvenis / que se estremeciam / ao ritmo da música” (COTA, 1997, p.103).
Diferentes dos anos da juventude, seus “anosjuvenis” da outra idade levam a grafia de
um tempo criado, de uma etapa simbólica projetada na imagem concreta da música que
embala a dança encenada há três décadas ao redor da Pirâmide de Mayo.
Num ensaio de despedida momentânea, em “três poemas” encontramos o embate
travado com a temporalidade que delimita a fronteira de atuação dos lenços brancos. O
tempo ganha corporeidade nessa luta; como um jogo de xadrez com a morte, Mimí
cultiva na escritura sua esperança no porvir, ao resgatar um aspecto anunciado na
escrita da transição de Nossos sonhos e reiterado na publicação de Pluma:
“Tempo
Resignada aceito teu domínio,
teu destino se assemelha ao meu
não podes romper o círculo
que a vida te impõe.
Me deixas hoje, quando termina a minha.
Outra vida a teu lado amanhã começa.” 169
(MIMÍ, 1997, p. 129).
167
Texto original: “… quisimos escribir para contar nuestras historias como sólo nosotras podemos hacerlo: desde el
cuerpo, como se dice ahora, desde el corazón. Mejor o peor que los demás, pero con nuestras propias voces…”
168
Título e textos originais: “Volví a sentir / el calor de mis añosjuveniles / que se estremecían / al ritmo de la
música.”
169
Título e textos originais: “Tres poemas”: “Tiempo / Resignada acepto tu dominio, / tu destino se asemeja al mío /
no puedes romper el círculo / que la vida te impone / Me dejas hoy, cuando termina la mía. / Otra vida a tu lado
mañana empieza.”
166
nesse projeto. O tempo, como antagonista, é uma elaboração que se espraia nos textos
de O coração, ora aparecendo como personagem de um diálogo criado na escritura, ora
representando a parcela em que se marcam as horas e se conjugam os verbos.
Em perspectivas atemporais, passado e presente se entrecruzam como um matiz
que se coaduna ao cenário das Madres; no último poema do livro, Juana de Pargament,
a Madre com mais com mais idade e tempo de movimento, dá vida à casa, propondo-
nos um paralelo ao trato do tempo no poema de Mími. O tempo e a casa são lançados à
narrativa poética como testemunhas do desespero que retorna na escritura para inserir a
presença do desaparecido em “A casa”:
“Sigo vivendo
nesta mesma casa.
A casa em que criei meus filhos
170
Título e textos originais: “La casa”: “Sigo viviendo / en esta misma casa. / La casa en que crié a mis hijos / la casa
en que todavía / las paredes hablan / de sus juegos, sus alegrías / la casa que los vio crecer / y que oyó sus inquietudes
de adolescentes. / La casa que luego me vio sufrir / el cambio brusco / y el desgarro del dolor / de la desaparición / de
Alberto. / Esta misma casa / que habla del pasado / es la que todavía / cobija mi presente.”
167
171
Em janeiro de 2008, ao apresentar a turnê do grupo “The Police”, em Buenos Aires, as Madres subiram ao palco
como convidadas especiais do músico, quem cantou junto com elas a canção mencionada.
168
172
Em 19 de dezembro de 2008, a Suprema Corte Argentina absolveu o ex-comandante da Marinha, Alfredo Astiz , e
mais 19 repressores participantes do regime militar. Algumas horas depois, a presidente Cristina Kirchner, junto aos
organismos de Direitos Humanos, entre estes as Madres, pediram reconsideração, conseguindo que a libertação fosse
anulada temporariamente. Em relação aos desaparecimentos, desde 18 de setembro de 2006, Jorge Julio López,
testemunha no caso sobre os crimes cometidos pelo repressor Miguel Etchecolatz, está desaparecido. Até o momento,
não se sabe o que realmente aconteceu com ele, embora não caibam dúvidas de que, 25 anos após o fim do regime
militar, os desaparecimentos ainda ameaçam as possibilidades concretas de justiça.
170
173
Embora essas pinturas representem um vasto material para a análise, centrar-nos-emos nos textos escritos, visto
que eles representam a base comparativa do presente estudo.
171
no qual as personagens de uma dança solitária ensaiam o etéreo reencontro com aqueles
que “estão no alto”; seus pares, seus filhos, seus mártires, os 30.000 desaparecidos.
O primeiro texto do livro é assinado por María del Carmen Berrocal, autora de
“A sabedoria”, um dos relatos iniciais de Nossos sonhos. Novamente, essa Madre
retorna inaugurando e, de certa forma, entregando ao leitor o tom do projeto que ele tem
em suas mãos. Sem título, o texto se apresenta partindo do mesmo ponto: seguir com
vida após o evento trágico.
Ao debruçar-se sobre a evocação das memórias provocadas pelo
desaparecimento de seu filho, María del Carmen funda sua escritura na recordação,
aspecto que aparece nos termos que a autora escolhe para a composição de sua
narrativa. O verbo “recordar” é reiterativo e introduz a instabilidade discursiva desse
testemunho literário, o que suspende o juízo do material que serve de base a esse
intento, e ratifica que “qualquer coisa recordada – pela memória vivida ou imaginada –
é virtual por sua própria natureza. A memória é sempre transitória (...), ela é humana e
social.” (HUYSSEN, 2000, p. 37).
Com efeito, o “olhar ao céu” é o caminho que a narradora encontra para parir o
filho na escritura, para transformá-lo em seu legado. O destino do desaparecido é
mesclado: as imagens da trajetória recriada pela Madre misturam-se à ausência física
capaz de desvelar o trauma da personagem que escreve, no momento em que a autora
evoca as lembranças do grupo de amigos do filho:
“Que lindo grupo de meninos, que saudáveis, que unidos que eram. Foram crescendo
e sem querer foram separando-se, cada um escolheu seu caminho, Alberto também
escolheu, creio que o mais difícil, mas o mais lindo. Trabalhou e lutou muito pelos
demais, amava a justiça, acreditava na igualdade do homem, buscava o homem novo,
mas essa forma de lutar e pensar era perigosa, por isso hoje não está fisicamente
conosco, mas está seu exemplo, sua luta que não morreu, por isso para mim hoje cada
jovem que luta é um filho mais que me nasceu, vejo em todos eles Alberto, este é o
triunfo de sua luta que não foi em vão” 174 (MARÍA DEL CARMEN, 2007, p. 12,
grifo nosso).
174
Texto original: “Que lindo grupo de chicos, que sanos, que unidos que eran. Fueron creciendo y sin quererlo se
fueron separando, cada uno eligió su camino, Alberto también eligió, creo que el más difícil, pero el más lindo.
Trabajó y luchó por los demás, amaba la justicia, creía en la igualdad del hombre, buscaba el hombre nuevo, pero esta
forma de luchar y pensar era peligrosa, por eso hoy no está físicamente con nosotros, pero está su ejemplo, su lucha
que no ha muerto, por eso para mí hoy cada joven que lucha es un hijo más que me ha nacido, veo en todos ellos a
Alberto, éste es el triunfo de su lucha que no ha sido en vano.”
172
Madres. É a eles que ela deixa a esperança da dignificação dos ideais de Alberto, cuja
trajetória lhe é mais bonita justamente por ser mais difícil. O pretérito é o tempo que
marca o limite entre a presença do filho e a permanência de sua luta, personagens
imortalizadas na escritura materna que rompe com a temporalidade ao apostar no porvir.
Em outro momento do livro, a cíclica importância do coletivo, como ponto de
partida para a emersão memorialística, é a base sobre a qual se constrói a narrativa de
Hebe de Bonafini. “O paredão” é a imagem recuperada da infância, que empresta sua
paisagem à construção da metáfora criada pela autora para falar de seu encontro com
suas companheiras e antecipar uma despedida não anunciada no relato, entretanto,
presente em seu enunciado:
175
Título e textos originais: “El malecón”: “Mi vida es hoy un gran malecón donde montañas de ilusiones se
asemejan a las de arena (...) a veces siento que con el amor de todos y la esperanza de la utopía, me vuelvo a tirar con
la expectativa de llegar abajo donde me esperan las otras, que seguro me ayudarán a subir para volverme a tirar una y
mil veces, todas las que sean necesarias hasta que la montaña sea fuerte.” Optamos pela tradução de “malecón” por
“paredão”, pois, embora o dicionário aceite a noção de dique, acreditamos que a imagem proveniente de nossa
tradução corresponda melhor à pretendida pela autora em seu relato.
173
cumpre a trajetória cíclica dos outros textos: o trágico e o encontro com as Madres. Por
outro lado, é através da descrição da Plaza que o leitor tem acesso à importância dessa
conformação: “Me sentei em um banco e creio que dormi, sonhei ou foi realidade. Essa
praça aonde tantas vezes havia levado meus filhos ou meus alunos, hoje era distinta.”
(ELISA DE LANDÍN, 2007, p. 33). A incerteza sobre a qual se constrói a narrativa de
Elisa recupera a fragmentação discursiva que alude ao desespero da personagem,
sentimento que só pode ser suportado junto àquelas que “com lenços brancos giravam
ao redor da pirâmide em lenta caravana, com passo firme” (idem).
Embora o nome da praça não seja mencionado no conto, os termos que a autora
emprega para descrever esse espaço não deixam dúvidas: é a Plaza. Ao término, tal
aspecto se reforça nas representações que lhe são agregadas em decorrência da presença
das Madres, as quais “transformaram esta Plaza em bastião de luta firme e verdadeira”
(idem). A importância desse cenário para as gerações futuras é uma ambição que se
traduz na hipótese imperativa da narradora: “Se aqui se produziu o encontro mais
formoso que uniu todas as Madres sem credos nem raça, só o amor a seus filhos,
buscamos reivindicá-los, que deram tudo, sem pedir nada” 176 (idem).
No relato de Elisa, é confirmada a heterocronia desse cenário, bem como a
gestação cíclica que nele se desenha. O local de encontro com os desaparecidos é o
espaço onde se forjou um movimento e a noção de luta que o sustenta há tantos anos. A
imagem atual que se projeta sobre a Plaza é indissociável das personagens que uniram o
laço da maternidade ao seu nome: Madres de Plaza de Mayo. É com a crença investida
nessa dimensão do espaço que a autora mistura sua biografia e a de seu filho à
cartografia que permite um encontro atemporal, capaz de conservar a sobrevivência
dessa paisagem que rememora e dá sobrevida aos sujeitos dessa história.
A luta e a Plaza passam, então, a traduzir imagens análogas, visto que a
narrativa de uma pressupõe a reconstrução da outra. Em uma carta imaginada à filha
desaparecida, Mercedes de Meroño promete ao despedir-se: “filha minha, te prometo
não deixar a luta e seguir com ela até o último dia de minha vida ” 177 (MERCEDES DE
MEROÑO, 2007, p. 47). Essa perspectiva antecipa o que se pode imaginar após esse
“último momento”, matéria constitutiva do relato posterior de Chela de Prósperi:
176
Título e textos originais: “Hoy se llevaron a Horacio”: “Me senté en un banco y creo que me dormí, soñé o fue
realidad. Esa plaza que tantas veces había llevado a mis hijos o a mis alumnos, hoy era distinta (…) con pañuelos
blancos que giraban alrededor de la pirámide en lenta caravana, con paso firme. (…) Transformaron esta Plaza en
bastión de lucha firme y verdadera. Si aquí se produjo el encuentro más hermoso que unió a todas las Madres sin
credos ni raza, solo el amor a sus hijos, buscamos reivindicar a ellos, que lo dieron todo, sin pedir nada.”
177
Texto original: “Hija mía, te prometo no deja la lucha y seguir con ella hasta el último día de mi vida.”
174
“Novamente os jovens voltam a lutar por ela. Tenho uns vizinhos muito bons,
a avó conta à criança de 4 anos quem sou e que nós Madres buscamos na Plaza nossos
filhos e pergunta: “não os encontrarão mais?”
Pouco tempo depois, quando sabe que estou há dois meses de cama, lhe diz:
“vovó, tem que ir às quintas-feiras à Plaza”. Laura o olha e lhe diz “por quê?”. “Se
agora Chela não pode ir, você tem que ir em seu lugar”.
As crianças não se questionam que continuemos indo à Plaza, encontram-no
mais lógico que muitos adultos.” 178 (CHELA DE PRÓSPERI, 2007, p. 61)
178
Texto original: “Nuevamente los jóvenes vuelven a luchar por ella. Tengo unos vecinos muy buenos, la abuela le
cuenta al nene de 4 años quién soy y que las Madres buscamos en la Plaza nuestros hijos y pregunta “¿no los van a
encontrar más?” / Al poco tiempo, cuando se entera que tengo para dos meses de cama, le dice: “abuela, tenés que ir
los jueves a la Plaza”. Laura lo mira y le dice “¿por que?”. “Si ahora no puede ir Chela, tenés que ir en su lugar”. /
Los niños no se cuestionan que sigamos yendo a la Plaza, lo encuentran más lógico que muchos mayores.”
179
Texto original: “Comenzar con un remitirnos a la libertad y a muchos años después en el país.”
175
180
Texto retirado do princípio “Rejeitamos as homenagens póstumas”, cuja tradução está presente neste estudo.
176
181
Referência ao capítulo “Sedução monumental”, in: Seduzidos pela memória¸ de Andreas Huyssen. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000.
177
182
Trecho do discurso proferido por Hebe de Bonafini, em 31 de janeiro de 2008, dia em que as Madres
“desembarcaram” (termo usado por elas) no liceu naval para pintar, com centenas pessoas, flores e girassóis, uma
intervenção artística capaz de agregar àquele espaço as imagens cultivadas através da memória construída sobre seus
filhos.
178
“Os sonhos compartilhados são os que se fazem realidade. Hoje aqui, dizemos a todos
que, nós Madres, vamos seguir trabalhando pela vida, a vida que é a única que nos
acompanhou sempre. E vou repetir o que disse em um discurso em frente à Escola de
Mecânica da Armada, aqui adiante, quando os milicos nos bateram até se cansar, e eu
lhes gritei na cara: queimaram-nos vivos e não puderam, atiraram-nos vivos ao rio e
não puderam, enterraram-nos abaixo das estradas e não puderam! Nossos filhos não
são ossos, são vida que nasce para sempre como semente em cada um de vocês! E da
mão da vida, desta vida que nos acompanha, da mão dela, vamos indo pelo mesmo
caminho que entramos. Obrigada, companheiros, por acreditar nos projetos das
Madres que já são realidade. Entre todos vamos converter este espaço na coisa mais
maravilhosa que vocês nunca imaginaram. Obrigada por estar, obrigada por vir. E
vivam nossos filhos, vivam nossos queridos filhos, vivam filhos queridos, vivam mais
vivos que nunca, ressuscitem, venham, venham, venham!” 183
“(...) rejeitamos as exumações porque nossos filhos não são cadáveres. Nossos filhos
estão fisicamente desaparecidos, mas vivem na luta, nos ideais, no compromisso de
todos os que lutam pela justiça e pela liberdade de seu povo. Os restos de nossos
filhos devem ficar aí, onde caíram. Não há tumba que encerre um revolucionário. Um
punhado de ossos não os identifica, porque eles são sonhos, esperanças e um exemplo
para as gerações que virão.” 184
183
Texto original: “(…) Los sueños compartidos son los que se hacen realidad. Hoy aquí, les decimos a todos que las
Madres vamos a seguir trabajando por la vida, la vida que es la única que nos acompañó siempre. Y voy a repetir lo
que dije en un discurso frente a la Escuela de Mecánica de la Armada, acá adelante, cuando nos pegaron hasta que se
cansaron los milicos, y les grité en la cara: ¡los quemaron vivos y no pudieron, los tiraron vivos al río y no pudieron,
los enterraron abajo de las autopistas y no pudieron! ¡Nuestros hijos no son huesos, son vida que nace siempre como
semilla en cada uno de ustedes! Y de la mano de la vida, de esta vida que nos acompaña, de la mano de ella, nos
vamos yendo por el mismo camino que entramos. ¡Gracias, compañeros, por creer en los proyectos de las Madres que
ya son realidad. Entre todos vamos a convertir este espacio en la cosa más maravillosa que ustedes nunca hubieran
imaginado. Gracias por estar, gracias por venir. Y ¡¡¡Vivan nuestros hijos, vivan nuestros queridos hijos, vivan hijos
queridos, vivan más vivos que nunca, resuciten, vengan, vengan, vengan...!!!" (trecho transcrito das gravações
realizadas por nós, durante o evento).
184
Nossos princípios, “Rejeitamos as exumações”.
179
com base nesse encontro gestado a partir da inviabilidade e capaz de reinventar-se como
forma de suportar o trágico, que as Madres de Plaza de Mayo constroem e entregam, à
memória do sangue, o legado ao revés.
180
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iniciar uma perspectiva de término para este estudo com o poema “Mãos dadas”,
do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, traz a possibilidade de dar voz a
alguns aspectos que, ao longo da redação da tese, poderiam parecer deslocados.
Acreditamos, também, que essa sensação de deslocamento foi o que por muito
esteve presente nessas pesquisas. O desafio de estudar um contexto alheio à
historiografia de nosso país trouxe-nos a novidade do desconhecido e as dificuldades de
compreensão e acesso a esse panorama de “outrem”. Mais especificamente no tocante
às Madres, a aproximação a essas personagens e suas narrativas foi embargada em
muitos momentos, propondo-nos uma série de questionamentos acerca das abordagens
por nós escolhidas.
Embora a ditadura militar argentina tenha terminado em 1983, ainda hoje o
temor e a compaixão sublinham a tragédia rememorada pelas situações dramáticas então
vividas. Ameaças telefônicas, simulações de assaltos, ofensas públicas e o constante
crescimento de grupos de extrema direita 185 são fatos que ainda representam notícias
envolvendo as Madres. Com efeito, por mais que alguém queira estudá-las, essas
personagens não são exatamente acessíveis. Depois de tantas vivências trágicas, não
lhes é permitido incorrer em uma nova hamartía.
Em 2004, no primeiro contato com a Asociación Madres de Plaza de Mayo, para
realizar as entrevistas que, posteriormente, serviriam de base para a idealização desse
estudo, essa dificuldade/preservação não nos pareceu tão marcada; foi possível dialogar
com a vice-presidente do movimento naquele momento, Evel Petrini. Agora, após
quatro anos de pesquisa sobre o tema, pensamos na facilidade do primeiro encontro em
decorrência de uma despedida que não tardou mais do que dois minutos, após o término
da entrevista.
185
Um exemplo disso é o “Movimiento por la Verdadera Historia”, liderado por familiares de militares argentinos
ligados à ditadura. Sobre a atuação de grupos como este, é válido mencionar o ocorrido em novembro de 2008,
quando manifestantes pintaram, sobre os lenços brancos desenhados na Plaza de Mayo, tarjas negras, aludindo às
Madres a proliferação de um discurso terrorista e contra a paz.
181
Ao retornarmos para a celebração dos trinta anos de luta das Madres (em 30 de
abril de 2007), o que havíamos conhecido há três anos se transformara quase por
completo; nossa proposta parecia deslocada naquele contexto imaginado de
engajamento; potencialmente, tornara-se estranha aos olhares dos legatários que
acompanhavam aquelas mulheres tão presentes na hipótese deste estudo. O páthos por
eles recriado se chocava bruscamente com nosso intento inicial de aproximação.
No entanto, foi-nos permitido pouco mais de dois minutos antes da despedida e a
realização de muitas entrevistas. Em decorrência de sua extensão (aproximadamente,
onze horas de gravação), esse material não integra a redação desta tese. Contudo, ele é
de fundamental importância à nossa compreensão acerca das narrativas elaboradas pelas
sobreviventes dos desaparecimentos.
Durante os oito dias de viagem, compreendemos um pouco melhor o porquê de
tanto receio e, de certa forma, afastamento. Mais que uma imagem de memória viva, as
Madres são responsáveis pela criação de uma comunidade política peculiar que, assim
como o que ocorre com uma nação, vive de suas narrativas e dos elementos que
corroboram seu senso de pertencimento.
As viagens seguintes diluíram o estranhamento do segundo momento,
permitiram uma passagem pelo reconhecimento de um estudo inovador acerca dessas
personagens: sua produção literária, um material que aparece em segundo plano,
ofuscado pela representatividade dos discursos e ações por elas desempenhados.
A análise desse material paralelo nos possibilitou o trabalho com aspectos que,
embora possam ser considerados secundários dentro de um contexto forjado pelo
engajamento político, são fundamentais à elaboração desse ator político coletivo, o qual
nasce narrativamente de um parto ao revés. A passagem da “mãe” à Madre, tantas vezes
evocada nas marchas, é a imagem que mais se destaca nessa escritura tecida pelas
memórias daquela que sobreviveu à tragédia para rememorá-la.
Desde o primeiro intento de escritura, cuja proposta não se explicita num fazer
literário, essa personagem já anuncia uma guinada que se confirma no momento em que
o movimento se encontra numa situação de impasse político. A Madre que assina os
textos de Poemarios já ensaia seus primeiros passos rumo à separação que marca a
diferença entre o que, hoje, representa o movimento: duas linhas distintas, muitas
personagens marcadas pela mesma dor.
Muitas vezes comparadas à personagem sofocliana, essa separação põe um fim à
relação entre Antígona e as integrantes da Asociación. Ainda que o trágico seja um
182
186
Um primeiro encontro já havia sido realizado em Paris, em 1994.
187
Texto original: “Ustedes me han parido y nos han parido a muchas de nosotras”. Fonte: página virtual da
Asociación Madres de Plaza de Mayo: http://www.madres.org
184
188
Com sede em São Paulo, o nome desse movimento provém do local onde mães se encontram semanalmente, a
Praça da Sé. Em nossa entrevista, Ivanise Esperidião da Silva relatou a importância das Madres de Plaza de Mayo
para a idealização do grupo, cujo trabalho é centrado na busca de pessoas desaparecidas. É válido mencionar o
projeto de conscientização realizado por este movimento, uma vez que, segundo Ivanise, na atualidade de nosso país,
esses casos aparecem relacionados a tráfico de órgãos, prostituição infantil e ações em comunidades carentes.
185
realizados pelas “Mães do Brasil” 189 , um grupo idealizado pelas dissidentes do mais
conhecido “Mães da Cinelândia” 190 .
Embora tenhamos notado um propósito de conformação coletiva, o medo de
ações que possam desestabilizar o público ainda é o que mantém essas mulheres à
margem de um intento de questionamento. A busca de um apoio da polícia para a
resolução dos casos corrobora a necessidade de narrar o desaparecido como vítima,
imagem que participa também na elaboração discursiva dessas mães.
É importante mencionar que grande parte dessas mulheres provém de
comunidades carentes do Rio de Janeiro, um referencial fundamental ao trato desses
desaparecimentos, visto que a tragédia por elas vivenciada, muitas vezes, decorre de
enfrentamentos entre policiais e civis, ocorridos nesses locais. Com efeito, ao entregar à
polícia a chance de recuperar seus desaparecidos, elas deixam de lado um projeto que
pode mesmo desestabilizar a cena pública. Em nosso contexto tão marcado por
violências civis e preconceitos étnicos, elas se mostram acanhadas na reivindicação do
filho com os atributos que compõem sua identidade de desaparecido, já que sobre
muitos pesam suspeitas de envolvimentos criminosos.
A simpatia, presente no páthos compartilhado socialmente com as Madres, que
propõe o estabelecimento da maternidade como mote para a conformação do
movimento, no panorama brasileiro não ocorre; ao contrário do temor e da compaixão
despertados pelas mulheres argentinas, as mães brasileiras se defrontam com uma
sociedade civil carente de propostas de segurança, que, de certa forma, apóia e patrocina
operativos policiais em comunidades carentes, sem se preocupar com o saldo dessas
invasões.
Acreditamos que muito há para ser estudado sobre esse tema; sobre o lugar
narrativo dos novos desaparecidos brasileiros. Compreendido como uma proposta de
pesquisa futura, esse caminho nos conduz à imaginação desta conclusão dentro de uma
hipótese que esteve presente em todos os momentos de nosso estudo: o legado ao revés.
189
Durante seis meses, participamos semanalmente de encontros e atos propostos pelas integrantes desse movimento.
Essa aproximação nos permitiu a proposta de uma carta coletiva de apresentação às Madres, material que foi
traduzido e enviado por nós, como tentativa de aproximação dos movimentos. Em novembro do mesmo ano (2007), a
psicóloga Valéria Magalhães viajou conosco a Buenos Aires, para apresentar o trabalho desenvolvido junto às “Mães
do Brasil”, no congresso de Saúde Mental e Direitos Humanos, realizado pela Asociación Madres de Plaza de Mayo.
190
Formado por mães provenientes de tragédias distintas, muitas marcadas por ações policiais em suas comunidades,
o movimento “Mães da Cinelândia” surgiu como uma proposta de exposição da dor como possibilidade de justiça em
relação aos fatos que vitimaram seus filhos. Nesse panorama, destacam-se as “Mães de Acari”, uma agrupação
decorrente do desaparecimento de onze pessoas, entre estas menores, no bairro de Acari, Rio de Janeiro.
Infelizmente, o movimento foi desfeito e os corpos desses desaparecidos até hoje não foram encontrados.
186
Entre tantas hipóteses por que nos guiamos para responder às nossas premissas
acerca dessa elaboração narrativa, as Madres nos deixam a certeza de que, para seguir
com vida, é preciso narrar o horror, torná-lo público. A esperança projetada nos que
virão, presente na imagem atual dos lenços brancos, alcança-nos no projeto de uma
sociedade capaz de sonhar com a liberdade. Alcança-nos no sonho recorrente de uma
voz latino-americana tão projetada na literatura, tão cantada por nossos músicos e ainda
tão distante de ser tornar realidade.
E, se a realidade é um contexto no qual a liberdade reiteradamente precisa ser
defendida, imaginar o tempo presente, o homem presente e a vida presente, para
projetarmo-nos em novos encontros, é o que constitui a nossa matéria.
Contraditoriamente ao percurso de Fred Murdock, o etnógrafo de Borges, não tivemos a
experiência, entretanto, nos arriscamos a narrá-la.
187
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