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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Letras

Maria Fernanda Garbero de Aragão Ponzio

Las Madres de Plaza de Mayo: à memória do sangue, o legado ao revés.

Rio de Janeiro
2009
Maria Fernanda Garbero de Aragão Ponzio

Las Madres de Plaza de Mayo: à memória do sangue, o legado ao revés.

Tese apresentada, como requisito


para a obtenção do título de Doutor,
ao Programa de Pós-Graduação em
Letras, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Área de
concentração:Literatura Comparada.

Orientador: Prof. Dr. Guillermo Francisco Giucci Schmidt

Rio de Janeiro
2009
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB

P819 Ponzio, Maria Fernanda Garbero de Aragão.


Las madres de Plaza de Mayo: à memória do sangue, o legado ao
revés / Maria Fernanda Garbero de Aragão Ponzio. – 2009.
196 f.

Orientador: Guillermo Francisco Giucci Schmidt.


Co-orientadora: Carlinda Fragale Pate Nuñez.
Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.

1. Análise do discurso narrativo – Teses. 2. Memória na literatura


– Teses. 3. Ditadura na literatura – Teses. 4. Ativistas pelos direitos
humanos – Argentina – Teses. 5. Argentina – Política e governo – séc.
XX – Teses. 6. Madres de Plaza de Mayo (Association) – Teses. I.
Schmidt, Guillermo Francisco Giucci. II. Pate Nuñez, Carlinda
Fragale. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Letras. IV. Título.

CDU 82.085

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação

__________________________ __________________
Assinatura Data
Maria Fernanda Garbero de Aragão Ponzio

Las Madres de Plaza de Mayo: à memória do sangue, o legado ao revés

Tese apresentada, como requisito


para a obtenção do título de
Doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Literatura Comparada.

Aprovada em 23/03/2009.
Banca examinadora: __________________________________________________

___________________________________________________
Prof. Dr. Guillermo Francisco Giucci Schmidt (Orientador)
Instituto de Letras – UERJ

___________________________________________________
Profa. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuñez (Co-orientadora)
Instituto de Letras – UERJ

__________________________________________________
Prof. Dr. Italo Moriconi Junior
Instituto de Letras – UERJ

___________________________________________________
Prof. Dr. Andrea Lombardi
Faculdade de Letras – UFJR

___________________________________________________
Profa. Dra. Terezinha Maria Scher Pereira
Faculdade de Letras – UFJF

Rio de Janeiro
2009
A Eduardo Ariel, pues:
“todas las parcelas de mi vida tienen algo tuyo”
E aos que nascerão de nossas utopias.
AGRADECIMENTOS

A meu Orientador, Prof. Dr. Guillermo Francisco Giucci Schmidt, por haver
acreditado em meu projeto, respeitado meu desejo e orientado este estudo. Sua
interlocução e sua compreensão constantes me deram a força necessária para o trajeto
que, embora árduo, sempre foi compartilhado.
À Professora Doutora Carlinda Fragale Pate Nuñez, minha Co-orientadora, pelos
incontáveis momentos de diálogo, atenção e orientação sobre a abordagem do Trágico,
conceito fundamental à compreensão das Madres. Seu estímulo e seu apoio foram
matérias essenciais em meu percurso.
Às Professoras Doutoras da Universidade Federal de Juiz de Fora, Terezinha
Maria Scher Pereira, Jovita Maria Gerheim Noronha e Silvina Liliana Carrizo, pela
participação, tão companheira e solidária, no esboço do projeto que foi a base dessa
tese.
À Ines Vázquez, Reitora da Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo, às
integrantes da Asociación e da Línea Fundadora, pelas entrevistas concedidas. Ao
professor Raúl Carrizo, pelos interessantes momentos de discussão sobre esse tema tão
caro a nosotros.
Aos companheiros de doutorado, aos funcionários da Pós-Graduação em Letras
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que me ajudaram neste trajeto.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, por conceder-
me, por um ano, a bolsa que viabilizou a continuidade desta pesquisa.
À equipe da Escola SESC de Ensino Médio, por me permitir conciliar meus
projetos discentes à minha prática docente.
Aos meus familiares, que entenderam minhas ausências, dando-me o incentivo
necessário à construção deste projeto. A minha avó Emília e ao meu avô Washington
Garbero, amor em vida, força na memória e no legado. A Deus, firmeza e amparo.
Aos amigos Cristiano Mirandella, Ulício Pinto, Mabel Ciappini, Valeria
Bullaude, Stella Maris de Gasperi e Inah Brider, pela crença de que podemos juntos
vencer moinhos de vento.
A Eduardo Ariel Ponzio, meu companheiro, esposo e amigo, presente em todas
as linhas que escrevem a história desses quatro anos.
Às Madres de Plaza de Mayo, por tudo que aqui se encerra e inicia.
No se sabe nunca cuándo se nace: el parto es una simple convención

Juan José Saer, El Entenado


RESUMO

PONZIO, Maria Fernanda Garbero de Aragão. Las Madres de Plaza de Mayo: à


memória do sangue, o legado ao revés. 2009. 196f. Tese (Doutorado em Letras) –
Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

O contexto da Argentina da década de setenta é o cenário de personagens e


narrativas que emergem do medo e permanecem, até os dias atuais, em posições de
resistência e enfrentamento. Nessa paisagem marcada pela opressão do Estado militar,
nascem as Madres de Plaza de Mayo, originadas pela tragédia do desaparecimento
forçado de seus filhos. Investidas pela maternidade, elas rompem com a esfera privada
para desestabilizar a esfera pública e questionar a memória de um país maculado pelo
silenciamento, alcançando um protagonismo viável à reelaboração da dor, em mais de
três décadas de luta em defesa de seus filhos. Paralelo às performances na Plaza de
Mayo, elas esboçam um intento literário e publicam, durante a ditadura militar, seus
primeiros poemas. O desejo anunciado de um encontro com a literatura ganha força no
projeto das oficinas literárias, do qual são produzidos cinco livros, restando também um
material inédito que servirá de base para publicações futuras. O encontro com a ficção
viabiliza um processo narrativo empreendido rumo à reconstrução biográfica do ser
responsável pelo nascimento do ator político Madre, quem se torna personagem de si
mesma, recriando-se na escritura e propondo novos olhares à memória, ao testemunho.
A reelaboração do trauma e o surgimento de uma discursividade capaz de ressignificar a
ausência compõem os principais elementos desses textos. Em analogia a personagens
como Antígona (de Sófocles), Hécuba (de Eurípides) e Pelagea Wlassowa (de Gorki-
Brecht), elas confirmam uma postura de enfrentamento e se projetam como herdeiras de
uma linhagem de mulheres que convulsionaram o público, a partir da entoação de um
páthos coletivo. Em devoção aos seus desaparecidos insepultos, as Madres recriam um
legado ao revés, presente na escritura e na reinvenção de personagens que encontram o
caminho da sobrevivência na memória do filho.

Palavras-chave: Madres de Plaza de Mayo. Memória. Trauma. Escritura. Narrativa.


Argentina.
RESUMEN

El contexto de la Argentina de los años setenta es el escenario de personajes y


narrativas que provienen del miedo y permanecen hasta la actualidad en posiciones de
resistencia y enfrentamiento. En este paisaje escrito por la opresión del Estado militar,
nacen las Madres de Plaza de Mayo, originadas por la tragedia de la desaparición
forzada de sus hijos. Investidas por la maternidad, ellas rompen con la esfera privada
para desestabilizar la esfera pública y cuestionar la memoria de un país maculado por el
silencio, alcanzando una situación de protagonismo viable a la reelaboración del dolor,
en más de tres décadas de lucha por la defensa de sus hijos. Paralelo a las performances
en la Plaza de Mayo, ellas esbozan un intento literario y publican durante la dictadura
sus primeros poemas. El deseo anunciado de un encuentro con la literatura crece en el
proyecto de las oficinas literarias, del cual son publicados cinco libros, quedando
además material inédito que servirá de base para publicaciones futuras. El encuentro
con la ficción viabiliza un proceso narrativo emprendido rumbo a la reconstrucción
biográfica del ser responsable por el nacimiento del actor político Madre, quien se
transforma en personaje de sí misma, recreándose en la escritura y proponiendo nuevas
miradas hacia la memoria y el testimonio. La reelaboración del trauma y el surgimiento
de una discursividad capaz de resignificar la ausencia componen los principales
elementos de estos textos. En analogía a personajes como Antígona (de Sófocles),
Hécuba (de Eurípides) y Pelagea Wlassowa (de Gorki-Brecht), ellas confirman una
postura de enfrentamiento y se proyectan como herederas de un linaje de mujeres que
convulsionaron al público a partir de la entonación de un páthos colectivo. En devoción
a sus desaparecidos insepultos, las Madres recrean un legado al revés, presente en la
escritura y en la reinvención de personajes que encuentran el camino de la
supervivencia en la memoria del hijo.

Palabras-clave: Madres de Plaza de Mayo. Memoria. Trauma. Escritura. Narrativa.


Argentina.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................ 10

1. HIPÓTESES NARRATIVAS: O ENREDO, AS PERSONAGENS, O


TEMPO E O ESPAÇO............................................................................................ 21

1.1. Crônica do silêncio: o enredo de uma época “distinta” ............................... 21


1.2. As personagens ................................................................................................ 24
1.3. Personagens de uma orquestra macabra ....................................................... 29
1.4. O tempo (um deles) .......................................................................................... 36
1.5. O espaço ............................................................................................................. 40
1.6. O retorno do tempo: transecularidades da Plaza de Mayo ........................... 42
1.7. O espaço e suas arqueologias transeculares ................................................... 45
1.8. A Plaza do Turismo: espelhismos e espetáculos em Buenos Aires ............... 48
1.9. Espaços do turismo: a Plaza e seu entorno .................................................... 51
1.10. A Plaza da Passagem: temporalidades da planta baixa .............................. 54
1.11. Estação 1977 ................................................................................................... 57
1.12. Estação 2001 ................................................................................................... 59
1.13. Espaços e imagem da Plaza da Memória ...................................................... 64

2. LINHAS DA MEMÓRIA: PONTOS E CRUZES, EMBATES E


TRANSFORMAÇÕES DO LENÇO BRANCO ................................................... 68

2.1. O conto do véu que desvela ............................................................................. 68


2.2. Linhas da memória ........................................................................................... 71
2.3. Cantos de espera, ausência e esperança ......................................................... 79
2.4. Conflitos externos, divisões internas ............................................................... 90
2.5. A utopia como resposta ao esquecimento e à consolidação de princípios ... 100

3. ARQUITETURAS TESTEMUNHAIS: AS OFICINAS LITERÁRIAS E A


(RE) DESCOBERTA DA ESCRITURA ............................................................... 111

3.1. Ensaios circulares: encenações do porvir ...................................................... 111


3.2. Traçados de uma história em construção ...................................................... 113
3.3. Redescobrindo as letras ................................................................................... 115
3.4. Nuestros sueños: histórias para nossos filhos ................................................. 118
3.5. Viagens e recordações: a matéria do sonho ................................................... 133

4. TRANSGRESSÕES POÉTICAS: O TRAUMA E O LEGADO DOS


LENÇOS BRANCOS EM VERSOS DE MEMÓRIA ........................................ 146

4.1. O Coração na escritura: a Madre e “A Mãe” ................................................. 148


4.2. Pluma Revolucionária: a cerimônia do Adeus, as projeções de um legado 167
ao revés......................................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 180


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 187
10

INTRODUÇÃO

“Nuestros hijos nos parieron”

Hebe de Bonafini

O estudo das produções culturais em contextos marcados por eventos


traumáticos constitui uma temática que nos é de grande interesse. A última ditadura
militar da Argentina, mais que uma época, é um cenário no qual podemos encontrar
exemplos que questionam as noções de verossimilhança. É dessa incerteza que surgem
algumas dúvidas que norteiam o presente estudo: é possível narrar o trauma? É possível,
ao sobrevivente, rememorar o espanto?
É na tentativa de responder a essas questões que a literatura surge como um
caminho possível à imaginação do futuro, hipótese presente tanto na elaboração das
estratégias criadas para enfrentar o temor quanto na proposta de novos ouvintes às vozes
outrora silenciadas.
O percurso desenvolvido nesta tese caminha em direção ao encontro dessas
vozes: os sobreviventes do evento traumático, sujeitos que reelaboraram uma “sobre-
vida” através de um desempenho narrativo hábil à construção de novos sentidos às
memórias do ser ausente e da testemunha de seu desaparecimento.
Dessa hipótese, germinaram algumas questões em relação à presença das
Madres de Plaza de Mayo 1 , personagens fundamentais para a compreensão de
estratégias discursivas emergentes de um contexto de silêncio imperativo. Investidas do
papel político de mães de desaparecidos detidos durante a última ditadura militar
argentina (1976 – 1983), denominada “Processo de Reorganização Nacional”, essas
mulheres saem da esfera privada para expor publicamente suas feridas e construir,
coletivamente, uma força capaz de suportar a experiência trágica individual.
Mais conhecidas por suas performances 2 na Plaza de Mayo que por sua
escritura, as Madres representam um objeto de estudo que implica um intercâmbio
conceitual com outras disciplinas, pois esta interdisciplinaridade viabiliza o trato de

1
O nome desse movimento será preservado em sua língua original, o espanhol, para que se mantenha a imagem
semântica que dele provém, assim como os termos que compõem o sintagma Plaza de Mayo, utilizado em referência
à Praça de Maio neste estudo. A tradução dos textos é de nossa autoria.
2
Entendida como um conceito artístico, a performance passa a ser reconhecida como meio de expressão
independente a partir da década de 70, com o surgimento de espaços, museus e escolas dedicadas a essa arte. Em
nosso estudo, consideramos esse conceito como um importante fator no movimento das Madres, pois responde à
proposta artística, ao compor o desenvolvimento de uma sensibilidade e colocar questões e novos pontos de vista, a
respeito do papel do corpo na composição dessa personagem desolada pela ausência do filho.
11

aspectos presentes nessa elaboração do sujeito que se reinventa para suportar o dever
assumido: viver para relembrar a dor.
Os aportes teóricos provenientes do enclave da Sociologia, da Psicologia, da
Geografia Cultural e da História constituem um importante arcabouço no diálogo dessas
áreas disciplinares com a Teoria da Literatura, ao esboçar um viés metodológico
fundamental para a construção de uma análise das heterogenias e estratégias escritas na
composição do ator político coletivo Madre.
Numa perspectiva comparativa, a história e a dimensão social das Madres de
Plaza de Mayo permitem paralelos com ficções literárias de consagrada envergadura; os
mitos trágicos, nos quais situações de colapso social deflagram o escândalo pela ação de
mulheres obcecadas por suas obrigações em relação a seus queridos irmãos e filhos.
Antígona (442 a.C), de Sófocles, e As Troianas (415 a.C), de Eurípides, podem ser
vistas, por conseguinte, como textos dramáticos precursores de outras realidades escritas
no século XX. Diante dessa transtextualidade 3 , a peça A Mãe (1932) 4 , de Bertolt
Brecht, representa uma importante diferença no caminho da personagem feminina rumo
à conscientização política, capaz de oportunizar a pesquisa acerca de aspectos como
constituição, permanência e ressignificação do movimento feminino argentino.
O estudo do cenário do qual as Madres emergem como ator político,
problematizado por questões estabelecidas pelo diálogo com a Sociologia e a Geografia
Cultural, é uma proposta à qual nos dedicamos, a fim de entender a cartografia de um
espaço que conjuga dominação e poder, simultaneamente, com a resistência e o
enfrentamento. Nesse cenário, onde o arquivo do imaginário mítico de uma nação se
projeta, mulheres da esfera privada invadem a cena para desestabilizar os poderes
vigentes e tentarem reescrever a história fragmentada pelos anos ditatoriais.
Com efeito, uma simbólica esquina entre luta e resistência se configura nesse
espaço construído pelas Madres, ao transbordar fronteiras e espraiar testemunhos hábeis
à construção de novos sentidos para o saldo deixado pela opressão do Estado militar.
Compreendida como uma questão fundamental, a maternidade é o mote possível para o
nascimento de atores políticos que se formam a partir da tragédia compartilhada. Dessa

3
Referimo-nos aqui, com o termo transtextualidade, à superação dos enquadramentos históricos e da historiografia
das formas literárias. Através da irrupção de formas de expressão e de padrões de sensibilidade independentemente
de seus registros de origem, o peculiar comportamento das Madres se projeta num tempo trans-histórico, capaz de
dimensionar o que aí existe de local e universal, atual e perene, da ordem particular da maternidade ferida, mas
também da latitude mais ampla do humano.
4
A peça é baseada no romance homônimo do escritor russo Máximo Gorki, escrito em 1907. Neste primeiro
momento, a escolha pela obra do teatrólogo alemão é por este se tratar de um texto dramático, assim como as
tragédias presentes em nossa análise.
12

conformação no público, a herança simbólica de luta, originada pela imagem projetada


no ente desaparecido, passa a representar um legado ao revés: as Madres paridas pela
ausência, em busca de reconstruções narrativas de memória e testemunho.
No lugar do desaparecido, nasce uma discursividade que reivindica – por parte
da mãe – uma história mediada por estratégias de resgate ressignificado dos corpos
daqueles que não podem mais testemunhar a tragédia. Tendo em mente o aspecto que
relaciona o movimento argentino às obras literárias com as quais dialoga – a presença
desolada –, nosso interesse também se atrela às distintas representações da ausência,
como a narração do ser ausente pela voz do sobrevivente. Fruto dessa reelaboração,
acreditamos que o desaparecido renasce como “mártir”, que aponta o caminho e
testemunha uma fé, ao traçar o caminho daquela que lhe dará vida por segunda vez.
A imagem do encontro entre a Madre e o ente desaparecido recriará novos
cenários secularizados e marcados por ensaios de poder e confronto. Às quintas-feiras, a
Plaza de Mayo se reconfigura em dimensões espaciotemporais. Ali, Las Madres de
Plaza de Mayo caminham pacientemente rumo ao encontro dos ideais de seus filhos,
rumo a uma justiça que assuma e condene os culpados pelos crimes cometidos durante o
“Processo”.
Logo, essa nova paisagem pode ser compreendida como um espaço
heterotópico, imagem proveniente de um cenário que emerge “quando os homens se
encontram numa espécie de ruptura absoluta com seu tempo tradicional” (FOUCAULT,
1984, p. 418), projetado numa heterocronia. Diferentes tempos e novos contextos
5
representativos de uma utopia – marcada pela reiterada idéia do “não-lugar” –
denotam a atualidade desse movimento empreendido há mais de trinta anos na América
Latina, o qual se destaca por sua obstinada fidelidade aos desaparecidos e por sua força
de embate e transgressão.
Estudar a presença das Madres de Plaza de Mayo é reconhecer também que,
através da ocupação de um espaço público por mulheres cujos corpos se substituem aos
de seus filhos desaparecidos e persistem no reclamo por eles, há uma personagem
nascida da dor. Permanecer na Plaza, para reviver o trauma, faz com que elas se
transformem numa indissociável imagem testemunhal de resistência.

5
Diferente da teoria acerca dos “não-lugares”, do antropólogo francês Marc Auge (AUGÉ, Marc. Não-lugares:
introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. (Coleção Travessia do Século)),
para designar um espaço de passagem incapaz de dar forma a qualquer tipo de identidade, nossa análise é baseada na
etimologia proposta para vocábulo “utopia”, proveniente do grego ou-topos, cujo significado, neste momento, será
empregado para definir um lugar marcado pela impossibilidade provocada pelo veto à voz reclamante.
13

Justamente, por não se haver calado e por ter construído uma história na
contramão do poder é que, com seus lenços brancos, essas mulheres conseguem ocupar
a principal praça de Buenos Aires, semanalmente redesenhada e reescrita por elas.
Algumas falam muito, outras falam menos, mas todas têm a história de si como via de
resistência, pois é através de seus discursos, escritos literários e atos performáticos, que
as feridas mais escondidas são expostas, mostrando a vergonha a que há tantos séculos
as sociedades mais distantes e diferidas do planeta são submetidas a formas de
dominação e abuso de poder.
Seguir lutando e tentando 6 reconstituir a memória indicia o caráter durativo
desse empreendimento, no qual a luta é um longo caminho a ser percorrido e a memória
sempre é atualizada e reelaborada. Logo, a composição desse ator político coletivo nos
propõe um olhar sobre o relato como uma alternativa utópica. A resistência passa a
configurar a possibilidade de um caminho que nos remonta à metáfora de Scherazade,
representação literária que ilustra a necessidade narrativa para seguir com vida. Desses
relatos, surge a urgência de uma voz que implora para ser ouvida.
Num contexto como o do Estado militar, as Madres, assim como a personagem
de As mil e uma noites, precisam resistir “aos ditames do rei” (PIGLIA, 1994, p.63). No
panorama ditatorial argentino, o “rei” é o portador de imagens presentes em políticas
que privilegiam o ideal de homogeneização, ao fazer com que desapareçam de sua
história os sujeitos que não condizem com o projeto de nação arquitetado sob silêncio e
temor. Diante disso, o gênero escritural do testemunho emerge como uma possível saída
de diálogo, em que o relato da experiência ganha um lugar privilegiado nos estudos da
academia.
Essa renovação temática e metodológica remete-nos a Richard Hoggart7 , em The
uses of Literacy (1957), livro pioneiro acerca das questões cotidianas, no qual há o
esboço de “um programa de pesquisas futuras que dizem respeito não só aos estudos
culturais, como também às reconstituições do passado” (SARLO, 2007, p.17).
Nesse percurso investigativo, valorizar a escrita testemunhal das Madres de
Plaza de Mayo é inserir no debate acadêmico personagens que, ao alcançarem a

6
Em relação ao processo de conformação e permanência das Madres, em muitos momentos parece-nos oportuna a
noção proveniente do gerúndio, uma vez que essa forma nominal indica uma progressividade da ação.
7
Sobre o autor, ainda é válido mencionar que, ao trabalhar com suas lembranças e experiências de infância e
adolescência, sem uma abordagem fundamentada teoricamente, Hoggart teve sua obra advertida a respeito de sua
legitimidade, uma vez que a experiência autobiográfica não constituía, por si só, um protocolo de observação
metódica naquele momento, como apresentado por Jean-Claude Passeron, em La culture du pauvre, de Richard
Hoggart, Paris, Minuit, col. Le Sens Commun, 1970, coleção dirigida por Pierre Bourdieu. In: SARLO, 2007, p. 121.
14

dimensão social de Madres, desafiaram os ditames do rei, escrevendo suas memórias e


as deixando como herança às sociedades que encontram fendas e remendos em sua
historiografia. Vistas como sujeitos marginais relativamente ignorados em outros modos
de narração no passado, elas demandam agora novas exigências de método e impõem a
escuta sistemática de seus “discursos de memória”, como seus manifestos; cartas;
poemas, enfim, uma série de relatos identitários que dão voz ao corpo testemunhal
vitimado pelas violências do Estado militar.
Embora o estatuto da literatura de testemunho seja uma questão altamente
discutida, é imprescindível pensar no seu caráter literário, decorrente da presença
constante (e irredutível) de uma fala sensível que encontra sua expressão particular no
texto testemunhal. Nessa perspectiva, o testemunho possibilita a leitura e a importância
da experiência como uma alternativa que resgata a identidade e, ao mesmo tempo,
requisita de seu leitor – que não é o sujeito testemunhal – um pacto de solidariedade, em
que ambos se encontrem – ele e a testemunha – como personagens de um processo
supressor de alteridades. A reivindicação de novas articulações viáveis a uma discussão
ética e restitutiva surge a partir desse encontro, no qual o leitor se torna cúmplice (co-
autor) do texto testemunhal. O mecanismo aqui implicado remete à ficcionalização de
um ente civil que passa a ser sua própria personagem. O ato escritural, na purgação de
uma vivência que alcança leitores cada vez mais ávidos de co-participação no universo
real, porém socializado pelo relato convincente e patético, envolve recursos retóricos e
dramáticos. Neste momento, há algo que transcende o nível do depoimento e que já não
pode ser visto apenas como literatura testemunhal.
Num período no qual o projeto de construção de identidade nacional se firmava
sobre o apagamento das diferenças, as Madres nascem como uma saída ou, ao menos,
uma opção discursiva, na qual a heterogeneidade colaborará para que a história de um
povo não se perca e, com isso, seja pensado um aspecto identitário que vise à
preservação dessa memória. Os testemunhos por elas elaborados, assim como a utopia,
denunciam o “não-lugar” que lhes era consentido ocupar. Contudo, é através da
possibilidade narrativa que aparece a esperança de poder tocar um horizonte distante, no
qual seus lenços brancos são as metáforas de sujeitos que lutam e fecundam sonhos.
Seus discursos, suas rondas e marchas semanais ao redor da Pirâmide de Mayo definem
os parâmetros éticos que ditam os rumos daqueles que, com elas, se identificam como
os legatários de um projeto de memória latino-americana.
15

Em relação à Argentina ditatorial, o que vemos é o propagar de ondas de


estratégias estetizantes nacionalistas, originadas pela tentativa de abafamento do terror
que estava acontecendo nos centros clandestinos de detenção (local para onde eram
levados os “subversivos”). Mortes, desaparecimentos e ameaças compunham um
complicado cenário nacional. Para enfrentar qualquer perigo que pudesse atingir o
projeto militar, o silêncio foi considerado como único caminho de segurança e
sobrevivência 8 .
Todavia, se as linhas históricas da República Argentina retiravam de suas
páginas (e de suas ruas) as vozes que poderiam causar dissonância em relação ao
regime, as Madres aparecem como o resgate de personagens marginalizadas por uma
sociedade que excluiu o que parecia diferente e possivelmente ameaçador a suas
fissuras. O nascimento das Madres, como um ator político desestabilizador, se choca
com um plano de exclusão e interdição. Para anular essas personagens, além das
estratégias nacionalistas elaboradas para a narrativa de um país, os militares lhes
cunham um sintagma capaz de promover o descaso necessário para mantê-las à
margem: Loucas da Plaza de Mayo.
Com efeito, excluir o discurso, transformando-o em algo desprovido de
credibilidade, pode ter representado um artifício ideal para que as vozes dessas
mulheres não delatassem o trauma do sobrevivente. Ao serem chamadas de “loucas”,
emerge o preconceito de muitos que preferiam acreditar que realmente se tratava de
loucura, e não do resgate de algo que também lhes pudesse pertencer. Sobre a incômoda
presença do louco, Foucault considera, em A ordem do discurso (1970), que:

“Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o
dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida,
não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não
podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício
da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer
também, em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras,
estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de
enxergar com toda a ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode
perceber” (FOUCAULT, 1970, p. 10).

8
Alguns exemplos são o plano econômico “plata dulce” ; o projeto de “nação vitoriosa”, vencedora da Copa do
Mundo de 1978, e a Guerra das Malvinas, em 1982, além dos lemas: “Há que esquecer, não saber”, “Não te metas” e
“Por algo será”, como justificativas aos operativos militares.
Sobre algumas expressões presentes nesta nota, é válido aclarar a que se referem:
“Plata Dulce”: plano econômico desenvolvido pelo ministro da economia durante 1976-1981, José Alfredo Martínez
de Hoz. Tal estratégia financeira promoveu congelamentos salariais das classes menos favorecidas, ao mesmo tempo
em que abria o mercado para o pedido de créditos internacionais. Além do alto índice de inflação a que o país se viu
submetido nesta época, ressalta-se também o enfraquecimento da indústria argentina.
“Hay que olvidar; no saber”, “No te metas” e “Por algo será” são expressões populares usadas na época da ditadura e
que ainda hoje perduram no vocabulário argentino.
16

Como a alegoria de um arqueólogo que sai à procura de fósseis, tentando


recuperar alguns traços de seu passado, as Madres vão ao encontro da memória: os
filhos mortos, desaparecidos forçados. Contudo, em uma atmosfera sufocante, na qual
várias pessoas somem diariamente, o trabalho desse arqueólogo é encontrar-se com o
fracasso. Ainda que se reconstrua a história, ela não pode ser totalmente dita; é velada
pelo discurso oficial, por um sistema que insiste na afasia como tentativa de “calar os
monstros”. O contexto de interdição implantado pelo regime militar condiz com a
necessidade de controle dessas narrativas, ao traçar estratégias que corroboram as
considerações de filósofo francês:

“(...) Em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,


selecionada, organizada e redistribuída por certo números de procedimentos que
têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu conhecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (Idem, p. 9).

E, um pouco mais adiante, conclui: “Se é necessário o silêncio da razão para


curar os monstros, basta que o silêncio esteja alerta, e eis que a separação permanece”
(idem, p.13). Entretanto, se a narrativa produzida pelos militares aniquilava os iníquos
rastros presentes em sua composição, ela não deixava de denunciar seu aspecto frágil e
artificial. Em relação às tensões acerca das estratégias discursivas empreendidas pela
narrativa nacional, ao abordar as tradições inventadas e impostas ao povo, Luis Alberto
Brandão dos Santos argumenta:

“Na opção pela recusa do Horror, não é apenas a Razão que se revela destroçada.
Também se destroça a concepção de nação enquanto reduto de identidades
essenciais a serem isoladas e preservadas através do extermínio de toda e qualquer
impureza interna ou ameaça externa. Destroça-se, ainda, a concepção de história
como progresso, como processo contínuo de conquista do futuro, de colonização do
acaso pela previsibilidade. Passa a ser possível, então, que se comece a difundir o
quanto há de inverdade na constituição da nação enquanto força simbólica e, como
conseqüência, do quanto há de manipulação no modelo aparentemente natural da
nação enquanto modelo concreto de organização social. Torna-se possível, assim,
passar a perceber as tradições nacionais como tradições inventadas; a nação como
narrativa” (SANTOS, 1997, p. 95, grifo do autor).

Com essas circunstâncias estabelecidas, os agentes da história se encontram


inseridos num processo de afasia. Para se pensar numa alternativa viável à emersão
desse estado, o que surge é uma hipótese de restituição lingüística, na qual a
representação performático-literária se configura como uma saída para essas mulheres;
somente através do relato esse caminho se torna possível. Sobre esse tema e a
pertinência das Madres de Plaza de Mayo neste trabalho, vemos o árduo dever de
17

construção discursiva por elas empreendido, já que “a tarefa que a arte do relato
enfrentaria seria, então, oferecer restituição sabendo perfeitamente que toda restituição é
impossível, fazer do reconhecimento da impossibilidade de restituição o seu gesto mais
restitutivo” (AVELAR, 2003, p. 145).
Se restituir é algo impossível, quando se trata da velada morte do corpo
insepulto, o dever é vital para os que estão vivos. Através dos rastros que recuperam a
imagem de Antígona metabolizada na figura das Madres (mulheres que se devotam aos
seus familiares mortos), surge a proposta de reencontro com um tempo que não pôde ser
dito e que, no presente, requisita sua inserção numa memória escrita no gerúndio, com
verbos 9 que, timidamente, (re)escrevem a continuação meta-historiográfica da América
Latina durante um de seus momentos mais dolorosos.
Em Los abusos de la memoria (2000), Tzvetan Todorov discute a apropriação da
memória realizada pelas tiranias do século XX, ao abordar as falhas existentes na
história por questões de supressão, seleção e transformação. Nessa perspectiva, a cada
mudança de poder, a história é reescrita, e cabe ao leitor reconhecer e eliminar
invenções que não condizem com os fatos, os quais, muitas vezes, só sobreviverão
estrategicamente através dos relatos orais ou da poesia, percurso análogo ao que será
empreendido pelas Madres.
A narrativa de base testemunhal e as representações memorialísticas, então, se
configuram como uma importante premissa rumo à compreensão dessa força emergente
da dor. Insepultos os corpos, agora é das Madres a simbólica missão de levantá-los do
chão e os fazer renascer e caminhar em seus lenços brancos.
As oficinas literárias realizadas entre 1990 e 2000 10 , pelas integrantes da
Asociación Madres de Plaza de Mayo, são um exemplo desse intento. Iniciadas como
um projeto de encontro com a escritura, as oficinas oferecidas pelo escritor argentino
Leopoldo Brizuela representam uma possibilidade de transformação do páthos entoado
na Plaza em matéria poética. A reelaboração da ferida do sobrevivente em escritura
passa a ser compreendida como um desafio, no qual o literário surge como uma
proposta despretensiosa para dar forma às memórias daquelas que, neste momento, se
recriam como personagens de si mesmas, mesclando em seus textos a dramaticidade e o
testemunho.

9
Sofrer, chorar, temer e viver.
10
Esse período nos foi informado pelo idealizador do projeto, Leopoldo Brizuela, numa entrevista realizada em abril
de 2007, em Buenos Aires.
18

Desses momentos, são publicados cinco livros, a saber: Nuestros Sueños (1992),
A l’ombre de leur voix (1993), La vida en las palabras (1993), El lugar de reencuentro
(1995) e El corazón en la escritura (1997) 11 . Junto a essas obras, agregam-se à
produção literária das Madres a coleção Poemarios (1981) 12 e o compilado de textos e
pinturas, Pluma Revolucionária (2007), publicados antes e depois do período das
oficinas, respectivamente.
Para entender o percurso da personagem que escreve suas memórias e reelabora
a biografia do filho, para seu projeto de construção de legado, trabalharemos com três
momentos distintos desse encontro com o literário.
A coleção Poemarios é nosso ponto de partida, uma vez que representa um
importante momento para a elaboração discursiva empreendida por essas mulheres.
Fortemente marcada pela dor do desaparecimento e pela necessidade de denúncia, a
Madre que assina esses primeiros textos expurga sua chaga, o que faz com que esse
material seja fruto da tragédia, reelaborado em matéria poética na publicação de Nossos
sonhos. Como uma escrita da transição, o primeiro livro das oficinas traduz um plano
de construção biográfica que se edifica em O coração na escritura, marcando a
passagem que se anuncia na chegada para concretizar-se na despedida. Ao retornarem
com Pluma Revolucionária, dez anos após a publicação do último livro produzido com
a ajuda de Leopoldo, elas confirmam a imagem projetada no primeiro momento,
ratificam os processos de conscientização e engajamento, presentes em O coração na
escritura, e trazem à luz o novo impasse da personagem que escreve; como um ensaio
de despedida da cena pública, as Madres revivem suas narrativas e questionam o lugar
da memória na contemporaneidade.
Constituída por diferentes gêneros textuais, a literatura produzida pelas Madres
ajuda à compreensão de uma memória que se escreve com base na recuperação de uma
voz que por muito tempo foi interdita. Nesse panorama, o aspecto poético, a ficção, a
alusão e a elipse são importantes elementos mediadores entre a construção literária e a
realidade à qual elas se reportam. O tempo dessas narrativas é um passado
presentificado, revivido, verbalmente atualizado, capaz de compreender e imaginar o

11
Títulos traduzidos: Nossos sonhos, À sombra de sua voz, A vida nas palavras, O lugar do reencontro e O coração
na escritura. Em nosso estudo, trabalhamos com o primeiro e o último livro produzido nas oficinas. Nossa escolha
decorre do recorte de dois momentos fundamentais à compreensão do que hoje representa a conformação desse
legado ao revés, proposto discursivamente pelas Madres.
12
Publicado cladestinamente em 1981, a coleção (composta por três volumes) a que hoje se pode ter acesso é uma
versão fac-similar, lançada em 1985, dois anos após o término do regime militar.
19

futuro, que passa a ser idealizado numa perspectiva de transformação pela palavra do
testemunho e por sua relação com a possibilidade de justiça.
As narrativas que integram os livros escolhidos para nossa análise resgatam o
paralelo com os mitos trágicos e com o teatro de Bertolt Brecht, mais especificamente
em relação à peça “A Mãe”. A Madre, ator político que se transforma em personagem
de si mesma ao escrever suas memórias, no encontro com a literatura, revive embates e
adota posturas discursivas que a equiparam às protagonistas de Sófocles, Eurípides e
Brecht.
Assim como na simbólica passagem da mãe (desolada, marcada pela esfera
privada) à Madre (sujeito coletivo, inserido na esfera pública de contestação), no trajeto
de Poemarios a Pluma Revolucionária, podemos enxergar a necessidade de recriação a
que essa personagem se propõe, ao escrever sobre si, suas companheiras de movimento
e sobre aquele que, desde o primeiro dia na Plaza, renasce como o responsável pela
criação de um legado assumido, fruto do laço entranhável da maternidade. Ao dizer-se
parida por seu filho, essa personagem inverte a noção de herança e recria futuros
legatários: os esquecidos, aqueles pelos quais seus filhos não puderam concluir a luta
interrompida pela morte.
Logo, a compreensão dessas etapas nos demanda a abordagem de alguns
aspectos que estão presentes na composição da planta baixa desses textos. O contexto
do qual emergem as Madres e as transformações do cenário atual que elas ocupam
constituem o primeiro passo de nossa proposta, já que os primeiros livros surgem ainda
num contexto ditatorial.
Num segundo momento, buscaremos compreender alguns aspectos que
participam na conformação do movimento, entretanto, com o retorno da democracia,
eles se tornam inconciliáveis, culminado na separação do grupo em Línea Fundadora e
Asociación Madres de Plaza de Mayo. Mais que uma divisão interna, essa etapa traz à
luz novas elaborações discursivas a respeito do corpo insepulto e das relações das
Madres com o projeto de legado dos desaparecidos.
Esse ator político, ao assumir novas posturas, agrega em sua formação uma
imagem muito mais forte de engajamento e resistência. Essa imagem elaborada pelas
Madres da Asociación se chocará com as representações das antigas companheiras, as
quais permanecerão revivendo a dor de um sepultamento inviável. Presentes na
escritura, esses conflitos redimensionam o discurso e a recriação da personagem de si
20

mesma, além de corroborarem a imagem atual desempenhada nos projetos da


Asociación.
A voz dessas Madres confirma, ainda, a aposta numa alternativa crítica
heterocrônica: ao transbordar as imagens deixadas pelas violências do Estado militar e
se projetar no porvir, na luta em construção, esse material confirma a crença investida
num legado imaterial, numa proposta de memória que, ao mesmo tempo em que
questiona o passado, replanta as esperanças de justiça e igualdade no futuro.
Compostos por múltiplas vozes que neles se projetam, esses textos surgem
originalmente da necessidade de narrar fatos e imagens que, somente na literatura, se
tornam viáveis. Frente à inverossimilhança do evento traumático por elas experimentado, o
literário emerge como caminho capaz de conduzir essa personagem ao encontro de
elementos possíveis à reelaboração discursiva de um corpo que, assim como o do
desaparecido, é marcado indelevelmente pela tragédia. Corpos cujas vozes se reportam a
interlocutores que permanecem silenciados e à espera do projeto interrompido.
Como um fim que se abre para muitos começos, narrar as Madres é mais que uma
tentativa discursiva: é deparar-se com mulheres que, desde o primeiro encontro, há mais de
31 anos, sonham com lutas e crêem em vidas insurgentes. É imaginar que “el otro soy yo” 13
e a liberdade é um direito de todos. Ainda que demore, ainda que tardia.

13
“O outro sou eu” é um dos lemas adotados pelas Madres da Asociación Madres de Plaza de Mayo, em referência
ao compromisso assumido com a memória dos desaparecidos.
21

1. HIPÓTESES NARRATIVAS: O ENREDO, AS PERSONAGENS, O TEMPO E


O ESPAÇO

1.1. Crônica do silêncio: o enredo de uma época “distinta”

Num país prateado com nome de mulher, 24/03/1976...

Apagam-se as luzes. Não há mais carros nem transeuntes perambulando pelas ruas.
Há só alguns automóveis: grandes, estranhos, medonhos. Nas casas, as pessoas dormem em
estado de vigília. O medo tira o sono e impede os sonhos outrora gritados pelas mesmas
avenidas, o silêncio e a escuridão transitam no vazio. Os telefones não mais comunicam;
eles espiam, grampeiam.
Amanhece ainda no escuro. Os grupos de jovens deixam de representar o fulgor da
adolescência; agora são agrupações potencialmente subversivas. Os operários que
reivindicavam um salário mais digno escondem-se embaixo de um teto de outono frio, sem
cobertas e esperanças. As salas de aula se emparedam de silêncio. Os ônibus, os bancos, as
filas, os dias e as noites funcionam da mesma maneira; cotidianamente. Tingidos pelo
medo, nada pode parar, nem os ponteiros do relógio.
A noite volta e a escuridão se confirma. Sob luzes apagadas, acendem-se
escandalosamente as ameaças. Golpeiam-se as portas. Ao contrário do sábado passado, não
é mais o filho chegando de madrugada sem chaves: são os arrestos domiciliares. Chutes,
pontas-pé, gritos, choro, medo. Capuz. O filho que sábado escutava Charly García e
cantava com seus amigos “hubo un tiempo que fue hermoso y fui libre de verdad, guardaba
todos mis sueños en castillos de cristal, poco a poco fui creciendo y mis fábulas de amor se
fueron desvaneciendo, como pompas de jabón” é brutalmente levado para algum lugar
desconhecido. A seus pais, é deixada apenas a esperança de que um dia ele volte,
assobiando, leve e livre, a mesma canção “te encontraré una mañana dentro de mi
habitación y prepararás la cama para dos” 14 .
Um, dois, três, trinta, quarenta, cem... os números de detidos em circunstâncias
parecidas aumentam. O dia se torna tão escuro quanto à noite. As escolas se tornam alvos
daqueles que espiam incansavelmente os que por ali circulam. Fecham-se os grêmios
estudantis, os sindicatos, as saídas. Acorrentados, os detidos gritam em centros de detenção

14
Trechos de “Canción para mi muerte” (1972), de Charly García.
22

clandestinos espalhados pelo país do medo com nome de mulher. Choques, violações,
golpes, mais choques e violações marcam a urdidura de um poder que chega e se instaura
sem pedir licença; arrombando portas e destruindo famílias, colecionando desaparecidos,
apagando identidades e, sem saber, promovendo o nascimento de personagens incômodas
ao projeto sinistro.

Buenos Aires, Plaza de Mayo, tarde de 30 de abril de 1977.

Quatorze mães vagam sem saber por onde mais caminhar. Ministério do interior,
organismos de Direitos Humanos, hospitais, delegacias, igrejas, jornais, e sempre a mesma
resposta: “Senhora, se levaram seu filho, por algo será”. Desobedientes, elas se olham e se
encontram nessa angústia. Em silêncio, elas voltam na semana seguinte. Agora numa
quinta-feira, pois entre elas havia uma que dizia ser sexta-feira um dia em que as bruxas
estavam presentes. Elas mudam o dia do encontro, para afastar o perigo da crença, e
desafiam o perigo dessa época: os militares. “Circulem, circulem”, gritam-lhes os homens
vestidos de azul, com armas e poder. Elas dão voltas. Voltas e reviravoltas, abrigadas pelas
pombas brancas que sobrevoam o chão da Plaza de Mayo.
Elas são muitas e caminham por muitos lugares. É preciso reconhecer-se. Seus
olhares são inequívocos, mas agora são centenas. Surge o lenço branco. A fralda guardada
como forma de carinho recebe o nome daquele que um dia a usou. Junto ao nome, a data do
desaparecimento. Surgem os pañuelos blancos. Eles não acenam à paz; eles são a ferida
exposta de um país vitimado pelas violências do Estado militar. Em silêncio, eles
estampam jornais de todo o mundo, delatando o trauma da mãe que nasce com a ausência
física do filho amado, seu mártir extraordinariamente invencível.
Nasce uma flor, sai um tímido sol que alumbra a escuridão: são as mães de
desaparecidos. A elas, acercam-se todos aqueles que com elas compartilham a dúvida e a
busca pela justiça. Um “anjo loiro” se assoma, chorando por um familiar detido-
desaparecido. A mãe, que abriga e acolhe, acredita no anjo caído dos quartéis militares 15 .
Dezembro de 1977: desaparecem as duas mães que formavam, com as outras doze
presentes àquela tarde de abril, a esperança de justiça. Desaparece a terceira mãe. Com
nome de flor, Azucena Villaflor de Vincenti é seqüestrada dois dias após de Mary Ponce e

15
Trata-se de Alfredo Ignacio Astiz, oficial da Marinha Argentina, que se infiltra no movimento das Madres.
23

Esther Ballestrino. Três mães e só uma certeza: elas agora são perigosas, subversivas e
sobreviventes. Loucas, elas seguem questionando como “Las locas de la Plaza de Mayo”.
A voz investida pelo poder militar daquele momento responderá: “eu não creio em
16
desaparecidos, eu creio que estão mortos, e aos mortos não se procura, se chora” .
Entretanto, procura-se a memória, a dignidade, a verdade e, de certa maneira, refaz-se na
utopia. E, “se com vida os levaram, com vida nós os queremos” é o que responderão as
mães com sua mais brilhante desobediência.
Entre mates, aventais e xícaras de açúcar, elas se tornam íntimas dos heróis de seus
filhos. Petitórios, boletins, poemas, encontros e novas estratégias de discurso delineiam os
traçados de muitas que nem completaram seus estudos secundários. A esfera privada agora
é só mais um espaço pelo qual elas transitam. O espaço público, desestabilizado, recebe
uma figura coletiva que, integrada à sua cartografia, será conhecida como Madre de Plaza
de Mayo.
Lemas, enfrentamentos, uma sede. “Calle Uruguay” 694, 2º piso. Um endereço, um
espaço físico para dar lugar a tantas representações simbólicas criadas em pouco menos de
quatro anos de luta e resistência ao poder ditatorial. Ali, há poucas quadras da famosa
Plaza que lhes cedeu o nome, elas se reúnem e planejam o trajeto de seus lenços brancos.
Ali, também, seus filhos estampam cartazes e iluminam a jornada rumo a “nenhum passo
atrás”. Elas não retrocedem, não cedem, não fazem acordos. Elas marcham. Adiante, em
busca da luz que precisa ser acessa em meio à névoa e ao apagamento; imagens traumáticas
dos anos de violência do Estado militar.
O público se torna cada vez mais débil e fragilizado. Os dias do general parecem
contados. Parecem, pois ainda estamos em abril de 1982, e essa história só mudará um
pouco com o calor de 1983.

02 de abril de 1982.

Nesse país prateado, com próceres louváveis pela historiografia oficial, uma guerra de
sentidos estranhos e sem munição é declarada contra outro país com nome de mulher e
armas mais potentes: a Inglaterra entra como o pior adversário da Argentina, num jogo sem
vitória e sem segundo tempo, nas “Falkland Islands”. O saldo da estratégia de resgate

16
Texto original: “yo no creo en los desaparecidos, yo creo que están muertos, y a los muertos no se los busca, se los
llora”. Trecho do discurso proferido por Ricardo Balbín, dirigente da União Cívica Radical (UCR). “Aparición con
Vida”, D’ALOISIO, Fabián e NAPOLI, Bruno. In: 30.000 Revoluciones, 2007, p.8.
24

patriótico é um número grande de jovens argentinos mortos em combate, além de quatro


meses de mais mentiras e enganos.
Em meio ao efervescente patriotismo visto após a vitória na copa de 1978, há quem
dirá que as Madres não representam o país. Mais uma vez, a resposta será o enfrentamento
ao esquecimento: “se as Malvinas são argentinas, os desaparecidos também são”. Há,
também, quem dirá posteriormente que “até as Madres acreditaram na emergência de uma
17
guerra em busca do território perdido” . Equívoco. Nem todos conheciam as loucas
ainda.
A guerra chega ao fim, o país lamenta seus mortos. São muitos, são jovens e voltam
como heróis. Entretanto, nesse país de memória frágil, futuramente eles serão esquecidos,
relegados a algo que poderia ter sido e não foi.
O verão de 1983 chega e traz consigo a possibilidade da abertura democrática. Nos
últimos dias de dezembro, chega ao fim o “Processo de Reorganização Nacional”.
A Plaza já é o território das Madres. É nesse espaço que seus lenços brancos
semearão a esperança, escritos com os nomes de seus filhos ou com frases que questionam
a verdade elaborada antes, durante e após o regime militar. Marchando e rondando, elas
dão voltas ao redor de uma pirâmide espectadora do espetáculo que redesenha o cenário
das quintas-feiras às 15h e 30 min. Ali, imbatíveis, erguidas e firmes, elas reescrevem a
história de um país. Seus passos, cansados e infalíveis, é a mais viva memória “nesse país
com nome prateado, onde os sonhos e a vida tiveram que aprender a enfrentar os
verdugos”.
Uma herança ao contrário é o mais digno saldo dessa época distinta, na qual as
conversões da dor em ação, do desespero em coragem e da paralisia em luta formam a
imagem mais resplandecente dos lenços brancos.

1.2. As personagens

Para que possamos começar nosso estudo acerca da composição literária


empreendida pelas Madres, é necessário situarmo-nos em alguns contextos e fatores que
provocaram o nascimento dessas personagens. Entre tantas questões a serem abordadas

17
Em 27 de outubro de 2007, a escritora Beatriz Sarlo afirmou, no programa “Roda Viva”, exibido pela TV Cultura,
que até as Madres de Plaza de Mayo corroboraram a estratégia desempenhada pelos militares, no tocante à Guerra
das Malvinas. Embora as considerações da autora sejam de grande relevância em vários momentos deste estudo, é-
nos claro que esse comentário não condiz com a reação das Madres naquele momento. Quando o páthos social era a
tragédia daquele confronto, elas vão à Plaza segurando pequenos bilhetes, onde aparecia escrita a frase citada, um ato
capaz de questionar e relembrar que os desaparecidos, assim como os combatentes, também são argentinos.
25

e hipóteses que advêm desses caminhos, começamos apenas com algumas premissas:
se, hoje, temos as Madres é porque houve desaparecidos e, se houve desaparecidos, é
porque houve terror. Logo, a compreensão do que representa esse movimento, bem
como da hipótese literária desempenhada por elas, requer um deslocamento temporal,
transportando-nos aos anos que precederam as estratégias empregadas pelo regime
militar instaurado na Argentina entre os anos de 1976 e 1983.
Com base na perspectiva da tragédia decorrente das violências praticadas pelo
Estado militar, é interessante que nos reportemos a Aristóteles, no capítulo IV da
Poética, onde é definido o conceito de tragédia a partir dos elementos que a compõem.
Segundo o filósofo, o terror e a compaixão são sentimentos fundamentais na
identificação do drama encenado para um público composto por pessoas que, ao
assistirem às dramatizações, sofrem com as personagens e sentem medo, tornando-se
suscetíveis ao sofrimento por um mal igual àquele representado.
Com efeito, para que ocorra a kátharsis, que consiste na purgação dos
sentimentos de terror 18 e compaixão por parte dos espectadores, são necessárias coesas
construções que formarão as partes da tragédia. Para tal empreendimento, a elaboração
das personagens é de extrema importância, pois, concomitantemente, o herói trágico
deve apresentar um caráter elevado e ser propenso ao descomedimento. Também é
preciso que ele se encontre numa situação intermediária; não sendo demasiadamente
benevolente, nem excessivamente perverso. A compaixão, assim, emerge do sentimento
provocado por um homem infortunado perante um fato que é apresentado como justo,
todavia, é percebido como injusto, e o terror nasce do reconhecimento de algo ocasional
que pode acontecer com qualquer um, com alguém como nós.
Centradas na identificação com o público, as tragédias são arquitetadas
cuidadosamente, tramando personagens e ações verossímeis, porque, sendo como nós,
são melhores que nós; pensando como nós, respondem com mais autenticidade e mais
intensidade que nós aos fatos. A mudança de situação (da normalidade para a crise)
ocorre com o erro do herói, quem em sua hamartía 19 migra do estado de felicidade para
o desespero que o conduz ao infortúnio, à catástrofe final. Frente à busca pela solução

18
Lessing, ensaísta e dramaturgo do século XVIII alemão, “corrige” a compreensão da definição aristotélica da
tragédia, e demonstra, na Dramaturgia de Hamburg (1767-1769), que o que Aristóteles chama de “phóbos” significa,
na verdade, medo (XXa parte). Mantemos aqui o sentido tradicional e corrente que consagrou a teoria aristotélica,
por coincidir com o período político terrível de que se originam as Madres.
19
Termo grego usado para designar o erro que pode decorrer da própria capacidade intelectual, mas se origina de
algo externo, que oblitera a visão, e faz o sujeito “errar o alvo”.
26

do problema (a princípio insolúvel) e à reconciliação dos interesses opostos, o conflito


trágico plasma caracteres, paixões e ações humanas, base que torna possível a
identificação com o público. Dessa forma, logra-se o prazer, fim último do espetáculo.
Com essas estratégias, a tragédia é responsável por um prazer peculiar, ao fazer
com que, no ânimo do espectador, convivam o terror e a compaixão. O alcance do
prazer trágico é realizado com o percurso de calamidades da personagem; o herói que
sofre das mais terríveis dores, capazes de levar o público ao gozo 20 . Constituídos por
peripécias, os fatos organizados na tragédia são responsáveis pela condução de
momentos de reconhecimento à catástrofe final. A mudança na ação (metábole)
requisita a verossimilhança, distanciando-se de excessos que podem prejudicar o
almejado reconhecimento. Desta forma, então, o reconhecimento e a peripécia
conjugam uma dose certa, capaz de tonificar o terror e a compaixão. Identificar-se com
os infortúnios do herói trágico permite que o espectador, licitamente, purgue e se
“alivie” brevemente de suas próprias mazelas 21 , à custa do sofrimento da personagem.
De acordo com as idéias de terror e compaixão propostas com base no esquema
estrutural da composição trágica, podemos traçar um paralelo com contexto construído
na Argentina pré-ditatorial. A compreensão da insurgência de personagens como as
Madres requisita-nos um olhar acerca dos anos anteriores ao golpe de 1976, tempo em
que já são projetados os primeiros traços dessa tragédia.
Entre 1955 e 1983, a Argentina foi governada por dezesseis presidentes, dos
quais nove pertenciam ao regime militar, o que representa um país marcado por golpes,
excessos e instabilidades. Os desenhos toscos deste quadro vão desde as estratégias de
eliminação de Juan Domingo Perón 22 , com a chamada “Revolução Libertadora”,
responsável pelo decreto de ilegalidade do partido peronista e pelas perseguições e
arrestos de dirigentes sindicais, ao autodenominado “Processo de Reorganização
Nacional”, conhecido como a última ditadura militar. A respeito deste último momento,
vale-nos um olhar atento às suas origens semânticas, que nos conduzem à sangrenta
etapa de “Organização Nacional” empreendida no final do século XIX, consistindo na
matança dos povos originários da região da Patagônia. 23

20
O prazer trágico é um dos fenômenos mais complexos: inclui prazer intelectual (pelo esquema perfeito que leva o
homem justo ao infortúnio), prazer estético, prazer psicológico e, entre outros sentimentos que seria ocioso aqui
mencionar, prazer pela certeza de que a encenação não passa de ficção.
21
Lessing alerta, na “Septuagésima quinta parte” da Dramaturgia de Hamburgo (1769), que espectador experimenta,
na tragédia, compaixão por suas próprias faltas. Em suma, sofre por ele próprio, simulado no outro que vê em cena.
22
Militar e presidente nos períodos entre 1946 -1955 e 1973 - 1974
23
A respeito da relação entre estas duas marcas terríveis da historiografia argentina, é interessante que nos
reportemos a Ulisses Gorini, autor de La rebelión de las Madres. Segundo este autor, “mais além de estimáveis
27

Calcado no medo, no temor e no silêncio, o Processo de Reorganização Nacional


assemelhar-se-á em muitos aspectos ao saldo deixado pelo general que exterminou os
indígenas do sul do país. Entretanto, diante de um quadro tosquiado, restam-nos
questionamentos sobre os motivos que fizeram com que esse projeto cruel e vertical
pudesse reaparecer revestido, maquiado, adornado e estetizado pela aurática idéia de
segurança e estabilidade, na segunda metade do século XX.
Para isso, caminhemos ao encontro de algumas personagens presentes nos anos
que antecedem este infame momento. Nosso segundo ponto de partida é o período da
“Revolução Libertadora”, já mencionado. Presidido pelo general Juan Carlos Onganía, a
política econômica deste momento consistia na implementação de medidas anti-
trabalhistas e autoritárias, a fim de que se favorecesse a abertura dos mercados internos
aos monopólios internacionais. A respeito dessa fase, podemos destacar o congelamento
salarial e a desativação de uma comissão em defesa do salário mínimo. Repressões,
conflitos sindicais, greves, dissolução de partidos, perseguições, prisões de militantes
políticos e insatisfações generalizadas escrevem a história do período. Para que tal fase
se tornasse ainda mais perversa, as universidades foram consideradas como centros de
subversão e comunismo, fazendo com que professores e alunos fossem brutalmente
desalojados por policiais. 24
Frente ao tortuoso contexto, o clima político-social ocasionado pelas decisões
governamentais agravou-se crescentemente, e provocou protestos e manifestações de
insatisfação em todo o país. Em 1969, aos primeiros dias do mês de maio, uma onda de
greves e assembléias sindicais, coordenadas por movimentos provenientes do estado de
Córdoba, é iniciada. Numa tentativa de contenção de tais protestos, as autoridades
militares operaram duras estratégias de repressão. Contudo, as manifestações
aumentavam e a elas se agregavam os grêmios estudantis e agrupações de esquerda,
confluindo forças contrárias aos ideais que compunham a discursividade e os atos da
“Revolução Libertadora”.
Em 29 de maio de 1969, num desses enfrentamentos derivados das represálias
aos movimentos grevistas, Máximo Mena, um sindicalista cordobês, integrante da
Confederação Geral do Trabalho (CGT), é morto, o que desencadeia desmedidas

diferenças, é possível afirmar que ambos os momentos tentaram e conseguiram consolidar um sistema e que ambos
os sistemas tiveram sua certidão de nascimento num genocídio” (GORINI, 2006, p. 37).
24
Conhecido como “La Noche de los Bastones Largos” (A noite dos Cassetetes), este momento representou o
desalojamento por parte da Direção Geral de Ordem Urbana da Polícia Federal Argentina, em 29 de julho de 1966,
de cinco faculdades da Universidade de Buenos Aires (UBA).
28

reações de protesto. A estas, agregam-se barricadas, incêndios nos escritórios de


empresas estrangeiras e em repartições oficiais controladas pela polícia e pelas
instâncias militares. Em decorrência da insurreição popular, o general Onganía envia
tropas do exército, a fim de reprimir tais movimentos, provocando um saldo maior de
detenções, vítimas fatais e, conseqüentemente, insatisfações. Entra para a história o
“Cordobazo” 25 .
A essa grande manifestação obreira, coadunar-se-ão outros movimentos
populares como: Rosariazo, Tucumanazo, Mendozazo, Devotazo, respectivamente,
provenientes das cidades de Rosario (1969), San Miguel de Tucumán (1970), Mendoza
(1972) e da Cadeia do bairro portenho de Villa Devoto (1973).
Em relação ao último, o Devotazo, ocorrido em maio de 1973, é importante
mencionar sua representatividade frente ao contexto em que aparece. Após dez anos
sem eleições diretas, a sociedade civil vai às urnas para eleger seu futuro presidente. Em
março do mesmo ano, é eleito Héctor Cámpora, cujo partido 26 era o mesmo do antigo
líder Perón. Os detentos da cadeia de Villa Devoto armam um enfrentamento, que
culmina no episódio capaz de enfraquecer os primeiros dias do então presidente, eleito
após a desistência de Perón à candidatura ao governo nacional. Depois de 49 dias no
cargo, Cámpora renuncia e, em 12 de outubro, após novas eleições, volta à Casa Rosada
o aclamado Juan Domingo Perón.
Ainda numa sucessão de fatos que indiciam um final trágico, em 1º de julho de
1974, o líder argentino morre, e María Estela Martínez, mais conhecida como Isabel
Perón, assume como presidente e viúva do governante populista. A seu lado, figuras
contraditórias assumem o governo, tramando estratégias que decorrerão no fatídico 24
de março de 1976, como José López Rega, ministro do bem-estar social e seu secretário
pessoal. 27 Com o intuito de predominar uma ideologia de direita, Lopez Rega reprime
os movimentos sociais e patrocina, clandestinamente, a formação da “Triple A”,
“Aliança Anticomunista Argentina”, uma agrupação paramilitar responsável por
atentados, seqüestros, torturas, desaparecimentos e mortes.

25
O nome deste momento provém da cidade onde ocorreram os atos de protesto que marcaram os últimos dias de
maio de 1969. Situado no centro do país, o estado de Córdoba, cuja capital tem o mesmo nome, é um dos estados de
maior renda econômica da Argentina, como Santa Fé, lugar de onde proveio o Rosariazo, nome também motivado
pela cidade da qual se originou, Rosario.
26
Fundado pelo próprio Juan Domingo Perón, o Partido Justilicialista é conhecido como “Peronismo”, e representa
um partido importante para o contexto político argentino, em decorrência do número de presidentes eleitos, entre eles
Carlos Menem, Nestor Kirchner e Cristina Kirchner.
27
Lopez Rega também é conhecido como “El Brujo”, este epíteto advém de anedotas a respeito de suas crenças
esotéricas, seguidas pela presidente Isabel Perón.
29

Num clima de ameaça, a censura é severa, dirigida às universidades, aos


grêmios, sindicatos, enfim, a todos os meios de circulação de idéias que, de alguma
forma, não correspondiam ao plano que era preciso ser executado. Junto ao
silenciamento, cresce a insatisfação popular, e os grupos de esquerda, como os
28
Montoneros e o ERP (Exército Revolucionário do Povo) assumirão diversos
atentados em protesto ao governo, o que, posteriormente, veremos como uma
justificativa para a difusão da teoria dos “dois demônios”.
López Rega renuncia em 1975, deixando o cargo de um país alquebrado, que já
começa a colecionar seus desaparecidos. Imersa numa crise econômica, a Argentina é
um quadro instável, e, numa tentativa grotesca de conter os movimentos de esquerda, é
designado Jorge Rafael Videla para o comando do Exército Argentino, um passo que
antecede o golpe de 1976. As pressões militares, dirigidas a presidente Isabel Perón,
aumentam, a fim de que ela renuncie. Negada esta possibilidade, em 24 de março do
mesmo ano, num país com nome de mulher, a primeira presidente é posta em prisão
domiciliar, acusada de desvio de fundos. É também nesse país que um dos atos mais
trágicos será encenado, provocando medo, pavor e muitas mortes.
Lastimado, o país é tomado pelas mãos da junta militar composta por: Tenente
General Jorge Rafael Videla, Almirante Eduardo Emilio Massera e Brigadeiro General
Orlando Ramón Agosti. A tragédia empreende seus primeiros grandes atos de terror.

1.3. Personagens de uma orquestra 29 macabra

“Los amigos del barrio pueden desaparecer


los cantores de radio pueden desaparecer
los que están en los diarios pueden desaparecer
la persona que amas puede desaparecer.
Los que están en el aire pueden desaparecer en el aire”

“Los dinosaurios”, Charly García,

Os primeiros dias do outono de 1976 poderiam ser narrados com muitos olhares
e linhas. A alegoria, como a definiu o filósofo alemão Walter Benjamin, em Origem do
drama barroco alemão (1984), explica em muitos aspectos os caminhos possíveis às
estratégias discursivas utilizadas no contexto de temor, instaurado após o golpe militar
argentino.

28
Respectivamente, um grupo de esquerda que atuava dentro do partido peronista e outro de linha marxista.
29
Não é fortuito aqui lembrar que a primeira concepção de orquestra se liga ao espaço circular onde o coro do teatro
grego circulava e no qual se projetavam as ações catastróficas recitadas pelos atores.
30

Em prólogo escrito para este célebre ensaio, Sérgio Paulo Rouanet argumenta a
respeito do uso da alegoria por autores imersos em contextos de impasse e
impossibilidade narrativa. Em suas palavras, o alegorista arranca o objeto do seu
contexto. Mata-o e o obriga a significar. Esvaziado de todo brilho próprio, incapaz de
irradiar qualquer sentido, ele está pronto para funcionar como alegoria. (ROUANET,
1984, p. 40).
Ao silêncio imposto, o caminho da alegoria se torna uma forte opção à
sobrevivência de narrativas produzidas nesse contexto traumático. É também o que
tornará possível que a memória dessa “época distinta” seja encontrada em músicas,
poemas, romances, filmes, peças de teatro, manifestações em que a perspectiva retórica
da sinédoque viabiliza o aparecimento de traços capazes de conduzir ao testemunho.
Em percursos narrativos muito distintos, decorrentes da vivência e da
experiência do trauma, podemos ter acesso aos fatos que sucederam e marcaram os
procedimentos desenvolvidos pelo Processo de Reorganização Nacional. Frente à
perspectiva proposta pela alegoria, se narrar o trauma é algo que se torna inviável por
sua inverossimilhança, é através de elaborações alternativas de discurso que
encontramos textos nos quais a memória dessa época pode ser lida, como os de Rodolfo
Walsh, Juan Gelman, Ricardo Piglia, entre outros escritores que também se propuseram
a esse percurso narrativo. Além dos muitos romances e poemas publicados durante e
sobre o regime militar, vale ressaltar a presença de alguns músicos nesse cenário. Em
canções populares que, nas entrelinhas, denunciavam o terror, compositores como León
Gieco e Charly García 30 trouxeram à luz fatos que torturam a memória dos anos
configurados pelo espanto frente à ameaça do desaparecimento.

30
Com experiências distintas, todos esses escritores e artistas, de certa forma, foram marcados pelas violências do
Estado militar. Rodolfo Walsh, escritor, jornalista e dramaturgo, desapareceu em 25/03/1977, após escrever um texto,
conhecido como “Carta aberta de um escritor à Junta Militar”. Fortemente envolvido nos movimentos de esquerda,
Walsh criou a Agência de Notícias Clandestinas (ANCLA), cujo objetivo era divulgar informações contra o terror
instaurado pelo regime militar. Além disso, participou do grupo dos Montoneros, do qual também fazia parte sua
filha María Victoria, desaparecida em 1976. Numa trajetória não muito distante, o escritor Juan Gelman também
integrou movimentos revolucionários contra o governo, como os Montoneros e as FAR (Forças Revolucionárias
Argentinas), sendo enviado para o exterior, a pedido dos Montoneros, para divulgar um documento a respeito das
violações dos Direitos Humanos na Argentina. Ao percurso de engajamento, acrescenta-se o trágico episódio do
seqüestro de seus dois filhos e de sua nora, grávida de sete meses. No ano 2000, após 23 anos de buscas, Gelman
encontrou sua neta, quem após o nascimento no cativeiro fora entregue à adoção para uma família no Uruguai. Seu
filho e sua nora integram a lista dos 30.000 desaparecidos argentinos.
Em relação ao escritor Ricardo Piglia, é interessante analisar alguns contos escritos durante o Processo, entre eles “A
louca e o relato do crime” e “Prisão perpétua”, além do romance Respiração Artificial, em que a personagem
principal é um desaparecido. Entretanto, é pela alegoria que o autor encontra o caminho viável para sua narrativa, na
qual transforma em personagens Franz Kafka e Adolf Hitler, assim como mistura as noções de espaços destinados às
torturas às referências deixadas por uma personagem louca. Curiosamente, este livro é dedicado a duas pessoas
desaparecidas, dado que só é possível reconhecer através de estudos teóricos acerca dessa composição narrativa.
Sobre os músicos Charly García e León Gieco, é importante mencionar as músicas que fazem referências às
violências do Estado militar. Com propostas diferentes, Charly é mais alusivo, utilizando-se da burla e do escárnio,
31

Com efeito, os atos que desenham a crueldade arquitetada e construída pelos


militares que chegam ao poder em 1976 formam os elementos mais sofisticados e
amedrontadores de um filme de terror. As Madres são o vivo e atual produto dessas
artimanhas, elevadas ao mais alto grau de covardia: o desaparecimento forçado de seus
entes queridos.
De acordo com a análise do livro Nunca Mais, publicado pela Comissão
Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina (CONADEP) em 1984,
podemos encontrar relatos sobre os procedimentos usados com os presos políticos.
Ainda que nossa tese não se detenha a um estudo de base historiográfica sobre esse
período, acreditamos que uma citação, mesmo breve, de algumas técnicas de repressão
utilizadas pelos militares oferece-nos uma possibilidade de compreensão dessa força
incomensurável nascida do amor imbatível e fiel das Madres à memória de seus filhos.
O intento ficcional que abre o presente capítulo antecipa alguns operativos,
como os arrestos domiciliares e a criação dos centros clandestinos de tortura, espalhados
por todo o país. Cabe ressaltar que, distintamente da nomenclatura presente no registro
da CONADEP, na qual é usado o termo “desaparecidos”, utilizaremos o sintagma
nominal “detidos-desaparecidos”, o mesmo usado pelas Madres para se referirem
àqueles que foram presos e, sem julgamento, desapareceram.
Os seqüestros de presos políticos apresentam seus indícios antes mesmo da data
que marca o início do governo militar. Ainda no período de Isabel Perón, o estado de
Tucumán, ao norte do país, já evidenciara o “Operativo Independência”, que consistiu
na execução de operações militares à neutralização e ao aniquilamento de ação dos
31
“elementos subversivos” . O decreto que tornavam lícitos tais procedimentos foi
ampliado por toda Argentina pelo senador Ítalo Luder (decretos 2270/1975 e
2272/1975).
A “guerra contra-revolucionária”, aprendida com os franceses e com os norte-
americanos, habilitou militares capazes de perseguir e capturar os chamados
subversivos. Sob o comando, primeiramente, do general Acdel Vilas e, posteriormente,
de Domingo Antonio Bussi, em pouco tempo o operativo conseguiu assassinar vários

muitas vezes, como possibilidades discursivas. Já Gieco, até hoje, transparece um forte engajamento em suas letras.
Sobre sua discografia, destaca-se o lançamento de seu terceiro disco, “O fantasma de Caterville” (1976), obra que foi
duramente censurada e rendeu ao compositor a obrigatoriedade de modificar algumas canções.
31
Citação textual do decreto do Poder Ejecutivo Nacional 261/1975: “el comando general del Ejército procederá a
ejecutar todas las operaciones militares que sean necesarias a efectos de neutralizar y/o aniquilar el accionar de los
elementos subversivos que actúan en la provincia de Tucumán. Fonte: http://www.cepc.es/
32

combatentes do ERP que se haviam instalado em Tucumán para a realização de um


protesto nacional.
Com efeito, as táticas e estratégias do governo militar se ampliam. A partir de
32
março de 1976, os seqüestros se tornam uma prática comum, na qual uma “patota”
invadia um domicílio, geralmente em dias próximos aos finais de semana e durante a
madrugada, aterrorizando os vizinhos e familiares. Vale mencionar também que, antes
da realização dos arrestos, era comum que ocorressem “black-outs”, apagando
completamente a iluminação do local e de suas imediações. Com ênfase no valor do
testemunho do sobrevivente do trauma, o trecho a seguir é um relato presente na
denuncia de uma vítima das violências empreendidas pelo Estado militar:

“No dia 24 de março de 1976, às 0h e 30 min, entraram à força em nosso domicílio na


Villa Rivera Indarte, província de Córdoba, pessoas uniformizadas, que se
identificavam como do Exército, junto com pessoas jovens, vestidas com roupas
esportivas. Ameaçaram-nos com armas e começaram a roubar livros, objetos de arte,
vinhos, etc., que foram levados para fora por homens uniformizados. Não falavam entre
eles, comunicando-se através de estalos dos dedos. O saque durou mais de duas horas;
previamente foi provocado um “black-out” nas ruas próximas ao nosso domicílio. Meu
esposo, que era sindicalista, meu filho David e eu fomos seqüestrados. Eu fui liberada
no dia seguinte, em seguida foi meu filho, que esteve preso no campo “La Ribera”.
Nossa casa ficou totalmente destruída. O cadáver do meu esposo foi encontrado com
sete furos de bala na garganta”. (Idem, p. 10)

Quando tais procedimentos eram feitos em presença de crianças, a repressão


podia assumir distintas configurações; algumas eram levadas à casa de vizinhos ou
familiares; outras eram encaminhadas a Institutos de Menores, de onde eram conduzidas
às famílias ou entregues à “adoção”. Houve, também, casos em que estes eram
abandonados no próprio domicílio onde os pais foram detidos, deixando a cargo do
acaso (ou do infortúnio) o destino da criança. Segundo os dados das Abuelas de Plaza
de Mayo 33 , mais de 500 crianças foram apropriadas 34 . Até hoje, assim como as Madres,
as Abuelas travam uma incansável jornada rumo à identidade. Dos 500 netos
apropriados e criados pelo zelo da mentira e do engano, pouco mais de 80 puderam
conhecer sua história tão violentamente rasurada.

32
Grupo armado integrado por cinco ou seis pessoas ligadas ao governo militar. Em alguns casos, essa “patota”
poderia ser composta por mais de cinqüenta pessoas. In: Nunca Mais, 1984, p. 9.
33
Assim como na justificativa à ausência de tradução para o termo Madre, optamos pela preservação do nome Abuela
(avó), em seu idioma original.
34
Novamente em discordância à terminologia empregada nos registros da CONADEP, preferimos o vocábulo
“apropriação”, utilizado pelas Madres e Abuelas, à palavra “adoção”. Nossa escolha é motivada pelo aspecto que nele
está presente, pois traduz o que foi feito com seus netos e confere o caráter de ilegalidade ao ato cometido: roubadas,
entregues – à revelia de suas famílias – a famílias que, em menor ou maior proporção, mantinham vínculos com as
esferas ditatoriais.
33

Em relação aos adultos desaparecidos, estes eram levados aos já mencionados


centros de detenção clandestinos. A esse ingrediente trágico configurado pelos arrestos,
seguidos de roubos e espancamentos, agregam-se os passos seguintes à reclusão dos
detidos. Táticas como o “tabicamiento” eram logo empregadas, consistindo na privação
da visão, com uso de vendas que impossibilitassem qualquer senso de direcionamento.
Torturas intermináveis propunham um jogo macabro entre a resistência – física e
psicológica – e a crueldade. Também num jogo sem saída, choques e pancadas
marcaram indelevelmente os corpos e a história de muitos que não puderam sobreviver
para narrar o terror. Entre os que tentaram elaborar discursivamente o trauma, podemos
destacar o testemunho de Teresita Hazurum, uma advogada seqüestrada em 20 de
novembro de 1976, em Santiago del Estero, levada pelo próprio chefe de Polícia, sem
tentativas de resistência, ao crer que fora chamada em decorrência de sua profissão. Em
seu relato, além das torturas às que foi submetida, são narrados alguns procedimentos
utilizados com outros detidos:

“Perguntaram-lhe sobre seu ex-noivo, Hugo Libaak, a que ele se dedicava, que
atividades, com quem se reunia. Em seguida, não obtendo resposta, deitaram-na numa
cama, onde lhe aplicaram a “picana” em diversos locais do corpo. [...] ‘Quando as
pessoas chegavam ali, eram levadas a fossos que eram cavados na terra com
antecedência; enterravam ali as pessoas até o pescoço, às vezes durante quatro dias ou
mais, até que pediam que os tirassem, decididos a falar. Mantinham-nos sem água e sem
comida, ao sol ou sob a chuva. Ao desenterrá-los (eram enterrados nus), tinham vergões
das picadas de insetos e formigas. Dali, levavam-nos à sala de torturas (ao lado existia
um quarto onde ficavam os torturadores) [...] Tinham um instrumento de tortura que era
um telefone’ (‘picana’ simultânea nos dentes e nas orelhas).” (Idem, p. 25)

As “picanas” mencionadas no relato da vítima correspondiam aos eletros-


choque, um procedimento comumente usado para que os torturados respondessem às
perguntas dos torturadores. É também numa ótica da contradição que vemos nessa
prática a inviabilidade de qualquer relato, uma vez que a dor impossibilitava qualquer
espécie de compreensão em relação ao macabro espetáculo dos quais participavam.
Corroborando o terror que ali era desenvolvido, a incerteza a respeito de quais poderiam
ser os procedimentos seguintes era um importante fator das estratégias militares.
Os testemunhos acerca do que era feito nos centros clandestinos poderiam
estender-se até o último capítulo desta tese, requisitando anexos e posfácios. Contudo,
nossa mirada em direção às Madres configura-se como uma proposta de compreensão
do surgimento/permanência desse movimento, bem como das estratégias discursivas
desenvolvidas para narrar a memória. Para que nosso estudo possa dar conta desse
34

projeto, é necessário que caminhemos rumo às interpretações de discursos, práticas e


fatos que envolvem essas personagens. Tal aspecto dialoga com a noção de terror, tão
amplamente tergiversada durante os anos do “Processo”.
Analogamente comparado ao “processo” kafkiano, o que vemos emergir das
técnicas de tortura e dos desaparecimentos é uma discursividade justificada na
contenção do “terrorismo de Estado”. As personagens responsáveis pela disseminação
dessa idéia, baseada no fato de que os detidos-desaparecidos se tratavam de figuras
subversivas e terroristas, também são as responsáveis pelos anos de terror que
escreveram a história do golpe. Uniformizados, formados em escolas militares e
treinados para as mais aviltantes técnicas de desmantelamento humano e social, os
militares que governaram a Argentina entre os anos de 1976 e 1983 representam as mais
hediondas personagens dessa orquestra macabra.
Para a compreensão da matéria-prima desse discurso elaborado pelos militares, é
interessante pensar na etimologia da palavra “terror”. De origem latina, terrore tem sua
tradução em sentidos que denotam pavor; grande receio; pânico; qualidade do terrível,
além da definição de um regime político assinalado por perseguições; prisões e
morticínios, composto por arbitrariedades e supressão das liberdades individuais. A
palavra ainda compartilha a mesma raiz que se encontra em “terrível”, associado à
“fera”, “feroz”, pelo grego. Há aspectos extra-humanos e irracionais no terror e, de
acordo com essas definições, são inevitáveis os elos entre a Argentina dos anos prévios
à ditadura aos últimos dias de dezembro de 1983.
Com base na idéia de arbitrariedade, podemos ter acesso à elaboração discursiva
que usou tão amplamente a noção de “terrorismo de Estado” para firmar seu plano
vertical, justificando as sangrentas estratégias desenvolvidas. Embora tenha sido usado
indiscriminadamente, o que se entende por “Terrorismo” exige compreensões que
ultrapassam as produzidas pelo regime militar 35 .

35
A idéia de terror não representa um fenômeno atual, ainda que sua rentabilidade discursiva tenha crescido muito no
século XX e, principalmente, com os fatos que marcaram o dia 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Suas
origens nos remetem às práticas empregadas, por exemplo, pelo Império Romano, já no séc. III a.C, configuradas
como tática militar, guerras de caráter punitivo ou destrutivo. Tais táticas eram utilizadas pelos exércitos romanos
com o intuito de atingir/alterar o núcleo sociopolítico de regiões dominadas. Através de cruéis atos contra a
população civil, geravam-se terror e pânico, e coibiam o apoio da população local (temente às retaliações) a seus
líderes. Além dos episódios marcados pela atuação dos romanos, os exemplos são inúmeros na história. Segundo o
historiador Caleb Carr, em A assustadora história do terrorismo (2002), as Cruzadas a partir do séc. XII deram à
história um trágico exemplo do emprego de táticas de terror, pois “elas instilaram tamanho desejo de vingança e
violência retaliatória entre mulçumanos e cristãos, que continuamos a ver e sentir seus efeitos até hoje” (CARR, 2002
p. 58). Séculos mais tarde, práticas análogas seriam aplicadas por Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler, ambos em
busca de expansão/dominação territorial na Europa.
35

Com efeito, o que podemos identificar, no discurso criado pelo Processo de


Reorganização Nacional para legitimar seus operativos, é a mais pura implantação de
atos de terror para cessar os praticados pelos guerrilheiros. Entre os inúmeros atentados
promovidos pelo Estado militar, muitos foram dados à autoria dos Montoneros e do
ERP, o que facilitou a divulgação da crença de uma necessária intervenção militar
perante a sociedade argentina da década de 70. A constante ameaça de ataques à
população civil facilitou, assim, a presença de um regime que, desde o início, nasce sob
o signo da pusilanimidade. E, embora os registros da CONADEP visem a uma
possibilidade narrativa de memória, eles também endossam a idéia do duplo terror logo
nas primeiras linhas do prólogo: “Durante a década de 70 a Argentina foi convulsionada
por um terror que provinha tanto da extrema direita como da extrema esquerda,
fenômeno que ocorreu em muitos outros países” (In: Nunca Más, 1984, p.7).
Em consonância com a idéia de tragédia proposta por Aristóteles, o terror é o
sentimento mais latente desse período orquestrado pelos militares: Jorge Rafael Videla,
Emilio Massera, Orlando Ramón Agosti, Roberto Eduardo Viola, Armando
Lambruschini, Omar Domingues Rubens Graffigna, Leopoldo Fortunato Galtieri, Jorge
Isaac Anaya, Basilio Arturo Ignacio Lami Dozo, Horacio Tomás Liendo, Carlos Alberto
Lacoste, Reynaldo Benito Bignone, Cristiano Nicolaides, Rubén Oscar Franco, Augusto
J. Hughes. Comparativamente à criação do herói trágico que migra da felicidade ao
infortúnio, podemos enxergar, nos desaparecimentos, a reação de uma sociedade civil
fortemente controlada pelo discurso do medo, ameaçada e fragilizada pela incerteza de
um país assolado pelas violações dos Direitos Humanos.
Reprimidos e submetidos à maior privação legal que uma pessoa pode sofrer, e
sem terem sido julgados por seus atos, os detidos desaparecem. Contudo, é através de
suas mães que eles voltam, firmes em seus ideais e fiéis àqueles que defendiam. Como
“mártires”, eles renascem nas narrativas autobiográficas e nos corpos daquelas que, um
dia, lhes deram vida por primeira vez.
Do horror à esperança, as Madres emergem em meio a mais trágica desgraça. A
princípio, acolhidas pela compaixão originada pelo medo de que aquilo também
pudesse acontecer com outras mães. Mas, ao ensaiarem uma dança circular contra o
esquecimento, elas se tornam as personagens que desestabilizam e rompem a melodia
nefasta da orquestra militar. Já não são mães como as outras, são as Madres, cujo
espetáculo semanal ocupa um cenário que abriga e questiona o poder. A Plaza de Mayo
36

é a Plaza de las Madres, um lugar de resgate de seus filhos. Ali, num tempo marcado,
elas se encontram com a memória, reescrevendo-a e dignificando a liberdade.

1.4. O tempo (um deles)

Debí decir te amo.


Pero estaba el otoño haciendo señas,
clavándome sus puertas en el alma.

Amada, tú, recíbelo.


Vete por él, transporta tu dulzura
por su dulzura madre.
Vete por él, por él, otoño duro,
otoño suave en quien reclino mi aire..

Fragmento de “Presencia del otoño”, de Juan Gelman.

Há mais de trinta anos, elas marcham – e rondam – contra o tempo. Às quintas-


feiras, a Plaza de Mayo é o cenário de uma marcha circular, silenciosa, encenada ao
contrário dos ponteiros do relógio que, com elas, compõem a cena. Inexoravelmente, o
tempo não para, e as Madres, obstinadas em transgredir o que lhes é imposto, caminham
com seus lenços brancos em direção à liberdade. Pessoais e intransferíveis, as fraldas
são como uma roupa de gestante, que há anos as caracteriza e diferencia entre outras
mães. Ao gestar e reelaborar a luta de seus filhos, bem como a esperança de justiça, seus
lenços brancos travam, também, um implacável encontro com o porvir.
O período do qual elas emergem é escrito pela ameaça. O relógio que marca o
período de 1976 a 1983 é movido pelo terror, porém divide seus minutos com a
esperança, que reaparece, semanalmente, entre às 15h e 30min e 16h das tardes de
quinta-feira, momentos que reconfiguram a paisagem da principal Plaza de Buenos
Aires.
Se o momento inicial é marcado pelo medo, a tragédia se completa através da
compaixão multirreflexa, primitivamente, provocada pelas Madres e entre as Madres. É
36
pelo caminho do sofrimento compartilhado, pela compaixão (Mitleid ), que elas se
reconhecem como um sujeito coletivo nascido da mesma dor. Nesse tempo de ameaças
e arbitrariedades, obedientes ao amor invencível em relação a seus entes desaparecidos,
elas migram da esfera privada para entoar seu páthos publicamente. Sideradas pelo
amor, as “loucas da Plaza de Mayo” são a tradução de uma tragédia que, ao contrário,

36
A palavra alemã preserva a idéia de sofrimento compartilhado que se perde, nas correspondentes latinas
(compaixão, compasión, compassione, compassion).
37

levará do infortúnio à esperança, elemento presente em suas mais de três décadas contra
o esquecimento.
Entre a onda desmedida de desaparecimentos, as Madres aparecem revestidas
pela imagem da desolação, como mães em busca do filho cujo destino lhes era
desconhecido. É a partir do momento que enfrentam e reconhecem esse desconhecido
que a noção de compaixão será reconfigurada, pois elas, ao assumirem o caráter de luta
proveniente da herança deixada por seus familiares, traçam um novo tempo marcado
pelo protagonismo de seus próprios passos.
A compaixão firma o mote catártico original do movimento por elas
empreendido, e o medo de que sua dor desapareça faz com que esse sujeito coletivo se
materialize publicamente. Ao chegar à Plaza, por não ter mais por onde buscar notícias,
elas serão vistas e suas feridas expostas violentamente, o que convulsiona a ordem do
espaço público e faz com que a sociedade civil, involuntariamente, questione sobre a
presença das Madres. A partir desse momento, já não se pode mais desconhecer o
contexto e, mesmo que a história oficial tente preservar os crimes cometidos pelo
Estado militar, a presença dessas mulheres descortina e faz aparecer o escândalo de seus
insepultos. Nessa perspectiva, a imagem materna é o que lhes permite sair da esfera
privada e incorporar a personagem rubricada pela dor. Seu sofrimento é inquestionável
e incomparável; a elas se juntam aquelas que sofrem e compartilham o mesmo dano.
Unidas, as Madres desfilam diante de olhares temerosos, que, ao mesmo tempo em que
sofre enxergando-as, purga e sente prazer por não fazer parte dessa dor.
Uma nova configuração, então, a respeito da idéia de compaixão é agregada ao
movimento dessas personagens. Num momento de passagem entre o desconhecimento e
a revelação, um passo possível pela consciência e pela urgência de identificação
coletiva, as Madres se tornam o alvo de sua própria busca: o desaparecimento marca a
trajetória de três personagens fundamentais para a conformação, em 1977, do
movimento Madres de Plaza de Mayo. Com o temor de um provável desfecho trágico
ao Processo de Reorganização Nacional, os militares, através de Alfredo Ignacio Astiz,
entram no grupo das mulheres de lenços brancos. O “anjo loiro” (como será chamado
em decorrência de sua pouca idade e aparência física) arquiteta uma possível
familiaridade com um desaparecido e estabelece um laço capaz de aproximá-lo da dor e
do trauma por elas vivenciado.
Em um espaço revestido pela sacralidade, ocorrem os primeiros
desaparecimentos entre as Madres, em 08 de dezembro de 1977. É importante destacar
38

que esse local, a Igreja de Santa Cruz, se convertera num centro de reunião de familiares
de desaparecidos, o que favoreceu a narrativa criada pelo militar que nele se infiltrou. O
tempo do terror se reitera nos ponteiros que marcam a manhã daqueles dias de
dezembro.
Com o intuito de seqüestrar as Madres indicadas por Astiz, vários agentes da
Marinha se espalharam em diferentes pontos da Igreja, durante a missa em que era
realizada a Primeira Comunhão. Nas incansáveis reuniões das quintas-feiras, as Madres
desconheciam o que lhes poderia ocorrer às 20h e 30 min desse dia que marcará um
novo momento na história por elas escrita.
Na saída da Igreja, um grupo sem uniformes militares se identifica como
policiais e interceptam os familiares que se haviam reunido naquele lugar para arrumar
os detalhes finais de uma solicitação que seria publicada dois dias depois no jornal “La
Nación”. Desse operativo, nove pessoas foram detidas, entre elas as Madres María
Esther Ballestrino de Careaga, quem permaneceu junto ao movimento mesmo após o
retorno de sua filha detida, e María Eugenia Ponce de Bianco (foto 1). À glosa do que já
havia sido realizado, dois dias depois é seqüestrada Azucena Villaflor de Vicenti (foto
2), ao sair de sua casa para comprar o jornal onde fora publicada a solicitação. Horas
depois, é detida a freira francesa Leonie Duquet, companheira de Alice Domon
(também levada no operativo realizado em 08 de dezembro), em outra reunião do grupo
de solidariedade aos familiares de desaparecidos.

Foto 1: Esther Ballestrino e Mary Ponce (Fonte: Archivo Fotográfico AMPM).


39

Foto 2: Azucena Villaflor de Vincenti (Fonte: Archivo Fotográfico AMPM).

Ao se sobreporem aos corpos de seus filhos e serem vítimas dos


desaparecimentos assim como eles, essas três mulheres, tão representativas para o
delineamento de vários princípios do movimento, escrevem com sua ausência a
necessidade de uma luta coesa e coletiva. Mais um legado ao revés é entregue como
resistência às violências do Estado militar; as Madres seguem seu percurso já
desenhado por distintos tipos de sofrimento: o desaparecimento forçado de seus filhos e
companheiras, a declarada perseguição dos militares e a conseqüente hostilidade de uma
parcela da sociedade que também se sentia ameaçada. Em decorrência disso, elas serão
chamadas de loucas e subversivas, o que confirma as noções de terror impostas pelo
regime, além de tonificar o apagamento necessário à memória sobre esses anos.
Ainda no tocante à importância das Madres desaparecidas para a intensificação
da posição coletiva de embate já delineada, é interessante que nos reportemos a uma
narrativa sobre os últimos momentos de Azucena. Como uma cerimônia do adeus,
pouco antes de ser seqüestrada, ela entregou a suas companheiras o poema “Hagamos
un trato”, do escritor uruguaio Mario Benedetti (GORINI, 2006, p.169). O texto nos
serve como um exemplo de resposta poética entregue a todos que, por distintas
motivações, possam tentar calá-las. Considerada como a Madre fundadora do
movimento, Azucena é a imagem que estampa um movimento de resistência. A epígrafe
de Carlo Puebla para o poema do escritor uruguaio pode ser lida como a tradução de
mais de trinta anos de resistência; “Quando sintas tua ferida sangrar/ quando sintas tua
voz soluçar/ conta comigo” 37 . E os versos

37
Texto original: “Cuando sientas tu herida sangrar/ cuando sientas tu voz sollozar/ cuenta conmigo”
40

eu queria contar com você


é tão lindo saber que você existe
a gente se sente vivo
e quando digo isto
quero dizer contar
ainda seja até dois
ainda que seja até cinco
não já para que acuda
pressurosa em meu auxílio
mas para saber
a ciência certa
que você sabe que pode
contar comigo 38 (BENEDETTI, 2000, p. 318)

constituem o silencioso pacto, emergido da planta baixa de um tempo sem espaço para o
perdão.

1.5. O espaço

Andar por Buenos Aires é cruzar por espaços que, inevitavelmente, evocam
Carlos Gardel, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Eva Perón, personagens que aparecem
em nosso imaginário ao som dos melancólicos tangos de Astor Piazzolla e Aníbal
Troilo, e deambulam pelos paralelepípedos dos nostálgicos bairros de San Telmo e La
Boca.
A essas paisagens imaginárias agregam-se ainda os charmosos símbolos
portenhos expressos nos cafés, nas livrarias, no frio, ao criar um efeito aurático que
transforma esse espaço num lugar “encantado” pela idéia de intelectualidade que dele se
propaga. Essa imagem modificada do cenário adquire uma autonomia viável à crença de
ingresso num mundo de “cultura”; uma paisagem que não se detém às modernas
máquinas de fotografia digital. Elas interagem (e integram) com o imaginário de quem
busca esse lugar.
Tais aspectos não seriam possíveis se o turismo não houvesse escolhido algumas
das imagens citadas acima. Se em lugar de Gardel fossem os piqueteros que marcaram
os finais de dezembro de 2001, com seus protestos e a construção cinematográfica de
uma Buenos Aires em conflito, esse espaço poderia ser consumido como um lugar
originariamente de luta e resistência. Assim, o turismo garante o ingresso dos que
procuram espaços possíveis ao preenchimento de um imaginário carente do consumo de
símbolos e heróis.

38
Fragmento original: “yo quisiera contar con usted / es tan lindo saber que usted existe /uno se siente vivo / y
cuando digo esto / quiero decir contar / aunque sea hasta dos / aunque sea hasta cinco / no ya para que acuda /
presurosa en mi auxilio / sino para saber / la ciencia cierta / que usted sabe que puede / contar conmigo
41

Buenos Aires, obviamente, tem outros espaços. Quando pensamos no ecletismo


que o turismo oferece, Borges passa a transitar por paisagens reconfiguradas pelas
presenças de resistência. Recoleta, Palermo, ruas Florida e Corrientes – espaços que
convidam ao consumo estrangeiro – dividem a programação dos “City tours” com uma
paisagem que requisita um olhar atento: a Plaza de Mayo.
Situada nos centros econômico e político da capital argentina, essa praça nos
conduz a alguns dos principais lugares a serem descobertos nessa imersão ao imaginário
tangueiro: ao sul, chegamos a Montserrat, logo a San Telmo, Plaza Dorrego com seu
convidativo “Mercado de pulgas” aos domingos, a Caminito e La Boca. A leste, junto
ao Río de la Plata, à Casa Rosada e a Puerto Madero. Ao norte, à rua Corrientes, com
seus inúmeros teatros e livrarias. Ao oeste, à Avenida de Mayo, onde se situam o
centenário Café Tortoni e algumas estações da linha mais antiga de metrô, a “Linha A”.
Dentro dessa perspectiva, Buenos Aires nos convida a um passeio pelo tempo,
que se desloca entre os séculos XIX e XXI. Percorrê-los é caminhar em busca de
imagens e vivências que permeiam o imaginário de quem deseja (re)conhecer um
pedaço – estrategicamente arquitetado – da Europa na América Latina.
Entretanto, a Plaza de Mayo, além de nos exigir um olhar atento em decorrência
da história que se protagonizou em seu espaço, requer uma análise plural. A delimitação
de seus 229,60 metros de comprimento por 95,20 metros de largura abriga paisagens
simultâneas que dialogam e questionam a história oficial deste país. Mais de uma Plaza
se desenha nessa paisagem: um cenário se converte em outros, modificados pela
intervenção de personagens que compõem um quadro composto por distintos matizes e
vozes.
Neste momento, pretendemos analisar a Plaza em seus múltiplos instantes de
reconfiguração paisagística. Da Plaza de Mayo que estampa os folhetos de divulgação
dos atrativos da capital portenha, passaremos às Plazas da socióloga argentina Silvia
Sigal, quem considera três espaços dentro dos limites históricos que circundam esse
lugar: o da Pátria, o Peronista e o das Madres, proposta teórica que a autora desenvolve
em seu livro La Plaza de Mayo: una crónica (2006). Ainda nos valendo das
multiplicidades imagéticas que a Plaza de Mayo oferece, partiremos para outras três
paisagens que se desdobram nesse locus de conjugação plural, permitindo uma
perspectiva de estudo comparatista com espaços que evocam a história, o testemunho, o
trajeto e as estratégias estetizantes desse local. Daí, emergem as Plazas do Turismo, da
Passagem e da Memória.
42

Através da tentativa de uma possível cartografia dessas paisagens em câmbio,


verificaremos, primeiramente, os processos de estetização profunda desse espaço
público, bem como sua configuração no olhar estrangeiro que deambula pela Plaza dos
Turistas.
Como um segundo ambiente de análise, nossa proposta é centrada no
deslocamento espaciotemporal propiciado pela Plaza da Passagem. Em relação a esta,
interessa-nos pensar na viagem pelo tempo decorrente da presença da “Linha A” do
metrô. Inaugurada em 1913, ela é a única que ainda conserva os traços do período de
sua construção. Por ela, encontramos os vestígios da urbe no auge de sua modernidade.
Ao desembarcarmos na estação que recebe da Plaza o nome, temos acesso a uma
paisagem que nos conduz ao encontro com os lenços brancos das Madres de Plaza de
Mayo, transportando-nos ao período sombrio marcado pela violência do Estado militar
e, finalmente, nos deparamos com o saldo de uma nação economicamente fraturada:
pessoas famintas e desempregadas, os esquecidos e apartados do sistema. Nesta
paisagem, os anos 1913, 1977 e 2001 são os pontos de passagem pelos quais a história
protagoniza um tempo contínuo de deslocamento e viagem.
Por fim, resta-nos a Plaza que permeia todas as análises propostas (tanto as de
Silvia Sigal como as do presente estudo): a da Memória. Especificamente, buscaremos
entender a presença da performance desempenhada nesse cenário de emergência das
Madres de Plaza de Mayo. Através da importância dos lenços brancos pintados no chão
da Plaza e dos testemunhos de corpos portadores destes mesmos lenços brancos,
tentaremos compreender tal espaço como um lugar cotidianamente ressemantizado
pelos discursos da memória e dos corpos em resistência, corpos que, ao se colocarem
em luta, denegam o luto.

1.6. O retorno do tempo: transecularidades da Plaza de Mayo

Ao escolhermos a Plaza de Mayo como lugar adequado para entender as


representações simbólicas e imagéticas nele desempenhadas como espaço que abriga as
Madres, mostrou-se cada vez mais urgente pensar na complexidade derivada das
multiplicidades de sujeitos, tempos e narrativas que se inscrevem neste cenário. Em um
mesmo dia, a Plaza adquire variados aspectos, novas cores e formas que, todavia, não
se deixam fixar, para serem reconfigurados cotidianamente. Com efeito, nestes novos
quadros, as paisagens desenhadas requisitam a identificação de sua diferença,
43

característica singular que exige uma análise que não se detenha a 1810 – ano de sua
última fundação – tampouco aos dias atuais. Transcendendo os tempos a que ela se
restringe, um olhar que busca o passado e se projeta no futuro para tentar entendê-lo é a
nossa proposta plural de estudo.
Dentro dessa perspectiva, o termo “transecular” ajuda a compreender tal tempo
que se conjuga na líquida fronteira entre a ocupação do espaço público como
instrumento de poder e, posteriormente, a contestação desse mesmo lugar como uma
paisagem investida por manifestações de resistência.
Segundo as considerações de Sigal, a Plaza de Mayo sempre foi um lugar de
poder por dois motivos: por ser um espaço ao qual o povo se dirige para reclamar suas
aflições e necessidades, e por ser onde as datas comemorativas do calendário pátrio são
festejadas, com os sucessivos governos apresentando-se nesse cenário e exibindo seu
poder nestas festividades. Desde o princípio, antes de 25 de maio de 1810 – data que
marca a Revolução de Maio, momento em que se conquista o primeiro governo pátrio –
e depois, durante os anos que sucederam a Revolução, o que acontecia na Argentina
refletia-se nos cenários da Plaza, como vizinhos para pedir mudanças de governo,
levantes militares, lutas entre federais e unitários, entre outros. Em seu entorno, como já
mencionado, situavam-se as sedes institucionais mais importantes: a Igreja Matriz, o
Parlamento, a Corte Suprema e a Casa de Governo. Com o tempo, distintas
transformações e traslados modificaram também as manifestações e os movimentos
desempenhados nesse espaço.
Diante da perspectiva dessa paisagem como um lugar de manifestações e
protestos, é importante ressaltar que a Plaza não representa somente um cenário de
contestação popular. Desde 1899 e até pouco antes de 1930, ela foi um espaço que
abrigou as reclamações de empresários do Centro Comercial e da União Industrial, o
que ratifica seu aspecto plural, ao conjugar num mesmo locus discursos opostos; em
termos marxistas, opressores e oprimidos. Num olhar dialético, a Plaza democratiza
vozes que lutam em situações díspares para serem ouvidas.
Sentidos e usos distintos se sobrepõem numa situação que desestabiliza e
confirma o poder investido em seu uso público. Entre essas diferenças de ocupação, a
socióloga destaca as três Plazas que mais se incorporam ao arquivo imagético-memorial
da nação: as das festividades pátrias, do peronismo e das Madres, ainda que existam
outras que ela aceite como novas propostas de configuração desse território.
44

Sobre a data de 25 de maio de 1810, vemos a representação de uma


transformação crucial na política da Argentina ainda colonial, em decorrência do pedido
para que o povo se mantivesse fiel à Espanha que fora invadida pelos franceses. Durante
uma semana de conflito, marcada nos dias entre 18 e 25 de maio, finalmente os
criollos 39 se reúnem na Plaza de Mayo para saber o que acontecia, e é escolhida a
“Primeira Junta” como governo pátrio, encabeçada Cornelio Saavedra.
Outra data importante será o dia 17 de outubro de 1945 40 . Depois de vários
conflitos que decorreram na renúncia de Perón às funções militares, ele aparece na
varanda da casa de governo e fala para uma multidão de mais de 300.000 pessoas, que
entoam fervorosamente um discurso de base nacionalista, capaz de consagrar os efetivos
laços entre o líder governista e os trabalhadores. Nasce, assim, o Peronismo.
Por fim, há a presença das Madres de Plaza de Mayo, cujo primeiro registro é de
abril de 1977 e representa uma paisagem da qual falaremos mais detalhadamente em
nossa análise acerca da Plaza da Memória. Escolhida neste recorte espaciotemporal
como um marco histórico à compreensão simbólica da Plaza, Sigal considera que a
ocupação deste espaço pelas Madres representou um fenômeno sincrônico, ou seja, os
protestos das Madres surgem junto com um movimento de entidade coletiva, no qual os
testemunhos de mães, “ao insistir sobre sua diversidade social ou política, constroem
41
uma unidade originária em torno de uma única reclamação” (SIGAL, 2006, p. 330).
A partir dessa compassiva unidade, surge também o papel social de Madres,
requisitando um estudo atento à importância da presença política dessas mulheres.
Por mais distintas que sejam as razões que ocasionaram as mobilizações e a
ocupação desse cenário público, fica-nos claro o laço que as une: ecoar uma voz
reclamante às esferas de poder. Em uma perspectiva política de conflito, poderíamos
citar também as multidões em 1982 (Guerra das Malvinas) e as revoltas e confrontos
que marcaram os dias 19 e 20 de dezembro de 2001 (período de intensa crise econômica
e renúncia do presidente Fernando De la Rúa). Entretanto, para a autora, as três praças

39
Termo usado para os que nasciam na América Latina colonial
40
Acossado, o Presidente de fato, Edelmiro Farrell, decreta estado de sítio em agosto de 1945, o que gera grandes
manifestações opositoras. Ao final de setembro, um movimento militar contra o governo é abortado em Córdoba. Isto
serve como pretexto ao presidente Farrell para instaurar novamente o estado de sítio, ocupar as universidades e
praticar numerosas detenções. No princípio de outubro, a guarnição do Campo de Maio exige o afastamento de Perón
de todos os seus cargos (Vice-presidente, Ministro de Guerra e Secretário de Trabalho). Farrell aceita e ordena a
prisão de Perón na ilha Martin Garcia. Entretanto, um inesperado movimento popular avança sobre Buenos Aires no
dia 17 de outubro. As pessoas ocupam a Plaza de Mayo e exigem a libertação de Perón. Em liberdade, ele faz seu
pronunciamento na Casa Rosada, anunciando sua retirada do Exército e seu efetivo ingresso na careira política. Em 4
de junho de 1946, Juan Domingos Perón entra na Casa Rosada como presidente da nação Argentina.
41
Texto original: “(…) al insistir sobre su diversidad social o política, construyen una unidad originaria en torno de
un único reclamo”.
45

que se desenham nas Plazas de 1810, 1945 e 1977 restringem-se como importantes
momentos da memória simbólica argentina.
Corroborando a pluralidade da Plaza – como um espaço público aberto –, ela
pode, ainda, simbolizar diversos grupos, o que não é visto num espaço fechado, nos
quais uma possível idéia de santuário exclui o que é típico da Plaza de Mayo: uma
constelação de sentidos que coexistem em sua singularidade. Tal aspecto recupera a
recorrência e co-ocorrência das três datas supramencionadas, bem como as
manifestações a que elas se referem.
Numa sobreposição pela ocupação desse espaço, as Madres adotam a Plaza
como um território privilegiado, sem interferir no significado simbólico das Plazas
peronista e patriótica. Perón, por outro lado, tenta colocar a massa de 1945 como
herdeira dos revolucionários de 1810, uma estratégia populista que integra o ideal de
nação próspera e vitoriosa, aproximando o líder político da convulsão popular que
gritava por seu nome.
Além dos aspectos simbólicos que circundam e transbordam a paisagem
desenhada pela atual Plaza de Mayo, o percurso arquitetônico ao que hoje temos acesso
passou por inúmeras transformações e redefinições. Neste momento, interessa-nos
pensar nas modificações empreendidas neste espaço público, desde sua origem aos dias
atuais, o que nos leva a uma viagem novamente pelo tempo e nos faz “desembarcar” no
século XVI.

1.7. O espaço e suas arqueologias transeculares

A Plaza de Mayo, maior praça de Buenos Aires, é tão antiga quanto a cidade. O
colonizador espanhol Juan de Garay, quando refundou 42 a Ciudad de la Santísima
Trinidad y Puerto de Nuestra Señora del Buen Ayre, em 11 de junho de 1580, deixou
traçado o lugar da Plaza Mayor. Neste espaço de múltiplos usos, eram realizadas as
cerimônias religiosas e oficiais, além de ser um local de comércio em decorrência do
mercado que lá havia. Junto a essas imagens, a Plaza ainda era um cenário para as
corridas de touros, as execuções públicas e as demonstrações de castigo.
Mesmo com o nome de Plaza Mayor, seu espaço era bem menor do que o atual,
pois em sua metade (onde hoje encontramos a Casa Rosada) estavam instalados os

42
Segundo a historiografia oficial, a cidade foi fundada pela primeira vez em 3 de fevereiro de 1536, por Pedro de
Mendoza, com o nome de Nuestra Señora del Buen Ayre, sendo posteriormente abandonada.
46

Jesuítas, durante 1608 e 1665. Quando a ordem religiosa migrou para outro espaço, esta
paisagem se transformou numa zona baldia, composta por restos de edificações, o que
deu origem ao nome Plaza de Armas ou Plaza del Mercado, servindo de palco para os
enforcamentos que ali se praticavam como um mórbido espetáculo público.
Com o propósito de arrecadar impostos, em 1803 é construída uma galeria
comercial com duas alas unidas por um arco central, a Recova (foto3), espaço pelo qual
se cruzava a antiga praça de norte a sul. Assim, divide-se a Plaza. A macabra forca
passa a ocupar o arco central da galeria, donde as pessoas eram penduradas e expostas
por várias horas, como exemplo ao poder que ali se estabelecia.

Foto 3: Maquete da Recova feita pelo artista plástico Miguel Angel Villalba. (Fonte: site
http://www.escultoresescultura.com.ar/).

Dividida em duas, de um lado encontrava-se a já mencionada Plaza de Armas e


do outro a Plaza Mayor que, em 1808, depois da vitória sobre os ingleses (1806), passa
a chamar Plaza de la Victoria. Com a Revolução de Mayo, a parte que dava para o forte
recebe o nome de 25 de Mayo. Como um marco de consagração do poder constituído
neste espaço, em 1811 é erguida a Pirâmide de Mayo (foto 4) no centro da Plaza de la
Victoria, representando o primeiro monumento da cidade e possibilitando que Buenos
Aires atuasse como “a heroína da festa, a dona de 25 de maio e o laço com a América
do Sul. Única pátria dos portenhos (...) inserindo-se numa identidade americana
preexistente, operação facilitada pela inexistência de entidades intermediárias” 43 (Idem,
p. 25).

43
Texto original: (...) la heroína de la fiesta, la dueña del 25 de mayo y el lazo con Sudamérica. Única patria de los
porteños (…) se insertó en una identidad americana preexistente, operación facilitada por la inexistencia de entidades
intermedias (…)”
47

Foto 4: Maquete da Plaza de la Victoria dividida pela Recova, já com a Pirâmide de Mayo em seu centro.
Obra também do artista plástico Miguel Angel Villalba. (Fonte: http://www.escultoresescultura.com.ar).

Em 1883, por uma determinação do prefeito de Buenos Aires, Marcelo Torcuato


de Alvear, a Recova é destruída em cinco dias, bem como é ordenada a retirada das
árvores que rodeavam a Plaza. Com a demolição, unem-se os dois espaços que passam
a chamar Plaza de Mayo. Além das medidas do prefeito, também há as intervenções
paisagísticas de Charles Thays 44 , com a construção de jardins. Vinte anos após a
demolição da Recova, a planta baixa desse cenário abrigará a primeira linha de metrô do
país, levando a Argentina ao encontro da modernidade. Ainda numa perspectiva de
remodelação estético-imaginária do espaço público, amplia-se a calçada e são
construídos passeios com 5 metros de largura, o que facilitaria a caminhada de pedestres
que transitavam pela Plaza em 1929. A iluminação e o cuidado com a escolha do piso
também são aspectos que se coadunam a essa estratégia de transformação paisagística
da cidade portenha, empreendimentos que lhe concedem o título de Patrimônio
Histórico em 1942.
Em 1977, durante o período de ditadura militar, a Plaza conjuga a dominação, o
poder e a resistência. Na tentativa de cessar as manifestações que marcaram o capital
simbólico da Plaza de Mayo, são construídos pequenos jardins em seu centro, ocupando
uma área de, aproximadamente, 3.000 m². Com efeito, o novo projeto arquitetônico
promovia a dispersão de grandes agrupações como as que marcaram outubro de 1945.
Entretanto, isso não impedirá um agrupamento de 14 mães nesse cenário para saber
notícias de seus filhos desaparecidos. A Plaza é reivindicada pelas Madres que exigem
a verdade e redesenham o espaço público com seus lenços brancos. Estas vestimentas,
hoje, estão pintadas (foto 5) ao redor da Pirâmide de Mayo, símbolo mítico-fundacional
que empresta sua paisagem todas as quintas-feiras, pontualmente às 15h e 30 min, para

44
Arquiteto francês que viveu na cidade entre 1891 e 1934.
48

dar passagem às vozes que clamam contra as opressões. Neste momento, a Plaza volta à
voz reclamante de seu povo.

Foto 5: Desenho dos lenços brancos, símbolo das Madres de Plaza de Mayo (Arquivo pessoal).

1.8. A Plaza do Turismo: espelhismos e espetáculos em Buenos Aires

“Buenos Aires é a outra rua, a que não pisei nunca, é o secreto centro dos quarteirões,
os pátios últimos, é o que as fachadas escondem, é meu inimigo, se o tenho, é a pessoa
a quem meus versos desagradam (a mim também desagradam), é a modesta livraria em
que por casualidade entramos e esquecemos, é essa onda de milonga silvada que não
reconhecemos e que nos toca, é o que se perdeu e o que será, é o ulterior, o alheio, o
lateral, o bairro que não é teu nem meu, o que ignoramos e queremos.”

“Buenos Aires”, Jorge Luis Borges.

Pensar no arquivo de imagens míticas que a cidade de Buenos Aires evoca é


uma questão que não provém da casualidade, recuperando o termo usado por Borges
presente na epígrafe acima. Como já mencionado, deambular pelos espaços oferecidos
pela cidade portenha é encontrar-se com figuras plasmadas nas representações afetivas
de um imaginário povoado pelas páginas de Cortázar, Roberto Arlt, Macedonio
Fernández e, novamente, Borges. É traçar um percurso literário inscrito nas linhas da
tradição literária argentina, trajeto este que transborda para os cenários que compõem a
cena urbana.
La Maga, el Rufián Melancólico, Elena 45 e os intelectuais borgianos que se
encontram no “Café La Perla”, no bairro “La Boca”, aparecem na paisagem buenairense
de leitores – e não leitores – que caminham pelas ruas e espaços estetizados por

45
Respectivamente, personagens de Julio Cortázar (Rayuela, 1963), Roberto Arlt (Los siete locos, 1929) e
Macedonio Fernández (El museo de la novela de la Eterna, 1993 (obra editada 41 anos após a morte do autor)).
49

estratégias discursivas. Tais artifícios fazem da capital argentina um lugar de encontro e


reencontro com as imagens arquetípicas de uma Europa traduzida em América Latina.
Essa tradução tampouco provém da casualidade. Buenos Aires, como já vimos,
é uma cidade que apresenta traços de metrópole desde o início do século XX. A cidade
imaginada – e construída – pelas elites da época tem características referentes a uma
originalidade encontrada na mistura de distintos paradigmas tecnológicos, estéticos e
urbanísticos. Assim como a cultura argentina, a urbanidade é composta por modelos
46
amalgamados, “transformados e deformados por um gigantesco sistema de tradução”
(SARLO, 2002, p. 29).
Ainda sobre esse aspecto tradutório presente na composição cênica da
cartografia portenha, é válido recuperarmos outra idéia de Beatriz Sarlo sobre o tema.
Em Tiempo Presente (2002), a autora propõe uma série de ensaios que viabilizam um
pensamento crítico acerca das transformações culturais na Argentina. Em “Ayer y Hoy”
(Ontem e Hoje), ao tratar da vida nas grandes cidades, ela argumenta o seguinte sobre
Buenos Aires:

“Buenos Aires é uma tradução da Europa, mas não só uma idéia de Europa, senão de
muitas línguas e muitos textos urbanos em conflito, refratada pelo dado inevitável de
sua localização na América. Há tanto imitação como bricolagem e reciclagem, de
segunda e terceira mão. Buenos Aires, obviamente, não é nenhuma cidade européia,
senão o produto de uma vontade européia na América.” 47 (Idem, p. 29 – grifo
nosso).

Diante desse panorama, o conceito de estetização proposto pelo filósofo alemão


Wolfgang Welsch é extremamente importante para a compreensão de um espaço que se
origina como um produto da vontade estética, baseado na configuração mimética
européia. Ao plasmar em Buenos Aires aspectos “reciclados” e tornar estes elementos
constitutivos da paisagem da cidade, o que vemos operar é um mecanismo
epistemológico a serviço de uma concepção da imagem que os argentinos fazem de si e
do pertencimento a esse locus.
A estética aparece como o primeiro elemento mediador entre o sujeito e o
mundo, através das formas intuitivas de espaço e tempo. Logo, nosso conhecimento
sobre as coisas seria decorrente das projeções realizadas sobre elas, o que promove

46
Texto original: “(...) transformados y deformados por un gigantesco sistema de traducción (...)”.
47
Texto original: “Buenos Aires es una traducción de Europa, pero no solo una idea de Europa, sino de muchas
lenguas y muchos textos urbanos en conflicto, refractada por el dato inevitable de su ubicación en América. Hay tanto
imitación como bricolage y reciclaje, de segunda y tercera mano. Buenos Aires, obviamente, no es ninguna ciudad
europea, sino el producto de una voluntad europea en América.”
50

“uma percepção da realidade apoiada na ficcionalidade produtiva, poética e


fundamental” (WELSCH, 1995, p. 9).
Com o resgate da perspectiva de Nietzsche acerca da estética, Welsch nos
possibilita, neste momento, um diálogo com a representação/paisagem de Buenos Aires.
Ao tratar que a realidade, em seu conjunto, é construída, e seus “fatos são coisas feitas”
(Idem), as imagens poéticas se tornam parte do senso de orientação do sujeito com
mundo que o rodeia. Estruturadas por moldes e constituições frágeis, oscilantes, essas
imagens míticas alteram a relação do homem com o meio em que ele interage e se
acredita parte.
Culturalmente estetizada, a cidade portenha opera – e é operada – por
sofisticados artifícios que a remetem ao legado europeu ainda vivo nas representações
afetivas que dão tom à sua paisagem. Como toda tradução, o desvio, a mistura e a
diferença são traços intercambiantes de um cenário ancorado na possível valorização de
uma identidade cultural singular.
Em meio à sua pluralidade de matizes, a cidade afirma sua singularidade através
de mitos que, não por casualidade, são extremamente explorados e consumíveis pela
máquina do turismo. O tango, a nostalgia de seus espaços e a sofisticação são
componentes semânticos que ultrapassam uma possível idéia de “compreensão
argentina” para se fixarem em produtos e ofertas da cidade portenha. Os postais e
programas que metonimicamente representam Buenos Aires são paisagens submetidas a
um elaborado facelifting estético, criando um espaço urbano modelado para atender às
expectativas e anseios de seus habitantes e turistas. Como um narcisismo, em que o
espelho é um elemento fundamental, a cidade reflete os desejos de um imaginário ávido
pelo consumo de bens materiais e simbólicos, expostos em ornamentadas lojas e
shoppings que a integram.
Nesse espaço de emoções, a cidade se torna o alvo dos cuidados patrimoniais, o
que justifica suas “plásticas” e liftings. Restaurar os tradicionais bairros, como San
Telmo, La Boca e a zona portuária, permite um certo espelhismo de Buenos Aires em
relação ao futuro das sociedades contemporâneas. Sob o risco de ser transformado em
um museu de si mesmo, em decorrência da obsessão pela estetização de seu patrimônio,
esse espaço reflete um modo determinante de preservação da ordem simbólica de uma
sociedade, fazendo com que “para que exista patrimônio reconhecível, é preciso que ele
possa ser gerado, que uma sociedade veja o espelho de si (...)” (JEUDY, 2005, p. 19).
51

Dentro dessa lógica patrimonial e do contínuo estímulo de olhar-se no próprio


espelho, surge o risco dos efeitos de saturação (como toda longa observação no espelho)
ou de sua destruição, um aniquilamento que nos remete a Narciso. A reflexividade
patrimonial se desenvolve pelo viés do exibicionismo cultural: tudo é feito para ser
mostrado, é preciso estar visível, o que engendra um mecanismo no qual o especular se
torna espetacular, principalmente nas cidades contemporâneas.
Dessa maneira, um cenário estetizado, com sofisticadas operações e liftings, não
comporta – nem permite – a exposição de suas fissuras em sua paisagem. Dos cartões
postais são excluídos os pobres, os escândalos econômicos e as vergonhas de um país
vitimado pelas violências do Estado militar. Excluídos, eles existem às margens,
ocupando e dividindo espaços com os artifícios do cenário hiperestético da urbe.

1.9. Espaços do turismo: a Plaza e seu entorno

“Que será Buenos Aires?


É a Plaza de Mayo a que tornaram,
depois de haver guerreado no continente,
homens cansados e felizes (...).”

“Buenos Aires” – Jorge Luis Borges.

A epígrafe acima é a frase inicial de “Buenos Aires”, o mesmo texto do qual


retiramos o período que finaliza o poema em prosa de Jorge Luis Borges, presente na
epígrafe anterior. Curiosamente, a primeira indagação feita sobre o que seria a cidade é
relacionada à Plaza de Mayo, lugar mítico-fundacional da capital argentina.
Entretanto, como um caleidoscópio ou um “aleph borgiano”, para analisarmos o
pluralismo que se inscreve na paisagem de Buenos Aires, é forçoso pensá-la dentro e
fora da cultura argentina. Até o momento, nossas verificações tiveram como roteiro a
cartografia e as representações no imaginário estetizado da cidade portenha, aspectos
indissociáveis da compreensão simbólica do espaço da Plaza.
Em decorrência de sua localização e de seu protagonismo na paisagem da
história, a Plaza de Mayo é, sem dúvida, um símbolo de Buenos Aires, senão da
Argentina. Conhecê-la é quase uma obrigação para os argentinos e, com certeza, um dos
principais pontos turísticos dos visitantes estrangeiros.
A palavra usada, então, para designar o primeiro contato com esse espaço é
“conhecer”, do latim cognoscere, formado com a raiz grega ‘gnóme’ acrescida do
52

prefixo /co/, que indica o compartilhamento da consciência acerca de algo. Uma vez que
a idéia acerca da consciência é um aspecto abstrato, a avaliação desse compartilhamento
é complexa e depende da empatia, sentimento mediador entre o sujeito e a Plaza. Um
pouco distante da noção latina de cognoscere, o espaço ocupado pelo turismo não
favorece o compartilhamento de consciência acerca da representatividade dessa
paisagem, tampouco que dali se extraia uma compreensão de suas elaborações
simbólicas. Não há tempo hábil nos programas dos “city tours” para que, realmente, se
efetive um reconhecimento no Outro; não há tempo para vivenciar a empatia.
As fotografias digitais produzidas por turistas que passeiam pela Plaza não
correspondem ao conhecimento acerca desse espaço. O contato que se estabelece é
rápido e composto por estratégias que fazem desse cenário a sua melhor resposta aos
que decidiram por ali cruzar de passagem.
Plural, a Plaza oferece diversas paisagens a seus visitantes. Seus cenários
metamorfoseiam-se. Ela pode servir para grandes protestos obreiros, “revelando” um
país que não se cala frente às reduções salariais, assim como para a tradução latino-
americana de fotos que nos lembram as praças italianas com suas inúmeras pombas. Ali,
podem ser adquiridos souvenires com a bandeira nacional, pagos com moedas de todas
as partes do mundo. A Plaza é, nesta perspectiva, um palco onde se encenam variados
espetáculos. Estar nela – mais do que conhecê-la – é a possibilidade de reflexividade de
uma sociedade do consumo, para a qual a experiência é constituída através de pequenas
lembranças materiais escritas em castellano. A memória que se conserva desse espaço é
uma mistura de emoções advindas do poder de compra e de imagens refletidas no que
ali se foi buscar.
Tudo é transformado em atração, destituindo-se, assim, a “pesada carga de
materialidade” que possam representar os atos desempenhados por sujeitos que atuam
cotidianamente em seu cenário. A Plaza configurada nas tardes de quinta-feira, para ser
fotografada, é autônoma da compreensão história acerca do período ditatorial instaurado
na Argentina em 1976. Hoje, as Madres que ali desfilam seus corpos vitimados pelas
violências do Estado militar podem ser perfeitamente estetizadas e transformadas em
mais um produto legitimamente argentino.
Assim como as Madres, os mendigos que freqüentam esse território podem ser
excluídos, ou não, da imagem que se leva dessa paisagem. Para os turistas europeus e
norte-americanos, muitas vezes, essas personagens miseráveis servem de cenário para a
fotografia de uma América Latina fraturada economicamente. Já para os turistas
53

brasileiros, tal cena pode não representar a Buenos Aires que seu pacote de viagem lhes
ofereceu. Nesse mecanismo cruel, a imagem reflete o recorte e o espelho do imaginário
dos que por ali passam em busca de seus atrativos.
Sobre o entorno da Plaza, vale mencionar ainda as imponentes construções que
lhe servem de moldura. Ao norte, as belíssimas edificações do Banco de la Nación, a
Catedral Metropolitana e a Avenida Diagonal Norte. A leste, a Casa Rosada, caminho
pelo qual podemos ter acesso a Puerto Madero, uma antiga zona portuária hoje
revitalizada, refletindo uma paisagem de luxo e divertimento na capital argentina. Ao
sul, o Ministério da Economia; a zona dos bancos e a Avenida Diagonal Sul, uma
paisagem compostas por matizes que evocam a arquitetura francesa do século XIX, com
suas fachadas de imponentes pórticos com madeira e material dourado. Finalmente, a
oeste, a Casa do Governo Municipal, o Cabildo (antiga sede do governo da cidade), e a
Avenida de Mayo, aberta em 1884, também por iniciativa de Marcelo Torcuato de
Alvear.
Sobre esta avenida, cujo nome provém da Plaza, é interessante pensar nas
estetizações por que passou até chegar ao ideal mimético europeu. A Avenida de Mayo
é demarcada por largas calçadas bordejadas por jardins, com mesas de café e refinados
edifícios, construções que ostentam as representações de uma cidade que viveu o auge
da modernidade e de sua efervescência intelectual.
Construída em estilo art-noveau, a avenida refletia o anseio da elite portenha em
busca de símbolos correspondentes ao seu arquivo imaginário afetivo. Ornamentada por
arranjos florais e arquitetônicos, ela ostenta sua memória de esplendor em edifícios
compostos por figuras oníricas, sereias, imagens de leões, com adornos de ferro
artisticamente trabalhados nas varandas, além dos suntuosos arremates de suas cúpulas.
Neste empreendimento arquitetônico-ideológico, foram incluídos elementos dos estilos
Luis VIII, Luis XV e da ornamentação italiana. É da Avenida de Mayo também a vista
mais alta da cidade de Buenos Aires, além do primeiro elevador que dispensava o uso
de cordas.
Pelos caminhos do entorno, é possível chegar aos bairros de San Telmo e La
Boca, paisagens já mencionadas pelo aspecto simbólico que ambas evocam acerca do
arquivo de imagens míticas da cidade portenha, ou seja, o lugar do tango, da boemia, a
zona portuária com suas casinhas coloridas e seus bares centenários freqüentados pelos
escritores argentinos. Com suas ruas estreitas e seus paralelepípedos, bem como as
antigas casas que compõem o cenário, esses bairros representam – assim como a Plaza
54

– paisagens fortemente marcadas pelas estratégias de estetização do espaço urbano. Em


suas casas de tango, a dança que aí se baila é feita (em sua maioria) para os turistas.
Longe das “milongas” dos arrabaldes de Buenos Aires, essas casas (fisicamente situadas
nos mesmos espaços) respondem à imagem arquetípica de uma cidade que seleciona e
cultiva em seu arquivo imagético os lugares de espetáculo e atrações.
Nesse cenário, os excluídos (desempregados, crianças de rua, imigrantes latino-
americanos) têm a possibilidade de uma episódica inclusão: imbuídos do aurático poder
de consumo trazido pela mitificação do tango, eles ensaiam sinfonias improvisadas com
precários bandoneones, em troca de algumas moedas. Diante da espetacularização, o
turista também se reifica num atrativo da paisagem.
A cidade é, ao mesmo tempo, palco e público de suas narrativas imaginadas e
compartilhadas. Através do turismo, conhecer este espaço é algo que contradiz o
conceito de cognoscere. Entretanto, pelo viés de uma simbologia criada poeticamente (e
politicamente), pode-se ter acesso a caminhos que escondem uma Plaza e um país
subordinados à fictícia experiência de unidade nacional. Em suas diferenças e
pluralidades, a Plaza é coerente por sua configuração traçada no difuso, na mistura,
numa “temporalidade de representação que se move entre formações culturais e
processos sociais sem uma lógica causal centrada” (BHABHA, 2003, p. 201).
É preciso entender seu tempo, deixando em repouso a noção horizontal, a linha
cronológica. Sobretudo é necessário pensar nas ambivalências e não-seqüencialidades
que atravessam esse tempo, cujas memórias e vivências se diluem na fugacidade dos
fatos, decorrendo em esquecimentos e apagamentos. Cruzar a Plaza é deslocar-se por
períodos que exigem um olhar crítico, algo que se distancia das máquinas fotográficas
digitais e dos folhetos de turismo.

1.10. A Plaza da Passagem: temporalidades da planta baixa

“Eriçada em torres, a cidade proclama nas alturas o


vigor de um povo. Já tem a coroa cinzenta das grandes
metrópoles, cinza de fumaça – fundindo com cinzas de
nuvens –, como Londres, como Paris, como as gigantescas
urbes do mundo; essa fumaça que cinge até os bairros
nobres, hoje também sacudidos pelo dinamismo
característico do povo portenho.”
Caras y Caretas, outubro de 1930. 48

48
In: SARLO, 1997: 199.
55

Certamente, o estudo acerca de um espaço como Buenos Aires não é uma tarefa
simples. Podemos compreendê-la em alguns de seus aspectos, mas abarcar todas as
narrativas que compõem seu caráter de metrópole multicultural seria, sem dúvida,
perdermo-nos no “Aleph” de Borges ou, ainda, nos exasperarmos como Ricardo Piglia,
em A cidade ausente, nas superposições de histórias, personagens e relatos.
Diante de nosso recorte, a Plaza traduz uma instabilidade “alephica”, na qual ela
“é um dos pontos do espaço que contém todos os pontos” (BORGES, 1986, p. 130).
Vemos seus momentos, analisamos seus fragmentos e tentamos ir um pouco mais além
de sua superfície.
Por sua planta baixa, chega-se até a “Linea A”, a primeira linha de subterrâneos
da América Latina e a 13ª do mundo. Inaugurada em 1913, a estação de metrô
representou a passagem e o ingresso de Buenos Aires na modernidade. Por seus trilhos,
era possível cruzar distâncias da capital em pouco tempo, revelando o outro lado desse
espaço: seus percursos subterrâneos. Deambular pela metrópole através do novo
itinerário que ligava a Plaza de Mayo à Plaza Miserere (naquela época, Plaza 11 de
Septiembre) representava não só o percurso de pouco mais de cinco quilômetros, mas a
imagem de uma cidade que crescia adotando em sua identidade símbolos equivalentes
aos das modernas capitais européias.
Sua construção demandou um sistema de ventilação natural; outro de
identificação visual das estações (através de diferentes cores, para os que não sabiam
ler), além de escadas compostas por blocos de granito e um aparato sofisticado de
iluminação, detalhes que corroboravam o reflexo da urbe esplendorosa.
O panorama portenho de 1913 condiz com o que García Canclini chama de
“metáfora de aliança nacional”, acerca da cidade do México no início do século, uma
vez que:

“O sentido de viver juntos na capital se estruturava em torno das marcas históricas


compartilhadas e dentro de um espaço abarcável – nas viagens cotidianas – por todos
os que habitavam a cidade. [...] o que cada grupo hegemônico estabelece como
patrimônio nacional e relato legítimo de cada época é o resultado de operações de
seleção, combinação e encenação, que mudam segundo os objetivos das forças que
disputam a hegemonia e a renovação de seus pactos. Certamente, em todas as épocas
houve políticas desiguais em relação aos bairros nobres e os marginais, os bens
culturais distintos e os ‘vulgares’” (CANCLINI, 1996, p. 125-126).

O metrô, como um bem cultural distinto, marcava a diferença da capital


argentina entre as capitais latino-americanas. É como se seus traços coloniais pudessem
se esvair nos trilhos que a levavam rumo à modernidade. Uma narrativa de nação
56

próspera cria, então, a imagem de um espaço cujas identidades se imaginam parte de seu
esplendor. Nesse reflexo, seus habitantes revelam os repertórios textuais e iconográficos
produzidos pelas representações afetivas de um imaginário moderno.
Nesse ambiente, proliferam-se os passeios, operando um mecanismo de
“consumo simbólico que integra os fragmentos em que já se despedaça essa metrópole
moderna” (idem: 127). É possível deambular anonimamente nessa paisagem, da qual
emerge o flâneur a observar o espetáculo da cena urbana de que faz parte. Em abismo,
ele observa e é observado, uma cena possível na cidade grande, na qual os conceitos
que remetem a uma categoria ideológica tornam viáveis a mistura de suas personagens à
paisagem urbana, ratificando a “Dialética da flânerie”, proposta por Walter Benjamin:
“por um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por todos, simplesmente o
suspeito; por outro, o totalmente insondável, o escondido. Provavelmente é essa
dialética que o homem da multidão desenvolve” (BENJAMIN, 1989, p. 190, grifo do
autor).
A urbe se torna, nessa perspectiva, o cenário de “atenção flutuante do flâneur
que passeia pelo centro e pelos bairros, bisbilhotando na pobreza nova da grande cidade
e nas formas mais evidentes da marginalidade e do delito” (SARLO, 1997, p. 203). Na
heterogênea Buenos Aires, criollos, imigrantes, índios e negros cruzam por espaços
enlaçados por elementos contraditórios que não se unem numa linha hegemônica. Com
a peculiaridade de uma cultura da mescla, coexistem elementos defensivos e residuais
juntamente aos programas renovadores; com “traços culturais da formação crioula a par
de um processo descomunal de importação de bens, discursos e práticas simbólicas”
(idem, p. 217).
A despeito da experiência do flâneur do início do século, narrar as cenas da
metrópole argentina é perder-se por caminhos que se bifurcam em tempos e “ruínas
circulares”. Os trilhos dos subterrâneos que conduziram a Plaza às imagens de
modernidade cruzam-se com obstáculos, detendo-nos à paisagem de um país que guarda
em si as dolorosas cenas da violência do Estado militar e o saldo de uma nação fraturada
economicamente.
57

1.11. Estação 1977

Diariamente, a Linha A transporta quase 190.000 passageiros. Seu itinerário


atual liga a Plaza de Mayo à Primera Junta, um percurso de 9,7 quilômetros 49 pela
planta baixa da cidade portenha. À paisagem da Plaza, agregam-se transeuntes, pessoas
das mais diferentes regiões da capital, que se dirigem ao centro.
Frente a esse quadro de múltiplos matizes, a Plaza em sua pluralidade conjuga
diferentes usos e imagens: ela é parte do caminho, via de acesso, ponto de passagem.
Em tempos distintos, os sujeitos que por ali transitam confirmam a mistura que se
processa nesse espaço, podendo atribuir-lhe diferentes sentidos e relações. Duas Plazas,
então, se desenham nesse passeio multicolor: ao cruzá-la, encontram-se um país
testemunha das violências ditatoriais e o produto de uma nação empobrecida. Nesse
locus de passagem, a pobreza se instala, recuperando – à força – as memórias do espaço
em crise.
Quem desembarca na estação Plaza de Mayo às quintas-feiras, durante os trinta
minutos entre as 15h e 30 min e as 16 h, cruza um cenário que remete aos trágicos anos
ditatoriais. Entre os passos e lenços das Madres de Plaza de Mayo, o transeunte tem
acesso à ferida exposta na história recente de seu país. Seus lenços brancos desenhados
no chão da Plaza demarcam um território que ultrapassa a presença delas ali.
Imageticamente, o passante é transportado para um tempo que se ressemantiza nas
questões que ainda atravessam – e interrompem – esse espaço do qual ele é parte.
Em termos foucaultianos, esse espaço propõe aos sujeitos que por ali transitam
uma “heterotopia”, funcionando numa “heterocronia”, algo possível “quando os homens
se encontram numa espécie de ruptura absoluta com seu tempo tradicional”
(FOUCAULT, 1984, p. 418). No desenho da paisagem das quintas-feiras, o encontro
com o ano de 1977 – como já mencionado, data da primeira reunião das Madres na
Plaza de Mayo – recupera cenas que não fazem mais parte do regime governamental da
Argentina. Contudo, essa irrupção temporal se presentifica em silenciosas vozes
reclamantes por justiça.
O Processo de Reorganização Nacional foi responsável por cerca de 30.000
desaparecimentos. Tais casos ainda tramitam na justiça argentina, omitindo personagens
importantes desse período cruel. Através de um tempo deslocado, trazido à atualidade

49
Dados obtidos através do site: http://www.sbase.com.ar/
58

pelas marchas e rondas das Madres, tem-se acesso às narrativas testemunhais de


mulheres que sofreram as mais terríveis estratégias de silenciamento. O desfile de seus
corpos portadores de uma memória amputada traz à luz um cenário vitimado pela tirania
do poder e o resultado da obsessão pelos ideais de homogeneização.
Lida como um texto 50 , essa paisagem se transforma num ilimitado terreno
interpretativo, no qual os discursos acerca (e com) de seu espaço envolvem múltiplos
agentes; sujeitos que interagem num cenário superposto por “jogos de poderes e
símbolos que têm influência na imaginação dos homens.” (GANDY, in: CORREA ;
ROSENDHAL, 2004, p. 86). As cartografias do poder – desde o século XVI, inscritas na
Plaza – transformam sua cronologia em cinematografia, exibindo as cenas de uma
cidade em diálogo com suas narrativas de resistência e dominação.
Sentidos e afetividades são investidos nessa paisagem tanto por aqueles que
vivem nela, quanto pelos que com ela mantém breves momentos de descobrimento. Por
ser uma praça, a noção presente no verbo “viver” deve limitar-se aos habitantes da
cidade e aos mendigos que ali habitam precariamente, numa relação espaciotemporal
marcada pela oferta e pela transitoriedade. Estes insiders têm uma perspectiva da Plaza
diferente da dos outsiders, 51 ou seja, as pessoas que não pertencem ao lugar, mas que
travam com ele a instantânea noção de descobrimento.
Desse encontro de sujeitos de “dentro” e de “fora”, é produzida a justaposição de
leituras do insider e do outsider. Tal aspecto resulta numa negociação interpretativa da
paisagem, com a ressemantização de ideologias dominantes reproduzidas em práticas
sociais e políticas. Os que habitam e partilham do cotidiano da cidade sabem que a
paisagem das tardes de quinta-feira conta com a presença das Madres. Mesmo
desconhecendo a história recente de seu país, o insider lê o texto ali escrito e o
interpreta diferentemente do outsider, para quem estas mulheres podem representar – ou
não – o testemunho de um país submetido às ditaduras militares.
Essas diferenças ainda permitem ressaltar que a heterocronia, proposta pela
ruptura com o tempo tradicional, é um fenômeno que pode ser suspenso diante da figura
do outsider. Como já mencionamos, as estratégias de estetizações promovidas pelo
turismo podem esvaziar o significado político imbuído nas marchas e rondas das
Madres. Esse momento pode, com efeito, deixar de lado seu aspecto de luta e

50
Perspectiva proveniente da Antropologia Interpretativa, de Clifford Geertz, inspirada no filósofo Paul Ricouer.
51
Termos de James Ducan para diferenciar os habitantes locais dos não-locais. In: CORRÊA & ROSENDAHL,
2004: 108.
59

resistência para ser transformado (assim como a Plaza e o nostálgico metrô) num
atrativo, num espetáculo fotografável.
A paisagem da passagem que evoca memórias e práticas políticas, ao montar
uma espécie de “memoriapaisagem” ou “monumentopaisagem” (ACHUGAR, 1996, p.
857), torna-se obsoleta e apaga o importante significado que a luta pela reinserção
simbólica do passado deseja representar. Dessa maneira, é gerada uma silenciosa tensão
entre os termos compreendidos como “próprio” e “alheio” à paisagem, decorrendo num
diálogo entre as tradições desempenhadas nesse espaço e a incorporação destas nas
narrativas que dali emergem.
Ao se desconsiderar a relevância histórica que o ano de 1977 agrega àquele
momento da paisagem, é marcada a incapacidade, tanto dos insiders quanto dos
outsiders, de leitura desses artefatos de memória remanescente desempenhados pelas
Madres. Todavia, segundo James Duncan:

“É esse esquecimento, essa “amnésia cultural”, que permite à paisagem agir como
poderosa ferramenta ideológica. Tornando-se parte do dia-a-dia do que é tido como
dado, do objetivo, do natural, a paisagem mascara a natureza artificial e ideológica de
sua forma e conteúdo. Sua história como uma construção social não é examinada.
Logo, ela é tão inconscientemente lida quanto inconscientemente escrita.”
(DUNCAN, in: CORREA ; ROSENDHAL, 2004, p. 111).

Diante dessa perspectiva, os passantes que ignoram essa sinédoque de resistência


ao sombrio período ditatorial, ressignificada nas tardes de quinta-feira, lêem uma Plaza
que, embora faça parte de sua rotina de passagem, é um espaço de contestação, um
aspecto guardado em sua cartografia de locus de poder.
Estetizada, plural e mesclada pelo vozerio da urbe, a Plaza das Madres requisita
seus tempo e espaço, aspectos que dialogam com múltiplos matizes plasmados nesse
quadro. As tardes desse dia da semana exigem, ou melhor, merecem uma leitura de suas
entrelinhas, nas quais a memória, o testemunho e a performance pedem passagem,
aspecto que será analisado mais amplamente no item “A Plaza da Memória”.

1.12. Estação 2001

A paisagem em chamas, desenhada nos últimos dias do ano de 2001 na Plaza de


Mayo, faz com que nos reportemos aos importantes momentos que precederam esse
cenário. Chegar a essa “Estação” convida a um retorno às paradas essenciais para seu
desembarque. Os protestos de 19 e 20 de dezembro de 2001, somados aos anteriores
60

anos de incerteza econômica, questionam e redefinem as múltiplas identidades lidas


através do sintagma “ser argentino”.
Até meados da década de sessenta, o senso de pertencimento apoiado na
expressão de uma identidade argentina pautava-se num triângulo, composto pelos
aspectos básicos: “ser alfabetizado, ser cidadão e ter trabalho assegurado.” (SARLO,
2001, p. 46). Renúncias, tomadas de poder e protestos escrevem o panorama que
resultará no golpe militar de 24 de março de 1976, um momento chave para o declínio
dos valores simbólicos inscritos no imaginário argentino.
O triângulo que representava uma sustentação da superioridade da nação em
relação aos outros países da América Latina passa, então, por sucessivos fracassos,
desmoronando totalmente nos anos que marcaram a transição democrática.
Vilipendiada, essa imagem de sustentação precária, pois o que pode segurar um
triângulo demanda equilíbrio e artifícios de malabarista, é quebrada, levando consigo “a
identidade como soma de motivações, expectativas e qualidades que fazem com que
alguém se reconheça fortemente numa sociedade (...)” (idem, p. 48).
Frente à crise desses bens simbólicos, outro problema se configurava: como se
representar, não apenas no discurso, como parte de uma nação defraudada? Deste
conflito, emergem figuras como Carlos Saúl Menem e Domingo Cavallo, um binômio
que escreve a messiânica promessa político-econômica do país durante grande parte a
década de 90. Privatizações, planos econômicos e a fictícia paridade entre as moedas
norte-americana e argentina escrevem uma paisagem socioeconômica fortemente
marcada pela desigualdade e por sua insustentabilidade.
Quebrada a idéia utópica de identidade, o país é cenário de particularismos, nos
quais o imediatismo e a precariedade são traços agora intransponíveis. As
reivindicações de um grupo colidem com as de outro e, nesse impasse, a mediação é
impossível; não há entre eles um aspecto que lhes permita serem reconhecidos como
parte e partícipe dessa nova paisagem.
Como uma alternativa possível para a reconfiguração política argentina, em
1999 é eleito para presidente da nação Fernando De la Rúa, cujo vice Carlos Alvarez
representava uma ruptura com a figura de Carlos Menem 52 . Apoiada num programa
institucional e moralizador, que visava resgatar uma crença ética ao condenar os abusos

52
Carlos Alvarez, mais conhecido como “Chacho Alvarez”, tornou-se um político reconhecido após a ruptura com o
“Partido Justicialista”, quando Menem outorgou os indultos aos chefes militares em 1989. Junto a outros políticos,
formou, em 1994, o “FrePaSo” (Frente País Solidário). Em 1997, os partidos “União Cívica Radical” e “FrePaSo”
uniram-se para compor a frente eleitoral “Alianza”, resultando na vitória à presidência da república em 1999.
61

de Carlos Menem, a aliança “De la Rúa-Alvarez” se tornou o símbolo de uma nova


maneira de atuar no panorama político argentino. Uma alternativa firmada na
elaboração discursiva composta por ideais capazes de combater as crises e os escândalos
jurídicos do presidente anterior.
No entanto, em menos de um ano, Alvarez renuncia ao cargo de vice-presidente,
em decorrência dos desacordos relativos às mudanças governamentais de Fernando De
la Rúa. A nomeação de Domingo Cavallo como Ministro da Economia é somada a essa
crise interna, recuperando uma importante imagem plasmada na “Era Menem”. A figura
responsável pelo plano econômico de paridade peso-dólar volta à cena como uma saída
para acabar com a recessão iniciada em 1999. Embora seu palco de atuação seja o
mesmo outrora montado como uma opção contestatória aos rumos desastrosos
protagonizados nos anos do binômio já mencionado, o cenário que se configura ratifica
uma paisagem composta pela desigualdade social.
Em dezembro de 2001, como uma medida desesperada para desafogar o país da
enorme dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o presidente decreta o
“Corralito”. Tal medida significava uma restrição aos saques em dinheiro de contas
correntes e poupanças – uma estratégia não muito distante da que se havia realizado no
Brasil, com Fernando Collor e Zélia Cardoso. Com efeito, o bloqueio econômico será o
mote para os saqueios ocorridos em várias partes do país. A cidade portenha (cada vez
mais longe de Gardel e Borges) entoa seu lamurioso tango, cujos acordes denotam sua
ruína econômica, ressignificada em corpos que voltam à Plaza para exigir, na
madrugada de 19 de dezembro, a renúncia do ministro Domingo Cavallo.
53
“Cacerolazos” , barricadas e enfrentamentos entre civis e policiais compõem a
paisagem de 19 e 20 de dezembro (foto 6), dia em que são anunciadas as renúncias de
Cavallo e De la Rúa. A Plaza retoma o palco de espetáculo com uma de suas maiores
manifestações de cartografia do poder (foto 7). Os centenários edifícios que inscreveram
a cidade num ideal de modernidade tornam-se os espectadores de sua falência.

53
Nome dado aos protestos realizados com utensílios domésticos e panelas, que em espanhol são chamadas de
cacerolas.
62

Foto 6: Repressão policial na Plaza de Mayo. (Fonte: Archivo Fotográfico AMPM).

Foto 7: Combates e protestos na Plaza de Mayo . (Fonte: Archivo Fotográfico AMPM).

O triângulo definidor da identidade argentina tem a aresta “ser cidadão”


reificada através da intervenção de indivíduos na cena urbana não mais como parte de
seu funcionamento. Justamente pelos protestos que eles desempenham é que uma idéia
de cidadania é questionada. É o que propõe o sociólogo Roberto DaMatta ao abordar a
relação “nação e sociedade”:

“como cidadão eu pertenço a um espaço eminentemente público e defino o meu ser


em termos de um conjunto de direitos e deveres para a outra entidade também
universal chamada “nação” [...] Isso significa que são os indivíduos (= cidadãos) que
permitem a formação da autoridade pública pela representação concedida e livre de
seus interesses. [...] A nação e a sociedade não são mais uma fonte de humanidade (e
de sentido), conforme dispunha a teoria tradicional que concebia a sociedade como
uma universitas. Agora a sociedade é uma entidade concebida como um clube ou um
partido político [...]” (DaMatta, 1997, p. 67).

Diante de um impasse marcado pelas diferenças entre as esferas pública e


privada, a Plaza dos dias 19 e 20 alveja as dissonâncias do que se entende por indivíduo
e sua relação com a nação à qual pertence. As necessidades de ordem particular se
mesclam às feridas de um país em declínio, o que promove uma convulsão do público
63

em detrimento das prerrogativas particulares. O bloqueio econômico é o estopim; e o


cenário marcado pela insatisfação e pela certeza da perda dos referenciais simbólicos de
uma identidade argentina é incendiado.
A Plaza dos finais de dezembro de 2001 é testemunha de uma profunda
mudança econômica no país, transformações referenciais para a crise que marcou esse
período. Como legado, o desemprego e a miséria aumentam, destituindo qualquer
possibilidade de negociação capaz de restituir o imaginário “ser argentino”. Presentes
como feridas abertas na paisagem da urbe, a pobreza e os problemas que dela decorrem
habitam todos os cantos possíveis. Desembarcar na Plaza é ser exposto a cenas que não
aparecem nos postais, nem são aspectos de exploração turística. Ali, mendigos,
moradores de rua e eventuais assaltantes compõem uma camada marginalizada, parte de
uma camada maior marcada pela desesperança e pelo fracasso.
Distante dos sofisticados artifícios de estetização, a miséria ali presente desenha
uma paisagem cujo território é definido por “tanto aquilo que lhe pertence como aquilo
que ele exclui”. (LE BOSSÉ, in: CORREA ; ROSENDHAL, 2004, p.173). Como um
macabro jogo de espelhos, os que ali habitam precariamente refletem o saldo dessa
nação empobrecida. Logo, transitar por seu espaço é atravessar por diferentes
momentos, nos quais o presente é devedor de um passado perene.
Pelos caminhos dessa paisagem de passagem, é possível ter acesso à sua planta
baixa. Esses percursos ultrapassam o espaço do subsolo para se instalarem nas fissuras
que compõe a imagem da Plaza. O metrô que nos leva até ela, inevitavelmente, leva-nos
também às feridas e aos sujeitos que não viveram na urbe esplendorosa do início do
século. Mais que uma estação, a parada “Plaza de Mayo” representa o encontro com
identidades que se mesclam e flutuam na incerteza de um imaginário mítico, no qual o
ideal de nação próspera e culta é sustentado através de profundas estetizações
elaboradas no nível discursivo.
Se, segundo Sarlo, essa paisagem podia ser lida por um tripé de estabilidade que
a constituíra como uma nação de destaque, agora ela representa um texto confuso e de
difícil assimilação interpretativa. Nas linhas que escrevem sua narrativa, a memória
emerge não só como um aspecto imperativo acerca “do que não pode ser esquecido”,
mas, sobretudo, como uma alternativa possível de reconstituição da história. Capaz de
viabilizar novas vozes e discursos, o testemunho surge como um viés que permite
compreender as transformações e pluralidades dessa sociedade.
64

1.13. Espaços e imagem da Plaza da Memória

“E se o mundo sobrevive, os professores de história explicarão o


século XX através de seus símbolos: mostrarão a seus alunos a
garrafa de Coca-Cola, a bola de futebol, o televisor, o computador, a
bomba de nêutron. E para explicar a dignidade, mostrarão o lenço
branco das rondas de Plaza de Mayo.” 54
Eduardo Galeano.

O estudo da Plaza e seu importante papel como um espaço onde as mães dos
desaparecidos durante a última ditadura militar adquirem a dimensão política de
Madres, em pleno regime ditatorial, traz consigo a necessidade de compreensão acerca
do termo “memória”. As correlações entre esse lugar de poder e a insurgência
memorialística demandam um olhar atento sobre o testemunho de corpos vitimados pela
violência do Estado militar.
Em um percurso um pouco distinto ao da socióloga Silvia Sigal, optamos por
pensar na Plaza das Madres como um espaço simbólico que surge pelo viés da
memória. Esta exige reparações e ressemantiza a presença materna, ao atribuir-lhe a luta
pela justiça e a conscientização política como um ponto de encontro com seus filhos
detidos-desaparecidos. Sem dúvida, esse espaço representa uma paisagem única para a
constituição do movimento das Madres, cujo nome provém dele mesmo. Não são
“mães” apenas; são as Madres de Plaza de Mayo, um termo com valor semântico que
remete à resistência, ao enfrentamento às leis ditatoriais e, reiteradamente, à memória.
Desta maneira, o passado surge como um tempo que permite a vivência do
corpo, promovendo um diálogo com esse lugar onde o corpo é posicionado em combate.
Sobrevivente, ele narra a história, resgata e dignifica os que caíram. Assim, o tempo e a
Plaza passam a simbolizar uma representatividade discursiva, na qual os atos do
passado metamorfoseiam-se, o passado e o espaço público fundem-se num
55
“lugar/problema de onde se assinalam os vazios das histórias oficiais” (ACHUGAR,
1996, p. 850).
Vitimadas pela lúgubre sinfonia entoada pelo golpe de 1976, as Madres, com
seus corpos ocupando o espaço público, passam a questionar as linhas da narrativa
política argentina, cuja memória representa a operação de mecanismos de censura,
rasura e exclusão. A história, nessa perspectiva de apagamento de suas fissuras, é

54
Texto original: “Y si el mundo sobrevive, los profesores de historia explicarán el siglo XX a través de sus
símbolos: mostrarán a sus alumnos la botella de Coca-Cola, la pelota de fútbol, el televisor, la computadora, la bomba
de neutrones. Y para explicar la dignidad, mostrarán el pañuelo blanco de las rondas de Plaza de Mayo.” Eduardo
Galeano. In: GORINI, 2006, p. 231.
55
Texto original: “un lugar/problema desde donde señalar los huecos de las historias oficiales”.
65

reescrita “(...) com cada mudança do quadro governamental e pede que os leitores da
enciclopédia eliminem por si mesmos aquelas páginas convertidas em indesejáveis”
(TODOROV, 2000, p. 12).
Através das supressão/conservação de fatos que podem ser narrados, a
historiografia oficial seleciona a memória escrita acerca desse tempo, um artifício que
tenta retirar de suas linhas as personagens que não podem pertencer ao imaginário de
um país em paz (baseado no silêncio e na obediência). O mesmo discurso que elide os
desaparecidos pela oposição política qualifica as Madres como subversivas, terroristas,
loucas e inimigas da nação. Entretanto, as feridas seguem abertas, e a Plaza é o palco
onde elas serão expostas.
30 de abril de 1977 é a data da primeira agrupação das Madres na Plaza de
Mayo. Desesperadas por notícias de seus entes desaparecidos, elas se reúnem nesse
espaço de poder, na esperança de entregar uma carta ao General Jorge Videla. Sem o
embasamento político de seus filhos desaparecidos, essas mães – a maioria donas de
casa, o que marca ainda mais a presença da esfera privada – queriam apenas saber o que
se passava com os, até então para elas, detidos.
No livro Las locas de Plaza de Mayo (1983), do jornalista francês Jean-Pierre
Bousquet, podemos encontrar os primeiros relatos sobre a relação entre as Madres e a
Plaza, uma relação que surge da necessidade, a priori, de serem vistas. Composto por
testemunhos, histórias e recortes de notícias oficiais, o livro apresenta uma passagem de
1977 que ilustra o mote daquelas reuniões semanais, encontros que decorrerão na
formação do movimento Madres de Plaza de Mayo: “Nós não fazemos manifestações,
viemos testemunhar nossa dor, tiraram nossos filhos, pedimos ao governo que nos
digam onde estão, o que lhes passou” 56 (BOUSQUET, 1980, p. 48).
Não sendo atendidas e, posteriormente, sendo reprimidas por seus semanais
encontros na Plaza, elas vão tomando dimensão do perigo que representava o páthos
entoado neste cenário fortemente controlado. Entretanto, elas não se intimidam, e o
número de mães aumenta. O que a princípio era constituído por 14 mulheres cresce,
transformando-se num movimento com mais de 200 personagens já investidas de seu
papel político-social de Madres.
Inicialmente, a voz testemunhal das Madres se configura como o “testis, terceiro
elemento na cena jurídica, capaz de com-provar, certificar, a verdade dos fatos”

56
Texto original: “nosotras no hacemos manifestaciones, venimos a testimoniar nuestro dolor, nos han quitado
nuestros hijos, le pedimos al gobierno que nos diga dónde están, lo que les pasó.”
66

(SELIGMANN-SILVA, 2004, p. 18). Ao serem reprimidas, é delas o importante dever


de reconstituir os fatos, o que fazem apresentando, com seus corpos vitimados pelas
violentas estratégias de silenciamento, “uma textura do vivido em condições extremas,
excepcionais” (SARLO, 2007, p. 61). O desaparecimento de seus filhos possibilita,
então, a emergência de mulheres que, forçosamente, abandonam a condição de
testemunhas vicárias, representantes, para construírem um relato não das torturas do
Estado militar, mas das artimanhas empreendidas contra a voz reclamante parida e
tonificada pelos corpos insepultos.
Vivo nas memórias e nos ideais que constituem o movimento das Madres, o
corpo que não foi abrigado na sepultura, simbolicamente, caminha de braços dados a
elas na Plaza. Nesse lugar de reencontro com os que não puderam testemunhar sobre os
abusos ditatoriais, as Madres constroem relatos e ressignificam a noção de memória. É
através do testemunho delas que os assassinos – de seus filhos e das outras três Madres
desaparecidas – poderão ser condenados e a democracia se tornará (mais do que nunca)
um direito baseado no “enraizamento de um princípio de reparação e justiça” (idem, p.
47).
Distanciadas da lógica masculina que opõe a razão ao desejo, o corpo dessas
mulheres traz em sua imagem um arquivo afetivo presente na maternidade. Com efeito,
o que vemos com a experiência do corpo em luta das Madres é um poder exeqüível da
transgressão, ao permitir-lhes atuar como uma força subversiva, contrária à hegemonia
representada pela figura masculina do poder. “Paridas por seus filhos”, elas portam
consigo um legado às avessas. Assim como Antígona, as Madres desafiam o poder e
entregam seu corpo à luta, em resistência aos “ditames do rei”. Na Plaza, elas se
reúnem, marcham, rondam e protestam semanalmente. É nesse espaço também que, por
mais de 25 anos, elas fazem a “Marcha da Resistência”, um ato no qual os seus corpos
desfilam por 24 horas, ao redor da Pirâmide de Mayo, entoando a memória e a dor
testemunha das violências e abusos do regime ditatorial. Uma cena que se torna parte da
paisagem da Plaza.
Sobre a conquista desse espaço, é interessante reportarmo-nos ao que Ulisses
Gorini argumenta acerca da memória dos tempos de repressão, ao narrar o que
representou para elas a ocupação efetiva (durante a primeira “Marcha da Resistência”,
em 10/12/1981) dessa paisagem cujas múltiplas faces refletem o poder:
67

“Não foi fácil para estas mulheres, algumas já de idade avançada, levar adiante a
iniciativa. A caminhada foi por si própria cansativa, mas, além disso, se tornou mais
desgastante ainda pela pressão da polícia, pelo clima hostil – em algum momento
começou uma intensa chuva sobre os manifestantes – e pela intimidação que sofreram
durante a noite, quando apagaram as luzes da Plaza para tentar assustá-las [...] Ao ver
tudo o que ocorria, um jornalista francês, Jacques Deprés, disse às Madres algo que
lhes pareceu dar um sentido a todo o terrível esforço que estavam fazendo: ‘Se vocês
permanecem toda a noite, nunca poderão tirá-las da Plaza’. ” (GORINI, 2006, p.
481). 57

Essa perspectiva da Plaza das quintas-feiras, então, guarda em si uma semeadura


que se desenvolveu nessa área baldia a que seu espaço pôde corresponder, por nele
haver germinado um sentimento invencível, a atitude incompreensível, porém resistente
das Madres reclamantes por seus filhos. Uma cultura do “ponto cego”, como a definiu
Wolfgang Welsch (1995, p. 18), surge, semanalmente, às 15h e 30min, numa paisagem
que, além das mais diferentes formas de estetização, preserva em sua agenda um
encontro com algo que lhe devolve um caráter genuíno. Esse espaço, conhecido como
Plaza de Mayo, redenomina-se para a cerimônia dos lenços brancos: é La Plaza de Las
Madres.

57
Texto original: “No fue fácil para estas mujeres, algunas ya de edad avanzada, llevar adelante la iniciativa. La
caminata fue de por sí agotadora pero, además, se volvió más extenuante aún por la presión de la policía, el clima
hostil – en algún momento se largó una intensa lluvia sobre los manifestantes – y la intimidación que sufrían durante
la noche, cuando apagaron las luces de la Plaza para intentar asustarlas. (...) Al ver todo lo que ocurría, un periodista
francés, Jacques Deprés, les dijo algo a las Madres que pareció darle sentido a todo el terrible esfuerzo que estaban
haciendo: “Si ustedes permanecen toda la noche, ya nunca podrán sacarlas de la Plaza”.
68

2. LINHAS DA MEMÓRIA: PONTOS E CRUZES, EMBATES E


TRANSFORMAÇÕES DO LENÇO BRANCO

2.1. O conto do véu que desvela

Quem nasce quando há uma gravidez? Essa foi a primeira coisa que Maria
pensou ao descobrir que há cinco semanas ela já não era um corpo só. Ao ver o exame,
não parava de pensar que alguém crescia dentro dela, com um coração batendo ali junto
ao seu, e duas pernas e dois braços que um dia iram abraçá-la e caminhar a seu lado.
Desde o momento da descoberta, Maria esperava ansiosa pelo duplo parto: o filho que
viria ao mundo e a mãe que nasceria naquela hora, ambos transformando-se ao mesmo
tempo, para sempre.
Pouco mais de oito meses após aquele dia que mudara sua história, Marcos já era
o menino lindo, forte e sadio, a quem o nome do avô materno falecido era a homenagem
que religava Maria ao passado e projetava a esperança de dignidade no futuro. Nenhum
deles seria os mesmos: a vida de Maria renascera em Marcos, cuja promessa do amor
familiar se renovava em seu olhar e escrevia os sonhos da nova mãe.
Cuidadosa e preocupada, ela seguia os rituais que se esperam de todas as
mulheres que com ela compartilhavam a experiência da maternidade. Amamentar,
trocar fraldas, levar à escola, ensinar conceitos éticos e preparar seu filho para a vida
eram clichês que ela desempenhava numa cronologia sem grandes dificuldades.
Repassando um pouco do que havia aprendido, Maria engatinhava junto com o filho
rumo ao mundo, o mundo que herdara de seus pais.
As fraldas iam sendo substituídas por outras vestimentas, indiciando os sinais de
crescimento e independência do ser que lhe deu o nome “mãe”. A escola cedeu lugar ao
trabalho, onde ela não o acompanhava, mas donde o aguardava todos os dias retornar.
Era com Marcos que ela começava a entender (e se preocupar) questões que seus pais
não lhe haviam ensinado. Curiosamente, também, sem dar-se conta, o filho era quem
agora a conduzia à compreensão de certas coisas que ainda ficavam presas ao silêncio.
Juntos, mãe e filho se ensinavam a ler. As historinhas da infância eram
substituídas lentamente por novos heróis; vivos, reais e tangíveis. Nas aventuras lidas, o
filho era quem mais se emocionava, transformando o antigo “El mio Cid” em homens e
mulheres que combatiam a injustiça com pesadas armas e entregues à guerrilha. Maria,
receosa, temia que o filho repetisse suas fantasias de criança, ao voltar a sonhar com
69

seus heróis e se reconhecer neles. A brincadeira de ambos não era mais ficcional; as
personagens lidas existiam e seduziam bravamente o filho ávido por transformá-las em
suas narrativas.
Na mesma estante, biografias dos russos e histórias de revoluções comunistas se
misturavam aos romances que ela lera em sua juventude. Transformada pelo filho,
Maria passava a sonhar com “Rosa”, “Ernesto”, “Karl”, figuras tão distantes e, ao
mesmo tempo, tão encantadoras para ambos. Nos discursos do filho, esses nomes
ganhavam vida, desbancando qualquer imagem das saudosas histórias que ela lia para
que ele dormisse na infância. As novas histórias tiravam o sono, inquietavam-nos de
uma maneira nova, perigosamente necessária para que esse mesmo sono pudesse
chegar-lhes calmamente, dignamente.
Formava-se um segredo: eram só deles aqueles momentos. Suas amigas não a
compreendiam; ofendiam-se quando ela se exaltava falando dos manifestos. Aquilo,
para as outras, era coisa de subversivos. Portanto, era preciso, era ordem, não falar.
Calada, ela voltava para sua casa e aguardava a chegada de Marcos, o cúmplice e
responsável por seus desejos e descobertas proibidas. Todas as noites, como num
cerimonial, eles conversavam, riam e se indignavam juntos. Os outros filhos e o esposo
se sentiam à margem de tudo aquilo, estranhando a mudança de Maria, outrora tão
compassiva e entretida com seus afazeres domésticos.
Um dia, depois de suas tarefas, ela se preparava para o ritual cotidiano: sentar-se
na antiga poltrona e ler os jornais do partido, enquanto esperava pelo filho. No entanto,
as horas começaram a travar um combate doloroso: quanto mais se passavam, mais
adiavam o momento tão esperado por todo o dia. Outro dia chegou, e a ela permanecia
em sua poltrona, nervosa, lembrando-se de uma conversa em que Marcos dizia que,
assim como seus heróis, ele poderia ficar uns tempos sem aparecer. Ao recordá-la,
Maria também resgatava o que havia sentido nesse dia em que o medo começou a
marcar cada minuto que o filho se atrasava para chegar. Outro dia, outros dias, um mês,
dois meses. Começava, ali, uma trajetória em busca daquele que, sem saber, a
transformara anos antes, já antecipando o que mudaria por completo.
Desesperada, Maria passa a rondar por necrotérios, cadeias, hospitais e jornais, à
procura do filho. O silêncio e a ameaça tentam levá-la de volta para casa. Sem gritar, ela
não recua: era-lhe vital saber onde ele estava. Cansada com a presença diária do
desconhecido, um dia ela resolve ir à praça, onde se encontra com outras mães parecidas
com ela. Embora elas não se assemelhassem fisicamente, seus olhares se reconheceram
70

marcados pela mesma dor. A mãe que caminhava sozinha começa a caminhar ao lado
de outras, muitas marias, companheiras de dor e tragédia, com as quais se torna Madre,
gestada e parida pela presença do filho desaparecido.
Os meses passam e os filhos não retornam. O número de mães aumenta a cada
dia e agrega novas miradas e discursos, que requisitam símbolos e imagens capazes de
diferenciá-las entre outras tantas marias temerosas pelo perigo de “Rosa”, “Ernesto” e
“Karl”. A praça se expande para outros espaços possíveis de mostrá-las. No entanto,
para aparecerem e serem reconhecidas, elas precisariam de algo que as identificasse, e a
fralda do filho, guardada como uma doce lembrança, transforma-se no lenço branco.
Revestindo a cabeça, ele se torna o véu que sela o sagrado e eterno laço entre o filho e a
Madre, um figurino capaz de desvelar narrativas de dor e de medo.
Sobre o pano branco, elas bordam nomes e datas em pontos de cruz, e desenham
a imagem do calvário, plasmada numa caminhada em direção ao corpo do filho
desaparecido, provavelmente morto e insepulto. O tempo confirma sua inexorabilidade
e o lenço se faz cada vez mais presente. Da fralda do bebê ao véu que desvela, a
trajetória do tecido é tecida por memórias e testemunhos de mulheres que se dividem
entre o luto e a luta.
O tempo passa levando consigo o período do silêncio. Uma hipótese de
democracia alumbra a jornada de Maria e suas companheiras, rompendo o medo e o
terror que um dia lhes fizeram temer pelos desaparecimentos. Um novo regime político
aparece, enquanto Marcos continua desaparecido. Nesse universo de coisas inovadoras,
aparecem também as possibilidades de que elas sejam ressarcidas economicamente pelo
que passou com seus filhos e ainda possam lutar por escavações capazes de devolver-
lhes, em pedaços díspares e descompostos, aqueles que continuam inteiros ao seu lado.
Só era preciso uma coisa: a declaração familiar de que eles estavam mortos.
Maria, idilicamente, lembra-se dos sonhos de seu filho, de sua promessa de
renascimento desde o primeiro olhar, dos livros compartilhados, dos heróis reais e dos
projetos que por horas embalavam a esperança de um sono tranqüilo; memórias que a
restituição financeira prometida e as imagens partidas nunca poderiam restituir-lhe, pois
tudo surgira e se tornara possível pela presença do ser amado, há tantos anos
desaparecido. Indignada e ofendida, ela não aceita e, com suas fiéis escudeiras, ruma em
direção ao utópico caminho escrito na reivindicação do filho com vida.
Como uma jovem militante, ela se abraça à luta interrompida do ente querido,
transformando a ronda em marcha, e Marcos num exemplo de fraternidade
71

incomensurável. Desmedida em seu amor, Maria se transforma uma vez mais: ela agora
é mãe de todos os desaparecidos, um número inviável biologicamente, porém coerente
com seu posicionamento transgressor. 30.000 vezes grávida é a cor que dá luz à nova
Madre, que clama pela justiça e pela memória de seus mártires, entre eles seu filho.
Ela se distancia das antigas companheiras que rondam em busca dos corpos
insepultos; seu herói é imortal e seu laço com ele é inquebrantável. Na praça, ela segue
com aquelas cujo grito é em uníssono e ressoante. Nos projetos e locais construídos pela
memória dos desaparecidos, ela luta e sonha pela igualdade e pela edificação de uma
sociedade onde não haja medo nem engano. Muitas vezes agressivo, seu discurso é
interdito e vetado. Louca é o que dirão para silenciá-la, e loucura é a resposta que ela
dará para seguir gritando pelos ideais de seu grande amor. Ausente, ele nasce
ininterruptamente em cada abrir de olhos daquela que aprendeu a mirar o mundo pelos
olhos de seu filho. Presente, ele pare cotidianamente os sonhos, discursos e atitudes de
Maria, aquela que, ao renascer como Madre, converteu morte em vida, dor em luta,
perdão em impossibilidade, e o véu num lenço que desvela.

2.2. Linhas da memória

“Todo está guardado en la memoria,


sueño de la vida y de la historia.
La memoria despierta para herir
a los pueblos dormidos
que no la dejan vivir
libre como el viento.”

“La memoria”, León Gieco

A memória é um tema que, desde o início de nosso estudo, está escrita como a
espinha dorsal da constituição da figura materna que expõe suas dores na Plaza e
ressignifica a presença do filho desaparecido em discursos de combate. Controversos, é
também sobre a memória que surgem impasses capazes de romper com a união que, por
quase nove anos, escreveu a história das Madres de Plaza de Mayo.
Com efeito, é preciso que façamos algumas aclarações a respeito do que hoje se
entende sobre esse movimento, dividido em duas linhas bem distintas ideologicamente.
Conhecidos como Línea Fundadora e Asociación Madres de Plaza de Mayo, ambos
trazem em si a imagem da mãe maculada pelo desaparecimento do ente querido,
entretanto, distanciam-se em aspectos fundamentais, que vão desde os escritos dos
lenços brancos às relações de enfrentamento e resistência por elas desempenhadas.
72

Raramente diferenciadas nos estudos acerca dessa presença materna feminina


insurgente, as duas representações nos demandam o detalhamento de questões capazes
de justificar a escolha mais específica de nosso objeto, uma vez que esta tese se dedica
aos escritos e representações de memória e luta das que integram a Asociación Madres
de Plaza de Mayo.
Plenamente conscientes acerca da importância que ambas as linhas configuram
para o traçado de um país livre das violências do Estado militar, nossa opção é marcada
pelo constante enfrentamento e rechaço às tentativas conciliatórias propostas com o
retorno da democracia à Argentina. Neste tempo, com a possibilidade de um discurso
talvez mais ameno e o reconhecimento do Estado em relação aos atos violentos
cometidos durante a ditadura militar, é que elas decidem separar-se e escrever, com tons
completamente distintos, as linhas que agora as distanciam.
Como já mencionado, a primeira agrupação das Madres, em 30 de abril de 1977,
foi composta por 14 mães que se reuniram na Plaza de Mayo. Com o desaparecimento
das três integrantes – Azucena, Esther e Mary Ponce – em dezembro deste mesmo ano,
e com as perseguições sucessivas ocorridas durante a copa do mundo de 78, a repressão
às Madres fez com que elas optassem pelos encontros nas igrejas, a fim de que
pudessem seguir com as reuniões semanais. A migração entre esses espaços lhes deu a
dimensão de uma repressão direcionada a elas. E, entre “Pai Nosso” e “Ave Maria”, elas
se comunicavam “Pai Nosso que estás no céu, vamos a tal dia, a tal lugar” (BONAFINI,
in: Historia de las Madres de Plaza de Mayo, 2003, p. 24).
A indiferença de uma parcela considerável da sociedade civil e o silêncio dos
meios de comunicação são imagens presentes nas memórias sobre a vitória na Copa do
Mundo de 1978, período em que se propagou uma postura antinacionalista sobre as
Madres, em decorrência da oposição ao momento de entusiasmo nacional. Entretanto, é
através da televisão holandesa que elas conseguem chegar a outros países; durante as
transmissões futebolísticas, uma emissora deste país, em vez de passar os jogos,
começou com a exibição das Madres na Plaza.
A ruptura com a imagem esperada possibilita não somente o cruzamento de uma
fronteira, mas marca, de forma considerável, a passagem de um país convulsionado pela
realização de um evento esportivo em seu território, dividido entre os passes
futebolísticos e os impasses políticos. A Plaza interrompe a cena ao exibir as Madres e
delatar a imagem dos desaparecidos. O país, aonde todos os olhares do mundo se
convergiam naquele momento, expõe a vergonha dos crimes cometidos. A paisagem
73

alardeada é transformada em matéria jornalística na Holanda, país que se entrega como


o primeiro porta-voz do corpo dilacerado pela ausência.
Tal reconhecimento possibilitou que elas começassem suas primeiras viagens ao
exterior. No final de 1978, elas vão aos Estados Unidos e à Itália para participarem de
entrevistas e dialogar com figuras antes conhecidas somente pelos jornais. Obviamente,
o protagonismo conquistado por elas provocou uma repressão ainda maior ao voltarem
à Argentina. Em Historia de las Madres de Plaza de Mayo, livro editado em 1996,
podemos encontrar o relato de Hebe de Bonafini (Madre presidente da Asociación
Madres de Plaza de Mayo), a respeito de algumas estratégias do governo militar contra
as marchas de quinta-feira:

“Todas as quintas-feiras nos levavam presas, e também aí decidimos que se uma ia


presa, íamos todas. Não era que levavam 40 ou 60 porque queriam, não, nós nos
prendíamos, e por isso também os outros diziam que éramos loucas. Mas nós,
quando ia uma Madre presa, dizíamos não, se vai uma, vamos todas. Se não
cabíamos no primeiro camburão, cabíamos no segundo ou no terceiro. Se não nos
levassem, apresentávamo-nos na delegacia: ‘Senhor, eu quero estar presa com todas
as Madres!’. O delegado não entendia nada por que queríamos estar presas, mas
juntas fazíamos muitíssima força. E dentro da delegacia também lhes fazíamos as
grandes confusões. Soltavam-nos uma de cada vez, na madrugada, mas havia Madres
que tinham tanta força que também ficavam do lado de fora da delegacia dando
voltas ao redor até que liberasse todas.” 58 (BONAFINI, 1996, p. 26)

É nesse contexto que elas aprendem a se defender e se reconhecer ainda mais no


coletivo. Contra os gases que a polícia lhes atirava, elas levavam bicarbonato e garrafas
com água, a fim de permanecerem na Plaza, juntas. Também, em 1979, é instituída
formalmente a Asociación Madres de Plaza de Mayo (14/05/1979), uma entidade civil
idealizada e composta pelas mães de detidos-desaparecidos durante a ditadura militar
argentina. Em 22 de agosto de 1979, é assinado um documento em que se reconhece
juridicamente o movimento.
Em 1980, elas retomam a ocupação de seu genuíno cenário de resistência.
Rodeadas de metralhadoras e cães policiais, elas decidem não sair mais desse espaço e
ratificam o caráter de enfrentamento que deu forma e diretriz ao percurso por elas
empreendido. Com o apoio financeiro de grupos solidários europeus, sobretudo com o

58
Texto original: “Todos los jueves nos llevaban detenidas, y también ahí decidimos que si una iba presa, íbamos
todas. No era que nos llevaban a 40 o 60 porque ellos querían, no, nosotras nos poníamos detenidas, y por eso
también los demás decían que éramos locas. Pero nosotras, cuando iba una Madre presa, decíamos no, si va una
vamos todas. Si no cabíamos en el primer patrullero en el segundo o en el tercero. Si no nos llevaban, nos
presentábamos en la comisaría: "¡señor yo quiero estar presa con todas las Madres!" No entendía nada el comisario
por qué queríamos estar presas, pero juntas hacíamos muchísima fuerza. Y adentro de la comisaría también les
hacíamos los grandes líos. Nos soltaban de a una, a la madrugada, pero había Madres que tenían tanta fuerza que
también se quedaban fuera de la comisaría dando vueltas alrededor hasta que nos iban largando a todas.”
74

59
auxílio das “Mulheres Holandesas” , as Madres publicam, em julho de 1980, seu
primeiro boletim informativo. O apoio externo surge como uma possibilidade de
emersão do silêncio perpetrado nacionalmente. Logo, a voz outrora emudecida passa a
ecoar em outros contextos, a outros ouvintes solidários à tragédia por elas
experimentada.
Além desse importante passo rumo à elaboração escrita de memória, elas
conseguem sua primeira sede, localizada à Rua Uruguai, 694, 2º piso, um lugar capaz de
abrigar a luta e possibilitar a conformação dos novos planos e ideais dessas mulheres
egressas da esfera privada, dispostas a abalar completamente o cenário da esfera
pública.
De autoria desconhecida, o texto que serve de capa para esse primeiro
informativo das Madres revela o sofrimento daquela que nasce com o desaparecimento
do filho e por ele segue, além de resgatar seus ideais e incorporar na cena discursiva
uma referência fundamental à composição desse novo ator político: a imagem da Mãe
Coragem, personagem homônima da peça de Bertolt Brecht (1939) 60 :

“Sabes que o caminho é longo e sinto que tu, Mãe Coragem, estás disposta a caminhá-lo
apesar de todas as dificuldades de portas que se fecham, de noites sem estrelas, mas
estás firme e decidida porque vives a esperança para construir pelo Amor um mundo
mais justo e humano para todos.” 61

Identificado como Madres de Plaza de Mayo de La Plata, o documento, embora


pertencesse ao grupo, era rodado de forma precária e doméstica na cozinha da
residência de Hebe de Bonafini. Com o desenho de uma pomba atrás das grades, de
onde sai uma luz que ilumina o texto supramencionado, o boletim de poucas páginas é
uma mescla de recortes bíblicos, textos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
e notícias diversas. Vale ressaltar ainda que, na primeira página, acima do endereço, há
o desenho de duas mãos segurando outras grades, o que poderia significar, naquele

59
A escritora Mies Bouhys e a esposa do primeiro ministro holandês, Lizbeth del Uyl, formaram com um grupo de
mulheres (sindicalistas, diretoras de cinema, jornalistas, artistas, modistas, bailarinas) a primeira agrupação de
solidariedade às Madres.
60
Embora haja a referência à personagem brechtiana neste primeiro momento, o que podemos identificar na
composição destes textos é um percurso um pouco distinto das protagonistas criadas pelo dramaturgo alemão. Como
já mencionamos, outra referência será possível de ser traçada, com base na imagem de Pelagea Wlassowa, de “A
Mãe”, cuja relação pelo viés do embate e do enfrentamento se verifica mais no contexto democrático após 1986.
61
Texto original: “Sabes que el camino es largo y siento que tú, Madre Coraje, estás dispuesta a caminarlo a pesar de
todas las dificultades de puertas que se cierran, de noches sin estrellas, pero estás firme y decidida porque vives la
Esperanza para construir por el Amor un mundo más justo y humano para todos” (1º Boletim, fotocópia cedida pela
Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo).
75

tempo, a esperança de que os filhos estivessem presos e, a qualquer momento,


pudessem reaparecer.
O informativo, extremamente representativo, traz na segunda página um sumário
composto pelos itens: apresentação; quem somos; trabalhos, gestões e apresentações
realizadas desde janeiro de 1980; colaboração de Madres; perguntas que as crianças
fazem; perguntas que as Madres fazem e, por último, crianças e bebês desaparecidos. A
apresentação do documento é feita em letras maiúsculas, definindo-o como: BOLETIM
DEDICADO À DIFUSÃO DE NOTICIAS SOBRE O PROBLEMA DETIDOS-
DESAPARECIDOS, seguido pelo artículo 3, da Declaração Universal dos Direitos
Humanos: “Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, e pelos
trechos bíblicos: “Não matarás” (Ex. 20, 13) e “Eu vim para que vivam e estejam cheios
de vida” (J.N. 10, 10).
Finalmente, sobre esse primeiro momento de encontro com a escritura publicada
do sujeito coletivo, é válido analisarmos o texto que integra o item “apresentação”, uma
vez que a personagem materna se reitera na tessitura discursiva:

“Com o presente damos vida ao BOLETIM que permitirá que todas as mães,
familiares e todo ser SENSÍVEL, se informe sobre nossos problemas, nossas dúvidas,
compartilhe nossa dor e nos ajude a solucioná-los ou pelo menos suportá-los.
A saída deste Boletim será periódica. Desejamos que chegue a mãos de seres
compreensivos, mas também ansiamos ter respostas de nossas inquietações.
A perspectiva é ecumênica, sem vínculos partidários. Seus objetivos são
humanitários. ” 62 (Idem)

Timidamente, elas escrevem àqueles com os quais necessitam compartilhar o


que sentem: a dor. São os seres sensíveis e compreensivos que elas escolhem como seus
co-enunciadores, um caminho que define, na escrita com maiúsculas, essa busca pela
cumplicidade. A palavra “ecumênica” demarca enviesadamente a mirada religiosa ainda
presente nesse momento da agrupação, imagem que se repete em outras citações
bíblicas do informativo.
Ainda em 1980, outra importante transformação marca a história das Madres: o
lema “Aparição com vida”. Complexa e maduramente engendrada, a frase terá muitos

62
Texto original: “Con la presente damos vida al BOLETIN que permitirá que todas las madres, familiares y todo ser
SENSIBLE, se informe de nuestros problemas, nuestras dudas, comparta nuestro dolor y nos ayude a solucionarlos o
por lo menos sobrellevarlos. / La salida de este Boletín será periódica. Deseamos que llegue a manos de seres
comprensivos, pero también ansiamos tener respuestas de nuestras inquietudes. / La perspectiva es ecuménica, sin
vínculos partidarios. Sus objetivos son humanitarios.”
76

significados, entre eles, uma possível resposta à declaração de Ricardo Balbín 63 . Outra
justificativa para a criação do lema é o episódio ocorrido na viagem aos Estados Unidos,
em dezembro de 1980 64 . A declaração dos pais de uma desaparecida é motivo de
conflito, ao afirmarem a crença de que os desaparecidos estariam mortos 65 . Indignadas,
as outras Madres presentes argumentaram sobre o equívoco dessa declaração, o que
provocou uma separação entre o grupo e os outros organismos que estavam junto a elas
nesta viagem.
Surge, então, em 5 de dezembro de 1980, um documento no qual as Madres
afirmam seu lema "Aparição com vida", um sintagma preposicionado capaz de
questionar o sistema e ratificar a resistência em relação às possíveis declarações que
afirmassem a morte de seus filhos, sem que para isso houvesse culpados. Alguns anos
depois, essa frase estampará os lenços brancos das Madres que permanecem na
Asociacíon, conferindo-lhes o enfrentamento como um legado marcado pela memória
ao sangue de seus filhos.
Se o boletim abre uma possibilidade discursiva, em 1981 isso se amplia em
outras manifestações textuais. Estampado com a imagem de um pássaro voando, é
66
publicado o primeiro Poemario: Cantos de vida, amor y libertad , cujo nome deve ser
lido como uma referência a Cantos de vida y esperanza (1905), do poeta nicaragüense
Rubén Darío. Na contracapa, uma gaiola vazia com as portas abertas é o desenho que
justifica a frase que o acompanha: “Isto não é uma jaula vazia; é um pássaro em
liberdade” (1985, versão fac-similar da primeira edição). Dedicado à Azucena Villaflor
De Vincenti, o livro traz como epígrafe um trecho de Ernesto Cardenal: “Nossos
poemas não podem ser publicados ainda. Circulam de mão em mão, manuscritos, ou
copiados em mimeógrafo. Mas um dia se esquecerá do nome do ditador contra o qual
foram escritos, e seguirão sendo lidos” 67 (idem).

63
Em 1979, o importante dirigente da União Cívica Radical (UCR), Ricardo Balbín, declara, em viagem à Espanha:
“yo no creo en los desaparecidos, yo creo que están muertos, y a los muertos no se los busca, se los llora”. In: 30.000
Revoluciones, 2007, p. 8.
64
A viagem era composta por uma delegação de Madres, Abuelas e familiares de desaparecidos. Tal momento
consistia na tentativa pressão aos grupos norte-americanos a respeito da situação argentina, além de servir de escala
para as viagens à Suécia e à Noruega, onde os familiares participariam da entrega do Prêmio Nobel a Adolfo Pérez
Esquivel, um importante colaborador para o reconhecimento das Madres, tanto na Argentina quanto no resto do
mundo.
65
O caso se trata de Chela e Emilio Mignone, pais de Mónica María Candelaria, desaparecida em maio de 1976.
66
Ao dedicar-nos Poemarios, em 2007, Juana de Pargament, uma das quatorze Madres presentes à tarde de 30 de
abril de 1977, relatou que os textos foram entregues a uma gráfica, onde quem os recebeu, para que não fosse
reprimido, disse-lhes: “eu não recebi nada, não sei nem quem são vocês”.
67
Texto original: “Nuestros poemas no se pueden publicar todavía. Circulan de mano en mano, manuscritos, o
copiados en mimeógrafo. Pero un día se olvidará el nombre del dictador contra el que fueron escritos, y seguirán
siendo leídos.”
77

A escolha desses poetas nicaragüenses não pode ser vista apenas como uma
mera citação. Ao recortarem um fragmento de Ernesto Cardenal e colocarem em seu
primeiro livro um título que traz em si uma imagem precedente, as Madres delimitam
também as similitudes e personagens afins a essa trajetória por elas traçada. Tal aspecto
pode ser conferido em outros momentos, como na citação do episódio envolvendo o
poema “Hagamos un trato”, de Benedetti, poeta reiterado em outras passagens dessa
escritura. Com efeito, o que vemos surgir dessa inserção de vozes é a formação de uma
“família intelectual”, com a qual a personagem que escreve suas memórias cria novos
vínculos de parentesco pelo viés da literatura. Através da leitura, ela elege seus
parceiros e os integra ao ideal de luta que também constitui esse jogo. Nessa
perspectiva, podemos pensar no diálogo e no resgate de algo que o historiador mexicano
68
Carlos Monsiváis considera como “um culto por Nossa América” , ressemantizado no
plano de construção literária empreendido pelas Madres, ao estabelecerem um pacto
moral entre elas e os intelectuais presentes nesses textos.
O encontro com a literatura acrescenta novas características à composição do
ator político Madre. Parida como mais uma alternativa de contar o horror e dar voz à
dor, essa escritura se distancia dos documentos e discursos proferidos publicamente,
cujos objetivos eram o registro e a busca dos desaparecidos junto às instâncias oficiais.
Com outra perspectiva, Cantos de vida, amor y libertad (posteriormente, composto por
mais dois Poemarios) assinala uma etapa em que a escrita de si propõe o início de uma
projeção testemunhal na poesia. Os textos, reiteradamente marcados pela dor da
primeira pessoa do singular, demarcam a ferida pessoal e intransferível da mãe, quem se
julga semelhante somente às suas companheiras de luta e à Virgem Santíssima, imagem
presente nas repetições de termos que recuperam a via crucis de Jesus Cristo.
Um olhar atencioso sobre esse primeiro intento literário – ainda que o propósito
não fosse o fazer literário – representa uma alternativa de leitura dessas personagens por
outro viés, no qual a escritura lhes confere uma mirada catártica, e o corpo, vitimado
pela ausência, ergue-se inclinado para olhar sua própria condição e escrevê-la em
memórias poéticas. E, se a Plaza é o lugar onde elas se formam coletivamente, a

68
Em “De “las esencias nacionales”” (Aires de Familia –cultura y sociedad en América Latina. Barcelona:
Anagrama, 2000), Monsiváis analisa o posicionamento de alguns intelectuais, no início do século XX, a respeito da
defesa de uma iberoamericanidade, a partir de crenças totalizadoras (como a mítica imagem projetada no povo latino-
americano, com sua fé e autenticidade). Entre os autores mencionados, destacam-se o peruano José Carlos Mariátegui
(1895-1930), com sua proposta de um pensamento genuinamente hispano-americano e seu conceito de “raça”, e o
argentino Manuel Ugarte (1875-1951), com as idéias de uma representação nacional condizente à história do povo
argentino, proposta que o autor desenvolve em seu livro de ensaios Patria Grande (1913).
78

escritura de si é o simbólico espaço onde elas voltam a se individualizar, representando,


dessa forma, um dos raros momentos – na constituição/permanência do movimento –
em que o sujeito volta a ser conjugado no singular, ainda que sua dor e seu lamento
ecoem mais de 30.000 mil vozes, com as quais esse sujeito forma seu coro e entoa,
publicamente, seu páthos revestido por lenços brancos que rondam a Plaza de Mayo.
Análoga à idéia acerca da importância do encontro com a escritura, há uma
emergência do gênero feminino, bem como sua valorização no âmbito intelectual, o que
considera Adriana Pérsico, ao tratá-lo como viabilizadores de uma crítica que, imersa na
crise de valores, revê e se dá conta dessas vozes e testemunhos que interagem numa
relação desestabilizante com as esferas de poder:

“A máquina, a mulher, a louca Argentina, Amalia, Elena, Molly Bloom, Ana Livia
Plurabelle, Hipólita, Eva Péron: todas, personagens literárias e históricas, nomes
próprios e anônimos – loucas argentinas, mães de Praça de Maio – têm idêntico
estatuto ao aceitar a primeira tarefa encomendada: ser testemunhas, contar, cantar.
Em síntese, é a literatura, mulher e máquina, a encarregada de conservar a memória
comunitária: um belo anacronismo imortal, questionador que salva ao mundo ao dar-
lhe um sentido, a ordem do relato”. 69

Ao incorporarem a missão de cantar, contar e reviver semanalmente narrativas


insepultas, as Madres se colocam em marcha, performaticamente, como um monumento
vivo e caminhante de memória, além de tonificarem a consolidação desse éthos formado
coletivamente. A identidade complexa que configura o movimento não pode ser
dissociada do reconhecimento alcançado com a ajuda de outros países, aspecto que
redimensiona (e agrega novos discursos) o eco dessa voz reclamante. A partir do
momento em que elas conseguem mostrar-se a outros espaços e sujeitos, a Plaza, por
conseguinte, é o cenário delas, o que lhes garante, de certa forma, o direito de ocupá-la e
fazer desse local um abrigo que preserva a memória dos desaparecidos e a trajetória por
elas empreendida. A presença delas, inserida cenograficamente na concepção
imagético-paisagística da Plaza, atualiza questões que remontam aos objetivos pelos
quais seus entes queridos entregaram a vida, e a história, nesta perspectiva, é atualizada
diariamente com suplementos e testemunhos de personagens cujas missões são
relembrar e seguir relembrando. Na prosa ou na poesia, nos discursos ou nas marchas, o

69
Texto original: “La máquina, la mujer, la loca Argentina, Amalia, Elena, Molly Bloom, Ana Livia Plurabelle,
Hipólita, Eva Péron: todas, personajes literarios e históricos, nombres propios y anónimos – locas argentinas, madres
de Plaza de Mayo – tienen idéntico estatuto al aceptar la primera tarea encomendada: ser testigos, contar, cantar. En
síntesis, es la literatura, mujer y máquina, la encargada de conservar la memoria comunitaria: un bello anacronismo
inmortal, cuestionador que salva al mundo al darle un sentido, el orden del relato.” (In: “Intelectuales hoy: ni
anfitriones, ni turistas”. PÉRSICO, 1996: 441)
79

encontro com o passado é um ritual de renascimento, assinalado pela companhia de


30.000 desaparecidos que com elas ressignificam o porvir e reivindicam a justiça.

2.3. Cantos de espera, ausência e esperança

“Le rodearon millones de individuos,


con un ruego común: “¡Quédate hermano!”
Pero el cadáver ¡ay! Siguió muriendo
entonces todos los hombres de la tierra
le rodearon; les vio el cadáver triste, emocionado:
incorporose al primer hombre, echose a andar…”
70
“Masa”, César Vallejo.

Narrar o vivido é um trabalho de memória, uma tarefa que por si demanda


processos de seleção e conservação da matéria experimentada, atualizada no discurso e,
sobretudo, reelaborada a partir do momento em que se situa o narrador. Logo, uma
escritura que se proponha a rememorar é constituída por um passado que retorna no
presente do fazer literário, misturando as imagens guardadas às sensações, aos anseios
e, em relação a textos como os das Madres, às possibilidades narrativas de um projeto
para o porvir.
Essa escrita de memória pode ser amplamente encontrada no contexto atual;
estamos inseridos num período em que o testemunho, como já mencionado, responde às
carências de experiências dos leitores, ao permitir-lhes a vivência de algo que se torna
compartilhado na composição literária da escrita em primeira pessoa. Em muitas
publicações, o indicativo “não-ficção” é o que preserva e possibilita o pacto com o
leitor. Uma vez suspenso seu projeto ficcional, o texto ganha um caráter que dele extrai
a elaboração necessária ao literário; um recorte do real é entregue a quem lê com a
crença apoiada nesse indicativo.
Todavia, se pensarmos nas seleções e conservações necessárias à narrativa da
memória, veremos que não há outra forma de narrar a experiência senão pela elaboração
desse material. Em “Funes, o Memorioso” (1944), de Jorge Luis Borges, encontramos o
melhor exemplo para esse intento impossível. A personagem, que tudo guarda
minuciosamente do passado, não consegue dar voz à experiência, pois “pensar é
esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.” (BORGES, 1989, p. 97). Ao não reelaborar
suas memórias, ela se encontra com a impossibilidade de compreensão do que pode ser

70
Texto extraído de Poemarios 3.
80

retido dessa vivência: “No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores,
quase imediatos” (idem).
O conto pode ser lido, ainda, como um ensaio sobre a narrativa de memória, ao
integrar ao projeto literário questões a respeito do problema que marca essa escritura, na
qual a abstração e as generalizações são fundamentais à voz que se situa no presente
para recontar o passado. Em um percurso distinto da personagem borgiana, encontramos
O enteado, de Juan José Saer. Inspirado na vida do grumete Francisco del Puerto, o
autor traz à trama narrativa uma história do século XVI, entretanto, é justamente pela
proposta de uma não-biografia que podemos ter acesso ao relato sobre a personagem
que viveu entre povos originários da América do Sul, convivendo com costumes alheios
à sua experiência inscrita num plano de civilização.
O projeto narrativo dessa memória é o que dá forma à composição de O enteado,
proposta presente na leitura sobre as lembranças junto aos indígenas. O trajeto do
encontro à permanência é a paisagem à qual o narrador volta seu olhar, um cenário
revivido e permeado pelas distâncias de tempo e espaço. Descentrada no presente, essa
matéria que dá forma à escritura do relato passa por uma reelaboração, processo viável
ao projeto de rememória, a partir do ponto em que o retorno ao passado é mediado pela
experiência decantada, selecionada e entregue ao leitor, na medida certa da instabilidade
que sustenta esse intento de resgate:

“[…] a recordação de um fato não é prova suficiente de seu sucedido verdadeiro, do


mesmo modo que a recordação de um sonho que acreditamos haver tido no passado,
muitos anos ou meses antes do momento que estamos recordando-o, não é prova
suficiente nem de que o sonho teve lugar no passado longínquo e não na noite
imediatamente anterior ao dia em que estamos recordando-o, nem de que pura e
simplesmente tenha sucedido antes do instante preciso em que os estamos
representando como já sucedido.” 71 (Idem, p. 40)

Com efeito, o pacto ficcional é ratificado, e as memórias evocadas são


apresentadas com marcas que denotam seus elementos formadores: seleção,
conservação e, principalmente, modelação. A incerteza dos fatos e dos tempos em que
eles ocorreram conduz o leitor à necessária instabilidade frente ao relato das lembranças
do narrador, o qual só é possível pela abstração e possíveis generalizações, aspectos
ausentes no mecanismo adotado por Funes, de Borges.

71
Texto original: “el recuerdo de un hecho no es prueba suficiente de su acaecer verdadero, del mismo modo que el
recuerdo de un sueño que creemos haber tenido en el pasado, muchos años o meses antes del momento que estamos
recordándolo, no es prueba suficiente ni de que el sueño tuvo lugar en el pasado lejano y no en la noche
inmediatamente anterior al día en que estamos recordándolo, ni de que pura y simplemente haya acaecido antes del
instante preciso en que los estamos representando como ya acaecido”
81

Nesse fluido panorama das recordações, após dez anos como cativo da tribo
indígena, o grumete retorna à Europa e, já na posteridade, resolve escrever suas
memórias sobre os anos na América. O olhar da maturidade faz com que as narrativas
sobre os integrantes da tribo adquiram o estranhamento necessário à compreensão desse
encontro com o Outro, entidade que aparece generalizada e é descrita pela sinédoque: os
índios não têm uma forma física específica, mas ganham imagens através das descrições
de seus costumes, entre estes o reiterado banquete antropofágico do qual o grumete
consegue sobreviver:

“Parado imóvel entre os índios imóveis, olhando fixo, como eles, a carne que assava,
demorei uns minutos para me dar conta de que por mais que me obstinasse a engolir a
saliva, algo mais forte que a repugnância e o medo se obstinava, quase contra minha
vontade, que frente àquele espetáculo que estava contemplando na luz das chamas me
fez água na boca” 72 (SAER, 2008, p. 60).

A estranheza do banquete, imagem que sublinha a diferença cultural entre o


grumete europeu e os nativos da tribo indígena, configura-se como um acontecimento
capaz de desencadear as vivências e memórias do narrador, ao projetar tal momento, de
certa forma, como o momento de sua vida. Ao término da narrativa, o leitor se encontra
com a percepção da personagem acerca desses dez anos, tempo que marca sua vida e
retorna no presente da escritura para delatar sua mais profunda (e talvez única),
experiência conservada. O aspecto cíclico, presente na reinserção dessas imagens,
caracteriza-se como a matéria constituinte do relato, sempre atualizado por outros
acontecimentos e personagens que, desde o primeiro estranhamento, são parte motriz da
narrativa.
A mirada do ancião é exposta pelo recorte de imagens desse tempo ao qual ele se
propõe a regressar-lembrar. Os fatos seguintes ao seu retorno à Europa, os anos até a
maturidade e a passagem dessa época à velhice não compõem a escritura; tornam-se a
margem chamada vida, que comporta, preserva e serve de abrigo ao vivido junto aos
indígenas:
“Ao que veio depois, chamo-o anos ou minha vida – rumor de mares, de cidades, de
pulsações humanas, cuja corrente, como um rio arcaico que arrastou os rastros do
visível, me deixou em um quarto branco, à luz das velas já quase consumidas,

72
Texto original: “Parado inmóvil entre los indios inmóviles, mirando fijo, como ellos, la carne que se asaba, demoré
unos minutos en darme cuenta de que por más que me empecinaba en tragar saliva, algo más fuerte que la
repugnancia y el miedo se obstinaba, casi contra mi voluntad, a que ante el espectáculo que estaba contemplando en
la luz cenital se me hiciera agua en la boca.”
82

balbuciando sobre um encontro casual entre, e com, também a ciência certa, as


estrelas. (Idem, p. 223) 73

Paralela a essa perspectiva de memória, podemos pensar na matéria que serve de


base para a compreensão literária das Madres de Plaza de Mayo. A experiência do
desaparecimento é o fato que marca o nascimento da Madre política, sujeito coletivo
que não se dissocia na elaboração textual, traçando, assim, um plano de memória ao
mesmo tempo individual e em parceria, mesclado com as experiências adquiridas com
outras Madres e, sobretudo, projetadas na imagem que recria, metaforicamente, volta a
parir o filho ausente.
Composto por 72 poemas, o primeiro esboço literário recebe um título
referencial: Poemario 1, livro dividido em três partes: “Cantos de Vida”, “Cantos de
Amor” e “Cantos de Liberdade”, as quais dão distintos tons à escrita da dor e à
representação do ente desaparecido. Configurado como um marco na constituição do
movimento Madres de Plaza de Mayo, ele reúne poesias das Madres, de outros
familiares e de poetas que a elas se dirigem.
Um caminho um pouco distinto será traçado nos dois volumes que integram a
coleção Poemarios. Nos volumes 2 e 3 74 , encontramos textos cuja autoria é dos detidos-
desaparecidos, alguns escritos antes do desaparecimento forçado e outros durante o
período de reclusão nas unidades penitenciárias argentinas, constituindo um valioso
material para o estudo de uma memória que só pôde ser publicada em decorrência da
insistência do amor materno 75 . Pelo caminho da publicação clandestina, as Madres
conseguem eternizar o elo inquebrantável com aqueles a quem o amor se tornou uma
questão de honra. Nos três tomos de Poemarios, encontramos referências às Madres
desaparecidas, às quais elas dedicam os livros, poemas e, também, estampam a foto de

73
Texto original: “A lo que vino después, lo llamo años o mi vida – rumor de mares, de ciudades, de latidos
humanos, cuya corriente, como un río arcaico que arrastrara los rastros de lo visible, me dejó en una pieza blanca, a la
luz de las velas ya casi consumidas, balbuceando sobre un encuentro casual entre, y con, también la ciencia cierta, las
estrellas.”
74
A respeito dos volumes 2 e 3 vale ressaltar que não encontramos as referências ao ano em que foram publicados.
Ao analisar os poemas que os integram, concluímos que foram lançados logo após o primeiro livro, uma vez que a
maioria dos textos é de 1981. Em decorrência da impossibilidade de trabalhar com a versão original, por se tratar de
uma impressão de baixa tiragem e clandestina, o material ao qual pudemos ter acesso são as versões facsilimares,
todas editadas em março de 1985, momento em que o país já vivia seu período de democracia e as Madres de Plaza
de Mayo já tinham recursos próprios para financiar suas publicações.
75
Como nosso objeto é a escritura da figura materna, consideramos que tais textos, embora extremamente
representativos para a constituição da Madre, não devam ser aqui analisados. O arquivo poético composto pelos
textos maternos é muito extenso e, para que pudéssemos dedicar-nos a isso, optamos pela leitura dos poemas dos
detidos-desaparecidos, mas não por seu específico conteúdo literário.
83

Azucena Villaflor de Vincenti, a “irmã” acima de quaisquer diferenças ideológicas que,


como veremos mais adiante, dividem o movimento.
Além de significar um passo importante rumo à escritura, Poemario 1 é o único
(dentro do corpus escolhido neste estudo) que reitera a cada página a ferida aberta da
Madre dilacerada pela ausência do filho. Em outros momentos, como nos livros
publicados na década de 90, esta personagem já aparece na condição de desaparecido –
insepulto, e adquire dimensões que corroboram a imagem do mártir, do vivo
combatente capaz de gestar a luta e as novas buscas do ator político originado pelo
trauma da ausência e pelo encontro na dor semelhante.
A respeito dessa primeira fase, é interessante observar a representatividade das
Madres neste período: junto aos outros livros que compõem a coleção Poemarios, estes
textos são escritos antes de 1986, ou seja, antes da separação do movimento e,
sobretudo, antes das oficinas literárias, nas quais haverá o interesse e a necessidade de
encontro com o fazer literário, aspecto que denota uma etapa de maior maturação e
elaboração discursiva por parte das personagens que escrevem. O dever narrativo marca
a urgência de reelaboração do inefável espanto de quem sobrevive para lembrar a perda,
recriando-se como personagem capaz de dignificar a memória dos ausentes.
Com base na perspectiva de uma elaboração ainda inicial dessa personagem
desolada, a tragédia é o gênero que melhor dialoga com as linhas do primeiro livro, com
passagens que nos conduzem às representações propostas por Eurípides em As Troianas
(415 a.C). A imagem de Hécuba, a rainha de Tróia que perde seus filhos e esposo para
tornar-se escrava de Odisseu, é a mais presente na constituição da personagem que
escreve suas angústias e ratifica sua condição de mãe de desaparecidos.
Em “Cantos de Vida”, esses corpos hecúbicos desfilam em versos que
confirmam o sofrimento causado pela ausência e pela incerteza. Escrito como “chagas”
e reiterado pela palavra “dor” (p. 13, 19, 32, 37, 40, 42 e 48), esse sofrimento aparece
em termos como “cruz” (p.19, 22, 29 e 31), “calvário” (p.11, 16, 23) e “martírio” (p.15,
42), e faz com que a personagem possa ser lida como uma mescla entre as trágicas
heroínas troianas e a tradução ocidental dessa dor, a Virgem Maria, a quem evocam e se
assemelham em poemas como: “Imaculada Mãe de Deus” (p.15), “Noite longa, noite
escura” (p.16), “O que vive uma vez, não morre jamais” (p.29) e “Onde estão nossos
filhos?” 76 (p.42). A evocação e a parecença se completam nos versos:

76
Títulos originais: “Inmaculada Madre de Dios”, “Noche larga, noche oscura”, “El que vive una vez, no muere
jamás” e “¿Dónde están nuestros hijos?”.
84

“Senhora dos céus


com os olhos ressecados pelo castigo
te rogamos
ajude os filhos que tivemos
em teu dia
obrigadas a entregar três mães fomos
Esther, María e Azucena.
Elas foram as escolhidas
nos sentimos com a fé empalidecida
77
pela oferenda sagrada que te fizemos [...]”
(María del Rosario, 1981, p.15)

“[...] ante a cruz do Cristo agonizante,


Sua mãe esperava consolo,
Mas o mundo alheio a seu calvário,
Deixou só Maria e sua dor.
Também nós, mães argentinas,
Estamos sozinhas ante o sacrifício [...]” 78 (María del Rosario, 1981, p. 16)

“[...] Crucificaram também ao Senhor.


Resta-me o orgulho de te haver tido.
Não importa, querido, o que eu tenha sofrido [...]” 79
(Nélida C. Fiordeliza de Chidichimo, 1981, p.29)

“[…] Oh, Jesus! Tu também foste uma criança, faça que logo
nos devolvam estes filhos que perdemos...
Ilumina, faça com que entendam a dor que todas sentimos,
porque eles de uma Mulher como todos nasceram.” 80
(Delia Pollolla, 1981, p. 42)

A presença do sagrado, como único caminho capaz de livrar a personagem de


sua dor, aparece em 19 poemas dos 34 que compõem a primeira parte do livro. Nesse
contexto, a palavra “Deus” (p. 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 20, 21, 23, 24, 25, 26, 27 e 42)
é o vocativo que presentifica a incerteza da Madre, sendo a quem ela clama por justiça e
milagres, e questiona o porquê de seu pesar. Lido nessa escritura, o imaginário afetivo
mítico da personagem escreve a quem não podem ser endereçados seus documentos e
testemunhos oficiais. Escolhido como interlocutor, Deus é apresentado como uma
importante personagem aliada à sua luta, capaz de ser compreendida também por
Virgem Maria e Jesus, entidades de um triângulo que, de acordo com o Cristianismo,
sofreu para nos redimir, e com as quais ela forma o simbólico quadrilátero de penas e
injustiça.

77
Texto original: “Señora de los cielos / con los ojos resecos por la pena / te rogamos / ayudes a los hijos que tuvimos
/ en tu día / obligadas a entregar tres madres fuimos / Esther, María e Azucena. / Ellas fueron las elegidas / nos
sentimos con la fe empalidecida / por la ofrenda sagrada que te hicimos”.
78
Texto original: “ante a cruz do Cristo agonizante /Sua mãe esperava consolo / mas o mundo alheio a seu calvário /
deixou só Maria e sua dor / também nós, mães argentinas / estamos sozinhas ante o sacrifício”
79
Texto original: “Lo crucificaron también al Señor. / Me queda el orgullo de haberte tenido. / No importa, querido,
lo que yo he sufrido”
80
Texto original: “Oh, Jesús ! Tu también fuiste un niño, haz que pronto / nos devuelvan estos hijos que perdimos…/
Ilumina, haz que entiendan el dolor que todas sentimos, / porque ellos de una mujer como todos han nacido.”
85

A esse “quadrilátero” agregam-se outras personagens que, embora não apareçam


escritas, dão forma ao texto. Metaforicamente, o coro das virgens e viúvas troianas
escravizadas ressoa em muitos versos de “Cantos de Vida”, ao trazer à luz as presenças
de Cassandra, Andrômaca, e da já mencionada Hécuba. Chorando por chagas parecidas,
motivadas por causas distintas, as mulheres troianas e argentinas travam um diálogo
onde as vozes da tragédia ganham vida em corpos que se substituem aos de seus filhos,
em corpos agonizantes e arrebatados pelo desconhecido, mutilados de esperança.
Com efeito, a palavra “esperança” não aparece em nenhum dos 34 poemas. Por
outro lado, o verbo “esperar” escreve a ação daquela que não tem outra escolha, exceto
conjugá-lo em todos os tempos e sujeitos possíveis de uma sintaxe cuja ordem a
personagem materna desconhece na dor individualizada. No entanto, é pelo viés do
encontro no trágico que a palavra ausente volta a ser gestada. É na formação coletiva,
no páthos ecoado por vozes de uma tragédia compartilhada (como o lamento do coro
troiano), que as Madres deixam de esperar em silêncio para clamar por esperança.
A seu infortúnio, o primeiro corifeu (virgens troianas) responderá:
“Desventuradas, míseras troianas! / Iremos conhecer as provações que nos aguardam. /
Vinde todas cá! Os gregos estão prestes a partir” (EURÍPIDES, 1991, p. 174). Assim
como os gregos, responsáveis pelas desgraças das mulheres de Tróia, a delicada noção
acerca do tempo configura-se como o maior verdugo das Madres que choram na
escritura por seus desaparecidos. Contra o tempo da espera, elas rogam pela justiça e
pela presença do filho. Esperando, a personagem escreve seu caminho num gerúndio
que, ao contrário, tem sua progressão rumo ao passado, tempo em que o ser querido é
relembrado por quem agoniza no presente. Na composição textual, ela escreve sua
espera e traça uma imagem circular que retorna para ilustrar, na escritura, a performance
semanal da cerimônia de encontro com o corpo insepulto, desempenhada nas marchas
da Plaza de Mayo.
No brado desesperado de Hécuba: “Ah! Tróia! Tróia muito infortunada! /
Deixaste de existir! / Desventurados os que te perdem, vivos ou finados!” (idem, p.
174), em decorrência do desterro, encontramos um diálogo literário com o poema
“Praça Maior”, em que María del Rosario diz:

“Nossas chagas ao sol, Plaza de Mayo,


te mostramos estas madres argentinas,
não entendemos porque tanta injustiça,
não sabemos de que culpas padecemos.
É que perderam suas almas, suas razões,
86

os homens desta terra?


Nos imolam por sermos mulheres,
que se abriram em frutos dignos,
honra do humano. [...]” 81 (María del Rosario, 1981, p.12)

O paralelo com a imagem personificada da terra reinsere-se em “Terra de


82
promissão e de paz” (p.28), poema que a autora dedica ao filho que cumpriria 30
anos. A terra aparece como o lugar que a abriga e, ao mesmo tempo, propõe uma
possibilidade reiterativa de questionamento a respeito do destino dos desaparecidos:

“Terra com gente que usa capuzes


Armas nas mãos
Terra que me deu Pátria
Fidalgos varões... patriotas cabais
Terra... não pode ser tua esta gente que não tem alma [...]”. 83
(Nélida C. Fiordeliza de Chidichimo, 1981, p. 28)

Aos versos dos poemas acima, o coro troiano dirá: “Agora, Musa, canta Ílion,
canta! / Seu triste fado há de inspirar um hino / à nossa voz plangente, um hino fúnebre.
/ Dedicaremos triste ode à Tróia.” (EURÍPIDES, 1991, p. 189). Juntas no diálogo
intertextual, as vozes das mulheres argentinas e troianas gritam anacronicamente em
defesa de seus filhos, jovens cuja sorte lhes foi negada saber e aos quais seus passos
transformaram-se em promessa de dignidade. Aliada à promessa de honra, sagrada pelo
sangue da maternidade, reúnem-se as imagens capazes de se tornarem reais na
simbologia criada pela mãe à espera do filho. Em “Quando voltes”, Ely – a Madre que
assina – gesta o porvir, ao apostar no projeto de escritura:

“Quando voltes, filhinha minha,


sei que haverá sombras em teus olhos
que nunca poderei arejar [...]
[...] Mas te juro, filhinha minha,
que eu inventarei sortilégios
até aliviar as sombras:
que eu lavarei tuas carnes
até dissimular as feridas
que eu buscarei o esquecimento
até aquietar tua memória [...]” 84 (Ely, 1981, p.36)

81
Título e textos originais: “Plaza Mayor”: “Nuestras llagas al sol, Plaza de Mayo, / te mostramos estas madres
argentinas, / no entendemos porqué tanta injusticia, / no sabemos qué culpa padecemos. / ¿Es que han perdido sus
almas, sus razones, los hombres de esta tierra? / Nos inmolan acaso por mujeres, / que se abrieron en frutos dignos, /
honra de lo humano”
82
Título original: “Tierra de promisión y de paz”. Não é fortuito pensar na escolha do termo promisión em lugar de
promesa, já que por Terra de Promissão nos recordamos da imagem do Paraíso, a Terra de Canaã, prometida por
Deus a Abraão.
83
Textos original: “Tierra con gente que usa capucha / armas en las manos / Tierra que diste mi Patria / hidalgos
varones…patriotas cabales / Tierra… no puede ser tuya esta gente que no tiene alma.”
87

Nesse aspecto cíclico, provocado pela tentativa de elaboração da ferida aberta


em poesia, é relembrada a voz de Hécuba, no episódio em que é morto seu neto, filho de
Heitor:
“Minha criança! Filho de meu filho!
Meu pobre neto! Violência iníqua!
Tiram-te a vida, à tua mãe, a mim!
Que está por vir? Que posso eu agora
fazer por ti, vencida pela sorte?
Oferecer-te os golpes com que firo
meu rosto e meu mortificado peito?
É pouco, eu sei, e é tudo quanto eu posso” (EURÍPIDES, 1991, p. 203).

A face lastimada oferecida por Hécuba, assim como o páthos entoado na


escritura das Madres, compõe o signo dos lenços brancos. O desaparecido reveste o
rosto da personagem, cuja vestimenta denota uma denúncia: o nome do filho e a data de
seu desaparecimento. Com efeito, a performance semanal e o texto produzido evocam o
luto impossibilitado pela falta do corpo, o qual, ao não ser pranteado e enterrado, ronda
abrigado pela Madre, ethos coletivo constituído a partir das ausências do ser querido e
da possibilidade de despedida.
A marcha, nessa perspectiva, é o caminho encontrado para narrar o
desaparecimento e denunciar o saldo trágico. O percurso circular reafirma a condição da
personagem que entrega seu corpo em lugar dos que fisicamente não podem mais
caminhar, parindo-os simultaneamente ao seu nascimento como ator político. O corpo
do jovem insepulto é substituído pelo da Madre. Dialogicamente, a proposta das
mulheres argentinas revive e ressignifica o adeus de Hécuba: “Membros meus muito
frágeis! Levai-me, / Conduzi-me na marcha forçada./ Comecemos a triste jornada / Até
nosso cruel cativeiro!” (Idem, p. 225).
Entre paralelos com o calvário mariano e os episódios trágicos de Eurípides, o
tom dos poemas de “Cantos de Vida” varia dentro de uma mesma sinfonia: a do adeus;
uma despedida que envolve, na mesma estação, a esperança, o corpo do ente
desaparecido e a mãe desolada, personagem cuja dor incurável se transforma numa
proposta de continuidade do desaparecido. Nessa embarcação, partem o corpo insepulto
e a personagem materna estrita à esfera privada, amedrontada pela dimensão do público
que ela, inconscientemente, já escandalizara. No porto, firmes, ficam as imagens da

84
Título e textos originais: “Cuando Vuelvas”: “Cuando vuelvas, nenita mía, / sé que habrá sombras en tus ojos / que
nunca podré aventar: / […] Pero te juro, nenita mía, / que yo inventaré sortilegios / hasta ahuyentar las sombras: / que
yo lavaré tus carnes / hasta disimular las heridas; / que yo buscaré el olvido / hasta aquietar tu memoria.”
88

Madre e de seu filho, agora presentificado nos 30.000 desaparecidos e nos lenços
brancos, como símbolos que não conjugam nem o esquecimento, nem o perdão.
Ainda em relação à constituição de Poemario 1, subseqüentes a “Cantos de
Vida” aparecem as partes “Cantos de Amor” e “Cantos de Liberdade”, mescladas por
escritos de familiares, poetas e outras Madres. Com uma mirada distinta da presente nos
primeiros momentos do livro, os textos que integram “Cantos de Amor” são marcados,
predominantemente, pelas vozes daqueles que não puderam lutar: dos 10 poemas, 6 são
de irmãos e filhos de desaparecidos. Além da importância encontrada nesses poemas, a
contribuição imagética é fundamental para delinear o contexto desse “capítulo”: antes
dos textos, aparece a xilogravura de uma mãe que segura um bebê, o qual é abraçado
também pelo pai, que aparece compondo a cena familiar. Na página seguinte, na parte
de trás da imagem, encontramos a nota: “o gravado foi feito no natal de 1980 por uma
detida” (p.52). O texto da epígrafe são os últimos versos do poema “Homem preso que
olha a seu filho ”, de Mario Benedetti:

“[...] Chora sem mais botija


são bobagens
que os homens não choram
aqui choramos todos

gritamos berramos moqueamos xingamos


maldizemos
porque é melhor chorar que trair
porque é melhor chorar que se trair
chora
mas não esqueça.” 85

Seguido por uma explicação anônima a respeito do amor, o trecho ilustra a


aposta neste sentimento como viés de injustiça: “Amor é palavra e o homem não o
86
entende. Não entende que o amor não suporta o esquecimento. (...)” (p.53). Numa
perspectiva de combate, o esquecimento é o principal caminho rumo à injustiça, e, a
isso, filhos, Madres e os que a estes se coadunam entregam sua escritura como uma
arma em defesa da memória.
A evocação divina aparece somente em três momentos; a palavra “Deus”
ressurge nos poemas “Onde estás” (p.65), assinado por uma criança de cinco anos,
“Meu querido filho” (p.70) e “Nosso mundo se partiu em dois” (p.72) 87 , ambos escritos
por Madres. A ausência é o elemento mais recorrente na composição textual de “Cantos
85
Título e texto originais: “Hombre preso que mira a su hijo”: “llorá nomás botija / son macanas / que los hombres no
lloran / aquí lloramos todos / gritamos berreamos moqueamos chillamos / maldecimos / porque es mejor llorar que
traicionar / porque es mejor llorar que traicionarse / llorá pero no olvides.”
86
Texto original: “Amor es palabra y el hombre no lo entiende. No entiende que el amor no soporta el olvido.”
87
Respectivamente, “¿Dónde estás?” “Mi querido hijo” e “Nuestro mundo se ha partido en dos”.
89

de Amor”, aparecendo em recordações nas quais o familiar revive os dias em que o ente
desaparecido vivia fisicamente a seu lado:

“[...] bom, agora isto é um segredo,


acontece que um anjo da lua me contou
que esqueceste minha “cara de queijo” [...]
eu estarei te esperando, PAPAI,
com a cara de queijo dos doze meses” 88
(trecho de “Te espero”, assinado por “Luchi a Papai”, 1981, p.55)

“[...] Onde estás, papai


que em meu leito de febre
quando pergunto “por que”
me respondem “que espere”
enquanto no rosto de mamãe
uma lágrima se perde?” 89
(trecho de “Onde estás?”, de Mariano C. Goitía, 1981, p.65)

Através das memórias fragmentárias desses familiares, a imagem do


desaparecido é tonificada pela saudade, componente fundamental para a escritura dos
poemas de “Canto de Amor”. A tristeza é o elemento usado para narrar o amor e
reivindicar o corpo, com vida, do ser querido. Logo, é na possibilidade de criação
poética que surge mais um viés de denúncia. Uma denúncia que, ao acusar o
esquecimento, nasce como um testemunho à margem, sem caráter jurídico, mas
essencial para a permanência/insistência de um olhar à memória sobre o período
ditatorial.
A palavra “esperança” dá seus primeiros indícios (p.57, 72) e antecipa o clima
de “Contos de Liberdade”, onde aparece em 9 páginas, sendo o vocábulo que mais se
repete. A presença deste termo somente na metade do livro possibilita-nos a
compreensão da passagem dessa personagem que escreve: das chagas das primeiras
linhas à conformação de um propósito de permanência, no qual o grito inicial é um dos
principais elementos constitutivos desse ator político coletivo. E se emprego do
substantivo “esperança” se abstrai no primeiro momento, o termo aparece
simbolicamente concreto nos versos dedicados às Madres. Em “Lenço Branco” (autor
desconhecido), a homenagem é realizada através da imagem que, talvez, mais as
represente:

88
Texto original: “Bueno, ahora esto es un secreto, / resulta que me ha contado un ángel de la luna / que te has
olvidado de mi “cara de queso” […] yo te estaré esperando, PAPA, / con la cara de queso de los doce meses.”
89
Texto original: “¿Dónde estás, papá, / que en mi lecho de fiebre / cuando pregunto “por que” / me responden “que
espere” / mientras en le rostro de mami / una lágrima se pierde?”
90

“Branco lenço,
lencinho branco,
que andas procurando,
que andas caminhando.
Lencinho branco
como a pombinha da paz,
que andas passeando a dignidade
de mulher ferida,
mas não vencida.
Lenço Branco
que acompanhas um sonho,
vais contando uma história,
vais acariciando uma página de glória
vais oferecendo amor,
vais dando calor,
vais semeando a esperança. [...]” 90 (p. 92)

O lenço e a Madre formam, assim, uma imagem indissociável ao projeto de


dignificação de memória dos desaparecidos. Reconhecidos como símbolos de
esperança, personagem e vestimenta compõem a cena que rememora os caminhos dos
ausentes, e pranteia publicamente sua condição trágica. É pelo caminho da dor também
que outros momentos do movimento podem ser compreendidos, etapas em que novas
configurações a respeito do ser ausente passam a exigir mudanças no processo de
reelaboração narrativa acerca memória daquele que não sobreviveu ao evento
traumático.
Em plena ditadura, as Madres se convertem numa dignatária imagem de
respeito, luta e resistência. Por conseguinte, essa transformação incomodará os distintos
poderes que se estabelecerão durante e após o período ditatorial. O coletivo e a força
adquirida dessa união materno-filial – capaz de subverter as ordens militares e
questionar a narrativa acerca dos desaparecidos – rompem-se com leis que questionam o
ideal e a busca que as mantinham fortes como um único grupo.

2.4. Conflitos externos, divisões internas

O ano de 1981 define várias diretrizes do movimento Madres de Plaza de Mayo.


Além da publicação de Poemarios, elas realizam, em dezembro, a primeira “Marcha de
Resistência”, com o lema “Aparição com Vida”, fato que serve como exemplo de
resistência física, discursiva e, novamente, memorialística. A conquista do espaço da

90
Título e texto originais: “Pañuelo Blanco”: “Blanco pañuelo, / pañuelito blanco, / que andas buscando, / que andas
caminando. / Pañuelito Blanco / como la palomita de la paz, / que andas paseando la dignidad / de mujer herida, /
pero no vencida. / Pañuelo blanco / que acompañas un sueño, / vas contando una historia, / vas acariciando una
página de gloria / vas brindando amor, / vas dando calor, / vas sembrando la esperanza.”
91

Plaza de Mayo, durante uma manifestação de 24 horas, legou-lhes a redefinição


simbólica dessa paisagem. Ao iniciarem a marcha de quinta-feira, pontualmente às 15h
e 30 min., e deixarem esse lugar somente na sexta-feira, no mesmo horário, essas
mulheres tomaram para si (e para sempre) o direito de ocupá-la e transformá-la em um
local de memória viva, onde se encontram com seus filhos e ecoam seus ideais e
utopias.
Ao término da primeira Marcha de Resistência, elas já contavam com um grupo
de mais de 2.500 pessoas, com as quais marcharam pelas avenidas de Maio e Nove de
Julio, umas das principais da capital argentina. Incansáveis, elas decidem, nesse mesmo
dia, ocupar a catedral de Quilmes (província de Buenos Aires), chamando a atenção dos
meios de comunicação e, obviamente, da polícia, órgão que já as perseguia desde outros
momentos. Com efeito, o epíteto “Loucas” retorna como uma dupla imagem, capaz de
anular o discurso e dar forma narrativa ao que não poderia ser dito.
Os anos seguintes ratificam a conformação do movimento e sua
representatividade no cenário de enfrentamento às leis ditatoriais. O término da
ditadura, em dezembro de 1983, não fará com que elas deixem seus protestos. Ao
contrário: a luta é ampliada, na tentativa de anulação da lei de auto-anistia, decretada
pelos militares, como saída para não responderem pelos crimes de lesa-humanidade
cometidos durante os anos do Processo de Reorganização Nacional. Inicia-se um
período pós-ditatorial, cujo presidente eleito pela União Cívica Radical, Raúl Alfonsín,
dará seqüência à interdição e aos intentos de silenciamento e desagrupação empregados
em relação às Madres.
Alguns fatos corroboram para que o governo de Alfonsín seja ambíguo e
questionável: a nomeação de 90% de juízes da época da ditadura; a presença de antigos
repressores no Senado; o julgamento simultâneo das cúpulas de organizações armadas e
dos comandantes das três primeiras juntas militares e a criação da Comissão Nacional
sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina (CONADEP), com o poder da polícia
sobre os arquivos, são exemplos de uma democracia que nasce comprometida com os
lastros ditatoriais. A esses episódios, agrega-se a publicação de Nunca Más (1984), um
informe da CONADEP, responsável pela idéia capaz de enraizar-se socialmente,
perdurando no imaginário de muitos argentinos: a “teoria dos dois demônios”.
Urdida estrategicamente, a narrativa criada com essa teoria equipara os atos de
violência desempenhados pelo regime militar às ações das organizações de guerrilha,
como os Montoneros e o Exército Revolucionário do Povo (ERP). De acordo com essa
92

idéia, as ações do exército argentino e as dos guerrilheiros afetaram os que estavam


envolvidos e os cidadãos comuns. Nessa perspectiva, os “dois demônios” se equivalem
em crueldades, minimizando, assim, as ações assassinas, covardes e hediondas,
realizadas pelas Forças Armadas Argentina, sendo “terrorista” o termo empregado pela
CONADEP, em referência aos detidos-desaparecidos ligados à guerrilha.
Embora o informe fosse apresentado como uma ferida aberta deixada pela
ditadura, uma vez que registra o desaparecimento de pouco mais de 8.200 pessoas, além
de conter testemunhos de torturados e detalhamento dos campos de concentração para
onde estes eram levados, algumas Madres decidem não registrar o desaparecimento de
seus filhos. Tal decisão fará com que haja, entre elas, um desacordo por parte daquelas
que desejavam registrar o sumiço do filho, ainda que isso lhe custasse o equivocado
epíteto “terrorista”.
Mesmo imersas nesse conflito, o grupo lança, em 1º de dezembro de 1984, seu
primeiro jornal mensal, com a manchete: “Onde estão os desaparecidos?”, seguida da
91
frase: “A um ano de governo radical e de impunidade militar” , fator que tonifica a
tensa relação entre as Madres e o governo do então presidente.
Atrelado ao rechaço às manobras presidenciais, as Madres se opõem
veementemente ao projeto de “Lei de Ponto Final”, que consistia na limitação do tempo
para o recebimento de denúncias dos crimes cometidos, ou seja, a paralisação dos
processos judiciais contra os autores das detenções ilegais, torturas e assassinados.
Infelizmente, a lei que pregava a extinção da ação penal contra toda pessoa que tivesse
cometido delitos vinculados à instauração de formas violentas de ação política até 10 de
dezembro de 1983, é aprovada em 23 de dezembro de 1986. 92
Após um longo período de ressignificação do trágico, as Madres propõem a
“Socialização da Maternidade”, um processo que abarca a idéia de que todos os filhos
pertencem a todas elas e, neste sentido, se equiparam no afeto, na luta e no
reconhecimento. Entretanto, esta maternidade socializada ratifica o conflito com o
governo, a partir da reclamação coletiva referente à nova política de exumação dos
cadáveres, aos que se requisitam uma identificação individual e criteriosa.

91
“¿Dónde están los desaparecidos?” “A un año de gobierno radical y de impunidad militar”. (Fonte: Imágenes de la
vida. Buenos Aires: Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2007)
92
Essa lei e sua complementária, “Obediência devida” Nº 23.521, foram anuladas pelo Congresso Nacional em 2003,
sendo declaradas nulas pela Corte Suprema de Justiça, em decorrência da inconstitucionalidade que representavam,
em 14 de junho de 2005. Sobre a segunda, é válido aclarar a que se destinava: aprovada em 4 de julho de 1987, esta
lei considerava que os militares não seriam punidos por terem agido em nome de uma obediência devida.
93

Dentro do movimento, surgem os primeiros embates inegociáveis, com


discordâncias sobre a questão acerca do desenterro de milhares de restos humanos, uma
vez que isso poderia representar o retorno da busca individual, a incansável luta de cada
uma à procura dos ossos de cada filho, além do conseqüente enfraquecimento da
conformação coletiva, configurada por seu poder de resistência e enfrentamento aos
discursos impostos. Em relação a esse aspecto, cabe ainda mencionar que, de certa
forma, as representações de vida sempre foram mais presentes nas performances das
Madres. A discursividade criada para preencher o vazio deixado pelo desaparecimento
forçado de seus filhos propõe-se aos ideais, aos sonhos dos detidos-desaparecidos, à
elaboração de uma nova biografia capaz de sobrepor-se à narratividade propagada pela
teoria dos “dois demônios” e da morte sem culpados.
E, embora unidas contra a onda de impunidade, em 16 de janeiro de 1986, oito
Madres egressam da Asociación e constituem a Línea Fundadora. Seus símbolos,
aparentemente os mesmos, adquirem novos significados e redefinições ideológicas.
Assim como eles, seus princípios e discursos marcarão o posicionamento político de
cada uma delas. Movidas pela necessidade de prantear o corpo – ou um pedaço dele – e
abrigá-lo em uma sepultura, elas aceitam as propostas de exumação, chocando-se
fundamentalmente com os discursos proferidos pelas outras integrantes.
Inevitavelmente, a questão do corpo insepulto nos leva ao encontro de direitos
postos em cena por Sófocles, há mais de 2.500, através da relação literária com
Antígona (442 a. C), pois a angústia desse momento assemelha-se à da personagem
sofocliana em muitos sentidos: trata-se da mesma dor por parentes que morreram por
uma causa política; mortos aos quais se negou o direito de sepultura; mortes que
provocaram uma conclamação inusitada, capaz de se sustentar, a despeito da repressão e
do veto à voz reclamante. Em ambos os casos, mulheres alheias à trama política se
mostram capazes de convulsionar a ordem pública, por meios e métodos totalmente
femininos. Antígona, ao se retirar de cena para ser sepultada viva e ter sua voz
definitivamente emudecida, sai consagrada pela admiração de todos os atenienses,
justamente os que reprovaram sua rebeldia e a condenaram. Os anciãos do coro, que
não sabiam com quem se encontrava a justiça – se com a irmã de um traidor do Estado,
ou com o tirano que desrespeitava as leis ancestrais, – a louvam, pela pujança de seus
sentimentos e pela convicção com que defendeu o respeito a um cadáver. Retira-se
majestosamente, não como princesa de Tebas, mas como rainha de todos os atenienses.
A peça coloca, poética e loucamente, em questão o direito de um defunto.
94

A luta das mães que perderam seus filhos, juntamente ao direito de pranteá-los
numa sepultura, é a mesma de Antígona, pelas leis naturais (de precedência da família
sobre o Estado) e pelos direitos inalienáveis à respeitabilidade de todos os homens,
mesmo na condição de defuntos.
Sobre essa comparação com a imagem da personagem grega, vale recuperarmos
algumas questões, aspectos capazes de confirmar a reinserção de uma aproximação
trágica, outrora já assinalada pela saga das mulheres troianas. Em momentos de crise,
pares complementares podem converter-se em antinomias (homem x mulher, senilidade
x juventude, indivíduo x sociedade, vivos x mortos e homem x Deus ou deuses),
gerando enfrentamentos nos quais não existe possibilidade alguma de negociação e, por
isso, o insolúvel conflito se mostra absolutamente trágico. Cada uma dessas oposições é
posta em ação por Sófocles em Antígona.
Disso provêm sua riqueza significativa e a possibilidade aparentemente
inesgotável de atualizá-la, de “chamar para a vida” o que Hölderlin considerava
verdades ocultas, latentes, o “sentido vivo” (lebendige Sinne) do mito, sem que para
isso existam condicionamentos a tempo ou a lugar. Já em Sófocles ecoa essa
perspectiva trans-histórica da fábula antiga. Além disso, tem sido possível comprovar
que há tempos e lugares mais propícios para o nascimento de novos descendentes dessa
história.
Segundo Hölderlin, “Sófocles é um escritor de tempos de crise, de revolução e
de deslocação temporal” (HÖLDERLIN apud SZONDI, 2004, p. 36). Em tempos de
crise, como é visto o século XX (o mais clássico de todos – pela exploração intencional
da estética clássica – e mais rico em cataclismos históricos), o mito de Antígona
esclarece algumas das mais fundas e dolorosas questões acerca da consciência humana
(respeito aos mortos, amor intra- e extrafamiliar; impasse entre justiça e direito; lei
natural e direito positivo; justiça humana e direito divino; pólis masculina e oikos [lar]
feminino; vida pública e ordem privada; sacralidade e profanação, entre outros
aspectos), tornando possíveis releituras e retornos desse mito.
Com a personagem de Antígona e seu enfrentamento às leis ditadas por seu tio, o
tirano Creonte, surge a colisão entre amor e lei, esta vista sob uma perspectiva alheia às
vontades do indivíduo, pois preconiza ordens que vão de encontro às prerrogativas
divinas. O impasse e a impossibilidade de negociação são oriundos do conflito que se
estabelece entre vontade e liberdade. Sobre esse embate, Sérgio Buarque de Holanda
considera que Creonte, ao encarnar a noção abstrata e impessoal da Cidade, choca-se
95

com a concretude representada pelos direitos da ordem familiar, por que Antígona
entrega sua vida. O traço perene dessa incompatibilidade é algo que, segundo o autor, “é
de todas as épocas e preserva-se sua veemência ainda em nossos dias” (HOLANDA,
1995, p.141).
Antígona é filha de Édipo e Jocasta, nascida de um matrimônio condenado pelo
incesto. Irmã de Ismene (a mulher que, na tragédia, encarna o papel subalterno legado à
figura feminina), assim como de Polinice e Etéocles (os irmãos mortos em uma luta
fratricida), Antígona, ao saber que Creonte proíbe os rituais fúnebres destinados a
Polinice devido à sua oposição ao governo do tio e à luta com o irmão que representava
os interesses do poder constituído, decide enterrá-lo, ciente de suas futuras punições,
ações que decorrerão na morte e no fim dos Labdácidas, um guénos ao revés.
Mulher, jovem e fruto de uma sociedade patriarcal, Antígona se apresenta com
sua “piedosa vilania” (ósia panourguésasa. SÓFOCLES, Antígona, v. 74) e se entrega à
morte. Sepultar o corpo, além de um direito divino, determina a impossibilidade de
negociação entre os termos que instauram o conflito no universo sofocliano. O destino
se mostra inexoravelmente duro e inviável, dando passagem ao trágico caminho das
personagens dessa história. Não há como se salvar. No decorrer dos cinco episódios que
compõem a peça, a figura da jovem tebana vai adquirindo proporções que a equiparam à
tirania de Creonte, embora suas leis e sua língua sejam ditadas pelo amor ao corpo
morto do irmão, que precisa voltar à terra e ser abrigado na sepultura.
Ao se pensar na divisão estrutural de Antígona e nas relações discursivas que se
estabelecem, o embate surge já no prólogo, quando Antígona convoca a irmã Ismene
para cumprirem os rituais fúnebres a Polinice. Ambas se mostram conscientes de suas
devidas punições, porém Ismene se nega, por medo e obediência, ao ato de amor suicida
proposto pela irmã. Antígona, então, abala a tirania sozinha e morre, dignificando a
todos os que, transtemporalmente, combatem a injustiça.
Antígona é humana, não é uma enviada dos deuses, o que favorece ainda mais a
aproximação à possibilidade de enfrentamento e afrontamento que se espera da esfera
feminina. Entretanto, como todo herói trágico, ela pulsa entre a carência e o excesso. Ao
enterrar Polinice, ela, em sua unilateralidade, desconhece a Eros ao privilegiar
Thanatos. Assim sendo, o amor, que por toda peça é o leitmotiv de combate, faz com
que ela caminhe em direção à escolha simbólica por seu autossepultamento. Seu amor é
semeado exclusivamente entre os mortos, daí sua hamartía.
96

Mas a culpa de Antígona não é uma questão subjetiva. O que se lhe apresenta é
uma escolha única: é preciso enterrar o irmão. Diante do inexorável, ela assume as
conseqüências e responsabilidades de sua vontade. Desde sua aspiração à realização do
ato que põe fim a própria vida, Antígona passa por todas as fases que desencadeiam a
catástrofe final. Sua deliberação (decorrente do impulso) e sua decisão (decorrente da
plena consciência) se misturam num processo entre intelecto e debate emocional
interno. Vemos, então, que o que prevalece é a decisão estratégica de desmoralizar o
édito de Creonte 93 . A culminância de uma vontade que cresce da disposição individual
à altitude de uma decisão ética é alcançada com o escândalo da sua morte, capaz de
mostrar o quanto são escandalosas as leis do Estado, e disso ela tem noção desde o
princípio. Dessa maneira, a idéia de vencer o poder opressor através de uma ação
pública capaz de minar o poder creontizado (ensandecido em sua arrogância) torna-se a
expressão de uma simbologia que serve às realidades latino-americanas.
A (re)leitura de Antígona e sua possível relação com a atitude das Madres da
Línea Fundadora reitera a necessidade de cumprimento aos rituais fúnebres, sobretudo
a necessidade dos que vivem para enterrar seus mortos. Uma imagem que endossa essa
urgência é vista quando acidentes envolvendo muitas pessoas ocorrem e, de acordo com
a catástrofe provocada, o reconhecimento imediato dos corpos é impossível. 94
Além dessas diferenças no tocante à exumação e à nova relação que se cria com
o filho após esse encontro funesto, os lenços brancos, característicos desde a
constituição do movimento, recebem as inscrições “Aparição com vida dos
desaparecidos” (foto 8), bordadas à mão pelas Madres da Asociación, reafirmando a
premência de revisão jurídica ao que foi feito com os detidos-desaparecidos. Por outro
lado, a Línea Fundadora segue com seu luto, configurado nos nomes e na data de
desaparecimento de seus filhos (foto 9). Junto a essa imagem de presentificação do
corpo insepulto, elas permanecem com as fotos dos desaparecidos (foto 10), ostentando
a incurável ferida deixada pelo regime de terror.

93
A língua da tragédia sofocliana é precisa. Antígona maneja um vocabulário técnico da área do Direito que a faz
referir-se às leis divinas como lógos e nómos, termos nobres, impregnados de valor religioso, político, enquanto a lei
creôntica é chamada kérugma, palavra que significa proclamação, mero expediente, decisão transitória, édito.
94
Dois acidentes aéreos nos dão a dimensão dessa urgência: o da empresa Gol, em setembro de 2006, envolvendo
154 pessoas, e o da empresa Tam, que transportava 178 pessoas, em julho de 2007. Em ambas as tragédias, as
famílias lutaram, incessantemente, pela identificação de todos os corpos, a fim de que estes pudessem ser enterrados e
pranteados dignamente.
97

Foto 8: imagem atual do lenço usado pelas Madres da Asociación (arquivo pessoal).

Foto 9: Madre da Línea Fundadora: nome e data do desaparecimento no lenço (arquivo pessoal).

Foto 10: Madre da Línea Fundadora: cartaz, broche e lenço com a identificação do filho e data
de desaparecimento (arquivo pessoal).

A paisagem da Plaza se transforma no palco dessas diferenças. Confirmada a


sua pluralidade nesse encontro semanal dos dois movimentos, o que vemos, também, é
a representação simbólica de um momento na luta das Madres da Asociación, em que a
98

dor de um luto impossibilitado sai do martírio da cruz para se reproduzir no bordado.


No ponto cruz que tece letra por letra e dá forma à frase, escreve-se, também, uma
proposta ideológica que reitera o discurso de resistência e ambiciona o reconhecimento
de um posicionamento ético. Ao falar que seus desaparecidos seguem vivos em sua luta,
e esta passa a representar os ideais dos próprios filhos, elas põem em marcha a
construção de um panorama que ultrapassa os limites da Plaza. Outras paisagens
passam a servir de espaço para o plantio e a colheita projetados na reescritura biográfica
de seus seres queridos.
Numa perspectiva metafórica, possível pela recuperação literária de duas
importantes personagens – Antígona e Pelagea Wlassowa, de A Mãe, de Bertolt Brecht
–, podemos traçar uma análise comparativa entre o que hoje representa a divisão interna
do movimento das Madres de Plaza de Mayo. Divididas, elas rondam e marcham,
respectivamente, como Línea Fundadora e Asociación Madres de Plaza de Mayo.
Simbolicamente, Pelagea e Antígona se encontram na paisagem da Plaza de
Mayo. A primeira marcha; a segunda ronda com os desaparecidos estampados em seus
cartazes. Sempre devotas à procura do corpo e à esperança de sepultamento, elas
revivem, semanalmente, a dor e o embate de Antígona, com a qual se tornam
personagens de um luto eterno e, ao mesmo tempo, incompleto. Não há diálogo entre
as Madres que compõem as duas linhas; há, nessa paisagem de conflito, um espaço de
pouco mais de 20 metros, distância suficiente para separá-las discursivamente e
aproximá-las na dor.
E, se Antígona é movida pelo luto e pela incansável procura do corpo insepulto,
o que vemos, nessa diferença ora proposta pela aproximação literária, é um
posicionamento similar ao de Pelagea Wlassowa, por parte das integrantes da
Asociación. Movidas pela imagem presente na memória guardada de seus filhos, elas
assumem a luta outrora interrompida, assim como a personagem brechtiana resgata o
caminho do filho Pavel (assassinado pela polícia russa) e de tantos outros que ela
acredita silenciados. Vivas, elas incorporam o projeto de fazê-los reviver em sua
memória e falar por sua voz.
Ao término da marcha, um percurso que, temporalmente, não passa de trinta
minutos, a diferença discursiva é acentuada entre as duas linhas. Silenciosas, as Madres
da Línea Fundadora se retiram de cena como Hécuba, à espera do reencontro semanal,
marcado pelo sacrifício do sobrevivente. Elas não se entregam ao desfecho glorioso de
Antígona, mas o retorno nas quintas-feiras seguintes configura a crença na reinserção do
99

percurso desestabilizador. Já as Madres da Asociación revivem um momento projetado


na memória do filho desaparecido: juntas, elas seguem para frente da Casa Rosada e
uma das integrantes lê um texto de crítica e combate, criando uma imagem que propõe
um enfrentamento semanalmente contextualizado e a reafirmação desse espaço (foto
11). Quando esse pronunciamento chega ao fim, elas e as pessoas que as acompanham –
alguns estudantes, turistas que passam pela Plaza de Mayo, ou simples transeuntes –
entoam o páthos marcado pela ausência: “Alerta, alerta que camina, milicos asesinos
por América Latina. Ahora, ahora, resulta indispensable: aparición con vida y castigo
a los culpables” e, ainda, o conhecido “Ole, ole, ole, ola, como a los nazis les va pasar,
adonde vayan, los iremos a buscar”.

Foto 11 – 03/05/2007 – Pronunciamento de María de las Mercedes de Meroño. (Arquivo pessoal).

Nessa cartografia de poder, onde se situam as esferas política e econômica da


capital argentina (uma imagem reproduzida fotograficamente em diversas partes do
mundo), as Madres crêem na eternidade da luta abraçada e congregam aliados para seus
projetos. Estrategicamente localizada, a Plaza, protagonista de muitos momentos
cruciais para a redefinição da história latino-americana, abriga a paisagem da sacada
presidencial, ecoa discursos que mudam o rumo de nosso continente desde 1810 e
requisita de seus interlocutores uma conjugação plural. Extremamente estetizado pela
indústria do turismo e pela mídia, durante não mais que quarenta minutos semanais,
uma nova configuração redesenha esse espaço e nos permite encontrar, entre flashs e
línguas longínquas, uma saída que nos conduz à esperança projetada nos anseios dessas
mulheres: em bandeiras azuis que desfilam nas tardes de quinta-feira, a frase “Nem um
95
passo atrás” (foto 12) confirma a postura de enfrentamento, ao ambicionar uma

95
“Ni um paso atrás” é uma frase escrita nas bandeiras da Asociación Madres de Plaza de Mayo.
100

96
possível emersão de um “exílio forçado” , situado em termos que ratificam a
necessidade de que essas bandeiras balancem vivas e irreconciliáveis.

Foto 11: bandeiras da Asociación Madres de Plaza de Mayo (arquivo pessoal).

2.5. A utopia como resposta ao esquecimento e à consolidação de princípios.

“O irracional, o inesperado, a banda de pombas, as Madres de Plaza de Mayo,


irrompem em qualquer momento para desbaratar e transtornar
os cálculos mais científicos de nossas escolas de guerra e de segurança nacional.
Sigamos sendo loucos, madres e abuelas de Plaza de Mayo, exilados de dentro e de fora.
Sigamos sendo loucos, argentinos: não há outra maneira de acabar
com essa razão que vocifera seus slogans de ordem, de disciplina e patriotismo.
Sigamos lançando as pombas da verdadeira pátria aos céus de nossa terra e de todo o mundo.” 97
Julio Cortázar

Em relação ao que, hoje, pode representar para as Madres, parece-nos oportuno


pensar numa perspectiva de origem ao conceito de utopia, o qual aparece no século V
a.C, com a fictícia cidade Callipolis, na República de Platão, e ressurge no
Renascimento. O termo “utopia”, na perspectiva etimológica do ou topos grego, indica
um não-lugar, o lugar que não existe, e a nós nos serve tanto quanto foi útil a Thomas

96
Embora a noção de exílio não corresponda diretamente à idéia proposta neste estudo, acreditamos na rentabilidade
semântica proveniente do termo, o que permite pensá-lo em proximidade com a noção de afastamento involuntário. A
relação traçada com o enfrentamento das Madres possibilita uma abordagem que tenta compreender os sujeitos aos
quais elas se reportam em defesa. Logo, a idéia de margem também pode ser estabelecida nessa comparação, uma vez
que esses sujeitos são reconhecidos como apartados socialmente, eleitos por elas como órfãos da luta interrompida de
seus filhos. Essa escolha promove, ainda, a reiteração da crença de um legado abraçado pelo ator político Madre,
personagem que se projeta e recria para dar conta de sobreviver à ausência.
97
Texto original: “Lo irracional, lo inesperado, la bandada de palomas, las Madres de Plaza de Mayo, irrumpen en
cualquier momento para desbaratar y trastocar los cálculos más científicos de nuestras escuelas de guerra y de
seguridad nacional. Sigamos siendo locos madres y abuelas de Plaza de Mayo, exiliados de adentro y de afuera.
Sigamos siendo locos, argentinos: no hay otra manera de acabar con esa razón que vocifera sus slogans de orden, de
disciplina y patriotismo. Sigamos lanzando las palomas de la verdadera patria a los cielos de nuestra tierra y de todo
el mundo.” Julio Cortázar (1980), In: GORINI, 2006, p.14.
101

Morus (1478 -1535), em A Utopia. A criação alegórica da ilha-reino imaginária de


Morus é um lugar que pode ser compreendido como uma proposta ficcional de Estado
ou, ainda, uma sátira da Europa do século XVI, recheada de ironias e caricaturas acerca
da vida inglesa. Diante da perspectiva sobre uma nova proposta de Estado, aparecem
questões que tornam visível, assinalam, a necessidade de uma vida nesse topos com
características que hoje poderíamos ler através de reconfigurações a respeito das idéias
sobre socialismo e liberdade.
Na paisagem imaginária de Morus, a utopia pode representar uma crítica ao
incipiente regime burguês, baseada na análise das particularidades inerentes ao
feudalismo em decadência. Por meio de estratégias textuais presentes na composição de
diálogos, na conversa íntima, o autor aborda questões latentes de uma sociedade que
requer novas e difíceis configurações. Com referências ao reinado de Henrique VIII, ao
clero e aos grandes senhores feudais, logo, às misérias, opressões e injustiças sofridas
pelo povo inglês, há uma crítica ao período no qual as gerações se sucediam sem
finalidade, com uma agricultura desmantelada pela predominância da lã, e uma
multidão de camponeses sem empregos e famintos. Através das alegorias do autor
acerca da realidade inglesa na virada do século XV, a obra constitui-se como uma das
primeiras tentativas teóricas de criação de uma sociedade baseada na comunidade dos
bens, enviesada por elementos que remetem ao sonho de renovação social.
Recuperado por diversos escritores ao longo dos séculos, o termo apresenta
muitos significados que implicam análises sociológicas, filosóficas, literárias, entre
outras epistemologias que demandam uma enorme cartografia do termo. Neste
momento, nossa proposta é uma análise acerca da utopia, tendo como base a posição de
enfrentamento adotada pelas Madres da Asociación Madres de Plaza de Mayo. Com
ênfase no texto publicado como “Nuestras consignas”, procuramos entender como a
utopia pode ser lida na elaboração discursiva que dá forma à imaginação de uma postura
desempenhada por personagens que, ao se recriarem narrativamente, se dizem “paridas
por seus filhos”, como já mencionado.
Aparentemente simples, o folheto escrito em primeira pessoa – o que ratifica seu
caráter testemunhal – contém pouco mais de duas páginas e é a primeira informação a
que se tem acesso quando se entra na casa das Madres. Como uma senha, um código,
um sinal, onde não aparece escrito, pode-se ler: assim nos acreditamos; assim nos
projetamos; assim é preciso entender-nos. A partir desse encontro com o texto,
102

estabelece-se, então, um silencioso pacto entre essas mulheres e quem deseja conhecê-
las.
Composto por onze “princípios” bem definidos, a palavra utopia, que não
aparece escrita – assim como o pacto testemunhal silencioso – inscreve-se na planta
baixa que serve de base para a existência/criação do folheto impresso pelas Madres.
Para que possamos analisar esse encontro da Madre, que se projeta como herdeira de
um legado, com o seu leitor-legatário imaginado, transcreveremos integralmente o texto
que, embora seja publicado despido de qualquer elaboração literária, nos convida à
leitura da composição da personagem que assina os textos nas oficinas literárias:

“Nossos Princípios – Asociación Madres de Plaza de Mayo” 98

1) “Reivindicamos a luta revolucionária de nossos filhos

Nós, Madres de Plaza de Mayo, reivindicamos nossos 30.000 filhos


desaparecidos sem fazer distinções. Nós, Madres de Plaza de Mayo, reivindicamos o
compromisso revolucionário de nossos filhos e levantamos essas mesmas bandeiras de
luta. Acreditamos que somente a revolução trará uma verdadeira democracia com
justiça social e dignidade para nossos povos.

2) Nossos filhos vivem

Nós, Madres de Plaza de Mayo, sabemos que nossos filhos não estão mortos;
eles vivem na luta, nos sonhos e nos compromissos revolucionários de outros jovens.
Nós, Madres de Plaza de Mayo, encontramos nossos filhos em cada homem ou mulher
que se levanta para liberar seu povo. Os 30.000 desaparecidos vivem em cada um que
entrega sua vida para que outros vivam.

3) Cadeia aos genocidas

O povo tem o direito de se rebelar contra toda injustiça. Não pode existir
democracia e liberdade sem justiça. Nós, Madres de Plaza de Mayo, lutamos contra a

98
“Nuestras Consignas”. Em decorrência das diferenças sintáticas entre o castellano e a variante brasileira do
português, algumas expressões tiveram que ser adaptadas, com o cuidado necessário à preservação do conteúdo do
documento. O texto original está fotocopiado e presente no anexo 1 desta tese.
103

impunidade e exigimos "Cadeia aos genocidas". Sabemos que estes juízes corruptos que
temos jamais farão justiça. Mas nós, Madres, acreditamos que alguma vez o povo
condenará os assassinos.

4) Rejeitamos as exumações

Nós, Madres de Plaza de Mayo, rejeitamos as exumações porque nossos filhos


não são cadáveres. Nossos filhos estão fisicamente desaparecidos, mas vivem na luta,
nos ideais, no compromisso de todos os que lutam pela justiça e pela liberdade de seu
povo. Os restos de nossos filhos devem ficar aí, onde caíram. Não há tumba que encerre
um revolucionário. Um punhado de ossos não os identifica, porque eles são sonhos,
esperanças e um exemplo para as gerações que virão.

5) Não aceitamos que se ponha preço à vida

Nossos filhos nos ensinaram o valor que tem a vida. Eles a colocaram a serviço
de todos os oprimidos, dos que sofrem injustiças.
Nós, Madres de Plaza de Mayo, rejeitamos a reparação econômica e dizemos
que a vida só vale vida. Que a vida só vale algo quando a colocamos a serviço do outro.
A vida de um ser humano não pode valer dinheiro, e muito menos a vida de um
revolucionário. O que há que reparar com justiça não se pode reparar com dinheiro. Os
99
radicais e menemistas que perdoaram os assassinos, agora, querem tapar seus crimes
com dinheiro. Ninguém vai pôr preço à vida de nossos filhos. Nós, Madres de Plaza de
Mayo, seguiremos afirmando que os que cobram as reparações econômicas se
prostituem.
6) Rejeitamos as homenagens póstumas

Rejeitamos as placas e os monumentos porque isso significa enterrar os mortos.


A única homenagem possível é levantar suas bandeiras de luta e continuar seu caminho.
As homenagens póstumas só servem para que os que garantiram a impunidade, hoje,
lavem suas culpas. O único monumento que podemos levantar é um inquebrantável
compromisso com seus ideais.

99
Referências à União Cívica Radical, através de Raúl Alfonsín, a Carlos Saúl Menem (Partido Justicialista, leia-se
“Peronismo”) e seus aliados, respectivamente.
104

7) A falta de trabalho é um crime

A falta de trabalho é um crime. São criminosos os empresários que deixam sem


trabalho milhões de homens e mulheres. O terrorismo sempre está organizado pelos
grupos econômicos. Eles querem nos converter em escravos. Nós, Madres de Plaza de
Mayo, acreditamos que os desocupados são os novos desaparecidos do sistema. O
trabalho digno é um direto que ninguém nos pode quitar e por isso é que devemos lutar
sempre.

8) Nós, Madres de Plaza de Mayo, não aceitamos candidaturas

Nós, Madres de Plaza de Mayo, sentimos que vivemos outros tempos. Há um


novo cenário na América Latina e sentimos o dever de acompanhar essa mudança em
nossa pátria. Porque, se nós pobres não votamos, a oligarquia corrupta cresce na mão de
Menem, Macri e López Murphy. 100
Nós, Madres, convocamos o povo para que cada um eleja seu candidato, analise
suas propostas e exija que se cumpram os compromissos eleitorais. Nós, Madres de
Plaza de Mayo, não aceitamos cargos políticos porque a nossa melhor candidatura foi
deixada por nossos filhos: ser Mães de Revolucionários.

9) A luta dos povos do mundo é nossa própria luta

Nós, Madres de Plaza de Mayo, somos internacionalistas e apoiamos a luta


revolucionária de todos os povos que buscam a libertação. Sabemos que estamos no
caminho correto e que, ainda que nenhuma de nós chegue a ver o resultado, estamos
semeando ideais para que outros colham sonhos e esperanças em um mundo mais justo
e solidário.

100
Políticos que representam discursos contrários aos defendidos pelas Madres.
105

10) Lutamos pela unidade latino-americana e contra o imperialismo.

Nós, Madres de Plaza de Mayo, acreditamos na necessidade da unidade latino-


americana. Sabemos que a unidade fraternal e combativa dos povos da América Latina é
a única ferramenta para enfrentar o imperialismo norte-americano. Nestes dois últimos
séculos, a tragédia genocida que o capitalismo descarregou sobre nossos povos tem um
nome: o imperialismo norte-americano, regime terrorista que tenta nos submeter a uma
escravidão perpétua.

11) Acreditamos e lutamos pelo socialismo.

Nós, Madres de Plaza de Mayo, sentimos que a única solução para os povos do
terceiro mundo e, particularmente, para nossa América Latina é o socialismo.
A revolução socialista é a única vereda de construção de um mundo mais justo e
solidário. A luta contra o capitalismo é a tarefa obrigatória de todos os que sonham com
uma humanidade que não se sustente sobre a exploração, a escravidão e a miséria de
outros seres humanos.”

Com efeito, o reiterado uso do verbo “acreditar” em sua forma plural


“acreditamos”, escrita num presente atemporal, dá corpo às frases que compõem o texto
do folheto, ao denotar o caráter de crença investido na elaboração desses ideais e na
criação de uma comunidade legatária desses princípios. Nos trechos em que o verbo está
ausente, a imagem dessa aposta é resgatada por outros enunciados capazes de ratificar o
projeto com o porvir: “(...) encontramos nossos filhos em cada homem ou mulher que se
levanta para liberar seu povo.” (2); “Nossos filhos estão fisicamente desaparecidos, mas
vivem na luta, nos ideais, no compromisso de todos os que lutam pela justiça e pela
liberdade de seu povo.” (4); “A vida de um ser humano não pode valer dinheiro, e muito
menos a vida de um revolucionário.” (5); “O único monumento que podemos levantar é
um inquebrantável compromisso com seus ideais.” (6); “convocamos o povo para que
cada um eleja seu candidato (...)” (8); “estamos semeando ideais para que outros colham
sonhos e esperanças em um mundo mais justo e solidário.” (9).
Através dos objetivos que preconizam a revolução como caminho para uma
democracia com justiça social e dignidade para os sujeitos à margem, acredita-se num
povo que poderá condenar os assassinos. Logo, acredita-se numa possibilidade de
106

justiça. Afirmar que as indenizações são maneiras de prostituição; rejeitar os


monumentos e propor um “inquebrantável compromisso” com os ideais de seus filhos;
reconhecer que o desemprego reforça a exclusão social e que o trabalho digno é um
direto inalienável pelo qual sempre haverá que lutar; semear ideais para que outros
colham sonhos e esperanças num contexto mais igualitário; acreditar na premência de
uma unidade latino-americana e, com isso, retomar que a revolução socialista é a única
saída para esse povo que se encontra num lugar de tensões, constituem a narrativa
acerca de uma sociedade sem justiça e igualdade, outrora criada na realidade da ilha
imaginária de Thomas Morus, e resgatam a necessidade da utopia.
É nesse não-lugar que um lugar de fronteira se encontra com a imaginação de
sujeitos que clamam por sua liberdade: os legatários de seus filhos, aqueles aos quais o
direito de herança não provém do laço direto, senão da escolha do de cujus,
representado por 30.000 detidos-desaparecidos. Herdeiras diretas dos direitos e
obrigações de seus entes queridos, as Madres se confirmam como personagens nascidas
e reelaboradas como “Mães de Revolucionários” (princípio 8), sintagma que delimita o
poder sobre esse legado (pois se trata de bens determinados: a luta e os ideais) e a
vocação hereditária ascendente.
A emergência presente na elaboração textual de Nossos Princípios ratifica o
compromisso da partilha desses bens determinados com os herdeiros testamentários,
personagens anônimas aos quais os herdeiros legítimos, as Madres, se reportam para
cumprir o desejo do autor da herança. Os apartados socialmente, os desempregados, os
que passam fome, os sobreviventes de um ambiente econômica e politicamente hostil
escrevem-se nesse inventário como aqueles que, embora não tenham o direito direto
sobre a herança, dela se beneficiam pelo testamento deixado pelo morto.
A insatisfação, motivo para a conformação do legado, corrobora o tom da aposta
no porvir. Ao se colocarem discursivamente contra determinados aspectos e
representantes políticos, as Madres trasladam à escritura a necessidade de resistência
como um recurso restitutivo de questões que, há mais de cinco séculos, desenham em
nosso continente as insatisfações em relação às políticas socioeconômicas desastrosas. É
através da crença nessa comunidade capaz de combater e crer no socialismo que elas
assumem uma biografia gerada pelas narrativas que tentam reconstruir o caminho de
seus desaparecidos.
Ainda sobre a noção de insatisfação e sua relação com o texto das Madres, é
válido que nos reportemos à argumentação do filósofo francês Paul Ricoeur (1991), que
107

aponta dois motivos pelos quais o homem moderno se encontra insatisfeito. Segundo o
autor, primeiramente, é definida uma sociedade marcada pela disputa e pela competição,
na qual a maioria das pessoas não tem acesso ao fruto da riqueza produzida pelo
trabalho, com isso promovendo o confronto, independentemente do Estado, entre os
grupos e os estratos sociais. Como segundo caminho para o tema, ele aborda a falta de
sentido na vida das pessoas em relação à luta contra o que se lhes apresenta como uma
separação derivada dessa sociedade fortemente marcada pela apologia do cálculo eficaz,
promovendo um inevitável questionamento acerca do trabalho organizado
metodicamente como educador da racionalidade humana.
Dessa maneira, a insatisfação do homem moderno representa um paradoxo nas
sociedades atuais: sobrevivência e tecnologia, visto que a competição tecnológica, ao
mesmo tempo em que aparece como uma necessidade para que as sociedades possam
competir economicamente, também promove a dissolução do núcleo ético-político
dessas mesmas sociedades, o que levaria a um confronto entre a lógica da
industrialização e a racionalidade reveladora da experiência política dos povos, entre o
econômico e o político. Para sobreviver, o homem inserido nessa sociedade procura
privatizar a felicidade, a fim diminuir as contradições geradas pelo paradoxo em sua
vida particular.
Como uma possível saída para a recuperação do sentido da vida do homem
moderno, o filósofo propõe uma separação entre o econômico e o político, uma vez que
o político passa a ter um sentido de ação racional razoável a partir de uma perspectiva
ética. Ao mostrar que há angústias que somente podem ser “curadas” pelo papel central
do Estado, definido por Ricoeur como a organização das comunidades históricas
capazes de tomar decisões, o autor argumenta que a ordem econômica somente satisfaz
às exigências racionais e não ao homem, que procura o razoável no universal concreto.
Então, estas comunidades históricas apresentam um sentido além do formal, pois essa
ordem possibilitaria a preservação de uma identidade narrativa e simbólica de uma
comunidade, com a aceitação do conteúdo dos costumes e dos símbolos como normas.
Há, nessa perspectiva, uma existência de política racional e um Estado com uma
estrutura universal, inspirada em Hegel, cujo significado em Ricoeur adquire outra
conotação. O autor defende um Estado democrático que garanta espaços para a
liberdade, igualdade e não-violência, no qual os conflitos possam ser expressos e
negociados, e a educação através da discussão configura um viés para que os cidadãos
tenham os seus direitos assegurados.
108

Entretanto, ao pensarmos nos quadros que compõem nosso sentido de realidade


latino-americana, o que vemos é um conjunto de Estados que não garantem aos seus
cidadãos os elementos básicos que lhes permitam acreditar em sua condição de
cidadania. “Orilla del mundo”, “pátio traseiro”, ou ainda o anacrônico (embora
reiterado) conceito de “terceiro mundo” são expressões que por muitos anos marcaram e
ainda seguem escrevendo a história/destino dos que nascem deste lado de cá, num lugar
ideologicamente denominado América Latina e semanticamente difuso.
Entendidos como saqueados, anulados e submetidos, herdeiros e legatários se
projetam nessa escritura como personagens que, ao sonhar com a resistência, se tornam
capazes lutar pela reconstituição de algo que talvez por muito nos falte, algo como, por
exemplo, a liberdade a que tanto se referem no texto. Possivelmente, a forma traduzida
do que poderia ser compreendido como a utopia de um lugar livre, aqui nunca existiu,
sempre tendo a tradução viva do “não-lugar”. Para encontrá-lo e poder transformá-lo,
mesmo cientes de sua não existência, restariam a resistência, o relato e o combate
reiterados contra o esquecimento. Assim, a utopia como imagem possível retorna
materializada em lenços brancos, vestindo corpos que se colocam em luta há mais de 30
anos.
Frente a esse panorama, torna-se claro que, em três décadas do movimento, a
perda dos filhos se direcionou à reescritura daqueles que um dia desapareceram por
pedir o que, mutatis mutandis, no século XVI fez com que Morus fosse decapitado.
Hoje, em seus “princípios”, as Madres põem corporalmente em prática projetos que
possam dar espaço às pessoas excluídas, às quais elas se reportam como os legatários de
seus filhos.
A criação de uma sede onde elas possam se encontrar para planejar o porvir; a
fundação de uma universidade popular que abriga estudantes com poucos recursos
financeiros, prometendo dar-lhes uma formação e com isso o sonho da inserção social;
uma rádio que traz em sua publicidade “a primeira da esquerda”; uma revista mensal
para a divulgação de seus textos; a construção de uma creche comunitária numa favela
de Buenos Aires, bem como a construção de moradias, restaurantes populares e novos
postos de trabalho para esses sujeitos, são ações responsáveis por uma nova
comunidade, que partilha de seus ideais e se projeta a uma situação de liberdade e
possível resgate de sua alteridade.
Sobre a relação do termo utopia com as Madres, ainda nos cabe mencionar a
posição de enfretamento adotada discursivamente por Hebe de Bonafini, presidente da
109

Asociación Madres de Plaza de Mayo. Conhecida por seus discursos inflamados e


posicionamento contra os sucessivos governos norte-americano 101 , Hebe conta com o
apoio de figuras expressivas da esquerda latino-americana, como Fidel Castro (Cuba),
Hugo Chávez (Venezuela), Rafael Correa (Equador), além do reconhecido apoio às
“Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia” (F.A.R.C), ao “Exército Zapatista de
Libertação Nacional” (México), e ao grupo separatista basco “Euskadi Ta Askatasuna”
(ETA). Com efeito, essa simpatia é responsável pela evasiva ao incômodo provocado
pelas Madres, já que a postura atual delas serve de motivo para justificativas que, de
certa forma, tentam deixá-las isoladas e desacreditadas frente à sociedade civil.
A crença na utopia se verbaliza em muitos contextos que envolvem as Madres,
não sendo restrita apenas aos apoios ou às elaborações de seus princípios e projetos. Ao
iniciar o ano letivo de 2007, a presidente da Asociación, neste momento também reitora
da “Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo”, começou seu discurso com a
seguinte frase: “Las Madres hemos demostrado que la utopía se puede agarrar”, e
continuou contando uma história sobre a conversa com um professor, quem um dia lhe
disse que a utopia é como um horizonte, para o qual se caminha, sem nunca chegar,
pisar ou tocar, e argumentou que elas mostraram ter sido capazes de negar esse
pensamento; a utopia nunca deixou de existir entre elas como algo possível,
relembrando a época em que foram à Plaza, pela primeira vez, em busca de notícias
sobre os desaparecimentos. Segundo Hebe, esse horizonte foi tocado, tornando a utopia
uma possível partida (ou chegada) dessa nova paisagem construída a partir da
compreensão da herança deixada por seus filhos insepultos.
Diante da presença dessas mulheres, podemos pensar que um conceito que se
remetia à intangibilidade, logo, à inexistência, transformou-se no mote que lhes
permitiu reconfigurar alguns traços do quadro sociopolítico argentino. Com seus corpos,
a paisagem desenhada na Plaza das quintas-feiras reabre feridas que remetem a um
período que não pode voltar e, ao mesmo tempo, a problemas ainda presentes e de
necessária urgência.

101
É importante mencionar que o rechaço aos governantes desse país é atribuído à representatividade que eles
tiveram na formação dos militares argentinos, além do conhecimento tácito acerca da forte pressão norte-americana
para que, naquele momento, o regime ditatorial implantado pelos militares fosse espalhado na América Latina. Na
atualidade, com a eleição de Barack Obama, em 2008, as Madres até o momento têm apostado na presença desse
governante para a tomada de novos rumos nas posturas até então exercidas pelos governos anteriores. O fato de o
presidente eleito ser negro e descendente de muçulmanos coloca-o, em relação a elas, como uma personagem capaz
de reverter um quadro desigual e injusto, justamente por trazer em si as insígnias daqueles que, assim como ele, são
excluídos e ignorados no contexto capitalista a que as Madres se referem como produto desse país.
110

Seus lenços brancos, além de ser a memória de seus filhos, acenam para um
contexto que busca a paz, embora seja justamente a presença deles que nos alerte à
ausência de um contexto efetivo para se viver pacificamente. A esse embate que remete
a tantos contextos de conflito entre cidadãos e Estado, as Madres reagem com suas mais
de 1.600 marchas de quinta-feira. A Tebas de Antígona, a República de Platão e a ilha
de Morus, através dessas mulheres, situam-se numa esquina entre a luta e a resistência,
local imaginário onde o encontro com Antígona, Hécuba e Pelagea Wlassowa resgata o
caráter cíclico desse impasse.
Assim como as marchas, os documentos, os projetos e os discursos proferidos na
Plaza, o literário produzido nas oficinas de escritura traz em si esse compromisso com a
imaginação do porvir. Os direitos e obrigações assumidos pelas herdeiras desse legado
ao revés emergem na elaboração ficcional, através de imagens que recuperam o corpo
do desaparecido em distintos momentos de sua vida e ratificam a biografia daquela que
assina como Madre: a Mãe de um Revolucionário.
111

3. ARQUITETURAS TESTEMUNHAIS: AS OFICINAS LITERÁRIAS E A (RE)


DESCOBERTA DA ESCRITURA

3.1. Ensaios circulares: encenações do porvir

O futuro é uma hipótese que só existe narrativamente. Enquanto o passado ainda


se detém aos traços que desenham os atos do presente, através dos processos de
memória, o porvir guarda em si a imagem projetada que nele se escreve e cria, tingida
por delineamentos do vivido e revestida por possibilidades que, no não acontecido,
podem adquirir novas perspectivas. A mudança e o desejo de transformação são
elementos inextricáveis ao jogo de imaginação e engendramento de hipóteses em
construção. Na gestação desse tempo – ausente na vivência e presente na espera – as
personagens se ressignificam, atribuindo traços e expectativas a uma composição que
aguarda para ser posta em cena. Nesse ensaio do que poderá acontecer, uma
discursividade arquiteta a edificação dos sonhos do presente.
Como uma melodia à espera da letra, o futuro se presentifica na falta e, ao
tornar-se presente, já experimenta a escrita do pretérito, mesclado pelas imagens do que
poderia ter sido e do que aconteceu, do que foi vivenciado. Novamente, novas cenas e
palavras retornam para dar forma ao que chamamos de esperança: a herança de Pandora.
Há mais de 380 meses, as Madres de Plaza de Mayo conjugam a memória e a
esperança de justiça. Se a memória de seus entes desaparecidos é o presente que lhes dá
forma, a luta contra o esquecimento é personificada numa trajetória ensaiada e encenada
diariamente. A noção acerca do tempo parece cruel, capaz de aniquilar os minutos e as
narrativas tecidas pelo marchar de seus lenços brancos. É contra ele – e com ele – que
elas caminham e elaboram as imagens do porvir, ao criar uma hipótese temporal-
discursiva tonificada pela experiência do vivido em situações responsáveis pelo que,
hoje, elas representam.
Diretamente, os termos mãe e gestação se inserem dentro de um mesmo campo
de significados: um pressupõe o outro. As possibilidades interpretativas que o verbo
gestar nos oferece são múltiplas e, em relação às Madres, a essas hipóteses se reúnem
elementos indissociáveis da imagem de tempo que estamos considerando. No passado,
essa gestação é da ordem do reconhecimento na maternidade, transformando essa
mulher em mãe. No presente, é dela a imagem de um legado dos desaparecidos, da
112

Madre como sujeito coletivo. No futuro, é um projeto de esperança e o ensaio de uma


cerimônia do adeus.
A personagem Madre traduz em si a imagem da mãe que, com o
desaparecimento do filho, sai em busca de notícias e se encontra com outras mães
marcadas pela dor. Rasuradas pela tragédia da presente-ausência (uma ausência
hifenada pela falta dos corpos dos desaparecidos, da justiça e pelo não-esquecimento), é
no encontro com a perda compartilhada que elas voltam a gestar os ideais daqueles que
um dia as transformaram pela maternidade. Um novo sujeito é parido: a Madre, ator
político que assume a luta e a memória do ente desaparecido, gestando novos discursos
e personagens nascidas com a perda.
Ao contrário do nascimento do filho, o momento que marca essa passagem da
mãe à Madre situa-se numa temporalidade que só podemos precisar discursivamente,
através de hipóteses e análises de um corpo que, ao tornar-se coletivo, nasce com a nova
personagem. Entretanto, cotidianamente, agregam-se novas composições ao seu
desenvolvimento, deixando-nos uma imagem que nasce mais de uma vez, com a
necessidade e com novos contextos políticos capazes de tonificar a idéia desse
nascimento ininterrupto, múltiplo e ressignificado.
Nesse processo gestacional, alguns termos são redimensionados: a memória, o
testemunho, a luta, a escritura e o legado transbordam semanticamente rumo a
performances viáveis ao encontro com aqueles que as criaram: filho e Madre, criador e
criatura. Nessa relação com algo que se imagina para ter forma, a escritura ganha um
significado extremamente importante e valioso, uma vez que nela se costuram distintos
presentes: um tempo plural e em rede, enviesado pelo passado e alinhavado pelo futuro.
Durante dez anos, as oficinas literárias refletirão o encontro da personagem com
a escrita de si, gestada pela memória e pelo anseio de mais uma possibilidade narrativa.
Assim como no trajeto de Ariadne, o texto surge como um labirinto, capaz de conduzir
os leitores a experiências e histórias que se modelam para existirem literariamente.
No passeio por esses bosques possíveis – uma referência a Umberto Eco – o
encontro com narrativas ficcionais é o percurso que conduz às imagens constitutivas da
personagem da escritura, ao tecer confabulações literárias que, em círculos, retomam a
idéia do labirinto textual. O aspecto circular desses textos traduz um impasse: dar voz,
no presente, às imagens do passado capazes de ressemantizar – e transgredir – as
narrativas que escreverão o futuro, ao questionar (e propor através da literatura) a noção
113

de memória acerca dos desaparecidos. Essa nódoa do passado é a matéria-prima que


serve como base para os projetos e letras da escritura materna.
Um ensaio tramado pela bricolagem do agora com o acontecido, à perspectiva
de releitura no devir, é o material mais vivo produzido durante os encontros semanais
com a escritura. É nas oficinas literárias que, suspenso o dever de um testemunho
jurídico, entra em cena uma realidade mediada pelo imaginário, modelada pela ficção e
gestada, uma vez mais, pela palavra derivada da ausência. E, se viver uma tragédia é
deparar-se com o inefável, a ferida assume uma dimensão óssea: sem ser escrita, é da
marca e da cicatriz o papel que sustenta a personagem que encena seu mais belo ato: ser
mãe, sendo Madre.

3.2. Traçados de uma história em construção


“Nada mais do que um momento do passado?
Muito mais, talvez; alguma coisa que,
ao mesmo tempo comum ao passado e ao presente,
é mais essencial que ambos”

Marcel Proust, em O tempo redescoberto.

Após a experiência de Poemarios (1981), escrito ainda num momento de


definição do movimento, as Madres retomam um intento literário cujo distintivo traz
um importante significado: em diferença do primeiro encontro com a escritura, a nova
fase se configura num período em que esse encontro é mediado por uma oficina que
dará forma e traços literários ao desabafo, à luta e ao testemunho daquelas a quem o
desaparecimento fez surgir em/como novas personagens.
Nesse reencontro com a escritura, há o resgate da história de um tempo que,
através da possibilidade ficcional, se recria para poder existir em meio ao silêncio.
Frente a essa perspectiva, os anos que traçam a cronologia do movimento são cruzados
por momentos em que, de acordo com a perspectiva de Edgar Morin, em Amor, poesia e
sabedoria (1999), a redescoberta da escritura surge como um caminho de trânsito entre
os estados prosaico e poético, ao compor sujeitos que renascem e se recriam nas letras.
Compreendida como momentos poéticos, as oficinas literárias se transformarão em
possibilidades interpretativas de uma memória que se narra e se desvela na ficção, com
o requisito da originalidade deste termo.
O estudo da escritura produzida pelas Madres de Plaza de Mayo coteja muitos
aspectos, como a memória e a possibilidade de uma reescritura ficcional historiográfica.
Em seus textos, a questão do testemunho emerge através de uma necessidade que
114

transborda da dor para ser escrita na perspectiva retórica da sinédoque: no texto,


plasmam-se vozes de trágicas experiências.
Com efeito, a compreensão do termo ficção se configura como um importante
percurso rumo à leitura dos textos que serão produzidos por elas. Embora escrevam,
elas não se apresentam como escritoras; seus livros, ainda que publicados, não
pretendem compor uma expressão literária cuja envergadura teórica lhes permita
ascender como cânone. Peculiares, os escritos das Madres fogem a parâmetros literários
para existirem literariamente.
A ficção elaborada por elas não será escrita (nem deve ser lida) como um
invento. Dela, é resgatada a noção latina do verbo fingere, cujo significado nos remete a
“moldar”, “plasmar”, reiterando que é do mesmo verbo que surge a palavra “fictício”,
definida por Wolfgang Iser 102 como parte mediadora na tríade “realidade – fictício –
imaginário”. Nessa perspectiva, o fictício é tomado como um percurso viável para a
representação imaginária que conduz ao real, ao realizar-se através do fingimento e se
desnudar em estratégias transformadoras de sua própria irrealização.
Se o primeiro ato de fingere nos leva à noção de modelação, o que Karlheinz
Stierle considera como “dar forma ao informe, converter o barro em figura” (STIERLE,
2006, p. 13), sua relação com a escrita das Madres emerge da possibilidade discursiva
que dá forma, em versos, ao corpo dilacerado pela ausência. Urdida pelo imaginário, a
escritura desse sujeito é constituída pela impossibilidade de narrar o real, entretanto, é
ao subvertê-lo ficcionalmente que temos a mediação entre o inefável e o imagético,
plasmada em linhas que, timidamente, reescrevem interpretações de memória e
vivência.
Nessa passagem entre o real e o que se realiza na interdição de sua possibilidade
existencial, essa escritura traduz impasses que dialogam (e se defrontam) com o sujeito
que narra suas experiências. Distante dos discursos proferidos nas tardes de quinta-feira
na Plaza de Mayo, o panfletário se metamorfoseia num encontro com a redescoberta das
letras, vislumbrado pela ficção que o conduz ao “laboratório do possível”: a literatura.

102
Em ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Tradução de Johannes
Kretschmer. Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.
115

3.3. Redescobrindo as letras

Em meados de 1990, a trajetória rumo à escritura é iniciada em um momento


que, embora se distancie do marcado pela paisagem da Plaza, conserva em si a imagem
que dele provém e decorre. Sentadas frente à folha branca que espera para ser
preenchida com memórias, as Madres se reuniam semanalmente para uma oficina
literária, uma proposta despretensiosa que (a)guardava apenas um antigo projeto de
contar a história do movimento que já completava mais de uma década. É nesse
contexto que as letras da literatura lhes aparecem com um desafio, ao qual elas
enfrentam com o mesmo leitmotiv que, há tantos anos, as unia. Por que construir esse
projeto? Elas respondem, mesmo sem escrevê-lo: para seguir projetando-se na luta e
dignificando seus desaparecidos.
Assim como a luta, a escrita nasce da experiência, do vivido e do que foi
suportado. É dessa vivência que emerge a personagem literária, que (sem seu lenço
branco) encontra nas alegorias uma opção narrativa para parir uma vez mais o filho
desaparecido. Ali, com os avais da ficção, elas são as personagens de suas próprias
histórias, tecidas pelo sujeito consciente de sua condição trágica e seduzido pelas linhas
que lhe permitem ressemantizar a dor em literatura.
É nesse contexto que, em 1991, após um ano de oficina literária coordenada pelo
escritor argentino Leopoldo Brizuela103 , as Madres da Asociación Madres de Plaza de
Mayo escrevem Nossos sonhos, publicado por um grupo de apoio a elas na Espanha.
Representando um valiosíssimo material no tocante ao estudo dessa escritura, o livro –
distintamente de Poemarios (1981), O coração na escritura (1997) e Pluma
Revolucionária (2007) 104 – não foi reeditado, e a edição a que tivemos acesso é uma
fotocópia do único exemplar disponível na Universidad Popular Madres de Plaza de
Mayo. Curiosamente, esse material aparece como uma escrita da transição, reinserindo
algumas imagens já mencionadas em Poemarios e antecipando os projetos de luta e
engajamento presentes em O coração e Pluma.
Com escritos de autorias individuais e coletivas, o livro é uma compilação de
trinta e dois textos elaborados, lidos e retrabalhados pelas Madres e por uma pessoa que
a elas se junta nessa empreitada narrativa. Com uma trajetória literária mais extensa e

103
Em nossa entrevista, Leopoldo nos contou a respeito desse desafio, uma vez que havia uma grande heterogenia
intelectual entre as Madres, o que possibilitou a pluralidade no trato dos temas propostos antes da escritura.
104
Títulos originais: Nuestros sueños, El corazón en la escritura e Pluma Revolucionaria.
116

definida, Leopoldo é a imagem virgiliana que as conduz à elaboração ficcional da dor


outrora expurgada na poesia. Nessa seara ainda do desconhecido, elas entram
timidamente, esboçando um pedido de licença ao leitor que se encontra com Nossos
sonhos.
Escrever é agora deparar-se com um propósito de fazer literário. Assim como
nas marchas semanais da Plaza de Mayo, elas têm um encontro marcado com a escritura
de si, de seus filhos e dos sonhos de ambos. Para tal realização, elas se reúnem, lêem um
texto que, provavelmente, encaminhará o tema do dia, e elaboram narrativas capazes de
parir novamente os ideais e a história de seus entes desaparecidos.
Redescobertas, as letras dão forma às reminiscências, traçando uma memória
que evoca, ficcionalmente, a infância e a juventude da figura madura que se transforma
em personagem de si mesma. Autobiograficamente, é constituído um relato do sujeito
formado na coletividade e reconhecido como Madre, o qual, sozinho com sua folha de
papel, se reencontra com as imagens que o produziram. O pronome “nós” (definidor de
alguém que, com outro alguém, conjuga seus atos) é empregado sob uma perspectiva
semântica na qual o individual, o subjetivo, é resgatado após haver-se conformado
como uma resposta conjuntiva de enfrentamento.
Um retorno ao estado poético (MORIN, 1999) esboça um período em que o
amor é transcrito e transformado em texto, após a inevitável prosaidade decorrente das
obrigações desse novo sujeito transeunte entre códigos e leis estampadas em panfletos e
discursos políticos. A personagem que ocupa a Plaza pela primeira vez, em abril de
1977, e de lá não sai, dando voltas capazes de desestabilizar o público, ressurge
tonificada pelo amor ao ente desaparecido e pela imagem de luta por ela elaborada.
Com efeito, essas reconfigurações aparecem como legado invencível, revivido e
ressignificado pela personagem madura em seu pacto escritural.
Sem o lenço branco (véu que desvela e sagra a união transcendente e
inquebrantável com os desaparecidos), elas se reconhecem em memórias e testemunhos
que, assim como o lenço, compõem a performance da resistência. Resistindo à prosa do
mundo e se rendendo à poesia – ressemantizada num estado que permite expressões
subjetivas, geradas pelo simbólico e pelo metafórico –, o encontro com a escritura se
manifesta como uma alternativa na qual a comunhão literária reitera a noção de que “a
verdadeira novidade nasce sempre de uma volta às origens” (Idem, p. 43).
A imagem recuperada da criança e da adolescente, partícipes na constituição do
ator político identificado coletivamente como Madre, é um tema que define grande
117

parte do projeto desenvolvido nas oficinas. Ao redescobrir as letras, é delas agora o


papel sobre o qual serão modeladas as linhas testemunhais, traçados biográficos que
dialogam entre o imaginário e o fictício, propondo-nos uma realidade engendrada pela
poesia.
Entretanto, sobre esse projeto, há um questionamento: é possível narrar o horror?
Em Crítica cultural e sociedade (1949), segundo as palavras de Adorno: “escrever um
poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói até mesmo o conhecimento de
por que hoje se tornou impossível escrever poemas” (ADORNO, 1949, p. 26). Todavia,
ao ter contato com a poesia do escritor romeno Paul Celan, cuja biografia é marcada
pela Shoah, o filósofo considera, na terceira parte da Dialética negativa (1966), que “a
dor perene tem tanto direito à expressão quanto o torturado ao grito, por isso pode ter
sido errado afirmar que não se pode escrever mais nenhum poema após Auschwitz”
(ADORNO, 1966, p. 355, apud SELLIGMANN-SILVA, 2004, p. 74).
Frente aos atos nazistas desempenhados durante os anos que compõem a trágica
memória de um tempo inexoravelmente assinalado pelo terror, qualquer comparação à
singularidade desse evento parece inoportuna e infeliz. Por outro lado, desconsiderar as
sofisticadas estratégias de desmantelamento humano, empregadas durante os períodos
de ditadura militar nos países latino-americanos, é não reconhecer que, mesmo após
Auschwitz, nos deparamos com contextos potencialmente calamitosos. A respeito dessa
reinserção da catástrofe para a construção de narrativas de memória, Andreas Huyssen
considera, em Seduzidos pela Memória, que:

“No movimento transnacional dos discursos de memória, o Holocausto perde sua


qualidade de índice do evento histórico específico e começa a funcionar como uma
metáfora para outras histórias e memórias. O Holocausto, como lugar-comum universal,
é o pré-requisito para seu descentramento e seu uso como um poderoso prisma através
do qual podemos olhar outros exemplos de genocídio.” (HUYSSEN, 2000, p.13)

Durante o Processo de Reorganização Nacional, a sociedade argentina foi


espectadora de atos que questionam nossa compreensão acerca do humano. Se a tortura
representa um artifício capaz de dissociar o corpo do indivíduo, uma vez que qualquer
possibilidade de reação do sujeito torturado deixa de significar sua expressão, o que
resta do corpo brutalmente lastimado é o desprovimento de suas condições mínimas de
cidadania. Acidadanizado, assujeitado e animalizado, a última saída do corpo, cuja
carne é carbúnculo, é tornar-se afático. O silêncio na tortura emerge como uma
impossibilidade narrativa que, paradoxalmente, preserva e aniquila a mente que sofre.
118

Torturados também são os corpos dos que vêem a imperativa ausência daqueles
com quem os laços de amor passam a ser restritos à memória. Desaparecidos, esses
corpos passam a existir – de maneira muito mais forte e presente – nas narrativas
construídas por suas mães, no caso, por suas Madres. Ao contrário do que pode enterrar
e representar uma cerimônia de sepultamento, o corpo de um desaparecido ronda sem
terra, sem túmulo e sem simbologias que possam entregá-lo ao rito de passagem que o
eleva e retira dentre os vivos. A ausência aparece muito mais presente, ao convocar
ainda mais o simbólico, capaz de transmutar a perda em uma imagem inextinguível.
A mãe que se encontra com outras com as quais partilha da mesma dor,
inextricavelmente, caminha ao lado do filho desaparecido que a pare como Madre.
Desse encontro-resgate, surgem inúmeras representações capazes de desestabilizar a
língua-de-espuma 105 falada durante a época de silenciamento perpetrada pela ditadura
militar. Novas significações aparecem gestadas pela necessidade de recriar sentidos
ressonantes que não se calam; desdobram-se (e incomodam). Paralelamente a tantas
imagens criadas pelas Madres para representar os desaparecidos (como os lenços
brancos, os cartazes com fotos, as silhuetas e as máscaras 106 ), os escritos produzidos
durante as oficinas literárias tornam-se mais uma importante oportunidade de encontro
com aqueles que, ao desaparecer, se presentificam para sempre na (re)constituição do
sujeito nascido com sua ausência.

3.4. Nuestros sueños: histórias para nossos filhos

Como um dever de testemunho e memória, os textos que integram Nossos


sonhos resgatam múltiplos momentos e episódios de vida da personagem que escreve. O
projeto dessa composição é claro e reiterado: expressar o que elas sentem; conhecerem
as próprias vozes e, assim, a si mesmas; coadunar a escritura com a luta. Nesse
movimento de reflexão, a possibilidade oferecida pelo literário aparece como uma
tentativa de autoconhecimento, empreendida pela personagem que se cria na escritura,

105
Referência à definição de Eni Puccinelli Orlandi, em As formas do silêncio (2007), a respeito de uma língua na
qual os sentidos não ecoam, falada, segundo a autora, durante o golpe militar no Brasil.
106
Em relação aos cartazes, logo no princípio do movimento, elas faziam a ronda com fotos que traziam o nome do
desaparecido e a data, aspecto que ainda se conserva na apresentação da Línea Fundadora. Além dessas
representações, em 1983, durante a terceira Marcha de Resistência, elas decidem criar siluetas de papel, sobre as
quais novamente apareciam o nome e a data de arresto dos desaparecidos. Em 1985, a nova performance será
realizada por inúmeras pessoas trajando máscaras brancas, simbolizando os 30.000 detidos-desaparecidos e
expressando o protesto relativo ao silêncio dos meios de comunicação durante os julgamentos dos envolvidos nas três
primeiras juntas militares.
119

mesclada pelas lembranças da autora e pela necessidade de escrever a história


interrompida de seus desaparecidos. O destinatário, embora desconhecido, é um leitor
imaginado, algumas vezes mencionado como seus familiares ou aqueles para quem a
história delas encontre sentido e espaço.
Para a execução do projeto, elas iniciam o percurso escritural com um duplo
pedido de licença e desculpas, o que se verifica nos pequenos relatos a respeito do
receio desse intento literário, para confirmar-se no texto que abre as narrativas do livro.
Tramada a proposta de pacto com o leitor – (des)conhecido transformado em co-
testemunha da personagem que revela sua composição – em “Uma anedota
santiaguenha”, assinado pela Madre Mimí, encontramos um relato ficcional que deixa
claro o trajeto nesse “bosque possível”. A autora, ao resgatar uma história
possivelmente apócrifa, narra um encontro entre um doutor em literatura e um homem
que viaja para visitar sua família. Desse episódio, decorre uma série de explicações do
professor acerca da fala do viajante, o qual será corrigido em vários momentos por não
respeitar a norma culta de sua língua. Ao término da história, o homem se irrita
profundamente com o literato e, usando os mesmos argumentos outrora mencionados
para o caminho de seu “falar correto”, diz: “– Faltava mais, professor. Só estava
pensando se o mando “a” ou “à” merda.” 107
Embora envolvida pelas estratégias da ficção, a narrativa de Mimí dita o tom da
leitura do livro. O leitor desconhecido, seja ele quem for e a que se dedicar, entra nesse
bosque consciente de que, mesmo com tantos caminhos possíveis, não lhe é lícito
corrigir as histórias e os modos de contá-las ali propostos. Essa distância já na “entrada”
evidencia curiosas perspectivas: é preciso narrar e aceitar o que é narrado, e se o texto,
depois de publicado, deixa de pertencer somente ao autor, o que nele foi relatado segue
pertencendo somente a elas, constituindo mais um legado pessoal e intransferível da
personagem e de sua tragédia compartilhada, lida e escrita com aquelas que, com ela,
assinam como Madres.
O texto subseqüente ao de Mimí é um fragmento que aparece sem título
(referenciado apenas no índice como “A sabedoria”), no qual a autora María del Carmen
faz algumas reflexões a respeito da noção do saber. Segundo ela, isso não provém da
esfera social ou de uma classe privilegiada, entretanto, consiste em “poder viver bem,

107
Título e textos originais: “Una anécdota santiagueña”. “– Faltaba más, profesor. Sólo estaba pensando si lo mando
“a” o “para la” mierda.” (Idem: 3).
120

108
aprendendo da vida tudo que ela nos dá, e aplicando no momento oportuno.” Nessa
perspectiva, ainda que nos seja permitido desconhecer alguns traços biográficos de
María del Carmen (ser professora), não nos é lícito ignorar que a personagem que
escreve ressalta a importância da vivência para a edificação de seu projeto narrativo.
Com efeito, nessa empreitada, ela compartilha com suas companheiras de luta uma
trajetória que, alheia à sua história docente, será escrita com o material que a vida lhes
deu, encontrado e conformado no grupo. É o desaparecimento do filho que legitima essa
escritura.
A urdidura criada resgata o silencioso pacto presente no texto seminal do
movimento: a carta de apresentação/princípios éticos “Nuestras consignas”, transcrito
integralmente no capítulo anterior. Novamente, na planta baixa dessa construção
textual, lemos a apresentação e a reivindicação ao reconhecimento de um complexo
ethos, constituído pelo sujeito que escreve suas memórias (através da ficção),
recuperando uma trajetória antes e depois do desaparecimento de seu filho, cujas
lembranças se misturam biograficamente à composição da personagem Madre-
escritora.
Além desses elementos, matiza-se um intento de reescritura biográfica do ser
ausente. Contudo, isso se transforma na releitura de um texto apócrifo; não há a voz do
desaparecido, não há escritos de sua história. O corpo, perenemente impossibilitado de
ser sepultado, volta a existir nas linhas da Madre, quem conta uma história do ser
amado tingido, marcado e protegido por aquela que, novamente, será responsável por
trazê-lo ao mundo. Simbióticos, Madre-texto-desaparecidos existem através da
personagem que se cria e, no mais primário sentido da ficção, dá forma ao testemunho e
à memória da imagem, há mais de trinta anos, constitutiva de sua composição cênica.
Embora as narrativas de Nossos sonhos não configurem um relato da tragédia
per si, a autoria dos textos delata o semblante testemunhal dessa escritura. Quem assina
são as Madres de Plaza de Mayo, personagens nascidas com o desaparecimento de seus
filhos. Logo, a arquitetura dessa ficção elaborada textualmente projeta a construção de
um sujeito que, após ter sido vítima do desaparecimento forçado de seus entes queridos,
seguirá lutando para a edificação de um dever de memória, ao propor o esboço de outra
história como legado.

108
Título e texto originais: “La sabiduría”. “(...) La sabiduría consiste en poder vivir bien, aprendiendo de la vida
todo lo que ella nos da, y aplicándolo en el momento oportuno.” (Idem: 3).
121

Distanciadas das noções de testemunha direta e testemunha vicária, as Madres


não compõem os relatos do livro de forma representativa ou jurídica; suas narrativas de
memória ocupam, no presente, o lugar da urgência de uma voz para a trajetória iniciada
com seus filhos. Há um intento de protagonismo, em que o sujeito que escreve torna-se
o porta-voz de um projeto contra o esquecimento, ao transformar-se pelo rechaço ao
silêncio e atribuir para si um dever de memória, um aspecto que, segundo Jeanne Marie
Gagnebin, representaria um novo olhar sobre a essa testemunha:

“Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração
insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezem na história do outro: não
por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica,
assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva
do passado pode nos ajudar a não repetir infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra
história, a inventar o presente” (GAGNEBIN, 2004, p. 85)

É-nos claro que, dentre as estratégias militares, o desaparecimento é a mais forte


imagem de perpetuamento de ausência e, contraditoriamente, presença. Desse feito
atroz, o testemunho e as narrativas sobre as torturas aplicadas aos detidos-desaparecidos
são inexistentes; não há corpo, não há voz, não há sujeito para contar. No entanto, em
lugar do corpo atirado ao mar, emerge a mãe, personagem que, assim como Sherazade,
se propõe a contar de distintas formas a mesma narrativa que posterga seu fim. E ainda
que isso não seja capaz de retirá-la desse encontro com a morte, seus relatos persistem
nas vozes de outrem. O leitor não passeia incólume por esse bosque: ele se torna mais
uma testemunha dessa história inesquecível, e sua tarefa é não permitir o retorno
daquilo que um dia produziu a personagem que escreve.
Na planta baixa que sustenta esse projeto, há um plano de memória. Assim como
em Museo de la novela de la Eterna (1967), do escritor argentino Macedonio
Fernández, o que vemos em Nossos sonhos são inúmeros relatos indiciadores de uma
história que, de fato, ainda aguarda para ser contada. No entanto, como nos mais de
cinqüenta prólogos de Macedonio, a narrativa se realiza. Embora distanciados temática
e temporalmente, esses livros se constituem como um exemplo de narrativa que não se
esgota, não há fim para esse intento de escrever a memória.
Em Museo, o plano se realiza na tentativa de eternizar “Elena”; “Dulce-
Persona”, esposa falecida do autor e metáfora nominal maiusculizada no título do livro.
Em cada texto, há o intuito introdutório de um romance que só acontece no final,
perdido entre mais de cem páginas de prólogos distintos, os quais traduzem muito mais
122

um jogo com a impossibilidade narrativa do que um anúncio daquilo que é trabalhado


no enredo em si.
A idéia da escritura como imagem de museu é outro dado interessante na
comparação entre os livros. Na impossibilidade de “estetizar arquitetonicamente ou
monumentalizar o vazio” (HUYSSEN, 2000, p. 112), o evento traumático de
Macedonio se transforma na edificação de um texto sobre ruínas. Suas memórias não se
encerram (nos dois sentidos do verbo) em um espaço destinado a guardar os fósseis do
passado, e é no texto literário que elas se realizam, escritas, principalmente, na
inexecutabilidade de uma concretude monumental. O museu deixa de ser o espaço físico
que abriga as imagens do passado para transformar-se na grande metáfora do texto
como espaço de “mnemo-história” (idem, p. 28), ao ser escrito e reescrito com rastros
do passado, ressignificados num presente imaginado pelas hipóteses de leituras no
futuro.
Em relação a esse livro das Madres, se a idéia de museu é completamente
negada, é pela composição de projetos discursivos de memória que o evento singular
volta a existir e, assim, ser preservado contra o esquecimento. Em ruínas que delatam o
produto ditatorial, elas constroem imagens em apelo a novas possibilidades
historiográficas acerca de si mesmas e (com) seus desaparecidos.
O plano anunciado na composição ficcional de Nossos sonhos ganha voz em
outras instâncias; nas marchas da Plaza de Mayo, nos periódicos e nos livros História
109
das Mães da Praça de Maio (1996) e Lutar Sempre (2002) , longe de um intento
literário, temos acesso à trajetória detalhada do movimento. Em momentos como esses,
a imagem do desaparecido é tonificada, sendo dela cada página que compõe os
testemunhos desses livros em busca de uma revisão jurídica ao que foi realizado nos
anos ditatoriais. Às linhas da ficção, ficam as narrativas da imaginação e da
possibilidade de recriações literárias. Entretanto, é pela não escritura verídica que estes
relatos convidam o leitor à interpretação de sua própria história, pois, mesmo sem poder
questionar a identidade de quem os escreve, uma nova mirada sobre o trauma do
desaparecimento é narrada.
Embora a leitura de Nossos sonhos não represente um documento
historiográfico, o livro serve como suplemento à compreensão de uma memória que,
através da ficção, será modelada e edificada como mais um viés para a existência dos

109
Títulos originais: Historia de las Madres de Plaza de Mayo e Luchar Siempre.
123

desaparecidos. Nessa perspectiva, ele se transforma num espaço capaz de conjugar o


testemunho, a criação literária e, inevitavelmente, a reabertura de feridas e
questionamentos. Assim como História e Lutar Sempre, ele e os outros produzidos com
o material das oficinas literárias constituem o legado dos lenços brancos à celebração da
cíclica gestação empreendida pós-desaparecimento forçado.
Dividido em três capítulos, “Nossos filhos, nossa luta”; “Tecendo sonhos
110
(ficções)” e “Nós” , o livro nos possibilita alguns caminhos interpretativos,
propondo-nos uma análise a respeito dos temas presentes nas narrativas que o integram.
Além dos trinta e dois relatos do índice, há outros seis que, embora apareçam sem
referências de título e/ou autoria, colaboram para o traçado literário de Nossos sonhos.
Em forma de fragmentos, eles retornam trazendo a leitura de um texto que não foi
publicado e, nessa não existência para o leitor, o que ali se escreve também deve ser lido
como um relato, uma narrativa literária.
As reminiscências familiares, o sujeito coletivo, a luta compartilhada, o filho
desaparecido e as imaginações do futuro são caminhos temáticos interessantes para a
compreensão da arquitetura do plano de memória. As viagens como metáforas de
reencontro e descoberta também se configuram como um atrativo alicerce nessa (re)
composição da personagem que escreve. E, ainda que os títulos dos capítulos sugiram
uma organização temática, a proposição neles presente não se detém às páginas que os
demarcam. Os textos se mesclam e se reiteram continuamente, deixando como diferença
apenas o que se inscreve, curiosamente, como “ficções”, palavra de observação presente
em duas partes de Nossos sonhos.
A aposta no porvir, as recordações, as viagens, o filho desaparecido e o coletivo
(sujeito e luta) são os pilares sobre os quais as Madres edificam a composição textual de
Nossos sonhos, cuja referência reitera o compromisso de memória. Presente em vários
momentos, a idéia de imaginar o futuro mirando desde o presente é o ponto de partida
111
do livro. Em “A oficina (I)” , escrito a muitas mãos, podemos perceber o desejo
coletivo de dar forma às experiências e à proposta de legado via literatura. Composto
por fragmentos das Madres a respeito do que lhes representava o encontro com a
escritura, o texto traz passagens – sem referências nominais – como: “E agora me
coloco a escrever, e estou sob o olhar de Susana e de seus companheiros (...)”, “Sim,

110
Títulos originais: “Nuestros hijos, nuestra lucha”; “Tejiendo sueños (ficciones)” e “Nosotras”.
111
Título original: “El taller (1)”. É interessante ressaltar que os relatos que compõem esta parte não integram um
texto atrelado a um determinado capítulo. Como um prólogo, eles conduzem os primeiros passos do leitor rumo à
compreensão de que os escreve.
124

agora me atrevo a escrever porque com a luta compreendi que tudo tem importância,
tudo tem sentido, de tudo se pode aprender, inclusive do que eu posso escrever, por
estranho que me pareça. Só tem que aprender a olhar como quando alguém lê” e “(...)
Sei que não sou capaz, mas não quero ficar de fora” 112 (1991, p. 1).
Numa mescla de medo do desconhecido e necessidade de contar uma história, o
porvir é escrito com vozes que, mesmo sentindo-se incapazes para tal empreitada, se
dispõem ao intento literário como parte da luta e resgate do filho. Presente não só no
“olhar de Susana”, mas como nos outros 30.000 detidos-desaparecidos que aguardam
(por suas Madres) o dever de contar a “história cotidiana de nossos filhos, a pequena
113
grande história de cada militante revolucionário, a crônica de sua entrega” (idem, p.
8), o desaparecido ganha voz através da elaboração discursiva projetada pela memória
da Madre.
O fragmento acima transcrito é um dos textos que não aparece no índice. Sem
título e autoria, ele pode ser comparado aos prólogos de Macedonio, pois nele se
traduzem os projetos de escritura do livro. Com base no questionamento “quem
escreverá a história de nossos filhos?”, a autora delineia os traçados de uma escritura
futura que, mesmo ausente em Nossos sonhos, se torna presente no plano narrativo,
114
como “algo que ainda devemos a gerações futuras e a eles especialmente” (idem).
Em interstícios, a memória aparece com distintas cores, ao compor um quadro que,
embora fragmentado, representa harmonicamente seu propósito.
Em relação ao que pode configurar o ato de narrar o horror, um breve paralelo
com o contexto brasileiro mostra-se interessante, ao pensarmos na proposta narrativa de
livros como O que é isso companheiro?, de Fernando Gabeira. Com um duplo propósito
de dar voz à experiência traumática e imaginar um intento de denúncia reelaborado no
literário, a narrativa se projeta numa hipótese contra o esquecimento, ao (re)tratar no
presente da escritura as imagens do passado, atualizando o tempo vivido pela crença no
porvir. O ato de narrar se constitui como um desafio que, segundo Renato Franco:

112
Textos originais: “Y ahora me pongo a escribir, y estoy bajo la mirada de Susana y de sus compañeros”, “Sí, ahora
me atrevo a escribir porque con la lucha comprendí que todo tiene importancia, todo tiene sentido, de todo se puede
aprender, incluso de lo que puedo escribir yo, por feo que me parezca. Sólo hay que aprender a mirar como cuando
uno lee” e “Sé que no soy capaz, pero no quiero quedar afuera.”
113
Texto original: “historia cotidiana de nuestros hijos, la pequeña gran historia de cada militante revolucionario, la
crónica de su entrega”.
114
Texto original: “¿quién escribirá la historia de nuestros hijos?”, “algo que todavía debemos a las generaciones
futuras, y a ellos especialmente”.
125

“assemelha-se portanto a um instigante quebra-cabeça, que, pouco a pouco, por meio


do acréscimo de detalhes mínimos à experiência traumática, acaba por adquirir
configuração nítida. Reconstruir essa história – salvá-la do esquecimento – é, no
entanto, também um formidável ataque ao inimigo, uma vez que ela abrange tanto a
denúncia da barbárie e das atrocidades por ele cometidas como a reconstituição do
rosto desfigurado dos mortos, os quais tentaram, no passado, construir uma vida
diversa da do atual presente. Narrar as ruínas dessa tentativa é um modo de atualizá-
las.” (FRANCO, 2003, p. 362)

Na perspectiva da “reconstituição do rosto desfigurado dos mortos”, a narrativa


das Madres recupera fragmentos de histórias que, pela inexorabilidade de seus fatos, só
podem existir literariamente, escritas com o que Selligmann-Silva considera como
“compromisso ético” 115 (2003, p. 371). Ao mesmo tempo em que há o dever de contar a
história de seus desaparecidos, as Madres o fazem através da literatura, bosque que
permite reconfigurações do “real” ao não conjugar sua transposição imediata. Analisado
pelo autor neste momento como trauma, o “real” só pode existir pelo viés de seu
redimensionamento literário, pois “apenas a passagem pela imaginação poderia dar
conta daquilo que escapa ao conceito” e, ao citar autores sobreviventes da Shoah,
Selligmann-Silva conclui: “aquilo que transcende a verossimilhança exige uma
reformulação artística para a sua transmissão” (idem, p. 380).
Sem mencionar o evento, em “Tandil acima”, Juana de Pargament termina seu
relato sobre as lembranças de sua família na localidade de Tandil, reiterando a
singularidade de sua tragédia e a esperança no porvir. Nos dois últimos parágrafos, a
certeza de ressemantização da luta como possibilidade de renascimento do filho
desaparecido é a imagem herdada do relato que diz:

“[...] conversar tranqüilamente horas e horas projetando um futuro que não se


cumpriu, mas que o programávamos, tudo isso valia à pena vivê-lo e senti-lo.
Quis a vida que todo este sonho que hoje voltou para mim e que é parte do
passado seja um tônico para a alma: a recordação de algo que foi e que serve para que,
ao despertar, diga que não importa, pois giraremos a vela da nave para tocar outros
portos, e viver e desfrutar de outros elementos, de outras situações.”(1991, p. 9, grifo
nosso). 116

Onde se inscreve um “futuro que não se cumpriu”, os rostos desfigurados dos


desaparecidos desvelam o trauma do “real” presente na ficção. E, ao não mencionar a
ferida, a autora expõe sua chaga e testemunha a dor da perda. Sua narrativa não só se

115
“O testemunho: entre a ficção e o “real”, in: História, Memória e Literatura. O testemunho na era das
catástrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
116
Título e textos originais: “Tandil arriba”. “conversar tranquilamente horas y horas proyectando un futuro que no se
cumplió, pero que lo programábamos, todo ello valía la pena vivirlo y sentirlo. / Quiso la vida que todo este sueño
que hoy ha vuelto para mí y que es parte del pasado sea un tónico para el alma: el recuerdo de algo que fue y que
sirve para que, al despertar, diga que no importa, pues giraremos la vela de la nave para tocar otros puertos, y vivir y
disfrutar otros elementos, otras situaciones.”
126

projeta como uma releitura do passado como, também, serve de base para o percurso
futuro que Juanita (como costuma ser chamada) se destina a seguir. Girar a vela, tocar
outros portos e chegar a outras situações são promessas de não esquecimento e
perpetuação de uma luta que a autora considera para seguir em seu sonho, metáfora que
resgata o filho e se projeta no encontro com suas companheiras, com as quais ela
escreve seu desejo de futuro e dá nome ao livro.
Essa aposta no porvir é confirmada em “Marcha da Resistência” (1991, p. 14),
texto também assinado por Juanita, e em “Com este lenço branco” (idem) 117 , de autoria
coletiva. Em relação à rememoração das imagens da primeira Marcha da Resistência,
realizada em dezembro de 1981, a autora rememora o que representou a ocupação da
Plaza por 24 horas para o projeto a que se propuseram construir.
Após uma série de recordações, ela afirma: “sim, nós Madres lutamos pelos que
foram levados, mas também pelos que vêm e virão (...)” (idem), e, sem falar de
desaparecimento, delata o trauma e imagina o futuro; à espera dos que “virão”, a autora
“toca” o inimigo, ao mostrar-se vigilante e fiel àqueles que “foram levados”. O filho
desaparecido é ressignificado na luta compartilhada e na ambição da perpetuidade do
movimento, resgatado em “Com este lenço branco”, nos versos: “com nossos lenços
brancos / atamos um destino / a novas gerações / lhes marcamos um caminho” 118
(idem).
Com efeito, a crença no devir aparece junto às recordações da personagem que
escreve, entremeadas pela imagem do sujeito coletivo constituído pela promessa de
dignificação do desaparecido. Indissociáveis, a memória e o testemunho das autoras se
revelam num plano decorrente do evento trágico, ora reelaborado pelo fazer literário. O
trágico, nesta perspectiva, se configura no mote de: “com nossos lenços brancos / vamos
juntas companheiras / a justiça está na Plaza / 30.000 filhos esperam” 119 .
Em meio aos vários momentos de escrita coletiva de Nossos sonhos, “Com este
lenço branco” reaparece em O coração na escritura, seis anos após a publicação dessa
escrita da transição. Um dado curioso é em relação à sua presença nesse segundo
momento, pois será o único texto de autoria coletiva presente em O coração. Sua
reinserção confirma a voz coletiva clamante por justiça. Nesse texto de conclamação à

117
Títulos originais: “Marcha de la Resistencia” e “Con este pañuelo blanco”.
118
Respectivamente, textos originais: “sí, las madres luchamos por los que se llevaron, pero también por los que
vienen y vendrán (...)” e “con nuestros pañuelos blancos / anudamos un destino / a nuevas generaciones / les
marcamos un camino”
119
Texto original: “con nuestro pañuelo blanco / vamos juntas compañeras / la justicia esta en la Plaza / 30.000 hijos
esperan”.
127

Plaza, é apresentado o ápice dessa comunhão, fruto da herança deixada pelos entes
queridos, os quais passam a representar os 30.000 desaparecidos. Fortalecidas pela
representatividade do grupo, elas se autoconvocam ao encontro marcado na Plaza: “com
esse lenço branco / vamos juntas companheiras / o caminho está traçado / já a Plaza nos
espera (...) a unidade nos dá a força / contra o perdão e o esquecimento / contra todos os
traidores / contra todos os militares” 120 .
Ao chamar para a cena literária a vestidura que completa a criação das
personagens de si mesmas, as Madres assumem o lenço branco como objeto de
identificação pessoal e intransferível, paralelo somente à dor e ao percurso contra o
esquecimento travado há mais de trinta anos. Assim como no teatro grego, em que a
máscara (persona) caracterizava o papel desempenhado no contexto dramático, os
lenços brancos representam imagens que denotam e diferenciam a mãe marcada pelo
desaparecimento do filho entre outras que a miram na multidão: ela é Madre. Em
perspectivas contrárias, eles não dissimulam ou preservam a face de quem se expõe
publicamente. O rosto é mostrado envolto pela fralda-lenço, símbolo da ausência.
A temática do “sujeito coletivo” que escreve o futuro com suas memórias é a
imagem emergente do fragmento de Hebe de Bonafini, texto que, embora não apareça
no índice, indica ao leitor a identidade complexa desse ator político: “Talvez toda nossa
121
história possa resumir-se como um passo do eu ao nós” (idem, p. 25). Vale ressaltar
um aspecto interessante que se agrega a essa composição: a autora usa o pronome
nosotros, primeira pessoa do plural masculina, em espanhol. Ao fazê-lo, há a reiteração
de uma comunidade imaginada, da qual não só as Madres fazem parte, mas sim todos
aqueles que lutam por questões que sustentam o movimento por elas empreendido.
Nessa entidade complexa, nosotros conjuga o filho desaparecido, o sujeito parido por
ele e todos aqueles que se encontram em situações iníquas. Ainda versando sobre sua
constituição, a autora do fragmento volta na página seguinte para afirmar: “eu sou como
a menina de minha infância / eu sou como minha mãe na cozinha / eu sou como meu pai
trabalhando / eu sou como meus filhos me pariram” 122 (idem, p. 26).
A recordação de seus familiares é mais um matiz que se agrega à formação dessa
personagem. Imagens privadas – mãe cozinhando – se mesclam à esfera pública – pai

120
Texto original: ““ con ese pañuelo blanco / vamos juntas compañeras / el camino está marcado / ya la plaza nos
espera (...) la unidad nos da la fuerza / contra el perdón y el olvido / contra todos los traidores / contra todos los
milicos”
121
Texto original: “Quizá toda nuestra historia pueda resumirse como un paso del yo al nosotros”.
122
Texto original: “yo soy como la niña de mi infancia / yo soy como mi madre en la cocina / yo soy como mi padre
trabajando / yo soy como mis hijos me parieron”.
128

trabalhando –, como elementos que, junto ao filho desaparecido, são responsáveis por
aquilo que Hebe considera ser/representar. A forte relação travada com seus mortos faz
com que a autora, além de revivê-los na escritura, aproxime-os moralmente de si
mesma, questionando a noção de tempo, reiterada pela antítese vida e morte.
Ao analisar a importância sobre esse dever de legado, Roberto DaMatta (1997)
propõe uma interessante perspectiva a respeito dessa proximidade moral entre vivos e
mortos. Ainda que o tema por ele tratado não se refira ao contexto das Madres, é-nos
válido pensar num processo semelhante ao percurso de formação descrito por Hebe para
sua composição.
Ao mencionar a abordagem de Gilberto Freyre, em Casa grande e Senzala
(1933), acerca da hierarquia patriarcal derivada da presença dos mortos no governo e na
vigília dos filhos, netos e bisnetos, DaMatta recupera o mito de Inês de Castro, “a que
depois de morta foi rainha”, para exemplificar “o retorno do morto para ocupar o lugar
momentaneamente usurpado por seus inimigos” (DaMatta, 1997, p. 144). Com efeito,
ao propor uma noção de “endocanibalismo”, o sociólogo explica a perpetuação (na
sociedade brasileira) dos mortos nas relações com os vivos, fazendo destes um produto
daqueles.
A discussão seguinte a essas reflexões se distancia completamente da
compreensão contextual das Madres. Preocupado em analisar as relações entre a casa, a
rua e o outro mundo (o mundo dos mortos) no Brasil, DaMatta encaminha sua
argumentação para a justificativa dos estranhos e complexos laços de poder,
desempenhados pelas idéias de compadrio e parentesco. Entretanto, ao falar da
continuidade dos seres ausentes, a analogia com a proposta desempenhada pelas Madres
nos conduz ao problema do corpo insepulto, uma vez que o sujeito não é vivo nem
morto: é desaparecido.
Se uma proposta “endocanibalística” emerge da relação de Hebe com seus pais,
a relação com o filho desaparecido deve ser lida e compreendida sob uma perspectiva
“gestacional”, já que ela se considera parida pelo filho e por seus ideais. Ela não só se
alimenta da imagem por ela criada de seus filhos, como também é disso que provém sua
vida. Dessa forma, o ser com o qual ela afirma seu inquebrantável compromisso é a
imagem mais presente em Nossos sonhos, ao qual poderíamos acrescentar o subtítulo:
“a projeção dos sonhos de nossos filhos”.
A personagem que escreve suas memórias, através da possibilidade poética
oferecida pela literatura, dá voz ao sujeito marcado pelas experiências de perda e resgate
129

do desaparecido, que ora aparece tingido por traços de suas infância e juventude, ora se
presentifica na versão palimpsêstica atualizada verbalmente pela escritura materna.
Entranhados, Madre e filho caminham juntos, tecendo discursos capazes de evocar a
metáfora e a comparação como elementos fundamentais para o nascimento dos textos
escritos nas oficinas.
Na elaboração biográfica do desaparecido, a semelhança criada entre a
identidade dos filhos só pode ser estabelecida com quem, na memória materna, “deu sua
vida para que outros vivessem melhor.” (1991, p. 11). Logo, numa sociedade
predominantemente cristã, a imagem que mais recupera essa relação de parecença é a de
Jesus Cristo, aspecto que confirma a escrita da transição, pela reiteração do arquivo
afetivo mítico mariano, presente em muitos momentos de Poemarios.
E, se nos poemas publicados dez anos antes havia o clamor à Virgem Maria –
ser semelhante na dor –, em “Carta a Jesus desaparecido”, texto também de Hebe de
Bonafini, o que vemos é uma proposta de interlocução epistolar, na qual a autora
escreve ao redentor para questioná-lo a respeito de sua imagem tal como tem sido
explorada pela Igreja, instituição que ela julga responsável por usá-lo para “fins
espúrios”. Nos trechos finais, Hebe reitera sua aposta no porvir, ao afirmar:

“mas quero que saibas que te sinto meu filho, não porque eu seja como a virgem,
senão porque a luta te transformou, porque teu cabelo grande e tua barba foram
símbolo de uma época em que nossos filhos lutavam pela Utopia, e porque 33 anos
foi a idade média de todos os desaparecidos. A história se repetiu e se repetirá, mas
sempre haverá mães e filhos que pensem que esta vida é a única pela que vale a pena
viver, brigar, e se necessário morrer por ela e para que outros vivam.” 123 (Idem, p. 11,
grifo nosso).

Escrita com letra maiúscula, a palavra “utopia” se sobrepõe a todas as outras


imagens que o texto evoca, equiparando-se somente à nova constituição de Jesus Cristo,
personagem que se repete na saga do desaparecido. Além de resgatar uma importante
matéria para a conformação do movimento, a idéia de utopia serve à crença investida na
luta contra o esquecimento. Ao trazer para seu relato aspectos físicos, como os cabelos
grandes e a barba mal feita, há o paralelo não só com símbolos capazes de religar Cristo
à geração que “deu a vida pela luta”, mas também a personagens como Che Guevara,

123
Textos originais na seqüência em que são traduzidos: “dio su vida para que otros vivieran mejor.”, “pero quiero
que sepas que te siento mi hijo, no porque yo sea como la virgen, sino porque la lucha te transformó, porque tu pelo
largo y tu barba fueron símbolo de una época en que nuestros hijos luchaban por la Utopía, y porque 33 años fue la
edad término medio de todos los desaparecidos. La historia se repitió y se repetirá, pero siempre habrá madres e hijos
que piensen que esta vida es la única por la que vale la pena vivir, pelear, y si necesario morir por ella y para que
otros vivan.”
130

com quem elas ratificam uma maternidade criada na reelaboração biográfica do filho
desaparecido.
Em “nossos companheiros”, as Madres assinam um texto coletivo que, ao trazer
à luz o percurso por elas empreendido, redignifica o filho desaparecido e se projeta
como um plano narrativo de memória. Com fragmentos de várias delas, os textos sem
referências nominais possibilitam a leitura desse indivíduo que, contraditoriamente à
noção de singularidade, é a imagem marcada por uma composição plural, pelo enclave
de biografias escolhidas como parte de um trajeto rumo ao destino selado na herança
(também escolhida) de seus filhos. Ao terminar o texto com a frase “Hasta la victoria
siempre, compañeros” (idem, p. 13), Hebe incorpora em seu relato a voz de Che
Guevara, na seqüência que finaliza outros momentos em que a Plaza e a luta
emblematizam os elementos de união com os “companheiros” do título, evidenciados
em trechos como:
“Deixamos por um momento a plenitude da praça, as idas e vindas dentro da Casa
para unir-nos numa comunhão de sentimentos; sentimentos que souberam despertar
todos os que, dia após dia, hora após hora, compartilham conosco esta luta tão digna
que representa nada mais nem nada menos que a nossos queridos filhos”
“(...) para não esquecer jamais e seguir adiante em busca de mais e mais metas
de amor, necessitamos encontrar-nos, parar-nos, mirar-nos, conhecer-nos. E por isso
encontrei, mãe neste caminho das Madres, estes filhos novos.”
“(...) E, como um tipo de mães muito especial que somos, queremos merecê-
los todos, e esperamos que se sintam, do mesmo modo, nossos filhos.” 124 (Idem –
grifo presente no texto original).

Com efeito, o relato se torna essencialmente repetitivo, ao propor uma imagem


testemunhal que, com atores distintos, insere na escritura o páthos entoado na Plaza.
Circulares, texto e marcha ratificam posicionamentos simbólicos e discursivos que,
justamente por sua repetição, se revelam emergenciais a esse percurso delineado por
uma guinada subjetiva da figura materna emigrante da esfera privada.
Sua dor pública – e publicada – encontra mais um caminho para abrir as feridas
deixadas pelo Estado militar, período que não se detém ao passado; ao contrário, é um
presente vivo e escandaloso, ao qual elas prometem (com seu projeto de dignificação
dos que caíram) nunca perdoar, nunca esquecer. Dessa forma, os arquivos afetivos são
irrestritos aos momentos sagrados na Plaza. Às quintas-feiras, o tempo da memória

124
Texto original: “Dejamos por un momento la plenitud de la plaza, las idas y venidas dentro de la Casa para
unirnos en una comunión de sentimientos; sentimientos que supieron despertar todos los que, día tras día, hora tras
hora, comparten con nosotras esta lucha tan digna que representa nada más ni nada menos que a nuestros queridos
hijos” “(...) para no olvidar jamás y seguir adelante en busca de más y más metas de amor, necesitamos encontrarnos,
pararnos, mirarnos, conocernos. Y por eso encontré, madre en este camino de las Madres, a estos hijos nuevos.” “(...)
Y que, como un tipo de madres muy especial que somos, queremos merecerlos a todos, y esperamos que sientan, del
mismo modo, nuestros hijos.” É válido lembrar que o termo Madres permaneceu com sua grafia em espanhol, a fim
de preservarmos o sentido analisado neste estudo.
131

atualizada nesses relatos se configura como uma ligação inevitável com a “subjetividade
que rememora o presente” (SARLO, 2007, p. 49), agregando-lhes novas significações e
agentes.
Embora os aspectos de engajamento e consciência política ganhem muito mais
dimensão/projeção em O coração na escritura e Pluma Revolucionária – uma vez que
se encontra entranhado na elaboração poética, não apenas servindo como mote para um
projeto de memória –, em Nossos sonhos esse percurso é sinalizado no anúncio do plano
literário futuro.
Considerado por Hebe de Bonafini como um livro de “escrita ingênua”, Nossos
sonhos ratifica seu caráter de transição, ao conjugar imagens ressignificadas de
Poemarios e antecipar uma escritura que, segundo a presidente da Asociación, será mais
trabalhada posteriormente com a publicação dos contos e poemas que integram O
coração e Pluma. 125 Com efeito, o momento, que embora pareça “ingênuo”, insere uma
perspectiva interessante, pois coteja a presença de uma importante analogia literária já
mencionada: a personagem gorkiana-brechtiana Pelagea Wlassowa.
Ainda que essa comparação se tonifique em outros momentos do intento
literário, a figura da mãe que, com a perda do filho, ergue sua bandeira (e seus ideais)
para dar continuidade à luta, já se insere na concepção da personagem que escreve.
Distantes da obsessão de Antígona pelo corpo insepulto e das vozes do coro
troiano que entoa sua condição desgraçada, as Madres se projetam na frente de batalha
contra a impunidade, ao almejarem que seus escritos se tornem leituras de memória.
Assim como a personagem russa Pelagea Wlassowa, elas não só assumem a fala dos
desaparecidos como ocupam seu lugar, convocando para a ordem pública a
complexidade de um espaço simbólico marcado pela ausência de justiça e pelo vexame
dos anos ditatoriais.
“O coletivo”, “o filho desaparecido” e “a escrita do porvir” compõem o tríptico
indissociável que dá forma ao testemunho materno. Frente a essa perspectiva, a utopia
por um mundo mais digno será escrita pelo viés da recordação, aspecto fundamental
para as narrativas que visam o resgate dos ideais dos desaparecidos. Logo, se a
singularidade do evento ditatorial argentino, marcado por tentativas atrozes de
silenciamento, fez com que não houvesse corpo para narrar o horror e dar seqüência à

125
No programa Pariendo sueños, emitido pela rádio “La voz de las Madres”, Hebe considerou que há dois
momentos importantes para a compreensão das oficinas literárias, ao argumentar que os relatos de Nossos Sonhos se
configuravam como um projeto inicial, sendo mais elaborado nos dois livros seguintes que integram esta tese.
(Entrevista realizada em 19/11/2007, Buenos Aires, Argentina.).
132

luta empreendida, é no presente que os testemunhos sobre o saldo dessa mácula


metamorfoseiam-se numa grande aposta utópica, transformando as narrativas sobre o
passado no maior projeto de perpetuação de imagens capazes de garantir possibilidades
de justiça e dignidade.
O último texto que integra Nossos sonhos é um poema que também não aparece
no índice nem traz a assinatura de quem o escreveu. Publicado como uma hipótese de
epílogo coletivo, “As folha de nossos sonhos” emerge para resgatar o percurso do sonho
coletivo presente em muitos momentos do livro. O leitor volta a ser mencionado como
parte da utopia projetada pela narração de memória, ao representar mais uma provável
voz capaz de entoar e compreender a permanência dos lenços brancos:

“Quando termina a oficina


e se recolhem as folhas
sinto que guardam aí
todas as nossas coisas
Ficam dormindo tranqüilos
dentro das pastas
os sonhos, as realidades
de todas as coisas nossas.
Ficaram tão dormidas
as folhas de nossos sonhos
ou saltarão por aí
buscando seus próprios donos?” 126 (Idem, p. 37)

Como uma metáfora da estação, o livro aguarda para retornar em outras mãos.
As folhas que não dormem passam a compor a matéria que alumbra e dá forma à crença
de que o passado pode reescrever o futuro, tempo que se inscreve nas funções
prospectiva e projetiva da memória. A valorização dessa narração, em contextos
marcados pela singularidade de determinados eventos, endossa o caráter ético dessa
proposta de rememória, a qual se constitui a partir de um dever assumido pelo
sobrevivente, como considera Jacy Alves das Seixas:

“É do interior desse caldeirão, carregado de fortes sentimentos e emoções, que


memórias extremamente diversificadas irrompem e invadem a cena pública, buscam
reconhecimento, visibilidade e articulação, respondendo provavelmente a uma
necessidade que a racionalidade histórica é impotente para exprimir e atualizando no
presente vivências remotas (revisitadas, silenciadas, recalcadas ou esquecidas) que se
projetam em direção ao futuro” (SEIXAS, 2004, p. 53)

126
Texto original: “Cuando termina el taller / y se recogen las hojas / siento que guardan allí / todas las nuestras
cosas. / Quedan durmiendo tranquilas / adentro de las carpetas / los sueños, las realidades / de todas las cosas
nuestras. / ¿Se quedarán tan dormidas / las hojas de nuestros sueños / o saltarán por ahí / buscando sus propios
dueños?
133

É parte dessa função ética o resgate das ruínas do passado para o plano de
edificação do futuro. Em diálogo com os textos de Nossos sonhos, a memória que
irrompe, e cuja irrupção traz à luz narrativas diversificadas, cria vozes às recordações
anteriormente silenciadas.
Para essa construção, algumas imagens são incorporadas à cena da escritura; a
“viagem” se torna uma estratégia de composição narrativa que viabiliza as lembranças e
projeções oníricas, compostas por novas personagens inseridas na ilustração do plano
literário. Fazem parte da viagem também algumas perspectivas interessantes que se
agregam ao texto: a metáfora do deslocamento, a elaboração da despedida e a
imaginação da morte, cuja inserção é inevitável à memória de quem escreve a partir de
uma identidade coletiva ressignificada pela perda do ente querido.

3.5. Viagens e recordações: a matéria do sonho

127
No capítulo “Tecendo sonhos” , as cinco narrativas de autorias distintas
tratam dos deslocamentos como uma metáfora do fio de Ariadne, imagem que se torna
rentável à elaboração de novas possibilidades interpretativas de memória. Entrelaçadas
por um mesmo enredo, essas histórias trazem a viagem como sinédoque da ausência, ao
serem recriados universos oníricos compostos por personagens que, inventadas ou não,
retornam de narrativas anteriores
De acordo com a ordem em que aparecem em Nossos sonhos, os relatos
ficcionais que compõem “Tecendo sonhos” conjugam personagens em trânsito e de
partida. Como um ensaio de despedida, pessoas que deixaram seu lugar de origem,
rumo ao sonho de (re)construir-se em outro espaço, tornam-se importantes elementos à
composição textual erguida pela ossatura memorialística de quem assina tais relatos. É
da Madre escritora o papel (nos dois sentidos da palavra) que dá forma à criação de um
intento ficcional, o qual retoma o compromisso com o projeto de história dos
desaparecidos, pelo viés da escrita imaginativa.
Com efeito, nesse cenário de resgate e modelação narrativa, imagens como a de
um velho espanhol (residente na Argentina) que, ininterruptamente, rememora o tempo
vivido em seu país, bem como a de jovens emigrantes de sua cidade natal em busca de
um caminho mais próspero em outras instâncias, constituem-se como aspectos

127
Curiosamente, a tal capítulo é inserido um indicativo de ficção.
134

fundamentais para a elaboração textual do capítulo em análise 128 . Um contexto


migratório, composto por trânsitos externos e internos, aparece como trajeto capaz de
aludir ao deslocamento, à ausência e, sobretudo, à saudade (um dos motes
arquitetônicos de Nossos sonhos).
Em “Buscando uma história”, a autora Mimí evoca suas reminiscências como
base narrativa e caminho para o “reconforto”. Ao terminar a história em que se dedica a
relembrar os momentos em família na presença do avô espanhol, e justificar isto como
parte constitutiva de sua trajetória e exemplo de luta, Mimí transcreve um poema,
segundo ela, proferido pelo antepassado para expressar seu sentimento em relação ao
país de origem. Como um canto polifônico, os versos podem ser lidos tanto como um
relato de voz nostálgica quanto uma promessa (segundo Da Matta, “endocanibalística”)
presente na trajetória da autora:

“Uma fonte escondida e um caminhar com sede


e ao final do caminho
deter-me e beber: não pediria a Deus no mundo outro bem.
E se Deus não pudesse às minhas orações atender
eu diria a Deus: “Nada te peço que me dês
à fonte renuncio e ao caminho também
mas até que eu morra, conserva-me a sede” 129 (1991, p. 16).

Embora a idéia proveniente do termo “sede” proponha uma direta referência ao


estado provocado pela caminhada sugerida nos versos, a imagem que dele emerge pode
ser interpretada como o plasmar da luta travada no compromisso da Plaza. E, nessa
perspectiva, se o caminho ou a solução esmorecerem, a trajetória desempenhada
permanece inquebrável e ratificada, permitindo um inevitável paralelo com os fatos e
sujeitos que compõem – e compuseram – a história em construção das Madres de Plaza
de Mayo.
O desfecho do texto recupera a proposta do capítulo que integra. Ao dizer: “as
estrofes dessa poesia se gravaram para sempre em minha memória, produto de um
130
sonho que me deu felicidade e me reconfortou” (idem), a autora mescla e equipara o
que conserva do vivido ao sonho, numa mirada em que ambos os aspectos se

128
Essa estratégia literária remete à elaboração proposta por Saer, em O enteado, ao reinserir o diálogo presente no
capítulo anterior sobre a proposta de reelaboração discursiva da memória que se projeta a partir da distância
espaciotemporal.
129
Texto original: “Una fuente escondida y un caminar con sed / y al final del camino / detenerme y beber: no pediría
a Dios en el mundo otro bien. / Y si Dios no pudiera mis ruegos atender / yo diría a Dios: “Nada te pido que me des /
a la fuente renuncio y al camino también / pero hasta que me muera, consérvame la sed”
130
Texto original: “Las estrofas de esa poesía se grabaron para siempre en mi memoria, producto de un sueño que me
dio felicidad y me reconfortó”
135

transformam em elementos indissociáveis, amalgamados num plano em que um é o


produto do outro, ciclicamente. Logo, com base nesta hipótese interpretativa, a trajetória
da personagem que escreve é tecida com o acontecido enviesado por seu constante
projeto do porvir, confirmando a dimensão temática do livro.
Em “Ao farol”, Mimí retorna para narrar uma história de deslocamento e, uma
vez mais, deixar uma proposta metafórica de luta. Ao contar a história de Don Claudio e
dos irmãos Martín e Fernando, a autora narra o impasse da inexorabilidade do tempo e a
angústia das partidas.
Don Claudio é um velho marinheiro que se dedica a cuidar zelosamente de um
farol, segundo a personagem, fundamental para iluminar a trajetória dos barcos que por
aquela costa passavam. Além da função que exercia, o local representa a imagem do
ancião, que narra com nostalgia as histórias envolvendo “seu farol”. Alheios à
necessidade marinha de tal objeto, os irmãos Martín e Fernando se transformam em
personagens importantíssimas para a composição de Don Claudio, pois, durante as
férias, os meninos se encantavam com as histórias do velho do mar, carinhosamente
chamado de vovô Claudio. O confronto se instaura através do olhar da autora, que mira
e descreve a angústia do marinheiro por ter que, um dia, deixar de cuidar de seu farol. A
impossibilidade traduzida no tempo surge, então, como responsável pela simbólica
escuridão que assolará o caminho dos desejosos por cruzar tais costas, já que há técnicas
capazes de iluminar os mares que dispensam o trabalho humano.
Os interlocutores fiéis de Don Claudio, Martín e Fernando, crescem e, ao
retornarem depois de muitos anos a este lugar, demonstram a esperança de que o velho
possa seguir com seu amor e cuidados dedicados ao farol, ao mesmo tempo em que
denotam a tristeza por saber que “o tempo” não lhe dará trégua.
Entretanto, a personagem Fidel se agrega à cena, apresentado como o mais
jovem do grupo de amigos que veraneavam com os irmãos. Desse encontro, Martín e
Fernando vêem a aproximação do menino, que traz em suas mãos um desenho do farol
com Don Claudio ao lado. Mais que uma simples relação potencialmente travada com o
nome da personagem, o menino é inserido como um fiel companheiro, ao prometer
seguir ao lado e, de certa forma, dar sentido ao farol, afirmando: “– Não deixaremos de
estar a teu lado, vovô Claudio (...). E todos os dias estaremos sentados juntos a ti,
136

escutando teus contos, contemplando as ondas, que, quando são altas, me dão um pouco
de medo, mas a teu lado me sinto forte... porque são tuas ondas” 131 (idem, p. 24).
A construção dessa narrativa, com efeito, propõe uma inevitável comparação à
luta empreendida pelas Madres. Como um ensaio de “cerimônia do adeus”, a autora se
despede da história do velho marinheiro, deixando-nos a presença do menino Fidel, cuja
fidelidade ao amor pelos contos de Don Claudio pode ser lida como um projeto de
continuidade ao alumbramento realizado pela metáfora literária plasmada no farol.
Assim como o velho marinheiro, Mimí reconhece que a trajetória de seu lenço
branco é marcada por ponteiros incapazes de deter o tempo. No entanto, é atrelada à
esperança de um projeto do porvir que a narradora propõe a seus leitores – e a si mesma
– a imagem de Fidel, construindo, assim, uma nova mirada acerca do legado cuja
herança reside num caminho, segundo a Madre-escritora, de luz. Para chegar “ao farol”,
Fidel e todos aqueles fiéis à luta por elas traçada reconhecem as altas ondas, porém não
se intimidam. A crença nesse projeto inquebrantável de dignificação da memória, ora
reiterado na escritura do conto, ressalta o valor de uma composição que se imagina
eternizada, ao ensaiar sua primeira despedida.
Ao iluminar, o farol direciona, e os que se guiam por esta imagem sabem que,
com o desvio da rota, podem perder-se. Logo, essa aproximação se torna responsável
pela tradução literária da proposta histórica presente nos outros livros editados pelas
Madres, como História e Lutar Sempre. Inseridos no intento literário, os ideais dos
desaparecidos, ao serem transformados na composição do percurso empreendido pela
Madre, corroboram os referenciais para esse plano de memória e dignidade. É deles a
função – assim como a do farol – de nortear o caminho da personagem que escreve,
bem como de quem “navega” em busca de possibilidades ressignificadas de um passado
indeterminado pelo tempo.
Ademais da noção de deslocamento, as viagens nesses relatos servem de base
para a construção de uma narrativa viável à reiteração de imagens oníricas. O termo
ficção confirma o literário, ao ser escrito numa perspectiva que conjuga a necessidade
da escritura e o imaginário projetado sem sanções. Nessa amplitude interpretativa, a
viagem passa a ser lida como um plano no qual o passado e o presente se cruzam,
entrecortados por aspectos que a Madre projeta no futuro.

131
Título e texto originais: “Ao Farol”, “– No dejaremos de estar a tu lado, abuelo Claudio (...). Y todos los días
estaremos sentados juntos a vos, escuchando tus cuentos, contemplando las olas, que, cuando son tal altas, me dan un
poco de miedo, pero a tu lado me siento fuerte... porque son tus olas.”
137

Junto à personagem emigrante e à que sofre nostalgicamente um fim anunciado,


aparecem crianças e jovens, os quais incorporam o vivido e o esperado, na escritura.
Nos cinco contos presentes em “Tecendo sonhos”, eles surgem com papéis
coadjuvantes, entretanto, é deles um protagonismo apostado no porvir. Em “Buscando
uma história”, a recordação do avô espanhol permite que Mimí evoque as imagens de
sua infância e, ao reconhecer que essa presença se encontra entranhada em sua
trajetória, a autora se coloca como dona de um destino delineado por aquele a quem a
escritura é dedicada. Um processo de legado similar é encontrado em “Ao Farol”, pois é
do menino Fidel o papel principal na continuidade de seu relato; a metáfora de sua luta.
Em “Os olhos de papel”, escrito por Hebe de Bonafini, é pela mirada das
crianças que a autora narra suas angústias e reflexões. Ao contar a histórias dos irmãos
que sofrem junto à mãe pela distância do pai (um viajante em busca de melhores
condições para sua família), o deslocamento é escrito com a matéria da saudade.
A viagem, nesse momento, se transforma numa metáfora da morte, pois o
esperado pai a eles não regressa. Aquilino, o filho que sonha com a volta do ser querido
antes da chegada de seu aniversário, rememora com a irmã, Segunda, os anos em que
viviam todos juntos na Espanha, traduzindo, assim, a angústia do deslocamento ao país
onde foram em família buscar uma vida mais próspera. Num caminho parecido ao
escrito por Mimí, Hebe insere em seu texto uma perda que, embora esteja presente na
lembrança daqueles que partiram, deve ser lida como uma dupla despedida.
A esse hiato familiar já assinalado pela morte do patriarca, agrega-se a despedida
do irmão mais velho, Pablo. A nova personagem em migração é conduzida pela
memória do pai, de quem guarda uma caixa “com história”, trazida da Espanha, onde
abriga as cartas escritas pelos entes queridos. Longe da família, o rapaz faz do objeto
seu grande companheiro, escrevendo cartas sem destinatários, para ter com que
preencher esse simbólico espaço acolhedor de sua história, compartilhado, também, pela
vaca de que tira seu sustento. Ao regressar, o encontro com a família traz à cena o pai
132
morto, quem, segundo a autora, “mirava-os sorridente, pois estavam juntos” (idem,
p. 19). Sem saber qual é seu lugar nesse retorno, Pablo é a imagem de um impasse
marcado por caminhos e escolhas que a autora elege para dar voz à ausência e à viagem
(transposição semântica da morte). Se a despedida é a dor, o regresso é o fim da
personagem e da narrativa.

132
Título e textos originais: “Los ojos de papel”, “los miraba sonriente, pues estaban juntos.”
138

Paralelos a essa inserção do regresso como impossibilidade, podemos encontrar


na literatura outros relatos onde tal impasse está presente. Muitas vezes associados ao
exílio, a perspectiva comparativa entre esses deslocamentos chama à cena outros
aspectos que, embora traduzam também a ausência, não se relacionam diretamente ao
encontrado nos relatos das Madres. Contudo, o enleio instaurado configura angústias
semelhantes. Dessa forma, tomando a viagem como um deslocamento sem retorno – ou
de regresso interrompido – podemos pensar em três narrativas que abordam o tema de
maneiras distintas, mas parecidas no desfecho que as fazem dialogar com o material
produzido durante as oficinas.
Para tal projeto comparativo, escolhemos alguns momentos específicos de
Primavera con la esquina rota (1982), de Mario Benedetti, Respiração Artificial
(1980), de Ricardo Piglia e “O Etnógrafo”, conto de Jorge Luis Borges, presente no
livro Elogio da Sombra (1969) 133 .
Assim como nos contos que integram o capítulo “Tecendo sonhos”, as narrativas
acima versam sobre a ausência e o deslocamento, escritas com personagens em busca de
uma história que dê conta do seu projeto de memória pessoal, relatado pela
ambição/desejo de constituição de um plano de memória coletiva via ficção.
Mais próximos ao contexto do qual emergem as Madres, Primavera con la
esquina rota e Respiração Artificial tocam em imagens que evocam os momentos
ditatoriais tanto do Uruguai quanto da Argentina, respectivamente, os países destes
autores. Bem mais explícito que o segundo, Benedetti tece seu relato através de
múltiplos olhares à ausência do ser amado.
Inicialmente, a história é sobre Santiago, um preso político que está em
“Liberdade” (ironicamente, nome de um dos maiores presídios do Uruguai) e a
contraposição de seus relatos aos de seu pai, sua esposa, seu irmão e sua filha, a
pequena Beatriz. Desse jogo narrativo proposto pelo autor, no qual cada relato pode ser
lido como um conto que compõe o romance, embora cada narrador tenha um papel
distinto (o pai reflete sobre a luta do filho; a esposa, a ausência física do homem amado;
o irmão, a distância do companheiro; e a filha, a saudade do ser a quem, pelo olhar
ingênuo, questiona o destino), destacam-se as passagens nas quais o autor insere as
reflexões de Beatriz.

133
A ordem de menção dos livros é referente à que eles aparecem no presente estudo.
139

Assim como nos contos analisados das Madres, a criança que se indicia como
coadjuvante adquire um protagonismo que questiona a história, ao atribuir-lhe outros
sentidos. Um dos momentos apicais de Primavera é em “Uma palavra enorme”, parte
em que Beatriz questiona a palavra “liberdade”, ao tratá-la pelo duplo sentido dentro do
contexto familiar e, conseqüentemente, de seu país. A transposição da relação da
criança com a liberdade faz com que as reflexões de Benedetti sejam projetadas através
de Beatriz, em passagens como:

“Liberdade quer dizer muitas coisas. Por exemplo, se uma pessoa não está presa, diz-
se que está em liberdade. Porém, meu pai está preso, mas está em Liberdade, porque
assim se chama a cadeia onde ele está há muitos anos [...] Meu pai é um preso, mas
não porque tenha matado, roubado ou chegado tarde à escola. Graciela (a mãe) diz
que meu pai está em Liberdade porque teve idéias. Parece que meu pai era famoso por
suas idéias. Eu também tenho idéias, mas ainda não sou famosa. Por isso não estou
em Liberdade, ou seja que não estou presa.” 134 (BENEDETTI, 1982, p. 91, grifo
nosso).

Nessa perspectiva, é da pequena narradora a voz em que, pela inocência peculiar


à infância, se escandalizam as incoerências que tangem o momento histórico de seu país
e o destino de Santiago.
Se ao olhar da maturidade de Don Rafael, pai da personagem presa, cabem as
reflexões enaltecedoras acerca do percurso escolhido pelo filho, com traduções de um
orgulho presente também nas narrativas que as Madres guardam da condição materna, à
criança ficam as indagações não da trajetória; ao contrário, esta é ratificada sob a ótica
de uma ingenuidade forjada, capaz de delatar um processo vertiginosamente tecido de
significados díspares e, ao mesmo tempo, inextrincáveis.
Da mesma forma com que Beatriz se divide entre as brincadeiras de sua idade e
os conflitos com os quais convive, destilando a voz do autor, Ricarda é a menina que
“ao colocar os patins, cria asas”, em “Os olhos de papel”. Reinserida, essa personagem
regressa de outro relato de Nossos sonhos, num momento também destinado à atenta
observação de “ficção”.
Em “O Labirinto de Ricarda”, Hebe de Bonafini resgata uma das irmãs de Pablo,
o protagonista de “Olhos de papel”. Nesta parte do livro, ensaia-se, ficcionalmente, uma
série de relatos oníricos, nos quais os sonhos são tratados sob a perspectiva do produto
de adormecimento. Inevitavelmente, os textos dedicados às tessituras oníricas remontam

134
Texto original: Libertad quiere decir muchas cosas. Por ejemplo, si una no está presa, se dice que está en libertad.
Pero mi papá está preso y sin embrago está en Libertad, porque así se llama la cárcel donde está hace ya muchos
años. (…) Mi papá es un preso, pero no porque haya matado o robado o llegado tarde a la escuela. Graciela dice que
papá está en libertad, o sea está preso, por sus ideas. Parece que mi papá era famoso por sus ideas. Yo también a
veces tengo ideas, pero todavía no soy famosa. Por eso no estoy en Libertad, o sea que no estoy presa.”
140

à noção de viagem como deslocamento de sentidos, uma vez que integram o plano
traçado desde o texto de abertura: na planta baixa, a memória reelaborada em escritura.
Ricarda agora não voa com seus patins; ela se encontra perdida num labirinto
que, à medida que a narrativa se desenvolve, toma proporções aterradoras, das quais a
personagem só consegue escapar ao projetar um retorno ao útero da mãe, “onde se
sentia protegida e segura na água de seu ventre” 135 (1991, p. 30).
A personagem que escreve resgata a imagem da mãe como locus de proteção, ao
evocar a imagem do útero como espaço de cuidado, onde Ricarda encontra segurança,
assim como um bebê durante a gestação. Novamente, a idéia do ventre e a metáfora de
uma eterna gravidez são inseridas nessa escritura, da qual a narradora não pode – nem
deseja – ser indissociada. Na composição textual, é ratificado o discurso “Nossos filhos
nos pariram”, proferido na Plaza e base constitutiva do movimento.
Nesse encontro com um lugar impossível, no entanto repleto de significações,
um plano de escritura com o desconhecido é realizado pelo viés ficcional elaborado na
oficina. O retorno ao útero traduz a inviabilidade paralela ao regresso do filho
desaparecido. Paralelas, também, são as impossibilidades de retorno de Santiago tal
como Beatriz o espera, presentes na hipótese de leitura do aeroporto, lugar que dá nome
a outro momento no qual a personagem aparece como narradora.
Nesse lugar de passagem, onde se configuram as relações de chegadas e
partidas, Beatriz espera pelo pai, anunciando um encontro que, no livro, não chega a
acontecer. O espaço de deslocamento é tratado como uma das lembranças da menina em
relação à presença paterna, com descrição de imagens que o equiparam aos ambientes
onde se realizam as sanções.
Ao agregar em seu relato um policial que “pega o passaporte e lhe põe um selo
136
que diz Este menino chegou tarde” (BENEDETTI, 1982, p. 180), a personagem
recupera o medo relativo às punições escolares, questões, segundo Beatriz, possíveis de
levá-la à Liberdade, com maiúscula. Assim como Ricarda, personagens representantes
de um medo maior aparecem para denunciar o sujeito que, através do olhar infantil,
enxerga imagens que o aterrorizam. O labirinto e o aeroporto ratificam uma
transitoriedade que, durante o percurso, podem conduzir ao desencontro, à perda do
caminho.

135
Título e textos originais: “El Laberinto de Ricarda”, “(…) donde se sentía protegida y segura en el agua de su
vientre.”
136
Texto original: “Cuando un pasajero llega tarde al aeropuerto, hay un policía que agarra el pasaporte y le pone un
sello que dice Este niño llegó tarde.”
141

Dentro dessa perspectiva, o fio de Ariadne (plasmado no cordão umbilical) e a


luz do farol de Don Claudio equiparam-se aos táxis que Beatriz julga serem os veículos
mais importantes de um aeroporto, ao atrelá-los à chegada do pai:

“Quando o aeroporto está em greve, é muito mais fácil conseguir um táxi para o
aeroporto. Há alguns aeroportos que além de táxis têm aviões. Quando os táxis estão
em greve, os aviões não podem aterrissar. Os táxis são a parte mais importante do
aeroporto.” 137 (Idem, p. 181).

O táxi que a leva ao aeroporto é lido como a imagem da volta de Santiago, possibilidade
que só se realiza pela idéia que dele provém no relato: veículo capaz de percorrer o
trajeto rumo ao reencontro. Constantemente em ameaça, esse caminho é narrado sob as
intempéries que postergam um final indiciado desde o primeiro momento de Primavera.
O encontro interrompido ocorre em todos os momentos do livro, marcando
confrontos internos capazes de dar voz ao conflito maior: a ausência do ser amado, do
familiar detido. Em Respiração Artificial, Ricardo Piglia eleva tal proposta ao duelo
entre narrativas historiográficas oficiais e perspectivas ficcionais. O autor constrói uma
hipótese de urdidura joyciana, na qual as mesclas de histórias nacionais antigas com
histórias relacionadas ao período ditatorial (em uma espécie de jogo de espelhos, no
qual se diz uma coisa querendo afirmar outra) antecipam ficcionalmente uma idéia que
será defendida, posteriormente, em Crítica e Ficção (1986):

“A ficção trabalha com a crença e neste sentido conduz à ideologia, aos modelos
convencionais de realidade e, logicamente, também às convenções que fazem
verdadeiro (ou fictício) um texto. A realidade está tecida de ficções. A Argentina
destes anos é um bom lugar para ver até que ponto o discurso do poder adquire aos
poucos a forma de uma ficção criminal. O discurso militar teve pretensão de
ficcionalizar o real para apagar a opressão”. 138 (PIGLIA, 1986, p. 10)

A narrativa de Respiração artificial tem seu inicio em 1976, no mesmo ano em


que se instaura a última ditadura militar. Emílio Renzi (personagem em regresso de
outras narrativas, assim como Ricarda, de Hebe de Bonafini) recebe uma carta do tio, o
professor de história Marcelo Maggi, com uma foto de ambos. O que se torna de
grande interesse no episódio não é a fotografia, mas o comentário feito por Renzi sobre

137
Texto original: “Cuando el aeropuerto está de huelga, es mucho más fácil conseguir taxi para el aeropuerto. Hay
algunos aeropuertos que además de taxis tienen aviones. Cuando los taxis hacen huelga los aviones no pueden
aterrizar. Los taxis son la parte más importante del aeropuerto.”
138
Texto original: “La ficción trabaja con la creencia y en este sentido conduce a la ideología, a lo modelos
convencionales de realidad y por supuesto también a las convenciones que hacen verdadero (o ficticio) a un texto. La
realidad está tejida de ficciones. La Argentina de estos años es un buen lugar para ver hasta qué punto el discurso del
poder adquiere a menudo la forma de una ficción criminal. El discurso militar ha tenido la pretensión de ficcionalizar
el real para borrar la opresión”. (Piglia, 1986: 10)
142

o que aparece escrito atrás: “A foto é de 1941; atrás ele havia escrito a data e depois,
como se quisesse orientar-me, transcreveu as duas linhas do poema que serve de
epígrafe a este relato” (PIGLIA, 1980, p. 11). O trecho mencionado é um fragmento do
poema “The dry salvages”, do escritor inglês T.S. Eliot, que diz: “Nós tivemos a
experiência, mas perdemos o sentido, e a aproximação ao sentido restaura a
139
experiência” , permitindo, assim, a compreensão da ficção como função mediadora
responsável pela viabilidade de uma história que vai além da narrada por Emílio Renzi.
Após o episódio da carta, dá-se início à narrativa hipotética do reencontro. Renzi
decide ir até Concórdia encontrar-se com Marcelo, porém isso não ocorre e, nessa
angústia pela espera de alguém que não aparece, personagem e leitor se encontram com
o terror da ditadura. Marcelo Maggi é um dos desaparecidos durante o processo.
Embora esse aspecto apareça aporeticamente no texto de Piglia, é reivindicado um
sentido que ocupe o espaço deixado pela ausência do professor de história e, através
disso, surge a possibilidade de falar de uma experiência ressignificada, paralela às
imagens dos aeroportos, do labirinto e do farol.
É nessa atmosfera do não-dito e do alusivo que acontece a trama de Piglia. O ar
“artificial” se faz necessário para falar sobre o que oficialmente não pode ser relatado.
Se respirar artificialmente é a única saída para poder estar vivo e contar sua experiência,
o autor argentino (num percurso análogo à proposta de escritura das Madres) entrega a
seus leitores um jogo no qual é preciso ser audaz e, principalmente, cúmplice de seu
projeto. Logo, o pacto estabelecido entre eles – autor e leitor – consistirá em descobrir,
nas entrelinhas dessa história artificial, uma compreensão “alephica” da história
argentina em seus anos do “Processo”.
A dedicatória de Piglia, “Para Elías e Rubén, que me ajudaram a conhecer a
verdade da história”, possibilita-nos uma leitura análoga à proposta por Nossos sonhos:
o livro é dedicado a dois desaparecidos 140 . Logo, se em Piglia o relato se encontra como
único viés que redime a história do objeto perdido (sabendo-se que toda restituição é
impossível), e o perdão não passa de um pedido retórico, o reconhecimento da
impossibilidade de restituição configura-se “como seu gesto mais restitutivo”
(AVELAR, 2003, 145).

139
Texto original: “We had the experience but missed the meaning, and approach to the meaning restores the
experience” (In: PIGLIA, 1980).
140
Em uma nota de pé, presente no artigo “El significado latente en Respiración Artificial, de Ricardo Piglia y En el
corazón de junio, de Luis Gusmán”, Daniel Balderston menciona a informação de Piglia a respeito dos nomes citados
na dedicatória, esclarecendo que ambos pertencem a desaparecidos durante a última ditadura militar argentina. (in:
BALDERSTON, 1988: 153).
143

Dessa forma, o renascimento literário de Elías e Rubén se projeta como outra


história, integrando, no presente da escritura, uma imagem que subjaz – e dá forma – a
ficção. Dedicar o livro a eles representaria, ainda, os intentos de recuperação e resgate
de um tempo que busca novas leituras e interpretações apostadas no porvir. Ao fazer
isso, Piglia reinsere – por diversos momentos de seu relato – uma ausência que delata o
acontecido, assim como os lenços brancos que revestem as personagens que assinam o
projeto de Nossos sonhos.
O encontro familiar não acontece. Marcelo e Emilio não se encontram, e é pelo
desencontro que o leitor se defronta com o quadro rasurado pelas violências do Estado
militar. À espera do retorno de Marcelo, coadunam-se outras expectativas: aos olhos do
leitor, restam as esperanças de memória e justiça, temáticas palimpsêsticas da narrativa.
Do desfecho do livro, resta Emilio Renzi, que reaparece em outras narrativas do autor e,
em nossa análise, nos deixa uma imagem que pode ser associada às personagens
presentes em outro momento de “Tecendo sonhos”.
É com base nessa comparação que vemos, em “Dois irmãos”, a Madre Aline
Hödl tecer uma narrativa na qual o deslocamento representa a mudança para os que
ficam, para quem vai e, embora não apareça escrito, para os que lêem. Com um
parêntesis onde aparece escrito “plano para um relato”, o título do texto se refere à
história de partida Gregório, o irmão que decide percorrer o mundo e, ao voltar a Salta
(estado localizado ao norte da Argentina), não encontra seu lugar. O desconforto
daquele que parte é oposto à condição de Jesús, irmão que fica e rega suas raízes no solo
paterno.
A narrativa transcorre sobre o destino de uma personagem que “volta a sair para
o mundo. Para modificá-lo” 141 (1991, p. 21). Sem o farol de Don Claudio ou os táxis de
Beatriz, o caminho de Gregório narrado por Aline prescinde de direcionamentos ou
conduções, pois o percurso que encerra a história é a hipótese que confirma a escrita de
Nossos sonhos. O ponto final que separa o realizado (sair ao mundo) do esperado (para
transformá-lo), escrito num futuro projetado pelo passado que a narradora já conhece,
antecipa o olhar rumo ao leitor do livro, mirada confirmada – numa perspectiva
derradeira – em “As folhas de nossos sonhos”, poema-epílogo dessa escrita da
transição.

141
Título e textos originais: “Dos hermanos” (plan para un relato), “vuelve a salir al mundo. Para cambiarlo.”
144

Nesse impasse entre o fato e o projetado, o leitor que entra pelos bosques de
Nossos sonhos revive ficcionalmente uma sensação similar à de Fred Murdock, “O
Etnógrafo” de Jorge Luis Borges. Assim como esta personagem que, ao voltar da
experiência junto aos feiticeiros indígenas do oeste dos Estados Unidos, opta por não
escrever cientificamente sobre elas, guardando para si o segredo de um percurso que só
pode ser seguido, não revelado, o leitor idealizado das Madres representa uma extensão
da imagem gestada nas tardes de quinta-feira. Alheio à vivência trágica, esse leitor
tampouco pode viver entre elas; não lhe é permitido o uso dos lenços brancos.
Eqüidistante, é lícito o resgate das palavras finais de Murdock, quando questionado por
seu professor a respeito do regresso à convivência com os aborígenes: “– Não. Talvez
não volte à pradaria. O que me ensinaram seus homens vale para qualquer lugar e para
qualquer circunstância” (BORGES, 1986, p. 21).
O desfecho borgiano estaria para o protagonista assim como as folhas, em busca
de leitores, estariam para as Madres. O etnógrafo solitário que se torna bibliotecário em
Yale é a imagem babélica de outras narrativas do autor e, de certa forma, de si mesmo.
Em relação ao intento de Nossos sonhos, as folhas saltitantes deixam seu estado de
inércia ao se tornarem ações, idéias e, sobretudo, memória.
Como uma cena que anseia por seu segundo ato, já que um dos destinos dessas
142
folhas é sair pelo mundo também, “buscando seus próprios donos” , o projeto do
livro retoma o caminho da personagem de “Dois irmãos”: em ambos há a espera pela
mudança. Com efeito, a escritura de dois livros que procedem ao primeiro momento da
oficina ambiciona um traçado depositado nesta crença. Os sonhos serão escritos com
imagens que, em ângulos distintos, reiteram o constante nascimento encenado na Plaza.
É do Coração e da Pluma Revolucionária que novos planos de memória serão escritos
para dignificar a presença de Gregório, Santiago, Marcelo Maggi, Rubén, Elias e os
30.000 desaparecidos presentes. Com eles, não há o reencontro. Contudo, é deles a
bandeira abraçada e o caminho aprendido e empreendido pelos lenços brancos.

142
Trecho referente ao poema “As folhas de nossos sonhos”.
145

Madres

Hemos descubierto
la fuerza poética
del dolor transformado
en bella paloma
que vuela la plaza
en busca de libertad

Queremos sumarnos a la
alegría de esa lucha
al amor de esa lucha
a la conciencia política de esa lucha
al romance invencible con el aire y
con el sol que forjaron
en esa lucha

El grito libertario de los hijos


y la construcción
del mundo nuevo
nos llama al abrazo
de los pañuelos.

Autores : Susana Ferroni, Daniel Ballester, Laura Ducos y Marisa Azcue, alunos da “I
Oficina de leitura dos textos poéticos das Madres de Plaza de Mayo” (Universidad
Popular Madres de Plaza de Mayo, janeiro de 2008).
146

4. TRANSGRESSÕES POÉTICAS: O TRAUMA E O LEGADO DOS LENÇOS


BRANCOS EM VERSOS DE MEMÓRIA

A redescoberta da escritura, mediada pela oficina proposta por Leopoldo


Brizuela, indica aspectos muito relevantes à constituição discursiva em que se edificam
as personagens forjadas no tramar do texto literário. O encontro com a possibilidade de
transformar memória em poesia conduz-nos à compreensão de matizes autobiográficos
agregados à composição da trajetória da Madre e da reconfiguração do ser responsável
por essa voz insurgente.
O renascimento contínuo e cíclico, mãe – filho – desaparecido – Madre –
desaparecido reconfigurado, se projeta em espirais, nas quais o retorno ao mesmo
ponto realiza-se em outro plano, em outro momento e com outras imagens. Nessa volta
em outra dimensão, os escritos produzidos nas oficinas ilustram a reiteração da narrativa
sobre o mesmo testemunho. Entretanto, a personagem testemunha aparece imersa em
outras vivências – alheias ao fazer poético – e arquiteta essa reinserção sobre a imagem
da Plaza, espaço concreto que empresta sua cartografia aos simbólicos espaços
construídos a partir de seu cenário de luta, enfrentamento e resistência.
No capítulo anterior, ao tratarmos da escrita da transição, presente no intento
literário de Nossos sonhos (1991), a noção de transformação entre a Madre de
Poemarios (1981) e a de O coração na escritura (1997) e Pluma revolucionária (2007)
foi-nos útil à compreensão de textos que já emergem da necessidade de recriação da
personagem que escreve. Não nos cabe dúvida em relação à distância percorrida em
vinte e seis anos que marcam a publicação dos primeiros livros e de Pluma, um espaço
de tempo traduzido em muitas transformações do movimento empreendido naquela
tarde de abril de 1977. Nessas novas construções, a Madre se encontra não só com a
escritura, mas, sobretudo, com a possibilidade de gestar outro cenário, onde seus filhos
renascem como heróis e vítimas – como elas – de um período traumático.
O intervalo de seis anos entre a publicação de Nossos sonhos e O coração na
escritura é menor que o existente entre este e Pluma. Por outro lado, a transição iniciada
em 1991 se concretiza em 1997, para confirmar-se na publicação do último compilado
de poemas (e pinturas) produzidos pelas Madres.
Considerado como um “livro ingênuo” pela presidente do movimento, Nossos
sonhos é a base de um projeto que regressa em espiral nos livros seguintes, nos quais o
147

desaparecido não deixa de rondar (sem sepultura, mas abrigado pela escritura materna)
os textos assinados por quem se coloca como responsável por pari-lo e alimentá-lo
discursivamente.
As transformações imagéticas, sofridas e ocasionadas pela personagem que
escreve, nos permitem uma leitura de novas aproximações literárias, produzidas pelas
reconfigurações que esse ator político empreende no espaço público e plasma no
momento de encontro com o fazer poético. A devoção ao defunto insepulto, mote que
serve à comparação com a tragédia sofocliana, ao transformar-se na narrativa de sua
própria dor, adquire dimensões hecúbicas capazes de levantar os corpos – dos filhos e
das Madres – e colocá-los em marcha, resistentes ao esquecimento e em compromisso
com uma luta entendida pelos vieses da interrupção e da injustiça.
Com efeito, a voz que dita o tom de Coração e Pluma não é a mesma dos livros
anteriores. Embora proferida pelo mesmo sujeito, ela ressurge com os ecos dos
desaparecidos agora entoados por uma comunidade imaginada nessa partilha ideológica,
investida por imagens recuperadas anacronicamente e revitalizadas por novas
estratégias que sustentam o figurino dos lenços brancos. O ideário da guerrilha escrito
no desaparecimento é resgatado no compromisso de reescritura biográfica daqueles que
não puderam testemunhar, deixando suas Madres como um legado vivo, que sonha e
anseia através dos sonhos e anseios projetados na imagem criada de seus filhos
desaparecidos.
Como toda narrativa de memória, a seleção e a conservação operam na
edificação do filho ausente. Deste, tornam-se biográficos os traços relevantes ao projeto
de dignificação jurado nas tardes de quinta-feira. Paralelamente, é construída a imagem
de quem leva adiante esse intento. Nessa perspectiva, a dor da perda é a cicatriz
carregada pela Madre de um “guerrilheiro” desaparecido, cujas marcas da tortura se
trasladam à face exposta na Plaza, rememorada e recriada na escritura.
A crise entre os interesses do Estado e o círculo familiar permanece e sustenta a
presença dessas vozes. Embora Antígona ceda passagem a outras representações
literárias, o embate entre essas esferas denota seu caráter reiterativo. Ao que foi
realizado durante os anos ditatoriais não há perdão (nem esquecimento), sendo isto uma
proposta a mais de violência. Com a distância temática necessária ao que estamos
tratando, a idéia de que “as boas mães causam, provavelmente, maiores estragos do que
148

as más” 143 parece-nos oportuna à compreensão de um projeto capaz de escandalizar o


público e questionar a memória de um tempo passado que, ao tornar-se a base de uma
proposta testemunhal, se conjuga no presente.

4.1. O coração na escritura: a Madre e “A Mãe”

144
Publicado como uma proposta de “escrever a luta” , o livro que marca a
configuração de resistência e enfrentamento empreendida pelas Madres da Asociación
Madres de Plaza de Mayo é gestado a partir da pergunta “Como pôde seguir vivendo”,
surgida em unanimidade nas atividades de pré-escritura. A dúvida frente ao trauma
provocado pelo desaparecimento de seus entes queridos é a resposta poética tramada em
O coração na escritura, entregue ao leitor como “a história de uma ressurreição (...), a
indispensável ressurreição dos desaparecidos, sua aparição com vida na palavra, a partir
do mesmo amor que os trouxe ao mundo; e uma vez mais, assim, a ressurreição de nós
mesmos a partir do silêncio e da infâmia dos tempos que nos tocou viver” 145 .
A ressurreição que se repete no prólogo de Leopoldo Brizuela expande-se às
possibilidades que tangem a memória e o testemunho sobre uma época presente não só
na escritura, mas que serve como moldura a um novo quadro, projetado por palavras e
sujeitos fiéis ao pacto de amor expresso nas marchas ao redor da Pirâmide de Mayo.
Junto a essas imagens, o termo “ressurreição” evoca, também, as noções de dor e
sofrimento que dele provém, uma vez que é inevitável a associação semântica dessa
palavra ao martírio cristão na sociedade ocidental.
Com efeito, dessa escritura, renascem os mártires de uma época que “nos coube
viver”. Essa vida escrita na entrega ao sofrimento, logo, ao desaparecimento, é o
material de uma biografia que se constrói sobre as vítimas do silenciamento forçado e
das estratégias de terror implementadas pela última ditadura militar argentina.
Renascidos na palavra de suas Madres, os desaparecidos voltam – sem nunca ter
deixado de existir – para a abertura de um inventário, legado constituído pelas memórias

143
Referência ao trecho retirado (p. 143) do capítulo “O homem cordial”, de Raízes do Brasil (1936), de Sérgio
Buarque de Holanda. Sobre a passagem transcrita é importante destacar que o autor insere em seu texto um ditado
citado por Knight Dunlap, para tratar da noção de base familiar à constituição do indivíduo. Embora não corresponda
ao que pretendemos abordar neste momento, acreditamos que o ditado parece rentável à noção de “legado ao revés”
presente nesta tese, em relação à posição assumida pelas Madres de Plaza de Mayo.
144
Prólogo de Leopoldo Brizuela, presente em O coração na escritura (1997).
145
Texto original: “la historia de una resurrección (...), la indispensable resurrección de los desaparecidos, su
aparición con vida en la palabra, desde el mismo amor que los trajo al mundo; y una vez más, así, la resurrección de
nosotros mismos desde el silencio y la infamia de los tiempos en que nos tocó vivir”
149

do trauma daquelas que se colocam como herdeiras da luta interrompida pelas


violências do desaparecimento. É delas a palavra que edifica e recria a esperança “da
busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela
sociedade” (SELLIGMANN-SILVA, 2008, p. 103, grifo do autor). Nessa perspectiva,
elas também se erigem como uma figura exemplar, provocada pela experiência
testemunhal frente à excepcionalidade do fato decorrente da ausência de seus filhos.
Esse “outro construído pela sociedade” se defronta com o trabalho individual (no
coletivo) empreendido pelas Madres, ao ser comparado com as narrativas produzidas
durante e após o governo ditatorial. Ao substituir os “mortos” por “desaparecidos”, as
Madres vão de encontro às tentativas de apagamento e reescritura da memória coletiva
dos anos do “Processo”, requisitando, como já mencionado, revisões jurídicas e novas
concepções acerca da história construída sobre as personagens envolvidas nesse
contexto genocida.
Assim como a palavra do louco (FOUCAULT, 1970), esses discursos enfrentam
o veto social, questionam, e se dispõem ao intento de trabalho com “uma verdade
escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda a ingenuidade aquilo que a
sabedoria dos outros não pode perceber” (idem, p. 10). Nesse momento, a ingenuidade
se camufla numa escritura que é anunciada “a partir do coração”, transformada na
possibilidade despretensiosa de fazer literário, entretanto, plenamente consciente do
encontro com mais uma oportunidade de revisão e dignificação de seus mortos-
desaparecidos.
Assim como a loucura, a maternidade corrobora para que, inicialmente, essa
palavra possa nascer da “ingenuidade”. Todavia, o projeto dessa escritura não decorre
da inocência ou da singeleza, mas da emancipação e do protagonismo alcançado pelas
Madres, as quais reescrevem o choque traumático e o entregam como legado dos
sobreviventes do silêncio; os filhos que sobrevivem através da palavra materna.
Dos 56 textos que integram O coração na escritura, somente o poema “Com
este lenço branco” retorna de Nossos sonhos, como o único de autoria coletiva,
marcando uma transição que se anuncia em 1991 e se confirma seis anos depois.
Organizados cronologicamente, os contos e poemas são divididos em três capítulos, a
saber: “Histórias nossas”, “Do eu a nós” (subdividido em “Instantâneas”, “Cenas de
família”, “Mães companheiras”, “Praça tomada” e “O outro lado”) e “Novos jardins”.
A voz individual do ator político Madre, formado coletivamente, aparece através de fios
de memórias presentes nos livros anteriores, uma vez que, em alguns textos, ainda
150

podemos encontrar a personagem que escreve preservando a infância como locus de


reencontro com a ingenuidade transcrita na planta baixa dessa arquitetura literária.
Contudo, a infância presente em Nossos sonhos “amadurece” em Coração, e traz
à luz a imagem do filho já imerso na luta, ao propor uma série de textos cuja temática
central versa sobre a trajetória interrompida do desaparecido. Para narrar esse percurso,
em muitos textos encontraremos o caminho do ente querido rumo à tragédia que marca
o nascimento da nova mãe, agora Madre, que não descarta a idéia da gestação como
imagem indissociável à constituição desse novo sujeito porta-voz de suas memórias e de
seus sobreviventes.
O texto de abertura do livro reforça o pacto entre quem escreve e a personagem
que, no poema, renasce para contar uma memória cuja existência se torna possível pelo
resgate poético-ficcional presente na composição literária. “O berço” é uma narrativa
poética que, ao evocar as imagens do filho ainda em seu estado fetal, reconfigura a
composição da Madre.
Pela perspectiva da sinédoque, são empregados vocábulos que remetem às
imagens capazes de recompor a trajetória do detido-desaparecido, antes mesmo de seu
nascimento. O berço, o ventre, a barriga da gestante e a escolha do nome são elementos
que dão o tom aos versos, linhas poéticas que recriam a personagem em diálogo com as
angústias daquela que o espera para existir. Ao renascer ficcionalmente, o filho revive,
sob o ponto de vista de sua Madre, o caminho que agora irá traçar. Juntos, texto e
Madre nascem a partir da seleção de uma memória projetada no ente desaparecido,
figura entranhável em cada linha do pacto engendrado pela possibilidade de recriação
autobiográfica.
Composto por seis estrofes, o texto assinado por Hebe de Bonafini lança-nos a
uma mirada a partir da figura materna consciente de sua dor e de sua perda. Através
desse olhar de quem, ao escrever, enxerga pelas lentes do filho recriado na escritura,
versos como “que nome me colocaria / se o do santo do dia / ou do avô morto / ou o que
146
você escolhesse” (1997, p. 19) dão eco ao corpo torturado; ao resgatar o
desaparecido, eles traduzem o testemunho da figura que sobreviveu para narrar o
trauma. Esse resgate se reforça nos últimos versos, nos quais as palavras “sonho”,

146
Texto original: “qué nombre me pondrías / si el del santo del día / o el abuelo muerto / o el que vos elegías”. De
acordo com o castellano, o emprego do pronome vos representa uma maior aproximação entre as pessoas. Sendo
assim, em nossa tradução, optamos pela tradução do termo por você, pronome de tratamento usualmente empregado
na variante brasileira do português para definir relações como as que sugerem o vocábulo proveniente da variante
argentina.
151

“vida” e “esperança” aparecem como ferramentas utilizadas pela personagem para falar
de si: “quando dorme tranqüila / recostada na cadeira de balanço / já está balançando o
sonho / a vida, a esperança” 147 (idem).
O laço entranhável da gestação retorna para ser eternizado na escritura. O ventre,
nessa perspectiva, abriga para sempre o filho desaparecido, o qual reaparece em cada
linha, refletindo a imagem de um parto que sempre está para acontecer. Em “Ventre”, a
tentativa de reescritura autobiográfica se repete através de elementos que denotam, de
certa forma, a metáfora de um nascimento ao contrário, legando ao filho a
responsabilidade por esse novo ator político.
Outro aspecto relevante nessa composição é no tocante à passagem, ao trânsito,
empreendido pela personagem. Inicialmente, seu mundo é seu bairro, uma paisagem que
preserva, através das reminiscências, a presença do universo privado com o qual ela irá
romper ao transformar-se em Madre:

“quando em meu ventre


senti o filho que ia crescendo
fui a mulher
mais feliz de todo o mundo
pequeno
esse mundo desse bairro
que me teve entre sua gente
que me ensinou tantas coisas
que me deu todo seu afeto
que me ensinou do amor
tudo que no ventre levo” 148 (idem, p. 19).

Ainda no capítulo “Histórias nossas”, podemos encontrar a transformação do


berço na Plaza, esse local circular que abriga Madre e filho, parindo-se simultânea e
simbolicamente todas as semanas. Circular, esse cenário se distancia do abrigo do recém
nascido, ao convocar para si outros filhos nascidos dessa luta seguida pela personagem.
Sozinha entre seus pares, ela aguarda pela “noite que ilumina a justiça / esperando na
Plaza que cheguem outros homens / que a marcha cresça / até se converter em um sol
149
gigante e quente / como o amor que lhes tenho / em meu coração de mãe” (idem, p.
22).

147
Texto original: “cuando dormís tranquila / recostada en la hamaca / ya estás meciendo el sueño / la vida, la
esperanza”.
148
Título e textos originais: “Vientre”: “Cuando en mi vientre / sentí el hijo que iba creciendo / fui la mujer más feliz
del mundo / pequeño / ese mundo de ese barrio / que me tuvo entre sus gentes / que me enseñó tantas cosas / que me
dio todo su afecto / que me enseñó del amor / todo lo que en el vientre llevo”.
149
Texto original: esperando en la noche / que alumbre la justicia / esperando en la Plaza / que lleguen otros hombres
/ que la marcha se agrande / hasta convertirse en un sol / tan gigante y caliente / como el amor que les tengo / en mi
corazón de madre”.
152

Ratificada, a idéia de que “o Outro sou eu” (lema adotado pelas Madres em
referência ao reconhecimento de que seus filhos lhes deixaram como legado) resgata a
noção palimpsêstica dessa escritura, enquanto revigora o laço e os ideais daqueles que,
desaparecidos, voltam fiéis e firmes através do projeto incorporado no percurso traçado
pela Madre. O texto emerge como o cordão umbilical que religa a personagem que
escreve ao “filhinho doce e terno / recém nascido / tão sonhado” 150 , o qual será cuidado
e dignificado em suas linhas, até transformar-se no revolucionário que se despede no
texto “A mãe de um revolucionário” (Idem, p. 38).
Reelaborado em muitos momentos e sob diversas perspectivas, o percurso da
personagem, rumo aos ideais projetados na luta de seus filhos, incide no encontro com
outras mães portadoras da mesma dor. No capítulo “Do eu a nós”, o coletivo se torna o
movimento fundamental para que, no momento da escritura, as memórias possam
aparecer individualmente. Em “Minhas mãos”, a autora se identifica com suas
companheiras, personagens enredadas pela mesma tragédia e cujas mãos que “se
151
encheram de horríveis silêncios” encontram o afeto. De braços dados com aquelas
que lhe permitem enfrentar o esquecimento, a autora de “O berço” e “Ventre” evoca a
luta compartilhada para dar voz à representação imagética de si mesma, num momento
em que já descreve sua consciência a respeito de sua conformação coletiva: “Com
minhas mãos escrevo a meus filhos. Com minhas mãos abraço os dias. Com minhas
mãos aperto as outras que me fazem generosa a vida” 152 .
A consciência dessa transformação na passagem “do eu ao nós” é o ponto de
partida da leitura de O coração na escritura, tornando-se, assim, um aspecto que não se
detém ao capítulo que traduz essa perspectiva. O trajeto do individual ao coletivo é o
que permite, no momento da escritura, o encontro da personagem que escreve com suas
memórias, mesclado por imagens selecionadas e conservadas de um caminho iniciado
com a tragédia.
Em “Bronca”, Evel Petrini (Beba) relata como a insatisfação do filho plasmou-se
à sua história. Neste momento, não é só uma herança que se configura; a personagem se
entrega à escritura de outra forma. Longe de Antígona, afastada dos lamentos

150
Texto original: “hijito dulce y tierno / recién nacido / tanto soñado”. Fragmento de um poema sem título, de
autoria de Hebe Mascia.
151
Texto original: “Se llenaron de horribles silencios”, fragmento do poema “Mis manos” (idem, p. 35).
152
Texto original: “Con mis manos escribo a mis hijos. Con mis manos abrazo los días. Con mis manos aprieto las
otras que me tiende generosa la vida” (idem, p. 35)
153

153
desgraçados de Hécuba, ao afirmar que “hoje, tua bronca é minha bronca” (idem, p.
37), Beba se projeta como uma herdeira literária da personagem de Máximo Gorki,
Pélagué Vlassof, a qual, neste estudo, será analisada através da composição dramática
de Bertolt Brecht, em “A mãe” 154 (1932).
É preciso, entretanto, situar nossa aproximação ao texto brechtiano, uma vez que
sua inserção neste estudo vem ao encontro da possibilidade comparativa com um
momento do movimento das Madres, principal objeto de nossa proposta.
É clara a complexidade textual da dramaturgia de Bertolt Brecht, o que envolve
tanto as questões sociais fortemente inscritas nessa composição, quanto uma série de
consolidados trabalhos sobre a estética do escritor alemão. Dessa forma, acreditamos ser
válido situarmo-nos nessa empreitada comparativa, a qual toma o texto como um
contexto que se amplia na postura assumida pelas personagens argentinas, não se
dispondo ao trato de aspectos que digam respeito às especificidades do teatro
brechtiano.
O caminho traçado pela personagem de Brecht, ou seja, de Pelagea Wlassowa à
“Mãe”, conduz-nos à compreensão da formação intelectual daquela que rompe com os
símbolos da esfera privada em decorrência do embate entre os interesses dessa mesma
esfera em divergência com o público. Pelagea não se entrega à luta por nela acreditar
desde o princípio; ao contrário, seus princípios são originados pela necessidade de
preservação do filho Pavel, o operário insurgente, morto pela polícia russa por se opor à
exploração das massas em relação ao regime de trabalho imposto.
Nesse contexto de lutas de classes desenhado pela sociedade do início do século
XIX, resgatado pelo dramaturgo alemão em 1932, há um projeto de conscientização
daqueles que integram o ideal romântico de revolução construída pelo proletariado, ao
qual a opressão é a personagem simbólica principal à tomada de consciência idealizada
por Marx e Engels, em O Manifesto Comunista (1848). A burguesia que se configura
como antagonista ao intento de protagonismo dos oprimidos aparece na cristalização de
múltiplos aspectos com os quais as personagens brechtianas irão defrontar-se,
estendendo esse rechaço ao discurso incorporado pelas Madres.

153
Texto original: “Hoy tu bronca es mi bronca”. Embora a tradução desse vocábulo corresponda melhor à idéia de
“raiva”, optamos pela tradução homônima ao português, uma vez que em nossa língua o termo também pode referir-
se à noção presente no poema.
154
É importante ressaltar que nossa opção pelo texto brechtiano provém do paradigma comparativo estabelecido com
textos clássicos presentes no corpus desta tese.
154

Em contextos distintos, afastados temporal e espacialmente, vemos, em relação


ao movimento argentino, o resgate anacrônico de um projeto que, há quase dois séculos,
serve de base à oposição entre as figuras que representam o poder, o Estado. O liame
entre a sociedade projetada por Gorki, ressemantizada por Brecht e presente,
dialogicamente, na imagem atual das Madres se confirma em mais de trinta anos de
uma luta empreendida contra a opressão, marcada no desaparecimento forçado daqueles
que se colocaram em combate aos aspectos anunciados pelos autores de O Manifesto
Comunista.
Embora o texto de Brecht tenha sua estréia em 1932, o drama se passa entre
1905 e 1917, ano da Revolução Russa. Nesses doze anos que delimitam a história de
Pelagea Wlassowa, o expectador se encontra com a idealização de um levante
proletariado, ao mesmo tempo em que percebe a formação intelectual empreendida pela
personagem. Inicialmente, Pelagea teme pelo comportamento do filho, estranha suas
companhias e se coloca contra as manifestações ao regime imposto fábrica Suchlinow,
local onde, ciclicamente, se reproduz a luta de classes.
Já na primeira fala da personagem, aparece a diferença anunciada entre sua
composição inicial e seu destino final: “– Que posso eu fazer, Pelagea Wlassowa, viúva
de um operário e mãe de um operário? Penso três vezes antes de gastar cada copeque.
Procuro assim e assado. Uma vez poupo na lenha, outra vez nas roupas. Mas, nunca
chega. Não vejo nenhuma saída.” (BRECHT, 1994, p. 165). O “copeque”, símbolo da
luta por condições mais dignas de emprego, é a imagem pela qual podemos enxergar o
conflito que se estabelece no contexto da peça, uma vez que é a moeda de embate entre
as esferas projetadas em situação de confronto.
A apresentação da personagem fomenta a guinada e o rompimento
posteriormente realizados. Ela é a esposa-viúva-mãe de operários e, embora insatisfeita,
teme pelo envolvimento do filho com o movimento revolucionário. Preocupada com as
leituras de Pavel, Pelagea (que ainda não sabe ler) apenas intui um perigo advindo do
universo ao qual ela não pertence. Nesse espaço, ela transita com estranhamento e
receio: “– não fico tranqüila com esses livros que anda lendo e me preocupa que perca
as noites em reuniões que só servem para encher-lhe a cabeça. Assim vai acabar
perdendo o emprego” (idem, p. 169).
Entretanto, é ao ver o filho ameaçado pela polícia, que ronda e invade sua casa,
que a mãe começa a “falar”. É pelo mote da maternidade que ela se insere
organicamente na luta e se conscientiza a respeito da situação da Rússia pré-
155

revolucionária. Um novo embate inegociável então se configura: para preservar o filho


Pavel, ela se oferece para distribuir os folhetos de greve na fábrica, armando
estrategicamente seu plano, na imagem da mãe que não oferece perigos. Ao tentar
afastar o filho do perigo anunciado, ela se encarrega da entrega dos textos, os quais lhe
parecem um ameaça, mas cujo conteúdo é desconhecido por “não saber” ler.
Dissimulada, ela entra na fábrica com o pretexto de entregar as marmitas aos
operários e, entre “pepinos, tabaco, chá e pastéis frescos”, ela dá seu primeiro passo
rumo ao caminho (interrompido) de Pavel. As falas das personagens se entrecruzam à
opressão referida por Marx e Engels, sendo essa idéia um dos fatores responsáveis pela
nova configuração de Pelagea. Ao perceber que os folhetos contêm um material
“subversivo”, a personagem começa a questionar o poder do Estado sobre os
trabalhadores e, assim, sobre sua condição: “– Mas se o folheto só falava da greve, por
que então a polícia prende as pessoas? O que tem a ver a polícia com isso?” e, mais
adiante, argumenta: “– o que vocês precisam é mostrar a toda a cidade que a sua disputa
com a direção (da fábrica) é justa e pacífica. Isso causaria grande impressão” (Idem, p.
186).
O processo de conscientização da personagem é longo e detalhado na peça,
percorrendo seus medos até se concretizar na “Mãe”, que abraça a bandeira que o filho
morto não pode mais levantar. Pelagea aprende a ler para poder transitar entre os
códigos que Pavel maneja com destreza. Ao aproximar-se desse universo, ela se
apropria de um discurso que vem envolvido pela imagem do filho que nele se projeta. A
nova “camarada” se constitui a partir da maternidade, da necessidade de proteção que a
emerge da condição de viúva-mãe. É dessa urgência que se produz o material capaz de
transformá-la na personagem que enxerga em “o” de “opressão” o mesmo “o” de
“operário” (idem, p. 196), orgulhando-se do filho que se levantara contra essa diferença
tão presente no traçado de sua revolução.
A imagem da mãe é amplamente explorada para a importância da discursividade
elaborada por Pelagea, pois é dessa condição que ela se aproveita para alcançar seus
objetivos. Assim como as Madres, é o laço presente na maternidade que possibilita essa
transformação e esse rompimento da personagem com a esfera privada, da qual ela sai
para chocar-se, defrontar-se, com o público desestabilizado por um discurso projetado
desde a metáfora plasmada no coração, metáfora entranhada pelo amor ao que
representa os ideais por que lutava o filho.
156

Antes de morrer, Pavel é exilado na Sibéria durante sete anos, tempo em que a
“Mãe” é aclamada como uma combatente à opressão. Ao lutar contra os “fura-greves” e
conseguir conscientizá-los sobre a importância de tal movimento, Pelagea é enaltecida
num canto em que se reconhecem os componentes de sua firmeza e dedicação,
momento da peça no qual se esboçam as “Wlassoswas do mundo”:

“Esta é nossa camarada Wlassowa, boa lutadora.


Dedicada, astuta e firme.
Firme na luta, astuta contra os inimigos e dedicada
Na agitação. Seu trabalho é miúdo
Tenaz e imprescindível.
Onde quer que lute ela não está só.
Com ela lutam tenazes, firmes e astutas
Em Twer, Glaslow, Lyon e Chicago
Shangai e Calcutá
Todas as Wlassowas do mundo, boas formigas
Soldados desconhecidos da revolução
Imprescindíveis. (Idem, p. 212).

A guinada de Pelagea a coloca num protagonismo superior ao alcançado por


Pavel, tornando-a mais conhecida que o próprio filho, situação que encontra um paralelo
no movimento argentino, no tocante à luta dos desaparecidos. Embora muitas Madres
em seus textos insiram o nome de seus filhos, são elas que assinam os discursos e dão
nome ao projeto idealizado outrora interrompido. Unidos pelo que em Brecht aparece
como a “terceira coisa”, mãe e filho traduzem amor em luta, no grito de “o outro sou
eu” na Plaza de Mayo, nos textos das oficinas, na esperança de resgate e presença
daquele que não pode mais lutar. Pouco antes do fuzilamento de Pavel, Pelagea recita o
“Elogio da terceira coisa”, momento que pode ser lido, mutatis mutandis, em muitos
textos de O coração na escritura:

“Sempre se ouve, quão depressa


As mães perdem os filhos, mas eu
Preservei o meu. Como preservei? Através
Da terceira coisa.
Ele e eu éramos dois, mas a terceira
Coisa comum, a causa comum, foi ela
Que nos uniu.
Eu mesma vi, às vezes,
Conversas entre filhos e pais.
Mas como eram melhores as nossas conversas
Sobre a terceira coisa, que nos era comum
Grande e comum para tantos homens!
Que perto nos encontrávamos, perto
Dessa coisa: que bom que era para nós, essa
Boa coisa perto!”(Idem, p. 219)
157

A causa comum, assim como a “bronca” do poema de Evel Petrini, é o legado


incorporado por aquela que nasce com a ausência do filho. A imagem da maternidade
não se dissocia desse percurso consciente empreendido pela personagem, que, ao
término da peça, regressa em espiral do mesmo ponto de partida: “– Porque eu, Pelagea
Wlassowa, viúva de um operário e mãe de um operário, ainda tenho o que fazer! (...)”
(Idem, p. 235). Ao rememorar os dias que marcaram a revolução de 1917, a personagem
é descrita como “uma mulher de sessenta anos” que carregava a bandeira vermelha do
partido (idem, p. 235), sobrepondo-se ao espaço simbólico deixado por Pavel.
Em “A mãe de um revolucionário”, presente no subcapítulo “Instantâneas”,
Hebe de Bonafini tece uma narrativa em terceira pessoa a respeito de sua própria
história. No breve conto, a personagem de si mesma relata a cumplicidade e a
compreensão sobre o caminho escolhido pelos filhos e por sua nora, três desaparecidos
durante a ditadura militar.
O olhar da maturidade que experienciou o trauma destila na escritura os
elementos do passado, utilizados na composição da narradora de sua própria
trajetória/formação. O telefonema escondido do filho que se prepara para fugir, a
angústia de que o esposo e a filha menor pudessem descobrir o que estava para
acontecer e o medo do destino desconhecido se tornam fatores fundamentais à
composição da imagem representada por Hebe. Ao narrar-se como cúmplice do plano
arquitetado por seus desaparecidos, ela se integra a esse projeto, respondendo ao pedido
do filho, transcrito na frase que encerra o conto: “– Mamãe, a mãe de um revolucionário
tem que se preparar para tudo.” 155
Junto à “mãe” que se prepara para tudo, o entorno familiar do desaparecido
também se prepara para novas configurações. Em “Ale”, Hebe narra as etapas de sua
filha Alejandra, personagem apresentada como “irmã de desaparecidos e filha de uma
Madre”. Junto à narrativa que se constrói dos anos da menina, o trauma do sobrevivente
às violências do Estado militar é inserido como matéria constitutiva da vítima da
tragédia.
Aos onze anos, primeiro momento do relato, os reclamos pela solidão são
misturados às preocupações com o irmão desaparecido, entremeados pelo temor de que
o mesmo fato pudesse acontecer com Raul, o outro irmão a que Alejandra se abraça e,
narrativamente, antecipa o desespero de seu desaparecimento. No segundo momento,

155
Título e texto originais: “La madre de un revolucionario”: “– Mamá, la madre de un revolucionario se debe
preparar para todo.” (1997, p. 39).
158

aos quinze anos, ela já é a única filha, testemunha da violência, dos sofrimentos dos pais
e da luta de sua Madre. É dela o olhar que, na escola, se contrapõe ao de suas
companheiras; é dela o trabalho de pintar as celas de uma cadeia como imagem de sua
família, traçando o local imaginário onde se encontram “os meus, os abraços doces e
ternos dos irmãos”. No momento seguinte, aos dezesseis anos, é a adolescente partícipe
da família alquebrada, que sai para vender as camisas que “nunca vestiriam seus
irmãos”, dando passagem à personagem que se apresenta, aos vinte anos, em perigo.
Nesse contexto, Ale precisa esconder-se e resistir ao medo do desaparecimento,
indiciado em telefonemas anônimos nos quais a pergunta: “Como se escreve morte,
156
desaparecimento e tortura” (idem, p. 56) denotam o destino de seus irmãos e
sustentam o silenciamento forçado.
O trauma da tortura está presente em muitos momentos de Coração. Embora não
sejam relatados os feitos, a noção da crueldade é um dos traços da planta baixa dessas
histórias, ao projetar uma memória coletiva capaz de sobreviver à dor e às ameaças para
narrar o espanto. A aporia emerge como um componente indissociável dessa narração,
pois deixa entrever no não-dito o relato de algo que foge à possibilidade discursiva,
exprimindo, assim, o que Selligmann-Silva considera como o “real” dessa escritura:

“A literatura expressa o seu teor testemunhal de modo mais evidente ao tratar de


temas-limites, de situações que marcam e “deformam” tanto a nossa percepção como
também nossa capacidade de expressão. O testemunho alimenta-se [...] da necessidade
de narrar e dos limites dessa narração (subjetivos e objetivos, em uma palavra:
éticos).” (SELLIGMANN-SILVA, 2003, p. 40).

Aliado ao trauma do desaparecimento, os primeiros momentos antes da


formação coletiva também são escritos com o desespero próprio da busca solitária. Nos
textos em que é narrado o primeiro dia na Plaza, inicialmente, vemos a passagem do
“assombro” ao “alívio”, trânsito viável pelo encontro no trágico, na condição singular
que passa a ser plural, compartilhada, coletiva. Com perspectivas distintas das que
encontramos nos livros anteriores, as companheiras são narradas através da memória
daquela que escreve para contar os dias que marcaram essa transformação da mãe à
Madre. O traçado desse percurso é constituído pelas estratégias do sobrevivente:

“Assim as quintas-feiras passaram a ser o dia. Dia de ver o poderíamos fazer, de


pensar juntas novas atividades – de imaginarmos o que nos passaria – se nos

156
Título e fragmentos originais: “Ale”: “los míos, los abrazos dulces y tiernos de los hermanos”; “nunca se pondrían
sus hermanos” e “¿Cómo se escribe muerte, desaparición y tortura?”.
159

correriam da Plaza, se nos levariam presas. Mas, sobretudo, de contar a cada uma de
nós algo que havia acontecido na semana [...] as esperanças, os acontecimentos que
passaram, e sempre aparecia algo para fazer – assim marcávamos para realizar alguma
atividade que pudesse ter ressonância.” 157 (EVEL PETRINI, 1997, p. 67)

A esperança acerca das tarefas da próxima semana permite que esse sujeito
consiga construir seu relato composto pela memória de muitos encontros, no momento
da escritura. Esse passado que não passa é o tempo presente de uma proposta narrativa
que emerge para sair do sufoco, do estado limite. Frente a essa perspectiva, a literatura é
o espaço onde isso se torna possível, pois a aporia do trauma encontra, na imaginação, o
auxílio capaz ao preenchimento daquilo que, de tão doloroso, é inverossímil no
testemunho.
Autobiográfico, o relato de Evel Petrini é escrito numa oficina de literatura, o
que nele agrega elementos fundamentais à estruturação de uma narrativa que convoca as
estratégias necessárias à composição literária. A ficção, compreendida como
“modelação que dá forma ao informe” (STIERLE, 2006, p. 13) possibilita a leitura de
um fragmento dessa memória dialógica, na qual as experiências de Evel se mesclam à
memória daquelas com quem a personagem que escreve encontra ressonância.
O que no texto literário aparece subentendido (a perseguição policial às Madres)
nos livros, cuja proposta é narrar a história do movimento, é o material de um relato
que, entre fragmentos de fatos e sensações, busca o detalhamento, a minúcia de um
discurso que visa dar voz a essa experiência:

“então um dia vieram e pediram o documento de uma Madre [...] outro dia, outra vez.
E num terceiro dia, na terceira quinta-feira, quando pedem o documento de uma, todas
nós decidimos dar-lhes os documentos; claro, o “cana” com 300 documentos [...] que
faria, não lhe serviriam para nada. E serviu para que, em vez de estar muito poucos
minutos na Plaza [...] ficássemos muito mais tempo, até que nos devolveu o
documento de uma por uma, nos identificou... Realmente foi uma ação, para nós,
primeiro, de unidade, de muita unidade (porque todas ou nenhuma), e depois também
ao “cana” para que não nos pedisse mais documentos[...]” 158 (HEBE DE BONAFINI,
in: Historia de las Madres de Plaza de Mayo, 1996, p. 17).

157
Título e textos originais: “El primer día en la Plaza”: “Así los jueves pasaron a ser el día. Día de ver qué
podríamos hacer, de pensar juntas nuevas actividades – de imaginarnos qué nos pasaría – si nos correrían de la Plaza,
se nos llevarían detenidas. Pero por sobre todo de contarnos cada una algo que había sucedido en la semana (...) las
esperanzas, los acontecimientos que pasaron, y siempre salía algo para hacer – así quedábamos citadas para realizar
alguna actividad que pudiera tener resonancia.”
158
Texto original: “entonces un día vinieron y le pedieron el documento a una madre (...) otro día, otra vez. Y un
tercer día, un tercer jueves, cuando le piden el documento a una, decidimos dárselos todas el documentos; claro, el
“cana” con 300 documentos (...) que iba a hacer, no le servían para nada. Y sirvió para que, en vez de estar muy
pocos minutos en la Plaza (...) nos quedáramos muchísimo rato, hasta que nos dio el documento una por una de
vuelta, nos identificó... Realmente fue una acción, para nosotras, primero, de unidad, de mucha unidad (porque todas
o ninguna), y después también a la “cana” para que no nos pidiera más documentos (...).” Sobre a tradução do termo
“cana”, optamos por preservá-lo com a mesma grafia, uma vez que, na variante brasileira do português, encontramos
uma correlação à denominação pejorativa empregada aos policiais.
160

Paralelo ao projeto de Coração, é publicado um livro em que as Madres se


dispõe a traçar a cronologia do movimento. Historia de las Madres de Plaza de Mayo é
lançado com uma mirada muito diferente da presente no compilado realizado nas
oficinas literárias. Neste momento, há uma viabilidade de construção narrativa, na qual
o encontro com a inverossimilhança do evento traumático é mediada pela projeção do
imaginário, dando voz e liberdade às memórias que, em Historia, se comprometem ao
intento revisionista sobre uma época.
O que se cala na tentativa historiográfica é o que serve de base aos textos de
Coração; o engajamento motriz dos relatos que aspiram à restituição é o motivador das
narrativas poéticas tramadas no encontro com o simbólico, no qual as fragmentações se
tornam um importante elemento de ruptura com aquilo que não se pode nominar: a
inverossimilhança característica do evento traumático.
A perseguição anunciada em “O primeiro dia na Plaza”, de Evel Petrini,
reaparece como uma anedota em “Nem um passo atrás”, texto que integra o capítulo do
“Do eu ao nós”. Neste momento, Mercedes Meroño rememora um dos dias de repressão
por parte dos militares, policiais e membros da Igreja. Porém, longe do relato de Hebe
em Historia, a autora se detém ao aspecto singelo e coadjuvante da cena de
enfrentamento.
Ao trazer para sua escritura a ação da própria Hebe em relação aos repressores,
ela recorta desse quadro o momento em que sua companheira compra todos os balões de
um vendedor ambulante, atando-os a um cartaz que, com o peso, “sai voando”. O que
torna essa cena curiosa é a simbologia que a ela se agrega; a personagem que escreve
transforma a altura alcançada pelos balões na metáfora representativa de seus
desaparecidos, os quais se situam, projetados por suas Madres, “sempre no alto, sempre
acima, por cima de seus assassinos e cúmplices”. O vôo mencionado é o que transpõe
socialmente a posição reelaborada do desaparecido: “para todos ficou claro que aos
nossos filhos nunca poderão matar, que sempre vão estar sobre eles, marcando o
verdadeiro caminho.” 159 (MERCEDES MEROÑO, 1997, p.85).
Nas entrelinhas desse discurso, há alguns aspectos que se tornam presentes – e
possíveis – pela inserção do texto dentro no plano ficcional da narrativa. A metáfora

159
Título e textos originais: “Ni un paso atrás”: “siempre en el alto, siempre arriba, por encima de sus asesinos y sus
cómplices, a todos les quedó claro que a nuestros hijos nunca los van a poder matar, que siempre van a estar sobre
ellos, marcando el verdadero camino.”
161

espacial onde se localizam os filhos remete a uma dimensão acima, trasladando-os a um


plano diferente do qual ocorrem as perseguições e, por conseguinte, o relato. É a
projeção desse local “mais acima” que, no presente da escritura, religa a Madre ao
desaparecido preservado em sua memória, ocupando um espaço inatingível, inabalável.
Outros dois aspectos relevantes dessa composição são relativos ao trato das
personagens em perspectiva de antagonismo; enquanto os filhos protagonizam o
“caminho da verdade”, o que novamente traz à cena a noção de exemplo do mártir, os
policiais, os militares e os representantes da Igreja são os assassinos, antagonistas sobre
os quais voam balões inalcançáveis. Contudo, ao assumir que seus filhos não estão
mortos, estão desaparecidos 160 , Mercedes confirma o double bind dessa escritura; o fato
aparece no texto sem que seja preciso traduzir o trágico desfecho dos desaparecidos:
estão mortos.
O filho morto não é personagem dos textos produzidos pelas Madres, mas os
culpados pela ferida presente nessa composição textual são “assassinos”, termo que,
num projeto revisionista ou num testemunho jurídico, só poderia aparecer no fato
marcado pela morte. Nesse esboço de resgate do ser ausente, o desaparecido é
conjugado no presente, tempo verbal que se distancia das artimanhas dos militares, dos
policiais e da Igreja.
Em analogia a essa posição do ser ausente fisicamente, em “A alegria da luta”,
Chela Prósperi recria um programa de rádio, no qual ela se dirige a seus ouvintes
(leitores) como “gente que sim vive, sonha e quer crescer”, para “transmitir o
sentimento da sua luta” e ratificar a posição de seus filhos na conformação desse trajeto.
Ao despedir-se, após um relato muito breve sobre o que ela e suas companheiras
fizeram durante a presente semana, Chela requisita de seus “ouvintes” a participação co-
testemunhal em sua história: “nos acompanhem e que recordem que o perdido não nos
pode fazer esquecer o que tivemos; e temos tido filhos tão lindos que seria injusto não
161
os recordarmos assim, com a cabeça alta e o coração contente” (CHELA DE
PRÓSPERI, 1997, p. 89, grifo nosso).
Orgulhosa, a autora recupera, inconscientemente, o percurso de Pelagea
Wlassowa, ao colocar-se contra o esquecimento e prometer a continuidade de uma luta
por (e com) aquele que está presente orientando-lhe o caminho, de “cabeça alta e

160
Tema já discutido em decorrência de sua implicabilidade jurídica.
161
Título e textos originais: “La alegría de la lucha”: “nos acompañen y que recuerden que lo perdido no puede
hacernos olvidar lo que tuvimos; y hemos tenido hijos tan hermosos que sería injusto no los recordarnos así, con la
cabeza alta y el corazón contento.”
162

coração contente”, sobrevivente no relato materno. Para os “hieróglifos de memória”


(SELLIGMANN-SILVA, 2008, p. 114) de seus “ouvintes”, Chela propõe a preservação
de fatos que, embora não sejam narrados, não podem ser esquecidos. A co-testemunha –
o leitor de seu texto/ouvinte imaginário do relato – não participa ativamente do projeto
tramado entre a Madre e seu desaparecido, no entanto, a esse co-enunciador é legada a
tarefa árdua do não esquecimento, da preservação de uma memória edificada entre
fragmentos, ruínas e apagamentos.
A imortalidade do mártir é uma característica de muitos textos que integram
Coração, tema que se alastra na composição de Pluma, dez anos depois. Entretanto, ao
lado de relatos que conjugam os desaparecidos no presente, podemos encontrar uma
relatividade pretérita do ser ausente, traduzida em tempos verbais imperfeitos, nos quais
a ação e a permanência do desaparecido indicam uma progressividade paralela ao
momento da escritura.
Em “Que fazia meu filho”, Aline Hödl tece seu texto de forma análoga à
proposta de Chela de Prósperi; a simulação de um programa de rádio projeta a narradora
à edificação de um discurso que pressupõe um interlocutor, ao qual era se reporta para
contar “o que fazia seu filho e por que o levaram”. O tempo que predomina em seu texto
é o pretérito imperfeito, característico da noção dos “tempos do mundo narrado”
(WEINRICH, 1968, p. 317), considerada como responsável pela posição do enunciador
frente ao texto construído numa perspectiva de distanciamento temporal. Logo, o papel
que Aline assume em relação à memória do filho parte do afastamento que o preserva e,
de certa forma, ratifica a relação com a personagem que escreve.
O tema que permeia o relato é a tentativa de reconstrução biográfica do
desaparecido, esboçada na rememoração de um contexto anterior ao da escritura. O
resgate da dúvida dos outros acerca das atividades do filho é o mote para uma
arquitetura textual que se erige no anseio materno de reescritura, firmada sobre o ético
pacto jurado pelas Madres.
Em fragmentos como “A mim, doía muito essa suspeita, porque eu o tinha e
tenho sempre em meu coração e em minha memória como o melhor filho que alguém
poderia desejar” a autora, assim como suas companheiras, descreve seu ente num lugar
ao qual não cabem comparações, distinguindo-o entre outros filhos por seu martírio, por
sua entrega. A voz do desaparecido é inserida no texto, estratégia que corrobora a
escolha pelo caminho que Aline enxerga na comunhão, ao tecer seu relato com o
discurso direto do ser ausente relembrado por suas atitudes:
163

“Doía-lhe muito as dificuldades dos outros. Tantas vezes trazia-me companheiros para
comer em casa, porque “mamãe, vêm pela manhã ao Industrial e como vivem longe
não podem voltar a sua casa...”! Muitas vezes também presenteava sua roupa aos que
necessitavam, ou me pedia que ajudássemos algum companheiro. ” 162 (ALINE, 1997,
p.97, grifo nosso).

Após uma longa apresentação em sinédoque, figura retórica tecida a partir do


relato das atitudes do filho, Aline responde ao porquê de seu desaparecimento:

“[...] ele desejava de todo coração que as coisas melhorassem, que houvesse menos
pobres, que a riqueza do país se emparelhasse, que não houvesse tão poucos ricos e
tantos pobres, queria nivelar a situação das pessoas: esse era seu ideal, simples, lindo.
Por isso o levaram.” 163 (Idem, p. 98).

Com efeito, a comparação da biografia escrita sobre o ente desaparecido ao seu


destino trágico delata a injustiça cometida nos anos do Processo. A vida do filho de
Aline é escrita como um resgate da luta de Pavel, além de propor uma releitura latino-
americana das idéias constituintes de O manifesto Comunista e formar um legado que a
Madre assume e repete em seus textos basilares, como no já mencionado “Nossos
Princípios”.
O trágico destino do filho é o trauma que faz com que a personagem que escreve
dê voz à sua afasia do primeiro momento de desespero. Sintomaticamente, ao contar as
primeiras sensações sobre o dia em que os militares o levaram, Aline descreve a cena do
medo: “me paralisou a mandíbula, me arruinou a língua, e não pude falar durante horas.
164
E é como se entre as Madres de Plaza de Mayo, tivesse aprendido a falar de novo”
(idem). O reaprender a falar a que a autora se refere é a espinha dorsal da constituição
possível à emersão dessas personagens; é a passagem de uma condição trágica ao
encontro com a discursividade elaborada coletivamente como enfrentamento à aporia
decorrente da desgraça vivenciada.
No desfecho da narrativa, ela reinsere a presença de suas companheiras, seres
semelhantes na dor e no orgulho pelo caminho traçado por seus desaparecidos, percurso

162
Título e texto originais: “Qué hacía mi hijo”: “A mí me dolía mucho esa sospecha, porque lo tenía y lo tengo en
mi corazón y en mi memoria como el mejor de los hijos que uno podría desear” (…) “Le dolía mucho las dificultades
de los demás. ¡Tantas veces me traía compañeros a comer a casa, porque “mami, vienen a la mañana al Industrial y
como viven lejos no pueden volver a su casa…”! muchas veces también regalaba su ropa a los que necesitaban, o me
pedía que ayudáramos a algún compañero.”
163
Texto original: “él deseaba de todo su corazón que las cosas mejoraran, que hubiera tan pocos ricos y tantos
pobres, quería nivelar la situación de la gente: ese era su ideal, simple, hermoso.”
164
Texto original: se me paralizó la mandíbula, se me arruinó la lengua, y no pude hablar durante horas. Y es como si
entre las Madres de Plaza de Mayo, hubiera aprendido a hablar de nuevo.”
164

que também é reelaborado na escritura materna “estou muito orgulhosa de recordá-lo


aqui, entre as Madres de tantos jovens iguais a ele, e que ele sentia como seus irmãos”
165
(idem).
Assim como a necessidade de reelaboração discursiva aparece para dar conta de
presentificar o ser ausente, a criação de uma comunidade política imaginada, cujos
valores são compartilhados em irmandade, é uma imagem tonificada nessa escritura, a
qual se localiza “aqui”: um espaço formado por aquelas que, como Aline, crêem dar
vida aos que nunca poderão ser enterrados.
O poema que encerra o capítulo “Do eu ao nós” poderia perfeitamente ser
incluído em mais uns dos cantos de Pelagea Wlassowa. “Um poema” se esboça como o
relato poético da mãe que se transforma em Madre, ao selar seu percurso na escritura. O
passado dá passagem progressivamente ao momento do texto e antecipa um desfecho
irrestrito à noção de temporalidade:

“Me contavas muitas coisas


que eu então não entendia
tratava, dentro do possível,
que desistisses do que fazias.
Quantos erros então cometi:
agora, só agora entendo tudo aquilo que dizias.
Como queria neste momento ter-te a meu lado
abraçar-te e dizer-te que grande e honesto te sinto.
Que orgulhosa me sinto de haver-te parido. ” 166 (COTA, 1997, p.99)

“A terceira coisa” cantada pela personagem de Brecht apresenta-se como “tudo


aquilo que dizias”, no poema de Cota, mostrando algo que só se torna compreensível a
partir do momento em que a mãe se insere no universo de luta e contestação do ser
amado. A entrada nesse contexto é a guinada da personagem: a Madre de Plaza de
Mayo, as “Wlassowas” de um mundo que o mártir por elas criado já testemunhou.
Assim como na Plaza, os textos “marcham” ao redor da biografia construída
sobre os desaparecidos. No último capítulo que integra Coração, a epígrafe “quisemos
escrever para contar nossas histórias como só nós podemos fazer: a partir do corpo,
como se diz agora, a partir do coração. Melhor ou pior que os demais, mas com nossas

165
Texto original: “y estoy muy orgullosa de recordarlo aquí, entre las madres de tantos jóvenes iguales a él, y que él
sentía como sus hermanos.”
166
Título e texto originais: “Un poema”: “Me contabas muchas cosas / que yo entonces no entendía / Tratabas, en lo
posible, / que desistieras de lo que hacías. / Cuántos errores entonces cometí: / ahora, sólo ahora / entiendo todo
aquello que decías. / Cómo quisiera en este momento tenerte a mi lado / abrazarte y decirte qué grande y honesto te
siento / Qué orgullosa me siento de haberte parido.”
165

167
próprias vozes” denota o intento de uma escritura que, ao romper com o silêncio,
propõe uma memória a partir do fazer literário. É do corpo da maternidade que essa voz
se recria e reverbera em busca de uma vontade de restabelecimento de verdades.
Elaborados com base na perspectiva corporal, física, a fadiga da idade se torna
testemunha da personagem que descreve suas etapas da juventude à deformação e,
inversamente, da deformação à juventude, passagem que ratifica o semblante cíclico
dessa transformação pelo tempo.
Em “Meu corpo”, aos momentos de “esbelteza”, atribuem-se os anos em que a
autora evoca as reminiscências da mocidade, retrato que se esvai com o
desaparecimento do filho para ser recuperado, posteriormente, no encontro com seus
ideais e na companhia de personagens como ela. Através de elipses, o leitor tem acesso
a essa metamorfose pelos versos que encerram o poema: “(...) voltei a sentir / o calor de
168
meus anosjuvenis / que se estremeciam / ao ritmo da música” (COTA, 1997, p.103).
Diferentes dos anos da juventude, seus “anosjuvenis” da outra idade levam a grafia de
um tempo criado, de uma etapa simbólica projetada na imagem concreta da música que
embala a dança encenada há três décadas ao redor da Pirâmide de Mayo.
Num ensaio de despedida momentânea, em “três poemas” encontramos o embate
travado com a temporalidade que delimita a fronteira de atuação dos lenços brancos. O
tempo ganha corporeidade nessa luta; como um jogo de xadrez com a morte, Mimí
cultiva na escritura sua esperança no porvir, ao resgatar um aspecto anunciado na
escrita da transição de Nossos sonhos e reiterado na publicação de Pluma:

“Tempo
Resignada aceito teu domínio,
teu destino se assemelha ao meu
não podes romper o círculo
que a vida te impõe.
Me deixas hoje, quando termina a minha.
Outra vida a teu lado amanhã começa.” 169
(MIMÍ, 1997, p. 129).

Interlocutor da angústia relativa a um fim determinado, o tempo é transformado


na personagem do duelo sem saída. A ele, a Madre se alia na espera daqueles que
poderão unir-se à luta e ao caminho traçado pelos mártires que dão vida – e renascem –

167
Texto original: “… quisimos escribir para contar nuestras historias como sólo nosotras podemos hacerlo: desde el
cuerpo, como se dice ahora, desde el corazón. Mejor o peor que los demás, pero con nuestras propias voces…”
168
Título e textos originais: “Volví a sentir / el calor de mis añosjuveniles / que se estremecían / al ritmo de la
música.”
169
Título e textos originais: “Tres poemas”: “Tiempo / Resignada acepto tu dominio, / tu destino se asemeja al mío /
no puedes romper el círculo / que la vida te impone / Me dejas hoy, cuando termina la mía. / Otra vida a tu lado
mañana empieza.”
166

nesse projeto. O tempo, como antagonista, é uma elaboração que se espraia nos textos
de O coração, ora aparecendo como personagem de um diálogo criado na escritura, ora
representando a parcela em que se marcam as horas e se conjugam os verbos.
Em perspectivas atemporais, passado e presente se entrecruzam como um matiz
que se coaduna ao cenário das Madres; no último poema do livro, Juana de Pargament,
a Madre com mais com mais idade e tempo de movimento, dá vida à casa, propondo-
nos um paralelo ao trato do tempo no poema de Mími. O tempo e a casa são lançados à
narrativa poética como testemunhas do desespero que retorna na escritura para inserir a
presença do desaparecido em “A casa”:

“Sigo vivendo
nesta mesma casa.
A casa em que criei meus filhos

a casa em que ainda as paredes falam


de seus jogos, suas alegrias

a casa que os viu crescer


e que ouviu suas inquietudes
de adolescentes.

A casa que logo


me viu sofrer
o câmbio brusco
e o desgarro da dor
do desaparecimento de Alberto.

Esta mesma casa


Que fala do passado
É a que ainda
acoberta meu presente.” 170 (JUANA DE PARGAMENT, 1997, p.130)

Como resposta ao passado escandaloso, a autora se situa num presente que,


simultaneamente, se projeta no porvir e convive entre as paredes que “falam” de seus
filhos. Ambas sobreviventes do evento trágico, Madre e casa se tridimensionam numa
linearidade narrativa composta pela repetição, construindo metáforas e dando vida a
imagens que não podem ser enterradas. No relato, ambas conquistam uma dimensão que
“equivale a conseguir sair da posição de sobrevivente para voltar à vida (...) ir da sobre-
vida à vida” (SELLIGMANN-SILVA, 2008, p.105), sempre na incompletude e na
fragmentação, sejam do texto, sejam da voz embargada que se projeta anunciada “a
partir do coração”.

170
Título e textos originais: “La casa”: “Sigo viviendo / en esta misma casa. / La casa en que crié a mis hijos / la casa
en que todavía / las paredes hablan / de sus juegos, sus alegrías / la casa que los vio crecer / y que oyó sus inquietudes
de adolescentes. / La casa que luego me vio sufrir / el cambio brusco / y el desgarro del dolor / de la desaparición / de
Alberto. / Esta misma casa / que habla del pasado / es la que todavía / cobija mi presente.”
167

4.2. Pluma Revolucionária: a cerimônia do Adeus, as projeções de um legado ao


revés.

“Ellas danzan con los desaparecidos


Ellas danzan con los muertos
Ellas danzan con amores invisibles
Ellas danzan con silenciosa angustia
Danzan con sus padres
Danzan con sus hijos
Danzan con sus esposos
Ellas danzan solas
Danzan solas”

“Ellas danzan solas”, Sting.

Embora a canção de Sting tenha sido feita em homenagem às esposas dos


desaparecidos chilenos, a solidão, que dá forma à composição, não se distancia do
percurso empreendido pelas Madres, uma comparação já realizada em outros
momentos. 171
O contexto de “Ellas danzan solas” se refere à dança da “cueca sola”, uma
performance criada pelas mulheres que, em plena ditadura pinochetista, foram às praças
bailar sozinhas e encenar uma coreografia na qual a ausência do companheiro estava
presente tanto nas fotos que portavam, quanto na imprescindibilidade para a plena
realização da dança.
Além da “cueca sola”, as mulheres chilenas ficaram conhecidas por suas
“Arpilleras”, trabalho artístico em que se refletia o cotidiano da esfera privada num
contexto ditatorial. Na proposta de criar na trama um relato de vida, elas demonstravam,
na arte de seus quadros, o trauma de uma época também marcada pelo genocídio.

171
Em janeiro de 2008, ao apresentar a turnê do grupo “The Police”, em Buenos Aires, as Madres subiram ao palco
como convidadas especiais do músico, quem cantou junto com elas a canção mencionada.
168

Imagem I: Arpillera “La Cueca Sola”, Chile, 1974. Fonte: http://www.davidson.edu

Paralelos à história de memória das Madres, os quadros conhecidos como


“arpilleras”, hoje, traduzem em imagens os problemas sociais que tocam o Chile e
constituem um importante intento de preservação das narrativas construídas na
contramão da história oficial, tecidas por pessoas comuns que preservam o testemunho
de uma época como matéria prima para a criação artística: a reelaboração do trauma.
Essa passagem configurada pelo trauma reelaborado em extrato poético mostra
algumas das estratégias adotadas pelo sujeito que, ao ver-se diante da impossibilidade
narrativa, articula novas formas de construção de identidade (CASTELLS, 1999, p.30).
Frente a essa perspectiva de “reinvenção”, a noção de “identidades em projeto”
corresponde à posição tomada pelas Madres (e pelas mulheres da “cueca sola”), ao
alterarem toda a sociedade em seu conjunto.
O significado das elaborações criadas por essas personagens reais passa a ser
reinventado dentro de um plano simbólico, no qual a alusão amplia o “campo da
representação” (idem, p. 31). A esfera pública, escandalizada pela presença incômoda
daquelas que marcham com seus desaparecidos, experimenta a representação de uma
nova noção acerca da relação entre o Estado e a sociedade civil, na qual a dicotomia
entre seus interesses divide lugar com a compreensão de novas configurações de
memórias coletivas.
Por outro lado, essas novas construções identitárias, embora respondam à
urgência de criação significativa, se defrontam com um contexto negacionista, que tenta
apagar de sua história a vergonha dos anos ditatoriais. Esse jogo perverso pode ser
169

amplamente enxergado na narrativa socialmente construída na Argentina pós-ditatorial.


Como já mencionadas, as artimanhas de apagamento dessa memória edificada com o
corpo das Madres não foram poucas, nem inofensivas. A teoria dos “dois demônios”
ainda é alimentada discursivamente, paralelamente aos incentivos às exumações dos
cadáveres e às propostas de construção de espaços de memória acerca dos anos do
“Processo”. Aparentemente baseadas num intento de restituição, tais representações não
deixam de denunciar um desejo coletivo de encerramento temporal, acerca de um
período ainda doloroso.
Em contradição, o Estado assume um “trabalho de memória” que, ao mesmo
tempo em que tenta responder à presença das Madres, colide com a inviabilidade de
resposta pelos crimes cometidos. Os assassinatos não reconhecidos aparecem em corpos
exumados, em centros clandestinos de tortura. Contudo, a negação sobre as estratégias
desenvolvidas ainda perduram e se mantêm na impunidade, na absolvição de militares e
no desaparecimento de testemunhas na atualidade. 172 Nesse cenário de medo e injustiça,
as Madres “dançam sozinhas” contra o esquecimento, impossibilitadas do luto, em
detrimento de uma luta que tenta reconstruir biografias apagadas pelo ensejo narrativo
de perdão.
E se o passado é a matéria do presente, o retorno ao idêntico é a volta em
espirais que sempre expõe o testemunho e a dor das sobreviventes dos
desaparecimentos. Logo, a escritura de Pluma Revolucionária (2007) é compreendida
no double bind dessa tarefa: resgatar a memória e antecipar a despedida, traduzidas na
différance derridiana entre o confronto do porvir com o choque presentificado nos
rastros de um passado atemporal.
As narrativas desse último livro publicado pelas Madres coadunam o projeto
anunciado em Nossos sonhos à tentativa de estabelecimento de uma comunidade
imaginada capaz de abrigar o legado deixado por seus filhos. Na inviabilidade de novas
personagens portadoras dos lenços brancos, elas se dirigem aos legatários de uma luta
compreendida a partir dos ideais ressemantizados dos desaparecidos.

172
Em 19 de dezembro de 2008, a Suprema Corte Argentina absolveu o ex-comandante da Marinha, Alfredo Astiz , e
mais 19 repressores participantes do regime militar. Algumas horas depois, a presidente Cristina Kirchner, junto aos
organismos de Direitos Humanos, entre estes as Madres, pediram reconsideração, conseguindo que a libertação fosse
anulada temporariamente. Em relação aos desaparecimentos, desde 18 de setembro de 2006, Jorge Julio López,
testemunha no caso sobre os crimes cometidos pelo repressor Miguel Etchecolatz, está desaparecido. Até o momento,
não se sabe o que realmente aconteceu com ele, embora não caibam dúvidas de que, 25 anos após o fim do regime
militar, os desaparecimentos ainda ameaçam as possibilidades concretas de justiça.
170

A preservação dessa “escrita em diferença” que compõe os textos produzidos


pelas Madres possibilita-nos a compreensão de imagens que voltam pelo dever
assumido contra o esquecimento. Intraduzíveis, desaparecidos e Madre chamam à cena
literária uma história pensada a partir dos corpos que se substituem à ausência e
resistem discursivamente ao luto viável à abertura de uma nova etapa. Com efeito, o
adeus ensaiado na escritura é tramado com base na reconfiguração de sentidos criados
em mais de trinta e um anos de movimento. Imortalizadas na escritura e no palimpêstico
cenário de enfrentamento da Plaza de Mayo, as personagens de Pluma se inserem num
contexto que, embora tramado pelo apagamento e pela rasura, se vê impelido ao diálogo
com o saldo dessas narrativas do trauma.
Ainda que muitos textos rememorem o intento anunciado em 1991 e confirmado
em 1997, presente nas publicações de Nossos sonhos e O coração na escritura, alguns
relatos de Pluma se situam na projeção dessa despedida e, de certa forma, na aspiração à
continuidade deixada como herança aos que não poderão, de fato, substituir os corpos
eriçados pelo viés da maternidade.
Logo, surge-nos uma necessidade de compreensão acerca dessa projeção, bem
como da maneira pela qual se constrói a metáfora dos futuros herdeiros. Entendemos
estes sujeitos como legatários, aqueles aos quais não cabe o direito direto sobre a
herança, mas servem de base à imaginação de um inventário constituído por memórias e
significados, elementos simbolicamente construídos a partir da voz do desaparecido
entoada por suas Madres.
É importante destacar o caráter de resgate nessa escritura; Pluma é um livro
publicado depois das oficinas, mas seu material provém de textos produzidos nesses
encontros e de pinturas decorrentes de outros momentos de reelaboração dessa memória
coletiva 173 . O que o diferencia dos demais é a seleção dos relatos inseridos, já que,
anteriormente, o esboço de um legado a “outrem” aparece na planta baixa, mas não se
mostra plenamente na composição textual.
Consideramos que, embora a noção de despedida não seja a imagem mais forte
desses relatos, não é fortuita a operação realizada em Pluma, pois esse inédito traz em si
a seleção e o recorte do tempo em que se torna pública a esperança de continuidade de
um discurso sonhado para novos sujeitos. Dessa forma, acreditamos que o plano
arquitetado em 1991, quando se iniciam as oficinas literárias, ganha espaço num período

173
Embora essas pinturas representem um vasto material para a análise, centrar-nos-emos nos textos escritos, visto
que eles representam a base comparativa do presente estudo.
171

no qual as personagens de uma dança solitária ensaiam o etéreo reencontro com aqueles
que “estão no alto”; seus pares, seus filhos, seus mártires, os 30.000 desaparecidos.
O primeiro texto do livro é assinado por María del Carmen Berrocal, autora de
“A sabedoria”, um dos relatos iniciais de Nossos sonhos. Novamente, essa Madre
retorna inaugurando e, de certa forma, entregando ao leitor o tom do projeto que ele tem
em suas mãos. Sem título, o texto se apresenta partindo do mesmo ponto: seguir com
vida após o evento trágico.
Ao debruçar-se sobre a evocação das memórias provocadas pelo
desaparecimento de seu filho, María del Carmen funda sua escritura na recordação,
aspecto que aparece nos termos que a autora escolhe para a composição de sua
narrativa. O verbo “recordar” é reiterativo e introduz a instabilidade discursiva desse
testemunho literário, o que suspende o juízo do material que serve de base a esse
intento, e ratifica que “qualquer coisa recordada – pela memória vivida ou imaginada –
é virtual por sua própria natureza. A memória é sempre transitória (...), ela é humana e
social.” (HUYSSEN, 2000, p. 37).
Com efeito, o “olhar ao céu” é o caminho que a narradora encontra para parir o
filho na escritura, para transformá-lo em seu legado. O destino do desaparecido é
mesclado: as imagens da trajetória recriada pela Madre misturam-se à ausência física
capaz de desvelar o trauma da personagem que escreve, no momento em que a autora
evoca as lembranças do grupo de amigos do filho:

“Que lindo grupo de meninos, que saudáveis, que unidos que eram. Foram crescendo
e sem querer foram separando-se, cada um escolheu seu caminho, Alberto também
escolheu, creio que o mais difícil, mas o mais lindo. Trabalhou e lutou muito pelos
demais, amava a justiça, acreditava na igualdade do homem, buscava o homem novo,
mas essa forma de lutar e pensar era perigosa, por isso hoje não está fisicamente
conosco, mas está seu exemplo, sua luta que não morreu, por isso para mim hoje cada
jovem que luta é um filho mais que me nasceu, vejo em todos eles Alberto, este é o
triunfo de sua luta que não foi em vão” 174 (MARÍA DEL CARMEN, 2007, p. 12,
grifo nosso).

O filho a mais nascido após a conformação desse ator político é a imagem


lançada sobre os que se encontram às margens, sobre os que lutam e clamam pelos
direitos ressignificados nesse percurso que María del Carmen compartilha com as

174
Texto original: “Que lindo grupo de chicos, que sanos, que unidos que eran. Fueron creciendo y sin quererlo se
fueron separando, cada uno eligió su camino, Alberto también eligió, creo que el más difícil, pero el más lindo.
Trabajó y luchó por los demás, amaba la justicia, creía en la igualdad del hombre, buscaba el hombre nuevo, pero esta
forma de luchar y pensar era peligrosa, por eso hoy no está físicamente con nosotros, pero está su ejemplo, su lucha
que no ha muerto, por eso para mí hoy cada joven que lucha es un hijo más que me ha nacido, veo en todos ellos a
Alberto, éste es el triunfo de su lucha que no ha sido en vano.”
172

Madres. É a eles que ela deixa a esperança da dignificação dos ideais de Alberto, cuja
trajetória lhe é mais bonita justamente por ser mais difícil. O pretérito é o tempo que
marca o limite entre a presença do filho e a permanência de sua luta, personagens
imortalizadas na escritura materna que rompe com a temporalidade ao apostar no porvir.
Em outro momento do livro, a cíclica importância do coletivo, como ponto de
partida para a emersão memorialística, é a base sobre a qual se constrói a narrativa de
Hebe de Bonafini. “O paredão” é a imagem recuperada da infância, que empresta sua
paisagem à construção da metáfora criada pela autora para falar de seu encontro com
suas companheiras e antecipar uma despedida não anunciada no relato, entretanto,
presente em seu enunciado:

“Minha vida é hoje um grande paredão onde montanhas de ilusões assemelham-se às


de areia [...] às vezes sinto que com o amor de todos e a esperança da utopia, volto a
me atirar com a expectativa de chegar abaixo onde me esperam as outras, que
seguramente me ajudarão a subir para voltar a atirar-me uma e mil vezes, todas as que
sejam necessárias até que a montanha seja forte” 175 (HEBE DE BONAFINI, 2007, p.
20).

Assim como em outros textos, o que é imaterial ganha dimensões humanas; a


montanha se personifica quando Hebe lhe atribui uma força capaz de deter sua própria
trajetória. O que não se pronuncia também ganha voz no relato da Madre escritora. A
preposição “até” é o conectivo que, ao ser inserido no enunciado, traça a fronteira entre
a temporalidade vivenciada pelas personagens de “O paredão”. O esboço de uma
retirada é delineado não como um adeus, mas como algo que se desenha na
impossibilidade diante das características titânicas empregadas pela personagem na
descrição de si mesma, no resgate da importância do encontro com o coletivo, “com a
expectativa de chegar abaixo onde me esperam as outras, que seguramente me ajudarão
a subir para voltar a atirar-me uma e mil vezes.”
Junto ao legado projetado na esperança de uma luta continuada, a redefinição
simbólica do espaço onde essa herança foi construída também colabora para a aposta no
porvir. A Plaza de Mayo, cenário heterotópico de um encontro consagrado pela
maternidade, recebe novas inscrições cartográficas, traçados que redimensionam sua
paisagem e dão plasticidade em “Hoje levaram Horácio”, de Elisa de Landín. O relato

175
Título e textos originais: “El malecón”: “Mi vida es hoy un gran malecón donde montañas de ilusiones se
asemejan a las de arena (...) a veces siento que con el amor de todos y la esperanza de la utopía, me vuelvo a tirar con
la expectativa de llegar abajo donde me esperan las otras, que seguro me ayudarán a subir para volverme a tirar una y
mil veces, todas las que sean necesarias hasta que la montaña sea fuerte.” Optamos pela tradução de “malecón” por
“paredão”, pois, embora o dicionário aceite a noção de dique, acreditamos que a imagem proveniente de nossa
tradução corresponda melhor à pretendida pela autora em seu relato.
173

cumpre a trajetória cíclica dos outros textos: o trágico e o encontro com as Madres. Por
outro lado, é através da descrição da Plaza que o leitor tem acesso à importância dessa
conformação: “Me sentei em um banco e creio que dormi, sonhei ou foi realidade. Essa
praça aonde tantas vezes havia levado meus filhos ou meus alunos, hoje era distinta.”
(ELISA DE LANDÍN, 2007, p. 33). A incerteza sobre a qual se constrói a narrativa de
Elisa recupera a fragmentação discursiva que alude ao desespero da personagem,
sentimento que só pode ser suportado junto àquelas que “com lenços brancos giravam
ao redor da pirâmide em lenta caravana, com passo firme” (idem).
Embora o nome da praça não seja mencionado no conto, os termos que a autora
emprega para descrever esse espaço não deixam dúvidas: é a Plaza. Ao término, tal
aspecto se reforça nas representações que lhe são agregadas em decorrência da presença
das Madres, as quais “transformaram esta Plaza em bastião de luta firme e verdadeira”
(idem). A importância desse cenário para as gerações futuras é uma ambição que se
traduz na hipótese imperativa da narradora: “Se aqui se produziu o encontro mais
formoso que uniu todas as Madres sem credos nem raça, só o amor a seus filhos,
buscamos reivindicá-los, que deram tudo, sem pedir nada” 176 (idem).
No relato de Elisa, é confirmada a heterocronia desse cenário, bem como a
gestação cíclica que nele se desenha. O local de encontro com os desaparecidos é o
espaço onde se forjou um movimento e a noção de luta que o sustenta há tantos anos. A
imagem atual que se projeta sobre a Plaza é indissociável das personagens que uniram o
laço da maternidade ao seu nome: Madres de Plaza de Mayo. É com a crença investida
nessa dimensão do espaço que a autora mistura sua biografia e a de seu filho à
cartografia que permite um encontro atemporal, capaz de conservar a sobrevivência
dessa paisagem que rememora e dá sobrevida aos sujeitos dessa história.
A luta e a Plaza passam, então, a traduzir imagens análogas, visto que a
narrativa de uma pressupõe a reconstrução da outra. Em uma carta imaginada à filha
desaparecida, Mercedes de Meroño promete ao despedir-se: “filha minha, te prometo
não deixar a luta e seguir com ela até o último dia de minha vida ” 177 (MERCEDES DE
MEROÑO, 2007, p. 47). Essa perspectiva antecipa o que se pode imaginar após esse
“último momento”, matéria constitutiva do relato posterior de Chela de Prósperi:

176
Título e textos originais: “Hoy se llevaron a Horacio”: “Me senté en un banco y creo que me dormí, soñé o fue
realidad. Esa plaza que tantas veces había llevado a mis hijos o a mis alumnos, hoy era distinta (…) con pañuelos
blancos que giraban alrededor de la pirámide en lenta caravana, con paso firme. (…) Transformaron esta Plaza en
bastión de lucha firme y verdadera. Si aquí se produjo el encuentro más hermoso que unió a todas las Madres sin
credos ni raza, solo el amor a sus hijos, buscamos reivindicar a ellos, que lo dieron todo, sin pedir nada.”
177
Texto original: “Hija mía, te prometo no deja la lucha y seguir con ella hasta el último día de mi vida.”
174

“Novamente os jovens voltam a lutar por ela. Tenho uns vizinhos muito bons,
a avó conta à criança de 4 anos quem sou e que nós Madres buscamos na Plaza nossos
filhos e pergunta: “não os encontrarão mais?”
Pouco tempo depois, quando sabe que estou há dois meses de cama, lhe diz:
“vovó, tem que ir às quintas-feiras à Plaza”. Laura o olha e lhe diz “por quê?”. “Se
agora Chela não pode ir, você tem que ir em seu lugar”.
As crianças não se questionam que continuemos indo à Plaza, encontram-no
mais lógico que muitos adultos.” 178 (CHELA DE PRÓSPERI, 2007, p. 61)

O “ela” a que Chela se refere aparece escrito na epígrafe do relato: “Começar


179
com um remeter-nos à liberdade e a muitos anos depois no país” . Não obstante
apareça fora do corpo da narrativa, o texto sugere a luta pela liberdade numa perspectiva
de retorno através dos jovens, depositada na compreensão de um menino de quatro anos
que se preocupa com a ausência da personagem que escreve. A estratégia empregada
por Chela revisita a crença na imaterialidade dessa herança. A despedida tampouco é
escrita; em seu lugar é projetada a voz da criança, metáfora que denota a esperança
investida na paisagem reconfigurada da Plaza.
É também da esperança o aspecto que religa esses textos ao poema-epílogo de
Nossos sonhos. Como um rito de passagem às novas interpretações acerca de si
mesmas, as Madres dividem com seus leitores co-testemunhais “As folhas de nossos
sonhos”, texto que antecipa o último momento desse encontro com o fazer literário. Os
versos finais “(...) Ficaram tão dormidas / as folhas de nossos sonhos / ou saltarão por aí
/ buscando seus próprios donos? (1991, p. 37) dialogam com o imaginário a respeito de
um empreendimento que pode seguir existindo, no gerúndio, na progressividade de uma
ação inacabada.
Entretanto, ainda que esse intento se construa num coletivo esboçado aos
demais, elas não deixam de “dançar sozinhas”. Em um contexto em que as edificações
de espaços de memória configuram um desejo coletivo expresso na monumentalização
do passado, as Madres se colocam exaustivamente contra esses cenários de
fantasmagoria. Ao reconhecerem a biografia tecida sobre os desaparecidos como um
legado de luta às futuras gerações, elas autenticam o valor dessa imaterialidade e a
entregam como o “produto” de um combate travado em defesa da preservação de uma
memória intransferível.

178
Texto original: “Nuevamente los jóvenes vuelven a luchar por ella. Tengo unos vecinos muy buenos, la abuela le
cuenta al nene de 4 años quién soy y que las Madres buscamos en la Plaza nuestros hijos y pregunta “¿no los van a
encontrar más?” / Al poco tiempo, cuando se entera que tengo para dos meses de cama, le dice: “abuela, tenés que ir
los jueves a la Plaza”. Laura lo mira y le dice “¿por que?”. “Si ahora no puede ir Chela, tenés que ir en su lugar”. /
Los niños no se cuestionan que sigamos yendo a la Plaza, lo encuentran más lógico que muchos mayores.”
179
Texto original: “Comenzar con un remitirnos a la libertad y a muchos años después en el país.”
175

Mais que um mero rechaço, a oposição às edificações desses locais denotam a


impossibilidade de substituição do desaparecido, tão vivo e tão presente no discurso de
suas Madres, as quais tentam preservá-lo do risco da transformação em metáfora. A
perda não pode ser traduzida em linguagem, uma vez que a différance marcada nos
relatos dessas personagens inviabiliza a transposição da imagem do trauma para algo
que possa ser lido na perspectiva do mercado.
O risco de mercadorização da memória constitui a base dessa resistência que, ao
negar o luto, inviabiliza a superação do evento traumático. O cenário a que as Madres se
opõem pode ser relacionado ao que Idelber Avelar considera como “uma lógica
substitutiva e metafórica segundo a qual o passado está sempre em vias de torna-se
obsoleto” (AVELAR, 2003, p. 238). A substituição dos eventos do passado por imagens
que, no presente, respondem mais ao desejo do espetáculo que à reabertura de feridas, é
considerada pelo autor como a seguinte estratégia:

“apagar o passado como passado é a pedra angular de toda mercantilização, inclusive


quando o passado também passa a ser mercadoria, negando-se assim enquanto
passado, ao oferecer-se, já convertido em mercadoria reificada, como substituto
compensatório de tudo o que nele houve de derrota, fracasso, miséria. Em termos
benjaminianos, o mercado chega a transformar inclusive os mais brutais documentos
de barbárie em radiantes testemunhos da riqueza da cultura.” (Idem, grifo do autor)

Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que as projeções museicas preservam


uma noção de memória, elas aniquilam a essência dessa experiência. Embora nesses
espaços seja compensada a “perda dos meios de memória” (HUYSSEN, 2000, p. 29), a
perda da temporalidade que marca o material com que se constroem esses monumentos
torna-se responsável pelo desprovimento do passado como passado. A transformação do
vivido em mercadoria destitui a materialidade que dá forma ao peso insuportável dessa
experiência.
Em Nossos Princípios, texto em que podemos ler os parâmetros éticos do
movimento, as Madres ao afirmarem: “rejeitamos as placas e os monumentos porque
isso significa enterrar os mortos. A única homenagem possível é levantar suas bandeiras
de luta e continuar seu caminho” expressam o bailado solitário dessa dança de memória
na atualidade. Ao considerarem que “as homenagens póstumas só servem para que os
que garantiram a impunidade hoje lavem suas culpas. O único monumento que podemos
180
levantar é um inquebrantável compromisso com seus ideais” , as integrantes da

180
Texto retirado do princípio “Rejeitamos as homenagens póstumas”, cuja tradução está presente neste estudo.
176

Asociación trafegam na contramão de um desejo construído e compreendido


socialmente pela lógica do mercado.
Ainda que os textos publicados pelas Madres, de certa forma, possam
representar uma materialidade dessa memória, eles não deixam de corresponder “a uma
experiência mutilada pela impossibilidade e pela oclusão do visível” (SARLO, 2007, p.
53). Com efeito, “o detalhe insignificante e repetido se adapta melhor que a proliferação
ao que ela (a experiência) relata” (idem), pois viabiliza a reconstrução cíclica de uma
lembrança erigida da incompletude significativa, originada a partir da tragédia dos
desaparecimentos.
Sobre essas tentativas monumentais de concretizar a experiência, não nos é
desconhecida a proliferação desses espaços construídos como loci de memória. Em
1995, a Alemanha foi palco de uma série de encenações monumentais para a
comemoração dos cinqüenta anos do fim da guerra de extermínio nazista181 . No caso do
embrulhamento do edifício “Reichstag”, em Berlim, pelos artistas Christo e Jean-
Claude, podemos ver a conversão de um monumento em mito, o que tornou, em certa
medida, invisível a memória que dele provinha.
Construído em 1985, o prédio abrigou o parlamento alemão nos tempos do
império Guilhermino, “tendo mais tarde exercido um papel fundamental tanto na
fundação quanto na derrubada da República de Weimar, proclamada do parapeito de
suas janelas e encerrada no famoso incêndio do Reichstag, que se seguiu à ascensão do
nazismo ao poder.” (HUYSSEN, 2000, p. 45). Contudo, ao ser “empacotado”, a
memória, que junto à história do edifício construiu as imagens de uma época que não
permite esquecimento, acabou sendo velada pelo intento artístico.
Curiosamente, o novo monumento transitório passou a traduzir o double bind
dessa estratégia de rememoração proposta pelos artistas; ao “apagar” o Reichstag, veio à
luz a revelação do que estava oculto, a imagem palimpsêstica reaparecida após ser
encoberta. O monumento à cultura se ergue, então, como um evento popular, cultuado
na celebração simbólica de uma democracia aparente “em toda sua fragilidade e
transitoriedade” (idem, p. 47).
Para uma discussão mais ampla a respeito da noção de construções monumentais
na atualidade, a Alemanha pós-nazismo é um vasto cenário ao questionamento dessas
estratégias de materialização museica da memória. O próprio “Monumento ao

181
Referência ao capítulo “Sedução monumental”, in: Seduzidos pela memória¸ de Andreas Huyssen. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000.
177

Holocausto”, inaugurado em 2005, também em Berlim, demonstra a concretização


desse desejo de rememorar o passado realmente como passado, ao permitir que nesse
espaço se transite sem o compromisso de reviver o tempo da dor.
Talvez seja justamente esse deambular livre da vivência do trauma que as
Madres tanto rejeitem; embora, hoje, elas mesmas tenham se tornado um monumento
vivo e, como já mencionado, “fotografável”, a proposta ética se apresenta como uma
promessa intacta ao não ser transmutada em museu, local que, para elas, poderia
configurar um para sempre transitório (constituído por fossilizações daqueles aos que
não foram permitidas as exumações), além de ameaçar a preservação de um legado
imaterial.
Hoje, ao receberem o liceu do prédio da Escola de Mecânica Armada (ESMA),
por parte do governo federal como proposta para a construção de um centro cultural, as
Madres retornam ao local onde seus filhos foram torturados, com o anseio de “levar
vida onde houve tanta morte” 182 .
Inaugurado em 30 de abril de 2008 (dia em que se celebravam os 31 anos do
movimento), o Espacio Cultural Nuestros Hijos (ECuNHi) é um centro que abriga
múltiplas expressões culturais, com cursos à comunidade e eventos artísticos, momentos
em que se rememoram os desaparecidos a partir da sobrevida encontrada na
conformação coletiva.
No discurso proferido por Hebe de Bonafini, em janeiro de 2008, ao projetar
essa reconstrução imagética a partir da vida, o desaparecido é convocado como
personagem principal do que ali se realiza. É por ele que ela conclama as pessoas a
acreditarem no legado de mais de três décadas de luta, projetado na crença contra o
apagamento de uma memória que permanece latente. A morte velada e não assumida na
discursividade elaborada pelas Madres aparece para tonificar a imagem de resistência.
O trauma dos anos ditatoriais regressa através do relato que, no presente, se utiliza do
evento para ilustrar o poder do enfrentamento viabilizado pela constituição de uma
herança que, inversamente, volta para ser entregue aos que transformarão esse espaço
num cenário capaz de sobreviver ao apagamento do passado como passado:

182
Trecho do discurso proferido por Hebe de Bonafini, em 31 de janeiro de 2008, dia em que as Madres
“desembarcaram” (termo usado por elas) no liceu naval para pintar, com centenas pessoas, flores e girassóis, uma
intervenção artística capaz de agregar àquele espaço as imagens cultivadas através da memória construída sobre seus
filhos.
178

“Os sonhos compartilhados são os que se fazem realidade. Hoje aqui, dizemos a todos
que, nós Madres, vamos seguir trabalhando pela vida, a vida que é a única que nos
acompanhou sempre. E vou repetir o que disse em um discurso em frente à Escola de
Mecânica da Armada, aqui adiante, quando os milicos nos bateram até se cansar, e eu
lhes gritei na cara: queimaram-nos vivos e não puderam, atiraram-nos vivos ao rio e
não puderam, enterraram-nos abaixo das estradas e não puderam! Nossos filhos não
são ossos, são vida que nasce para sempre como semente em cada um de vocês! E da
mão da vida, desta vida que nos acompanha, da mão dela, vamos indo pelo mesmo
caminho que entramos. Obrigada, companheiros, por acreditar nos projetos das
Madres que já são realidade. Entre todos vamos converter este espaço na coisa mais
maravilhosa que vocês nunca imaginaram. Obrigada por estar, obrigada por vir. E
vivam nossos filhos, vivam nossos queridos filhos, vivam filhos queridos, vivam mais
vivos que nunca, ressuscitem, venham, venham, venham!” 183

Ao chamar para a cena discursiva a presença do desaparecido, requisitado na


ressurreição, Hebe reinsere a noção de mártir, o qual, mesmo após várias tentativas
mortais, permanece vivo através de suas Madres e da crença depositada na continuidade
de seus ideais, compostos pelas narrativas criadas por aquelas que o fizeram nascer uma
vez mais, muitas vezes seguidas. Os princípios éticos que norteiam o texto seminal do
movimento reaparecem na elaboração desse discurso; o trecho em que Hebe enfatiza
que seus filhos não são ossos apresenta-se como um enunciado polifônico, ao inserir,
neste momento, o princípio fundamentado na rejeição às exumações:

“(...) rejeitamos as exumações porque nossos filhos não são cadáveres. Nossos filhos
estão fisicamente desaparecidos, mas vivem na luta, nos ideais, no compromisso de
todos os que lutam pela justiça e pela liberdade de seu povo. Os restos de nossos
filhos devem ficar aí, onde caíram. Não há tumba que encerre um revolucionário. Um
punhado de ossos não os identifica, porque eles são sonhos, esperanças e um exemplo
para as gerações que virão.” 184

E, se negar as exumações é uma resistência ao luto rejeitado há tantos anos, as


Madres encontram na luta de seus filhos a possibilidade de suportar a inexorabilidade
do evento traumático. “Wlassowas” do mundo, elas se despedem da condição trágica de
Antígona quando transformam o embate entre seus interesses e os do Estado na
invocação da presença de seus filhos vivos; vivos em seus textos, em suas marchas, no
desejo projetado a essa comunidade imaginada escrita como “as gerações que virão”. É

183
Texto original: “(…) Los sueños compartidos son los que se hacen realidad. Hoy aquí, les decimos a todos que las
Madres vamos a seguir trabajando por la vida, la vida que es la única que nos acompañó siempre. Y voy a repetir lo
que dije en un discurso frente a la Escuela de Mecánica de la Armada, acá adelante, cuando nos pegaron hasta que se
cansaron los milicos, y les grité en la cara: ¡los quemaron vivos y no pudieron, los tiraron vivos al río y no pudieron,
los enterraron abajo de las autopistas y no pudieron! ¡Nuestros hijos no son huesos, son vida que nace siempre como
semilla en cada uno de ustedes! Y de la mano de la vida, de esta vida que nos acompaña, de la mano de ella, nos
vamos yendo por el mismo camino que entramos. ¡Gracias, compañeros, por creer en los proyectos de las Madres que
ya son realidad. Entre todos vamos a convertir este espacio en la cosa más maravillosa que ustedes nunca hubieran
imaginado. Gracias por estar, gracias por venir. Y ¡¡¡Vivan nuestros hijos, vivan nuestros queridos hijos, vivan hijos
queridos, vivan más vivos que nunca, resuciten, vengan, vengan, vengan...!!!" (trecho transcrito das gravações
realizadas por nós, durante o evento).
184
Nossos princípios, “Rejeitamos as exumações”.
179

com base nesse encontro gestado a partir da inviabilidade e capaz de reinventar-se como
forma de suportar o trágico, que as Madres de Plaza de Mayo constroem e entregam, à
memória do sangue, o legado ao revés.
180

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“(...) O tempo é a minha matéria,


o tempo presente,
os homens presentes,
a vida presente.”

“Mãos dadas”, Carlos Drummond de Andrade.

Iniciar uma perspectiva de término para este estudo com o poema “Mãos dadas”,
do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, traz a possibilidade de dar voz a
alguns aspectos que, ao longo da redação da tese, poderiam parecer deslocados.
Acreditamos, também, que essa sensação de deslocamento foi o que por muito
esteve presente nessas pesquisas. O desafio de estudar um contexto alheio à
historiografia de nosso país trouxe-nos a novidade do desconhecido e as dificuldades de
compreensão e acesso a esse panorama de “outrem”. Mais especificamente no tocante
às Madres, a aproximação a essas personagens e suas narrativas foi embargada em
muitos momentos, propondo-nos uma série de questionamentos acerca das abordagens
por nós escolhidas.
Embora a ditadura militar argentina tenha terminado em 1983, ainda hoje o
temor e a compaixão sublinham a tragédia rememorada pelas situações dramáticas então
vividas. Ameaças telefônicas, simulações de assaltos, ofensas públicas e o constante
crescimento de grupos de extrema direita 185 são fatos que ainda representam notícias
envolvendo as Madres. Com efeito, por mais que alguém queira estudá-las, essas
personagens não são exatamente acessíveis. Depois de tantas vivências trágicas, não
lhes é permitido incorrer em uma nova hamartía.
Em 2004, no primeiro contato com a Asociación Madres de Plaza de Mayo, para
realizar as entrevistas que, posteriormente, serviriam de base para a idealização desse
estudo, essa dificuldade/preservação não nos pareceu tão marcada; foi possível dialogar
com a vice-presidente do movimento naquele momento, Evel Petrini. Agora, após
quatro anos de pesquisa sobre o tema, pensamos na facilidade do primeiro encontro em
decorrência de uma despedida que não tardou mais do que dois minutos, após o término
da entrevista.

185
Um exemplo disso é o “Movimiento por la Verdadera Historia”, liderado por familiares de militares argentinos
ligados à ditadura. Sobre a atuação de grupos como este, é válido mencionar o ocorrido em novembro de 2008,
quando manifestantes pintaram, sobre os lenços brancos desenhados na Plaza de Mayo, tarjas negras, aludindo às
Madres a proliferação de um discurso terrorista e contra a paz.
181

Ao retornarmos para a celebração dos trinta anos de luta das Madres (em 30 de
abril de 2007), o que havíamos conhecido há três anos se transformara quase por
completo; nossa proposta parecia deslocada naquele contexto imaginado de
engajamento; potencialmente, tornara-se estranha aos olhares dos legatários que
acompanhavam aquelas mulheres tão presentes na hipótese deste estudo. O páthos por
eles recriado se chocava bruscamente com nosso intento inicial de aproximação.
No entanto, foi-nos permitido pouco mais de dois minutos antes da despedida e a
realização de muitas entrevistas. Em decorrência de sua extensão (aproximadamente,
onze horas de gravação), esse material não integra a redação desta tese. Contudo, ele é
de fundamental importância à nossa compreensão acerca das narrativas elaboradas pelas
sobreviventes dos desaparecimentos.
Durante os oito dias de viagem, compreendemos um pouco melhor o porquê de
tanto receio e, de certa forma, afastamento. Mais que uma imagem de memória viva, as
Madres são responsáveis pela criação de uma comunidade política peculiar que, assim
como o que ocorre com uma nação, vive de suas narrativas e dos elementos que
corroboram seu senso de pertencimento.
As viagens seguintes diluíram o estranhamento do segundo momento,
permitiram uma passagem pelo reconhecimento de um estudo inovador acerca dessas
personagens: sua produção literária, um material que aparece em segundo plano,
ofuscado pela representatividade dos discursos e ações por elas desempenhados.
A análise desse material paralelo nos possibilitou o trabalho com aspectos que,
embora possam ser considerados secundários dentro de um contexto forjado pelo
engajamento político, são fundamentais à elaboração desse ator político coletivo, o qual
nasce narrativamente de um parto ao revés. A passagem da “mãe” à Madre, tantas vezes
evocada nas marchas, é a imagem que mais se destaca nessa escritura tecida pelas
memórias daquela que sobreviveu à tragédia para rememorá-la.
Desde o primeiro intento de escritura, cuja proposta não se explicita num fazer
literário, essa personagem já anuncia uma guinada que se confirma no momento em que
o movimento se encontra numa situação de impasse político. A Madre que assina os
textos de Poemarios já ensaia seus primeiros passos rumo à separação que marca a
diferença entre o que, hoje, representa o movimento: duas linhas distintas, muitas
personagens marcadas pela mesma dor.
Muitas vezes comparadas à personagem sofocliana, essa separação põe um fim à
relação entre Antígona e as integrantes da Asociación. Ainda que o trágico seja um
182

componente substancial a essa conformação primária, a discursividade elaborada, para


requisitar o filho desaparecido com vida, inverte a necessidade de dar fim ao luto e
iniciar uma nova etapa. Nessa perspectiva, a tragédia se redimensiona: é justamente pela
recusa ao sepultamento que essa personagem experimenta uma nova experiência
trágica.
A memória, configurada na contemporaneidade como um produto rentável e
amplamente metaforizado, é entendida por elas como uma herança cuja partilha só é
possível na crença e na continuidade daquilo que, por elas, pode dar acesso à biografia
do desaparecido.
Inegociável, um novo embate se desenha no caminho dessas personagens:
permanecerem fiéis a seus mortos, em conflito com um contexto ávido pelo perdão
(como viés de esquecimento) e por representações de vivências que permitam espaços
capazes de simular experiências.
Ao assumirem para si a biografia elaborada sobre o desaparecido, as Madres
experimentam o rechaço de uma grande parcela da sociedade argentina que não aceita
essa substituição, porque, realmente, ao que foi feito não há restituição. Entretanto, mais
que uma mera rejeição, o grande incômodo provém de uma postura que, ao negar o
corpo do desaparecido, inviabiliza um projeto de conciliação baseado no esquecimento.
E, se para recordar é necessário esquecer, as Madres se propõem a um novo percurso
trágico: sobreviver narrando, para imaginar a retirada em glória.
A projeção dessa memória, na literatura e nos projetos sociais por elas
realizados, nos dá a dimensão dessa proposta escrita no “aparecimento com vida”. A
rejeição aos espaços de memória é justificada por imagens que, por requisitarem o filho
com vida, permitem que a personagem sobreviva firme em suas narrativas e projetos.
A imaginação de um legado, então, aparece como resposta às nossas dúvidas
iniciais: é possível narrar o trauma? É possível, ao sobrevivente, rememorar o espanto?
A recriação biográfica, decorrente também de um processo metabólico acerca da
memória do desaparecido, possibilita uma discursividade que, ao projetar-se como voz
coletiva, retira a mãe desolada da condição individual trágica. A constante atualização
da dor, do trauma e do espanto é o que ratifica a passagem da mãe à Madre. A cada
nova apresentação dessa ferida, elas confirmam o direito a essa voz da rememória e
revivem a cena do medo, tanto na Plaza quanto na escritura. Nesses cenários, a
personagem de si mesma é a testemunha; a mãe marcada pela tragédia pública e
escandalosamente compartilhada.
183

Com efeito, os novos elementos agregados a essa composição consolidam a


condição trágica inicial e permitem que a passagem prossiga. Hoje, ao serem
reconhecidas internacionalmente e terem esse respeito ratificado pela presidente
Cristina Kirchner, as Madres se projetam num panorama de dignidade, no qual seus
discursos são ouvidos e muitos de seus projetos sociais viabilizados. Mais que uma
organização feminina em defesa dos Direitos Humanos, elas representam a dívida de
uma época com a justiça. E, se cobrar financeiramente essa dívida é um impasse
inegociável, a resposta é o dever assumido com a luta interrompida de seus filhos.
186
Em 2007, com a organização do segundo encontro “Mujeres en Lucha” , na
Itália, as Madres da Asociación confirmaram, também, uma nova proposta de legado, na
qual novos movimentos femininos surgem como desdobramentos da luta iniciada pelas
mães dos desaparecidos argentinos. Com a participação de grupos de vários países, o
evento teve como protagonista Hebe de Bonafini, quem recebeu da Universidade de
Bologna o título Honoris Causa, em reconhecimento aos trinta anos de luta.
Nesse panorama de respeito e apoio a grupos emergentes, elas se projetam como
Madres de futuras Madres, um intercâmbio que confirma a aposta no porvir, ao mesmo
tempo em que reconhece a impossibilidade de novas personagens para seus lenços
brancos. Com outras cores e significados, esses lenços caminham em outras mulheres e
ambicionam novas representações em cenários de contestação.
As causas e as personagens desse novo legado são distintas. São mulheres
também marcadas por tragédias, por perdas e por contextos onde os espantos da guerra
e da iniqüidade corroboram o trauma dos sobreviventes. Bósnia, Sarajevo,
Herzegovina, Sérvia foram alguns dos países cujas representantes ilustraram o temor
provocado pelos conflitos vivenciados. Representantes do movimento feminino “Centro
de Derechos Humanos de la Mujer”, de Ciudad Juárez, no México, relataram os
assassinatos cometidos contra mulheres, crimes que ratificam a impunidade por elas
denunciada. No encontro com as Madres, além da proposta de dar voz aos que, em suas
sociedades, são silenciados, a importância das argentinas, para o surgimento de novos
movimentos, foi destacada pela representante mexicana, Luz Esthela Castro Rodríguez,
que afirmou: “Vocês me pariram e pariram muitas de nós” 187 .

186
Um primeiro encontro já havia sido realizado em Paris, em 1994.
187
Texto original: “Ustedes me han parido y nos han parido a muchas de nosotras”. Fonte: página virtual da
Asociación Madres de Plaza de Mayo: http://www.madres.org
184

Outros países também estiveram presentes: Argélia, Palestina, Israel e Iraque,


Bolívia, Colômbia e Brasil, representado por Neiva Vivian, do “Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra” (MST). Com motivações diversas, essas mulheres se
projetam como legatárias dos desaparecidos, ao se reconhecerem como um ator político
coletivo nascido da luta das Madres.
Ao término do encontro, as participantes escreveram um documento com as
declarações e exigências relatadas junto às Madres. Versando sobre a luta em defesa dos
Direitos Humanos, o documento ilustra o resultado da crença investida no porvir, ao
legar às mulheres argentinas o protagonismo ora projetado a outras personagens. Nessa
perspectiva, vemos a atualização de um projeto que, para seguir com vida, se encaminha
para novos embates e cenários trágicos. O desaparecido que gesta a Madre retorna para
abrir, em outros espaços, a esperança sagrada na Plaza de Mayo.
A narrativa elaborada sobre seus filhos é o mote para o alcance desse
reconhecimento. Ao reivindicar a biografia dos desaparecidos como “guerrilheiros”, as
Madres fortalecem a composição do mártir como autor dessa herança. É apontando um
novo caminho e testemunhando sua fé que a memória sobre seus mortos se esboça
como uma imagem imaterial, impossível de ser preservada em espaços que encerrem
esse trajeto verbalmente atualizado, base narrativa da sobrevivente que assume seu
lugar. É como se dessa reelaboração emergisse um novo aspecto: não basta ser mãe de
desaparecido; é preciso ser mãe de alguém que desapareceu por sonhar com uma
sociedade mais justa.
Diferente de outros movimentos compostos por mães, as Madres se tornam
protagonistas em decorrência daqueles que sempre protagonizaram sua tragédia.
Contraditoriamente, os militares aparecem ao lado dos desaparecidos nesse processo
marcado pelo evento traumático que escreveu a história recente da Argentina.
No decorrer de nossas pesquisas, sentimos a necessidade de encontrar exemplos
e formações originadas pelo laço da maternidade em nosso país, como uma proposta de
paralelo à luta empreendida pelas Madres. Entretanto, percebemos que nosso contexto
ilustra alguns impasses a esse projeto. Durante nossas tentativas, entrevistamos a
presidente do movimento “Mães da Sé” 188 e participamos de vários encontros

188
Com sede em São Paulo, o nome desse movimento provém do local onde mães se encontram semanalmente, a
Praça da Sé. Em nossa entrevista, Ivanise Esperidião da Silva relatou a importância das Madres de Plaza de Mayo
para a idealização do grupo, cujo trabalho é centrado na busca de pessoas desaparecidas. É válido mencionar o
projeto de conscientização realizado por este movimento, uma vez que, segundo Ivanise, na atualidade de nosso país,
esses casos aparecem relacionados a tráfico de órgãos, prostituição infantil e ações em comunidades carentes.
185

realizados pelas “Mães do Brasil” 189 , um grupo idealizado pelas dissidentes do mais
conhecido “Mães da Cinelândia” 190 .
Embora tenhamos notado um propósito de conformação coletiva, o medo de
ações que possam desestabilizar o público ainda é o que mantém essas mulheres à
margem de um intento de questionamento. A busca de um apoio da polícia para a
resolução dos casos corrobora a necessidade de narrar o desaparecido como vítima,
imagem que participa também na elaboração discursiva dessas mães.
É importante mencionar que grande parte dessas mulheres provém de
comunidades carentes do Rio de Janeiro, um referencial fundamental ao trato desses
desaparecimentos, visto que a tragédia por elas vivenciada, muitas vezes, decorre de
enfrentamentos entre policiais e civis, ocorridos nesses locais. Com efeito, ao entregar à
polícia a chance de recuperar seus desaparecidos, elas deixam de lado um projeto que
pode mesmo desestabilizar a cena pública. Em nosso contexto tão marcado por
violências civis e preconceitos étnicos, elas se mostram acanhadas na reivindicação do
filho com os atributos que compõem sua identidade de desaparecido, já que sobre
muitos pesam suspeitas de envolvimentos criminosos.
A simpatia, presente no páthos compartilhado socialmente com as Madres, que
propõe o estabelecimento da maternidade como mote para a conformação do
movimento, no panorama brasileiro não ocorre; ao contrário do temor e da compaixão
despertados pelas mulheres argentinas, as mães brasileiras se defrontam com uma
sociedade civil carente de propostas de segurança, que, de certa forma, apóia e patrocina
operativos policiais em comunidades carentes, sem se preocupar com o saldo dessas
invasões.
Acreditamos que muito há para ser estudado sobre esse tema; sobre o lugar
narrativo dos novos desaparecidos brasileiros. Compreendido como uma proposta de
pesquisa futura, esse caminho nos conduz à imaginação desta conclusão dentro de uma
hipótese que esteve presente em todos os momentos de nosso estudo: o legado ao revés.

189
Durante seis meses, participamos semanalmente de encontros e atos propostos pelas integrantes desse movimento.
Essa aproximação nos permitiu a proposta de uma carta coletiva de apresentação às Madres, material que foi
traduzido e enviado por nós, como tentativa de aproximação dos movimentos. Em novembro do mesmo ano (2007), a
psicóloga Valéria Magalhães viajou conosco a Buenos Aires, para apresentar o trabalho desenvolvido junto às “Mães
do Brasil”, no congresso de Saúde Mental e Direitos Humanos, realizado pela Asociación Madres de Plaza de Mayo.
190
Formado por mães provenientes de tragédias distintas, muitas marcadas por ações policiais em suas comunidades,
o movimento “Mães da Cinelândia” surgiu como uma proposta de exposição da dor como possibilidade de justiça em
relação aos fatos que vitimaram seus filhos. Nesse panorama, destacam-se as “Mães de Acari”, uma agrupação
decorrente do desaparecimento de onze pessoas, entre estas menores, no bairro de Acari, Rio de Janeiro.
Infelizmente, o movimento foi desfeito e os corpos desses desaparecidos até hoje não foram encontrados.
186

Entre tantas hipóteses por que nos guiamos para responder às nossas premissas
acerca dessa elaboração narrativa, as Madres nos deixam a certeza de que, para seguir
com vida, é preciso narrar o horror, torná-lo público. A esperança projetada nos que
virão, presente na imagem atual dos lenços brancos, alcança-nos no projeto de uma
sociedade capaz de sonhar com a liberdade. Alcança-nos no sonho recorrente de uma
voz latino-americana tão projetada na literatura, tão cantada por nossos músicos e ainda
tão distante de ser tornar realidade.
E, se a realidade é um contexto no qual a liberdade reiteradamente precisa ser
defendida, imaginar o tempo presente, o homem presente e a vida presente, para
projetarmo-nos em novos encontros, é o que constitui a nossa matéria.
Contraditoriamente ao percurso de Fred Murdock, o etnógrafo de Borges, não tivemos a
experiência, entretanto, nos arriscamos a narrá-la.
187

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MATERIAL ÁUDIO-VISUAL:

CONDOR (2007). País: Brasil. Duração: 103 minutos. Gênero: Documentário. Direção
e Roteiro: Roberto Mader.

LA AMIGA (1989). Países: Alemanha e Argentina. Duração: 120 minutos. Gênero:


Drama; Direção: Jeanine Meerapfel. Roteiro: Jeanine Meerapfel e Alcides Chiesa.

MADRES (2007); País: Argentina; Duração: 120 minutos; Gênero: Testemunhal;


Direção e Roteiro: Eduardo Félix Walger.
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MATERIAL ELETRÔNICO:

Sites consultados:

TERRA. Site de variedades, letras de músicas. Consulta às letras referentes aos músicos
Charly García. Disponível em: http://letras.terra.com.br/charly-garcia/.
Consulta às letras referentes ao músico Sting.
Disponível em: http://letras.terra.com.br/sting/144034

24 DE MARZO. Site argentino sobre documentos e produções culturais sobre o


Processo de Reorganização Nacional (última ditadura militar). Disponível em:
http://www.24demarzo.gov.ar/memorias

ABUELAS de Plaza de Mayo. Site da organização Abuelas de Plaza de Mayo,


composto por documentos e memórias do movimento. Disponível em:
http://www.abuelas.org.ar/

CENTRO DE ESTUDIOS Políticos y Constitucionales. Site do Ministério Español de la


Presidencia, destinado a consultas sobre aspectos históricos e socioculturais dos países
de língua espanhola. Disponível em: http://www.cepc.es

DAVIDSON COLLEGE. Site da universidade norteamericana Davidson College.


Pesquisa sobre os arquivos de imagens das arpilleras (Chile). Disponível em:
http://www.davidson.edu/arpilleras

ESCULTURA argentina. Site destinado à divulgação do trabalho artístico de escultores


argentinos. Pesquisa sobre as maquetes produzidas pelo artista plástico Miguel Angel
Villalba. Disponível em: http://www.escultoresescultura.com.ar/fontalba

ASOCIACIÓN Madres de Plaza de Mayo. Site do movimento formado pelas Madres da


Asociación, destinado à divulgação e ao acervo de documentos. Disponível em:
http://www.madres.org

SUBTERRANEOS de Buenos Aires. Site com informações sobre a história dos trens
subterrâneos da capital argentina. Pesquisa sobre a primeira linha construída, Linha A.
Disponível em: http://www.sbase.com.ar/lineaa

VERDADERA HISTORIA. Site organizado por familiares de militares julgados pelos


crimes cometidos durante o Processo de Reorganização Nacional. Disponível em:
http://www.verdaderahistoria.com

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