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Posturas teóricas subjacentes
à pesquisa qualitativa
OBJETIVOS DO CAPÍTULO
Após a leitura deste capítulo, você deverá ser capaz de:
✓ conhecer as principais teorias de embasamento da pesquisa qualitativa.
✓ reconhecer as características comuns e distintivas destas teorias.
✓ compreender a diferença entre positivismo e construtivismo.
✓ considerar a contribuição das teorias feministas para a pesquisa qualitativa.
procedimentos metodológicos para a aná- bém aos interesses daqueles que estiverem
lise de significados “objetivos” (ou seja, sendo estudados e constituindo um tópico
não-subjetivos). Entre esses procedimen- no texto. De acordo com essa visão, os tex-
tos, podemos encontrar: análises linguísti- tos não são nem o mundo per se, nem uma
cas, para extrapolar os modelos culturais; representação objetiva de partes deste
análises estritamente sequenciais de ex- mundo. São, antes, resultantes dos interes-
pressões e de atividades para revelar sua ses daqueles que produziram o texto, bem
estrutura objetiva de significados; e a “aten- como daqueles que o leram. Leitores dis-
ção equilibradamente suspensa” do pesqui- tintos – dependendo das perspectivas que
sador no processo psicanalítico de inter- trazem para o texto específico – solucio-
pretação. nam, de formas diferentes, a imprecisão e
Particularmente, a hermenêutica ob- a ambiguidade contidas em cada texto.
jetiva a partir de Oevermann e colabora- Com base nesse contexto, as restrições for-
dores (1979) atraiu imensa atenção e esti- muladas acerca do conceito hermenêutico
mulou uma pesquisa abundante nas regi- objetivo da estrutura – de que “entre as
ões de língua alemã (ver Capítulo 25). estruturas superficiais e profundas do uso
Entretanto, há um problema ainda não so- da linguagem (...) existe um ‘hiato’
lucionado nos fundamentos teóricos da metodológico na hermenêutica objetiva
abordagem, que é a relação pouco nítida que, na melhor das hipóteses, pode ser pre-
dos sujeitos ativos com as estruturas a se- enchido ensinando-se e tratando-se o mé-
rem extrapoladas. Luders e Reichertz 1986, todo como arte” (Bonß, 1995, p. 38) – tor-
p. 95), por exemplo, criticam a “metafísica nam-se ainda mais relevantes.
das estruturas”, que são estudadas prati-
camente como “estruturas autonomamen-
te ativas”. Outros problemas referem-se à Avanços recentes na psicologia:
simplicidade da equação sobre texto e representações sociais
mundo (“o mundo como texto”) e à supo-
sição de que, se houvesse um aprofunda- O que ainda permanece obscuro nas
mento suficiente das análises, estas con- abordagens estruturalistas é a relação en-
duziriam às estruturas geradoras das tre o conhecimento social implícito e o co-
atividades do caso em estudo. Essa suposi- nhecimento e as ações individuais. Para
ção baseia-se no pano de fundo estrutura- responder a essa questão, pode-se utilizar
lista da abordagem de Oevermann. um programa de pesquisa em psicologia
social que tenha sido aplicado ao estudo
da “representação social” de objetos (por
Avanços recentes nas ciências exemplo, teorias científicas sobre objetos
sociais: pós-estruturalismo culturais e processos de mudança: para um
panorama, ver Flick, 1998). Tal programa
Após Derrida (1990/1967), tais su-
lidaria com o problema de como esse co-
posições estruturalistas foram questiona-
nhecimento social e culturalmente compar-
das também na pesquisa qualitativa.
tilhado influencia os modos individuais de
Lincoln e Denzin (2000, p.1051), por
percepção, de experiência e de ação. Uma
exemplo, questionam se o texto elaborado
representação social é entendida como:
para fins de interpretação, assim como o
texto formulado enquanto resultado da um sistema de valores, de ideias e de prá-
interpretação, não corresponde apenas aos ticas com uma função dupla: primeira-
interesses (da pesquisa ou do que quer que mente, estabelecer uma ordem que ha-
seja) do intérprete – ou seja, questionam bilitará os indivíduos a orientarem-se em
em que medida esse texto corresponde tam- seu mundo material e social e controlá-
TABELA 6.1
Posturas teóricas na pesquisa qualitativa
Até aqui, delineei as principais pers- das vozes das participantes). Ussher (1999)
pectivas de pesquisa que percebo na pes- utiliza a psicologia da saúde para lidar com
quisa qualitativa atual, de acordo com seus questões específicas dentro da pesquisa
pressupostos teóricos fundamentais. Na qualitativa feminista. Kitzinger (2004)
parte restante deste capítulo, tratarei de apresenta uma abordagem da análise de
dois pontos de referência principais para conversas feminista com o objetivo de ana-
as discussões teóricas na pesquisa quali- lisar as vozes em seu contexto interacional.
tativa. Wilkinson (1999) discute os grupos focais
como uma metodologia feminista. May-
nard (1998) desafia novamente a ligação
FEMINISMO E próxima entre a pesquisa feminista e a pes-
ESTUDOS DE GÊNERO quisa qualitativa questionando, por exem-
plo, o porquê da incompatibilidade de uma
Mais do que uma perspectiva de pes- combinação entre pesquisa qualitativa e
quisa, a pesquisa feminista surgiu como pesquisa quantitativa no esquema da pes-
uma crítica fundamental da ciência social quisa feminista. Mais recentemente, Gilde-
e da pesquisa em geral. A pesquisa con- meister (2004) discute os estudos de gê-
centrou-se na ignorância sobre a situação nero como um passo além dos estudos fe-
de vida das mulheres e a dominância mas- ministas e de mulheres enquanto progra-
culina. A pesquisa feminista e a pesquisa ma de pesquisa. Aqui, “encontra-se consis-
qualitativa foram, muitas vezes, sinônimas tentemente indicado (...) que o gênero é
em função dos métodos abrirem-se mais uma categoria social, e que é sempre, de
às vozes das mulheres e a suas necessida- algum modo fundamental, uma questão de
des em geral. Mies (1983) destaca razões relações sociais. Por essa razão, o foco não
pelas quais a pesquisa feminista está mais está mais em lidar com a diferença enquan-
ligada à pesquisa qualitativa do que à quan- to uma questão substancial ou essencial,
titativa. A pesquisa quantitativa normal- mas na análise das relações de gênero do
mente ignora as vozes femininas, conver- ponto de vista de suas organizações hie-
te-as em objetos que são estudados de um rárquicas e sua desigualdade social” (p.
modo valorativamente neutro, não sendo 123). Nesse contexto, gênero é visto, ao
analisadas especificamente como mulheres. mesmo tempo, como uma categoria estru-
A pesquisa qualitativa permite que as vo- tural e como uma construção social. No
zes das mulheres sejam ouvidas e que os primeiro caso, o interesse maior está na
objetivos sejam concretizados. Segundo desigualdade social resultante do gênero
Ussher (1999, p. 99), a pesquisa feminista (diferenças); neste último, o interesse con-
enfoca uma “análise crítica das relações de centra-se mais na produção do gênero
gênero na pesquisa e na teoria (...) uma (West e Zimmermann, 1991) e em como
valorização das dimensões moral e políti- as distinções sociais de gêneros são cons-
ca da pesquisa (...) e o reconhecimento da truídas nas práticas diárias e institucio-
necessidade de mudança social para me- nais. Por exemplo, os estudos sobre tran-
lhorar as vidas das mulheres.” Isso leva não sexualidade tornaram-se uma abordagem
apenas à definição de uma questão de pes- especial para demonstrar como a norma-
quisa (desigualdades de gênero, por exem- lidade é construída interacionalmente e
plo), mas ao desafio da maneira como a como pode ser desconstruída por meio da
pesquisa é feita, em vários níveis. Skeggs análise do esgotamento dessa normali-
(2001) e Smith (2002) delineiam um en- dade:
tendimento feminista da etnografia no ní-
vel da coleta de dados, bem como na aná- A estrutura profunda interacional, na
lise e na apresentação das descobertas (e construção social do gênero, foi particu-
Exercício 6.1
1. Procure um estudo publicado e identifique qual das perspectivas de pesquisa discuti-
das neste capítulo serviu como orientação ao pesquisador.
2. Reflita sobre sua própria pesquisa e identifique quais são os tópicos deste capítulo
relevantes ao estudo.
7
Base epistemológica:
construção e compreensão de textos
Texto e realidades, 83
O texto como concepção do mundo: construções de primeiro e segundo graus, 84
As construções sociais como pontos de partida, 85
A concepção do mundo no texto: mimese, 86
A mimese na relação entre a biografia e a narrativa, 88
OBJETIVOS DO CAPÍTULO
Após a leitura deste capítulo, você deverá ser capaz de:
✓ entender que a relação entre as realidades sociais em estudo e a representação nos textos
utilizados para estudá-las não constitui uma simples relação individualizada.
✓ reconhecer a existência de diferentes processos de construção social envolvidos.
✓ identificar a mimese como um conceito eficaz para a descrição destes processos.
✓ empregar isso a uma forma proeminente de pesquisa qualitativa.
Construção
Textos como versões
do mundo
mimese3
mimese2
Experiência
Interpretação
Ambiente, eventos
Compreensão,
e atividades naturais
atribuição de significado
e sociais
mimese1
Figura 7.2 Processo da mimese.
cesso não se limita ao acesso a textos lite- Assim, Gebauer e Wulf discutem a
rários, estendendo-se à compreensão como mimese nos termos da construção do co-
um todo e, portanto, também à compreen- nhecimento em geral. Por sua vez, Ricoeur
são enquanto conceito de conhecimento na utiliza-a para analisar os processos de com-
estrutura de pesquisa da ciência social. Esse preensão da literatura de um modo parti-
tópico foi esclarecido por Gebauer e Wulf cular, sem invocar a ideia limitada e estrita
(1995) em sua discussão geral sobre a da representação de determinados mundos
mimese, ao referirem-se à teoria de em textos, e sem o conceito restrito da re-
Goodman (1978) sobre as diferentes for- alidade e da verdade1.
mas de concepção do mundo e as versões
de mundo resultantes como consequência
do conhecimento: A MIMESE NA RELAÇÃO ENTRE
A BIOGRAFIA E A NARRATIVA
O saber, nos termos desse modelo, é uma
questão de invenção: os modos de orga- Para maior esclarecimento, essa ideia
nização “não são encontrados no mundo, do processo mimético será aplicada a um
mas, sim, formam um mundo”. A com- procedimento comum na pesquisa quali-
preensão é criativa. Com o auxílio da teo- tativa. Grande parte da prática de pesqui-
ria de Goodman sobre a concepção do sa concentra-se na reconstrução de histó-
mundo, a mimese pode ser reabilitada em rias de vida ou biografias, a partir de en-
oposição a uma tradição que rigidamente trevistas (ver Capítulo 14). O ponto de par-
a privou do elemento criativo – e que, por tida é a suposição de que uma narrativa
si só, baseia-se em pressuposições falsas:
seja a forma apropriada de apresentação
o objeto isolado do conhecimento, a su-
posição de um mundo existente fora dos
de uma experiência biográfica (para mais
sistemas de codificação, a ideia de que a detalhes, ver os Capítulos 14, 15 e 16).
verdade é a correspondência entre os Nesse contexto, Ricoeur mantém “a tese de
enunciados e um mundo extralinguístico, uma qualidade narrativa ou pré-narrativa
o postulado de que o pensamento pode da experiência como tal” (1981, p. 20).
ser traçado de volta a uma origem. Nada Quanto à relação mimética entre as histó-
dessa teoria permaneceu intacto após a rias de vida e as narrativas, Bruner destaca
crítica de Goodman: os mundos são
construídos “a partir de outros mundos”. que a mimese entre a vida assim denomi-
(1995, p. 17) nada e a narrativa é uma questão de duas
Estudo de caso:
A mimese na construção social do eu e a tecnologia
Exercício 7.1
1. Explique a diferença entre a construção de primeiro grau e a construção de segundo
grau de uma entrevista biográfica.
2. Descreva as três formas de mimese do mesmo exemplo.