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Diversidade Étnico-

Racial e Educação
Superior Brasileira
Conselho Editorial
Ahyas Siss, Alvanísio Damasceno, Gláucio Pereira,
Iolanda de Oliveira, Mariluce Bittar,
Paulo Vinicius Baptista da Silva.

LEAFRO
Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros (NEABi/UFRRJ)
lefro@ufrrj.br
Ahyas Siss (Org.)

Diversidade Étnico-
Racial e Educação
Superior Brasileira:
experiências de intervenção

Aloisio Jorge de Jesus Monteiro


Cláudia Regina de Paula
Dalila Fonseca Benevides
Daniela Silva Santo
Darci Secchi
Delcele Mascarenhas Queiroz
Iolanda de Oliveira
Leila Dupret
Lucília Augusta Lino de Paula
Maria Alice Rezende Gonçalves
Maria Lúcia Rodrigues Muller
Paulo Vinicius Baptista da Silva

Rio de Janeiro
2008
Copyright © 2008 by Ahyas Siss, Aloisio Jorge de Jesus Monteiro, Cláudia Regina de
Paula, Dalila Fonseca Benevides, Daniela Silva Santo, Darci Secchi, Delcele Mascarenhas
Queiroz, Iolanda de Oliveira, Leila Dupret, Lucília Augusta Lino de Paula, Maria Alice
Rezende Gonçalves, Maria Lúcia Rodrigues Muller e Paulo Vinicius Baptista da Silva.

Todos os direitos desta edição reservados à Quartet Editora & Comunicação Ltda.
É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de partes do mesmo,
sob quaisquer meios, sem a autorização expressa da Editora.

Capa
???
Editoração
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Revisão
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SUMÁRIO

Introdução ........................................................................ 7
Ahyas Siss

O Leafro, relações étnico-raciais e a


formação de professores: uma experiência
de intervenção multicultural . ...................................... 15
Ahyas Siss

Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei


n. 10.639 na abordagem do ciclo de políticas ........... 41
Cláudia Regina de Paula

Jovem da Baixada Fluminense, religião


de matriz afro-brasileira e subjetividade:
um entrelaçamento à luz da complexidade ............... 65
Leila Dupret

A incorporação da dimensão racial do


fenômeno educativo às funções da universidade:
origem e atuação do Programa de Educação sobre
o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb) ................ 87
Iolanda de Oliveira

Educação e relações raciais em Mato Grosso .......... 129


Maria Lúcia Rodrigues Muller

Educação das relações étnico-raciais


na terra das araucárias................................................ 149
Paulo Vinicius Baptista da Silva
Para além do imaginário congelado
do território e da identidade brasileira:
entre memória e tradições indígenas........................ 177
Aloisio Jorge de Jesus Monteiro

Formação de professores para


a autonomia indígena.................................................. 197
Darci Secchi

Relações raciais e desigualdade: resistências


à política de cotas na universidade . ......................... 219
Lucília Augusta Lino de Paula

Estudantes de uma universidade estadual


com cotas: a percepção do racismo e da
política de ações afirmativas...................................... 241
Dalila Fonseca Benevides, Daniela Silva Santo
e Delcele Mascarenhas Queiroz

O sistema de reserva de vagas na Universidade


do Estado do Rio de Janeiro e a participação
do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UERJ
na permanência de alunos afro-brasileiros ............. 269
Maria Alice Rezende Gonçalves
INTRODUÇÃO

Esse livro foi escrito a várias mãos e em lugares di-


ferentes. Sob o título Diversidade étnico-racial e educação
superior brasileira: experiências de intervenção, reúne
experiências diversificadas de intervenção na educação
brasileira. O livro possui, como eixo articulador, as in-
tervenções efetivadas por diferentes pesquisadores e por
seus grupos de pesquisa, na confluência estabelecida pela
educação superior brasileira como política pública, ou
seja, o Estado em ação e as desigualdades étnico-raciais
brasileiras. Esses pesquisadores estão preocupados e com-
prometidos com a qualidade da educação superior brasi-
leira como política pública.
Há a mesma preocupação em construir mecanismos
que possibilitem o efetivo cumprimento das Leis 10.639/03
e 11.645/08, interferindo nos processos de inserção preca-
rizada de diferentes segmentos populacionais brasileiros
no processo educativo e na forma pela qual se configuram
o acesso e a permanência na educação superior brasileira,
de grupos étnicos, colocados em posição de subalternida-
de social e política.
O papel que o Estado brasileiro vem desempenha-
do nesse processo é identificado, analisado e questionado
7
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

nos vários artigos da coletânea. São apresentadas inter-


venções nos processos de formação de professores nas
suas dimensões inicial e continuada, buscando efetivá-los
sobre bases multiculturais, como convém a uma sociedade
étnica e racialmente estratificada como é a brasileira.
Ainda que não se possa negar o caráter multicultural
da sociedade brasileira, os currículos dos cursos de for-
mação de docentes, tanto inicial quanto continuada, vêm
sistematicamente ignorando essa realidade ao homogenei-
zar racialmente a população brasileira. Essa constitui, sem
dúvida, uma das formas de se promover à invisibilidade
dos diversos grupos étnico-raciais que compõem a socie-
dade. Promovida essa invisibilidade, não haverá motivos
para se implementar uma política pública de educação em
perspectiva multicultural. A lacuna deixada pelos cursos
de formação de professores, no que diz respeito à prática
docente no seio de uma sociedade plural, bem como à
diversidade étnico-racial de seus alunos, obstaculizará o
professor na identificação de práticas discriminatórias em
sala de aula, dificultando, ainda, a criação de estratégias
e de mecanismos de combate às mesmas por esse profis-
sional, a quem caberá, nas salas de aula, explicitar – sem
hierarquizar – as diferenças étnico-raciais, culturais, eco-
nômicas e de gênero de seus alunos, transformando as
salas de aula e, por conseguinte, a instituição escola, em
um espaço democrático, “espelho da riqueza humana”.
Diversas universidades brasileiras vêm implemen-
tando experiências de políticas públicas de ação afirmativa
e de cotas étnico-raciais, privilegiando os aspectos da de-
mocracia de acesso e de permanência no ensino superior,
para negros e indígenas. Podemos encontrar algum tipo
de política de cotas, ou de ação afirmativa, social, étnica
e racialmente enviesadas em diversas universidades esta-
duais e federais como: Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj), Universidade Estadual do Norte Fluminense
(Uenf), Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Univer-
sidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Univer-
8
Introdução

sidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), Universidade


Estadual de Montes Claros (Unimontes), Universidade do
Estado de Goiás (UEG), Universidade do Estado de Santa
Catarina (Udesc), Universidade do Estado de Mato Grosso
(Unemat), Universidade do Estado do Amazonas (UEA),
Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadu-
al da Paraíba (UEPB), Universidade Federal de Alagoas
(Ufal), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Fe-
deral da Bahia (UFBA), Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Fede-
ral do Paraná (UFPR), Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universi-
dade Federal do Tocantins (UFT) e na Escola Superior
de Ciências da Saúde de Brasília (ESCS), as duas últimas,
voltadas para alunos oriundos de escolas públicas e, as
supracitadas, com forte viés de classe social.
Democratizar o acesso à universidade é um passo.
Entretanto, como se viabiliza a democracia de realização
dos alunos negros e indígenas, quando comparados aos
alunos brancos das universidades brasileiras? Quais os me-
canismos que asseguram a permanência não subalterniza-
da desses alunos na universidade? O que nos ensinam as
experiências de universidades pioneiras na implementação
das políticas de cotas étnicas ou racialmente definidas?
Ahyas Siss, em “O Leafro, relações étnico-raciais e
a formação de professores: uma experiência de interven-
ção multicultural”, ao discorrer sobre a necessidade de se
implementar a formação de professores em perspectiva
multicultural, analisa a contribuição que o Leafro (Labo-
ratório de Estudos Afro-brasileiros), o núcleo de estudos
afro-brasileiros da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ) oferece ao processo de formação conti-
nuada de professores da Baixada Fluminense, no Rio de
Janeiro, e ressalta as formas pelas quais esse laboratório
9
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

vem, efetivamente, intervindo nesse processo. Criado em


2006, o Leafro desenvolve atividades de ensino, pesquisa
e extensão, aprofundando análises das articulações esta-
belecidas entre as dimensões raciais e étnicas, de classe,
cultura, de gênero, bem como do mundo do trabalho
na sua interseção com as relações étnico-raciais brasilei-
ras e com o processo educativo formal. Nesse sentido,
esse laboratório promove ações afirmativas étnica e ra-
cialmente enviesadas, com resultados significativos no
processo de formação de professores, no âmbito da Bai-
xada Fluminense e da própria UFRRJ, além de participar
ativamente das discussões sobre as possibilidades de
implantação de políticas de cotas étnico-raciais naquela
universidade.
“Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n.
10.639 na abordagem do ciclo de políticas” é o artigo
assinado por Cláudia Regina de Paula, em que a autora
discute as contribuições da abordagem do ciclo de polí-
ticas, formulada por Stephen Ball e seus colaboradores,
especificamente sobre a política que inclui no currículo
da escola básica a história e a cultura afro-brasileira, atra-
vés da Lei n. 10.639, bem como as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
(Parecer 003/2004).
O artigo “Jovem da Baixada Fluminense, religião de
matriz afro-brasileira e subjetividade: um entrelaçamento
à luz da complexidade”, da pesquisadora Leila Dupret,
apresenta estudos realizados a partir de 2006 com jovens
habitantes da Baixada Fluminense, levando em conta o
que é decantado pela mídia, incluindo sua concepção
étnico-racial, acrescida pelo atravessamento cultural afro-
brasileiro advindo do campo religioso, considerando suas
informações míticas como fonte para a construção do co-
nhecimento, destacando neste contexto o papel ativo da
mulher em sua participação no cenário político, econô-
mico e divulgador dos usos, costumes e tradições cons-
tituintes de nossa brasilidade. A autora analisa também
10
Introdução

como supostos futuros professores estão lidando com as


diferentes modalidades de saber.
Iolanda de Oliveira, em seu “A incorporação da di-
mensão racial do fenômeno educativo às funções da uni-
versidade: origem e atuação do Programa de Educação
sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb)”, discorre
sobre a criação do Penesb e de sua incorporação à estru-
tura da Faculdade de Educação da Universidade Federal
Fluminense (Feuff), além de fazer considerações sobre
referenciais teóricos pertinentes à pesquisa e à formação
dos profissionais da educação com vistas ao atendimento
satisfatório aos grupos humanos diferenciados cultural e
biologicamente, particularmente os grupos negros.
“Educação e relações raciais Em Mato Grosso” é o
artigo em que a pesquisadora Maria Lúcia Rodrigues Mül-
ler discute os processos intra-escolares que produzem o
fracasso escolar de alunos negros, que, quando não fracas-
sam, têm trajetórias escolares mais acidentadas que alunos
brancos. No texto, a autora aborda alguns aspectos das re-
lações raciais nas escolas de Mato Grosso tomando como
base os resultados de pesquisas realizadas no Núcleo de
Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação
(Nepre) da Universidade Federal de Mato Grosso.
Paulo Vinicius Baptista da Silva, pesquisador do Nú-
cleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
do Paraná (Neab-UFPR) contribui, nessa obra coletiva-
mente produzida, com o seu artigo intitulado “Educação
das relações étnico-raciais na terra das araucárias”, no qual
discute o processo de formação de professores (as) sobre
História e Cultura Afro-Brasileira e sobre Educação das Re-
lações Étnico-Raciais desenvolvido pelo Neab-UFPR desde
o ano de 2004.
A educação indígena se faz presente, neste livro,
por meio de dois artigos, dos pesquisadores Aloisio Jorge
de Jesus Monteiro e Darci Secchi. Monteiro, em seu “Para
além do imaginário congelado do território e da identida-
de brasileira: entre memória e tradições indígenas”, fun-
11
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

damentado em Walter Benjamin, afirma que a luta pela


demarcação dos territórios indígenas, em conexão com a
defesa das identidades de seu patrimônio histórico cultu-
ral, assume características de centralidade no debate atual.
O autor procura, ainda, identificar os conceitos de territó-
rio e identidade, bem como, suas possíveis confluências
com a complexidade das novas configurações atuais. Já
Secchi, em “Formação de professores para a autonomia
indígena”, afirma que o debate acerca da implantação de
políticas públicas dirigidas a segmentos sociais específicos
(negros, índios, pobres, etc.) tem ocupado um lugar de
destaque no cenário acadêmico contemporâneo. O autor
discute a educação escolar indígena por considerá-la uma
das âncoras do movimento de consolidação do chamado
protagonismo indígena e assegura que a consolidação de
uma nova perspectiva para a educação escolar indígena
em Mato Grosso na última década foi possível graças a um
amplo programa de formação de professores, mas que foi
necessário conjugar a educação escolar a outras iniciativas
que procuraram superar as atuais políticas compensatórias
e se voltaram para a construção de relações pautadas na
autonomia e no protagonismo dos brasileiros indígenas,
quer vivem nas aldeias, quer vivam nas cidades.
A pesquisadora Lucília Augusta Lino de Paula, ao
discutir as “Relações raciais e desigualdade: resistências à
política de cotas na Universidade”, não nos deixa esquecer
que este é um dos grandes desafios com que a universida-
de brasileira se depara desde a Reforma Universitária de
1968, colocando em xeque concepções e práticas arraiga-
das e marcadas pelo elitismo e pela meritocracia. Afirma
que os debates sobre a instituição do sistema de cotas nas
universidades públicas brasileiras trazem à luz resistências
à institucionalização da adoção de políticas afirmativas e
ao reconhecimento de tensões nas relações étnico-raciais
no interior do campo acadêmico e que se, hoje, a univer-
sidade apresenta uma crescente produção científica sobre
a diversidade cultural e as relações étnico-raciais, quando
12
Introdução

o assunto é a democratização do acesso às camadas popu-


lares, mais especificamente à população afro-descendente,
as resistências são enormes.
As considerações elaboradas pelas pesquisadoras
Dalila Fonseca Benevides, Daniela Silva Santo e Delce-
le Mascarenhas Queiroz, no capítulo “Estudantes de uma
universidade estadual com cotas: a percepção do racis-
mo e da política de ações afirmativas”, têm sua origem
em dois levantamentos sobre os estudantes da Uneb, que
ingressaram no ano de 2005 naquela universidade pelo
sistema de cotas. As autoras pretendem contribuir para o
debate em torno das ações afirmativas e, particularmente,
levar à reflexão sobre a experiência de adoção de tais
medidas naquela instituição. O primeiro levantamento
identificou as características socioeconômicas e acadêmi-
cas dos estudantes que ingressaram em cursos de elevada
concorrência. O segundo compreendeu a percepção dos
estudantes sobre as relações raciais, as ações afirmativas e,
particularmente, a política de cotas que os beneficiou.
Maria Alice Rezende Gonçalves, ao analisar “O
sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e a participação do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros da Uerj na permanência de alunos afro-
brasileiros”, nos remete ao campo das políticas publicas
e descreve as fases de implantação e implementação
da política pública Sistema de Reserva de Vagas para
Negros na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(2002/2008), além de destacar a participação do Sem-
pre Negro – Coletivo de Professores Negros da Uerj, o
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UERJ, nesse pro-
cesso. A autora pontua que, desde sua criação (2003), o
núcleo promove atividades nos eixos formação, publi-
cação e permanência de alunos afro-brasileiros, e que
as ações do Neab, um ator emergente no campo das
políticas de inclusão no ensino superior nas universida-
des públicas, contribui para consolidação dessa política
no interior da instituição.
13
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Os autores, cujos textos integram o presente livro,


percebem as representações de raça, classe e gênero
como o resultado de lutas sociais ampliadas “sobre signos
e representações”. As desigualdades são compreendidas
como produto de relações históricas, de cultura e de po-
der e a diversidade é afirmada na perspectiva da justiça
social. Diferença não significa desigualdade.
Ao atuarem nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da
extensão, produzindo e divulgando conhecimentos loca-
lizados na confluência das áreas das desigualdades e das
diversidades étnico-raciais e da educação, esses pesquisa-
dores ampliam e consolidam sua intervenção na educação
brasileira e nos oferecem subsídios para uma nova prática
pedagógica menos excludente, vale dizer, mais democrá-
tica, propiciando que a educação brasileira possa efetivar-
se sobre bases multiculturais.

Ahyas Siss

14
O Leafro, relações étnico-raciais
e a formação de professores:
uma experiência de intervenção
multicultural

Ahyas Siss

Introdução

Sabemos que a formação continuada de professo-


res constitui-se, entre nós, como necessidade premente.
Desde os anos sessenta do século passado esse tema vem
ganhando importância significativa, provocada por ace-
leradas transformações pelas quais a sociedade brasileira
vem passando. As demandas educacionais colocadas pelo
avanço tecnológico, econômico e científico nas diferentes
áreas do saber, somadas a outras originadas pela ação dos
diferentes movimentos sociais que, a partir da década de
1970, reemergiram ou potencializaram suas ações no ce-
nário nacional, vêm impactando fortemente o processo de
formação de professores, nos seus aspectos inicial e con-
tinuado. A dinâmica social exige dos professores novas
competências e habilidades que, muitas das vezes, não
foram construídas quando de sua formação inicial.
Não devemos nos esquecer de que, se a formação
continuada de professores é um direito do professor, esse
processo formativo coloca algumas exigências para esses
profissionais, tais como disponibilidade para aprendiza-
gem e vontade de aprender a aprender, dentre outras. Da
instituição escolar, por outro lado, requer-se que sejam
15
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

criadas alternativas, ou condições, que propiciem a esses


profissionais a continuidade de seu processo formativo.
Se a formação de professores é dever do Estado e tarefa
da universidade, exige-se, do Estado, a formulação e im-
plementação de políticas públicas voltadas para a qualifi-
cação desses profissionais. Da universidade, por sua vez,
exige-se a elaboração de programas de formação continu-
ada que possibilitem o desenvolvimento e a qualificação
profissional em uma dimensão permanente.
No que diz respeito ao trinômio educação, relações
étnico-raciais brasileiras e formação de professores, tanto
na sua dimensão inicial quanto na continuada, os resul-
tados de pesquisas contemporâneas e de outras não tão
recentes assim, posto que foram desenvolvidas ao longo
das últimas décadas do século passado, apontam na dire-
ção da existência de um verdadeiro divórcio entre essas
três áreas, quando entre elas deveriam existir interseções
significativas.
Estudos realizados nessas áreas por pesquisadores
como Ana Célia da Silva (1995, 2001), Ana Lúcia Valente
(1995,) Delcele Mascarenhas Queiroz (2003), Iolanda de
Oliveira (1999, 2000), Luiz Alberto O. Gonçalves (1985,
1998), Luiz Cláudio Barcelos (1993), Nilma Lino Gomes
(1997, 2000), Petronilha B. G. e Silva (1993, 2003), Regina
Pahim Pinto (1993a, 1993b) e Siss (1994, 2003), dentre
outros, permitem inferir-se, por meio de seus resultados,
que a instituição escola é étnico-racial e culturalmente se-
letiva. Em outras palavras, a escola é discriminatória e ex-
cludente. Nela, o processo de aprendizagem vem sendo
feito contra os interesses de uma parcela significativa do
alunado – os afro-brasileiros – e as memórias desse grupo
étnico-racial, bem como as dos indígenas, são invisibili-
sadas, quando não apagadas, e o sabor do saber se faz
amargo. Essa memória, que deveria se tornar mecanismo
de potencialização do processo de ensino-aprendizagem,
transforma-se em mordaça que atrofia a aprendizagem do
aluno e torna perversa a prática do professor.
16
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

Os resultados de diferentes pesquisas desenvolvidas


contemporaneamente sobre esses temas apontam, também,
para a importância e necessidade de se formar professores
para uma prática pedagógica eficiente do ponto de vista
das diversidades, no âmbito de sociedades culturalmen-
te estratificadas. Em vários países assim diversificados, as
interseções entre políticas educacionais, relações étnico-
raciais e formação de professores, tanto no seu aspecto
inicial quanto no continuado, ocupam lugar de destaque.
No Brasil, porém, país de dimensões continentais, com
sua população caminhando para a casa dos 200 milhões
de habitantes, dos quais cerca de 50% são afro-brasileiros,
essas interseções não se constituíam, até bem pouco tem-
po, em motivo de preocupação significativa por parte dos
formuladores das políticas educacionais, os quais vinham
relegando sistematicamente essas interseções quase que
à invisibilidade. Como conseqüência, os programas das
faculdades de formação de professores, na sua maior par-
te, sistematicamente desconsideravam a importância da di-
mensão dessas interseções, o que justificava sua ausência
no processo formativo dos professores brasileiros.
As desigualdades social e étnico-racial operam como
poderoso mecanismo de estratificação social em qualquer
sociedade em que elas se manifestem. É certo, também,
que a sociedade brasileira possui altos níveis de desigual-
dades, tanto sociais como étnico-raciais, de gênero e ge-
racional.
Pesquisas importantes desenvolvidos por estudio-
sos das relações étnico-raciais brasileiras como Azevedo
(1953), Fernandes (1965), Harris (1964), Pierson (1945),
Telles (2003) e Wagley (1952), indicam que a maior par-
te da população brasileira, tanto branca como negra, é
economicamente empobrecida. Não obstante, segundo
esses mesmos estudiosos, as pessoas negras em proces-
so de mobilidade vertical ascendente parecem sofrer me-
nos preconceito do que os demais membros desse grupo
étnico-racial. Daí inferirem que o preconceito existente
17
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

contra os negros está baseado muito mais em distinção de


classe que em marcadores raciais; afirmam, também, que
a discriminação ocorre porque a maior parte dos negros
brasileiros são pobres e portadores de baixo capital edu-
cacional e não por não pertencerem à parcela branca da
população brasileira. Acreditavam que, com o aumento do
capital educacional dos negros e com o desenvolvimento
da sociedade de classes no Brasil, o preconceito e as desi-
gualdades étnico-raciais tenderiam a desaparecer.
Fundamentados nesses argumentos, alguns estudio-
sos das relações estabelecidas entre etnia/raça e educação
brasileira, acreditando ser a discriminação de classe mais
importante que a discriminação étnico-racial, opõem-se
de forma veemente, a qualquer tipo de modificação no
processo de formação de professores que confira ênfase à
dimensão étnico-racial da população brasileira.
Em sentido diametralmente oposto a essa primeira
perspectiva, outros tantos pesquisadores dessas mesmas
relações postulam ser o preconceito e a discriminação
étnico-racial mais importante que a condição de classe.
Afirmam, também, que ambos concorrem para produzir
e reproduzir as condições de subalternização dos afro-
brasileiros frente ao grupo étnico-racial branco, político
e socialmente dominante. Por isso, os processos de for-
mação de professores não podem prescindir de formar
profissionais aptos a desenvolver sua prática docente no
âmbito de sociedades multiculturais.
Nesse sentido, estudos elaborados mais recentemen-
te por Guimarães (2001, 2002, 2003), Hasenbalg (1979,
1990), Hasenbalg e Silva (1990), Munanga (1996) e Henri-
ques (2001) afirmam a existência de barreiras étnica e ra-
cialmente seletivas que obstaculizam os processos de im-
plementação da cidadania dos afro-brasileiros, bem como
de mobilidade vertical ascendente para os membros desse
grupo. Eles permitem, ainda, perceber-se que, mais do
que um legado do passado, a discriminação racial cons-
titui-se na principal característica da sociedade brasileira
18
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

do período pós-abolição, produzindo e reproduzindo de-


siguais oportunidades de realizações sociais para brancos
e afro-brasileiros, com a variável raça ou cor – como atri-
buto social elaborado – sendo percebida como “um prin-
cípio racial classificatório”, sobre o qual as desigualdades
cultural, social e econômica existentes entre os diferentes
grupos étnico-raciais são produzidas e reproduzidas de
modo ininterrupto. Esse princípio classificatório permite
que se perceba como

Esse perfil de desigualdades raciais não é um simples


legado do passado: ele é perpetuado pela estrutura
desigual de oportunidades sociais a que brancos e
não-brancos estão expostos. Negros e mulatos sofrem
uma desvantagem competitiva em todas as etapas do
processo de mobilidade social individual. Suas pos-
sibilidades de escapar às limitações de uma posição
social baixa são menores que a dos brancos da mesma
origem social, assim como são maiores as dificulda-
des para manter as posições já conquistadas (HASEN-
BALG, 1988, p. 177).

Novamente nos referimos às pesquisas realizadas


na interseção estabelecida entre as relações étnico-ra-
ciais, educação e formação de professores por Ana Célia
da Silva (1995; 2001) Ana Lúcia Valente (1995,) Delcele
Mascarenhas Queiroz (2003), Iolanda de Oliveira (1999,
2000), Luiz Alberto O. Gonçalves (1985, 1998), Luiz Cláu-
dio Barcelos (1993), Nilma Lino Gomes (1997, 2000), Pe-
tronilha B. G. e Silva (1993; 2003,), Regina Pahim Pinto
(1993a, 1993b) e Siss (1994, 2003), pois elas enfatizam
o papel que o professor, devidamente instrumentaliza-
do, estará apto a desempenhar no âmbito de sociedades
multiculturais, como é o caso de nossa sociedade. Esse
professor estará capacitado, por exemplo, a perceber e
combater as ideologias racistas e os estereótipos veicu-
lados pelos diversos materiais didáticos colocados à sua
disposição.
19
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Ele poderá desmistificar os valores particulares que


os currículos escolares tentam tornar gerais ou hege-
mônicos. Ele poderá combater a forma estereotipada e
preconceituosa com que a história dos afro-brasileiros é
enfocada nos livros didáticos nos quais, na maior parte
das vezes, os afro-brasileiros são enfocados apenas, e
quase sempre, como e enquanto escravizados. Os afro-
brasileiros no Brasil de hoje são ignorados, permane-
cendo invisíveis nesses livros. A estrutura dos currículos
dos cursos de formação de professores, (se) privilegia as
diversidades de classes e de gênero, silencia a respeito
da história da África e das diversidades étnico-racial e
cultural brasileiras.
No Brasil, no período compreendido entre o pós-
abolição e o fim dos anos oitenta do século XX, a pro-
dução acadêmica envolvendo as áreas das relações étni-
co-raciais, educação, formação de professores e de um
multiculturalismo que já se insinuava, constituiu-se como
qualitativamente significativa, embora seja, em termos
quantitativos, pouco expressiva. Pesquisas foram reali-
zadas nessas áreas nesse período, mercê do esforço de
alguns poucos pesquisadores. Entretanto elas foram, na
maior parte das vezes, relegadas ao ostracismo ou redu-
zidas à invisibilidade quando comparadas a outras áreas
de produção do conhecimento nessa mesma época, como
demonstrado por Hasenbalg e Silva (1992), Pinto (1993) e
Silva (1996), dentre outros.
A partir da primeira metade dos anos 1990, o pa-
norama dessa produção começará a se transformar, tanto
quantitativa como qualitativamente. Essa transformação
será propiciada, por um lado, pelo aparecimento de novas
pesquisas situadas na confluência das áreas entre educa-
ção brasileira e formação de professores inicial e continu-
ada, pesquisas essas que, em grande parte, se constituem
como o resultado de discussões e análises elaboradas na
segunda metade da década passada, tanto na academia
quanto nos movimentos sociais, como o movimento ne-
20
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

gro nacional, o novo movimento sindical, o movimento


feminista e o movimento de mulheres negras, para citar
apenas alguns. A importância dessas pesquisas pode ser
comprovada pelo interesse que despertam na academia e
também em diferentes fóruns privilegiados de discussão,
como nos encontros da ANPEd (Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação), e da Anpocs
(Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Ciências Sociais).
Entre nós, a relação atualmente estabelecida entre
racismo e educação dos afro-brasileiros é bastante dife-
rente da existente no século passado. A publicação e o
reconhecimento oficial e tardio da existência de discrimi-
nação racial e da violação dos direitos constitucionalmen-
te declarados dos afro-brasileiros e de que a educação
brasileira em todos os seus níveis é racialmente excluden-
te conferiram dinâmicas novas aos processos de discrimi-
nação racial.
Dificilmente alguém, hoje, desconheceria o fato de
que somos um povo multicultural e que convivemos com
o fenômeno do racismo, característica estrutural da nos-
sa sociedade. Não obstante, a formação de professores
continua a acontecer como se fôssemos uma sociedade
monocultural. Ainda que as desigualdades de classe sejam
abordadas, a perspectiva multicultural das relações sociais
e seu correspondente na educação permanecem, quase
sempre, fora dos currículos que orientam tal formação.
Creio não ser difícil constatar-se que a sobrevida do
mito da democracia racial se faz presente hoje e atua com
relativa intensidade na maior parte dos currículos dos cur-
sos de formação de professores. Ainda que não se possa
negar o caráter multicultural da sociedade brasileira, os
currículos dos cursos de formação de futuros docentes,
com honrosas exceções vêm, sistematicamente, ignorando
as contribuições que as pesquisas elaboradas em perspec-
tiva multicultural oferecem ao processo de formação de
professores.
21
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

A Lei n. 10.639, de 09/01/2003 determina no seu


Artigo 26-A, que “nos estabelecimentos de ensino funda-
mental e médio, oficiais e particulares, torna-se obriga-
tório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira” e
que o “conteúdo programático [...] incluirá o estudo da
História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo
negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil”.
Essas determinações, somadas à publicação e in-
tensidade das discussões sobre a implementação de uma
política de cotas como mecanismo de acesso à educação
superior, voltada para os afro-descendentes, vêm redi-
mensionando a política educacional brasileira, as relações
étnico-raciais e as formações inicial e continuada de pro-
fessores. Nesse contexto, a formação continuada de pro-
fessores ganha relevância, por permitir a atualização dos
conhecimentos e da prática pedagógica desses profissio-
nais de ensino.
A Lei n. 11.645/08, que altera a Lei n. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, modificada pela Lei n. 10.639, por sua
vez, confere ênfase à educação indígena, assegurando que

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamen-


tal e de ensino médio, públicos e privados, torna-se
obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasilei-
ra e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este ar-
tigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura
que caracterizam a formação da população brasileira,
a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo
da história da África e dos africanos, a luta dos negros
e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e in-
dígena brasileira e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições
nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil.

22
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-


brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão mi-
nistrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de educação artística e de literatura
e história brasileiras.

É nessa perspectiva que se inserem tanto o Labora-


tório de Estudos Afro-Brasileiros – Leafro (Neabi/UFRRJ)
quanto sua produção de conhecimento viabilizada pe-
las pesquisas desenvolvidas por seus pesquisadores e os
seus cursos de pós-graduação lato sensu Diversidade Ét-
nica e Educação Brasileira e de extensão Afro-Brasileiros,
Desigualdades Étnico-Raciais e Educação no Brasil. Sua
principal proposta está voltada para oferecer subsídios e
orientação às ações educativas de intervenção pedagógica
direcionadas para a implementação da Lei n. 10.639/03 de
“9 de janeiro de 2003, que Altera a Lei n. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e
Cultura Afro-Brasileira”.
Dessa forma, atendemos a uma demanda reprimida
dos professores da rede municipal de ensino do Municí-
pio de Nova Iguaçu e de outros profissionais da educação
localizados em seu entorno, no que diz respeito ao esta-
belecido pela referida lei, bem como ao que determinam
as Diretrizes Curriculares Para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e ao Parecer 003/20041.

1
Trata-se de Parecer do Conselho Nacional de Educação aprovado no
mês de março de 2004, que “visa a atender os propósitos expressos na
indicação CNE/CP 6/2002, bem como regulamentar a alteração trazida
à Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei
10.639/2000, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica”.

23
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

O Leafro – Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros


(Neabi da UFRRJ): intervindo e transformando

O Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros (Leafro),


Neab da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ) e proponente do curso de pós-graduação lato
sensu em Diversidade Étnica e Educação Brasileira, ini-
ciou suas atividades no primeiro semestre de 2006. Suas
fundação, institucionalização e consolidação no âmbito do
Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação Con-
textos Contemporâneos e Demandas Populares da UFRRJ
têm proporcionado a continuidade do desenvolvimento
de pesquisas voltadas para a produção e divulgação de
conhecimentos acadêmicos e de intervenção, no processo
de formação de professores da Baixada Fluminense em
uma perspectiva multicultural, tanto no seu aspecto ini-
cial quanto continuado, nas modalidades presencial e a
distância.
Integrante da rede nacional de Neabis (Núcleos de
Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas) existentes e atuantes
na maior parte das universidades públicas brasileiras, o
Leafro tem, como objetivos, produzir, incentivar e acom-
panhar as políticas de ação afirmativa nas instituições no
âmbito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Ele possibilita, ainda, o ensino da cultura afro-bra-
sileira, africana e indígena, além de atuar nos âmbitos
do ensino, da pesquisa e da extensão, produzindo e di-
vulgando conhecimentos localizados na confluência das
áreas das desigualdades e diversidades étnico-raciais e da
educação.
A criação do Leafro se justificou pela necessidade
de se produzir, incentivar e apoiar a produção e a difu-
são de conhecimentos novos nas áreas dos estudos afro-
brasileiros e da educação em consonância com o que é
preconizado pela Lei n. 10.639/03, intervindo no processo
de formação de professores nos seus aspectos inicial e
continuada, bem como nas modalidades presencial e a
24
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

distância. A relevância desse laboratório deve-se ao fato


de a formação de professores em perspectiva multicultural
se constituir como um dos principais desafios contempo-
râneos colocados para os diferentes cursos de licenciatu-
ras e de especialização, seja na modalidade presencial,
seja na modalidade a distância, cuja solução é fortemente
demandada pela educação brasileira, bem como por pro-
fessores dos municípios que formam a chamada Baixada
Fluminense, de acordo com levantamento preliminarmen-
te realizado.
O Leafro acompanha as políticas de ação afirmativa
etnicamente definidas, já implementadas, ou em fase de
implementação e desenvolvimento no âmbito da Univer-
sidade Federal Rural do Rio de Janeiro, além de participar
ativamente das discussões internas sobre as necessidade
e possibilidade de se implementar na UFRRJ uma políti-
ca de cotas étnico/raciais voltada para os afro-brasileiros,
como forma de democratização do acesso desse segmento
étnico-racial aos cursos dessa universidade. O Leafro tam-
bém favorece o ensino da cultura afro-brasileira e africana,
atuando nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da exten-
são, produzindo e divulgando conhecimentos localizados
na confluência das áreas das desigualdades e diversidades
raciais-étnicas e da educação.
Ao longo de sua existência, esse laboratório vem se
consolidando como um centro de excelência de elabora-
ção de estudos e de pesquisas sobre as relações étnico-
raciais e de implementação de políticas públicas em edu-
cação, bem como na formação de professores na Baixada
Fluminense, implementando parcerias com diferentes ór-
gãos dos governos federal, estadual e municipal, além de
ampliar um ambiente propício às pesquisas voltadas para
os estudos das desigualdades étnico-raciais na UFRRJ que
permitam intervir na formação continuada de professores
de toda a Baixada Fluminense ajudando-os a superar as
dificuldades encontradas em suas práticas pedagógicas e
a promover um “saber com sabor”, ou seja, um saber que
25
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

não seja etnicamente excludente, mas que potencialize os


processos de aprendizagem dos diversos sujeitos sociais.
O Leafro procura também oferecer respostas efeti-
vas às demandas educacionais dos professores da Baixada
Fluminense possibilitando-lhes tornarem-se sujeitos ativos
nos processos de produção de seu conhecimento, bem
como agentes multiplicadores de uma educação emanci-
patória. Esse laboratório preocupa-se em construir, com os
professores da Baixada Fluminense, estratégias de comba-
te às desigualdades étnico-raciais no cotidiano escolar e
na sociedade abrangente.
A produção e divulgação de estudos de impacto e
de intervenção no campo educacional do poder públi-
co na esfera dos estudos étnico-raciais também constitui
objetivo desse laboratório. Ele contribui, portanto, para
instituir e legitimar a Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro como ator e canal privilegiado de interlocução
com o poder público por meio da discussão dos resulta-
dos alcançados, e, pela socialização de suas realizações,
seja por meio da mídia eletrônica, ou por meio impresso.


O curso de pós-graduação lato sensu:
diversidade étnica e educação brasileira

A pós-graduação, tanto lato, como stricto sensu pos-


sui um papel decisivo e fundamental na consolidação da
área da educação nos diferentes campi da UFRRJ imple-
mentando-a como centro de produção de conhecimento
orientado por padrões de excelência acadêmica nas áre-
as de concentração de seus professores-pesquisadores e
pela perspectiva de construção da interdisciplinaridade.
Assim, considera-se fundamental estimular o intercâmbio
de experiências, em parceria com entidades e instituições
do país e do exterior, expandir a cooperação interinstitu-
cional, bem como criar oportunidades para a incorpora-
ção de novos pesquisadores. As atividades desenvolvidas
26
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

são pautadas pela inovação, tanto no que diz respeito às


abordagens de pesquisa quanto às formas de relação entre
conhecimento e sociedade. Um exemplo significativo diz
respeito à realização de diagnósticos participativos socio-
culturais e econômicos que contribuam para práticas edu-
cativas, levando-se em conta as estratégias cotidianamente
construídas pelos diferentes atores sociais da Baixada Flu-
minense e para além dela.
A proposta de criação do curso de pós-graduação
lato sensu: Diversidade Étnica e Educação Brasileira foi
apresentada por meio de duas unidades acadêmicas da
UFRRJ: o Instituto de Educação (IE) e o Instituto Multidis-
ciplinar (IM). Integrado por pesquisadores de ambos os
institutos, o Leafro entende a docência como inserida em
um projeto formativo mais amplo e não na visão reducio-
nista de um conjunto de métodos e técnicas supostamente
neutros, descolados de uma dada realidade histórica, con-
forme explicitado pelo Fórum de Diretores das Faculda-
des de Educação das Universidades Federais (Forumdir) e
pela Associação Nacional pela Formação dos Profissionais
da Educação (Anfope). Em síntese, uma formação que
contribua para a instituição de sujeitos capazes de exercer
a docência na atual complexidade do mundo em que o
educador reconhece nas práticas cotidianas elementos es-
senciais para a construção do conhecimento. O IE e o IM,
por meio do Leafro, contribuem para o desenvolvimento
dos potenciais da pesquisa e da pós-graduação da UFRRJ
como um todo, tanto pela criação de programas e cursos
próprios quanto pela colaboração com áreas afins dos de-
mais institutos.

Justificativa do curso

A relevância da criação e implementação do curso


de pós-graduação lato sensu Diversidade Étnica e Edu-
cação Brasileira está presa ao fato de ser este um dos
27
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

principais desafios contemporâneos colocados para os di-


ferentes profissionais da educação brasileira e cuja solu-
ção é fortemente demandada pela educação. Os recursos
didáticos e demais materiais empregados são o quadro de
giz, livros, papel, lápis, computadores, datashow, retro-
projetores e telas de projeção.
O oferecimento desse curso, na modalidade pre-
sencial, encontra suas justificativa e relevância por estar
voltado para o atendimento de uma demanda específica
na esfera da educação, propiciando o acesso à formação
continuada de professores pública, gratuita e de quali-
dade. Nossa proposta se prende ao fato de concordar-
mos com o princípio de que a formação de professores,
tanto inicial quanto continuada, constitui-se como dever
do Estado e tarefa da universidade pública, gratuita e de
qualidade.
A formação de professores inicial e continuada, vol-
tada para uma prática pedagógica no âmbito de socieda-
des diversificadas por classe social, etnia, cultura, gênero
e idade, constitui-se em importante desafio contemporâ-
neo que precisa de respostas positivas urgentes. Linhares
(1997) postula que isso equivale a redefinir o papel que
escola e professores vêm desempenhando, pois

Se entendemos a escola como uma instituição so-


cial densa de relações educativas onde o ensinar e
o aprender podem-se abrir em caminhos para dis-
tinguir opressões, comunicar-se com outras culturas,
ressignificar conhecimentos por situá-los dentro de
uma lógica marcada por perspectivas do que cons-
titui problemas para nós, [...] vamos ter que apostar
que a fabricação de novos lugares para a escola não
poderá dispensar professores e alunos [...]. São estes
que [...] irão traduzir os saberes populares em cultura
escolar, acolhendo os desejos dos trabalhadores, das
mulheres, dos negros, de saberes que os fortaleçam
(LINHARES, 1997, p. 146).

28
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

Acreditamos que o curso Diversidade Étnica e Edu-


cação Brasileira possa contribuir no processo de supera-
ção desse desafio, propiciando aos professores e aos de-
mais cursistas uma transformação qualitativa e positiva de
sua práxis pedagógica, no que diz respeito à educação das
relações étnico-raciais na escola e na sociedade abrangen-
te, qualificando a prática docente desses profissionais da
educação e ampliando sua formação inicial.

Objetivos específicos do curso

O curso possui, como específicos, os seguintes


objetivos:
• Possibilitar a compreensão da diversidade étnico-
racial da sociedade brasileira.
• Possibilitar, aos professores e demais profissionais
do ensino, identificarem ações etnicamente este-
reotipadas ou racistas no ambiente escolar e na
sociedade abrangente.
• Influenciar no processo de desconstrução de ima-
ginários que justifiquem ações etnicamente este-
reotipadas, ou racistas.
• Conduzir ao conhecimento e à valorização das
culturas dos povos africanos, dos afro-brasileiros
e de indígenas
• Permitir aos professores e aos demais profissionais
da educação, construírem estratégias efetivas de
resistência e de combate às desigualdades étnico-
raciais no cotidiano escolar.
• Compreender o princípio da igualdade básica en-
tre os seres humanos como direito.
• Potencializar a consciência política e histórica da
diversidade.
• Potencializar a intervenção critica dos cursistas
frente a situações de racismo e de preconceito no
cotidiano escolar e na sociedade mais ampla.
29
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

A avaliação dos alunos é presencial, processual e


diagnóstica, o que prevê aplicação de provas presenciais
e individuais ao final de cada módulo, como um dos ins-
trumentos de avaliação. A juízo de cada professor que
ministrará o módulo, a prova pode ser substituída pela
elaboração de papers individuais. Já a avaliação do curso
ocorre em dois momentos: por uma análise ex-ante, com a
participação de toda a equipe pedagógica e por uma aná-
lise ex-post em forma de pesquisa qualitativa e quantitativa
abrangendo os corpos docente e discente, onde são ava-
liados o processo, as metas e os resultados alcançados.
O curso se desenvolve em duas partes: a parte de
créditos e a parte de elaboração do trabalho monográfico.
A parte de créditos corresponde às disciplinas que inte-
gram o curso e que são as seguintes: História e Cultura
Afro-Brasileira; História, Cultura e Educação dos Povos In-
dígenas; Diáspora Africana e a Construção do Brasil-Nação;
Diversidade Étnico-racial e Educação Brasileira; Desigual-
dade Étnico-racial e Mercado de Trabalho; Subjetividades
e Religiões Afro-Brasileiras; Turismo Étnico no Brasil e na
Baixada Fluminense; Gênero, Etnia e Docência; Etnicida-
de, Práticas Culturais e Narrativas; Pesquisa, Educação e
Relações Étnico-raciais Brasileiras.
As primeiras quatro disciplinas que integram a grade
curricular desse curso compõem o que entendemos como
sendo de fundamentação básica. As outras, que lhe seguem,
são caracterizadas como de saberes contextuais. Isso signifi-
ca dizer que, ainda que ocorram modificações nas discipli-
nas que integram esse curso por conta do perfil necessaria-
mente diferenciado que cada nova turma que lhe freta, as
disciplinas de fundamentação básica serão mantidas, princi-
palmente, em respeito às leis 10.639/03 e 11.645/08.
O aluno desenvolve um projeto de pesquisa sob
orientação de um membro do corpo docente do curso
e elabora um trabalho monográfico necessariamente liga-
do à temática do curso, cujas defesa e aprovação perante
banca constituem-se como requisito parcial à obtenção do
30
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

título de especialista em Desigualdade Étnica e Educação


Brasileira.
Por ser este um curso que, se espera, seja de in-
tervenção, seus resultados e impactos serão mensurados
através da prática pedagógica dos seus egressos. Espera-se
que tais egressos transformem-se em agentes multiplica-
dores do curso que, com sua prática, possam instituir a
educação na Baixada Fluminense sobre bases igualitárias,
democráticas e inclusivas.

O curso de extensão afro-brasileiros,


desigualdades étnico-raciais e educação no Brasil

O que justificou a implementação desse curso foram


as necessidade e possibilidade de se intervir na formação
continuada dos professores e dos demais profissionais da
educação da Baixada Fluminense em um curto espaço de
tempo, em uma perspectiva mais pragmática, crítica, trans-
formadora e capaz de produzir conhecimentos novos no
que diz respeito à relação estabelecida entre educação,
prática pedagógica inclusiva e as relações étnico-raciais
brasileiras.
O curso, com carga horária de 45 horas, é oferecido
na modalidade presencial e apresenta-se estruturado em
módulos. Cada módulo é integrado por duas atividades
pedagógicas: uma, de formação teórica e outra, de ativida-
de de intervenção, na modalidade de oficinas, onde a te-
oria apreendida é aplicada na prática, simulando possíveis
situações problematizadoras ocorridas “no chão da esco-
la”, onde a intervenção do professor se faz necessária.
Temos, como metodologia dessa atividade de ex-
tensão, aulas expositivas, dialogais e oficinas de práticas
pedagógicas. O curso também conta com duas conferên-
cias: uma, proferida na forma de aula magna e outra, de
encerramento. A avaliação é diagnóstica e processual. O
curso é gratuito e está voltado, preferencialmente, para os
31
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

professores da rede pública municipal dos municípios que


compõem a Baixada Fluminense e demais profissionais
da educação, bem como para estudantes de licenciatura e
de cursos afins. São oferecidas 45 vagas. Os módulos de
ensino e pesquisa, por ordem de estruturação do curso,
são: História da Cultura Africana; Diversidade Racial, a Lei
n. 10.639/03 e a Educação Brasileira; Gênero, Raça e Do-
cência; Educação, Desigualdade Racial e Mercado de Tra-
balho; Multiculturalismo e Ação Afirmativa; Subjetividades
e Religiões Afro-Brasileiras.
Os resultados das avaliações do curso, do maior ou
menor alcance das metas propostas, dos principais obs-
táculos interpostos e da nossa metodologia de trabalho
indicam que o curso caminha dentro do previsto, quan-
do de sua implementação, oferecendo uma formação que
vem contribuindo para a instituição de sujeitos capazes
de exercer a docência na atual complexidade do mundo
em que o educador reconhece nas práticas cotidianas ele-
mentos essenciais para a construção do conhecimento. Há
uma demanda crescente por esse curso, o que nos permite
(que se perceba) avaliar o acerto da sua implementação,
que já está em sua terceira versão.

O Leafro e a produção de conhecimento

Os pesquisadores que integram o Leafro desenvol-


vem estudos acadêmicos inseridos na perspectiva do mul-
ticulturalismo crítico (MCLAREN, 1977; GRANT e TATE,
1995), voltados para oferecer subsídios à qualificação de
docentes do ensino fundamental, médio e superior. Dessa
forma, o Leafro intervém no processo de formação de pro-
fessores que atuam preferencial, mas não exclusivamente,
na Baixada Fluminense, tanto no seu aspecto inicial quan-
to continuado, na modalidade presencial, favorecendo o
diálogo, o respeito às diferenças étnico-raciais, de classe e
de gênero. Alguns desses estudos são:
32
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

Educação, cidadania, políticas de ação


afirmativa e cotas para afro-brasileiros
no acesso ao ensino superior

O objetivo desse estudo consiste em identificar, ana-


lisar e caracterizar as necessidade e viabilidade de que
seja implementado pelo Estado um programa de políticas
de ação afirmativa e cotas (no ensino) na educação supe-
rior, racial ou etnicamente definido na direção dos afro-
brasileiros. Os avanços e limites dessas políticas são aqui
analisados e caracterizados, bem como a pertinência de
tais políticas para a sociedade brasileira. Essa pesquisa se
justifica por produzir conhecimentos novos na interseção
estabelecida pela educação superior, cidadania e as políti-
cas de ação afirmativa e de cotas.
Sua relevância se prende ao fato de ser esse um
tema candente, que tem mobilizado a comunidade acadê-
mica e a sociedade, não só tendo-se em vista a forma pela
qual essas políticas vêm sendo implementadas, mas, tam-
bém, pelo próprio conteúdo de tais políticas. A pesquisa
será qualitativa. Ela privilegia a análise do plano político
educacional, sem se descuidar das relações e interseções
que esse plano estabelece com o social. Ela é integrada
por alunos de licenciatura em Pedagogia e Química, es-
tando vinculada ao Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica do CNPq, Pibic.

O acesso de alunos da Baixada Fluminense


à universidade pública: o caso da UFRRJ

Dois são os objetivos básicos dessa pesquisa, desen-


volvida no âmbito do Leafro. O primeiro deles é identificar,
analisar, caracterizar e elaborar e construir o perfil dos alu-
nos com matrícula ativa que freqüentam os cursos ofereci-
dos pela UFRRJ nos seus campi Sede e de Nova Iguaçu.. Os
dados dessa pesquisa são desagregados por classe social,
33
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

etnia/raça, gênero, local de residência e religião. O segundo


objetivo é conhecer e mapear as formas pelas quais esses
alunos chegaram à UFRRJ, seus mecanismos de resistência,
bem como as possíveis estratégias de superação de obstá-
culos por eles construídas, ou empregadas, que lhes per-
mitem êxito em suas trajetórias acadêmicas. Espera-se que
os resultados dessa pesquisa, ao serem publicados, possam
contribuir para os processos de construção de estratégias de
democratização de acesso e de permanência dos alunos das
classes populares da Baixada Fluminense à UFRRJ, em to-
dos os seus campi. A essa pesquisa estão agregados alunos
de diferentes cursos de ambos os campi..

Desafios contextuais e construção subjetiva:


alternativas do jovem da Baixada Fluminense

Esse estudo pretende apontar outro caminho a ser


seguido na compreensão do que pensam os jovens da
Baixada Fluminense, trazendo para a discussão acadêmi-
ca tanto o olhar do jovem a partir dele mesmo, e não de
alguma hipótese do pesquisador que vai a campo testá-la,
como a universalização de padrões de comportamento que
concepções teóricas em Psicologia do Desenvolvimento
pretendem estabelecer, as quais acabam por classificar, es-
tigmatizar e marginalizar, não respeitando singularidades
individuais e contextos socioculturais. Está vinculada ao
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do
CNPq, Pibic e Faperj.

Baobá: gênero e africanidades na sala de aula

Essa pesquisa possui, como principal objetivo, ofe-


recer oficinas com diferentes linguagens aos educandos do
primeiro segmento de uma das escolas da rede pública da
cidade de Nova Iguaçu, que abordem as temáticas de raça e
34
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

gênero de forma a garantir o reconhecimento da diferença


e a igualdade na diversidade. Tal iniciativa visa a aplicar a
Lei n. 10.639, bem como atender às Diretrizes Curricula-
res Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
(Parecer 003/2004) e abordar a questão da hierarquia de
gênero no cotidiano escolar. A pesquisa está vinculada ao
Programa Institucional de Bolsas de Extensão da UFRRJ.

Considerações finais

A Baixada Fluminense, com população aproximada


de 3,5 milhões de habitantes, é formada pelos municípios
de Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí,
Japeri, Magé, Mangaratiba, Mesquita, Nilópolis, Nova Igua-
çu, Paracambi, Queimados, São João de Meriti e Seropé-
dica, e abriga cerca de 30% da população do estado do
Rio de Janeiro, população essa que é, majoritariamente,
descendente de imigrantes, afro-brasileira e pertencente à
classe trabalhadora.
É nesse espaço social e geográfico que o Leafro de-
senvolve atividades de ensino, de pesquisa e de extensão
aprofundando análises das articulações estabelecidas en-
tre as dimensões étnico-raciais, de classe, de cultura, de
gênero, bem como do mundo do trabalho na sua interse-
ção com o processo educativo formal, além de oferecer
subsídios e orientações às ações educativas de intervenção
pedagógica direcionadas para a implementação da Lei n.
10.639/03. Ao atuarmos, também, no processo de forma-
ção de professores nos seus aspectos inicial e continuada,
acreditamos intervir positivamente nesse processo de for-
ma a possibilitar a construção de novas subjetividades, de
mudança de atitudes frente às relações de dominação e de
exclusão, tanto no interior da instituição escolar quanto na
sociedade ampliada.
Entendemos que essa intervenção se faz relevan-
te por percebermos esta dinâmica em perspectiva multi-
35
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

cultural, o que se constitui como dos principais desafios


contemporâneos colocados para os diferentes cursos de
licenciaturas em todo o país, a que buscamos responder.
O olhar multicultural lançado sobre a sociedade brasileira
e as contribuições que o multiculturalismo vêm oferecen-
do ao campo educacional são significativos e possibilitam
que reformulações sejam operadas no que diz respeito aos
processos de formação de professores, no sentido da valo-
rização da história e da cultura afro-brasileira e indígena,
além de promover o questionamento e a descolonização
do imaginário dos educadores, ajudando-os a abandonar
novos e velhos preconceitos e práticas pedagógicas.
Nesse sentido, o multiculturalismo crítico pode propi-
ciar, aos professores, tornarem-se sujeitos ativos da constru-
ção de conhecimentos, sem que esse processo implique um
doloroso exercício de negação, tanto de si quanto de seus
alunos e de seus lugares sociais de origem. O ato de tornar-
se sujeito implica uma luta constante contra as tentativas de
sujeição. Nesse processo e através de seus pesquisadores,
o Leafro vem desempenhando um importante e significa-
tivo papel junto aos professores da Baixada Fluminense,
ao mesmo tempo em que vem sendo reconhecido pelas
secretarias municipais dessa região geográfica como um im-
portante ator social, principalmente através das demandas
educacionais que vem atendendo e das diversas parcerias
que vem estabelecendo. No âmbito da UFRRJ, sua ação se
faz sentir por sua atuação nos âmbitos do ensino, da pes-
quisa e extensão, além de inserir-se ativamente nas discus-
sões sobre a implementação de políticas de cotas e de ação
afirmativa étnica e racialmente enviesada.

36
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...

Referências bibliográficas

ALVES, N.; GARCIA, R. L. A construção do conhecimento


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39
Políticas curriculares nacionais:
o caso da Lei n. 10.639 na
abordagem do ciclo de políticas

Cláudia Regina de Paula

Um currículo constitui significativo instrumento utilizado


por diferentes sociedades tanto para desenvolver os pro-
cessos de conservação, transformação e renovação dos
conhecimentos historicamente acumulados como para
socializar as crianças e jovens segundo valores tidos como
desejáveis (MOREIRA, 1997, p. 11).

Resumo

A promulgação da Lei n. 10.639, de 09/01/2003,


parte das políticas curriculares de âmbito nacional, pois
altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), resulta de processo de longa duração, permea-
do de lutas e negociações dos movimentos sociais (com
destaque para o movimento negro) com setores mais pro-
gressistas do cenário político nacional. O presente artigo
pretende discutir as contribuições da abordagem do ciclo
de políticas, formulada por Stephen Ball e colaboradores
(Ball e Bowe, 1992; Ball, 1994, apud Mainardes, 2006),
especificamente sobre a política que inclui no currículo da
escola básica, a história e a cultura afro-brasileira, através

41
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

da Lei n. 10.639, bem como as Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
(Parecer 003/2004).

Palavras-chave: ciclo de políticas, políticas curriculares,


Lei n. 10.639.

Introdução

O presente artigo pretende discutir as contribuições


da abordagem do ciclo de políticas, formulada por Ste-
phen Ball e colaboradores (Bowe e Ball, 1992; Ball, 1994,
apud Mainardes, 2006), especificamente sobre a política
que inclui no currículo da escola básica a história e a cul-
tura afro-brasileira, através da Lei n. 10.639, bem como as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Re-
lações Étnico-Raciais (Parecer 003/2004). Esse referencial
analítico me parece bastante adequado para analisar as
políticas públicas, sociais e educacionais brasileiras, uma
vez que a abordagem do ciclo de políticas rejeita a con-
cepção fragmentada entre as fases da formulação e im-
plementação das políticas, e, nesse sentido, entende que
os processos são continuamente influenciados, disputados
e negociados. Tal concepção difere do modelo verticali-
zado atribuído às políticas oficiais, que veiculam a idéia
de imposição estatal que ignora a participação, atuação e
influência daqueles que serão atingidos diretamente pela
política.
No desenvolvimento das políticas educacionais, as
percebemos como arenas de significados contextuais e
culturais, em que teorias, narrativas, visões e interpreta-
ções de mundo se constituem, são elaboradas e endereça-
das. Apesar da polissemia do termo “cultura”, que abarca
diferentes interpretações, percebe-se que ela tem adquirido
crescente centralidade, assumindo cada vez mais relevância,
42
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...

tanto na estrutura da sociedade como na constituição de


novos atores sociais (HALL, 2003). Ao interpretar a cultura
e suas representações na construção do Estado-nação, o
autor descreve:

As culturas nacionais são compostas não apenas de


instituições culturais, mas também de símbolos e re-
presentações [...] As culturas nacionais, ao produzir
sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais po-
demos nos identificar, constroem “identidades”. Esses
sentidos estão contidos nas estórias que são contadas
sobre a nação, memórias que conectam seu presente
com o seu passado e imagens que dela são construí-
das (HALL, 2002, p. 50 e 51).

A partir das simbologias e representações culturais


de que nos fala Hall (2002), tomei como exemplo nacio-
nal o caldeamento étnico e a miscigenação1, princípios de
sociabilidade vastamente incentivados pelo Estado-nação
brasileiro. Esse encontro de culturas tem sido marcado,
como afirma Macedo (2006), pela construção de ilusões de
homogeneidade. Se os ideais de nação e de Estado moder-
no foram instrumentos eficazes dessa construção, assim
como a ilusão de pertencimento pela via do nascimento
(que também se aplicou muito bem à realidade nacional),
desperta em nós e nos faz “sentir brasileiro”2. No entanto,
o paradigma da convivência pacífica entre os diferentes
grupos raciais, a fábula do encontro espontâneo e roman-

1
A mistura racial brasileira foi incentivada como princípio de sociabili-
dade e inexistência de racismo. Embora a Gilberto Freyre, a expressão
“democracia racial”, segundo Guimarães (2002), é de autoria de Roger
Bastide.
2
A valorização da mestiçagem deu uma carteira de identidade para a
parcela imensa da população que tinha “sangue negro”. Essa carteira
de identidade veio embalada na teoria da “democracia racial”: no Bra-
sil, o confronto entre as raças dera lugar à harmonia. Nascia o país do
samba, do carnaval e do futebol. (MAGNOLI e ARAÚJO, 2001, apud
VAZZOLER, 2006, p. 126).

43
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

tizado das três raças, se revelou uma falácia, embora per-


maneça em discursos hegemônicos, comprometidos com
o ideário de nação.

É que, quando acreditamos que o Brasil foi feito


de negros, brancos e índios, estamos aceitando sem
muita crítica a idéia de que esses contingentes hu-
manos se encontraram de modo espontâneo, numa
espécie de carnaval social e biológico. Mas nada dis-
so é verdade. O fato contundente de nossa história
é que somos um país feito por portugueses brancos
e aristocráticos, uma sociedade hierarquizada e que
foi formada dentro de um quadro rígido de valores
discriminatórios (DAMATTA, l990, p. 46).

Para vários estudiosos (HALL, 2003; TODOROV, 1993;
GEERTZ, 1987/1997), o que caracteriza os seres e as socie-
dades humanas não é a similaridade e sim a diferença.

As identidades são construídas por meio da diferença


e não fora dela [...] As identidades são, pois, pontos
de apego temporário às posições-de-sujeito que as
práticas discursivas constroem para nós. [...] São as
posições que o sujeito é obrigado a assumir, embora
sabendo sempre, que elas são representações, que a
representação é sempre construída ao longo de uma
falta, ao longo de uma divisão a partir do lugar do
Outro [...] (HALL, 2000, p. 110-112).

Para Macedo (2006), no entanto, há uma tendên-


cia dos processos multiculturais em resposta às políticas
discriminatórias, em fixar a diferença transformado-a em
diversidade, para a autora:

Na perspectiva aberta por Bhabha3 (2003), seria mais


produtivo pensar na diferença como define Derrida4

3
Bhabha, H. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
4
Derrida, J. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.

44
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...

(1991) no que denomina différance. Como no estrutu-


ralismo, a cultura é vista como um processo de atribui-
ção de significados, significados estes que dependem
de um sistema de diferenças. No entanto, na perspec-
tiva pós-estruturalista de Derrida, tais significados não
podem ser fixados de forma decisiva. Ainda que se
mantenha a fantasia de um significado fixo, cabal, ele
nunca será totalmente apreensível. Ao invés de opo-
sições binárias fixas, a différance introduz a incerteza
que põe em interação as relações entre as culturas e
os espaços que as distinguem, tornando a identifica-
ção dos sujeitos com determinadas culturas um pro-
cesso ativo e contingente. Assim, o que muitas vezes
denominamos diferença entre culturas vistas como re-
pertórios partilhados de significados nada mais é do
que um retrato cristalizado de um momento particular
(MACEDO, 2006, p. 350).

Assim como Derrida (1991, apud MACEDO 2006)


nos desafia a refletir além dos significados e de sua forma
fixa, também procuro identificar uma abordagem concei-
tual mais adequada ao uso do termo “raça”, dada sua am-
bigüidade conceitual.
Entendo que os significados e as categorias raciais
são construídos em termos sociais e não biológicos, mas,
no Brasil, a raça tem sido uma variável fundamental na
reprodução da desigualdade social. A discrepância encon-
trada entre a ascendência biológica e a classificação racial
demonstra que, aqui no Brasil, as classificações raciais são
especialmente ambíguas e fluidas, com uma preferência
pela noção de cor, que equivale ao conceito de raça, pois
hierarquiza as pessoas de cores diferentes de acordo com
uma ideologia racial (SANTOS, 2005). Dentre os desafios
conceituais em torno do termo, creio que Guimarães nos
apontou um caminho possível:

[...] “raça” não é apenas uma categoria política neces-


sária para organizar a resistência ao racismo no Brasil,

45
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

mas também é uma categoria analítica indispensável:


a única que revela que as discriminações e desigual-
dades que a noção brasileira de “cor” enseja são efeti-
vamente racistas e não apenas de “classe”. Reconheço,
todavia, que não há raças biológicas [...]. O problema
que se coloca é, pois, o seguinte: quando no mundo
social podemos dispensar o conceito de raça? (GUI-
MARÃES, 2002, p. 50).

[...] fica muito difícil imaginar um modo de lutar contra


uma imputação ou discriminação sem lhe dar realida-
de social. Se não for a “raça”, a quem atribuir as dis-
criminações que somente se tornam inteligíveis pela
idéia de “raça”? (GUIMARÃES, 1999, p. 25)

A abordagem do ciclo de políticas

As possibilidades analíticas oferecidas pelas formu-


lações de Stephen Ball5 (apud LOPES, 2006) contribuem
para o entendimento das políticas educacionais, em espe-
cial da política curricular no contexto da Lei n. 10.639 e
suas Diretrizes Curriculares.
São três os contextos principais do ciclo contín-
uo de políticas: o contexto de influência, o contexto da
produção dos textos e o contexto da prática. Esses se
articulam, sem obedecer a seqüências predefinidas. Cada
contexto envolve arenas e grupos de interesse em per-
manente disputa.
O contexto de influência se caracteriza pela con-
strução das políticas e dos discursos; onde acontecem as
disputas entre quem influencia a definição das finalidades
sociais da educação e do que significa ser educado. Atuam
nesse contexto as redes sociais dentro e em torno dos

5
BALL, Stephen J. The Policy Processes and the Processes of Policy. In:
Bowe, R.; Ball, S.; Gold, A. Reforming Education & Changing School:
Case Studies in Policy Sociology. London, New Iork: Routlegde, 1992.

46
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...

partidos políticos, do governo, do processo legislativo, das


agências multilaterais, dos governos de outros países cujas
políticas são referência.
O contexto de produção dos textos é constituído
pelo poder central, que mantém uma associação es-
treita com o primeiro contexto, e formula os textos
visando ao direcionamento das ações nas práticas. O
contexto da prática, para Ball, é eminentemente plural,
nele, as definições curriculares são recriadas e reinter-
pretadas e são também incorporadas pelos outros dois
contextos, conferindo o caráter circular dos discursos
nesse ciclo.
Considerando o contexto de influência preconiza-
do por Ball, no aspecto dessa política, percebemos que
os movimentos sociais, organizações não governamen-
tais e demais instituições de luta e garantia de direitos
das populações, historicamente, têm fomentado dispo-
sitivos legais, em âmbito local e global, com políticas
e ações governamentais. Assim como, com propostas
educacionais para a conquista plena dos direitos huma-
nos, calcado em valores éticos livres de preconceito e/ou
discriminação acerca de gênero, raça, etnia, orientação
sexual, geração e religião.
Temos assistido nas últimas décadas a um cres-
cente debate e conseqüente visibilidade em torno das
desigualdades raciais no Brasil e no mundo. Podemos
atribuir esse movimento pela igualdade racial às políticas
de ação afirmativa6, inicialmente aplicadas na socieda-
de norte-americana e que refletiram expressivamente em
outras sociedades. Nessa perspectiva, a política curricu-

6
A antiga noção de ação afirmativa tem, até os dias de hoje, inspirado
decisões de cortes norte-americanas, conservando o sentido de repara-
ção por uma injustiça passada. A noção moderna se refere a um progra-
ma de políticas públicas ordenado pelo executivo ou pelo legislativo,
ou implementado por empresas privadas, para garantir a ascensão de
minorias étnicas, raciais e sexuais (GUIMARÃES, 1999, p. 154).

47
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

lar, objeto de análise nesse trabalho, embora um projeto


contra-hegemônico, utiliza a tradição iluminista na garan-
tia de espaço e poder. Essa configuração também aponta
outras contradições: diferentes grupos, em disputa por
territórios e demandas comuns, se aliam oportunamen-
te para questões mais amplas, como é o caso do movi-
mento negro e de mulheres negras, por exemplo. Se, no
primeiro instante, a causa é do conjunto da população
negra, essa articulação entre homens e mulheres negras
é possível. No entanto, há uma cisão quando o aporte de
gênero se sobrepõe, e mulheres negras se posicionam
em campos políticos distintos dos homens negros, as-
sim como o fazem em relação às mulheres brancas. Para
Macedo (2006, p. 333), não se pode negligenciar que há
programas assistenciais e/ou compensatórios que visam
domesticar a diferença e que lançam projetos contra-he-
gemônicos e emancipatórios para o controle e regulação
da diferença. Esse pensamento também é compartilha-
do por Apple (2003), quando critica as concessões do
discurso hegemônico, ao incluir a cultura e história do
outro nos currículos.
Tendo em vista que o debate profícuo em torno da
questão racial favorece novas abordagens analíticas, pros-
sigo nesse intento, apoiada em Ball.

O contexto de influência

São inúmeras as iniciativas da sociedade civil orga-


nizada no campo da luta pela igualdade racial no Brasil.
Se tomarmos o movimento negro como referência, cons-
tatamos que sua luta se desenvolveu no pré-abolição em
diferentes campos: nos quilombos, nas rebeliões urbanas
e rurais, nas irmandades religiosas e em muitos outros.
Mas, desde a pós-abolição e a suposta liberdade, a maior
demanda desse movimento está centrada na educação da
população afro-brasileira.
48
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...

Confirmam essa hipótese as iniciativas históricas do


movimento negro nessa direção, como a da Frente Negra
Brasileira (1932-1937), o maior e mais amplo movimento
negro do século XX, presente em São Paulo, Rio de Janeiro,
Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco,
que constituiu extensas turmas de alfabetização de jovens
e adultos negros; o TEN (Teatro Experimental do Negro)
que, além de criar escolas de atores, também oferecia aulas
de alfabetização; A União Cultural dos Homens de Cor do
Distrito Federal promoveu cursos de corte e costura para
empregadas domésticas e, em seu estatuto, determinava
que todos os seus membros alfabetizados deveriam tomar
para si a responsabilidade de alfabetizar pelo menos uma
pessoa ligada aos seus quadros, garantindo, desta forma,
que no futuro todos os que a ela fossem filiados deixas-
sem de ser analfabetos.
A partir de 1945, assistimos a um “Renascimen-
to Negro” (MOURA7 1988, apud SILVA, 2003) contra a
discriminação racial. Para Andrews8 (apud Silva, 2003),
no entanto, o que houve foi uma renovação do movi-
mento, já que, apesar do banimento da Frente Negra na
ditadura varguista, os clubes sociais e associações cívi-
cas continuaram a se organizar. A Associação José do
Patrocínio em São Paulo, por exemplo, teria solicitado,
em 1941, ao presidente Getúlio Vargas, a proibição dos
anúncios discriminatórios contra os trabalhadores ne-
gros. Ancoradas na esteira da democratização por que
passava o país, aquelas novas organizações negras pro-
moviam campanhas educacionais, a fim de integrar o
negro na sociedade brasileira. Havia um sentimento de
euforia e realização coletiva expandido pelo território
nacional (SILVA, 2003).

7
MOURA, C. História do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática.
1988.
8
ANDREWS, G. R. Blacks and whites in São Paulo, Brasil. 1888–1988.
The University of Wisconsin Press. 1991

49
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

A UHC (União dos Homens de Cor) tem por finali-


dade manter moços e moças em cursos superiores,
concedendo-lhes roupa, alimentação, etc. para que
possam concluir os estudos [...] E ampla campanha
de alfabetização, de forma que, dentro de 10 anos,
não exista um único homem de cor que não saiba ler
(ALVES9, 1948, apud SILVA, 2003.)

As iniciativas da sociedade organizada na época
já enunciavam o que atualmente entendemos por ações
afirmativas10. A luta por reparação, valorização e reco-
nhecimento da identidade e da cultura da população ne-
gra é ancestral, mas a atuação desses movimentos tor-
nou-se mais efetiva, recentemente, a partir da formação
de grupos de interesses na formulação e implementação
das políticas.
No Governo de Fernando Henrique Cardoso foi ins-
talado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Va-
lorização da População Negra (GTI), afirmando em seu
texto básico a inscrição definitiva da questão do negro na
agenda internacional. Destacou-se também a formação de
uma delegação brasileira para comparecer à Conferência
Mundial da ONU contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em Dur-
ban, África do Sul, em 2001.11

9
ALVES, J. Jornal Quilombo, ano I, n. 1, p. 3, dez. de 1948.
10
Um conceito de ação afirmativa pode ser encontrado em Gomes
(2001, p. 41): “Um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter
compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao com-
bate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, tendo por
objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens
fundamentais como a educação e o emprego.”
11
Conferência Mundial contra o Racismo e a Discriminação Racial: duas
primeiras em Genebra (1978 e 1983) e a terceira em Durban (2001). O
ano de 2001 foi proclamado Ano Internacional de Mobilização contra
o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Cor-
relatas.

50
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...

Atualmente, percebemos que algumas lutas da co-


munidade negra estão (em parte) contempladas no con-
junto de propostas do governo federal, que agrega em
seus quadros muitos parlamentares oriundos do movi-
mento social que pressionaram (e ainda pressionam) por
políticas sociais dirigidas aos excluídos. Entretanto, os
grupos de interesse atuam ainda de modo informal. Se-
gundo Lobato:

O processo político é tanto mais amplo, quanto mais


atores sociais dele fizerem parte, sejam instituciona-
lizados ou não, estejam ou não representados em
grupos formais de interesse. Mesmo sob as mais va-
riadas formas organizacionais, com interesses os mais
diversos e, portanto, com diferentes graus de poder, o
processo político engloba tanto atores sociais quantos
dele quiserem fazer parte, ao menos onde existirem
canais democráticos de manifestação de demandas.
Das relações estabelecidas entre esses atores resultará
a política em si, sendo esta apenas uma das etapas de
todo o processo (1996, p. 40).

Sabemos que a relevância do estudo de temas de-


correntes da História e Cultura Afro-brasileira e Africana
não se restringe à população negra. Ao contrário, diz res-
peito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-
se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade
multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma na-
ção democrática (Parecer 003/2004).
Para Henriques (2002, p. 15), a educação é uma va-
riável crucial para transformar a situação desigual em que
se encontram os indivíduos de diferentes raças. No entan-
to, no Brasil, a invisibilidade do problema, ou o nosso “o
racismo à brasileira” é bem mais eficaz e excludente do
que parece: os negros se vêem descartados dos principais
centros de decisão política e econômica, sofrendo desvan-
tagens no processo competitivo e em sua mobilização so-
cial e individual. Isso significa “simbolicamente” um corte
51
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

de poder e uma exclusão social, levando à alienação e à


depreciação da identidade pessoal e étnica (D’ADESKY,
2001).
Percebemos que o contexto de influência na for-
mulação da Lei n. 10.639 abarcou diversos atores do ce-
nário político, social, acadêmico, nacional e internacio-
nal. As influências internacionais: Movimento pelos Di-
reitos Civis americano, pela luta contra o apartheid, pelo
processo de independência colonial de países africanos
e, no Brasil, somos influenciados desde os quilombos
e quilombolas e sua luta por liberdade e justiça, pelo
movimento abolicionista e a defesa de costumes, sabe-
res e religiosidade de matriz africana. Na pós-abolição,
pelo projeto educativo e inclusivo do movimento social
negro, pela cultura e resistência, pelo movimento dos
PVNCs (Pré-Vestibulares para Negros e Carentes), a luta
por reserva de vagas nas universidades e pelas políticas
de ação afirmativa em geral.

O contexto da produção dos textos

A Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, altera a Lei


n. 9. 394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática História e Cultura Afro-Brasileira. O enfoque da
lei no campo curricular é político e seria, para Giroux:

O reconhecimento de que as escolas são instituições


históricas e culturais que sempre incorporam interes-
ses ideológicos e políticos. Elas atribuem à realida-
de significados muitas vezes ativamente contestados
por diversos indivíduos e grupos. As escolas, neste
sentido, são terrenos políticos e ideológicos a partir
dos quais a cultura dominante “fabrica” suas “certe-
zas” hegemônicas; mas elas também são lugares nos
quais grupos dominantes e subordinados definem e
52
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...

pressionam uns aos outros através de uma constan-


te batalha e intercâmbio em resposta às condições
sócio-históricas “contidas” nas práticas institucionais,
textuais e vividas, que definem a cultura escolar e a
experiência professor/estudante. As escolas são tudo,
menos inocentes, e também não reproduzem simples-
mente as relações e interesses sociais dominantes. Ao
mesmo tempo, as escolas de fato praticam uma for-
ma de regulação moral e política, intimamente rela-
cionada com as tecnologias de poder que “produzem
assimetrias nas habilidades dos indivíduos e grupos
de definirem e satisfazerem suas necessidades”. Mais
especificamente, as escolas estabelecem as condições
sob as quais, alguns indivíduos e grupos definem os
termos pelos quais os outros vivem, resistem, afirmam
e participam na construção de suas próprias identida-
des e subjetividades (GIROUX, 1997, p. 204 e 205).

Conforme mencionado no início, a abordagem do


ciclo de políticas não mantém uma linearidade. Tomamos
como exemplo o quanto o contexto de influência atraves-
sou o contexto da produção de textos. A sanção da lei,
um dos primeiros atos do governo Lula e do ministro da
Educação na época, Cristovam Buarque. O projeto de lei
apresentado pelos deputados federais Ester Grossi (educa-
dora do Rio Grande do Sul) e Ben-Hur Ferreira (oriundo
do movimento negro de Mato Grosso do Sul), ambos do
PT, foi incisivo:

§ 1o. O conteúdo programático a que se refere o caput


deste artigo incluirá o estudo da História da África e
dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil;

§ 2o. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-


brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currí-

53
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

culo escolar, em especial nas áreas de Educação Artís-


tica e de Literatura e História Brasileira (SILVA, 2003).

A lei também inclui no calendário escolar o dia 20


de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.
Também se constitui como marco nas leis edu-
cacionais a aprovação unânime em 10/3/2004, pelo
Conselho Nacional da Educação, do Parecer n. CNE/
CP 003/2004, que institui as Diretrizes Curriculares Na-
cionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. A professora Petronilha Beatriz Gonçalves e
Silva, relatora desse parecer, com significativa atuação
e produção acadêmica no campo das relações raciais,
representou naquele contexto o grupo de interesse na
produção do texto legal.

O contexto da prática

O contexto da prática, na abordagem do ciclo con-


tínuo de políticas, envolve modelos de interpretação, re-
criação e recontextualização12. Os docentes que atuam na
prática educativa são atores ativos no processo de reinter-
pretação das políticas curriculares e, como defende Ball,

12
No processo de recontextualização, Bernstein (1996, 1998) interpreta
que os textos, assinados ou não pela esfera oficial, são fragmentados
ao circularem no corpo social da educação, alguns fragmentos são mais
valorizados em detrimento de outros e são associados a outros frag-
mentos de textos capazes de ressignificá-los e refocalizá-los.[...] Em
suas análises, Bernstein diferencia o campo recontextualizador oficial e
o campo recontextualizador pedagógico. O primeiro é criado e domi-
nado pelo Estado; o segundo, é composto por educadores nas escolas
e universidades, bem como por produtores de literatura especializada
e fundações privadas de pesquisa. No complexo quadro da recontextu-
alização, Bernstein ainda situa o campo internacional, as relações deste
com o Estado, os campos de produção material e controle simbólico e
o campo recontextualizador nas escolas (LOPES, 2005, p. 54).

54
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...

essas precisam ser interpretadas como redes de poder, dis-


cursos e tecnologias que se desenvolvem no campo social
da educação (LOPES, 2004).

Os profissionais que atuam no contexto da prática [es-


colas, por exemplo,] não enfrentam os textos políticos
como leitores ingênuos, eles vêm com suas histórias,
experiências, valores e propósitos [...]. Políticas serão
interpretadas diferentemente uma vez que histórias,
experiências, valores, propósitos e interesses são di-
versos. A questão é que os autores dos textos políticos
não podem controlar os significados de seus textos.
Partes podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas,
deliberadamente mal entendidas, réplicas podem ser
superficiais etc. Além disso, interpretação é uma ques-
tão de disputa. Interpretações diferentes serão contes-
tadas, uma vez que se relaciona com interesses diver-
sos, uma ou outra interpretação predominará embo-
ra desvios ou interpretações minoritárias possam ser
importantes (BOWE et al.13, 1992, apud MAINARDES,
2006, p. 53).

Uma das questões chave na crítica resistente a re-


forma curricular consistia na falta de materiais e recursos
pedagógicos para o desenvolvimento desse trabalho. Mas
em resposta à demanda surge uma relevante produção
de material didático e de consulta bibliográfica no campo
das relações raciais. Ao ingressar na agenda política, o
tema alcançou visibilidade no cenário nacional e suscitou
amplo debate: desde os inconformados, descontentes
com a política, considerando-a desnecessária, um verda-
deiro “racismo às avessas”, os defensores aguerridos des-
sa proposta, aos indiferentes e os críticos. Por outro lado,
é crescente a produção de pesquisas no campo racial,
como revelam: o GT 21 – Afro-brasileiros e Educação da

Bowe, R.; Ball, S.; Gold, A. Reforming Education & Changing Schools:
13

Case Studies in Policy Sociology. London: Routledge, 1992.

55
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

ANPEd (Associação Nacional de Pós-graduação e Pes-


quisa em Educação); a Associação Brasileira de Pesqui-
sadores Negros (ABPN), que promove os Congressos de
Pesquisadores Negros; a ABA (Associação Brasileira de
Antropologia). Além das teses e dissertações produzidas
em diferentes programas de pós-graduação espalhados
pelo país, estimuladas por linhas de pesquisa criadas a
partir dos Neabs (núcleos de estudos afro-brasileiros) das
universidades públicas e privadas.
No campo institucional recente, tivemos a criação
da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igual-
dade Racial (Seppir), da Secretaria de Educação Continu-
ada, Alfabetização e Diversidade (Secad) e das Coorde-
nadorias de Promoção da Igualdade Racial, que, além da
produção de textos, também atuam no campo político-
organizacional e no apoio às causas raciais, como a dos
quilombolas, entre outras. Creio que esse momento fe-
cundo é parte desse ciclo contínuo de políticas, em que
se alternam participação e influências no cenário político
e no poder.
Mas entendemos que a legislação e as políticas
educacionais e/ou sociais dependem mais do que de sua
publicação. Pôr em prática conteúdos relativos à história
e cultura afro-brasileira que não fizeram parte da for-
mação dos docentes, na educação básica ou superior,
torna-se tarefa árdua, de permanente embate junto aos
sistemas de educação de âmbito municipal, estadual ou
federal, que priorizem a formação continuada desses
profissionais. Algumas iniciativas nesse sentido podem
ser citadas com êxito, dentre elas o projeto piloto Gêne-
ro e Diversidade na Escola, lançado e desenvolvido em
2006, resultado da articulação entre diversos ministérios
(Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, Secreta-
ria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Ra-
cial e Ministério da Educação), o British Council (órgão
do Reino Unido atuante na área de Direitos Humanos,
Educação e Cultura) e o Centro Latino-Americano em
56
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...

Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ). Tal


projeto, do qual fiz parte como docente on-line, buscava
a atualização de 1.200 professores de 5ª a 8ª série do
Ensino Fundamental da rede pública de seis cidades do
país – Dourados (MS), Maringá (PR), Niterói e Nova Igua-
çu (RJ), Porto Velho (RO) e Salvador (BA), nas temáticas
de gênero, sexualidade e relações étnico-raciais. O curso
teve carga horária de 200 horas aula, sendo 30 horas pre-
senciais e 170 horas a distância.
Em 2008, o MEC, em parceria com outros ministé-
rios (Desenvolvimento Social e Combate a Fome; Ciência
e Tecnologia; Esporte; Meio Ambiente; Cultura; Secreta-
ria Nacional da Juventude), desenvolve o projeto de Edu-
cação Integral Mais Educação, que incluiu entre os seus
macrocampos Direitos Humanos14, Ética e Cidadania, em
que se discutem: Relações étnico-raciais, Cultura e Iden-
tidades Indígenas, Relações no Campo, Diversidade Se-
xual e Gênero e Direitos de Crianças e Adolescentes. Tal
projeto pretende atender a escolas públicas do ensino
fundamental, em municípios que assinaram o Compro-
misso Todos pela Educação.
Várias universidades, através dos Neabs, oferecem
cursos presenciais e/ou a distância, de extensão e/ou pós-
graduação, além de produção acadêmica no campo. Po-
demos citar a UFRRJ/Leafro (Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro/ Laboratório de Estudos Afro-brasileiros),

14
Creio ser oportuna a reflexão de Candau (2007), sobre a educação
em direitos humanos: “[...] Entendemos os Direitos Humanos como
mediações para a construção de um projeto alternativo de sociedade:
inclusiva, sustentável e plural. A educação que se articula com estas
perspectivas enfatiza a formação para uma cidadania que favorece a or-
ganização da sociedade civil e promove o empoderamento dos grupos
sociais e culturais marginalizados, inferiorizados e subalternizados. Co-
loca no centro de suas preocupações a inter-relação entre as diferentes
gerações de direitos e trabalha a articulação entre direitos relativos à
igualdade e aqueles relacionados às questões das diferentes identida-
des culturais presentes na nossa sociedade.”

57
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

UFF/Penesb (Universidade Federal Fluminense/Programa


de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira), a Uerj/
PPCor/LPP (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Pro-
grama de Políticas da Cor/Laboratório de Políticas da Cor),
a UFMT/Nepre (Universidade Federal do Mato Grosso/
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e
Educação) entre outras. Essas iniciativas, ainda tímidas,
dado o universo de alunos da educação básica e de
docentes que se pretende atingir, são bem-vindas. No
entanto, são insuficientes se não for incluída nos currí-
culos das licenciaturas15 essa temática, pois a cada ano,
novos profissionais chegam ao mercado educacional,
muitos deles ainda despreparados para trabalhar com a
questão racial.

Considerações finais

Em todo o mundo as pessoas são mais afirmativas


para exigir respeito pela sua identidade cultural. Mui-
tas vezes, o que exigem é justiça social e mais voz
política. Mas não é tudo. Também exigem reconheci-
mento e respeito... E importam-se em saber se eles e
os filhos viverão em uma sociedade diversificada ou
numa sociedade em que se espera que todas as pes-
soas se conformem com uma única cultura dominante
(PNUD, 2004, p. 22).

15
Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (Brasil. MEC, 2004), esse ensino se fará por dife-
rentes meios, em atividades curriculares ou não. As Diretrizes destacam
a inclusão da discussão da questão racial como parte integrante curri-
cular, tanto dos cursos de licenciatura para Educação Infantil, os anos
iniciais e finais da Educação Fundamental, Educação Média, Educação
de Jovens e Adultos, como dos processos de formação continuada de
professores, inclusive de docentes no ensino superior.

58
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...

Metade da sociedade brasileira é composta de afro-


descendentes. Nem essa a parcela nem a outra, composta
por brancos, tiveram acesso ao estudo da História da África
e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, sua cultura e
a formação da sociedade nacional, temas que integram o
conteúdo programático das Diretrizes Curriculares.
Essa nova perspectiva curricular também exige re-
visões profundas nos livros didáticos, silenciados sobre
essas questões, reprodutores do racismo e da imagem
subordinada da população negra. Evidentemente, esses
estudos produzem impacto na formação, na subjetivida-
de e na identidade da criança, negra ou branca, além de
permitir que se amplie sua visão de mundo e do outro,
valorize outros saberes, crie alternativas às perspectivas
eurocêntrica, capitalista, patriarcal e cristã dominantes.
Entretanto, a formação e prática docentes, profundamen-
te marcadas e influenciadas por esses mesmos valores
dominantes, agigantam a tarefa de desconstruir, para re-
construir alternativas plurais que produzam novos sen-
tidos. Esse desafio aponta para a nossa realidade, pós-
janeiro de 2003, em que a lei foi promulgada. São mais
de cinco anos de debates intensos, recursos jurídicos e
tentativas de viabilizá-la. Esse desafio, é bem verdade,
era esperado. As transformações culturais e políticas não
se fazem com discursos isolados, mas com reflexão e
prática.
Ainda nos confrontamos com a perspectiva de es-
cola redentora, a instituição capaz de “resolver” os gran-
des dilemas e mazelas sociais. Mas nos perguntamos:
Como educar meninos e meninas, mulheres e homens
na contemporaneidade? É consenso que a escola é um
espaço privilegiado, pois por ela passa a maior partet da
população e ela se apresenta como um locus fundamen-
tal de formação e restauração dos valores, perdidos ou
afetados pela modernidade. Mas, assim como o conjun-
to da sociedade, a escola também está em crise. Crise
de paradigmas, de visão de mundo, de papel social...
59
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Mas algumas certezas nesse panorama de incertezas são


fundamentais: sabemos que a educação é um dos mais
importantes instrumentos de transformação social, pois
agrega valores, conhecimentos e informações que per-
mitem em grande medida a emancipação dos indivíduos.
E, mais do que instrumento potencial de transformação,
a educação é um direito, implica que ampliemos a noção
de cidadania, enquanto direito a ter direito.
Nesse sentido, creio ser necessário um redirecio-
namento, nas ações e nos discursos, capazes de des-
naturalizar os lugares sociais demarcados, educar para
a promoção humana, elevar a auto-estima e renovar a
esperança.

60
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...

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63
Jovem da Baixada Fluminense,
religião de matriz afro-brasileira
e subjetividade: um entrelaçamento
à luz da complexidade

Leila Dupret

Introdução

Em 2006, ao me engajar no corpo docente da Uni-
versidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em
seu campus de expansão no município de Nova Iguaçu,
percebi que a região da Baixada Fluminense havia sido
muito pouco explorada em sua riqueza de contribuições
às Ciências Humanas Sociais. Poucos pesquisadores ha-
viam se debruçado com afinco acadêmico e investimento
científico em investigações sobre fenômenos locais, prin-
cipalmente os do campo das relações interpessoais.
Essa percepção me fez escolher tal recorte geofísico
para iniciar uma pesquisa que pudesse revelar algo que
pertencesse, de fato, à região eleita. A partir do local esta-
belecido, passei a escolha de quem seriam os sujeitos da
investigação e optei pelos jovens habitantes da Baixada.
Primeiro, por entender que eles são pessoas que, a médio
prazo, poderão fazer opções diferentes, escolhas novas;
segundo, por acreditar em suas potencialidades para pôr
em prática transformações advindas de seu desenvolvi-
mento, seu modo prospectivo de propor e sua coragem
em executar o que sugere a partir de questionamentos.
65
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

[...] com todos os limites dados pelo lugar social que


ocupam, não podemos esquecer o aparente óbvio:
eles são jovens, amam, sofrem, divertem-se, pensam
a respeito das suas condições e de suas experiências
de vida, posicionam-se diante dela, possuem desejos
e propostas de melhorias de vida (DAYRELL, 2007,
p. 1108).

Ademais, só o município de Nova Iguaçu possui cer-


ca de 122 mil habitantes na faixa etária de 18 a 24 anos
e mais de 200 mil habitantes com menos de 18 anos (da-
dos de 2000 obtidos junto à Prefeitura Municipal de Nova
Iguaçu, em 2003, os quais constam do Projeto Acadêmico
do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ). Estas pessoas es-
tão inseridas em um contexto com características sociais
importantes, pois revelam o cotidiano da Baixada Flumi-
nense, definida por Alves (2003) a partir das relações entre
a violência, o poder local e as esferas “supralocais” de
poder, nas quais é possível identificar questões que pros-
seguem em debate, tais como:

Impunidade; corrupção policial; crime organizado; des-


crédito dos políticos e da polícia; ineficiência do estado;
atração dos jovens pobres pelo tráfico como alternativa
econômica e social; globalização da criminalidade e da
cultura individualista acompanhada pelo espírito capi-
talista e pela lógica empresarial do tráfico; concepção
hierarquizada da sociedade e modelo inquisitorial, pre-
sentes na cultura jurídica e no sistema processual penal;
combinação de novas formas de organização familiar,
novos padrões de consumo, novo ethos do trabalho, do
hedonismo, do sistema escolar, das políticas públicas
para o menor [...] (ALVES, 2003, p. 26).

Delimitados sujeitos e local para o estudo, era preci-


so conhecer o contexto compreendido por eles mesmos,
na tentativa de estar o mais próximo possível desta reali-
dade. Assim a pesquisa deveria conter um levantamento
das demandas dos jovens habitantes, um mapeamento de
66
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...

suas representações pessoais sobre a Baixada e um elenco


de possíveis alternativas sugeridas por eles diante da situ-
ação de serem moradores da região.
Obviamente, este caminho investigativo exige uma
metodologia apropriada, que não tenha hipóteses a se-
rem confirmadas ou rejeitadas; em que não haja também
categorias a serem constatadas ou uma concepção ante-
rior do pesquisador sobre algo a ser certificado posterior-
mente. Ao contrário, é fundamental uma metodologia que
tenha como referência o aprender a olhar, a ler indícios
e o aleatório; que entenda a ciência como exercício de
criatividade e atividade que permite integrar os diferentes
conhecimentos: científicos e populares. Cabe lembrar que
não pertence ao nosso recorte investigativo o campo das
representações sociais, pois isso exigiria uma abordagem
teórico-metodológica específica diferente da que sugeri-
mos em nossos estudos.
Neste sentido, a metodologia da pesquisa de cunho
qualitativo está fundamentada na perspectiva de Vygotsky
(1988, 1996), no que se refere à base teórica de sua aborda-
gem, a qual se funda em três princípios: analisar processo
e não objeto, isto é, ter como tarefa o reconhecimento da
dinâmica dos constituintes da história do que está sendo
investigado; diferenciar explicação de descrição, ou seja,
desvelar a dinâmica causal não se detendo apenas nas
aparências mais comuns e nas relações lineares de causa
e efeito; desprender-se do “comportamento fossilizado”,
isto é, da manifestação de comportamento automatizado
que, por sua origem remota e suas inúmeras repetições,
tornou-se mecanizado. A técnica utilizada para a operacio-
nalização da pesquisa é a da construção de “unidades de
sentido” (REY, 1997), que permitem realizar uma análise
de conteúdo a partir de expressões dos sujeitos estuda-
dos e integram um conjunto diverso de indicadores ou
categorias reveladas no decorrer da própria investigação
e pertencentes ao contexto social no qual os participantes
da pesquisa estão inseridos.
67
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Então, o método utilizado sustenta-se no dinamis-


mo do processo do que está sendo investigado e toma
como referências as expressões dos entrevistados; além
disso, as entrevistas são “abertas”, para que não haja
qualquer tipo de condução nas respostas e elas pos-
sam trazer à tona indicadores que convirjam em con-
figurações singulares do que é estudado, dissolvendo
pré-concepções ou comportamentos “fossilizados” por
parte do pesquisador. Deste modo, o desenvolvimento
da pesquisa permite que aflorem questões que se confi-
guram como importantes e passam a compor o arsenal
do campo de investigação.
Nesta perspectiva, durante a fase inicial dos estudos
surgiu a primeira inquietação que se transformou, de ime-
diato, em mais uma fonte para a investigação, amplian-
do o campo de análises. Referimo-nos à contraposição
das informações veiculadas pela mídia sobre os jovens da
Baixada Fluminense e as que obtivemos deles a partir de
entrevistas.
Ainda no ano de 2006, a criação do Laboratório de
Estudos Afro-brasileiros (Leafro), que pertence ao Núcleo
de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da UFRRJ
e integra a rede de Neabis das universidades públicas
brasileiras, fomentou a importância de incluir nas discus-
sões as desigualdades sociais e as discriminações raciais.
Desenvolvendo atividades de ensino, de pesquisa e de
extensão, o Leafro pretende o aprofundamento de análi-
ses sobre as articulações estabelecidas entre as dimensões
raciais e étnicas, de classe, cultura, de gênero, bem como
do mundo do trabalho na sua interseção com o processo
educativo formal, além de oferecer subsídios e orientação
às ações educativas de intervenção pedagógica direciona-
das para a implementação da Lei n. 10.639/03, atualizada
pela Lei n. 11.645/08.
Sendo assim, ao final de cada entrevista aberta rea-
lizada com o jovem pela equipe de trabalho composta por
mim, bolsistas do CNPq/UFRRJ e Faperj, alunos auxiliares
68
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...

de pesquisa e profissionais voluntários, passamos a per-


guntar de modo simples e objetivo, mas sempre em tom
de um assunto para conversa, o seguinte: qual é sua cor?
O que, sem dúvida, enriqueceu a coleta de dados e as
análises do material obtido.
Completamente engajada no Leafro, comecei a rea-
lizar um trabalho de extensão junto à comunidade do mu-
nicípio de Nova Iguaçu, representando a UFRRJ como um
dos membros da comissão responsável pelo I Censo dos
Terreiros de Umbanda e Candomblé. Iniciativa que se jus-
tifica com propriedade porque, em Um Rio de Atabaques,
Alves Filho (1997) relata que por volta da década de 90
ocorre uma grande concentração de terreiros na Baixada
Fluminense, até mais que em Salvador, local reconhecido
como de culto aos orixás. As informações mostram uma
relação de aproximadamente três mil contra mil terreiros
nestas regiões, respectivamente. Mesmo que esses núme-
ros tenham estagnado ou diminuído, existe uma quanti-
dade significativa destas casas, principalmente em Nova
Iguaçu, fato que motivou a Prefeitura junto com a Secreta-
ria Municipal de Participação Popular e Coordenadoria de
Promoção da Igualdade Racial a realizarem o I Censo dos
Terreiros de Umbanda e Candomblé da cidade. Esta inicia-
tiva tem como objetivos prioritários: identificar os terreiros
existentes em Nova Iguaçu e criar com representantes das
Casas de Culto aos Orixás, um fórum de discussão sobre
políticas públicas em nível local e regional.
No decorrer deste investimento, uma outra questão
emergiu com vigor surpreendente e se referiu à participa-
ção do jovem nas casas de culto aos orixás. Jovens de di-
versas orientações religiosas se apresentam publicamente,
divulgam e fazem propaganda de suas respectivas doutri-
nas, não se preocupando com meios ou modos de atingir
cada vez mais pessoas como adeptos de suas crenças. E
os jovens que participam dos terreiros, se revelam social-
mente? Divulgam suas crenças e princípios? Incorporamos
também esta questão em nosso estudo sobre os jovens.
69
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Entrar em contato com a comunidade dos terrei-


ros nos remeteu a outros campos de saber que também
passaram a pertencer ao nosso arsenal de conhecimento,
tais como as tradições, os usos e os costumes africanos
que se transformaram em afro-brasileiros e que era pre-
ciso investigar se os jovens estavam tendo acesso a esse
cabedal de informações tão relevantes para sua formação
profissional e cidadã. Nesta perspectiva e entendendo a
importância da implementação da lei de 2003, quesito
constitutivo das diretrizes curriculares do nível escolar
básico e fundamental desde esta época, acrescentamos à
pesquisa três outras questões a serem investigadas: Como
os mitos africanos estão sendo trazidos aos conteúdos
escolares? O que jovens de nível médio, do curso de
formação de professores, estão estudando para a futura
transmissão destes conhecimentos a seus alunos e imple-
mentação da lei? E, na vertente sócio-histórica brasileira,
qual é o papel da jovem e sua importância no contexto
dos terreiros?
A partir deste campo circunscrito para a investiga-
ção, é necessário iniciarmos o texto definindo que con-
ceito de jovem está sendo utilizado pela pesquisa, já que
ele é o foco do estudo para todas as relações que estamos
estabelecendo com diferentes fontes de informação: midi-
ática, religiosa e educativa.

Jovem e subjetividade

Inegavelmente, o jovem cresce de maneira intensa e


rápida, e seu corpo aproximando-se ao do adulto, desper-
ta curiosidades e propõe desafios que se manifestam em
tanto sua conduta, quanto em sua vida interior. Segundo
Vygotsky,

Nesta idade se abre um novo mundo de vivências inte-


riores, impulsos e atrações: a vida interior se vai fazen-

70
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...

do infinitamente mais complexa em comparação com


a idade infantil mais tenra; as relações com o meio e
o que o rodeia se fazem muito mais complexas; as im-
pressões provenientes do mundo exterior se submetem
a uma elaboração mais profunda (1999, p. 46).1

Para o autor, há uma elevada emocionalidade e


excitabilidade nas ações do jovem e ele pretende nos
chamar a atenção para a importância e participação dos
seus sentimentos no que pensa e realiza; pois embora
isto aconteça conosco em qualquer fase da vida, nes-
ta etapa, caracterizada muitas vezes como uma fase de
trânsito, são comuns situações mais agudas provocadas
organicamente pela produção hormonal e transforma-
ções corporais; mas também, o desempenho de um novo
papel social lhe é exigido, só que agora está atravessado
por seu amadurecimento sexual e seu discernimento in-
telectual, conjuntamente.
Discordando de alguns autores que definem a ado-
lescência como um momento tipicamente transitório e de
crise, concordamos com Dayrell quando afirma que:

A juventude constitui um momento determinado, mas
não se reduz a uma passagem; ela assume uma im-
portância em si mesma. Todo esse processo é influen-
ciado pelo meio social concreto no qual se desenvolve
e pela qualidade das trocas que este proporciona
(2003, p. 42).

Deste modo, entendemos a juventude como parte


constituinte do processo de desenvolvimento humano,

1
En esta edad se abre un nuevo mundo de vivencias interiores, im-
pulsos y atracciones: la vida interior se va haciendo infinitamente más
compleja en comparación con la edad infantil más temprana; las rela-
ciones com el médio y lo que le rodea se hacen mucho más complejas;
las impresiones provenientes del mundo extrior se sometem a una ela-
boración más profunda (VYGOTSKY, 1999, p. 46).

71
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

mas que o integra com especificidades marcantes para a


vida de cada um. Assim, considerar os diferentes contextos
nos quais os jovens estão inseridos, suas condições eco-
nômicas e sociais, é fundamental para que, por exemplo,
não se assuma o posicionamento de generalizar a apatia
juvenil, que culmina em expressar recusa ou impossibi-
lidade de perceber possíveis engajamentos do jovem em
projetos que despertem seu interesse ou que ele possa se
reconhecer como produtivo. Além disso, identificar outras
práticas de participação comunitária, de solidariedade e,
até mesmo, explicitar conflitos ou evidenciar ações com
as quais aceitaram se envolver.
Segundo Ozella (2003, p. 23), a adolescência deve
ser entendida como o resultado de uma construção social:
“depende das relações sociais estabelecidas durante o pro-
cesso de socialização, incluídos aqui fatores econômicos,
sociais, educacionais, políticos, culturais etc.”, o que difere
de abordagens teóricas em psicologia, que ao assumirem
suas tendências em generalizar, adotam modelos preesta-
belecidos para o comportamento do jovem, independen-
te do contexto em que estão inseridos e suas interações
socioculturais. Em outras palavras, entender o jovem com
o olhar sócio-histórico é concebê-lo na dinâmica trans-
formacional de seu processo de desenvolvimento, acredi-
tando na importância de estimular suas potencialidades e
no inesperado das expressões de seus comportamentos.
Além disso, é fundamental compreender que, sem a pos-
sibilidade de generalizar, afloram as diferenças entre os
jovens, caracterizando suas singularidades e enriquecendo
o estudo psicológico com esta diversidade.
Ademais, cabe ressaltar que os desafios apontados
por Martinez (2005) aos psicólogos, quais sejam, a neces-
sidade de lidar com a subjetividade social, a urgência de
mudanças de concepções cristalizadas e a importância do
compromisso social, sustentam nossa postura interpretativa
e de análise das informações fornecidas pelos jovens a par-
tir do material coletado nas diferentes esferas de estudo.
72
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...

O conceito de subjetividade social nos permite com-


preender a dimensão subjetiva dos diferentes pro-
cessos e instituições sociais, assim como o da rede
complexa do social nos diferentes contextos em que
ela se organiza através da história. Esta visão facilita
transcender a divisão dicotômica entre o social e o
subjetivo, assim como da dicotomia entre o individual
e o social (REY, 2003, p. 78).

As palavras de Rey (2003) permitem delinear uma


concepção de subjetividade que não prioriza o individual
em detrimento do social, ou o social em detrimento do in-
dividual, mas enfatiza a interferência mútua e a referencia-
ção recíproca, de ambos no processo de construção subje-
tiva. Deste modo, sugere uma mudança paradigmática em
relação ao próprio conceito de subjetividade, que embora
se mantenha por definição configurado como tudo o que
é da ordem do sujeito, deixa de ser considerado apenas
em âmbito singular para assumir seu caráter plural, man-
tendo-se como uma característica do ser humano, constru-
ída pelo atravessamento cultural.
Assim, no grupo de jovens, circunscritos em um
ambiente educativo, por exemplo, cada participante pos-
sui sua bagagem de vivências, experiências, crenças, sua
subjetividade pessoal construída ao longo de sua história
de vida. Mas, ao estarem compartilhando socialmente de
momentos comuns, interagindo uns com os outros, in-
terferem-se mutuamente, construindo uma subjetividade
que pertence a esta coletividade, e embora esteja com-
posta pelas subjetividades individuais, não se configura
como a soma delas, mas emerge como uma outra: a do
grupo.
Nesta perspectiva, o desenvolvimento humano é en-
tendido como um processo, cuja dinâmica está constituída
pelo entrelaçamento do que é individual e coletivo, a um
só tempo, estando reservado à cultura um lugar de parti-
cipação efetiva na construção subjetiva.

73
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Imagem e mídia

A mídia apresenta uma imagem ideal do jovem, com


atributos de beleza, saúde e alegria. Esse padrão cor-
responde perfeitamente ao perfil do jovem de cama-
das médias. Há, no entanto, uma outra juventude,
pobre, que na retórica da mídia, passa a ser repre-
sentada como delinqüente, drogada e criminosa. O
discurso sobre esses jovens, moradores das periferias
ou favelas, pelos meios de comunicação, está associa-
do frequentemente à questão da marginalidade. Dessa
forma, os meios de comunicação, que muitas vezes
têm a função de denunciar situações de desrespeito
aos diretos de cidadania, também contribuem para a
construção e manutenção dos estereótipos negativos
dos jovens pobres, tratando-os como “criminógenos”
(MINAYO, 1999, p. 19).

Na Baixada Fluminense encontram-se bairros de


comunidades populares, onde residem jovens, principal-
mente, negros e pobres, filhos de trabalhadores que têm
sido excluídos e discriminados, constantemente, de forma
injusta e desumana. Assim, este é um lugar onde a criação
de estereótipos e preconceitos estão presentes em todos
os espaços.

As revelações produzidas pelas investigações farão


com que a imprensa funcione ao mesmo tempo como
elemento de segregação da Baixada, identificando-a
como outra sociedade, terra sem lei, lugar onde a fei-
úra se associa ao crime ou câncer vizinho, e como
instrumento de pressão no aprofundamento das inves-
tigações promovidas pela Delegacia de Homicídios.
Uma ambigüidade que se estabelece entre a solidarie-
dade e a rejeição (ALVES, 2003, p. 154).

Há na Baixada Fluminense uma demasiada situação


de exploração da violência e da pobreza pelos veículos
de comunicação, justificando assim as palavras de Alves
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Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...

(2003) a respeito da forte presença de segregação da Bai-


xada, que tende a ser historicamente legitimada pela mídia.
Portanto, revelar as imagens reconhecidas pelos jovens da
Baixada Fluminense como suas representações pessoais,
levando em conta o contexto em que estão inseridos; di-
vulgar demandas reconhecidas por eles, sobre a explo-
ração da mídia à Baixada Fluminense e seus sentimentos
acerca desta temática; e apresentar possíveis alternativas
deles frente aos desafios encontrados diante desta situa-
ção, é fazer o caminho inverso do que tem sido efetivado
pela mídia.
Deste modo, a famosa imagem que prioriza a mar-
ginalização dos jovens da Baixada classificando-os como
irresponsáveis, delinqüentes, inconseqüentes, alienados
e violentos, está presa a um preconceito veiculado ma-
ciçamente pela mídia. Entretanto, estes ditos “coitados”
são muitas vezes autônomos e responsáveis por seus
atos, além de preocupados com o futuro, pois, na re-
alidade, existem jovens totalmente engajados social e
politicamente, que estão fartos desses estereótipos e de
estarem sempre vinculados à imagem negativa da Bai-
xada. Mas, infelizmente, o lado produtivo do jovem e
de sua consciência social dificilmente é ou será retrata-
do e veiculado pelos meios de comunicação, pois não
atende ao sensacionalismo que ajuda a produzir o lucro
midiático.
Visando a uma maior lucratividade, a mídia torna
a informação mais apelativa, e o caminho mais fácil para
isso é o da opção pela informação-espetáculo, norteada
pelos critérios de noticiabilidade, que consistem em um
conjunto de acontecimentos selecionados.

Fica evidente o papel central dos jornalistas – repór-


teres, editores, pauteiros e âncoras de jornal e televi-
são – na produção de explicações e enquadramentos
predominantes na cultura política de massa. Através
de quadros de referências valorizados, significativos

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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

dentro do ambiente cognitivo de grande parte das


pessoas, os jornalistas dão credibilidade a certas vi-
sões de mundo, a enquadramentos sobre a realida-
de que, por sua vez, são influentes nas construções
do cidadão comum sobre a política (ALDÉ, A. et al,
2005, p. 187).

Em outras palavras, a mídia utiliza um modo persu-


asivo de transmitir conteúdos, visando a fazer com que as
pessoas acreditem e se mantenham presas às ideologias
que são disseminadas de forma subliminar. Assim, instau-
ra-se um senso comum acerca da Baixada, sendo este uma
forma de violência indireta (latente).

O senso comum, obviamente nem singular nem incon-


teste, é por onde devemos começar. O senso comum,
tanto expressão como precondição da experiência. O
senso comum, compartilhado ou ao menos comparti-
lhável é medida, muitas vezes invisível, de quase to-
das as coisas. A mídia depende do senso comum. Ela
o reproduz, recorre a ele, mas também o explora e
distorce... (SILVERSTONE, 2002, p. 21).

Desta forma, fazer o trajeto oposto ao que a mí-


dia tem feito, revelar o não dito por quem agora tem
oportunidade de dizer, oferecer ao jovem da Baixada
Fluminense a chance de falar acerca si mesmo e tam-
bém a respeito do que tem sido propagado pelos meios
de comunicação sobre ele, e o que pensa ser relevan-
te divulgar, ressaltando a importância do seu olhar em
relação ao contexto em que está inserido, desvelando
a exploração negativa da mídia em relação aos jovens
da Baixada Fluminense e seus sentimentos acerca desta
configuração, é viabilizar a construção de imagens di-
ferentes das comumente associadas a estes jovens que
se vêem depreciados a todo instante pelos veículos de
comunicação.

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Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...

Raiz afro-brasileira e complexidade

Desde a colonização, o africano escravizado ao sair


de seu lugar de origem, tem seus costumes, usos, rituais,
tradições, cultura fortemente reprimidos. Mesmo assim,
os escravos não deixam de realizar seus cultos e praticar
seus rituais, mantendo-se ligados às suas origens, crenças
e história. Ainda que séculos tenham se passado e algu-
mas mudanças ocorrido em termos políticos, econômi-
cos e sociais, incluindo a própria assinatura da Lei Áurea
(1888), a partir da qual, supostamente, teria sido aboli-
da a escravidão, as repressões e perseguições ao negro
continuaram. Entretanto, o culto aos orixás e a crença
neste tipo de religião permaneceram e transformaram-se
no berço da transmissão e manutenção da cultura afro-
brasileira.

Abruptamente separados de seus contextos de ori-


gem, a eles restava apenas seus valores espirituais ou,
..., sua religião e seus deuses. Aos poucos, vão crian-
do formas de revitalizar suas tradições religiosas pre-
parando assim, o suporte ideológico de suas revoltas
(GONÇALVES e SILVA, 2006, p. 19).

Para que se iniciasse o movimento de valorização


das contribuições do africano foi necessária toda uma
história de entraves políticos, debates filosóficos e muitas
lutas, melhor visualizadas durante o século XX, pela ar-
ticulação de movimentos sociais, artísticos e educativos,
muitos deles encabeçados por mulheres negras em prol
da sua afirmação e de sua cultura.

O ponto central destas organizações tradicionais e


contemporâneas são os propósitos de libertação, busca
de liberdade de processos opressores: da escravidão,
do colonialismo, de capitalismo em suas mais diversas
formas de dominação, exclusão, exploração, discrimi-
nação racial, expropriação (SIQUEIRA, 2006, p. 165).

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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Embora a mulher negra tenha tido um papel decisi-


vo na constituição cultural deste país, atuando em várias
frentes de combatividade, a imagem que se propagou e
se propaga com muito sucesso ainda hoje é a da negra
escrava doméstica, subserviente e também a da mulata
“tipo exportação”. Isso se deu porque sua história – uma
história que não devia ser contada – foi suplantada inten-
cionalmente por intermédio de desapropriações teóricas.
As amas-de-leite, na relação com os filhos dos se-
nhores, influenciavam diretamente em sua educação, por
exemplo, a partir de sua comunicação, misturando vocá-
bulos africanos na língua portuguesa, o que culmina na
construção da fala destas crianças e mais tarde desembo-
ca no movimento fundamental da constituição da “língua
brasileira”.
Outra imagem de profunda representatividade no
cenário nacional até os dias atuais é a da negra cozinheira
que, na casa-grande, introduziu definitivamente elementos
genuinamente africanos na culinária brasileira, tais como:
o azeite de dendê, a pimenta-malagueta, o leite de coco, o
quiabo, o maior uso da banana e inovações na maneira de
preparar o peixe e a galinha. A maior contribuição destas
mulheres foi a utilização da técnica e condimentação afri-
canas na preparação de pratos já apreciados por brasilei-
ros brancos e indígenas; a farofa, o quibebe, o vatapá.
O domínio culinário da negra forra acabou por re-
presentá-la socialmente, mesmo que numa posição subal-
terna, por meio da comercialização de seus quitutes nas
ruas da cidade. A figura da quitandeira, que hoje é repre-
sentada pela baiana, assim como suas ancestrais, vende
suas iguarias nas ruas da Bahia e de outras cidades brasi-
leiras. Com essa atividade econômica, muitas delas pude-
ram prover suas famílias, que, com o fim da escravidão,
não tinham o apoio do homem negro.
Conforme Souza (2006), no final do século XIX, com
essa nova configuração na sociedade, que contava agora
com a liberdade dos escravos e com a proclamação de uma
78
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...

República, os homens negros se viram diante de uma bar-


reira: muitos imigrantes europeus e asiáticos vieram como
mão-de-obra especializada e tomaram o lugar antes destina-
do ao negro, que ficou à margem do mercado de trabalho,
restando a ele atividades artesanais e militares. Além disso,
devemos citar o fato de que esses imigrantes representavam
também o branqueamento da população brasileira, idéia
originária do “darwinismo” e sua concepção de evolução,
que viam o negro como uma raça inferior e ameaçadora,
até mesmo, para a economia de um país. Portanto devia ser
eliminada através deste branqueamento.
Neste novo contexto, a mulher negra continuou a
realizar serviços que antes já realizava: era empregada,
lavadeira, cozinheira, babá (ama-de-leite); trabalhos esses
oferecidos por baixíssimos “salários” nas casas de ex-se-
nhores. No entanto, foi através destas atividades que mui-
tas dessas corajosas mulheres conseguiram manter suas
famílias e com isso transmitir e manter suas tradições.
Colocadas à margem da sociedade, embora essen-
ciais para a formação do Brasil, as mulheres negras reali-
zam uma guinada em sua história porque reencontram no
terreiro de culto afro-brasileiro sua identidade, sua força,
sua ligação com os orixás e com a verdadeira história de
seu povo. Dentro dessa sociedade que a coloca sempre
em lugares inferiores, a existência do terreiro como lu-
gar de encontro com suas raízes e de envolvimento com
uma esfera de pertencimento estabelece a possibilidade
de uma construção de identidade pautada em valores an-
cestrais de luta e auto-afirmação.

Deve-se à maneira de ser das antigas escravas emanci-


padas o sucesso da permanência de valores e tradições
da cultura africana até os dias de hoje. Independentes,
elas eram o verdadeiro centro da família: tudo e todos
giravam em torno delas. Em sua maioria, mais ricas que
os homens, viviam com companheiros e pais sucessi-
vos de seus filhos.[...] Na cidade da Bahia marcaram

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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

presença com a força do trabalho ao ocupar ruas e


mercados com seus tabuleiros de quitutes. Boas comer-
ciantes, algumas enriqueceram e ostentaram seu suces-
so cobrindo-se de jóias e vestimentas finas. Foram elas
ainda que, na metade do século XIX, organizaram e
dirigiram às escondidas as cerimônias religiosas africa-
nas, conhecidas mais tarde pelo nome de Candomblé
(ECHEVERRIA e NÓBREGA, 2006, p. 30).

Sendo esta, uma religião primordialmente matriar-


cal, a mulher assume papéis centrais na produção de sua
cultura. Como sacerdotisa, transmissora do conhecimento,
tendo o domínio da cozinha, como griottes (mulheres que
cantam a história de seu povo e contam as trajetórias de
suas raízes para a comunidade do terreiro do qual faz
parte). Ela é também a portadora do conhecimento dos
elementos da natureza, das ervas em especial, assumin-
do o papel de curadora; é conhecedora dos mistérios e
segredos que envolvem a magia dos cultos aos orixás. É
também ekede, incumbida de cuidar da vida de sua mãe-
de-santo. E ainda conselheira e organizadora de sua co-
munidade.
É essa mulher, que é a presença viva da ancestrali-
dade incitada na oralidade, que repassa os valores do seu
povo para as novas gerações. A transmissão oral constitui
um traço marcante para a história de seu povo; a educação
no terreiro se dá de forma preferencialmente oral, através
da mãe-de-santo, que sabe, não apenas contar, mas inter-
pretar os acontecimentos vividos por seus ancestrais, que
agora servem de parâmetro para a configuração do grupo
dentro do terreiro, permitindo um movimento de intera-
ção entre as gerações.
Com uma trajetória de fé, luta e resistência, a mulher
negra foi traçando sua história em cima de valores ances-
trais e pôde assim, manter viva sua afro-ascendência. A
obstinação feminina na manutenção de seus valores, de
suas tradições, se encontrava também na escrava emanci-

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Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...

pada que mantinha sua família, quando tudo e todos gira-


vam em torno dela, que estava à frente desse movimento
de afirmação do espaço dos negros no país. Inclusive em
quilombos, articulando saídas, estratégias e organizando
o cotidiano daquele grupo.
As raízes históricas que possibilitam entender pos-
síveis evidências a respeito da Baixada Fluminense mere-
cem atenção especial, para que se possa contextualizar a
importância da cultura afro-brasileira advinda do viés reli-
gioso, especialmente, para esta região. Nos anos 70, com
o fechamento de locais religiosos de matriz afro-brasileira
no município do Rio de Janeiro, os terreiros que se encon-
travam principalmente nas favelas do Rio tiveram que bus-
car outros lugares para a sua prática religiosa, e a Baixada
Fluminense foi um deles, conforme as informações do site
www.favelatemmemoria.com.br.
Os terreiros espíritas nas favelas do Rio tiveram seu
auge entre os ano 40 e 60. Na década de 70, começaram
a fechar as portas nos morros para reabrir em cidades da
Baixada Fluminense, em áreas mais isoladas. Segundo al-
guns praticantes da umbanda e do candomblé, a lei do si-
lêncio, que proibia os batuques religiosos, ajudou a expul-
sar alguns desses centros. Os que sobraram, enfrentaram a
dura concorrência com os novos templos evangélicos...
Portanto, a concentração de terreiros e, por exten-
são, a presença da cultura afro-brasileira transmitida pelo
culto aos orixás passa a se concentrar e crescer, particular-
mente, no município de Nova Iguaçu.

Protegida por uma rígida lei do silêncio, praticada no


passado como se fosse crime e perseguida pela po-
lícia, a religião dos negros chegou ao Brasil para fa-
zer história. Uniu escravos e descendentes espalhados
pelo país com a força da fé e a obediência irrestrita
aos líderes espirituais, substitutos da família dispersa e
do governo que não era o deles. O povo da África no
Brasil encontrou no candomblé identidade, proteção

81
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

e apoio, um espaço próprio onde foi possível plantar


os fundamentos de seus deuses. (ECHEVERRIA e
NÓBREGA, 2006, p. 14).

As contribuições de matriz afro-brasileira advindas


do referencial mitológico da religião oferecem outras ba-
ses para o entendimento das relações dos sujeitos entre si
e com a natureza, um outro viés como referência para a
construção do conhecimento. Nesta perspectiva, através
das histórias dos orixás que correspondem aos mitos afri-
canos, temos diretrizes para a construção do conhecimen-
to que não admitem a soberania e domínio do homem
sobre a natureza, mas sua cumplicidade com ela.
As informações passadas pela transmissão oral e
que, certamente, estariam compondo o arcabouço teórico
do terreiro, são ouvidas, em um primeiro momento e res-
peitado o saber do mais velho, por conta de sua experiên-
cia e conhecimento, mas precisam ser transformadas em
práticas para se configurarem como aprendizado de fato.
O que, por um lado, nos lembra Mãe Beata de Yemonjá,
com seus contos de O caroço de dendê: a sabedoria dos
terreiros, transformados em prática do dia-a-dia e, em ou-
tra área de conhecimento, de cunho tecnológico, revela
Papert (1994), quando relata sobre sua experiência pesso-
al de aprender a fazer croissants seguindo corretamente
a receita, e afirma que para aprender é preciso colocar a
“mão na massa”, sentir sua temperatura, textura, ter o con-
tato direto com o que se faz: estar envolvido. Por outro
lado, todos os participantes compartilham dos ensinamen-
tos, quer sobre os orixás em seus preceitos, mitos e ritos;
quer sobre as ervas em suas aplicações e possibilidades.

Todo e qualquer membro de um terreiro conhece o


princípio da obrigação. Ele a cumpre não para obter
qualquer salvação (noção inexistente na cultura ne-
gra), qualquer remissão de pecado (noção também
ausente), qualquer esperança de uma vida melhor

82
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...

além-túmulo (idéia que igualmente não há), nem mes-


mo para pagar quaisquer “dívidas simbólicas”. Cum-
pre-se a obrigação para viver a intensidade da regra,
para ir ao encontro daquilo que atrai irresistivelmente
as coisas, os bichos, os homens, os deuses: o Destino
(SODRÉ, 2005, p. 109).

Quanto ao preconceito racial e social, cotidiana-


mente, as pessoas sentem-se mais à vontade em dizer que
são católicas, protestantes, ou de qualquer outra religião
do que revelar que são adeptas da religião de matriz afro-
brasileira. Isso ocorre porque visões e pensamentos pré-
formados que discriminam os negros ainda constituem
nossa sociedade, como tem sido amplamente mostrado
em estudos atualizados.

Ainda hoje, várias comunidades-terreiro enfrentam


perseguições de vizinhos e praticantes de outros cul-
tos religiosos. Podemos observar, em nosso dia-a-dia,
como essas manifestações de preconceito racial e re-
ligioso recaem sobre os cultos afro-brasileiros (MU-
NANGA e GOMES, 2006, p. 147).

A falta de clareza sobre a religião de matriz afro-bra-


sileira, culminando em “perseguições”, permanece norte-
ando atitudes e posicionamentos que não levam em conta
a complexidade cultural do nosso país da qual a religião
afro-brasileira faz parte. Segundo Morin,

...complexus é o que está junto; é o tecido formado


por diferentes fios que se transformam numa só coisa.
Isto é, tudo isso se entrecruza, tudo se entrelaça para
formar a unidade da complexidade; porém a unidade
do complexus não destrói a variedade e a diversidade
das complexidades que o teceram (1996, p. 188).

Aliás, as práticas educativas deveriam se preocupar


em adotar procedimentos que viabilizassem a compreen-

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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

são da história dos negros e a gama de suas contribuições


ao processo de construção subjetiva do brasileiro. Para
tanto, especialmente os alunos de ensino médio dos cur-
sos de formação de professores que irão lidar com alunos
das classes iniciais da trajetória escolar, deveriam estar em
contato com a gama de informações de a matriz afro-bra-
sileira. Isto porque

A visão de mundo nagô e sua compreensão de apren-


dizagem, nos permite encontrar pontos de ancoragem
com o olhar educacional pela perspectiva de conhe-
cer/aprender pela via da experiência comunitária que
provém de uma cultura não-disjuntiva. A aprendiza-
gem do terreiro é construída, principalmente, através
do respeito às tradições e um jeito peculiar de apren-
dizado e transmissão de saber que religa permanente-
mente o homem à natureza (SANTOS, 2006, p. 168).

Em resumo, pesquisar sobre os jovens da Baixa-


da Fluminense, levando em conta o que é decantado
pela mídia, incluindo sua concepção racial, acrescida
pelo atravessamento cultural afro-brasileiro advindo do
campo religioso, considerando suas informações míticas
como fonte para a construção do conhecimento, desta-
cando neste contexto o papel ativo da mulher em sua
participação no cenário político, econômico e divulga-
dor dos usos, costumes e tradições constituintes de nossa
brasilidade; percebendo como supostos futuros profes-
sores estão lidando com as diferentes modalidades de
saber, é olhar de um modo complexo para a investigação
científica, sustentada pelo entrelaçamento interativo su-
gerido pelo modelo teórico-práxico que admite o diálogo
das diversidades.

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Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...

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86
A incorporação da dimensão
racial do fenômeno educativo
às funções da universidade: origem
e atuação do Programa de Educação
sobre o Negro na Sociedade
Brasileira (Penesb)

Iolanda de Oliveira

A criação do Programa de Educação sobre o Negro


na Sociedade Brasileira data de agosto de 1995, quando foi
incorporado à estrutura da Faculdade de Educação da Uni-
versidade Federal Fluminense (UFF), por meio da Resolu-
ção n. 151/95, do Conselho de Ensino e Pesquisa da UFF.
Buscando dar destaque aos estudos sobre esta parte
estigmatizada da população, quatro pesquisadoras propu-
seram o projeto que, após a devida tramitação e apro-
vação em diferentes instâncias da universidade, teve sua
criação legitimada pelo órgão competente.
Além do comprometimento da equipe proponente
do projeto que deu origem ao programa com a pro-
moção da população negra, outros fatores contribuíram
para a sua criação. Entre estes, destaca-se o equívoco
da prevalência da classe social sobre a raça, muito di-
fundido na época e que persiste até os nossos dias, de
parte de alguns profissionais, comportamento de um
significativo segmento da população, aproximando-se
do senso comum. Para esses profissionais, os proble-
mas raciais se reduziriam a um subgrupo dos problemas
socioeconômicos que perpassam as sociedades caracteriza-
das pelo sistema capitalista de produção. Em conseqüência
87
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

da prevalência desta posição no âmbito da Faculdade


de Educação da UFF até o final da década de 1990, os
estudos sobre a população negra na época eram quase
inexistentes.
A situação descrita provocava nas poucas profis-
sionais pesquisadoras da área População Negra e Edu-
cação um certo desconforto, e em um significativo nú-
mero dos outros profissionais, suas questões de pesqui-
sa, bem como, sua militância acadêmica sobre o negro
em educação, causava estranhamento. Paralelamente,
tinha-se parte de professores desta unidade que se tor-
naram aliados do Programa, inclusive as diretoras que
atuaram no período de criação do Penesb (1994/1995),
que foi uma fase de transição da direção da unidade de
ensino aqui considerada. Os profissionais aliados atua-
ram como orientadores de monografias dos estudantes
do curso de pós-graduação lato sensu, com grande de-
dicação, contribuindo fortemente para a consolidação
do programa. O ambiente era antagônico, o que perma-
nece até os nossos dias, com a presença daqueles que
apóiam o Neab sem restrições, aqueles que ainda man-
têm restrições aos princípios que orientam o trabalho e
a daqueles que mantêm uma posição intermediária, isto
é, apóiam com restrições. Esta situação em que os anta-
gonismos coexistem é afirmada por Bourdieu no plano
individual; aqui eu que tomo a liberdade de estendê-la
para o plano coletivo.
É importante registrar que, precedendo o Penesb,
um grupo de estudantes de Ciências Sociais e de História
da UFF criou, com o apoio de alguns dos seus professores,
o Grupo de Trabalho André Rebouças, na década de 1970,
o qual teve uma expressiva atuação, nos anos 1970/1980,
discutindo, entre outros temas, a questão da educação da
população negra.

88
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

A incorporação do tema População Negra e


Educação às funções da universidade brasileira

Considerando que a educação brasileira está a exigir
substanciais transformações para promover a igualdade
entre a população negra e a branca e sendo tais transfor-
mações determinadas, predominantemente, pelas práticas
pedagógicas estabelecidas na relação professor-aluno, faço
também algumas considerações sobre referenciais teóri-
cos pertinentes à pesquisa e à formação dos profissionais
da educação com vistas ao atendimento satisfatório aos
grupos humanos diferenciados cultural e biologicamente,
particularmente os grupos negros.
Na elaboração da proposta do programa, procurou-
se dar destaque ao papel social da universidade, em con-
fronto com questões pertinentes à condição do negro no
setor educação, a fim de fundamentar a proposta. Assim,
procurou-se responder à questão: Qual o papel social da
universidade junto à educação da população negra?
Tendo a universidade brasileira as funções que in-
corporam a pesquisa, o ensino, a extensão e um papel
social a cumprir, decidiu-se, no início da década de 1990,
incorporar o tema População Negra e Educação no de-
sempenho das citadas funções, quando a proposta ainda
era muito incipiente.
O grupo de pesquisadoras, autoras da referida pro-
posta de incorporação da dimensão racial do fenômeno
educativo às funções da universidade, além de considerar
a necessidade de resistir ao reducionismo de parte de al-
guns docentes, propôs-se a construir uma universidade a
serviço da promoção da sociedade, incorporando, princi-
palmente à sua função investigadora, os problemas que a
sociedade enfrentava, para que a população pudesse, ao
acessar aos resultados das investigações realizadas, tomar
conhecimento dos elementos da sua situação, da forma
pela qual os problemas foram construídos através da his-
tória e, não raro, mantidos no mundo contemporâneo de
89
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

forma ressignificada. Considerava-se que, a partir daí, os


atingidos pelos problemas teriam condições de atuar para
eliminá-los, tornando a convivência social mais humana,
mais igualitária e menos injusta.
Atuando na Faculdade de Educação da UFF, con-
siderou-se legítimo que a universidade contemplasse, no
exercício de suas funções, a questão da educação da po-
pulação negra, que se apresentava como um dos mais
graves problemas da educação brasileira, por seus eleva-
dos índices de estrangulamento desde as séries iniciais
de escolarização, ou seja, a partir do ensino fundamental,
passando pelo ensino médio e atingindo a universidade,
onde a presença de negros é, ainda, a despeito das políti-
cas estabelecidas, muito reduzida.
Investigar o que ocorre no interior do sistema de
ensino brasileiro para explicar como tal estrangulamen-
to ocorre tornou-se tarefa urgente, urgência esta que se
fazia e se faz sentir também na disseminação dos conhe-
cimentos produzidos pelas pesquisas junto à população
em geral e particularmente aos profissionais da educação.
A apropriação de tais saberes, como instrumentos para
a ressignificação das suas práticas sociais e pedagógicas,
anuncia a possibilidade de colocá-las a serviço da promo-
ção da população negra.
Neste contexto adverso, alem dos estudos quantita-
tivos, emergem pesquisas de caráter qualitativo, que reve-
lam algumas circunstâncias em que a criança e o jovem
negro são colocados em situações que os desestimulam a
empenhar-se nas atividades escolares, havendo, alem des-
tes, ainda muitos espaços que estão a exigir investigações
esclarecedoras.
Entende-se que a universidade, para cumprir o seu
papel social, deverá colocar-se a serviço do bem-estar da
coletividade, principalmente buscando beneficiar os de-
serdados, resistindo à solicitada colaboração com o pacto
social que agrava a condição dos despossuídos. Neste sen-
tido, o Penesb colocou as funções da universidade a favor
90
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

da educação da população negra, como uma das parcelas


da população brasileira deserdada, tendo o objetivo que
se segue, como orientador de suas atividades: “Realizar
pesquisas sobre a população negra em educação e dis-
seminar tais conhecimentos, junto à população em geral
e principalmente junto aos profissionais da educação em
sua formação inicial e continuada.”
Priorizando a pesquisa sobre a população negra em
educação, foram realizadas inicialmente três investigações:
Desigualdades raciais: construções da infância e da juven-
tude, por Iolanda de Oliveira, a qual desvelou a evolução
do pensamento de crianças e jovens entre cinco e 14 anos,
sobre as desigualdades entre a população negra e branca
na habitação e no trabalho. Negros na universidade, que
foi realizada pela pesquisadora Moema de Poli Teixeira
em uma universidade pública do Rio de Janeiro e que
investigou as trajetórias acadêmicas de professores e alu-
nos negros. E Professoras negras na 1ª República: história
de um branqueamento, realizada pela pesquisadora Maria
Lúcia Rodrigues Muller.
De modo concomitante à realização de tais pesqui-
sas, realizaram-se cursos de formação continuada para
profissionais da educação que atuam na escola básica,
em nível de especialização e de extensão, incorporando
conhecimentos das seguintes áreas: História: História da
África e O Negro na História do Brasil; Relações Raciais no
Ensino da Língua e da Literatura; Relações Raciais e Religi-
ões de Matriz Africana; Pesquisa Educacional e População
Negra; Raça, Currículo e Práxis Pedagógica, Teoria Social
e Relações Raciais e Educação e Identidade Racial. Tais co-
nhecimentos são administrados atualmente em um curso
de pós-graduação lato sensu com um total de 390 horas e
em dois cursos de aperfeiçoamento, um presencial e outro
semipresencial, nos quais os mesmos conhecimentos são
condensados em 180 horas.
Ao mesmo tempo, realizam-se palestras e seminá-
rios com a participação de pesquisadores destas diferentes
91
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

áreas, abertos a toda a população a fim de esclarecer a


sociedade sobre a condição da população negra em geral
e sobre sua projeção, no interior do sistema de ensino,
provocando os estrangulamentos constatados, os quais
não raramente, são injustamente atribuídos à suposta in-
ferioridade inata da população atingida pelos processos
escolares excludentes. Em todas as suas formas de dis-
seminação dos conhecimentos produzidos sobre a ques-
tão, incluem-se a resistência negra ao longo dos anos e
suas conquistas, as políticas públicas para promoção da
igualdade racial, apontando fatos históricos e contempo-
râneos, destacando-se na atualidade a criação de órgãos
públicos e as diferentes formas de políticas de ação afir-
mativa vigentes.
O Penesb atua, também, na formação de pesquisa-
dores iniciantes, em nível de graduação, mantendo sob
sua orientação bolsistas negros vinculados ao CNPq e ao
Programa Bolsa Treinamento, mantido pela UFF. No iní-
cio da década atual, contou-se com bolsistas vinculados
ao Programa Políticas da Cor, vinculado ao Laboratório
de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Nesta atividade, realiza-se junto aos
bolsistas um acompanhamento acadêmico, com ênfase
na elaboração de suas monografias e uma formação pa-
ralela complementar sobre a população negra, com o
propósito de formar profissionais comprometidos com a
igualdade racial.
No programa de pós-graduação stricto sensu, o
Penesb atua na docência e na orientação de mestres e
doutores.
Sempre exercendo as três funções de modo conco-
mitante, realizou-se a pesquisa Cor e magistério, através da
qual procurou-se verificar se a discriminação da população
negra no trabalho atinge também o magistério, ou se nes-
ta profissão, excepcionalmente, a condição da população
negra é equiparável à dos brancos, pelas pesquisadoras
anteriormente mencionadas. Como medida esclarecedora
92
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

de alguns aspectos complementares desta pesquisa, foi re-


alizado o estudo Raça, demografia e indicadores sociais,
por André Augusto Pereira Brandão, que também realizou
uma pesquisa sobre a pobreza em periferias urbanas com
recorte racial e estudos sobre um curso de preparação de
negros para o ensino superior.
A professora Márcia Maria de Jesus Pessanha con-
cluiu um estudo sobre o negro na confluência da educa-
ção e da literatura e o professor Sérgio da Rocha e Souza
discutiu o pré-vestibular para negros como instrumento de
política compensatória.
No mesmo período, o professor Ahyas Siss realizou
a pesquisa Políticas de ação afirmativa: razões históricas.
Percebendo-se que o desconhecimento de parte da
UFF e da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso),
da distribuição racial do seu corpo discente, dificultava
a apresentação de propostas para o estabelecimento de
políticas para a eliminação da discriminação da popula-
ção negra no seu interior, realizou-se, em 2003, o censo
étnico-racial, sobre aproximadamente 65% dos estudan-
tes matriculados nas duas universidades. Este censo, co-
ordenado em Mato Grosso pela professora da UFMT e
pesquisadora associada do Penesb Maria Lúcia Rodrigues
Muller e pela professora Moema de Poli Teixeira, contri-
buiu para a tomada de consciência sobre o lugar que o
estudante negro ocupa no interior das duas universida-
des. A partir de tal estudo, foi elaborado um projeto de
reserva de vagas para negros na UFF, que ora se encontra
em processo de reformulação para a reapresentação aos
órgãos competentes.
No elenco de pesquisas realizadas destacam-se tam-
bém as seguintes: A prática pedagógica de egressos dos
cursos de pós-graduação lato sensu: afro-brasileiros e edu-
cação e A questão racial no projeto político-pedagógico das
escolas, por Iolanda de Oliveira; Censo étnico-racial na
UFF e na UFMT: alguns desdobramentos e A cor dos ves-
tibulandos da UFF, por Moema de Poli Teixeira; e Cor e
93
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

magistério no Rio de Janeiro, por Maria Lúcia Rodrigues


Muller.
Atualmente têm-se os seguintes eixos temáticos, com
as respectivas investigações:

PESQUISAS
EIXO TEMÁTICO PESQUISADORES
INCORPORADAS
A questão racial
A questão racial
e a formação de
nos cursos de Iolanda de Oliveira
profissionais da
licenciatura da UFF
educação
O impacto do
Moema de Poli
vestibular da UFF
Negros na Teixeira
nos candidatos
universidade Iolanda de Oliveira
negros nos anos
José Marcos da Silva
2004, 2005 e 2006
Imagens de
Negros e educação: professoras e alunos Maria Lúcia
história e memória negros na Primeira Rodrigues Muller.
República

Os diferentes eixos temáticos têm, em comum, refe-


renciais teóricos que tratam da construção sócio-histórica
do racismo e seus efeitos no imaginário social e individu-
al, bem como suas repercussões na sociedade contempo-
rânea. Entretanto, cada eixo temático tem também seus
referenciais teóricos particulares. Em ambas as situações, a
teoria não é um a priori definitivo, mas atua como hipóte-
se que pode ou não ser confirmada pelo universo privile-
giado pelas pesquisas ou ainda corresponder parcialmente
ao que está posto pelas teorias selecionadas para análise
dos dados.
Ao longo dos seus primeiros 12 anos, o Penesb con-
tou com o financiamento da Fundação Ford para a realiza-
ção das suas atividades. A partir do momento em que foi
criado o edital Uniafro, momento este que coincide com a
retirada da Fundação Ford, do setor educação, o programa
94
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

ficou desprovido de recursos para a pesquisa, porque o


órgão federal que oferece recursos para a pesquisa, CNPq,
até o momento não reconhece a pesquisa sobre a popu-
lação negra em educação como subárea. Além disso, a
ausência de pesquisadores comprometidos com a produ-
ção de conhecimentos na referida subárea da educação e
a inclusão significativa de outros pesquisadores entre os
bolsistas do CNPq trazem dificuldades para a realização
das investigações, o que conduz alguns professores a uti-
lizarem seus próprios recursos para garantir o desenvolvi-
mento desta atividade.
O edital Uniafro representa, sem dúvida, uma gran-
de conquista, porque torna disponível verba pública para
a realização das atividades dos Neabs. Entretanto, a situa-
ção atual ameaça a realização de pesquisas pelos Neabs,
o que é essencial para garantir a qualidade dos trabalhos
realizados. Sabe-se que, diante do conhecimento, o ser
humano tem os seguintes comportamentos: utilizar, criti-
car e produzir o conhecimento. Nas condições presentes
e com o expressivo número de Neabs emergentes, a pro-
dução de conhecimentos fica comprometida, correndo-se
o risco de reduzir os Neabs, a meros consumidores de co-
nhecimentos e no máximo críticos dos saberes produzidos
por outros, sem desenvolver a vocação primeira da uni-
versidade, que é o espaço de produção dos conhecimen-
tos, o espaço da produção teórica. Sem dúvida, que é de
extrema importância a preservação da relação de unidade
teoria-prática e para isto “o fazer” deverá estar atrelado à
produção teórica, o que justifica o comprometimento dos
Neabs com a formação de profissionais da educação bási-
ca e com a produção e disseminação de materiais didáti-
cos destinados a este nível de ensino. É urgente, portanto,
que de modo paralelo às atividades de ensino e extensão,
tenhamos o necessário apoio financeiro para a realização
de pesquisas.

95
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

A disseminação de saberes
por meio de publicações

A mídia escrita é também uma das formas privilegia-
das pelo Penesb para a disseminação de conhecimentos
pertinentes à sua área de atuação. Recorreu-se primeira-
mente à publicação por meio de um dos periódicos da
UFF, Estudos e Pesquisas e, posteriormente, de modo pa-
ralelo à publicação de livros sobre suas diferentes produ-
ções, criou-se um periódico próprio, o Cadernos Penesb,
publicado anualmente, estando com seu nono número em
fase de preparação.

Formação de profissionais da educação para


a educação das relações raciais: fundamentos
teóricos dos cursos ministrados pelo Penesb

Entende-se que os projetos educacionais destinados


à democratização do acesso e da permanência de estu-
dantes negros em todos os níveis de ensino têm estreita
relação com a atuação dos profissionais que exercem suas
funções na relação direta com o aluno. É no cotidiano
escolar que as reformas educativas concretizam-se ou se
dão as diferentes formas de resistência às mesmas. É este
o motivo pelo qual o Penesb enfatiza os cursos de forma-
ção continuada de profissionais que atuam em estabeleci-
mentos de ensino, em contato direto com os estudantes,
atribuindo-se, também, fundamental importância à forma-
ção inicial em nível de graduação.
A Conferência Internacional de Durban e o movimen-
to negro brasileiro ao longo de sua história têm destacado
em suas propostas e reivindicações a educação da popula-
ção negra, enfatizando, portanto, a diversidade racial.
Os efeitos da atribuição de significados sociais à
diversidade racial, cultural e biológica, que hierarquizam
a humanidade, provocando as desigualdades raciais, são
96
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

claramente constatados por meio das denúncias, de ca-


ráter primeiramente político-social e posteriormenteaca-
dêmico.
Esses aspectos particulares decorrentes da diversi-
dade humana e seus efeitos na sociedade e na educação
estão a exigir uma formação dos profissionais da educa-
ção, que dê conta da eliminação desse problema social
que atinge não só a sociedade brasileira, mas a toda a
humanidade.
Neste artigo, destaco aspectos que considero, na
minha visão de professora/pesquisadora, condições ne-
cessárias a uma atuação profissional que contribua para
recuperar a dignidade da população negra por meio do
respeito que lhe é devido, o qual foi colocado à margem
das relações inter-raciais. Tais aspectos orientam não só as
pesquisas em desenvolvimento neste eixo temático, mas
também a formação que é oferecida pelo Penesb aos pro-
fissionais vinculados ao programa em sua formação inicial
e continuada.
Sem pretender esgotar as teorias inerentes ao tema
proposto, destaco os seguintes pontos:
• Formação fundamentada em uma pedagogia pro-
gressista, comprometida com a promoção da humanidade
em sua diversidade.
• A relação teoria-prática na formação do profissio-
nal da educação.
• A questão dos valores na formação do profissional
da educação.
• A formação dos profissionais da educação na le-
gislação brasileira: possibilidades de reversão das desi-
gualdades raciais.
Nos três primeiros itens, discuto a fundamentação
teórica que orienta as pesquisas no referido eixo temático
e os cursos ministrados pelo Penesb.
No quarto item, faço uma apreciação de aspectos
da Lei de Diretrizes e Bases, que tratam da formação de
profissionais da educação diante da necessidade de uma
97
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

atuação satisfatória com os grupos discriminados, em par-


ticular com os grupos negros.

Formação fundamentada em uma pedagogia


progressista, comprometida com a promoção da
diversidade humana

Cabe aqui fazer algumas considerações sobre o ca-


ráter tridimensional da formação dos profissionais de edu-
cação baseadas em Antônio Joaquim Severino:
A dimensão dos conteúdos que está vinculada à
área de formação privilegiada pelo formando; são conhe-
cimentos específicos oriundos de uma determinada área
de estudos a partir do seu objeto particular.
Nesta dimensão, os conhecimentos a serem minis-
trados em cada área devem orientar-se por uma dupla
classificação:
- Conhecimentos que o formando deverá ministrar
aos destinatários do seu trabalho, que deverão incluir os
conhecimentos relativos ao segmento social negro incor-
porados pela respectiva área de conhecimentos objeto da
formação profissional. Não é admissível, por exemplo,
que, na formação do licenciando em história, não sejam
estudados os conteúdos relativos à História da África e à
História do Negro no Brasil, com destaque para o ideal
de branqueamento, como invenção particular do racismo
brasileiro.
- Conhecimentos para ampliação e aprofundamento
da área de estudos objeto da respectiva formação, a fim de
que o profissional em formação tenha melhores condições
para selecionar e manipular os conteúdos de sua área que
sejam socialmente relevantes para os seus futuros estu-
dantes e para que possa ultrapassar o estágio de mero
utilizador de conhecimentos já produzidos. Ultrapassando
este estágio, o futuro profissional deverá também ter uma
atitude crítica diante dos referenciais teóricos disponíveis,
98
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

pertinentes ao seu trabalho e ultrapassá-los quando for o


caso, por meio da produção de novos saberes.
A ampliação e o aprofundamento aqui considera-
dos, aliados a uma sólida formação pedagógica progres-
sista ampla, darão ao profissional condições de atuar com
liberdade e competência na sua área de conhecimentos
e conseqüentemente de averiguar a sua dimensão racial
e os conteúdos a ela pertinentes, que deverão ser sele-
cionados na elaboração e desenvolvimento dos currículos
escolares sob sua responsabilidade.
Tendo apenas uma visão limitada e superficial da
área de conhecimento com a qual trabalha, o profissional
fica impedido de circular com liberdade, como sujeito on-
tocriativo no seu campo de conhecimentos, e de descobrir
o potencial do mesmo para eliminar ou pelo menos redu-
zir os problemas raciais vigentes.
- a dimensão pedagógica deverá garantir a formação
didático-pedagógico que vai dar a esse profissional o do-
mínio de conhecimentos e habilidades que caracterizam o
profissional da educação, assegurando-lhe condições de
cumprir o seu papel profissional junto à sociedade a que
a educação se insere.
Nesta dimensão, o profissional deverá adquirir a ha-
bilidade de fazer a mediação entre os conhecimentos a se-
rem ministrados ao aluno, manipulando-os para dar-lhes a
forma didática adequada aos seus destinatários para a sua
assimilação.
É ainda nesta dimensão que, orientado pela concep-
ção progressista de educação, o profissional deve adquirir
a capacidade de selecionar, no acervo cultural disponível,
os conhecimentos socialmente relevantes para promover
os estudantes, devendo atentar para os saberes sobre a
população negra em uma sociedade caracterizada pela
diversidade racial, cultural e biológica, cujos significados
inventados socialmente deram origem a preconceitos, este-
reótipos e discriminações. Além de atentar para os aspectos
citados, no exercício de sua função, o profissional em for-
99
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

mação deverá estar atento às diferentes formas de resis-


tência negra que se dão de modo paralelo à sua deserção
social. Entretanto, esta proposta só é realizável dentro de
uma concepção pedagógica progressista, que ultrapasse
as posições baseadas em um marxismo ortodoxo, cuja
percepção das relações de poder não se dá para além das
denominadas “classes sociais”.
A dimensão das relações situacionais em que o autor
em questão considera as questões existenciais dos sujeitos
envolvidos no processo educativo, em minha opinião, está
atrelada à teoria pedagógica progressista, que pressupõe
uma estreita relação da educação com a sociedade, com
as práticas sociais dos sujeitos.
As três dimensões, devidamente articuladas e de-
senvolvidas sem superposição, irão garantir a formação
satisfatória do profissional considerado. Entretanto, o
tema aqui proposto exige um destaque especial da di-
mensão pedagógica. Cabe, portanto, considerar o que
é a pedagogia, qual o seu âmbito e objeto, e situar a
pedagogia progressista, por mim denominada ampla, no
âmbito das diferentes concepções deste campo de co-
nhecimentos.
A pedagogia é uma área de conhecimentos multir-
referencial, que incorpora aspectos filosóficos e científicos
sobre educação, abarcando também as práticas educativas
e os saberes produzidos a partir da ação pedagógica. Seu
objeto é, portanto, o fenômeno educativo, a partir do qual
são produzidos saberes de caráter filosófico e científico,
os quais devem contribuir para reorientar as políticas e
práticas educativas.
Tratando-se da docência, a didática ganha um espa-
ço importante, por ser uma área científico-filosófica que
tem a ação docente como objeto. Tal qual a pedagogia, a
didática é uma área de conhecimento teórico-prática com
múltiplas referências.
Ao longo dos séculos, foram desenvolvidas teorias
em torno do fenômeno educativo, sendo destacadas as
100
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

teorias pedagógicas denominadas: tradicionais, liberais, e


progressistas.
As teorias tradicionais, tendo como um das suas ca-
racterísticas a desvinculação completa da educação com
a realidade social vigente, trata os conteúdos como fins
em si mesmos. Esta teoria, ainda evidenciada em práticas
contemporâneas descontextualizadas, não se prestou para
tratar da diversidade humana pelo seu caráter estático,
através da utilização de modelos desvinculados da vida
das crianças e dos jovens.
A concepção pedagógica liberal, embora incorpore
entre outras, a concepção da escola nova, que estabelece
a relação com o contexto social dos alunos, se aplicada
à formação de profissionais da educação, não tem ele-
mentos para contemplar a diversidade humana porque
sendo liberal e espontaneísta, não tem compromisso com
a transformação social. Seu propósito, através do estudo
do meio, é a adaptação, o ajustamento do educando à
sociedade.
Resta-nos a pedagogia progressista como única con-
cepção pedagógica que contém os elementos necessários
a uma atuação comprometida com a transformação da so-
ciedade e, portanto, com a eliminação de qualquer tipo
de discriminação. Cabe ressaltar, entretanto, que, dentro
da pedagogia progressista, a conhecida pedagogia crítico-
social dos conteúdos, considerando as relações de poder
inerentes apenas às classes sociais, com efeitos negativos
na educação, é reducionista, não possibilitando ao edu-
cador uma formação que lhe permita considerar as rela-
ções de poder exercidas entre outros grupos para além
das “classes sociais”.
Consideramos, portanto, neste trabalho, o potencial
da pedagogia progressista, que não se restringe a analisar
as relações de poder apenas entre os segmentos sociais
diferenciados por seu poder econômico, mas aquela pe-
dagogia progressista que, caracterizada pela amplitude,
considera as relações de poder exercidas entre todos os
101
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

grupos humanos, podendo-se particularizar aqui o seu po-


tencial para tratar da questão racial negra em educação.
Snyders (1974) faz considerações sobre as pedago-
gias tradicional e nova, precedendo uma terceira alter-
nativa, a pedagogia progressiva, teoria privilegiada neste
trabalho. Critica a pedagogia tradicional por ser baseada
em modelos; metodologia que consistia em conduzir o
aluno às grandes realizações da humanidade na literatura,
nas artes, reflexões e demonstrações elaboradas e conhe-
cimentos científicos postos à disposição da humanidade
por meio de métodos seguros. Tais modelos, destinados a
guiar os estudantes, eram distantes do seu cotidiano, e, no
entanto, os alunos deveriam guiar-se por eles. Snyders con-
sidera que o aluno, neste caso, não é passivo, porque há
uma busca a partir dos modelos que lhe são oferecidos.
Além da não passividade, Snyders aponta outros as-
pectos positivos deste tipo de pedagogia e, a despeito de
suas limitações, salienta a possibilidade da originalidade, a
alegria, a apreciação da beleza e da verdade, a experimen-
tação do progresso científico.
Concluo, a partir deste autor, que, apesar da falta
de compromisso da pedagogia tradicional com a transfor-
mação social, a proposta atual de referências negras na
literatura, nas artes e mesmo em se tratando de trajetórias
de vida, consideradas como patrimônio cultural, são uma
herança positiva da escola tradicional, incorporada pela
pedagogia progressista.
Visando à superação das falhas da educação tra-
dicional, surge, no século XIX, o movimento da escola
nova cujo aspecto essencial nesta superação é a articula-
ção entre a educação e a vida do estudante, apesar de ser
uma pedagogia liberal, que não incorpora a transformação
social, mas mantém a proposta de permanência do que
está posto na sociedade. Este movimento dá ênfase à in-
fluência dos fatores sociais na educação, mas mantém o
aspecto relativo ao ajustamento/adaptação do estudante à
sociedade vigente.
102
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

Snyders aponta alguns aspectos positivos desta con-


cepção de educação, estando entre estes: a alegria do pre-
sente, de ser criança, o privilegiar os interesses dos estu-
dantes, liberdade, iniciativas, atividades grupais, relação
entre a cultura e a existência.
Eliminando os modelos, a escola nova tem o demé-
rito de fazer a criança e o jovem permanecerem em seu
próprio mundo, sem a referência às grandes obras e aos
grandes autores. Há nesta pedagogia um espontaneismo
extremamente prejudicial à formação dos estudantes, pela
desvalorização do mundo adulto.
A concepção de escola progressista não abandona
totalmente as duas anteriores, mas se apropria de seus
aspectos positivos e os atualiza. Retomam-se os mode-
los, mas aqueles que se relacionam como o mundo do
estudante. Assim, faz sentido tomar a trajetória de vida
de pesquisadores negros como patrimônio cultural a ser
utilizado pela educação, no sentido de encorajar a criança
negra com trajetórias semelhantes a ter um nível de as-
piração elevado, ao mesmo tempo que tais modelos vão
inspirar na criança branca, o respeito que é devido ao
negro. Assim também, outros modelos significativos con-
tidos na literatura, nas artes, na história e em outras ciên-
cias, são positivos no trabalho educativo a ser realizado,
tendo em vista a recuperação da dignidade da população
negra. Há neste caso a conciliação de aspectos da escola
tradicional e da nova: os modelos e a alegria do presente
em uma terceira concepção da educação que visa educar
para a construção de um novo mundo, para o que as duas
anteriores não atentavam, sendo este um dos propósitos
da formação dos profissionais da educação na atualidade,
que, pela legislação atual, deverá incorporar aspectos rela-
tivos à população negra na atividade profissional.
Snyders denomina esta concepção de “pedagogia
de esquerda” e afirma: “uma pedagogia de esquerda é
fundamentalmente uma pedagogia que enuncia idéias de
esquerda, transmite conteúdos de esquerda, suscita uma
103
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

visão um método, atitudes de esquerda” (SNYDERS, 1974,


p. 193). E acrescenta que “o ponto decisivo é o conteúdo
das idéias adquiridas: o racismo, a divisão da sociedade
em classe, as condições e as perspectivas que põem fim
à exploração”, à discriminação racial entre outras, sendo
essencial enfatizar as experiências dos alunos. Em uma
concepção pedagógica de direita conforme a tradicional
e a nova, e mesmo em uma concepção pedagógica de
esquerda marxista ortodoxa, torna-se impossível formar
profissionais comprometidos com a eliminação das rela-
ções raciais verticalizadas.
Referindo-se à concepção pedagógica progressista
aqui privilegiada, Tomaz Tadeu da Silva a denomina de
pós-crítica por ultrapassar as limitações da teoria progres-
sista crítica que se restringe ao estudo da projeção das
desigualdades de classe no sistema de ensino. As teorias
denominadas pós-críticas incorporam, segundo o au-
tor, aspectos positivos das teorias tradicionais e críticas
e acrescenta aspectos inovadores como: “identidade, al-
teridade, diferença, subjetividade, significado e discurso,
saber, poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia,
sexualidade, multiculturalismo” (SILVA, 1999, p. 17).
É, portanto, a concepção pedagógica progressista
ampla que deverá orientar as pesquisas e a formação de
profissionais da educação com vistas a uma atuação satis-
fatória com a diversidade racial brasileira.

A relação teoria-prática na formação


do profissional da educação

A teoria e a prática são dois aspectos que não se


reduzem um ao outro, mas mantêm uma unidade entre si,
sendo que os dois aspectos caracterizam a práxis: a teoria,
o seu aspecto ideal e a prática o seu aspecto real.
A práxis é um conceito de extrema relevância na
formação do educador, porque conjuga teoria e prática
104
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

de maneira intencional . Segundo Kosik, a praxis é o po-


der e a arte de manipular os homens e/ou as coisas de
maneira deliberada para transformar-lhes.Esta arte e este
poder devem ser garantidos ao profissional da educação,
para que tenha condições de colocar a educação a serviço
da promoção de todos os estudantes, a despeito de sua
diversidade, quer seja cultural e/ou fenotípica.
Na formação do educador, teoria e prática têm uma
dupla função: a de garantir tal unidade no planejamento
e na dinâmica curricular dos cursos de licenciatura e de
pedagogia e a de desenvolver, nos formandos, a capacida-
de de transferir tal atuação quando em exercício de suas
atividades profissionais.
Recorrendo à filosofia, verifica-se que a teoria é
considerada uma construção especulativa do espírito com
conseqüências próximas a princípios; a prática, é vista
como atividade transformadora do ambiente.
A teoria e a prática, sua unidade enfrenta problemas
mais acentuados nos campos de conhecimento que inci-
dem mais diretamente na prática social: educação, direito,
serviço social, medicina...
Na elaboração e desenvolvimento dos currículos de
formação de profissionais da educação, observa-se certos
equívocos em face da relação aqui tratada. Para compre-
endê-las e conseqüentemente alterá-las, apresentamos de
modo sintético as formas de relacionamento teoria-prática.
A visão dicotômica separa uma e outra, consideran-
do a sua plena autonomia e, portanto, a sua completa
separação. Decorre desta posição a visão dicotômica dis-
sociativa e a visão dicotômica associativa..
A visão dicotômica dissociativa afirma a separação
entre o pensar, refletir, planejar e o fazer, agir, executar.
Encontram-se no cotidiano escolar afirmativas que evi-
denciam a presença desta teoria nas falas de professores,
tais como: “na prática a teoria é outra...”. Pode realmente
ocorrer que uma dada teoria não dê conta de explicar uma
determinada realidade, mas isto não significa que a teoria
105
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

deve ser abandonada, mas sim recriada, desestabilizada


e/ou ainda substituída por outra que contenha elementos
capazes de explicar a realidade considerada, seja esta ou-
tra já disponível ou criada pelo profissional da educação,
em moldes rigorosamente científicos. Nesta visão, cabe
aos teóricos pensar, planejar e aos práticos executar, agir.
A prática atrapalha aos teóricos e a teoria, atrapalha aos
práticos.
Esta forma de relacionamento teoria-prática é oriun-
da da sociedade capitalista de produção, que separa teoria
e prática. Esta posição é assumida em várias instâncias
da educação, evidenciando-se desde o cotidiano escolar,
que atribui a elaboração do planejamento aos superviso-
res e orientadores, até o Ministério da Educação e Cultura,
que em propostas educativas, reduzem os profissionais
da educação, a meros executores de propostas elabora-
das em gabinetes, sem a participação dos que atuam nas
escolas. Digo escolas porque, sem o envolvimento dos
profissionais que atuam neste nível, nenhuma proposta
educacional torna-se realidade.
A visão dicotômica associativa admite a teoria e a
prática, não como atividades opostas e sim justapostas.
Nesta forma de relacionamento, a teoria precede a práti-
ca, sendo a prática uma aplicação da teoria. A prática é
relevante na medida em que mantém fidelidade aos parâ-
metros da teoria. Quando há desvios, é a prática que deve
ser alterada. Baseia-se nesta concepção a visão positivo-
tecnológica, porque o percurso é da teoria à prática.
O domínio da realidade depende dos modelos teóri-
cos, normas e regras oferecidos pela teoria. As conseqüên-
cias desta concepção positivista, segundo Marilena Chauí,
são três: a teoria é a organização sistemática e hierárquica
das idéias sem nenhuma tentativa de explicar e interpretar
a realidade; estabelece uma relação autoritária de coman-
do pelos teóricos e obediência pelos práticos; a prática
é considerada mera técnica de aplicação automática das
normas, regras e princípios, vindos da teoria.
106
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

Esta forma de relacionamento é encontrada em


grande número dos currículos de licenciatura, nos quais
os conhecimentos teóricos da área de formação do su-
jeito precedem a parte pedagógica, na qual se dá como
culminância dos cursos a prática de ensino e/ou o está-
gio supervisionado. Percebe-se nestes casos, claramente, a
justaposição teoria-prática nos moldes aqui descritos.
Uma terceira forma de relacionamento centra-se na
união teoria-práticas, não como aspectos idênticos, mas
simultâneos e recíprocos, gozando ao mesmo tempo de
autonomia e de dependência. Mais uma vez recorro a Ma-
rilena Chauí, que afirma ser a relação teoria-prática, simul-
tânea e recíproca do seguinte modo: a teoria nega a prá-
tica enquanto algo imediato, afirmando-a como atividade
socialmente produzida e –produtora – da existência social.
Trata-se, segundo a teoria, de processos históricos cons-
truídos pelos homens, os quais determinam as suas ações;
a prática nega a teoria como saber autônomo e separado,
como idéias puras, rejeitando a postura idealista. Nega a
teoria como um saber acabado, que guiará e comandará
de fora a ação dos homens; nega-a como um saber separa-
do do real que pretende governá-lo; ela é o conhecimento
das condições reais da prática existente, de sua alienação
e transformação.
Nesta visão, teoria e prática são dois componentes
indisssolúveis da práxis, cuja dissolubilidade só é possível
por abstração. Ao tomar a concepção progressista ampla
da educação para fundamentar uma formação compro-
metida com a questão racial negra, tem-se o aspecto ideal
da práxis, sendo os diferentes cursos que se orientam por
esta teoria o lado material ou real da práxis educativa.
A prática é fonte da teoria. A teoria nutre-se da prá-
tica como objeto de observação, análise, interpretação e
transformação. A prática é anterior a teoria, sendo o seu
fundamento e critério de verdade. A teoria, sendo a expli-
cação da realidade, goza, entretanto, de uma certa auto-
nomia em relação à mesma, porque originando-se de um
107
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

determinado universo empírico, pode servir de fundamen-


tação para práticas cujos componentes são incorporados
pela teoria anteriormente produzida.
Nos currículos dos cursos fundamentados nesta for-
ma de relacionamento, a teoria e a prática se articulam,
sendo simultâneas e indissolúveis. Como exemplo des-
ta relação, vivencio o currículo do Curso de Pedagogia
da UFF, que, planejado para promover a concomitância
destes dois aspectos da práxis, incluiu, desde o primeiro
período como obrigatória, a disciplina Pesquisa e Práti-
ca Pedagógica, que, anunciando esta postura, contem na
prática alguns equívocos que comprometem este aspecto
da sua fundamentação teórica, ainda que representando
um grande avanço na formação dos profissionais da edu-
cação.
A visão de unidade teoria-prática na formação dos
profissionais da educação, para a diversidade racial, é uma
condição necessária, mas não suficiente. È preciso que,
além de privilegiar esta relação, os cursos incluam nos
currículos as questões raciais. Por outro lado, se este tipo
de relacionamento, por si só, não dá conta das questões
raciais em educação, os outros tipos de relacionamento a
inviabilizam.
A formação de profissionais da educação deverá
garantir não somente uma atuação em que os objetivos
previamente determinados sejam alcançados, mas também
uma formação como pesquisadores. Neste sentido, é pre-
ciso que os níveis de produção de conhecimentos sejam
do domínio dos formandos, os quais deverão atuar em
coerência com os mesmos.
A produção de saberes, isto é, a pesquisa acadêmi-
ca, quando se caracteriza pela empiria, tem os seguintes
níveis ou graus:
1 - Percepção sensível, que consiste no contato com
o universo selecionado para estudo, podendo ser, no caso
do profissional da educação, algum aspecto da dinâmica
escolar e/ou do ensino. Nesta fase, coletam-se e registram-
108
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

se cuidadosamente todas as ocorrências, para análise e


interpretações posteriores. Este é o momento do contato e
registro dos fenômenos educativos que estão ocorrendo.
Este nível não permite um conhecimento imedia-
to do fenômeno em sua totalidade, suas contradições e
outros aspectos da realidade considerada. A essência dos
fenômenos só pode ser compreendida pelo pensamento
lógico, racional, a partir do próprio fenômeno. Todos os
conhecimentos autênticos resultam da experiência direta,
não sendo concebida a sua desvinculação da prática. Sel-
ma Garrido Pimenta afirma a necessidade de sólidas bases
empíricas para a produção do bom conhecimento.
2 - Análise e interpretação dos dados coletados, à luz
de teorias pertinentes ao objeto de estudo da pesquisa. É
o momento da elaboração de conceitos, a partir da análise
dos graus de freqüência com que os fenômenos ocorrem,
seu maior ou menor grau de estabilidade, estabelecimento
das relações lógicas e ratificação de teorias existentes e/ou
elaboração de novas teorias.
Comprova-se aí, a precedência da prática em rela-
ção à teoria e a importância da primeira para a elaboração
de saberes, o que é indispensável para que a educação
seja revisitada e ressignificada.
Tratando-se da pesquisa, reafirmamos a nossa po-
sição no sentido de que o ato de pesquisar não seja ex-
clusivo do profissional da educação superior, mas há ne-
cessidade de criar condições para incluir esta atividade no
cotidiano dos profissionais da escola básica. Sobre este
assunto, Paulo Freire afirma:

Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino.


Esses fazeres se encontram um no corpo do outro.
Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando.
Ensino porque busco, porque indaguei, porque inda-
go e me indago. Pesquiso para constatar, constatando,
intervenho, intervindo, educo e me educo. Pesquiso
para conhecer o que ainda não conheço e comunicar
ou anunciar a novidade (FREIRE, 1996, p. 32).
109
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Ter uma formação que permita ao profissional co-


nhecer os seus alunos, particularmente o aluno negro, sua
cultura, seus conhecimentos e valores acumulados, e per-
mita principalmente averiguar o tipo de relacionamento
estabelecido pelo sistema escolar com este grupo racial, é
um direito que, raramente, é assegurado aos profissionais
considerados.
Privilegiada esta forma de relacionamento teoria-
prática, os profissionais devem adquirir a capacidade de
realizar o percurso prática-teoria-prática, fazendo o recor-
te racial em todo o seu trabalho. Isto significa que os mes-
mos devem manter-se vigilantes em relação ao papel que
a escola está desempenhando junto à população negra e
alterá-lo, nos casos em que a educação esteja a serviço da
sua degradação.

A questão dos valores na formação


dos profissionais da educação

Ao tratar da conceituação de pedagogia, nas pági-
nas iniciais deste estudo, demos destaque não somente ao
seu caráter científico, mas também ao filosófico, porque
reduzir o campo de conhecimentos pedagógicos somente
à ciência é negar o seu caráter filosófico, através do qual
são determinados os valores e os fins da educação.
É através da sua dimensão filosófica que a pedago-
gia vai determinar o que deve ser a educação e, portanto,
determinar os valores que serão considerados no trabalho
pedagógico.
É importante destacar que os conhecimentos são in-
corporados pela racionalidade e os valores pertencem à
área afetiva. Entretanto, a racionalidade não pode estar
desvinculada da afetividade e esta necessariamente incor-
pora o aspecto racional.
A questão dos valores, entretanto, têm sido negli-
genciadas pela educação, o que leva muitos profissionais
110
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

à indiferença diante de posturas racistas, quer sejam de


caráter emergencial ou sistemático. Ninguém nasce com
valores. Eles são aprendidos ao longo da nossa história de
vida, e a educação básica é um dos lugares privilegiados
para essa formação. Para tanto, os profissionais da educa-
ção precisam ser preparados.
Os valores decorrem de uma postura de não-indi-
ferença diante de determinados fenômenos. A educação
da população negra está a exigir uma postura de não in-
diferença de parte dos profissionais da educação em re-
lação às desigualdades de condições e de oportunidades
a que este grupo é submetido. Cabe questionar, diante
deste quadro, qual o papel da educação? Qual é o papel
social dos profissionais da educação? Que tipo de serviço
deverão prestar à sociedade? Estas questões precisam ser
respondidas pelos profissionais em questão, a partir da
formação recebida.
Recorrendo a vários conceitos de educação, perce-
bemos que todos eles privilegiam a promoção humana e,
segundo Dermeval Saviani, promover o homem signifi-
ca, tornar esse “homem cada vez mais capaz de conhecer
os elementos de sua situação, para intervir nela, transfor-
mando-a, no sentido de uma ampliação da liberdade, de
comunicação e colaboração entre os homens” (SAVIANI,
1986, p. 41).
É importante que os profissionais da educação con-
frontem a citada finalidade com a dinâmica escolar, para
averiguar se o espaço escolar está realmente promovendo a
população negra, ou se está provocando a sua degradação.
Recorrendo mais uma vez a Saviani, encontramos
na filosofia da educação respaldo para a nossa proposta
de inclusão dos estudos sobre os valores em educação na
formação de seus profissionais. Segundo o referido autor,

Os valores indicam as expectativas, as aspirações que


caracterizam o homem em seu esforço de transcender-
se a si mesmo e à sua situação histórica; como tal,

111
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

marcam aquilo que deve ser em contraposição aquilo


que é. A valoração é o próprio esforço do homem
para transformar aquilo que é, naquilo que deve ser
(SAVIANI, 1986, p. 41).

O sistema educacional brasileiro está a exigir uma


formação de profissionais, que, privilegiando certos valo-
res em educação, transformem a realidade educacional do
negro brasileiro, realizando o percurso entre o que é e o
que deve ser a educação, isto é, da degradação constatada
à promoção humana. Neste sentido, as políticas em nível
macro deverão exercer o seu papel, no sentido de garan-
tir o cumprimento de aspectos legais inerentes à questão
e que não têm recebido dos órgãos oficiais brasileiros o
devido investimento.
A questão dos valores nos leva a questionamentos
tais como: existem valores universais, ou todos os valores
são relativos? Que valores privilegiar em educação?
Sabe-se que as sociedades têm valores particulares
e que todas as vezes que se eleva o particular ao nível de
universal, hierarquiza-se os grupos sociais, tal qual ocor-
reu com a Europa em relação aos outros continentes, es-
pecialmente com a África.
Entretanto, há certos valores que parecem ser uni-
versais, como a igualdade e o respeito, que devem perpas-
sar as relações entre todos os grupos humanos. O respeito
incorpora necessariamente a não-violência física e moral,
as quais atravessam toda a educação sem a devida postu-
ra de um significativo número de profissionais e mesmo
dos níveis de administração de ensino mais elevados. Se
por um lado assiste-se à indiferença dos educadores no
nível da escola, diante dos apelidos pejorativos aos alunos
negros, por outro, assiste-se, por exemplo, à cooptação
das nossas crianças e jovens para o tráfico de drogas no
interior das escolas e/ou em suas mediações sem a toma-
da de medidas necessárias de grande parte das instân-
cias superiores de administração dos sistemas de ensino,

112
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

que não acionam os órgãos de segurança para impedir


tal ocorrência, que consiste em uma violência brutal aos
nossos estudantes, reduzindo a expectativa de vida dos
nossos jovens negros.
Sem pretender hierarquizar os valores, consideramos
que uma educação para a promoção humana não pode
deixar de priorizar a igualdade e o respeito como valores
universais, a despeito da origem ocidental da igualdade
como princípio.
Para tratar da igualdade, é preciso contrapô-la às
desigualdades sociais e raciais existentes, porque, con-
cretamente, a humanidade só conhece as desigualdades,
sendo a igualdade uma abstração, uma aspiração, cujos
esforços para alcançá-la resultaram em sociedades menos
desiguais.
Segundo Turner, a persistência dos escritos tipica-
mente sobre as desigualdades em sociologia indica o seu
prolongamento na sociedade capitalista contemporânea,
parecendo ser um tanto óbvia no campo da política social
e da pesquisa. Por outro lado, a igualdade é um princípio
das lutas políticas dos movimentos sociais modernos, sen-
do um dos seus componentes, ao contrário da desigualda-
de, cuja história é tão antiga quanto a humanidade.
O privilegiar a igualdade em educação exige a de-
terminação da concepção de sociedade e de homem pri-
vilegiada, sendo este tipo de educação incompatível com
os propósitos neoliberais de mundialização do capitalis-
mo, “entendido como processo civilizatório destinado a
realizar uma espécie de coroamento da história da huma-
nidade” (IANNI, 1996, p. 82). Baseado na exploração do
homem pelo homem, o capitalismo tem a desigualdade
como um dos seus princípios, ainda que em alguns países
capitalistas haja a possibilidade de oferecer à coletividade
padrões razoáveis de bem-estar social.
Sheler apresenta uma hierarquia de valores que po-
dem ser objeto de reflexão em educação:

113
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

valores úteis – econômicos


valores vitais – afetivos
valores lógicos – intelectuais
valores estéticos
valores éticos – morais e
valores religiosos.

Segundo Saviani, a hierarquia torna rígido o lugar


dos valores, devendo-se estabelecer prioridades, porque
estas permitem uma flexibilidade coerente com os destina-
tários da educação. O referido autor apresenta os valores
que se seguem, sem hierarquizá-los:
Educação para a subsistência
Educação para a liberdade
Educação para a comunicação e
Educação para a transformação.

Apontando o que deve ser, os valores salientam o


problema das finalidades e objetivos da educação.
Ainda que sendo apenas valores declarados e não
reais, as finalidades da educação brasileira dão ênfase a
valores extremamente relevantes.
O artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases determina os
seguintes princípios e fins da Educação Nacional:

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, ins-


pirada nos princípios de liberdade e nos ideais de soli-
dariedade humana, tem por finalidade o pleno desen-
volvimento do educando, seu preparo para o exercí-
cio da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Liberdade, solidariedade, plenitude, cidadania e


trabalho, são palavras-chave de tais finalidades, o que
aponta para a elaboração de objetivos da educação coe-
rentes com a promoção dos estudantes. Entretanto, entre
o declarado e o real na nossa educação, há uma gran-
de lacuna, cujos responsáveis pela educação, não só os

114
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

profissionais que atuam na escola, devem coletivamente


fazer desaparecer.
Para incluir os valores nas práticas educativas, é pre-
ciso fazer superar o equívoco de parte de muitos educa-
dores de que os conteúdos escolares são apenas os co-
nhecimentos científicos acumulados pela humanidade e
colocados à disposição de todos. Não resta dúvida que
a apropriação de tais conhecimentos por todos em uma
democracia é um direito, devendo ser transformados em
coisa pública. Os conteúdos incorporam também habili-
dades, hábitos, atitudes e valores, que devem ser objeto
da educação intencional, como expectativas e aspirações.
Sendo os valores aquilo que deve ser em confronto com
o que é, a valoração é o procedimento humano para eli-
minar esta lacuna em direção ao pretendido. A distância
entre aquilo que deve ser e aquilo que é, afirma Saviani,
é o espaço da vida humana. O mesmo autor afirma que
tanto a possibilidade de coincidência total entre o que
deve ser e o que é como a impossibilidade completa dessa
coincidência tornam a vida humana inviável.
Projetando essa idéia na educação, podemos dizer
que o que justifica o trabalho educativo é a possibilidade
de transformar aquilo que é naquilo que deve ser. Neste
sentido, torna-se necessário que os profissionais da educa-
ção tenham uma formação que lhes garanta a autonomia
profissional necessária para que se tornem autores dos
seus projetos de trabalho, tanto no nível de escola quanto
no nível de sala de aula. Se por um lado é da responsabi-
lidade de todo o coletivo da escola elaborar o projeto po-
lítico-pedagógico, é da responsabilidade de cada profes-
sor, individual ou coletivamente, elaborar o seu plano de
ensino, visando a alterar o comportamento dos estudantes
sob sua responsabilidade. Isto significa que a educação
deverá ajudar aos estudantes a perceberem criticamente a
sua condição na sociedade, o seu caráter social e históri-
co e a elaborarem um projeto de vida com vistas à plena
coincidência entre o que é e o que deve ser, diante das
115
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

desigualdades sociais e particularmente raciais que afetam


a humanidade.
A formação dos profissionais da educação, orienta-
da pela teoria pedagógica progressista considerada em seu
sentido amplo, deverá, entre outros aspectos, dar ênfase
ao desenvolvimento da capacidade de elaborar os planos
de trabalho que o cotidiano escolar exige, em contraposi-
ção à improvisação e à submissão aos projetos elaborados
por outros, que consistem no sucateamento da educação
e na renúncia à autonomia que o exercício da função con-
fere ao educador, renuncia esta que acontece porque o
profissional delega a outros profissionais um fazer que
violenta e degrada a sua atuação.

A formação dos profissionais da educação na


legislação brasileira: possibilidades de reversão das
desigualdades raciais

Nesta parte final do trabalho, decidi analisar a pro-


posta de formação incorporada nos itens anteriores em
confronto com as determinações legais contidas nos do-
cumentos oficiais.
Neste item, nosso propósito inicial foi de confrontar
o proposto legalmente e os processos de reformulação
dos cursos de pedagogia e licenciatura em curso com as
possibilidades de formar profissionais para uma atuação
satisfatória com os grupos discriminados, particularizando
a situação da população negra. Entretanto, as limitações
relativas principalmente de tempo e de espaço para este
artigo não permitem avançar para além do que está posto
na Lei de Diretrizes e Bases, na qual a formação de profis-
sionais da educação é tratada no título VI – Dos profissio-
nais da Educação.
A seguir, transcrevemos os artigos aqui considerados
e seus respectivos itens e parágrafos, a fim de facilitar es-
tudos comparativos.

116
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

Art. 61 – A formação de profissionais da educa-


ção, de modo a atender aos objetivos dos dife-
rentes níveis e modalidades de ensino e às ca-
racterísticas de cada fase do desenvolvimento do
educando, terá como fundamentos:
I – associação entre teorias e práticas, inclusive
mediante a capacitação em serviço;
II – aproveitamento da formação e experiências
anteriores em instituições de ensino e outras ati-
vidades.
Art. 62 – A formação de docentes para atuar na
educação básica far-se-á em nível superior, em
curso de licenciatura, de graduação plena, em
universidades e institutos superiores de educação,
admitida como formação mínima para o exercício
do magistério na educação infantil e nas quatro
primeiras séries do ensino fundamental, a ofereci-
da em nível médio, na modalidade Normal.
Art. 63 – Os institutos superiores de educação
manterão:
I – cursos formadores de profissionais para a
educação básica, inclusive o curso normal supe-
rior, destinado à formação de docentes para a
educação infantil e para as primeiras séries do
ensino fundamental.
II – programas de formação pedagógica para por-
tadores de diplomas de educação superior que
queiram se dedicar à educação básica;
III – programas de educação continuada para os
profissionais da educação dos diversos níveis.
Art. 64 – A formação de profissionais de educa-
ção para administração, planejamento, inspeção,
supervisão e orientação educacional para a edu-
cação básica, será feita em cursos de graduação
em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a
critério da instituição de ensino, garantida, nesta
formação, a base comum nacional.
117
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Art. 65 – A formação docente, exceto para a edu-


cação superior, incluirá prática de ensino de, no
mínimo, trezentas horas.
Art. 66 – A preparação para o exercício do ma-
gistério superior far-se-á em nível de pós-gradua-
ção, prioritariamente em programas de mestrado
e doutorado.
Parágrafo único – O notório saber, reconhecido por
universidade com curso de doutorado em área afim,
poderá suprir a exigência de título acadêmico.
Art. 67 – Os sistemas de ensino promoverão a
valorização dos profissionais da educação, asse-
gurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos
e nos planos de carreira do magistério público:
I – ingresso exclusivamente por concurso públi-
co de provas e títulos;
II – aperfeiçoamento profissional continuado, in-
clusive com licenciamento periódico remunerado
para esse fim;
III – piso salarial profissional;
IV – progressão funcional baseada na titulação
ou habilitação, e na avaliação do desempenho;
V – período reservado a estudos, planejamento e
avaliação, incluído na carga de trabalho;
VI – condições adequadas de trabalho.
Parágrafo único – A experiência docente é pré-
requisito para o exercício profissional de quais-
quer outras funções de magistério, nos termos
das normas de cada sistema de ensino.

O item I, do artigo 61, é coerente com a nossa pro-


posta de estabelecimento de uma relação de unidade en-
tre teoria e prática na formação profissional tanto inicial
quanto continuada. Quanto ao item II do mesmo artigo,
percebe-se a abertura para aproveitamento de estudos,
sem impedir que esta tramitação se faça no sentido verti-
cal, o que compromete a qualidade da formação.
118
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

O artigo 62, determinando os diferentes níveis para


a formação de profissionais da educação, comete o grave
equívoco de perpassar nas entrelinhas a idéia de que a
atuação na educação infantil e nas séries iniciais do ensino
fundamental pode ser feita por profissionais com uma for-
mação inferior à realizada na graduação, em nível médio
e fora do ambiente universitário. No entanto, sabe-se que
o trabalho educativo com crianças menores exige uma for-
mação, se não mais, tão rigorosa quanto a formação que é
dada para atuar no ensino superior em termos de aquisi-
ção, crítica e produção de conhecimentos, em suas dimen-
sões específicas e pedagógica. A natureza da formação
nos dois casos é diferente porque se trata de educar seres
humanos em diferentes estágios de desenvolvimento, com
características bastante diferenciadas, sendo que, quanto
mais o educando se distancia do educador, em termos
de estágio de desenvolvimento, tanto mais difícil se torna
compreendê-lo para promover o seu crescimento. Portan-
to, a formação para a atuação na educação infantil e nas
séries iniciais do ensino fundamental deverá ser em ter-
mos de rigor e aprofundamento, equiparável àquela pre-
paração para atuar em níveis mais elevados de ensino.
A despeito das dificuldades provocadas pelas dife-
renças regionais brasileiras que, em certos locais, ainda
admitem a atuação de leigos, consideramos a concessão
equivocada e prejudicial ao sistema de ensino.
A criação dos institutos superiores de educação re-
presenta uma regressão na formação docente, por criar
um novo espaço fora do ambiente universitário para a
formação profissional, punindo mais uma vez a educação
infantil e as séries iniciais do ensino fundamental. Sendo a
pedagogia um campo de conhecimentos multirreferencial,
que, centrando-se na educação, tem diferentes dimen-
sões, o contato com diferentes unidades que privilegiam
campos de conhecimentos que mantêm afinidade com a
educação, é extremamente necessário; o isolamento em
ambiente não universitário, sem dúvida compromete a
119
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

qualidade da formação de um profissional cuja atuação na


sociedade é extremamente relevante para o desenvolvi-
mento humano, particularmente tratando-se da responsa-
bilidade de reverter o quadro de desigualdades raciais que
se apresenta na educação e cujos efeitos são mais graves
no início da escolarização, sendo justamente, nos níveis
de ensino em que a população negra é mais penalizada,
que se mantêm os níveis mínimos de formação de modo
paralelo à criação de espaços de formação também precá-
rios em se tratando também do nível superior.
A necessidade de que toda a formação para o exer-
cício docente seja feita em nível superior é apontada por
Piaget do qual transcrevo alguns parágrafos:

[...] há ainda numerosos países, onde a preparação de


mestres não tem qualquer relação com as faculdades
universitárias: só os mestres secundários se formam
na universidade e somente no que se refere às ma-
térias a ensinar, sendo a preparação pedagógica nula
ou reduzida a um mínimum, enquanto os mestres pri-
mários são em parte preparados nas escolas normais,
sem vinculação direta com a pesquisa universitária [...]
(PIAGET, 1972 p. 28).

Em outra obra Piaget, referindo-se aos problemas


gerais do ensino, escreve:

[...] o primeiro relaciona-se com a formação de profes-


sores, o que constitui realmente a questão primordial
de todas as reformas pedagógicas em perspectiva, pois
enquanto não for a mesma resolvida de forma satisfa-
tória, será totalmente inútil organizar belos programas
ou construir belas teorias a respeito do que deveria ser
realizado. Ora, esse assunto apresenta dois aspectos:
em primeiro lugar existe o problema social de valori-
zação ou de revalorização do corpo docente primário
e secundário, a cujos serviços não é atribuído o devi-
do valor pela opinião pública, donde o desinteresse
e a penúria que se apoderam dessas profissões e que
120
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

constituem um dos maiores perigos para o progresso


e mesmo para a sobrevivência de nossas civilizações
doentes (PIAGET, 1974, p. 14).

Ainda continuando com Piaget, temos:

[...] uma formação universitária completa para os mes-


tres de todos os níveis (pois quanto mais jovens são os
alunos, maiores dificuldades assume o ensino, se le-
vado a sério) a semelhança da formação dos médicos
etc. A preparação universitária completa é sobretudo
necessária para a formação psicológica satisfatória, e
isto para os futuros mestres, tanto no nível secundário
quanto no primário (PIAGET, 1974, p. 29).

Ainda o item II do artigo 61 penaliza a educação bá-


sica, criando a possibilidade de uma formação pedagógica
para portadores de diploma de outros cursos superiores
que não fizeram opção inicial pela profissão docente. Tal
abertura apresenta dois graves problemas. Permite a criti-
cada justaposição no relacionamento teoria-prática na for-
mação profissional e admite o magistério como atividade
profissional de reserva, para aqueles que, tendo inicial-
mente feito opção por outra atividade que não a educa-
ção, a utilizem como reserva para uma possível atuação,
no caso de fracasso na opção profissional priorizada.
O item III, prevendo a formação continuada em to-
dos os níveis, é um aspecto positivo da questão, se real-
mente for concretizado.
O artigo 64 faz referência ao curso de pedagogia,
que tem sido objeto de discussões, cuja formação carac-
terizada pela multihabilitação está a exigir rigorosas refle-
xões e propostas de reformulação.
O artigo 67, referindo-se a aspetos relativos a valo-
rização dos profissionais da educação, destaca a formação
continuada, possibilitando o afastamento periódico com
remuneração, o que só excepcionalmente acontece na esco-
la básica, sendo apenas privilégio das instituições públicas
121
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

de ensino superior e das escolas básicas federais. O piso


salarial permanece sem nenhuma medida objetiva, bem
como a formação continuada incluída na jornada de traba-
lho que acontece com uma certa freqüência com a deter-
minação de uma carga horária extremamente reduzida e
só excepcionalmente com determinação de períodos que
atendem aos propósitos declarados, mas, em alguns casos,
sem a necessária administração e aproveitamento do tem-
po determinado para este tipo de formação.
Embora não seja nosso propósito fazer uma análise
de outros documentos oficiais que tratam da questão con-
siderada, faremos algumas considerações sobre a forma-
ção dos profissionais da educação contida no Programa
Universidade para Todos (Prouni), em vigor no ano em
curso através da Medida Provisória n. 13, de 10 de setem-
bro de 2004. Através desta medida provisória, a escola bá-
sica pública é novamente punida com a possibilidade de
formação dos seus profissionais em curso de licenciatura
e em pedagogia em instituições particulares.
Os prejuízos desta formação aqui considerados são
os seguintes:
Prováveis deficiências na formação do profissional
como pesquisador. Sabe-se que as instituições particulares
de ensino superior, em sua grande maioria, principalmen-
te as isoladas, não incluem a pesquisa na carga horária
dos professores, tal como acontece nas instituições públi-
cas. Esta situação terá certamente seus efeitos negativos na
formação desses profissionais oriundos da escola pública,
principalmente em relação à sua formação como pesqui-
sadores, que ficará comprometida, além dos prejuízos por
terem professores que não têm o necessário apoio institu-
cional para a realização de pesquisas que aprimorariam a
sua atuação docente.
Os aspectos negativos aqui salientados, se não invia-
bilizam, pelo menos prejudicam extremamente a concreti-
zação da proposta de formação discutida neste estudo.

122
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

Aos aspectos destacados, acrescenta-se o problema


que ocorreu nas últimas décadas de desmantelamento das
universidades públicas e do estímulo às instituições priva-
das por meio de autorizações para funcionamento, culmi-
nando em 2004 com o Prouni, que, através da isenção de
impostos a instituições particulares, destina indiretamen-
te verbas públicas para atender a interesses privados em
face aos altos índices de inadimplência no ensino superior
particular que o ameaçam, em detrimento das instituições
públicas, que, apesar de todo o descaso de parte do po-
der constituído nos últimos anos, mantêm um ensino de
qualidade.
Minha proposta é de que seja cessada a isenção con-
cedida às instituições privadas e que os recursos coletados
sejam investidos na expansão e melhoria das universida-
des públicas.
A formação dos profissionais da educação para toda
a escola básica deveria fazer-se em universidades, em ní-
vel de graduação, com ênfase no ensino e na pesquisa,
com garantia de formação continuada em serviço e pos-
sibilidade de real afastamento periódico remunerado para
este tipo de formação.
Precedendo tal medida, teve-se a alteração do artigo
26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
pela Lei n. 10.639/03, passando referido artigo a ter a se-
guinte redação:

Artigo 26 A. Nos estabelecimentos de ensino fundamen-


tal e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório
o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput
deste artigo incluirá o estudo da História da África e
dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil.

123
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-


Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o cur-
rículo escolar, em especial nas áreas de Educação Ar-
tística e de Literatura e História Brasileiras”

Esta legislação, acompanhada das Diretrizes Curri-


culares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasilei-
ra e Africana, é decisiva em relação à questão tratada nesta
parte deste artigo. Entretanto, a trajetória entre a legisla-
ção vigente e o cotidiano escolar, que vai decidir sobre
a sua concretização, exige o estabelecimento de ousadas
políticas governamentais na formação continuada de pro-
fissionais da educação, as quais têm sido, extremamente
tímidas, com algumas iniciativas quantitativamente insufi-
cientes, ainda que de qualidade considerável.
Tal qual o Penesb, que, antecipando-se à legislação
apresentada, investe há 13 anos na referida formação, há
núcleos de estudos afro-brasileiros (Neabs), no âmibito de
algumas universidades, que se têm empenhado na forma-
ção de profissionais da educação para a diversidade racial.
Entretanto, é preciso garantir a todos os profissionais que
atuam na educação brasileira as condições intelectuais e
afetivas necessárias à implementação da legislação vigen-
te, tarefa esta que me parece estar em fase bastante inci-
piente.

O desafio da formação continuada de docentes para


a educação para as relações étnico-raciais

Para que a proposta de ampliação de uma educa-


ção para as relações étnico-raciais se efetive, torna-se in-
dispensável garantir a todos os profissionais da educação
em exercício o acesso aos conhecimentos sobre a popu-
lação negra e sobre os aspectos pedagógicos inerentes à
questão. Para isso, todas as propostas de formação, quer

124
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

seja inicial, quer seja continuada, disponíveis no momento


são pelo menos quantitativamente insuficientes. A exem-
plo, o município do Rio de Janeiro, dispõe na rede 40.000
professores, o que nem os cursos presenciais e nem a
distância dão conta. Resta-nos, e esta medida é de suma
importância, criar e consolidar um sistema permanente de
formação continuada em serviço, incorporando à jorna-
da de trabalho dos profissionais da educação, uma carga
horária significativa, não só para a formação em serviço,
priorizando neste momento a formação para as relações
étnico-raciais, mas também para as atividades de pesquisa,
extensão e de planejamento. Para isto, há que se alterar o
Plano Nacional de Educação, que determina apenas 20%
a 25% da carga horária do professor para a atividade de
planejamento, reduzindo a função docente a uma rotina
que não lhe permite exercer a sua profissão com dignida-
de e autonomia. Por outro lado, a alteração da legislação
recente, que determina o piso salarial para 40 horas de
pouco mais de R$ 900,00 (novecentos reais) se faz tam-
bém urgente, porque tal decisão elimina toda e qualquer
possibilidade de fazer do magistério uma profissão que
cumpra o seu papel social.
A despeito de tais condições, o Penesb tem hoje sob
sua responsabilidade a realização de cursos presenciais e
semipresenciais, bem como, orientação de graduandos em
processo de iniciação científica, e a previsão de um se-
minário e o desenvolvimento das pesquisas apresentadas
anteriormente, uma delas com financiamento da Faperj.
Entende-se, que a proposta de formação continuada no
nível de escola não invalida as outras alternativas que vêm
sendo realizadas pelo Penesb e por outros Neabs, mas as
complementa. Em todas elas, a presença dos Neabs se faz
necessária, ora direta, ora indiretamente, sob a forma de
assessoramento aos órgãos intermediários das secretarias
municipais e estaduais, que se propõe sejam os respon-
sáveis pela mediação entre a produção acadêmica e as
escolas.
125
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Outra medida que se propõe seja tomada, princi-


palmente nos grandes centros urbanos em que a presen-
ça de docentes com formação a nível de pós-graduação
stricto sensu se faz sentir de modo expressivo nas redes
federais, estaduais e municipais da escola básica, é o
levantamento do pessoal com tal formação e o seu apro-
veitamento nas equipes que lideram a formação continu-
ada e o estímulo à pesquisa e à participação em eventos,
a fim de utilizar e valorizar o potencial humano disponí-
vel na rede.

126
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...

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128
Educação e relações raciais
em Mato Grosso

Maria Lúcia Rodrigues Muller

Pretende-se aqui discutir os processos intra-escola-


res que produzem o fracasso escolar de alunos negros.
Estes, quando não fracassam, têm trajetórias escolares
mais acidentadas que alunos brancos. Neste capítulo, se-
rão abordados alguns aspectos das relações raciais nas es-
colas do estado de Mato Grosso, tomando como base os
resultados de pesquisas realizadas no Núcleo de Estudos
e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (Nepre),
da Universidade Federal de Mato Grosso. Nesse Núcleo,
foram defendidas, entre 2002 e 2008, 20 dissertações de
mestrado, no âmbito do Programa de Mestrado em Edu-
cação da Universidade Federal de Mato Grosso, o que nos
dá um relativo acúmulo de conhecimentos sobre o tema.
Vale ressaltar que essa linha de pesquisa inaugurou-se
com uma investigação sobre trajetórias de professoras não
brancas, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Mato Grosso (Fapemat), na qual o conjunto
dos depoimentos obtidos retratava os processos discrimi-
natórios que professoras não brancas (na sua maioria ne-
gras) enfrentaram durante toda sua vida, em especial na
escola. Os resultados dessa pesquisa sugeriam que, mais
que a condição social, eram motivos de discriminação e

129
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

estigmatização a cor da pele, os traços fisionômicos, o


tipo de cabelo, enfim o fenótipo da pessoa. Foi possível
perceber que as marcas da discriminação permaneciam
durante toda a vida, mesmo as professoras tendo atingido
a vida adulta. Com base nessa constatação decidimos in-
corporar aos nossos estudos os escolares negros, crianças
e jovens.
As desigualdades raciais na educação brasileira são
significativas. Não é casual que os indicadores sociais
apontem grandes discrepâncias entre a realização escolar
de alunos brancos e alunos negros. Negros não só têm
que lidar muitas vezes com piores condições econômicas
e sociais, mas também com atitudes e processos fortemen-
te discriminatórios.
Henriques (2001), estudando a incidência da pobre-
za com base em um recorte que contemplava, simulta-
neamente, raça, gênero e faixa de idade dos indivíduos,
identificou uma nítida hierarquia de discriminação no in-
terior da pobreza, na qual os mais pobres dos pobres são
homens e mulheres negros entre 0 e 14 anos de idade. Em
todos esses grupos, a incidência da pobreza é superior a
60%. No outro extremo, os relativamente menos afetados
entre os pobres, são todos brancos adultos.
Portanto, a cor da pele está fortemente associada à
probabilidade de se encontrar indivíduos no estágio que
representa a mais drástica forma de privação material: a
pobreza. A “probabilidade de um branco ser pobre si-
tua-se em torno de 22%, mas se o indivíduo é negro, a
probabilidade é mais que o dobro – 48%” (JACCOUD e
BEGHIN, 2002, p. 28).
Diversos estudos apontam para o imenso fosso entre
os níveis educacionais alcançados por brancos e negros no
Brasil. Em todos os níveis de ensino e em todas as faixas
de renda, os brancos alcançam mais anos de estudo e rea-
lizam uma trajetória escolar mais homogênea. Contudo, só
a pobreza não explica as desigualdades raciais. Parte des-
sa desigualdade escolar entre os dois grupos só pode ser
130
Educação e relações raciais em Mato Grosso

explicada pela existência de mecanismos intra-escolares


de discriminação que penalizam crianças e jovens negros,
desestimulando-os a permanecer na escola ou a obter um
rendimento adequado para seu sucesso escolar.
Outros estudos enfatizam o despreparo dos professo-
res, e demais profissionais da educação, para trabalhar, do
ponto de vista pedagógico, com situações de racismo decla-
rado que ocorrem freqüentemente no cotidiano escolar.
Diversos aspectos parecem estar relacionados ao
fato de os negros não estarem conseguindo ascender so-
cialmente através dos níveis de escolarização na mesma
proporção que os brancos. Algumas pesquisas mostram,
por exemplo, que o tipo de escola que a população negra
freqüenta tem menor qualidade de ensino que a escola
freqüentada pelos brancos (ROSENBERG, 1987; HASEN-
BALG, 1987). Pesquisas realizadas com estudantes negros
demonstram que estes desenvolvem uma auto-imagem
negativa, o que chegaria a comprometer o próprio desem-
penho escolar. Outras pesquisas revelam a existência de
preconceito racial nas escolas contra o aluno negro, tanto
por parte de professores como de seus colegas brancos
(CAVALLEIRO, 2004; PINHO, 2004; JESUS, 2005; SANTOS,
2005). Discriminação também observada nos conteúdos dos
textos dos livros didáticos (SILVA, 1995; COSTA, 2005).
É evidente que existem condições hostis aos alu-
nos negros nas escolas brasileiras. Essas condições atuam
permanentemente para o agravamento das diferenças de
desempenho escolar desse segmento. Um estudo realiza-
do pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educa-
cionais Anísio Teixeira (Inep), em 2003, que observou a
evolução dos resultados do Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica (Saeb) no período de 1995 a 2001,
mostra que a média obtida pelos alunos brancos da 4ª
série do ensino fundamental em Língua Portuguesa, em
1995, era de 193,4; enquanto, dos alunos negros era de
173,8. Naquele ano, a diferença era de 19,6 pontos na
escala que vai de 125 a 425. Já em 2001, a média entre os
131
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

brancos foi de 174 e a dos negros de 147,9, uma diferença


de 26,1 pontos. Segundo o então diretor de Avaliação da
Educação Básica do Inep, Carlos Henrique Araújo, esse
resultado revelava que havia um aprofundamento da de-
sigualdade nos últimos anos entre negros e brancos. Ele
apresentou duas hipóteses que podem ajudar a entender
por que ocorre essa diferença no aproveitamento escolar.
A primeira, diz respeito à entrada mais tardia dos negros
na economia. Isso se reflete em pais e mães com menor
escolaridade, por exemplo. Uma segunda explicação, que
não é excludente em relação à primeira, está relacionada
ao racismo difuso, ainda presente na sociedade brasilei-
ra: “Uma atitude racista, mesmo que inconsciente, afeta a
auto-estima dos alunos e reflete-se no desempenho deles.
Dentro do sistema de ensino há um aprofundamento da
desigualdade” (ARAÚJO, 2004). A segunda hipótese apon-
tada por ele reafirma os estudos que enfatizam a importân-
cia de uma formação do professor que abranja a discussão
sobre as diferenças raciais e étnicas na escola.
Somos a segunda maior nação negra no mundo de-
pois da Nigéria. Apesar disso, os brasileiros negros são
obrigados a conviver ao longo de suas vidas com inúme-
ros momentos de preconceito racial e de discriminação.
Além do mais, o Brasil destaca-se no cenário internacio-
nal como uma sociedade marcada pelos piores índices
de desigualdades sociais, Muitas dessas desigualdades são
atribuídas ao racismo internalizado nas nossas relações so-
ciais. Por esse motivo, nos referimos à expressão relações
raciais quando queremos frisar que são nessas relações
onde podem acontecer o racismo, a discriminação e a con-
seqüente desigualdade racial. Negros e indígenas, quando
se relacionam com outras pessoas de seus próprios grupos
raciais, não sofrem discriminação, possibilidade que sur-
ge quando eles têm contato, quando se relacionam com
pessoas de outros grupos, principalmente com indivíduos
do grupo branco.

132
Educação e relações raciais em Mato Grosso

Em todas as sociedades humanas existe algum tipo


de preconceito e discriminação contra pessoas ou grupos
“diferentes” da maioria, ou que se consideram maioria.
Isto é, as pessoas costumam considerar “feios” ou “sujos”,
ou qualquer outro atributo negativo, a todos aqueles que
são “diferentes”, que não pertencem a seu grupo (ELIAS,
2000). Todavia, em nosso país, a cor da pele ou os traços
fenotípicos, que também englobam o tipo de cabelo, os
traços fisionômicos, etc., muitas vezes são tidos como di-
ferentes e inferiores. Inferiores na inteligência, inferiores
nos valores morais.
Norbert Elias (2000) afirma que se inscreviam num
determinado tipo de relação de poder as relações en-
tre estabelecidos, os que se consideravam maioria, e os
outsiders, os que eram considerados minoria, diferentes,
inferiores, etc. Nesse estudo, ele expõe detalhadamente
um processo específico de construção de uma hegemonia
cultural com o conseqüente estabelecimento de um ima-
ginário social que penalizava constante e definitivamen-
te o grupo outsider. Parece-me ser válido buscar alguns
elementos da construção do imaginário social brasileiro
referente à população negra. De que maneiras e em que
momento se estabeleceu essa hegemonia cultural? Penso
que a escola, mas não só ela, tenha sido uma agência
importante nessa construção, que conferiu imagens tão
negativas aos negros.
Quais são dados que as pesquisas vêm apresentan-
do desde a década de 80 do século passado? Algumas
mostram, por exemplo, que o tipo de escola freqüentada
pela população negra tem menor qualidade de ensino que
a escola freqüentada pelos brancos (HaseNbalg, 1987;
RoseNberg; 1987). Como já mencionado, estudos reali-
zados com estudantes negros evidenciam que estes desen-
volvem uma auto-imagem negativa, o que chegaria a com-
prometer o próprio desempenho escolar. Outras investiga-
ções revelam a existência de preconceito racial nas escolas
contra o aluno negro, tanto por parte de professores como
133
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

de seus colegas brancos. Em texto mais recente, Osório


e Soares (2005) acompanham uma coorte de brasileiros,
brancos e negros, nascidos em 1980, desde a data de seu
nascimento até o ano de 2003, quando encontraram que,
enquanto 70% dos negros, ainda na escola, cursavam o
ensino básico regular ou supletivo, 66% dos brancos esta-
vam cursando o ensino superior. Os autores concluem:

Os indicadores de educação, em conjunto, nos per-


mitiram documentar um quadro preocupante: além
de serem prejudicados por terem uma origem mais
humilde, o que dificulta o acesso e a permanência na
escola, os negros são prejudicados dentro do siste-
ma de ensino, que se mostra incapaz de mantê-los e
de compensar eventuais desigualdades que impeçam
sua boa progressão educacional (OSÓRIO e SOARES,
2005, p. 34, grifos meus).
 
A literatura produzida até esse momento sugere que
existem mecanismos intra-escolares de discriminação que
penalizam crianças e jovens negros. Quais seriam eles?
Entendo que sejam processos sociais produzidos sistema-
ticamente no espaço escolar que têm como características
conferir invisibilidade às pessoas negras, sejam crianças,
jovens, sejam mesmo professores, assim como negar-lhes
humanidade.
Qual sentido estou atribuindo ao termo “invisibilida-
de”? Significa não enxergar as características pessoais des-
ses alunos, principalmente as características pessoais po-
sitivas. Estou englobando na expressão “negar-lhes huma-
nidade”, ou a “negação da humanidade da pessoa negra”,
seja criança, jovem ou adulta, a não aceitação dos senti-
mentos de indignação, de dor ou de humilhação desses
alunos; a não aceitação de suas capacidades intelectuais.
A descrença em sua capacidade de realizar bem uma tare-
fa que exija competência cognitiva está englobada, a meu
ver, tanto no processo de invisibilidade dos alunos negros
como na negação da humanidade da pessoa negra.
134
Educação e relações raciais em Mato Grosso

Há uma escassa literatura sobre as relações que


ocorrem na escola entre indígenas e não indígenas, e a
pouca literatura disponível informa sobre existência de
discriminação quando crianças ou jovens indígenas saem
de suas aldeias para estudar em escolas públicas urbanas.
Segundo esses trabalhos, eles são bastante discriminados
por professores e alunos não indígenas. Em Mato Grosso,
os primeiros anos de escolarização dessas crianças são re-
alizados nas próprias comunidades, em escolas cujos pro-
fessores são, preferencialmente, da própria etnia. Alguns
grupos têm como estratégia enviar seus filhos às cidades
mais próximas para que dêem prosseguimento aos estu-
dos, com o objetivo de que as novas gerações possam se
apropriar dos conhecimentos e das tecnologias dos não
indígenas (do “homem branco”). O contato interétnico
entre grupos tão diferentes fatalmente produz choques
culturais que ocasionam prejuízos para o lado mais “frá-
gil” da relação: os jovens indígenas e suas comunidades
(REZENDE, 2003; TORRES, 2003). Esses dois estudos (aqui
citados) trazem um número impressionante de exemplos
de discriminação e racismo contra crianças e jovens per-
tencentes a comunidades indígenas.
A discriminação contra negros foi também observada
nos conteúdos dos textos e nas imagens dos livros didá-
ticos (SILVA, 1995; COSTA, 2003). Apesar de já ter havido
um avanço nos últimos anos, a maioria dessas obras con-
tinua conferindo um lugar inferior ou negativo a negros e
a indígenas. Não é de se espantar que as desigualdades na
educação entre brancos e não brancos permaneçam iguais
em todos os níveis, ao longo dos anos.
Quanto a professores de escolas públicas de Mato
Grosso, de maneira geral eles acreditam que tratam todos
os seus alunos de forma igual e têm muita resistência de
se aperceberem de situações preconceituosas ou discri-
minatórias (COSTA, 2004; SANTOS, 2005; GONÇALVES,
2006).

135
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Muitas vezes, quando emitem opiniões ou quando


justificam o tratamento mais rigoroso destinado aos alunos
negros, recorrem aos velhos pressupostos das teorias racis-
tas. É como se estivéssemos ouvindo afirmações de Nina
Rodrigues (1930, 1976) produzidas em 1906, ou de Afrânio
Peixoto, publicadas em 1914: “Esses meninos não servem
para estudar, só servem para trabalhos manuais” (sic), pa-
lavras de uma professora ao comentar sobre o suposto
desempenho escolar de seus alunos negros (GONÇALVES,
2006). Investigando as percepções de professores de edu-
cação física sobre esses estudantes, Pinho (2004) encon-
trou juízos semelhantes, julgamentos muito negativos so-
bre seus corpos (negros) e, em especial, julgamentos mo-
rais francamente negativos a respeito das alunas negras.
Aqui, também, esses professores não se distanciam muito
das pregações dos eugenistas, que acreditavam serem os
negros dotados de maior vigor sexual, de uma luxúria ina-
ta e transbordante.

O futuro do Brasil pertence à raça branca. Vivem prin-


cipalmente pelos sentidos, os mulatos. As mulatinhas
constituem uma espécie amorosa talvez sem par no
mundo. A atração que exercem, sendo encantadoras,
exige certa cautela (PEIXOTO, 1917, apud CUNHA,
2002, p. 268, grifos meus).
 
É espantoso verificar que professores não tenham
percepção do tratamento diferente que dispensam aos
seus alunos de pele mais escura, com os quais são mais
exigentes, mais rigorosos, não reconhecendo os progres-
sos deles. Pelo contrário, estereotipam, negativamente,
seu desempenho escolar, ou o desempenho esportivo, no
caso dos professores de educação física. Evitam, professo-
res e professoras, trocas afetivas com crianças negras, se-
jam verbais, como elogios, palavras carinhosas, etc., sejam
físicas, chegando mesmo a rechaçar o contato corporal
com elas.

136
Educação e relações raciais em Mato Grosso

Professores não percebem, não enxergam quando


seus alunos negros são insultados ou sofrem agressões
físicas por parte dos alunos de pele mais clara. Quando as
vítimas denunciam os maus-tratos, é comum uma destas
atitudes por parte do mestre: recusar-se a punir o respon-
sável e jogar a culpa na vítima ou considerar que se trata
de “brincadeira de criança”, ignorando o acontecido. É
muito forte, entre os professores, a crença na democracia
racial. É como se dissessem: “No Brasil, não existe pre-
conceito racial; eu trato todos os meus alunos da mesma
maneira. Se for mais duro com alguns é porque eles são
preguiçosos, imaturos, não têm aptidão para o estudo,
suas famílias são desestruturadas ou não os apóiam nos
estudos.”
Acontece que todos esses juízos e atitudes foram
destinados a alunos negros. Quanto aos alunos brancos,
às críticas ou tratamentos rigorosos neles aplicados, o pro-
fessor imediatamente acrescentava algumas palavras de
estímulo.
Finalmente, quando indagados sobre o motivo de
permitirem (ou se manterem omissos) diante dos freqüen-
tes episódios de insultos raciais nas relações interpessoais
entre alunos, os professores muitas vezes se referiram à
dificuldade de exercer uma classificação racial, uma vez
que “todos eles são negros ou quase negros”, (GONÇAL-
VES, 2006).
É fato verificável, empiricamente, que a sociedade
brasileira é uma sociedade multirracial. Temos uma “linha
de cor” que vai da mais clara à mais escura, tanto mais
próxima ou mais distante do branco for. Não é de hoje
que a pele da população brasileira tem muitas cores. Não
é de hoje, portanto, que as denominações de cor provo-
cam distinções. No Brasil, do período colonial até o Im-
pério, quando a “cor” das pessoas aparecia nos registros
de nascimento não se fazia, necessariamente, referência à
sua origem racial ou à maior ou menor intensidade de pig-
mentação de melanina na pele. Na verdade, a denomina-
137
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

ção de cor referia-se ao lugar social adquirido ou conquis-


tado pela pessoa. Cativos eram denominados pretos ou
negros; homens e mulheres livres eram automaticamente
identificados como pardos, escuros ou morenos (MATTOS,
1988). Muita gente não gosta dos termos “preto” e “ne-
gro” por serem utilizados como insulto em situações de
relacionamento social conflituoso ou, então, como uma
forma de inferiorizar alguém (GUIMARÃES, 2002). O que
foi possível perceber nas pesquisas antes mencionadas foi
a ocorrência de processos já analisados em outros estudos
(PETRUCCELI, 1998; GUIMARÃES, 2002). Quanto mais
próximo o indivíduo se encontra do extremo branco mais
se percebe legitimado para utilizar insultos raciais contra
outros indivíduos de pele mais escura.
Ao contrário do que possa parecer, não são discri-
minados somente crianças e jovens negros e pobres. É
muito freqüente a opinião de que em nossa sociedade
haveria preconceito contra o pobre e não contra o negro.
Como este em geral é pobre, seria discriminado por seu
lugar social e não por sua cor ou raça, consenso firmado
no Brasil desde os anos 1940. Podem-se encontrar no pen-
samento social brasileiro diversas versões da teoria que
defende a idéia de ser o preconceito de classe mais forte
que o racial. Quem adotava essa opinião esperava que o
futuro desenvolvimento econômico do país atenuasse as
diferenças entre os grupos raciais e que o incipiente ra-
cismo aqui existente desaparecesse, posição que se cons-
titui num dos pilares da ideologia da democracia racial.
Os defensores dessa tese consideram que pretos e pardos
estão em situação mais desfavorável devido à herança do
período da escravidão. Não teriam tido tempo, ainda, para
inserir-se, adequadamente, à sociedade de classes. No en-
tanto, como afirmado anteriormente, os estudos mais re-
centes, de cunho estatístico, desmontam completamente
essa crença.
Retornando à análise das atitudes de professores
com relação a seus alunos negros, pode ser verificado que
138
Educação e relações raciais em Mato Grosso

não há correlação entre posição socioeconômica da crian-


ça negra e maior proteção contra atitudes racistas. Isto é,
ser de classe média não a livra de ser discriminada por
seu professor ou por seus colegas. Pelo que foi possível
perceber, a conclusão anterior é validada independente-
mente do tipo de escola pública – mais equipada, menos
equipada – e da origem socioeconômica do alunado, cujas
famílias são igualmente atingidas, sendo freqüentemente
estereotipadas como anômicas, desestruturadas e outros
epítetos que poderíamos chamar de uma visão patológica,
por parte da escola, referente às famílias negras em geral.
Praticamente todos os estudos realizados no Núcleo de
Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação/
UFMT recolheram informações sobre as percepções nega-
tivas que os professores têm sobre esses grupos familia-
res. Vale ressaltar que a intenção não era buscar as opini-
ões dos professores sobre esse aspecto, mas eles, sem ser
interrogados direta ou indiretamente, manifestavam tais
apreciações.
Além de preconceitos firmemente arraigados e um
menor sentido de cuidado com os alunos não brancos,
chama a atenção a despreocupação com as conseqüências
que podem advir das interações negativas entre professo-
res e alunos negros ou entre os colegas brancos e estes úl-
timos. Parece-me que crianças e jovens negros, na escola,
freqüentemente estão em situação de desamparo quando
se encontram com situações de preconceito ou discrimi-
nação. Como afirmado anteriormente, na maior parte das
vezes, os professores não dão atenção às reclamações dos
ofendidos nem procuram intervir no sentido de mostrar
ao discriminador que sua atitude é moralmente condená-
vel. Mas não parece ser regra a aplicação de algum tipo
de sanção àqueles alunos ou professores que manifestam
comportamentos racistas na escola.
Muitas vezes, as pessoas se perguntam se não é um
exagero falar de negros versus brancos. Na opinião delas,
nem todo branco é racista. Não se trata de individualizar,
139
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

mas de procurar entender que, ao vivermos em uma socie-


dade como a brasileira, terminamos por nos “impregnar”
de idéias e sentimentos negativos em relação aos grupos
minoritários. É por isso que, quando se fala em relações
raciais no Brasil, menciona-se o ideal, ou ideologia, do
“branqueamento”, que aqui contribuiu para a legitimação
do sentimento de branquitude que permeia as relações
sociais entre brancos e pretos e que nos faz pensar ser
positivo tudo o que se refere socialmente a um imaginário
branco, europeu, e como negativo tudo o que diz respeito
ao que imaginamos ser proveniente de negros ou indíge-
nas (BENTO, 2002). Muitas vezes, é o próprio professor/
professora que “dá a pauta” do tratamento a ser dispensa-
do às crianças de pele mais escura, que invariavelmente
acabam sendo ainda mais maltratadas pelos colegas nas
turmas em que os professores são particularmente hostis
com eles.
Vale assinalar que nem todos os professores têm
esse tipo de atitude. Alguns embora não sabendo lidar
muito bem com a situação de preconceito e racismo, ou
reconhecendo que lhes falta formação adequada para li-
dar com elas, procuram intervir da melhor maneira possí-
vel, tentando proteger o/a agredido/a.
É de se ressaltar o que temos encontrado em termos
das atitudes de crianças não negras em relação a seus
colegas negros. Crianças possuem menos freios; são mais
verdadeiras no que dizem. Isto é, dizem o que pensam,
ao contrário dos adultos, que já internalizaram os códigos
e as proibições sociais. No caso específico que estamos
discutindo, adultos já incorporaram a “etiqueta das rela-
ções raciais” existente na sociedade brasileira; crianças,
não. Por esse motivo, suas interações com os colegas ne-
gros, quase despojadas das coerções sociais, demonstram
que o racismo se reatualiza constantemente. É como se, a
cada dia, crescesse um grupo de pessoas que se arvoram,
que acreditam ter o direito de insultar e constranger outras
pessoas só porque têm a pele mais clara que a delas, como
140
Educação e relações raciais em Mato Grosso

se a cor da pele se constituísse em um privilégio, no caso


das crianças brancas. Em diferentes pesquisas constatamos
atitudes hostis e desrespeitosas de parte de alunos brancos
para com os alunos negros (PINHO, 2004; SANTOS, 2005;
JESUS, 2005; GONÇALVES, 2006). Nesses estudos, foi pos-
sível perceber que são muito comuns interações agres-
sivas e insultuosas contra crianças negras, em especial
as do sexo feminino. Se os insultos dirigidos aos meninos
referem-se sempre a adjetivos negativos à sua cor de pele,
as meninas são em função de características relativas à sua
aparência, o tipo de cabelo, o formato dos lábios ou do na-
riz, etc. Mesmo quando existem relações cordiais, qualquer
ocasião de conflito é motivo para a criança de pele mais
clara utilizar ultrajes raciais contra o/a colega mais escuro/a.
Essas situações são tão dolorosas para as crianças negras
que ocorrem casos de abandono ou de troca de escola
com o fim de evitar o contato com os agressores.
Jesus (2005), que investigou alunos negros do Ensi-
no Médio da cidade de Tapurah, encontrou as memórias
das discriminações raciais sofridas por seus depoentes. Os
depoimentos obtidos demonstram claramente que a in-
júria racial com freqüência dirigida a crianças negras cria
marcas indeléveis e, muitas vezes, compromete o futuro
escolar da vítima da discriminação. Não é casual que os
indicadores sociais apontem um fosso significativo entre a
realização escolar de brancos e negros.
Essas memórias parecem permanecer durante toda a
vida. Quando pesquisadas as trajetórias de alunos negros
de cursos de graduação da UFMT, verificou-se que muitos
deles lembravam-se de episódios de discriminação acon-
tecidos ainda na escola primária. Os estigmas que lhes
foram atribuídos na infância ou na juventude só não os
fizeram desistir dos estudos porque contaram com apoios
diversos, de familiares e amigos, que serviram como um
contraestigma a contrabalançar o dano causado por re-
petidas exposições a situações de preconceito (AMORIM,
2004; SANTOS, 2004; CASTRO, 2005).
141
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Nesse ponto chegamos na última parte desta discus-


são. Os estudos realizados no Nepre e aqui apresentados
brevemente indicam alguns problemas, a permanência de
um ideário racista, produzido ainda no século XIX, defi-
nidor das relações entre brancos e negros na sociedade
brasileira. Aparentemente, esse ideário atinge fortemen-
te as escolas. Pelo fato de não ser discutida, no espaço
escolar, a existência do preconceito e da discriminação,
esses problemas continuam existindo e se reproduzindo
constantemente, através da quase autorização para que
crianças e jovens brancos ou quase brancos maltratem de
diferentes formas seus colegas negros. O aluno, em es-
pecial o branco, ao qual não foram passadas noções de
limites nem foi ensinado o dever de respeitar o outro, vive
na escola com num caldo de cultura a propiciar a introje-
ção desse ideário racista. Além disso, a permanência do
professor no estado de ignorância quanto à sua disposi-
ção cotidiana, por mais inconsciente que seja, de agir de
forma discriminatória contra alunos negros, seguramente
não contribui para a mudança de atitudes, concorrendo,
sim, para o fracasso escolar desse alunado. Esses dados
impõem-nos a necessidade de intervir de alguma maneira.
Sabemos da importância de se trazer essa discussão para
a formação, especialmente a inicial, de professores, a qual
poderia, pelo menos, auxiliá-los a conhecer o papel da
população negra, africanos e seus descendentes, na cons-
trução da sociedade brasileira. É isso que determina a Lei
n. 10.639/03 ao acrescentar ao Art. 26 da LDBEN a obriga-
toriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira
no currículo de Ensino Fundamental e Médio. É impor-
tante realizar esse resgate histórico, é importante também
colocar em discussão as possibilidades de uma educação
anti-racista. Possivelmente essa formação auxilie o futuro
professor a perceber seu próprio preconceito e a evitar
situações de discriminação racial de que ele seja partícipe
ou que ocorram nas interações entre os alunos.

142
Educação e relações raciais em Mato Grosso

Não obstante, minha prática, tanto na formação de


professores quanto na pesquisa, indica não ser suficiente
ministrar conteúdos, por mais que sua apresentação ocor-
ra envolta em inovações ou artifícios pedagógicos. Uma
educação anti-racista precisa, de alguma maneira, traba-
lhar os sentimentos. O racismo não é um ideário que se
sustente racionalmente. Ele se alimenta dos sentimentos,
muitas vezes inconscientes. Racismo e preconceito racial
são modos negativos de ver pessoas ou grupos raciais que
possuem características físicas diferentes daquelas dos que
se consideram maioria ou que se consideram “melhores”,
“superiores”.
Característico da sociedade brasileira é o precon-
ceito de “marca”, cunhado por Oracy Nogueira (1998),
para quem quanto mais o fenótipo, a aparência for negra,
maior será o preconceito, o que se dá contrariamente ao
que ocorre nos Estados Unidos, onde o preconceito é de
origem: se o indivíduo tem um ancestral negro conhecido,
por mais remota que seja essa ancestralidade, ele é consi-
derado negro. Ficou bem evidente, em todas as pesquisas
aqui expostas, que quanto mais escura era a cor da pele
do aluno, mais ele estava exposto a situações de discrimi-
nação velada ou explícita.
O racismo e o preconceito nem sempre têm expli-
cações racionais. São sentimentos construídos ao longo da
vida, através do convívio com outras pessoas racistas ou
preconceituosas e que transmitem essas idéias pejorativas
sem nenhuma comprovação, apenas insistindo nos julga-
mentos negativos que eles têm sobre os outros. É o caso
dos professores que reproduzem pressupostos racistas
construídos no século XIX, repetindo esses preconceitos
automaticamente, sem se darem conta de que não têm ne-
nhuma comprovação empírica dos juízos que emitem.
Em síntese, faz-se necessário colocar em discussão
as relações raciais na escola, o que não é, nem será, um
trabalho fácil. Pelo fato de nós, professores brasileiros, his-
toricamente termos uma formação, um ethos universalista,
143
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

que nos faz acreditar que tratamos a todos os alunos da


mesma maneira, temos dificuldade de aceitar discussões
que promovam a diferença. Quando muito, aceitamos que
existem diferenças de classe social. A meu ver, o trabalho
de desnaturalização do preconceito exige um investimen-
to maciço na formação dos professores e um, ainda dis-
tante, controle social sobre as práticas escolares.
 

144
Educação e relações raciais em Mato Grosso

Referências

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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

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146
Educação e relações raciais em Mato Grosso

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147
Educação das Relações
Étnico-raciais na terra
das araucárias

Paulo Vinicius Baptista da Silva

Este artigo discute o processo de formação de


professores(as) sobre História e Cultura Afro-Brasilei-
ra e sobre Educação das Relações Étnico-raciais de-
senvolvido pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da
Universidade Federal do Paraná (Neab-UFPR) desde
2004. Num primeiro momento, estão dispostos alguns
construtos teórico-conceituais que orientam o proces-
so de formação continuada desenvolvido em Curitiba.
A seguir está a discussão sobre desigualdades raciais
no Brasil, no plano estrutural e no plano simbólico,
que orientam as proposições desenvolvidas na for-
mação de professores, cotejando com resultados de
investigações realizadas por pesquisadores do Neab-
UFPR. Depreende-se dessa discussão a análise das
políticas de promoção de igualdade racial, em espe-
cial as políticas afirmativas e seu impacto sobre o de-
bate público brasileiro. Conclui-se com uma análise
crítica que aponta as faltas e quebras do processo
levado a termo.

149
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

1 Um movimento inspirado na Negritude


e no Pan-africanismo

O processo de formação sobre História e Cultura Afro-


brasileiras e sobre Educação das Relações Étnico-raciais tem
alguns marcos que estão sempre em pauta, a aprovação
da Lei 10.639 de 2003 e o Parecer 03 de 2004 do Conse-
lho Nacional de Educação. No entanto, a aprovação de tais
propostas em instituições importantes do Brasil contempo-
râneo tem raízes bastante anteriores. Poderia ser realizada
uma genealogia das proposições que atravessasse as formu-
lações dos movimentos negros(as) ao longo do século XX.
Dados os objetivos deste texto, discutirei o processo a partir
da abertura política e fim da ditadura militar.
O final dos anos 1970, com o início da abertura política,
foi momento de reorganização dos movimentos negros(as)
no país. Na agenda destes movimentos a educação encon-
trava um papel de destaque e figurava entre as proposições
a necessidade de desvelar elementos da História e da Cultu-
ra Africana e Afro-Brasileira. Nós, negros(as) brasileiros(as),
percebíamos a ausência de registros da nossa História so-
cial, o processo de leitura etnocêntrica e eurocêntrica da
História sistematicamente difundido pela escola brasileira,
a desvalorização constante de formas de manifestação da
nossa alteridade, de aspectos diversos de nossas culturas
e raízes. Passou a ser cada vez mais contundente a crítica
aos processos de ensino que silenciam sobre os aspectos
civilizatórios da África, sobre as diferentes formas de con-
tribuição de nossas nações negras (e indígenas) ancestrais
para a formação do Brasil, sobre a ausência de registros das
práticas de resistência nossas e de nossos antepassados. As
reivindicações dos movimentos negros(as) para a educação
centravam-se sobre necessidade de mudanças curriculares
e ensino de História e cultura afro-brasileiras
Entre os intelectuais e ativistas negros de então des-
taco a liderança exercida por Abdias do Nascimento. No
exílio assumira cadeira de Estudos Africanos na Universi-
150
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

dade do Estado de Nova York, em Buffalo, determinando


que mais que travar conhecimento com os Estudos Afro-
americanos, foi sujeito deste processo. De volta ao Brasil,
assumiu mandato de Deputado Federal e apresentou o
Projeto de Lei n. 1.332, de 1983, que dispunha sobre “ação
compensatória visando à implementação do princípio da iso-
nomia social do negro”. Vejamos o texto do artigo que pro-
põe o ensino de História e Cultura Afro-brasileira na íntegra:

Art. 8º. O Ministério da Educação e Cultura, bem


como as Secretarias Estaduais e Municipais de Educa-
ção, conjuntamente com representantes das entidades
negras e com intelectuais negros comprovadamente
engajados na matéria, estudarão e implementarão mo-
dificações nos currículos escolares e acadêmicos, em
todos os níveis (primário, secundário, superior e de
pós-graduação), no sentido de:
I – Incorporar ao conteúdo dos cursos de História
brasileira o ensino das contribuições positivas dos
africanos e seus descendentes à civilização brasileira,
sua resistência contra a escravidão, sua organização
e ação (a nível social, econômica e política) através
dos quilombos, sua luta contra o racismo no período
pós-abolição;
II – Incorporar ao conteúdo dos cursos sobre História
Geral e ensino das contribuições positivas das civili-
zações africanas, particularmente seus avanços tecno-
lógicos e culturais antes da invasão européia do con-
tinente africano;
III – Incorporar ao conteúdo dos cursos optativos de
estudos religiosos o ensino dos conceitos espirituais,
filosóficos e epistemológicos das religiões de origem
africana (candomblé, umbanda, macumba, xangô,
tambor de minas, batuque, etc.);
IV – Eliminar de todos os currículos referências ao
africano como “um povo apto para a escravidão”,
“submisso” e outras qualificações pejorativas;
151
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

V – Eliminar a utilização de cartilhas ou livros escola-


res que apresentem o negro de forma preconceituosa
ou estereotipada;
VI – Incorporar ao material de ensino primário e se-
cundário a apresentação gráfica da família negra de
maneira que a criança negra venha a se ver, a si mes-
ma e a sua família, retratadas de maneira igualmente
positiva àquela que se vê retratada a criança branca;
VII - Agregar ao ensino das línguas estrangeiras eu-
ropéias, em todos os níveis em que são ensinadas, o
ensino de línguas africanas (yorubá ou kiswahili) em
regime opcional;
VIII – Incentivar e apoiar a criação de Departamentos,
Centros ou Institutos de Estudos e/ou Pesquisas Africa-
nos e Afro-brasileiros, como parte integral e normal da
estrutura universitária, particularmente nas universidades
federais e estaduais (NASCIMENTO, 1983, p. 5163).

O texto do projeto de lei revela aspectos bastante in-


teressantes. Primeiro, pode-se constatar que as propostas
levadas a termo atualmente, tanto a formação de professo-
res para ensino de história e cultura afro-brasileiras, como
a estruturação de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros, são
a concretização de uma agenda antiga. Nas comemora-
ções do centenário da abolição em 1988; na Assembléia
Nacional Constituinte do mesmo ano, Na Marcha Zumbi
dos Palmares pela vida e contra todas as formas de discri-
minação em 1995; nas discussões sobre a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação nos anos que antecederam sua apro-
vação em 1996; nos eventos preparatórios à Conferência
de Durban de 2001 e nas proposições advindas da própria
conferência, as proposições na mesma direção se renova-
ram. Vinte anos transcorreram – de 1983 a 2003 – até que
as proposições do Projeto de Lei n. 1.332/83 fossem cor-
porificadas de modo mais enfático. Desse modo, somente
com a Lei n. 10.639/03 (que modificou a LDB) e sua pos-
terior regulamentação com o parecer 03 de 2004 do CNE,
152
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

iniciou-se processo de inserção sistemática de conteúdos


e de formação inicial e continuada de professores sobre
História e Cultura Afro-brasileira e sobre Educação das Re-
lações Étnico-Raciais.
Na proposta original do então deputado Abdias do
Nascimento, pode-se inferir a relação com os propósi-
tos dos movimentos da Negritude e do Pan-africanismo.
Como movimento concomitantemente literário e social, na
Negritude se propôs um retorno às raízes. A idéia foi a de
que a imersão nas tradições e na estética, nas produções
culturais, na literatura em geral e na poesia em particular,
nas representações plásticas e na dramaturgia, operasse
no sentido de valorizar a tradição afro. As proposições
do NEAB-UFPR são herdeiras desta tradição de busca de
expressão da ancestralidade afro como manifestação da
alteridade, da liberdade e da diversidade. No caso espe-
cífico da formação de professores para a Educação das
Relações Étnico-raciais, os objetivos transcendem aos de
informar sobre o movimento literário, são muito mais uma
busca dos próprios ideais que inspiraram o movimento,
tanto da expressão estética quanto dos valores e da busca
de transformação social.

A negritude é uma subjetividade. Uma vivência. Um


elemento passional que se acha inserido nas catego-
rias clássicas da sociedade brasileira e que as enrique-
ce de substância humana. Humana, demasiadamente
humana é a cultura brasileira, por isso que, sem desin-
tegrar-se, absorve as idiossincrasias espirituais, as mais
variadas. A negritude, com seu sortilégio, sempre este-
ve presente nesta cultura, exuberante de entusiasmo,
ingenuidade, paixão, sensualidade, mistério, embora
só hoje por efeito de uma pressão universal esteja
emergindo para a lúcida consciência de sua fisiono-
mia. É um título de glória e de orgulho para o Brasil o
de ter-se constituído no berço da negritude (RAMOS,
1950, apud NASCIMENTO, 2003).

153
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

As idéias do Pan-africanismo, em grande medida,


elaboradas por negros(as) na ou da diáspora, objetiva, de
forma similar, estabelecer a África como referência fun-
damental para os(as) negros(as) do mundo, estejam eles
dentro ou fora do continente, positivando a imagem do
continente, das suas tradições, histórias e diferentes aspec-
tos das culturas. Com isso, contrapõem-se a postulações
até então hegemônicas, e que ainda sobrevivem, da África
como o continente selvagem, primitivo, atávico. A uni-
dade dos países africanos é pensada como estrutura que
mantenha a autonomia dos países por um lado e que por
outro permita a estes mesmos uma atuação conjunta seja
no âmbito das relações internacionais seja para a resolu-
ção de problemas comuns. O texto de justificativa relativo
ao art. 8º do Projeto de Lei n. 1.332/83 é revelador:

O conteúdo da educação recebida por aquelas crian-


ças negras que têm oportunidade de estudar repre-
senta outro aspecto da desigualdade racial anticons-
titucional na esfera da educação [...] a civilização e
história dos povos africanos, dos quais descendem as
crianças negras, estão ausentes do currículo escolar.
A criança negra aprende apenas que seus avós foram
escravos; as realizações tecnológicas e culturais africa-
nas, sobretudo nos períodos anteriores à invasão e co-
lonização européia da África, são omitidas. Também
se omite qualquer referência à história da heróica luta
dos afro-brasileiros contra a escravidão e o racismo,
tanto nos quilombos como através de outros meios de
resistência. Comumente, o negro é retratado de forma
pejorativa nos textos escolares, o que resulta na crian-
ça negra em efeitos psicológicos negativos amplamen-
te documentados. O mesmo quadro tende a encorajar,
na criança branca, um sentimento de superioridade
em relação ao negro. O art. 8º deste projeto de lei
objetiva a correção desta anomalia e a implementação
do direito à isonomia assegurada pela Constituição
(NASCIMENTO, 1983).

154
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

A argumentação é explícita. Trata-se de estabelecer a


oportunidade ao alunado brasileiro de obter informações
e reconhecer elementos da complexidade do continente
de origem de metade (pelo menos) de nossa população;
de estabelecer “lugares de memória” (NORA apud KING,
1996, p. 77) sobre o passado afro; de possibilitar a identifi-
cação positiva dos(as) alunos(as) negros(as) brasileiros(as)1
com aspectos de seu passado; de possibilitar ao alunado
brasileiro, de todas as cores, reconhecer a diversidade e
complexidade do continente africano e as profundas con-
tribuições das populações africana à humanidade.
Importante observar que a proposta de estudar as
contribuições afro se relaciona com a estruturação da iden-
tidade do negro brasileiro (MUNANGA, 1996; MUNANGA
e GOMES, 2005). A percepção é que idéias restritivas e
manipuladas sobre a história e as tradições africanas e
afro-brasileiras, sistematicamente difundidas pela escola,
pelos currículos e pelos livros didáticos (que operam tanto
por informações restritivas ou equivocadas quanto pela
omissão) atuam para criar nos alunos uma predisposição à
hierarquia racial. Possibilitar aos alunos, negros, brancos,
amarelos e indígenas, o conhecimento de História e Cul-
tura Afro-brasileiras teria o objetivo de reconhecer os ele-
mentos civilizatórios das culturas africanas e africanas da
diáspora, possibilitando aos alunos em geral o reconheci-
mento do processo civilizatório dos povos africanos e aos
alunos negros em particular a construção de identidade
pautada em aspectos de positividade sobre seu grupo de
pertença e sobre si mesmo.
O movimento de apagar os “lugares de memória”
das matrizes afro foi bastante efetivo, de forma que a co-
lonização cultural opera, em diferentes níveis, em todos
nós, manifestando-se em hipervalorização de tradições
européias e desvalorização de aspectos da cultura de ma-

1
Será utilizado, a partir deste ponto, o genérico masculino, como forma
de aliviar o texto.

155
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

triz africana. Possivelmente em função disso o trabalho de


formação de professores é uma “tarefa zumbílea”2, pois na
nossa formação escolar, educacional e cultural, as infor-
mações mais simplórias sobre nosso passado afro foram
sistematicamente negadas ou substituídas por informações
estereotipadas. Estamos, portanto, num movimento inicial
de descoberta da riqueza, da pluralidade, dos valores, do
desenvolvimento tecnológico, do alto desenvolvimento
social, de um sem-fim de aspectos civilizatórios de nossos
antepassados africanos e africanos da diáspora.
Para a compreeensão desse processo na educação
é caro o conceito de “alfabetismo da diáspora”, tal como
formulado por King (1996) com o sentido de conhecimen-
to e resignificação da “nossa história”, da história do povo
negro na diáspora. O alfabetismo da diáspora consiste na
aprendizagem da leitura de signos culturais das heranças
africanas, para além das distorções, da parcialidade e das
ausências determinadas pela hegemonia cultural e por sé-
culos de dominação.
O sentido de alfabetismo é de processo inicial e pro-
visório. A luta contra a discriminação racial que percorreu
o século XX se deparou com diversos processos de racia-
lização (APPIAH, 1997), entre os quais o estabelecimen-
to de conceitos e formas de compreensão distorcidos e
restritivos sobre a tradição africana e afro-brasileira. As
proposições do racismo científico, para além de sua re-
jeição após a segunda guerra mundial, conformaram ope-
radores importantes no campo simbólico. Por exemplo,
no imaginário, a Europa se impôs como modelo e centro
da civilização e civilidade e a África como sua negação,
o locus do primitivo, que passou de terra dos proscritos,
dos descendentes de Cam, compreendida como sinônimo
da ausência de civilização. Estas noções reducionistas,
parciais, sem contradições, ainda são marcadores sociais

2
Termo que emprestamos de Edna Roland, então coordenadora da
Área de Combate ao Racismo e Discriminação da Unesco no Brasil.

156
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

importantes no plano simbólico, como será analisado em


parte posterior do texto. Por exemplo, as nações, impérios
e civilizações de nossos antepassados africanos3 foram e
são denominadas “tribus”.
A busca de “alfabetização da diáspora”, de recupe-
ração de “lugares de memória”, define boa parte das ativi-
dades de formação de professores que desenvolvemos no
Neab-UFPR. Passamos do levar a termo eventos de curta
duração para priorizar o desenvolvimento de cursos de
média duração. Os eventos servem principalmente para
mobilizar, para aguçar a curiosidade. Mas uma formação
em que o processo de alfabetização da diáspora se ini-
cie precisa de carga horária mínima para dar início à for-
mação. Os cursos de extensão ofertados pelo Neab-UFPR
para professores da rede estadual do Paraná (parceria com
APP-Sindicato dos Trabalhadores da Educação Pública do
Paraná) e da rede municipal de Curitiba (parceria com
Sindicato dos Servidores do Magistério Municipal de Curi-
tiba - Sismmac), têm carga horária variando de 120 a 180
horas, que considero o mínimo para dar início à formação
de professores sobre os Estudos Afro-brasileiros.
Nos programas sempre constam disciplinas sobre
História da África e História dos Africanos da Diáspora.
Sobre a África, geralmente se trabalha a partir de noções
gerais sobre História da África Pré-Colonial, dando ênfase
a determinados períodos, a determinadas nações ou temá-
ticas da África Subsaariana (exemplo em MARÇAL, 2007).
Os estudos sobre as trocas comerciais entre a África e o
Ocidente e em particular os processo relativos à mercan-
tilização de escravos também são contemplamos (LIMA,
2007). No que se refere à História dos Povos Africanos
da Diáspora, trata-se tanto de aspectos gerais quanto de
questões específicas. Busca-se, naturalmente, a análise dos
povos da diáspora como sujeitos na História, tematizando

3
Também os americanos e estudar História Pré-colombiana das Améri-
cas é outro imperativo para uma visão mais elaborada da diversidade.

157
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

os diversos movimentos de resistência, por exemplo os


movimentos negros no decorrer do século XX (exemplo
em SOUZA, 2007). Num estado que nega a presença afri-
cana, na sua origem e na atualidade o contexto local sem-
pre é trabalhado a partir de conteúdos específicos sobre
História do Negro no Paraná. Um exemplo significativo é
a análise de fontes históricas paranaenses:

Sofismas como o de que os escravos da Comarca de


Paranaguá e Curitiba representavam contingente tão
escasso que, aqueles que os tinham, colocavam-nos
para realizar trabalhos domésticos, povoam os livros
didáticos e as aulas de História. [...] Bem, seria desne-
cessário dizer que minha opinião é diferente da vei-
culada por alguns desses ilustres intelectuais ligados
à construção de um ideário paranista. Mas ter opinião
diferente não basta. Portanto, o texto que você irá ler
a seguir é uma tentativa de reunir alguns poucos do-
cumentos – já que o espaço é limitado – e propor for-
mas de interrogá-los. Talvez, daí surja um novo enten-
dimento da experiência negra na História do Paraná
e, de quebra, uma pequena coletânea de documentos
para o estudo da cultura afro-brasileira em sala de
aula (LIMA, 2007, p. 97-98)

Outro tema trabalhado nos cursos do Neab-UFPR


diz respeito à Sociologia dos grupos raciais no Brasil. Tais
conteúdos têm parte de História, relativa ao pensamento
de intelectuais sobre as relações raciais no Brasil, do sé-
culo XIX aos nossos dias (comportando abordagens tanto
em divisões cronológicas quanto em aspectos específicos.)
Como exemplo, ver Costa (2007), parte relativa a desigual-
dades raciais no plano estrutural (estudos sobre indicado-
res de desigualdades entre brancos e negros no Brasil) e
no plano simbólico (estudos sobre os discursos racistas
e racialistas, as compreensões dos diferentes intelectuais,
ideários e imaginários), tópicos que serão tratados em es-
pecífico logo a seguir.

158
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

Relativo às culturas africana e africana da diáspora,


os cursos do Neab também têm apresentado abordagem
específica, com conteúdos sobre Artes Africanas e Afro-
brasileiras, em especial aspectos da estética e das expres-
sões plásticas; Estética e Corporalidade Negra no Brasil;
Aspectos gerais de Literatura Africana, Literatura Afro-bra-
sileira, Literatura Afro-americana, Movimento da Negritude
e suas Repercussões no Brasil (MARTINS, 2007); Literatura
Oral e Alteridade Afro-brasileira (SILVA, 2008). Relativo à
religiosidade afro-brasileira e à presença do negro no ca-
tolicismo (em particular Irmandades e Festas de Santos)
são trabalhados tanto conteúdos relativos a uma antro-
pologia de tais manifestações quanto às suas expressões
estéticas e plásticas.
Além dos conteúdos dos cursos de formação, o Ne-
ab-UFPR tem promovido eventos diversificados sobre as-
pectos específicos da cultura afro-brasileira, por exemplo
oficina de construção de instrumentos de congada; ofici-
nas de Maracatu Baque Virado (música e dança); oficinas
de estética e tranças afro; oficinas de contação de histórias
africanas e afro-brasileiras; projeção e discussão de filmes
afro-americanos. Tais eventos têm duplo intuito, de infor-
mar sobre aspectos específicos de cultura afro-brasileira
e de continuar o processo de mobilização de professores
e alunos das licenciaturas para o estudo e trabalho com
africanidades.
A formação de professores promovida pelo Neab-
UFPR trabalha com História e Cultura Afro-brasileiras e
com Educação das Relações Étnico-raciais, como propõe
o Parecer n. 03/2004 do Conselho Nacional de Educação
(que regulou a Lei n. 10.639/03). Farei uma discussão es-
pecífica sobre isso (para análise específica sobre as propo-
sições da lei e do parecer referidos ver ROCHA, 2007).

159
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

2 Educação das relações étnico-raciais

No Parecer n. 03/04, de forma mais explícita que


no texto da lei, estão expressos que o ensino de Histó-
ria e Cultura Afro-brasileiras deverá se realizar, nos di-
versos níveis (educação infantil, fundamental, médio e
superior) e modalidades (regular, educação de jovens e
adultos e educação especial) de ensino; que as diversas
disciplinas devem inserir em seus conteúdos elementos
de história e cultura afro-brasileira; que o ensino de
História e Cultura Afro-brasileiras abrange o ensino de
relações raciais no Brasil,

de conceitos e de suas bases teóricas, tais como racis-


mo, discriminações, intolerância, preconceito, estere-
ótipo, raça, etnia, cultura, classe social, diversidade,
diferença, multiculturalismo; de práticas pedagógicas,
de materiais e de textos didáticos, na perspectiva da re-
educação das relações étnico-raciais (BRASIL, 2004).

No plano teórico-conceitual adota-se o conceito de


raça como construção social e conceito analítico funda-
mental para a compreensão de desigualdades sociais – es-
truturais e simbólicas – observadas na sociedade brasileira
(SILVA, 2008). O uso do conceito de raça ajuda a atribuir
realidade social à discriminação e, conseqüentemente, a
lutar contra a discriminação. No Brasil, as relações raciais
estão fundadas em um peculiar conceito de raça e forma
de racismo, o “racismo à brasileira” (GUIMARÃES, 2002),
cujas especificidades são significativas para compreen-
der as relações entre os grupos de cor e as desigualdades
associadas. Particularidades como a relação entre raça e
classe social na hierarquização das pessoas, as idéias so-
bre o “embranquecimento”, o “mito da democracia racial”,
construídas na história das relações raciais brasileiras,
mantêm-se atuantes. O racismo “à brasileira” se constrói
e reconstrói mantendo desvantagens para a população

160
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

negra no acesso a bens materiais e simbólicos (PAIXÃO,


2006). Práticas cotidianas de discriminação constitutivas
da sociedade brasileira cumprem o papel de reinstituir a
subalternidade da população negra brasileira. A educa-
ção é partícipe importante nesse processo. Os resultados
de pesquisas estão dispostos em dois blocos, o primeiro
sobre desigualdades no plano estrutural, com síntese de
alguns estudos da área após sobre desigualdades no plano
simbólico, com ênfase nos estudos do Neab-UFPR.

Desigualdades educacionais
no plano estrutural

As pesquisas sobre desigualdades raciais que ana-


lisaram dados macrossociais - perspectiva que se estende
desde Florestan Fernandes até a contemporaneidade, com
os estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Avançada
(Ipea). A melhoria do sistema de coleta e sistematização
de dados pelo IBGE possibilitou avanços na análise das
desigualdades estruturais. Os próprios indicadores das
pesquisas censitárias e da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios/Pnad apontam as profundas desigualdades
raciais no Brasil.
Os estudos sobre as desvantagens da população ne-
gra apontam que as diferenças do passado não são sufi-
cientes para explicar as desigualdades atuais. As diferenças
de oportunidades de ascensão social e o racismo dirigido
aos negros são operantes para manter (e, em casos especí-
ficos, acentuar) as desigualdades, num processo de ciclos
de desvantagens cumulativas dos negros (SILVA, 2000).
Diversos indicadores sociais brasileiros revelam um país
com alto índice de desigualdade entre brancos e negros
(que perpassam as classes sociais). O racismo histórico
e contemporâneo constitutivo da sociedade brasileira fica
evidente quando se analisam diversos indicadores sociais,
ou quando se calcula o Índice de Desenvolvimento
161
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Humano (IDH) em separado para a população negra e


para a população branca: o de brancos equivale a 0,791
(41ª posição) e o de negros a 0,671 (108ª posição) (ta-
bulações e análise realizadas por PAIXÃO, 2006). Como
exemplos selecionamos alguns indicadores de renda, sa-
neamento e educação (Tabela 2).
No que se refere à educação, os resultados das pes-
quisas apontam grande desvantagem da população negra
em relação à branca. Ocorreu um aumento gradativo de
anos de estudo na população brasileira, mas as diferenças
entre brancos e negros se mantiveram. O mesmo ocor-
reu com as taxas de analfabetismo, que diminuíram no
total e se mantiveram as diferenças. As acentuadas desi-
gualdades educacionais foram analisadas por estudos di-
versos (HASENBALG, 1987; HASENBALG e SILVA, 1990;
ROSEMBERG, 1998; JACCOUD e BEGHIN, 2002; PAIXÃO,
2006). Em todos os níveis de ensino as desigualdades são
significativas, e aumentam exponencialmente nos níveis
de ensino mais elevados (HASENBALG, 1988, p. 136). A
comparação do desempenho escolar de crianças negras
e brancas, com mesmo nível de renda familiar e de parti-
cipação no mercado de trabalho, aponta o atraso escolar
significativamente maior entre os negros (ROSEMBERG,
1998), o que leva à conclusão de que o sistema de ensino
discrimina a população negra.
É discurso comum a atribuição das desigualdades
raciais às condições de origem. Por exemplo, as dife-
renças de escolaridade atual seriam reflexo da baixa
escolarização dos negros quando da abolição da escra-
vatura, que se reproduziram de geração em geração até
nossos dias. Essas explicações são muito parciais. As
desigualdades entre negros e brancos se devem, prin-
cipalmente, a diferenças de oportunidades de ascensão
social após a abolição e ao racismo dirigido aos negros
(HASENBALG, 1988; SILVA, 1988; JACCOUD e BEGHIN,
2002; PAIXÃO, 2006). A “herança da pobreza” é condi-
ção necessária, mas não suficiente, para explicar a po-
162
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

breza atual das famílias negras. A explicação ancorada


na análise de dados dos censos por Nelson do Valle
e Silva (1988; 2000) é de que as desigualdades raciais
brasileiras são produzidas em ciclos de desvantagens
cumulativas, de funcionamento intergeracional. A mo-
bilidade social e a aquisição de renda são dois elos des-
ta corrente, que se completa com outras características
socialmente relevantes, em primeiro plano educação, e
outras tais como saúde e moradia. São diversos fatores
pelos quais as desvantagens no ciclo vital dos indivídu-
os negros se acumulam (SILVA, 2000).
As explicações sobre as desigualdades educacio-
nais trabalham com uma ampla gama de fatores. Um
primeiro fator explicativo é a diferença entre as esco-
las freqüentadas por negros e brancos, que Hasenbalg
(1987) nomeou como “diferença no recrutamento”. As
escolas de locais onde a população apresentava rendi-
mentos mais baixos eram as que recebiam menor aporte
de verbas. O custo-aluno variava de US$ 28,5 no Nordes-
te rural a US$ 197,2 no Sudeste urbano (ROSEMBERG,
1998, dados do Ministério da Educação de 1990), o que
determinava que as escolas fossem não escolas para ca-
rentes, mas as próprias “escolas carentes”. Os dados de-
mográficos indicaram que os negros do estado de São
Paulo freqüentavam, preferencialmente, a rede pública
de ensino, cuja qualidade tende a ser inferior à da escola
privada. Quando freqüentavam a rede privada, os ne-
gros ocupavam principalmente os cursos noturnos, que
também apresentam tendência à qualidade inferior. Além
disso, as escolas de 1º grau que freqüentavam tinham
menor número de horas diárias de aula, fator que se so-
brepunha a outras carências, como tamanho da escola e
número de turnos. O fato de os negros estarem em maior
proporção nas “escolas carentes” explicaria as desigual-
dades de aproveitamento dos grupos raciais. Escolas que
atendiam alunos de classe média apresentaram, confor-
me dados de Dias (apud HASENBALG, 1987), índice de
163
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

sucesso entre 80 e 90%, e as que atendiam alunos po-


bres apresentaram um fracasso entre 60 e 70%. Alunos de
classe média estudando em escolas pobres tiveram pior
rendimento, e alunos pobres estudando em escolas de
classe média tiveram melhor rendimento. As escolas de
classe média foram designadas como lugares de “otimis-
mo educacional”, que influencia os resultados positivos;
as escolas para pobres, ao contrário, foram designadas
locais da “ideologia da impotência” (HASENBALG, 1987;
ROSEMBERG, 1998; TELLES, 2003, p. 238). Os dois últi-
mos autores descrevem o fenômeno com o conceito de
profecia auto-realizadora. Os alunos negros apresentam
a tendência de freqüentar escolas onde reina a “ideologia
da impotência”. Assim, a seletividade é iniciada pelo re-
crutamento do alunado negro para essas escolas.
Outra pista para a discriminação imputada aos alu-
nos negros é a segregação espacial (ROSEMBERG, 1998;
TELLES, 2003). É plausível a hipótese de que as famílias
negras de melhor nível socioeconômico tendem a ocupar
espaços destinados a camadas mais baixas da população,
para diminuir as possibilidades de serem discriminadas,
embora faltem dados mais concludentes sobre a distribui-
ção espacial e a utilização dos equipamentos escolares
(ROSEMBERG, 1998).
Correlatas a estas, estão as estratégias utilizadas por
famílias de negros para a socialização de seus filhos. Mem-
bros da classe média negra, por vezes, retardam as expe-
riências de enfrentamento de discriminação racial, prote-
gendo as crianças antes de sua entrada na escola. Esta
passa a ser o locus das primeiras situações de conflitos ra-
ciais, e podem criar nestas crianças reações ambíguas em
relação à escola, que é local de discriminação e ao mesmo
tempo possibilidade de ascensão social (BARBOSA, apud
ROSEMBERG, 1998).
O preconceito educacional dentro das escolas foi
explicação para as desigualdades, fornecida por estu-
dos diversos, tanto os anteriormente relatados, que ana-
164
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

lisaram macrodados, quanto os que analisaram questões


no interior da escola. As relações raciais nas escolas
continuam pautadas, por vezes de forma aberta, pela
imputação aos negros de impossibilidades intelectu-
ais, por hostilidades, por desqualificação da identida-
de racial (GONÇALVES, 1987; FIGUEIRA, 1990; PINTO,
1993). O uso de ofensas raciais entre os pares foi, em
um contexto de educação infantil, freqüente (CAVALLEI-
RO, 1999). Em escolas determinadas, professores apre-
sentaram uma visão predominantemente estereotipada
a respeito dos alunos, dificuldade em lidar com a hete-
rogeneidade de raça e de classe e reforço da crença de
que os alunos pobres e negros não são educáveis (HA-
SENBALG, 1987). Os brancos em geral não reconhecem
como iguais (portanto discriminam) negros que ascen-
deram racialmente, e o mesmo pode ocorrer na esco-
la (ROSEMBERG, 1998), com a população negra sendo
nivelada pelo critério racial. A pertença racial nivelaria
as possibilidades de acesso, permanência e sucesso nas
redes de ensino.
Por vezes as discriminações podem se manifestar
de formas mais indiretas ou sutis. Um estudo em escola
de educação infantil revelou que professores mantinham
maior proximidade física com alunos brancos, mais elo-
giados que as crianças negras, e que ignoravam atos dis-
criminatórios entre os alunos (CAVALLEIRO, 1999).
Outra forma de manifestação não direta de discrimi-
nação é a centralidade dos currículos em perspectiva eu-
rocêntrica (simbólica), que valoriza os aspectos de origem
e influência da Europa, tomada como locus da civilização.
Paralelamente, os legados de outras origens são desconsi-
derados e/ou desvalorizados. Tais explicações que apon-
tam para a efetividade do plano simbólico para reproduzir,
sustentar e criar desigualdades raciais serão examinadas a
seguir. Antes comento a articulação de tais conteúdos com
a proposta de formação para a educação das Relações
Étnico-raciais do Neab-UFPR.
165
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Observei anteriormente a ampliação de horizonte


realizada pelo Parecer n. 03/04 do CNE para a discussão
sobre racismo no Brasil. O conhecimento sobre as desi-
gualdades raciais no plano estrutural é importante como
contradiscurso ao ideário do mito da democracia racial
que, embora pouco aceito na academia atualmente e me-
nos reproduzido nos discursos públicos, continua atuante
na realidade brasileira e certamente foi muito importante
pelo menos na formação da maior parte dos professo-
res. Ou seja, a desconstrução do mito da democracia ra-
cial é processo que está em operação. É importante que
os professores tenham conhecimento sobre as pesquisas
brasileiras a respeito das desigualdades raciais, tanto para
modificarem suas concepções como para operarem a des-
construção do mito da democracia racial e fornecerem
subsídios a seus alunos para a análise crítica das desigual-
dades do país. Em função disso, as formações promovidas
pelo Neab-UFPR tratam do tema da desigualdades no pla-
no estrutural com conteúdos específicos, além de termos
também promovido evento e curso de curta duração espe-
cífico sobre a temática.

Desigualdades raciais no plano simbólico

As explicações sobre as desigualdades de desempe-


nho de alunos negros e brancos encontram-se na articula-
ção dos estudos sobre desigualdade no plano estrutural e
no plano simbólico. Os movimentos negros e pesquisado-
res negros mantêm como uma de suas reivindicações no
campo da educação o ensino de História e Cultura Afro-
brasileiras como forma de adequar o tratamento do patri-
mônio cultural negro nos currículos e de dar visibilidade
ao negro na sociedade brasileira “Em uma análise sobre as
manifestações da discriminação racial, na escola, é preciso
que se atente não só para o que se transmite, mas para o
que se impede de transmitir” (GONÇALVES, 1988, p. 61).
166
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

Uma questão importante, portanto, para a compreensão


do racismo na escola brasileira é o silêncio (GONÇALVES,
1987). Tanto sobre a particularidade cultural da população
negra, quanto sobre os processos de discriminação, o si-
lêncio atua como mecanismo que permite ocultar as desi-
gualdades. No Paraná e em Curitiba, estado e cidade que
construíram um ideário de mais europeus que o restante
do Brasil e negam de forma mais veemente a presença e
a importância da população negra (que hoje corresponde
a 25% da população segundo dados da Pnad 2006), tal
análise reveste-se de ainda maior relevância.
A invibilização do negro, a difusão de um imaginá-
rio negativo em relação ao negro e dos significados po-
sitivos em relação aos brancos é estratégia de discurso
racista observada como forma de discriminação no interior
das escolas, via livros didáticos e literatura infanto-juvenil
(PINTO, 1993; ROSEMBERG, 1998; TELLES, 2003; SILVA,
2006, 2008), atuante também em diversos espaços sociais,
notadamente nos meios midiáticos.
No campo teórico conceitual, considero que o dis-
curso é atuante para a produção e reprodução de desigual-
dades raciais. As pesquisas brasileiras estiveram atentas à
desigualdade racial no plano simbólico desde a década
de 1950. Os estudos de Moreira Leite (apud ROSEMBERG,
BAZILLI e SILVA, 2003) e de Bazanela (apud ROSEMBERG,
BAZILLI e SILVA, 2003), sobre relações raciais em livros
didáticos, apontaram que a discriminação raramente se
apresentava de forma explícita. A hierarquia entre brancos
e negros se apresentava em formas implícitas, particular-
mente pela correlação desses com posições de desvalori-
zação social.
Do ponto de vista de produção de conhecimento,
no plano simbólico situa-se grande parte dos estudos do
Neab-UFPR, cujos resultados são uma fonte de alimen-
tação direta de conteúdos ministrados em nossos cursos
de formação. No que se refere à História do pensamento
sobre relações raciais no Brasil, Hilton Costa e um grupo
167
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

de orientandos4 de iniciação científica desenvolvem aná-


lise sobre os Cadernos do IHGB do final do século XIX e
início do século XX, vinculados ao projeto de pesquisa
intitulado “Assim se fez um povo”. A análise das idéias
de intelectuais que formataram a compreensão sobre as
relações raciais na República pode funcionar como instru-
mento importante para a análise das relações raciais em
nosso país.
Faço parênteses para comentar como o Neab-UFPR
e diversos outros Neabs e programas correlatos (são vá-
rios os exemplos, Penesb da UFF; Ações Afirmativas da
UFMG; Neab da UDESC; NEAA da UEL, para ficar somente
em exemplos que tive oportunidade de acompanhar um
pouco mais de perto) desempenham um papel na uni-
versidade pública brasileira muito comentado mas pou-
co concretizado, a articulação ensino-pesquisa-extensão.
Como centros produtores de conhecimento, articulados
com movimentos sociais e preocupados em atuar na for-
mação inicial e continuada de professores, os Neabs têm
realizado esta complexa tarefa de articular as três ativida-
des fim da universidade (pública, gratuita e de qualidade,
para repetir as palavras de ordem) brasileira, justamente
por seu caráter de constituição de núcleo de pesquisa que
parte de intensa relação com movimentos sociais e com
formação de professores.
Outra pesquisa, orientada por Alexandro Dantas
Trindade, discute a formação do imaginário brasileiro e os
processos de racialização e de hierarquização entre bran-
cos e negros no cinema. Os estudos sobre racialização
no cinema são parcos no Brasil e a pesquisa pretende
atuar para preencher parte desta lacuna. Os trabalhos de

4
Os projetos de pesquisa e de extensão do Neab-UFPR são realizados
com apoio do Programa de Apoio a Ações Afirmativas para Inclusão
Social em Atividades de Pesquisa e Extensão na UFPR, financiado pela
Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecno-
lógico do Paraná.

168
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

referência de Rodrigues (1988; 1997) analisam com os es-


tereótipos sobre personagens negros na literatura são fon-
te para a construção de personagens negros no cinema
brasileiro.
Para além da Literatura Africana e Africana da Di-
áspora que pontuada na parte anterior, os conteúdos dos
cursos do Neab-UFPR e de eventos de curta duração vol-
tam-se também para a análise sobre personagens negros
na literatura brasileira (DUARTE e FELIX, 2007), oferecen-
do aos professores instrumentos teórico-conceituais para
analisar de forma crítica a diferentes formas de hierarqui-
zação racial presentes na literatura brasileira e que alimen-
tam diversos outros discursos midiáticos, em particular te-
lenovelas, cinema e literatura infanto-juvenil.
Voltam-se para a literatura infanto-juvenil e para ou-
tros discursos dirigidos à infância, de livros didáticos e
de jornais, os trabalhos de iniciação científica, especiali-
zação e mestrado por mim orientados, alem das análises
que produzo (SILVA, 2007; 2008). Nos cursos de formação
de professores são trabalhados conteúdos tanto relativos
às pesquisas brasileiras sobre discurso racista em livros
didáticos, na literatura infanto-juvenil e em suplementos
infanto-juvenis quanto os resultados de estudos do Neab-
UFPR sobre tais meios discursivos.
Além disso, no Neab-UFPR oriento a organização de
um banco de dados sobre o negro em jornais paranaenses
de grande circulação. Trabalhamos com a leitura comple-
ta, durante os anos de 2006 e 2007, dos jornais Gazeta do
Povo, O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná, separação
e arquivo físico, em categorias predeterminadas, de todos
os textos (notícias, reportagens, cartas, editorias, etc. – qual-
quer formato textual) com personagens negros e de todas
as peças publicitárias com personagens humanos. Os pro-
fessores dos cursos de formação do Neab-UFPR são convi-
dados a conhecer o banco de dados e têm acesso à análise
que produzimos (SILVA, OLIVEIRA e ROCHA, 2008; OLI-
VEIRA, 2007; 2008; ROCHA, 2007; 2008; RANGEL, 2008).
169
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Outro estudo é orientado por Marcos da Silva Sil-


veira, que analisa discursos sobre políticas afirmativas em
diferentes meios, como discurso de revista científica,
discurso no parlamento, discurso no cotidiano. A aná-
lise revela como formas de hierarquização típicas do
mito da democracia racial são acionadas para fazer con-
traposição às políticas afirmativas voltadas à população
negra, em particular às denominadas cotas no ensino
superior.
A discussão sobre políticas afirmativas no ensino
superior é cara ao Neab-UFPR (SILVA, DUARTE e BER-
TULIO, 2006) e sua análise, tanto no plano de discursi-
vo como promovido pelos estudos de Marcos Silveira,
como na sua implantação e impacto na promoção da
igualdade racial, merecem destaque. Primeiro porque a
discussão pública sobre o tema o tornou alvo de intensa
mobilização. Os professores trazem muitas indagações
a respeito das cotas para negros, no ensino superior e
na própria UFPR. A discussão sobre os fundamentos
das cotas e das políticas afirmativas mobiliza argumen-
tos relativos às relações raciais no Brasil, portanto é
um processo de atendimento ao interesse dos cursistas
relacionado diretamente a conteúdos a serem ministra-
dos nos cursos. Além disso, considero que o debate
público sobre as cotas para negros no ensino superior
apresentou resultado inesperado no plano simbólico.
Os argumentos do mito da democracia racial são cada
vez menos defensáveis e o reconhecimento dos pro-
cessos de discriminação, implícita e explícita, imputada
ao negro brasileiro, são cada vez mais reconhecidos.
As categorias de classificação étnico-racial do IBGE e a
classificação bipolar são mais reconhecidas, tendo im-
pacto significativo nos índices da população negra nos
resultados da Pnad de 2006, apontando que a estratégia
de embranquecimento na auto-identificação diminuiu
em prol da auto-identificação como negro(a) (catego-
rias preto e pardo do IBGE).
170
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

3 Algumas considerações finais

Diversas vezes professores que freqüentaram nossos


cursos afirmaram que não imaginavam quanto eram igno-
rantes em relação a aspectos diversos das “africanidades”.
Ao trabalharmos com professores da rede pública estadual
(do Paraná) e municipal (de Curitiba) muitas vezes nos de-
paramos com suspiros e outras manifestações de perplexi-
dade face a um conjunto complexo de informações sobre
os estudos afro-brasileiros. Em variadas ocasiões, em alto
e bom som, nossas aulas foram espaços para perguntas in-
conformadas sobre o porquê de a escola não difundir tais
informações. O processo de formação sobre estudos afro-
brasileiros muitas vezes tem sido o pilar para novas pes-
quisas e para o processo de formação continuada de todos
os envolvidos com a temática, ou seja, somos partícipes
do alfabetismo da diáspora. Sobre nós mesmos, pesquisa-
dores e “militantes” pela igualdade racial, diversas vezes o
processo de reconhecimento dos valores e tradições afro
teve impacto de ressignificação sobre o ser negro no Brasil
contemporâneo. Assim, a alfabetização da diáspora atinge,
de forma recíproca, a professores e alunos em processo
contínuo de formação.
No entanto, as lacunas são muitas e o processo de
formação é inicial. Os resultados que conquistamos, no
Neab-UFPR, na formação continuada, convivem com pou-
co avanço na formação inicial de professores. Poucas ve-
zes conseguimos a aprovação de conteúdos específicos
sobre História e Cultura Afro-Brasileiras e sobre Educa-
ção das Relações Étnico-raciais nos cursos de formação de
professores. Mais freqüente é a aprovação de disciplinas
optativas, ou seja, continuaremos formando professores
que necessitarão de nossos cursos de formação continua-
da para obterem informação mínima.
Além disso, faltam especialistas para diversos con-
teúdos e são muitas as lacunas que existem em conteú-
dos que poderiam ser trabalhados e aprofundados, tanto
171
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

no que se refere à História da África quanto a aspectos


variados da Cultura Africana e Afro-brasileira. Em exem-
plos que certamente poderiam se multiplicar, os cursos
do Neab-UFPR mal tocam em informações sobre o Tea-
tro Experimental do Negro, pouco vamos além das pro-
posições de desenvolver estudos mais específicos sobre
Literatura Africana de línguas Portuguesa, Francesa e In-
glesa, como também de autores da diáspora brasileira e
das Américas.
Enfim, essa conclusão é de que bastante temos fei-
to, mas muito mais há que fazer para operarmos uma
mudança de concepção curricular que leve a formação
de professores a uma perspectiva de multiculturalismo
crítico.

172
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias

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176
Para além do imaginário congelado
do território e da Identidade
brasileira: entre memórias
e tradições indígenas

Aloísio Jorge de Jesus Monteiro

De memórias e tradições
Em cada época, é preciso arrancar a tradição
ao conformismo, que quer apoderar-se dela. [...]
O dom de despertar no passado as centelhas da
esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não
estarão em segurança se o inimigo vencer.
Walter Benjamin

Walter Benjamin foi um autor que, sem fugir ao
estudo objetivo do passado, permanecia com seus pés
firmes e seguro na realidade presente, lutando para que
o futuro não se encolhesse, ou seja, caísse exterminado
naquele.
Com isso, colocando a questão da memória e da
alegoria como central no seu trabalho, Benjamin levan-
ta, por um lado, o problema do círculo hermenêutico
que se coloca entre a necessidade de entender o pas-
sado para se compreender o presente e a necessidade
de desvelar o presente para se capturar o passado; e
por outro, diz que a escrita alegórica significa o seu
outro. Esta escrita, para ele, realiza o não-ser do que
177
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

ela representa, isto é, o texto do conteúdo latente passa


a ser traduzido pela tarefa do sonho, para o texto do
conteúdo manifesto.
Para Benjamin, no conceito de memória “existe um
encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes
e a nossa”. Afirma ele que alguém na terra está a nos es-
perar e que há uma força, um sopro de ar que já foi respi-
rado antes, um apelo, dos ecos de vozes que emudeceram.
E como um apelo não pode ser rejeitado impunemente,
cabendo a nós ouvirmos estes ecos, identificarmos o tom
e pegarmos daí a canção.
Na geografia o mapa é a representação estática da
totalidade territorial. Já a cartografia é uma forma, um
desenho, que se constrói e se incorpora aos movimen-
tos e transformações dos diversos relevos e paisagens.
Neste sentido, podemos dizer que cartografar significa
romper com a forma estática, quebrar com o sistema
de espelhos, incorporar movimentos, considerar trans-
formações.
Relevos e paisagens, sociais e afetivas, podem tam-
bém ser cartografadas. Então, a cartografia nada mais se-
ria que “o desmanchamento de certos mundos – sua per-
da de sentido – e a formação de outros: mundos que se
criam para expressar afetos contemporâneos, em relação
aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos”.
(ROLNIK, 1989, p. 15).
É neste sentido, ou seja, na apropriação de novas
ferramentas de trabalho, mais plásticas e resistentes, asso-
ciadas a uma racionalidade mais abrangente, mais plural,
onde os “nós dos sentidos e da intuição” possam ser desa-
tados para participar da “festa das investigações”.
Como nos aponta Linhares1, historicamente, em po-
lítica educacional, temos repetido ênfases no estudo das
instituições de governo, omitindo ou aligeirando críticas,

1
Anotações pessoais em encontro do Grupo de Pesquisa Aleph, em
setembro de 2005.

178
Para além do imaginário congelado do território...

de como esta perversa utilização do público vem apoian-


do representações do poder, em imagens do locus do po-
der, que o legitimam, mas que precisam ser estremecidas,
desnaturalizadas.
Benjamin sublinhou também a necessidade de mer-
gulharmos nos desejos de emancipação ainda presos aos
sonhos das imagens dos velhos conflitos, presentes na his-
tória contada oficialmente. “Articular o passado historica-
mente não significa conhecê-lo tal como ele propriamente
foi. Significa apoderar-se de uma lembrança na forma em
que ela cintilou no instante do perigo” (BENJAMIN, 1985,
p. 224).
É essa história triunfalista e cumulativa, estabelecida
como um “continuum homogêneo”, que Benjamin enten-
de que a política deve combater. Observa que esta é mar-
cada pela ganância da adição típica da produção capitalis-
ta, reafirmando, assim, mediante análises e comparações,
a importância das vitórias daqueles que continuam com as
mãos nas rédeas do “mundo civilizado”.
Esta homogeneidade que empobrece a vida precisa
ser aberta, fazendo aparecer as experiências coletivas, os
desejos que fizeram pulsar o presente, densos de conflito
e vazios da história oficial. Sim, porque o presente é o
“presente”. Precisamos abri-lo, em vez de simplesmente
ficarmos a admirar o embrulho e perdermos o prazer de
desfrutar da surpresa. “Todos os que até hoje venceram
participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de
hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no
chão. Os despojos são o que chamamos de bens culturais”
(BENJAMIN, 1985, p. 225).
Para Benjamin, é fundamental construir pontes en-
tre a utopia (futuro), os sonhos que pareciam impossíveis
(passado) e a vida (presente). Este antagonismo convi-
da um elemento de mediação, que este filósofo elabora
através do conceito de “zona de despertar”, que para ele
são exatamente os entrelugares da relação entre passado,
presente e futuro.
179
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Nesse encontro, os exercícios de imaginação pode-


riam ser configurados em uma reapropriação potente e
viva, sem a rigidez das representações científicas e com
vínculos de afeto que tornassem as experiências passadas
imersas de futuro.
A política em Benjamin supõe sujeitos que sonham
e despertam, ligados a uma experiência histórica que
transcende suas vidas individuais e que não cabe em uma
corrida utilitária sem passado e sem futuro, ou seja, sem
memórias e sem projeto.

Territórios e identidades:
debate introdutório à questão indígena

Segundo Walter Benjamin, em determinados mo-


mentos históricos a civilização assume características de
barbárie. Podemos perceber um processo acelerado de
exclusão que se alarga e de movimentos plurais que avan-
çam. Uma pilha de produtos culturais sobre nossas cabe-
ças, muitas vezes, nos impede de avançar.
É necessário situarmos o lugar dos movimentos indí-
genas como instrumentos para superação de uma política
neoconservadora, expressa por uma globalização exclu-
dente, não podendo subtrair-se dos impactos marcados
pela polifonia de diversos sujeitos históricos, que se apre-
sentam, concretamente, na transformação do crescente ce-
nário de violência do mundo atual.
Assim, a luta pela demarcação dos territórios indí-
genas, em conexão com a defesa das identidades de seu
patrimônio histórico cultural, assume características de
centralidade no debate atual.
Buscando radicalizar, nesse sentido, a apreensão de
possibilidades mais plurais, procuramos identificar os con-
ceitos de território e identidade, bem como suas possíveis
confluências com a complexidade das novas configura-
ções atuais.
180
Para além do imaginário congelado do território...

Territórios: tecendo os fios

Vivemos com uma noção de território herdada


da modernidade [...] Trata-se de uma forma
impura, um híbrido, uma noção que, por si
mesmo, carece de constante revisão histórica
[...] Seu entendimento é, pois, fundamental
para afastar o risco de alienação, o risco da
perda do sentido individual e coletivo,
o risco da renúncia ao futuro.
Milton Santos

Partimos de uma noção político-jurídica de territó-


rio desde a fundação do Estado moderno, no século das
luzes, que se manteve associada ao conceito de Estado-
Nação, primando, como afirma Milton Santos, pela subor-
dinação eficaz do território ao Estado. O território marcava
e definia o Estado-Nação, enquanto este o moldava como
Estado territorial e território “estatizado”.
Hoje, vivemos um processo de transformações pro-
fundas nas diversas esferas do relacionamento humano
mundial de uma modernidade tardia e presenciamos mu-
danças significativas no processo de transnacionalização
do território. “Mas, assim como antes tudo não era, di-
gamos assim, território ‘estatizado’, hoje tudo não é es-
tritamente ‘transnacionalizado’” (SANTOS, 1994, p. 15).
Portanto, até mesmo nos lugares onde os processos de
mundialização se apresentam de forma cada vez mais efi-
cientes, segundo Santos, os territórios habitados, através
de outras tessituras a partir de novas redes de comple-
xidade, acabam por impor ao processo de globalização
a sua revanche, isto é, um outro convite para um novo
embate.
A crise da modernidade que presenciamos como
atores, muitas vezes como protagonistas e em outras como
coadjuvantes, nos remete a um momento histórico em que
181
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

o velho não dá mais conta de explicar a realidade, ao


mesmo tempo em que o novo ainda não se estabeleceu.
Como pergunta Haesbaert (2002): em relação ao território,
ao espaço humano, o que seriam esse novo e esse velho?
Sabemos que os espaços não foram suprimidos e
que se a velocidade do tempo acaba por destituir as dis-
tâncias, os espaços, mas que isto se deve, fundamental-
mente, ao aumento do desenvolvimento e avanços tec-
nológicos, que colocam a relação espaço-tempo em um
processo cada vez mais dinâmico e de virtualidade.
Até mesmo porque, se as relações são instantâneas
e se o tempo desaparece, como podemos ter o chamado
“tempo real”? De qual “real” falamos?
Nessa lógica, a maior parte das argumentações são
marcadas por uma tentativa de dissociação das noções de
espaço-tempo, sem se perceber, muitas vezes, que uma dá
sentido a outra.

Tempo e espaço são referências fundamentais em


nossas vidas. Ao tentarmos suprimir uma ou outra,
podemos suprimir nossa própria identidade. Ou fun-
dando outra, completamente distinta. Mas, como não
acreditamos que a atual crise (de representação, so-
bretudo) seja uma crise de mudanças radicais a esse
ponto, nossa tese é de que, ao invés de estarem de-
saparecendo, a geografia e seus espaços – ou territó-
rios – estão, na verdade, emergindo sob novas formas,
com novos significados (HAESBAERT, 2002, p. 31).

Algumas novas formas emergentes de territorializa-


ção, muitas vezes, acabam por aprofundar um processo
de desterritorialização, na tentativa de reterritorializar di-
versos grupos sociais em novas bases territoriais, muito
mais identificadas com um processo de pauperização e
exclusão profundas, ou seja, visam a recompor e deslocar
o espaço, a cultura, a economia e a organização social e
política de um grupo específico, buscando reconstituí-los
em novas bases territoriais, a fim de garantir a manutenção
182
Para além do imaginário congelado do território...

do poder instituído, no interior, inclusive, de suas bases


simbólicas.
Então, muito mais do que a aniquilação dos territó-
rios, o que presenciamos é a tentativa de estruturação de
outras formas de significações e organizações territoriais
das sociedades tradicionais, em que, na realidade, não po-
demos nos deixar iludir e assim perdemos a perspectiva
de uma territorialização, ainda que permeada pela com-
plexidade de processos múltiplos e diferenciados, deve
estar socialmente referenciada, articulada a seu plano eco-
nômico-político e marcada por suas dinâmicas simbólico-
culturais.
No que diz respeito ao significado de territorialida-
de, pode-se defini-lo, segundo Haesbaert, em três grandes
linhas gerais.
A primeira entende o território como a base material
concreta. Isto é, enquanto meio de produção e reprodu-
ção da sociedade, criando assim um vínculo estreito de
dependência entre o sentido de territorialidade e a base
de produção material, ou seja, a terra.
A segunda se dá a partir da centralidade da con-
cepção política. Identifica as diversas relações de poder
e controle, individuais e sociais, nos espaços materiais de
existência humana. Aqui o entendimento clássico da no-
ção de território, se dá, a partir de sua vinculação ao con-
ceito de Estado-Nação, mas não reduzido a este, de forma
estrita.
E por último a perspectiva da dimensão cultural no
significado de território, que identifica o espaço territorial
como aquele marcado por suas identidades.
Nesse campo, identificamos aqueles que defendem,
por um lado, uma reterritorialização mais radical, a partir
do tensionamento das identidades, como propõe Hunting-
ton, na tese do “choque de civilizações”; e, por outro, os
que identificam a necessidade de uma desterritorialização
a partir do conceito de culturas híbridas, representados
por Néstor García Canclini e Homi Bhabha, entre outros,
183
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

como também, no entendimento de circularidade de cul-


turas, proposto por Carlo Ginzburg.
Concordamos com Haesbaert (2002): “É muito difícil
estabelecer fronteiras entre a concepção política e a con-
cepção cultural de território”.
Entendendo que a produção simbólica é indissocia-
velmente perpassada pelas relações de poder, a cultura
aqui, necessariamente, precisa ser apreendida enquanto
cultura política. Ou seja, se por uma via identificamos a
dimensão político-ideológica do poder simbólico (cultura
política) no debate da territorialidade, por outra, não du-
vidamos da existência, na mesma dimensão (político-ide-
ológica), das diversas possibilidades de políticas culturais
homogeneizadoras (muitas vezes enquanto políticas pú-
blicas), que visam à desconstrução e à desterritorialização
de conhecimentos tácitos e culturas tradicionais.

É nessa perspectiva de cultura política, ao mesmo tem-


po material e simbólica, que percebemos a dimensão
cultural dos processos de desterritorialização. Alguns
autores, com tendências culturalistas, afirmam que o
próprio caráter cultural dos territórios precede e/ou
se impõe sobre a natureza política. Não se trata, po-
rém, de substituir uma visão “materialista” por uma vi-
são “idealista” dos processos de desterritorialização
(HAESBAERT, 2002, p. 39).

Hoje, vendo a fragmentação territorial, associada a


um processo de globalização e ocidentalização cultural
planificada, em uma perspectiva instituída (oficial, hege-
mônica), identificamos, como conseqüência, o declínio
e conseqüente deslocamento do conceito de territórios
Estado-nacionais, para o fortalecimento do caráter polí-
tico da noção de territórios identitários, a partir de um
processo de etnicização do significado de territorialidade,
em grande parte presente em diversos movimentos sociais
reivindicatórios e, principalmente, na lógica do poder ins-
tituído.
184
Para além do imaginário congelado do território...

Entretanto, em uma via instituinte, muito mais do


que um embate entre as dimensões culturais e políticas,
devemos aprofundar a relevância do tratamento das di-
versas possibilidades e significações de territorialização
e desterritorialização, baseados nos diferentes níveis de
interações complexas – levando em conta objetividades
e subjetividades, sonhos e condições sociais –, que com-
põem as diversas tentativas de reterritorialização das co-
munidades tradicionais da sociedade (como é o caso das
diversas tradições indígenas), no interior de uma perspec-
tiva de garantia da autonomia, do respeito às diferenças e
da dignidade humana.

As buscas mais radicais sobre o que significa estar


entrando e saindo da modernidade são as dos que
assumem as tensões entre desterritorialização e reter-
ritorialização. Com isso refiro-me a dois processos: a
perda da relação “natural” da cultura com os territó-
rios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas
relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas
e novas produções simbólicas (GARCÍA CANCLINI,
1997, p. 43).

Entendemos, assim, que o debate sobre as diversas


possibilidades da noção de território está estritamente liga-
do ao significado de identidade.

Identidades: entre fixas e fluidas

Na introdução do debate sobre os sentidos do termo


“identidade”, uma perspectiva bastante esclarecedora é a da
divisão em dois campos centrais de discussão, defendida
por Kathryn Woodward, traduzida na tensão entre a pers-
pectiva essencialista e a não essencialista de identidade.
Para Woodward, o essencialismo identitário pode se
constituir tanto pelo campo da história quanto pelo bioló-
gico, ou seja, “certos movimentos políticos podem buscar
185
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

alguma certeza na afirmação da identidade apelando seja


à ‘verdade’ fixa de um passado partilhado seja a ‘verdades’
biológicas” (2000, p. 15).
Na esteira dessa lógica encontramos também mo-
vimentos étnicos, religiosos, nacionalistas, etc., que, com
freqüência, “reivindicam uma cultura ou uma história co-
mum como fundamento de sua identidade” (2000, p. 15).
Já para realizarmos uma aproximação ao campo não
essencialista do conceito de identidade, ainda segundo a
autora, precisamos de uma análise da inserção da identi-
dade naquilo que ela chama de “circuito da cultura”, como
também, concordando com Hall (1997), na “forma como
a identidade e a diferença se relacionam com a discussão
sobre representação” (WOODWARD, 2000, p. 16).
No interior desta perspectiva, Bauman (2005), apoia-
do em Siegfried Kracauer, define os possíveis significados
de identidade a partir da existência do que ele chama de
“comunidades de vida” e “comunidades de destino”.
A primeira se caracteriza pelas comunidades que
“vivem juntas em ligação absoluta”; e a segunda pelas co-
munidades cujas ligações são “fundadas unicamente por
idéias ou por uma variedade de princípios”.
Para Bauman, a necessidade da definição identidade
somente surge com a exposição do conceito de “comuni-
dade de destino” (fundada por idéias), na transcendência
de uma possível visão essencialista de identidade, a partir
de uma compreensão fixada de comunidade de vida.

É porque existem tantas dessas idéias e princípios em


torno dos quais se desenvolvem essas “comunidades
de indivíduos que acreditam” que é preciso compa-
rar, fazer escolhas já feitas em outras ocasiões, tentar
conciliar demandas contraditórias e freqüentemente
incompatíveis (BAUMAN, 2005, p. 17).

Por outro lado, ousaria afirmar a também existência


de uma terceira categoria presente na articulação das di-

186
Para além do imaginário congelado do território...

versas possibilidades de entrelaçamentos complexos entre


as comunidades de vida e de destino, definidas por Bau-
man, que denomino “comunidades de fronteiras”.
Estas comunidades se caracterizam pela possibilida-
de de apesar e além de “viverem juntas” (comunidades de
vida), possuírem, dinamicamente, em seu interior, “mul-
ticomunidades de destino”, ou seja, uma multiplicidade
de comunidades que se articulam em diferentes esferas e
“variedades de princípios e idéias”.
Assim, a comunidade de fronteira se situa naquilo
que Homi Bhabha chama de “entrelugares”, ou seja, nos
espaços de vida fronteiriços.
Ao pensarmos, nesse sentido, a noção de identida-
de, não podemos nos fixar em duas únicas dimensões
polarizadas a partir de um determinado espaço territorial,
isto é, nos atermos a uma perspectiva interna e/ou externa
de vidas comunitárias, e, a partir de então, realizarmos as
articulações entre aqueles que pertencem (internos) e os
estrangeiros (externos). Podemos ser, absolutamente es-
trangeiros, enquanto pertencendo.
O próprio Bauman concorda com esta perspectiva
quando afirma:

Em nossa época líquido-moderna, o mundo em nossa


volta está repartido em fragmentos mal coordenados,
enquanto as nossas exigências individuais estão fatia-
das numa sucessão de episódios fragilmente conecta-
dos. Poucos de nós, se é que alguém, são capazes de
evitar a passagem por mais de uma “comunidade de
idéias e princípios”, sejam genuínas ou supostas, bem-
integradas ou efêmeras, de modo que a maioria tem
problemas a resolver... (2005, p. 18).

O caminho situado nas fronteiras, ao mesmo tempo


em que pantanoso, é o território da produção do outro, do
“novo”, daquilo que transcende as posições fixadas. Mes-
mo porque, para os residentes das fronteiras, em qualquer
direção que se olhe, se vê um estrangeiro.
187
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Penso que esta seja a emergência do momento da


humanidade atual. Acredito ser esta a marca mais pro-
funda do significado de diferença, em que a ruptura en-
tre os essencialismos possíveis (“estreitos e estritos” ou
“amplos e genéricos”), possa realmente se dar no “ser” e
“fazer” dos relacionamentos cotidianos, marcados, neces-
sariamente, por diferentes pertencimentos; onde, defini-
tivamente, “rótulos” (tais como em remédios e produtos
industrializados) e “marcas” (tais como em grifes e animais
de rebanhos) possam ser superados.
Avançamos em diversos campos, no que concerne
à questão da alteridade. Mas, como nos adverte Carlos
Skliar, não podemos deixar que o outro se transforme em
tema, pois quando esse outro, porque marcado pela dife-
rença, se traduz em temática, tendemos a um processo de
homogeneização das diferenças e incorporamos, mesmo
que sutilmente, uma dimensão essencialista.
É por isso que o território dos entrelugares é o cami-
nho do “fio da navalha”.
Precisamos romper com o sentimento das alterida-
des fixadas e assumir as perspectivas de nossas alteridades
fluidas, sem perder a dimensão dos enfrentamentos polí-
ticos. Em determinados momentos, buscando a superação
das condições de opressão e violências instituídas, deve-
mos fixar nossos campos identitários, enquanto estratégia
política de enfrentamento no processo de luta contra qual-
quer atitude totalitária. Mas, é preciso manter a lucidez, da
necessidade de rompimento das barreiras entre o “nós” e
os “outros”, em uma sociedade possível, como nos alerta
Todorov.
É nisso, creio eu, que reside a preocupação central
de Stuart Hall, quando ele assume a preferência pelo con-
ceito de identificação, em detrimento do de identidade,
muito menos pela obrigatoriedade de defini-lo categorica-
mente do que pelo reconhecimento do grau de complexi-
dade presente. Assim Hall busca situar a identificação na
fronteira entre sujeitos e práticas discursivas.
188
Para além do imaginário congelado do território...

Hall concorda com Foucault, quando diz: “o que


nos falta, neste caso, não é ‘uma teoria do sujeito cognos-
cente’, mas ‘uma teoria da prática discursiva’” (2000, p.
105). Por outro lado, sublinha também, que a emergência
deste “descentramento” não se traduz no deslocamento da
centralidade do sujeito, e mesmo da razão, em detrimento
da prática discursiva, mas na acentuação da exigência de
uma “outra” reconceptualização do sujeito e da racionali-
dade dominante.

O conceito de “identificação” acaba por ser um dos


conceitos menos bem desenvolvidos da teoria social
e cultural, quase tão ardiloso – embora preferível –
quanto o de “identidade”. Ele não nos dá, certamente,
nenhuma garantia contra as dificuldades conceituais
que têm assolado o último (HALL, 2000, p. 105).

Da Questão Indígena: revisitando memórias

A questão inicial que se levanta quando tratamos das


memórias e história brasileira é: onde começa a história do
Brasil? Será que somente com a chegada dos portugueses,
em uma perspectiva eurocentrada?
Uma segunda questão, que ao mesmo tempo demar-
ca uma posição político-cultural e que pode muito bem
responder às questões levantadas inicialmente, é a pró-
pria noção que comumente empregamos para designar o
momento histórico que marcou a chegada dos europeus
em nosso continente, onde, enquanto ao nos referirmos
à América normalmente utilizamos o termo conquista, ao
Brasil, especificamente, chamamos, na maior parte das ve-
zes, de descobrimento.
Marcadamente, a conquista territorial sempre esteve
presente em nosso processo histórico, como não poderia
deixar de ser, em se tratando de perspectiva colonizadora.
Outro ponto central neste cenário, que se associa à luta

189
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

territorial, é a questão populacional, e, no caso brasileiro,


em primeiro um momento, nos referimos à população in-
dígena.
A delimitação populacional indígena no Brasil se
constitui em um amplo campo de debate e divergências
entre diversos estudiosos da área. Mas, segundo Eduar-
do Góes Neves (2004), na transição do século XV para o
XVI, existiam aproximadamente 52 milhões de indígenas
na América Latina. Já John Manuel Monteiro (2004) estima
entre 8 e 10 milhões somente no Brasil, e, de acordo com
Manuela Carneiro da Cunha (2004), cerca de 5 milhões
ocupavam estritamente a região amazônica.
No limiar do século XVIII e início do XIX, a perspec-
tiva prognóstica colonizadora era marcada pela tentativa
de demarcação do tamanho original da população indíge-
na, em consonância com o grau de declínio desta mesma
população. Tal perspectiva visava a apreender as diversas
possibilidades e tendências de desaparecimento das dife-
rentes nações indígenas, quer sejam por morte (em função
das diversas epidemias) ou pela assimilação cultural.
Ainda segundo relatos do padre jesuíta João Danilo,
os índios Macuxi e os Wapixan já ocupavam a região do
extremo norte de Roraima, conhecida como Raposa-Serra
do Sol e hoje foco de enormes disputas.
A manutenção dos povos indígenas nas regiões de
fronteira era uma estratégia colonizadora, defendida prin-
cipalmente pelo então Barão do Rio Branco e por Joaquim
Nabuco, visando à manutenção territorial portuguesa e
que ficou conhecida como Muralhas do Sertão.
Hoje, segundo, respectivamente, John Manuel Mon-
teiro (2004) e Manuela carneiro da Cunha (2004), temos
pouco mais de 200 povos indígenas e aproximadamente
270.000 índios, nas diversas etnias, em território brasileiro.2
Também atualmente, em relação à demarcação do
território da região amazônica, dados importantes preci-

2
Dados do Censo 2000 do IBGE.

190
Para além do imaginário congelado do território...

sam ser sublinhados na relação povos indígenas - empresas


de capital privado. Cabe destacar que somente a Manasa
Madeireira Nacional possuía, em 1986, 4 milhões e 140 mil
hectares no Amazonas, área maior que a Bélgica, Holanda
e Alemanha reunidas. Já a Jarí Florestal Agropecuária pos-
sui cerca de 3 milhões de hectares no Pará.
Cabe destacar que o modo de produção no Brasil
colônia se caracterizava pela mão-de-obra escrava. Naque-
le momento histórico a terra era, em última análise, posse
do colonizador. Daí a estratégia de manutenção dos povos
indígenas nas regiões de fronteira – tendo em vista tam-
bém a forte resistência destas diversas etnias ao processo
colonizador escravocrata – através das Muralhas do Ser-
tão, tinha endereço certo.
Já no final do século XIX, as mudanças estruturais
nas relações sociais de produção, tendo como base a ne-
cessidade da posse da terra, como elemento central de po-
der no coronelismo, estabelece outras bases nas disputas
territoriais e, por que não, identitárias.
A expansão das fronteiras urbanas destaca-se entre
os fenômenos mais significativos e, contraditoriamente,
pouco reconhecidos no campo das políticas públicas go-
vernamentais. Tal fato implica sérios limites sociais e de
possibilidade de vida para as comunidades tradicionais.
Acreditamos que a superação destas condições li-
mitantes de desenvolvimento social e humano poderá ser
alcançada com o reconhecimento das comunidades resi-
dentes em espaços populares e tradicionais – dentre elas
as aldeias indígenas – como sujeitos sociais ativos; capazes
de pensar, inventar e realizar seus sonhos de uma vida
mais plena e generosa. É preciso, portanto, desconstruir os
estigmas que marcam os residentes destas comunidades e,
em associação, buscar condições para a reconstrução de
“novos protagonistas” de políticas sociais, em referenciais
participativos, visando à superação daquilo que chama-
mos de imaginário congelado da identidade brasileira.

191
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Dentre esses, destacamos, sem a menor dúvida, os


jovens das comunidades indígenas em particular, no que
Aracy Lopes da Silva e Luís Grupioni definem como con-
vívio na diferença, ou seja:

A afirmação da possibilidade e a análise das condições


necessárias para o convívio construtivo entre segmen-
tos diferenciados da população brasileira, visto como
processo marcado pelo conhecimento mútuo, pela
aceitação das diferenças, pelo diálogo (SILVA e GRU-
PIONI, 2004, p. 15).

Acreditamos que para construir um futuro melhor,


se faz indispensável incorporar aqueles que herdarão
esse mesmo futuro. Nesse sentido, as políticas públicas
de combate às desigualdades sociais precisam superar a
concepção de ausência e ações descontínuas, que orienta-
ram diversos projetos, e caminhar na via da construção de
políticas inclusivas para jovens e adultos, e em especial,
neste caso, de comunidades indígenas.
Ainda na perspectiva de Silva e Grupioni:

Nestes tempos de violência generalizada no país, a re-


flexão sobre os povos indígenas e sobre as lições que
sua história e suas concepções de mundo e de vida
social podem nos trazer, aliada ao exame dos modos
de relacionamento que a sociedade e o Estado nacio-
nais oferecem às sociedades indígenas constituem um
campo fértil para pensarmos o país e o futuro que
queremos (2004, p. 15 e 16).

Nossa proposta se inspira em uma concepção hori-


zontalizada de ação pública, bem como, no envolvimento
dos jovens e adultos moradores de diversos espaços tradi-
cionais de fronteira nas mais diferentes aldeias indígenas.
Nessa perspectiva, devemos identificar a dinâmica
das concepções, ausências institucionais e as novas for-
mas de organização das políticas públicas, nos mais va-

192
Para além do imaginário congelado do território...

riados campos da questão indígena, como também ações


instituintes, que dizem respeito à superação das condições
de exclusão, abandono, omissões e violências, nas dife-
rentes aldeias e etnias indígenas, que compõem o cenário
cultural brasileiro.
Um dos campos marcadamente grifado pelas lu-
tas históricas dos diferentes povos indígenas, visando a
superação deste quadro de ausências institucionais, é o
educacional. Entendemos que um dos caminhos possíveis
de políticas públicas em educação indígenas mais con-
seqüentes está na criação de diagnósticos participativos
socioculturais e econômicos que, por definição ética e
política, contribuam para a construção de práticas edu-
cativas que levem em conta as estratégias cotidianamente
construídas pelos diversos grupos étnicos, cujo objetivo
maior tem como referência a superação das desigualdades
e violências sociais, marcantemente vivenciadas nos espa-
ços de fronteira.

A implantação de projetos escolares para a população


indígena é quase tão antiga quanto o estabelecimento
dos primeiros agentes coloniais na Brasil. A submis-
são das populações nativas, a invasão de suas áreas
tradicionais, a pilhagem e destruição de suas riquezas,
etc. têm sido, desde o século XVI, o resultado de prá-
ticas que sempre souberam aliar métodos de controle
político a algum tipo de atividade escolar civilizatória
(SILVA e AZEVEDO, 2004, p. 149).

Mas esta é, com certeza, a temática central de um


próximo trabalho.

193
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

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196
Formação de professores
para a autonomia indígena

Darci Secchi


1 Introdução

O debate acerca da implantação de políticas públicas


dirigidas a segmentos sociais específicos (negros, índios,
pobres, etc.) tem ocupado um lugar de destaque no cenário
acadêmico contemporâneo.
Neste capítulo pretendemos discutir uma dessas te-
máticas – a educação escolar indígena – por considerá-la
uma das âncoras do movimento de consolidação do cha-
mado protagonismo indígena1. Nosso principal argumento
é o de que as atuais políticas compensatórias de cunho
concessivo ou reivindicatório devam ser associadas a ini-
ciativas que reforcem o protagonismo e a autonomia dos
segmentos sociais aos quais se destinam.
Ao tratar das relações históricas dos povos indígenas
com o entorno regional, verificamos que eles já utilizaram

1
Em um trabalho anterior (SECCHI, 2002), discuti a noção de protago-
nismo indígena a partir de um duplo enfoque: enquanto uma atitude
de rompimento com as relações de tutela e submissão e, enquanto o
exercício de cargos ou representações de destaque no cenário das re-
lações interculturais.

197
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

diversas estratégias para suprir as demandas geradas pelo


contato, tais como as prestações de serviços, o comércio e
trocas simbólicas, os casamentos interculturais, os raptos,
saques, guerras, etc. Porém, nas últimas décadas, cons-
tatamos uma mudança substancial nesses procedimentos.
Atualmente as comunidades indígenas encontram nas po-
líticas públicas as principais fontes de recursos externos,
especialmente como forma de atender às demandas de
educação escolar, saúde e economia. Porquanto, é opor-
tuno avaliar qual tem sido a matriz que orientou até aqui
as relações entre o poder público e as comunidades es-
pecificas, sejam elas negras, indígenas, pobres, etc. Será
curioso constatar que, nas últimas décadas, essas relações
se alteraram progressivamente. Ocorreram contextos de
completa desatenção ou de exclusão desses segmentos,
seguidos por iniciativas de inclusão tolerada, depois de
inclusão solidária e, finalmente, de atitudes e práticas dia-
lógicas, isso é, de relações igualitárias entre múltiplos pro-
tagonistas.
No campo da educação escolar indígena consta-
tou-se um processo de institucionalização da escola e de
aprimoramento do seu perfil mais adequado. A escola
indígena foi concebida sob vários enfoques, especial-
mente como uma ferramenta que ajuda a conhecer o
“mundo dos brancos”; facilita o trânsito entre as culturas;
defende o território indígena; dá acesso a novos espaços
socioculturais e possibilita a reconstrução dos projetos
de futuro.
A consolidação de uma nova perspectiva para a edu-
cação escolar indígena em Mato Grosso na última década
foi possível graças a um amplo programa de formação
de professores cujas linhas gerais e resultados alcançados
serão objeto de análise no final do capítulo.
Tal tarefa, porém, não coube apenas aos profes-
sores e à escola. Foi necessário conjugar a educação
escolar a outras iniciativas que procuraram superar as
atuais políticas compensatórias e se propunham a cons-
198
Formação de professores para a autonomia indígena

truir relações pautadas na autonomia e no protagonismo


dos brasileiros indígenas que vivem nas aldeias ou nas
cidades.

2 As escolas indígenas sob múltiplas perspectivas

Todas as sociedades têm a capacidade de agregar


os elementos culturais externos que necessitam para o
seu desenvolvimento. A instituição escolar caracteriza-
se como um desses elementos e tem uma grande ca-
pacidade de promover a autonomia ou de engendrar
a dependência, uma vez que viabiliza o ingresso de
conteúdos financeiros, organizativos e informativos até
então indisponíveis no meio cultural de uma determi-
nada comunidade.
O novo fluxo sistemático de recursos que a escola
proporciona se distingue em forma e em conteúdo dos
procedimentos tradicionais utilizados para a geração de
excedentes. O montante dos valores viabilizados por meio
de equipamentos, alimentação, salários, etc. é bastante
significativo e enseja o surgimento de dinâmicas sociais
antes não existentes.
O impacto da escola em decorrência dos seus con-
teúdos organizativos é, certamente, o mais explorado
pela literatura, quer por sua visibilidade, quer por seus
efeitos sobre as formas tradicionais de organização so-
cial. Por se tratar de uma instituição que desenvolve ati-
vidades de longa duração, estabelece uma nova ordem
espaciotemporal que afeta substancialmente a tessitura
intra-societária. Em muitos casos, a escola é o elemento
cultural externo que ocupa a maior parcela do tempo
diário, permanece nas aldeias por muitas décadas e rara-
mente é finalizado2.

2
São raríssimos os casos de sociedades que conheceram a escola e
posteriormente tiveram condições de “livrar-se” dela...

199
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Enquanto geradora de conteúdos informativos, a


escola indígena agrega conhecimentos externos, confere-
lhes significados e os disponibiliza para eventuais utiliza-
ções no cotidiano sociocultural do sistema. Portanto, o seu
potencial de geração de autonomia ou de dependências
estará relacionado diretamente à natureza dos conteúdos
externos que forem incorporados e ao grau de contro-
le que obtiver sobre eles. Nesse sentido, assemelha-se
a qualquer outro elemento cultural externo, seja ele um
equipamento, uma tecnologia ou um serviço. Se por um
lado propicia ao sistema um potencial informativo sufi-
ciente para reposicioná-lo frente às novas realidades, por
outro, impõe-lhe seus traços característicos, isto é, a sua
condição de conhecimento externo. Desde essa perspecti-
va, a escola indígena geradora de autonomia será aquela
que agregar os recursos financeiros, organizativos e infor-
mativos disponibilizados pelo meio externos e exercer um
crescente controle sobre eles.
Como qualquer outra instituição socialmente institu-
ída, a escola indígena assume características que lhe con-
ferem uma maior ou menor adequação às expectativas in-
dividuais e grupais e pode ser incorporada com diferentes
graus de autonomia, coerência, participação ou imposição.
Para uns, trata-se de um elemento cultural apropriado, res-
significado e transformado em uma nova categoria de es-
cola – a escola indígena. Para outros, caracteriza-se como
uma instituição trazida pelos colonizadores e adaptada ao
cotidiano dos povos ameríndios. As suas características
expressas na legislação (específica, diferenciada, bilíngüe,
intercultural) são percebidas apenas como “ajustes” para
melhor atender aos objetivos colonialistas.
Esses dois extremos sinalizam os limites e possibili-
dades das escolas indígenas e o seu grau de convergência
com os projetos societários de cada povo. Em um dos
pólos estaria a escola respeitosa, libertadora e promotora
da autonomia indígena; no outro, a escola etnocêntrica,
integracionista e promotora de dependências. A escola
200
Formação de professores para a autonomia indígena

associada ao domínio de códigos alienígenas é contra-


posta à escola efetivamente indígena, disseminadora dos
valores autóctones. Nessa última perspectiva a escola se
torna um centro de irradiação intercultural que se estende
ao domínio das ciências, linguagens, ética e cidadania.
Portanto, uma escola que “sabe dizer e sabe fazer”, isto é,
uma instituição com o discurso e a prática voltados para a
construção e reconstrução cultural.
Ainda que as perspectivas expressem percepções di-
vergentes, ambas sugerem um movimento no sentido de
apropriar-se de novos conhecimentos e de reinterpretá-los
e incorporá-los, ora individual, ora coletivamente, no coti-
diano social, econômico, político e cultural das respectivas
comunidades.

3 Políticas públicas para


o protagonismo indígena

A “conquista da escola” pelas sociedades indígenas


não pode ser dissociada de outras lutas e desafios, como
a demarcação e a gestão territorial, a melhoria das condi-
ções de alimentação e saúde, o acesso a fontes alternativas
de renda e o usufruto de bens e serviços disponibilizados
pela sociedade moderna. Cabe ao poder público e às ins-
tituições sociais acolherem essas reivindicações e trans-
formá-las em ações concretas, segundo as especificidades
e as responsabilidades de cada um. A história brasileira,
porém, mostra que nem sempre existiu essa preocupação.
Até a década de 1970 houve pouca (ou nenhuma) parti-
cipação indígena na definição das políticas públicas. As
raras iniciativas do órgão tutor ou das agências externas
eram desenvolvidas sobre as terras indígenas sem o con-
sentimento ou a participação da população.
A partir de 1970 até meados da década de 1980
ocorreu um processo de inclusão compulsória dos indí-
genas nos programas oficiais voltados para a integração
201
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

nacional e para o desenvolvimento do Centro-Oeste e da


Amazônia. Como os governos objetivavam a captação de
empréstimos externos para a região, era necessário mediar
os conflitos e amenizar os impactos decorrentes da nova
ocupação territorial. Essa aparente inclusão serviu também
como resposta à opinião pública internacional que cobra-
va do governo brasileiro um tratamento mais adequado
às populações indígenas afetadas pelos programas de de-
senvolvimento financiados por organismos internacionais.
Em alguns casos, a liberação de recursos externos foi con-
dicionada à implantação de políticas públicas efetivas em
áreas indígenas; em outros, limitou-se a ações mitigatórias
para compensar danos causados pela construção de rodo-
vias, hidrelétricas e outras iniciativas oficiais no interior ou
no entorno das áreas indígenas.
Uma terceira forma de relação entre o poder públi-
co e as comunidades indígenas consolidou-se ao longo
do processo constituinte e se estende até os dias atuais.
Caracteriza-se pela chamada política de inclusão solidá-
ria e é expresso por um conjunto de iniciativas de cará-
ter assistencial que contam com a participação indígena
e que procuram “resgatar os valores étnicos, culturais e
de cidadania”. Os projetos educacionais são associados
a projetos similares no campo economia, da saúde e da
segurança alimentar. Fundam-se nos direito constitucional
e no “compromisso moral que devemos ter com os nossos
irmãos índios, com eles que foram os primeiros habitan-
tes do Brasil”. Esse modelo de política pública representa
um avanço em relação aos períodos anteriores, porém as
ações ainda continuaram sendo geridas pelas agências fi-
nanciadoras e/ou pelas equipes técnicas não indígenas.
Uma nova perspectiva de políticas públicas está flo-
rescendo nos últimos anos e se projeta como uma alter-
nativa viável para o futuro. É caracterizada por ideais e
por ações que procuram construir o protagonismo indí-
gena. Concebe as políticas públicas como uma parte in-
tegrante do plano de vida de um povo ou de uma comu-
202
Formação de professores para a autonomia indígena

nidade. Leva em consideração os múltiplos aspectos que


compõem a participação indígena, desde a definição das
prioridades, a elaboração de projetos, a busca de finan-
ciadores, o planejamento e a administração dos recursos,
o acompanhamento das ações, a avaliação, os registros
e a replicação das iniciativas promissoras. Ao propor o
protagonismo indígena reconhece a importância de man-
ter o diálogo com todos os atores sociais e com todas as
instâncias do poder público. Não se trata, portanto, de um
protagonismo excludente, mas aberto a todos os que de-
sejam cooperar com o movimento indígena na construção
de uma sociedade saudável, fraterna e feliz.
Feitas essas considerações, daremos destaque a se-
guir a uma iniciativa desenvolvida em Mato Grosso que é
considerada como uma experiência inovadora e demons-
trativa de uma política pública voltada para a ampliação
da autonomia indígena. O seu aperfeiçoamento, consoli-
dação e replicação poderá representar um passo impor-
tante no desenvolvimento de outras iniciativas voltadas
para o protagonismo das sociedades indígenas no Brasil.

4 Formação de professores
para o protagonismo indígena

4.1 Síntese geral do projeto

Trata-se de uma iniciativa de formação de profes-


sores indígenas em serviço desenvolvida pela Secretaria
de Estado de Educação e pela Universidade do Estado de
Mato Grosso, em parceria com uma dezena de instituições
públicas federais, estaduais, municipais e ONGs.
O programa teve início em meados da década de
1990 e foi resultado de uma ampla articulação entre re-
presentantes indígenas, poder público e entidades indi-
genistas com assento no Conselho de Educação Escolar
Indígena de Mato Grosso.
203
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Em sua primeira etapa, priorizou a formação de 200


professores indígenas em nível médio e a regularização de
mais de uma centena de escolas localizadas nas aldeias.
Nos anos seguintes foi responsável pela implantação dos
Cursos de Licenciaturas Específicas para Professores Indí-
genas nas áreas de Ciências Sociais; Ciências Matemáticas
e da Natureza e, Línguas, Artes e Literatura. As primeiras
turmas totalizaram 180 professores de Mato Grosso e 20
de outros estados brasileiros. Atualmente esses professo-
res já concluíram os cursos superiores e estão atuando em
suas respectivas escolas. Outras turmas estão em proces-
so de formação em diversos cursos de graduação e pós-
graduação. Em um período de dez anos a Universidade
do Estado de Mato Grosso se propõe a formar em torno
de 350 professores pertencentes a mais de 40 sociedades
indígenas de Mato Grosso e do Brasil.
O propósito de desenvolver um processo de for-
mação voltado para a solidariedade e a autonomia está
presente nas diferentes fases do projeto, desde a esco-
lha dos cursos, a construção dos currículos, a escolha do
campus universitário, a definição dos quadros docentes,
a composição das instâncias de representação colegiadas,
a elaboração das normas e regimentos e todos os demais
atos de interesse coletivo.
Mais recentemente, a Universidade do Estado de
Mato Grosso está considerando a possibilidade de ampliar
o programa e de destinar um campus específico para aten-
der à população indígena. Tal medida poderá ensejar no
médio prazo a consolidação de uma Universidade Autô-
noma dos Povos Ameríndios, um antigo sonho acalentado
nas florestas, cerrados, charcos e montanhas da Latino-
América-Indígena.
A política de formação de professores e de regula-
rização das escolas indígenas foi reforçada por outras ini-
ciativas similares. No campo da saúde foi desenvolvido o
Programa de Formação de Agentes Indígenas de Saúde e
instalados os Distritos Sanitários Especiais Indígenas. No
204
Formação de professores para a autonomia indígena

campo da economia foram implantadas ações voltadas


para a gestão de projetos econômicos, utilização susten-
tada dos recursos naturais, produção e comercialização
de artesanato, mel e produtos agrícolas. Apoiou-se tam-
bém a organização e representação indígena em diferen-
tes fóruns, conselhos e outras instâncias de deliberação
coletiva.
Esse conjunto de ações articuladas gerou um am-
biente favorável à inclusão dos “assuntos indígenas” na
pauta de outras instituições sociais (mídia, escolas urba-
nas, agências de fomento, etc.) o que lhe conferiu maior
reconhecimento e visibilidade. De outra parte, serviu tam-
bém para amenizar as manifestações contrárias ao avanço
das frentes de exploração agrícola, pastoril, minerária e
madeireira que se expandem desordenadamente por todo
território mato-grossense.

4.2 As etapas do ritual de formação

Como foi dito, a escola é uma instituição sancionada


nas sociedades ocidentais e em processo de consolidação
em inúmeras sociedades indígenas. Ao se instituir como
escola indígena ela incorpora os conteúdos e os significa-
dos próprios das sociedades que passam a adotá-la, mas
carrega também as características históricas das socieda-
des que a adotaram anteriormente.
Com os professores indígenas não é diferente. O seu
perfil é instituído a partir de diferentes expectativas que
sintetizam aquilo que os indivíduos, a comunidades e o
poder público esperam desse novo ator social.
No caso dos professores indígenas de Mato Grosso,
um dos principais critérios para o credenciamento dos can-
didatos ao cargo docente é a sua participação nos cursos de
formação. No nosso imaginário, o ingresso e a passagem
do professor por esse lugar físico e simbólico assegurará as
condições preliminares para o exercício docente, uma vez
205
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

que o “iniciado” terá atendido às condições (imaginadas)


necessárias para a sua confirmação profissional.
O processo de formação supõe o cumprimento de uma
série de eventos que começa com a escolha dos candidatos,
passa pelo ritual de acesso, se desdobra por diversos rituais
de passagem, depois pela atribuição pública de grau e, final-
mente, pela nomeação e confirmação no respectivo cargo.
O ponto crítico desse processo, a nosso ver, re-
side no fato de que, aparentemente, em nenhuma das
fases desse ritual que se estende ao longo de cinco
anos, o professor indígena detém o controle do proces-
so de formação. Na condição de iniciando, está subme-
tido aos desígnios de outrem. Vejamos algumas dessas
situações:

a) O candidato que pretende se inscrever ao pro-


cesso seletivo precisa atender a requisitos legais
como os da idade adequada e formação mínima
e depois submeter a sua “candidatura” ao o aval
da comunidade que referendará ou não o seu
pleito;

b) O ingresso nos cursos de formação supõe a apro-


vação em uma prova escrita ou entrevista reali-
zada pelo poder público ou pela instituição de
ensino;

c) A condição de cursista de nível médio ou supe-


rior é assegurada após o atendimento de uma sé-
rie de requisitos, como o afastamento temporário
da aldeia, aceitação de convívio em alojamentos
coletivos, confirmação de matrícula, cumprimen-
to de horários, etc.

d) A aprovação propriamente dita no curso supõe o


atendimento de outras inúmeras exigências, tais
como o domínio do conteúdo das disciplinas e a
206
Formação de professores para a autonomia indígena

comprovação de resultados. Esses procedimentos


constituem a principal estratégia de transformação
formal do cursista em professor;

e) O ritual de formatura ou atribuição de grau com-


pleta o ciclo de preparação e assegura ao cursis-
ta a condição de iniciado nos serviços docentes.
Esse ritual atende a dois objetivos complemen-
tares: o coroamento do esforço individual dos
estudantes e a chancela de um grau, isso é, a
confirmação da licença para ocupar “de direito”
o espaço institucional de professor;

f) Uma vez formado, o professor será submetido ao


concurso público e posteriormente ao ato de no-
meação ao cargo. Um eventual insucesso nessa
fase representaria um descredenciamento de to-
das as etapas anteriormente.

4.3 Uma tentativa de interpretação

Se analisarmos a “maratona” de formação desde a


perspectiva do poder público, ela nos parecerá pertinente
e adequada. Afinal, é assim que opera a sociedade mo-
derna cujos ideários professam a individualidade, a com-
petição, a hierarquia, a profissionalização, etc. Mas será
que essa lógica é igualmente hegemônica nas sociedades
indígenas? Será que os seus ideais de formação são con-
vergentes com os da sociedade liberal?
As respostas parecem óbvias, mas ainda assim, sus-
citam algumas questões intrigantes. Vejamos.
Ainda que os cursos de formação não tenham sido
concebidos expressamente sob a lógica de um longo ritual
de iniciação, os acadêmicos parecem interpretá-lo desse
modo. Que outro desafio ou meta lhes seria mais estimu-
lante do que o de vencer todas as etapas de um ritual tão
207
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

complexo e seleto? Que outra conduta teriam senão a de


se submeter voluntariamente às normas de uma nova co-
munidade educativa que se propõe a desafiá-lo para um
ritual complementar de iniciação e passagem?
Nos processos de formação tradicionais – os que
são adotados pelas sociedades para formar um “bom
Xavante”; um “bom Bakairi”, etc. – a desistência é tida
como rara e excepcional. Afinal, ela enseja a negação do
indivíduo como pessoa e cria um “limbo” social acusa-
tivo: “Você desistiu! Não conseguiu ser um dos nossos!”
Se verificarmos as desistências de professores e profes-
soras ao longo dos cursos de formação, constataremos
que, também lá, ela foi insignificante, senão nula. Tal
coincidência poderá sugerir que o ritual de formação es-
taria sendo interpretado pelos cursistas de forma diversa
daquela esperada pela instituição formadora. Em vez de
ensejar a construção de uma identidade profissional os
cursos estariam sendo percebidos como etapas de um
novo ritual de passagem, um desafio quase impossível
de ser abandonado.
Uma das principais características dos processos de
formação da sociedade moderna é a competitividade. As
classificações, reprovações ou exclusões são tidas como
resultados “naturais”. Aliás, é comum que duas pessoas
disputem uma única vaga e que o vencedor comemo-
re a derrota do outro sem cerimônias... Essa jamais foi
a conduta predominante dos professores indígenas. De
um modo geral, todos zelam por todos! No ambiente dos
cursos de formação existe de fato uma comunidade edu-
cativa que se une, se resguarda e se afirma em relação
aos demais atores. É esse “espírito de corpo” que nutre o
pertencimento momentâneo dos “acadêmicos indígenas”
e mais tarde, dos “professores indígenas”, uma nova ca-
tegoria social e profissional que se estabelece nas comu-
nidades sem eliminações nem disputas.
Ao concluírem o período de “clausura”, os acadêmi-
cos retornam às suas comunidades como aprendizes de
208
Formação de professores para a autonomia indígena

um ofício, desinformados das novidades, cheios de favo-


res a retribuir, enfim, alvos fáceis de diversos interesses.
Mas também levam consigo histórias, saberes, prestígio e
salários. Salários, aliás, que os colocam em situação con-
fortável, em pé de igualdade com os outros “funcioná-
rios” (indígenas ou não) e com as lideranças tradicionais
do lugar. Dessa conjugação resultam as mais variadas
dinâmicas que, em linhas gerais, darão os limites do seu
desempenho pessoal e profissional. Existem professores
que trabalham em tempo integral; professores sem sala
da aula; alguns ensinando os conteúdos aprendidos nas
licenciaturas; outros competindo com a programação da
televisão e com o futebol de cada dia, e assim por dian-
te... Todos são reconhecidos como professores indígenas,
e toda essa diversidade de situações é chamada de escola
indígena.
Ao se confirmar no cargo, o professor indígena
submete-se a uma tripla fidelidade, nem sempre fácil de
conciliar: fidelidade ao seu projeto individual; fidelidade
ao plano de vida da comunidade e fidelidade às normas
e orientações do poder público. É no exercício diuturno
dessas fidelidades que o professor toma as decisões que
interferem diretamente no cotidiano da escola. É essa con-
jugação de forças que definirá, por exemplo, qual será o
currículo da escola, o calendário letivo ou as condições
aceitáveis para a sua saída da aldeia e assim por diante. É
legítimo que o professor tenha poder de decisão, afinal, é
um profissional que se submeteu a tantos anos de prepa-
ração. Mas é igualmente legítimo que a comunidade de-
cida, afinal, se a escola está ao seu serviço! Por fim, o po-
der público também tem legitimidade para decidir, aliás,
assim determina a legislação... Dada a pouca presença do
poder público nas escolas, essas decisões, de um modo
geral, são negociadas entre os professores e suas respecti-
vas comunidades. Existem aldeias em que o professor é a
principal liderança e acumula força suficiente para impor
as suas condições. Por conseguinte, tem possibilidade de
209
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

controlar pessoalmente o funcionamento cotidiano da es-


cola. Em outras palavras, o professor representa apenas
um grupo familiar, o que o obriga a negociar as condições
do funcionamento com as demais forças locais. Há, ainda,
situações em que o professor não conta como apoio formal
da comunidade, o que o torna mais vulnerável às pressões
e interesses.
O exercício do controle social supõe um estreita-
mento das relações entre todos os atores sociais envolvi-
dos com a escola, particularmente entre os professores,
as comunidades e o poder público. No entanto, isso ain-
da não acontece em muitas escolas. Ao contrário, em al-
gumas o movimento tendencial parece apontar para um
pacto implícito entre esses atores, o que resulta numa
escola apenas simbólica, isso é, uma escola em que o di-
ferenciado é expresso pela carência factual: poucos con-
teúdos, poucos materiais, poucas aulas, poucos alunos,
pouca importância, pouco salário, poucas cobranças e
também poucos resultados... Nessas situações, verifica-se
uma enorme discrepância entre o que foi idealizado re-
toricamente como o perfil desejado pelas comunidades e
agências formadoras e o que se realiza concretamente no
cotidiano das escolas. Inversamente, ocorrem situações
em que o compromisso pessoal do docente, aliado ao
controle social da comunidade ou de agentes externos
(missões e prefeituras), resulta num “formato de escola”
muito próximo ao desejado pelas comunidades, propos-
to pela instituição formadora e ratificado pela legislação
vigente.
Diante de situações tão díspares é oportuno pergun-
tar em que medida os cursos de formação podem otimizar
esse quadro?
O educador Bartomeu Meliá (1997) parece não ter
dúvidas: para que os cursos se tornem efetivamente es-
paços educativos é necessário que deixem de ser uma
mão estendida oferecendo dádivas para se tornarem o
movimento de dezenas de mão a elaborar os saberes al-
210
Formação de professores para a autonomia indígena

mejados pelos acadêmicos e por suas comunidades. Ou,


dito de outra forma: a formação em serviço não pode
ser vista como a “oferta” de um passaporte para os que
resistirem até o final da maratona, mas a construção co-
letiva de caminhos que conduzam a uma escola indígena
voltada para os interesses e necessidades de suas comu-
nidades.

5 Conclusão

O “modelo oficial” de escola indígena foi definido


na legislação por um conjunto de adjetivos (específica,
diferenciada, bilíngüe e intercultural) e por atitudes valo-
rativas como o respeito pelos saberes, pelas metodologias
e pelos processos próprios de aprendizagem. Esse ideário
está contido num escopo normativo (diretrizes, referen-
cial, parâmetros, resoluções, pareceres, etc.) que objetiva
garantir a especificidade e a diferença, mas que pode re-
sultar também no disciplinamento e na padronização das
escolas, retirando-lhe o direito à iniciativa e ao controle do
seu processo escolar. O ideário oficial inculcou no imagi-
nário e no discurso das equipes técnicas e dos próprios
professores indígenas um modelo de escola que está sen-
do difícil, senão impossível de ser implementado na reali-
dade concreta das aldeias.
No que trata dos processos de formação docente
a situação é similar. Os programas “oferecidos” aos pro-
fessores “em serviço”, não são apenas um meio de lhes
assegurar a manutenção do cargo, mas também o lugar
físico e simbólico em que se padronizam as expectativas.
Os cursos de formação instituem a forma e o conteúdo
profissional, ético e político dos docentes por meio de um
conjunto de rituais sobre os quais as comunidades e os
próprios acadêmicos aparentemente têm pouco controle.
Nessa perspectiva a pedagogia utilizada não poderia ser
outra senão a dos rituais de confirmação da sociedade
211
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

moderna, isso é, o ritual da profissionalização. “Cumpra


esses requisitos e serás um profissional!” Ao retornarem
às aldeias, porém, os professores se deparam com outra
“lógica” que orienta a vida social. A noção de profis-
sionalismo é bem diversa daquela proposta pela socie-
dade moderna. Ninguém suportaria, por exemplo, um
pajé exercendo os seus serviços especializados de for-
ma democrática, dia após dia e com horário marcado. O
mesmo não se esperaria de um cantor, de um ervateiro
ou de um rezador. O exercício dos cargos e serviços
disponíveis nas comunidades exige uma liturgia e uma
conduta que resguardam os saberes especializados e os
mantêm sob o domínio de poucos. Por isso, não lhes é
estranho o argumento de um estudante que questiona a
assiduidade do seu professor nos seguintes temos: Não
sei por que você insiste tanto em dar aula todos os dias.
Não precisa mais mostrar que você é professor, aqui todos
já sabem! Quando a gente precisar de aula, vai na sua
casa e lhe chama, ta bom!
A situação inversa também parece corroborar o
mesmo raciocínio. Alguns professores se mostram arre-
dios às salas de aula e só as ocupam esporadicamente,
após insistentes pedidos da comunidade. Naquelas ocasi-
ões se revestem de liturgia e pompa, apresentam dinâmi-
cas e conteúdos espetaculares (preferencialmente os que
consideraram mais difíceis nas Licenciaturas) e proclamam
publicamente o seu saber e erudição. Depois retornam a
vida cotidiana, certos de que quando a comunidade ne-
cessitar novamente dos seus serviços voltará a solicitá-los.
Dessa forma, mantêm o cargo, o prestígio e um ‘estoque’
confortável de saberes acumulados ao longo do seu pro-
cesso de formação.
Existem ainda escolas em que as aulas ocorrem re-
gularmente, com horários e conteúdos previamente defi-
nidos, com sineta, bandeira, chamada, merenda, recreio e
todos os demais símbolos que caracterizam o arsenal das
escolas tradicionais. Essas também são escolas indígenas
212
Formação de professores para a autonomia indígena

e os seus professores freqüentaram os mesmos programas


de formação que os anteriores.
As situações acima indicam que ainda existe pouco
consenso acerca daquele que seria o perfil docente mais
adequado para a construção de escolas indígenas prota-
gonistas.
À guisa de conclusão, gostaríamos de propor algu-
mas medidas diretamente relacionadas aos processos de
formação que, a nosso ver, poderiam contribuir para o
aperfeiçoamento das iniciativas desenvolvidas atualmente
em Mato Grosso e em outros estados do Brasil. Dentre
elas, destacamos:

a) Reduzir o distanciamento (ou discrepância?) exis-


tente entre o “modelo” de escola indígena propos-
to nos cursos de formação e o efetivamente reali-
zado nas aldeias. Tal medida supõe uma ampliação
significativa da presença das agências formadoras
e do poder público nas escolas das aldeias;

b) Propiciar maior envolvimento dos acadêmicos


com a construção e direcionamento do projeto
pedagógico dos cursos de formação para que não
sejam interpretados como meros requisitos exter-
nos com o propósito de lhes conferir a condição
de iniciados. Em outros termos: os cursos de for-
mação devem ser percebidos como espaços para
a construção coletivamente do profissionalismo
do docente indígena em vez de clausuras onde
cumprem longos rituais de passagem ao status
de docentes;

c) Reforçar o vínculo dos acadêmicos com as suas


respectivas comunidades ao longo do processo
de formação como forma de se contrapor à ten-
dência corporativa ou burocrática que se institui
no ambiente dos cursos. O professor indígena de-
213
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

verá ter presente a sua fidelidade primeira com a


comunidade, juntamente com o seu projeto pes-
soal e com outros vínculos que vier a estabelecer
com o poder público;

d) Subsidiar as comunidades para que ampliem a


sua participação nas decisões que afetam a esco-
la e se tornem protagonistas juntamente com os
professores e com o poder público. Até aqui o
poder público investiu maciçamente no professor
indígena. É necessário reverter a “curvatura da
vara” investindo também na participação qualifi-
cada das comunidades;

e) Discutir com as comunidades e com as administra-


ções municipais uma política de contratação dos
professores indígenas que leve em conta a legis-
lação em vigor, bem como as normas tradicionais
de cada sociedade. As noções de vaga, concurso,
efetivação, lotação, remoção, licença, etc., não são
suficientemente reconhecidas e avaliadas pelas co-
munidades e pelos professores indígenas;

d) Rever a estratégia atualmente centrada na figura


do professor e criar situações pedagógicas reais
que garantam a presença qualificada dos três
segmentos (docentes, comunidade e poder públi-
co) no cotidiano escolar. Ou dito de outra forma:
exigir que o poder púbico invista no cotidiano das
escolas e das comunidades educativas de maneira
semelhante que fez na formação dos seus profes-
sores. Sem a articulação entre os três segmentos, a
escola indígena não será um instrumento pleno de
luta e de defesa dessas sociedades.

A iniciativa de formação de professores destacada


nesse capítulo é um exemplo de uma nova percepção de
214
Formação de professores para a autonomia indígena

política pública que considera o cidadão um protagonista


do seu Plano de Vida e não apenas um cliente ou usuário
dos serviços oferecidos pelo Estado.
As políticas públicas dirigidas a grupos minoritários
de qualquer natureza devem ser concebidas, implantadas,
avaliadas e replicadas com a participação de todos os seg-
mentos, especialmente daqueles para os quais as ações se
destinam.
O empenho do poder público em ampliar a partici-
pação indígena em todas as fases do desenvolvimento das
políticas constitui-se na forma mais adequada para quali-
ficá-la e para possibilitar que as comunidades exerçam o
controle crescente sobre as demandas advindas do conví-
vio intersocietário. Acreditamos que cabe ao poder públi-
co, às instituições formadoras e às comunidades indígenas
consolidar os caminhos da sua autonomia por meio dessas
e de outras medidas que promovam o protagonismo de
todos os segmentos e assegurem o diálogo intercultural.
Dessa forma, as políticas públicas em geral, e dentre elas
as que tratam da democratização do acesso e do percur-
so dos cidadãos na escola, deixarão de ser apenas ações
emergenciais ou compensatórias de alcance duvidoso e
passarão a se constituir em espaços de liberdade, de auto-
nomia e de afirmação de todos os cidadãos brasileiros que
vivem nos campos e nas cidades.

215
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

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SEDUC. A construção coletiva de uma política de educa-
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216
Formação de professores para a autonomia indígena

SEDUC/CAIEMT/CEIMT. Diagnóstico da Realidade Escolar


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2001) e I etapa de estudos presenciais (turma 2005). Barra do
Bugres: Universidade do Estado de Mato Grosso, 2005.

217
Relações raciais e desigualdade:
resistências à política de cotas
na Universidade

Lucilia Augusta Lino de Paula

Temos direito de ser iguais quando a diferença


nos inferioriza e direito de ser diferentes
quando a igualdade nos descaracteriza.
Boaventura Souza Santos

Os debates sobre a instituição do sistema de cotas


nas universidades públicas brasileiras trazem à luz resis-
tências à institucionalização da adoção de políticas afirma-
tivas e ao reconhecimento de tensões nas relações étnico-
raciais no interior do campo acadêmico. A polêmica que
cerca esse debate na atualidade demonstra que se, hoje,
a universidade apresenta uma crescente produção cientí-
fica1 sobre a temática da diversidade cultural e das rela-
ções étnico-raciais, quando o assunto é a democratização
do acesso às camadas populares, mais especificamente à
população afro-descendente, as resistências são enormes.

1
Estudos, projetos e eventos vinculados a programas de pós-graduação
e linhas de pesquisa em diversas universidades; programas de incentivo
a pesquisas com apoio do governo federal e de fundações internacio-
nais, como a Fundação Ford, e inúmeras publicações são exemplos do
crescimento da produção sobre multiculturalismo e as relações raciais
na educação e na sociedade brasileira, desenvolvidas em sua maioria
no âmbito das universidades que concentram o maior número de pes-
quisadores do país.

219
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Podemos mesmo afirmar que este é um dos grandes de-


safios com que a universidade brasileira se depara desde
a reforma universitária de 1968, colocando em xeque con-
cepções e práticas arraigadas e marcadas pelo elitismo e
pela meritocracia.
Sabemos que, a partir do processo de democrati-
zação da sociedade brasileira, a luta pelo acesso à cida-
dania deu visibilidade a segmentos sociais, oriundos das
camadas populares, antes marginalizados. Vimos, nas
duas últimas décadas, a intensificação do debate sobre a
exclusão/inclusão socioeconômica de amplas parcelas da
população a serviços essenciais, entendidos e estendidos
como direitos de cidadania, dentre os quais o acesso à
escolarização. A ampliação da obrigatoriedade escolar e a
quase universalização do ensino fundamental provocaram
um aumento progressivo da demanda das camadas popu-
lares pelo ensino médio e, em decorrência, pelo ensino
superior.
Entretanto, com a ampliação da demanda também
se acirrou o processo de massificação do ensino superior,
que se deveu, principalmente, à proliferação de institui-
ções privadas, que cresceram 983% nas matrículas, de 1966
a 1976, a maior parte das vagas em cursos de baixa qua-
lidade (Inep, 2000). Entretanto, ao crescimento do ensino
superior privado correspondeu uma redução drástica dos
investimentos nas instituições públicas, principalmente no
governo Fernando Henrique Cardoso. Paralelamente, o
aumento da oferta da educação básica pela rede pública
foi marcado por uma crescente deterioração da qualidade
do ensino oferecido, reduzindo as chances de seus egres-
sos disputarem em igualdade de condições os concursos
vestibulares das universidades públicas, que ostentam ín-
dices de excelência acadêmica. Assim, estabeleceu-se um
paradoxo perverso: aos alunos provenientes da rede priva-
da destinam-se as vagas das universidades públicas e aos
oriundos da rede pública restam os cursos oferecidos pela
rede privada. As possibilidades de acesso ao ensino supe-
220
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...

rior pelas camadas populares são geralmente mais amplas


na rede privada, que oferece um número maior de vagas,
portanto menos disputadas, e cursos no período noturno.
As instituições públicas, federais e estaduais, oferecem um
número mais reduzido de vagas, e, dada a sua gratuida-
de e imagem de qualidade elevada, possuem alta relação
candidato/vaga nos concursos vestibulares, exigindo es-
cores cada vez mais altos, o que impede que candidatos
oriundos da rede pública, em sua maioria de baixa renda,
padrão em que se encontra a maior parte da população
afro-descendente, obtenha o sucesso esperado.
Confirmando este quadro, o predomínio da oferta
de vagas e cursos nas instituições públicas se dá em horá-
rio integral ou no período diurno, o que dificulta que os
estudantes conciliem trabalho e estudo, afastando a clas-
se trabalhadora dos bancos das universidades públicas e
direcionando sua “opção” para as instituições particula-
res. Os custos de manutenção de um estudante na rede
pública são também elevados, apesar da gratuidade, pois
continua a demanda por alimentação, transporte, livros e
equipamentos, que grande parte das famílias não tem con-
dições de satisfazer sem que o jovem ingresse no mercado
de trabalho. Assim, muitas vezes, apesar do pagamento
das mensalidades, o ingresso na rede privada, que permite
que o jovem concilie estudo e trabalho, é mais viável para
uma parcela considerável dessas famílias.

Contraditoriamente, com o expressivo aumento do


número de matrículas que parece indicar uma certa
democratização do acesso, acentuou-se o caráter sele-
tivo do sistema, expresso na diversificação e segmen-
tação entre as diferentes carreiras, cursos, instituições,
turnos de funcionamento e perfil do estudantado
(PAULA, 2004, p. 118-119).

Confirma-se, assim, a contradição do sistema educa-


cional brasileiro no que tange à democratização do acesso

221
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

à escolarização, visto que a universalização do ensino fun-


damental público não foi acompanhada de uma qualidade
que permitisse o ingresso desses jovens no nível superior
nas instituições públicas – e, portanto, a um ensino com
alto padrão de qualidade –, obrigando-os a “investir” no
ensino superior privado, menos qualificado porém bem
mais acessível. Assim, é cada vez mais patente a hierar-
quização entre as escolas, cursos e carreiras, conforme o
prestígio social a elas atribuído. Esse quadro confirma a
perversidade do sistema de ensino que exclui as camadas
populares do ensino superior de qualidade – representado
pelas instituições públicas – justamente por serem oriun-
das da rede pública de ensino, que, salvo algumas ilhas
de excelência, hoje está associada à oferta de um ensino
de baixa qualidade.
Vários estudos comprovam a desvantagem educa-
cional da população afro-descendente no Brasil, confir-
mando a imensa desigualdade entre negros e brancos no
que tange ao analfabetismo, aos anos de escolaridade e
ao acesso ao ensino superior, com efeitos no mercado
de trabalho, renda e qualidade de vida (ANDREWS, 1992;
BARCELOS, 1992; BARROS e HENRIQUES, 2000; GON-
ÇALVES, 1996; HASENBALG, 1979, 1988; LOVELL, 1991;
TEIXEIRA, 2003). Assim, a desigualdade socioeconômica
é a tônica das relações raciais no Brasil, o que nos obriga
a problematizar o mito da democracia racial e a justificar
a adoção de uma discriminação positiva pela via de ações
afirmativas que, oferecendo um tratamento diferenciado
aos excluídos, promova a inclusão social, principalmente
no que tange a oportunidades educacionais.
O acesso à escolarização e, por conseqüência, ao
conhecimento sistematizado elaborado historicamente
pela humanidade é uma forma de garantir a cidadania.
Esta deve ser entendida como a possibilidade de exis-
tência do homem enquanto sujeito histórico consciente
da necessidade de elaborar normas sociais, baseadas no
entendimento geral e no bem comum, que objetivem a
222
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...

convivência harmônica de sujeitos e comunidades, sem


discriminação de raça/etnia/cor, sexo, renda, religião, na-
turalidade, etc. Essas normas deveriam se fundamentar em
princípios como a justiça, a solidariedade, a igualdade, a
liberdade, o respeito à singularidade, à diversidade e à
coletividade. Dessa forma, o cidadão teria o direito a aces-
sar um conhecimento entendido como ferramenta que
potencializa a participação dos excluídos na sociedade e
na história, capazes de orientar ações para compreender
e transformar a vida. Para tanto é fundamental a inclu-
são das camadas excluídas nos processos de elaboração e
apropriação de outras modalidades de conhecimento, de
escola e de política, mediante a promoção de uma ética
da resistência manifesta e retroalimentada neste processo
(LINHARES, 1999).

Ensino superior, meritocracia e desigualdades


educacionais: a cor da exclusão

Quando analisamos a mobilidade social no Brasil,


constatamos que, nas últimas décadas, esta se caracteri-
zou por muita circularidade, marcada principalmente pelo
processo de urbanização do país e da ampliação da esco-
laridade da população, que assegurou postos de trabalho
melhor remunerados. Nesse contexto, o papel da Educa-
ção é fundamental na melhoria da qualidade de vida e
na mudança do status socioocupacional das famílias, con-
firmando uma mobilidade social ascendente, ainda que
de pequena distância, e marcadamente inter e intragera-
cional, mais especificamente entre as décadas de 60 e 80
(PASTORE e SILVA, 2000). A expansão das oportunidades
de escolarização em todos os níveis permitiu a inserção no
ensino superior de estratos sociais anteriormente excluí-
dos, sendo cada vez mais comum a chegada à universida-
de de uma primeira geração que se beneficiou da amplia-
ção do acesso à educação. Se o número de jovens que são
223
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

os primeiros em suas famílias a ingressar no nível superior


amplia-se cada vez mais, refletindo a mobilidade social
brasileira, o percentual de jovens negros ainda é minoritá-
rio, fenômeno que começa a sofrer significativa alteração
após a crescente adoção do sistema de cotas pelas institui-
ções de ensino2. No bojo desta ampliação encontramos a
discussão sobre a adoção de ações afirmativas como polí-
tica governamental. Se a pobreza e as desigualdades edu-
cacionais têm cor, nos perguntamos, como Brooke (2002),
se é possível atacar as raízes das diferenças raciais através
de políticas educacionais de ação afirmativa?
Segundo o discurso neoliberal, que imperou a agen-
da política brasileira na década de 90, o Estado era isento
das suas responsabilidades para com os pobres, culpados
por sua própria situação de penúria e obsolência social
e, sob a ótica capitalista, do consumo e da mais-valia, fa-
dados a um perene estado de marginalidade, exclusão
social e improdutividade. No Brasil, amplas parcelas da
população – predominantemente composta por negros e
mestiços – encontram-se imersas na pobreza, sendo-lhes
atribuída a negatividade de uma desordem moral, temidas
como obstáculos à ordem social e reiteradamente inferio-
rizados em suas capacidades. Dessa forma se justificava
o desinvestimento no social promovido pelos governos
neoliberais, que acentuaram o processo de sucateamento
dos serviços públicos, principalmente nas áreas de edu-
cação, saúde e segurança, e a privatização de empresas
estatais que forneciam serviços essenciais á população, e
que marcaram os anos 90.
Entretanto, o clamor dos movimentos sociais pela
ampliação do acesso à cidadania, principalmente à educa-
ção – educação infantil, educação indígena e quilombola,
educação profissional e tecnológica – e mais especifica-

2
Hoje o país conta com mais de 20 mil cotistas negros cursando a
graduação, em 69 instituições de ensino superior público que adotam
ações afirmativas.

224
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...

mente ao ensino superior, ressignificou o debate sobre


o direito à diversidade e a superação das desigualdades
socioeconômicas. A luta pela democratização do ensino
superior é uma luta política, e “a classe trabalhadora me-
rece o conhecimento que a elite pensa ser seu, pois todo
o saber foi elaborado à custa da exploração das vidas dos
povos” (LINHARES e GARCIA, 1996, p. 87).
Sabemos que a sociedade brasileira é uma socieda-
de de contrastes marcada pela desigualdade de oportu-
nidades de trabalho e educação e pela exclusão socioe-
conômica. O processo de globalização da economia e de
reestruturação do mundo produtivo requer mudanças no
sistema educacional que superem o atraso e o desenvol-
vimento desigual, exigindo que a universidade democra-
tize o acesso a segmentos anteriormente excluídos. Ob-
viamente, essas mudanças interferem nos discursos e nas
práticas acadêmicas, provocam reações e resistências na
comunidade universitária e na intelectualidade, trazendo
para o debate a contraposição de concepções elitistas e
meritocráticas que disfarçam relações raciais marcadas pe-
las desigualdades educacionais e mascaram a noção de
privilégio no acesso aos cursos mais disputados e com
maior qualidade.
No que tange ao acesso à educação superior no Bra-
sil, vemos que o resultado das políticas implementadas
pelo poder central, desde a década de 60, que visavam a
ampliar as vagas via privatização, levaram o país a uma
das mais baixas taxas de escolarização superior da Amé-
rica Latina apesar de o grau de privatização ser dos mais
elevados do mundo. A ampliação dos níveis de escolariza-
ção, em especial no nível médio, acirrou a luta pelo acesso
ao ensino superior, que, nos anos 60, gerou o fenômeno
dos “excedentes”. A saída encontrada pelo governo, desde
então, foi alimentar o processo de privatização pela via da
oferta de financiamento estudantil iniciado com o modelo
do “crédito educativo”, destinado tanto ao pagamento das
mensalidades na rede privada quanto à manutenção do
225
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

estudante na rede pública, minimizando o investimento


na assistência estudantil, o que acentuou a mudança de
perfil do universitário, não mais recrutado somente entre
as camadas favorecidas da população.
Hoje o ensino superior no Brasil é marcado por uma
enorme diversidade no que tange aos padrões de qualida-
de entre as instituições, decorrente da crescente e desigual
privatização e do desinvestimento nas instituições públi-
cas. Visando atender à crescente demanda dos segmentos
populares, confirma-se a tendência à ampliação de vagas
em cursos de baixo custo, como as licenciaturas ofereci-
das no período noturno.
Esse processo produziu um cenário paradoxal em
que as poucas vagas da rede pública são alvo de elevada
disputa nos concursos vestibulares, favorecendo sua ocu-
pação por estudantes advindos das camadas médias e altas,
em detrimento dos jovens das camadas populares. Excetu-
ando-se as escolas públicas com comprovada excelência
de ensino – a rede técnica federal, os colégios de aplica-
ção das universidades e algumas escolas-modelo das re-
des estaduais e municipais –, os candidatos aprovados nas
universidades públicas – principalmente nos cursos mais
prestigiosos e disputados – fizeram o ensino fundamental e
médio, em sua maioria, na rede privada, ou prepararam-se
em cursos pré-vestibulares. Restaram para os oriundos das
camadas populares, que desejam cursar o nível superior, as
escolas particulares, principalmente as que oferecem cursos
noturnos, conciliando o estudo com uma jornada diurna de
trabalho, ou os cursos de menor prestígio nas instituições
públicas. Segundo Pinto (2004, p. 727), o “resultado desse
processo foi uma grande elitização do perfil dos alunos, em
especial nos cursos mais concorridos, onde é muito peque-
na a presença de afrodescendentes e pobres”.
Atualmente, visando a alterar esse panorama, o go-
verno propõe dois tipos de ação sob a forma de programas
institucionais: um refere-se à reserva de vagas em institui-
ções privadas a serem ocupadas por estudantes de baixa
226
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...

renda (Prouni) e outro, de caráter afirmativo, identifica as


camadas populares como afro-descendentes, indígenas e
egressos de escolas públicas e propõem a adoção do regi-
me de cotas. O Prouni, ao oferecer bolsas nas instituições
privadas, foi entendido por muitos como um incentivo
à adesão dos jovens das camadas populares aos cursos
oferecidos pela rede privada – a maioria de qualidade du-
vidosa. Tal medida, criticada como um processo de finan-
ciamento da rede privada via renúncia fiscal, não interferia
no padrão “camadas populares/ensino básico público/en-
sino superior privado” e “camadas médias e altas/ensino
básico privado/ensino superior público”, e confirmava a
relação entre as desigualdades socioeconômicas e raciais
com as oportunidades educacionais.
Hoje a expansão da rede federal, via Reuni3, que
incentiva com verbas e vagas a expansão da rede federal,
prioritariamente no período noturno, é uma resposta da
esfera instituída às críticas ao Prouni, destinando verbas
públicas para o financiamento da expansão da rede pú-
blica. A par disso, a ampliação de vestibulares comunitá-
rios e principalmente a adoção, ainda tímida e localizada,
de ações afirmativas via reserva de vagas para alunos ad-
vindos das escolas públicas ou afro-descendentes – duas
categorias que contemplam características da maior parte
dos estudantes provenientes das camadas populares –, co-
meçam a mudar o perfil do estudante universitário.
Sabemos que os valores vigentes na sociedade neo-
liberal se contrapõem à efetivação da cidadania e impõem
uma ética excludente a amplas parcelas da população brasi-
leira (PAULA, 1994). Nesta discussão faz-se necessário pro-
blematizar o papel da educação na camuflagem das neces-
sidades dos sujeitos históricos coletivos e individuais, mar-
cados pela diversidade cultural e étnica, através de políticas
de conhecimento que inviabilizam o acesso e a apropriação

3
Programa de reestruturação e expansão das universidades federais,
implantado em 2007.

227
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

do ferramental necessário à construção de uma sociedade


mais plural e solidária, bem como as resistências dos sujei-
tos e instituições, ao processo de democratização.
Alguns setores da Universidade brasileira têm trava-
do, nas duas últimas décadas, um combate no campo po-
lítico, educacional, cultural e ideológico, visando à cons-
trução de novos saberes que “reinventem” uma pedagogia
fundada em uma visão multiculturalista e multirracial, om-
nilateral, sem descuidar da transmissão dos conhecimen-
tos acumulados historicamente pela humanidade e que
foram, durante séculos, privilégio exclusivo das classes
dominantes (PAULA, 2008).
Entretanto, a resolução do problema do reduzido
e elitizado acesso à educação superior no país não pas-
sa apenas por ações afirmativas, mas se refere também a
concepções pedagógicas, curriculares e avaliativas crista-
lizadas, que defendem uma questionável manutenção da
excelência do ensino fundada no mérito. Essas concepções
refletem valores de classe disseminados e assimilados como
neutros, mas que cumprem a função de filtros étnicos4 e so-
cioeconômicos (PINTO, 2004). Entretanto, a pouca expres-
são numérica das camadas desfavorecidas na universidade
está relacionada não só a fatores étnicos e econômicos, mas
também a diferenças culturais, assim como à confirmação
das desigualdades socioeconômicas mediante a produção
de desiguais desempenhos escolares e oportunidades edu-
cacionais preestabelecidas pelo sistema.

Sabe-se que o sucesso ou o fracasso escolar nas insti-


tuições de ensino, inclusive na Universidade, mantêm
estreita relação com o ‘capital cultural’ acumulado nas
experiências familiares, escolares e sociais do estu-
dante. Esse capital cultural, para Bourdieu, seria o ele-

4
Entre os brasileiros que concluem o ensino superior, 83% são brancos,
2% pretos e 12% pardos, apesar de 45% da população brasileira ser
composta de pretos e pardos, segundo a classificação do IBGE (MO-
EHLECKE, 2004, p. 758).

228
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...

mento da bagagem familiar que teria o maior impacto


na definição do sucesso ou fracasso do jovem em sua
carreira acadêmica. A posse do capital cultural favo-
receria o desempenho escolar na medida em que fa-
cilitaria a aprendizagem dos conteúdos e dos códigos
institucionais, [...] visto que para as crianças e jovens
provenientes de meios favorecidos culturalmente a
educação formal funciona como uma continuação da
educação obtida no lar (PAULA, 2004, p. 191 e 192).

Sabemos que, no próprio nível superior, é intenso o


fenômeno da evasão e da repetência, sendo que as políticas
afirmativas não podem se restringir à garantia do acesso,
mas contemplar também a permanência. Na universidade,
a incidência maior de reprovação ocorre nas disciplinas
básicas cursadas nos primeiros períodos, e que requerem
o domínio dos conteúdos das disciplinas do ensino mé-
dio, e que a evasão é também elevada em muitos cursos,
principalmente devido à dificuldade de acompanhamen-
to das disciplinas e às conseqüentes reprovações, sendo
que, às dificuldades acadêmicas, se somam as dificulda-
des financeiras, que parecem às vezes intransponíveis. A
democratização do acesso requer também uma mudança
de concepção da própria universidade, que deve prover
recursos para a permanência do estudante no curso, pois
“nem sempre a igualdade de condições (eqüidade) será
assegurada com o ingresso na Universidade”, apesar dos
esforços dos serviços de assistência estudantil. É fato que
os estudantes mais pobres, cotistas ou não, “enfrentam
maiores dificuldades, tanto de cunho financeiro quanto
acadêmico, que seus colegas de classe média” (PAULA,
2004, p. 190). Se, além de pobre, o estudante é negro, suas
chances de fracasso aumentam e, mesmo após formado,
enfrentará as desigualdades de renda salarial em relação
a seus colegas brancos, confirmando que muito há que se
fazer em termos de transformação social para assegurar
a igualdade nas relações raciais no país e a existência de
uma sociedade multicultural efetivamente democrática.
229
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Apenas reconhecer-se o caráter multicultural da nossa


sociedade é muito pouco, como também não basta
que a escola reconheça que a sua clientela é diver-
sificada, seja por gênero, por classe, por raça e que
possui culturas diferentes. (...) Se esse reconhecimen-
to não se fizer acompanhar por políticas de respeito
aos diferentes e por uma mudança de atitudes frente
a eles, dificilmente a escola será capaz de criar meca-
nismos potentes para transformar as relações de domi-
nação e de exclusão, tanto no seu interior quanto na
sociedade ampliada (SISS, 2002, p. 148).

Entre os muitos desafios enfrentados pela universida-


de brasileira está o de atender aos clamores dos movimen-
tos sociais organizados pelo respeito ao multiculturalismo e
pela democratização do acesso à educação superior pública,
essenciais às necessidades de desenvolvimento socioeconô-
mico e cultural do país. Esse desafio passa necessariamente
pela condução do debate, acerca da adoção de medidas
voltadas para a inclusão das camadas populares no ensino
superior, hoje marcado pela polêmica. Esse debate remete
a questões éticas e morais, ao mito da democracia racial
brasileira, aos preconceitos latentes que marcam as relações
raciais no país, ressignificando o papel da educação na in-
clusão/exclusão social das camadas populares.

A agudização da problemática da exclusão social, in-


clusive a do acesso à escolarização, sem que a in-
tromissão da esfera instituída – pela via do Estado,
signifique encaminhar propostas de soluções viáveis
e conseqüentes que possibilitem a efetivação de uma
política social includente. Isto constitui mais um desa-
fio à reflexão e à ação engajada da comunidade uni-
versitária (PAULA, 2008).

A adoção de ações afirmativas nas universidades pú-


blicas é hoje um dos maiores desafios enfrentados pela aca-
demia, pois problematiza uma questão: como manter eleva-
do um padrão de qualidade de ensino, há anos consolidado
230
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...

sob a égide da meritocracia, com a entrada massiva de


segmentos sociais excluídos e classificados como inferio-
res e incapazes. A polêmica construída em torno da ado-
ção de medidas afirmativas, marcada pela manipulação da
mídia, aponta para a permanência de uma visão aristocrá-
tica do saber como privilégio, restrito a poucos, apenas
àqueles selecionados nas disputadas vagas dos cursos e
instituições de prestígio, segundo questionáveis critérios
meritocráticos, que mantêm inalterado o status quo, não
contribuindo para uma real transformação social a par da
superação das desigualdades.

Ações afirmativas: diversidade e desigualdade

Hoje a discussão sobre a adoção de ações afirma-


tivas ganhou o cenário nacional e a agenda universitária,
ainda que suscite polêmicas e conflitos. Recentemente o
manifesto Cento e Treze Cidadãos Anti-Racistas contra as
Leis Raciais5, subscrito por “intelectuais da sociedade civil,
sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos negros
e outros movimentos sociais”, como se autodenominaram
os 113 cidadãos que vieram a público para “oferecer ar-
gumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem
política e jurídica da República”. Os argumentos apresenta-
dos baseiam-se na premissa de que cotas raciais não irão
reduzir as desigualdades sociais, mas sim, que estas

ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções


dos desafios imensos e das urgências, sociais e edu-
cacionais, com os quais se defronta a nação. E, contu-
do, mesmo no universo menor dos jovens que têm a
oportunidade de almejar o ensino superior de quali-
dade, as cotas raciais não promovem a igualdade, mas

5
Carta entregue ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro
Gilmar Mendes, em 30/04/2008.

231
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

apenas acentuam desigualdades prévias ou produzem


novas desigualdades.

O manifesto questiona ainda a racialização do deba-


te afirmado que se “raças humanas não existem”, este fato,
cientificamente comprovado, deveria conduzir a “constru-
ção de uma sociedade desracializada, na qual a singula-
ridade do indivíduo seja valorizada e celebrada”, modi-
ficando suas convicções e atitudes morais. Admitem que
“existem preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil
não é uma nação racista”, e contrapõem-se ao argumento
de que para garantir o princípio da igualdade de todos pe-
rante a lei é necessário tratar desigualmente os desiguais,
como sustentam os proponentes das cotas raciais.
Os manifestantes reafirmam que “são diferenças de
renda, com tudo que vem associado a elas, e não de cor,
que limitam o acesso ao ensino superior”, não mencionan-
do que a maior parte da população de baixa renda é negra
ou parda. Finalizam afirmando que as cotas raciais são “a
face mais visível de uma racialização oficial das relações
sociais que ameaça a coesão nacional”, que sua adoção
anuncia o fracasso da “utopia da igualdade” e da “univer-
salização da cidadania efetiva”, acirra “rancores e ódios”
e “representaria uma revisão radical de nossa identidade
nacional”. Para os signatários, “a distribuição seletiva de
privilégios segundo rótulos de raça inocula na circulação
sanguínea da sociedade o veneno do racismo”, sendo que
a “crença na raça é o artigo de fé do racismo”.
Em resposta ao Manifesto dos Cento e Treze Cida-
dãos Anti-Racistas contra as Leis Raciais, duas semanas
depois, foi entregue também ao presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), outro manifesto6, este em defesa
da política de cotas raciais nas universidades. O docu-

6
Carta entregue ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro
Gilmar Mendes, em 13/05/2008, data em que se comemoraram os du-
zentos anos da Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil.

232
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...

mento foi assinado por mais de mil pessoas, incluindo


acadêmicos, estudantes, artistas e militantes dos direitos
de minorias, e defende a constitucionalidade da política
de cotas, entendendo que a mesma promove oportunida-
des iguais a brasileiros historicamente tratados de formas
diferentes. O manifesto favorável às políticas afirmativas
contra-argumenta que as cotas cumprem sim o papel de
compensar a histórica exclusão dos negros das universida-
des, já evidente hoje, visto que “apenas nos últimos cinco
anos houve um índice de ingresso de estudantes negros
no ensino superior maior do que jamais foi alcançado em
todo o século XX”.
Em uma crítica ao argumento de que é complicado
classificar os brasileiros por raças, devido à miscigenação,
os defensores das ações afirmativas esclarecem que o as-
pecto cultural e histórico de uma raça pode ser usado
para fins de discriminação, como tem sido feito até hoje
e confirma os patamares de desigualdade entre brancos e
negros, mas também permite que se faça uma reflexão so-
bre a adoção de políticas de inclusão que permitam “trazer
para o interior das universidades brasileiras aqueles grupos
sociais historicamente excluídos”. Comparou-se a posição
dos 113 signatários do manifesto contra as leis raciais com
“as posições e práticas adotadas pela elite conservadora,
que reage desesperadamente para manter o poder que acu-
mulou no período da escravidão, do colonialismo e das
repúblicas branqueadas ou excludentes construídas em um
momento político ultrapassado e que agora são obrigadas
a enfrentar as demandas de uma agenda política que exige
justiça social, convivência multiétnica e multirracial, com
divisão proporcional de poder e de riqueza”. Os defensores
da política de cotas acreditam que sua adoção é uma ação
afirmativa importante para assegurar a inclusão do negro à
universidade e, assim, superar as barreiras impostas pelo
racismo. Sem políticas afirmativas, a mudança social será
muito lenta, retardando a instituição de uma igualdade ra-
cial efetiva baseada na justiça e na eqüidade de direitos.
233
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Cabe mencionar que a elaboração dos dois mani-


festos foi provocada pela preocupação com o julgamento
de duas ações7 sobre o tema, e o significado histórico que
os resultados destas ações podem causar em termos de
jurisprudência sobre a constitucionalidade de leis raciais
e demais ações afirmativas. Segundo o discurso jurídico,
a constitucionalidade das medidas de ações afirmativas é
construída, através da fusão de dois fatores, quais sejam:
o modelo de sociedade previsto, construído pelo Estado
constitucional, e a realidade social do povo a que se pro-
põe esse modelo. Assim, o que está em discussão é a
própria constituição da sociedade brasileira e como esta
interpreta e pratica valores como igualdade, equidade e
justiça. Não podemos deixar de destacar que é o fato de
esta ser uma sociedade de contrastes e profunda desigual-
dade e exclusão socioeconômica que dá sentido e justifica
a adoção de políticas afirmativas que pretendem minimi-
zar esses aspectos.
O recente episódio dos dois manifestos, assinados
por personalidades do mundo acadêmico e por intelec-
tuais respeitados, demonstra a confusão ideológica que
a polêmica que envolve a proposta de adoção de me-
didas afirmativas, principalmente da instituição de cotas
para acesso de segmentos sociais tradicionalmente exclu-
ídos, trouxe para o meio universitário. Os questionamen-
tos apresentados pelos grupos não tão distintos mas com
posições frontalmente contrárias, pro e antipolíticas de co-
tas, revelam as disputas e contradições na concepção de
universidade, apontando para a existência de enfoques,
perspectivas e lógicas distintas, que representam posturas
progressistas e conservadoras e diferentes campos de poder

7
Duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 3.330 e ADI 3.197)
promovidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensi-
no (Confenen), a primeira contra o programa Prouni e a segunda con-
tra a lei de cotas nos concursos vestibulares das universidades estaduais
do Rio de Janeiro, a serem apreciadas proximamente pelo STF.

234
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...

acadêmico e político. Também demonstra o diferencial


ideológico de se reconhecer e aceitar a presença da diver-
sidade cultural e étnica na universidade e na sociedade e
de efetivamente se comprometer a impedir que essa diver-
sidade seja a justificativa para um tratamento desigual que
restrinja as oportunidades de uns e amplie as de outros,
e contraditoriamente quando surge a ocasião de corrigir a
histórica desigualdade inverte a noção de privilégio e se
denomina de racismo a constatação de que a democracia
racial no Brasil sempre foi apenas um mito.
A própria utilização do termo “afro-descenden-
te”,  para alguns uma expressão imprecisa que pode ho-
mogeneizar diferenças, e inclusive divide os defensores
das cotas quanto aos critérios de atribuição do direito às
cotas, pela fenotípia, em que a cor teria um papel impor-
tante ou pela descendência, pela avaliação externa das
características étnicas ou pela auto-atribuição, variáveis di-
ferentemente empregadas nas diferentes instituições que
adotam as cotas, muitas delas conjugando fatores econô-
micos ou referentes à trajetória escolar pregressa entre os
critérios classificatórios.
Cabe destacar, ainda, que dentre os argumentos
contrários às leis raciais, e mesmo entre os favoráveis, os
que defendem a classificação pela descendência e pelo
predomínio dos aspectos culturais na definição de quem
tem direito às cotas, são influenciados pela própria difi-
culdade de se definir quem é negro, branco, pardo, etc.
na sociedade brasileira. Segundo José Murilo de Carvalho,
a não inclusão de mestiços, mulatos, morenos, caboclos,
nos censos demográficos poderia ser interpretada como
um “genocídio racial estatístico”, impossibilitado traçar um
perfil mais fidedigno e característico da população. Já na
década de 1950, Oracy Nogueira afirmava que “a concep-
ção de branco e não branco, variava, no Brasil, em função
do grau de mestiçagem, de indivíduo para indivíduo, de
classe para classe, de região para região”, indicando que
a multiculturalidade é a tônica da sociedade brasileira.
235
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Assim, podemos afirmar que as relações raciais no Brasil e


o debate sobre a adoção de medidas afirmativas que visam
a diminuir as desigualdades impostas historicamente por
aspectos étnicos, trazem uma enorme complexidade social,
econômica e cultural com fortes componentes ideológicos.
Esse cenário é evidente no episódio dos dois mani-
festos, quando a polêmica sai dos muros das universida-
des e ganha a sociedade envolvendo diferentes segmentos
no campo das artes e da intelectualidade brasileira, divi-
dida e confusa entre os diversos discursos e a defesa de
interesses de grupos minoritários ou majoritários. Assim
vemos que a polêmica instaurada em torno de quem ocu-
pará as disputadas vagas das universidades públicas pode
ser também entendida como uma disputa de hegemonia
no campo da produção de conhecimento, ora entendida
como privilégio a ser preservado ora como direito a ser
estendido á população. Assim, acirra-se o debate no sen-
tido da conservação das estruturas de poder instituídas
ou da transformação social de uma sociedade que ace-
leradamente se adapta a novas demandas de um mundo
globalizado.

O conhecimento produzido na Universidade, apesar


das suas contradições, avanços e retrocessos, pode
indicar pistas para efetivas transformações sócio-cul-
turais-educacionais, nutrindo os sujeitos históricos in-
dividuais e coletivos, na busca emancipatória comum
da reinvenção de valores para a construção de novos
padrões civilizatórios visando à construção de uma so-
ciedade cidadã pluralista e inclusiva (PAULA, 2008).

A análise do papel desempenhado pela educação


seja na reprodução das desigualdades sociais seja na su-
peração das mesmas deve ser empreendida em uma pers-
pectiva mais ampla. Nesse sentido, compreendemos que
a sociedade brasileira foi gestada e se desenvolveu ali-
mentando as múltiplas desigualdades sociais, confirmadas

236
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...

pelas diferentes formatações do Estado, que, entretanto,


mantiveram uma estrutura social excludente, que infe-
rioriza amplas parcelas da população, principalmente a
classe trabalhadora predominantemente mestiça e negra.
Assim, a análise das relações assimétricas de poder en-
tre os diferentes grupos e classes sociais é fruto de uma
construção histórica marcada pela sujeição de etnias e que
determinou as relações entre esses grupos caracterizados
não apenas como diferentes, do ponto de vista cultural,
mas, principalmente como desiguais, do ponto de vista
socioeconômico.
Assim, ainda que os diferentes grupos sociais que
compõem a sociedade brasileira hoje, numa concepção
multicultural sejam entendidos, no plano antropológico
como efetivamente diferentes, eles são entendidos, tam-
bém, no plano sociológico como profundamente desi-
guais. Dessa forma, ao analisarmos as relações raciais na
sociedade brasileira, bem como a discussão sobre a ado-
ção de políticas afirmativas, como a de cotas no acesso ao
nível superior, tem que se considerar a centralidade das
interseções entre políticas educacionais, culturais, proces-
sos de implementação de cidadania plena, classe, renda,
etnias e ação coletiva de atores sociais.
À guisa de conclusão, finalizo com as palavras de
Nigel Brooke:

Se não houver uma intervenção explicita, com o obje-


tivo de aumentar o acesso e a permanência do negro
dentro do sistema educacional, as diferenças educa-
cionais perdurarão, com tudo o que isto significa para
a manutenção dos sistemas de estratificação racial,
para a distribuição desigual da renda e para a per-
petuação das desigualdades no exercício dos direitos
humanos e civis que tanto dificultam a consolidação
da democracia no país (BROOKE, 2002, p. 154)

237
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

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Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...

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239
Estudantes de uma universidade
estadual com cotas: a percepção
do racismo e da política de
ações afirmativas

Dalila Fonseca Benevides


Daniela Silva Santo
Delcele Mascarenhas Queiroz

Introdução

Apesar da forte presença da população negra no


conjunto da população brasileira, até meados da déca-
da de 90 pouco se sabia a respeito da sua participação
na universidade. Essa evidência é constatada pela inves-
tigação realizada, em 1997, na Universidade Federal da
Bahia (UFBA) (QUEIROZ, 2000). Esse talvez tenha sido o
primeiro levantamento dessa natureza. Mesmo no âmbito
dos movimentos de organização da população negra, em
que houve uma preocupação com o acesso à escolariza-
ção, o que se debatia sobre o ensino superior, advinha, de
modo geral, de experiências pessoais ou da observação
mais imediata. Fruto dessa preocupação é a criação, ainda
no início dos anos 90, de cursos preparatórios para o ves-
tibular, em Salvador, cujo pioneirismo cabe ao Instituto
Steve Biko. Fora desse contexto, quase nada se discutia a
respeito.
O questionamento da desigualdade de acesso à uni-
versidade ganha efetiva visibilidade nos eventos preparató-
rios para a participação na III Conferência Mundial Contra
o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas
241
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Correlatas de Intolerância, promovida pela ONU, em 2001.


No contexto da conferência, o tema se coloca como de-
manda efetiva dos movimentos negros, que o governo
brasileiro é compelido a acolher, através de medidas ainda
muito tênues, como a promoção de cursos preparatórios
para o vestibular. É nesse cenário que se situa o debate em
torno das políticas de ação afirmativa para negros, no Bra-
sil, como medidas de superação das desigualdades raciais,
e a proposta de “cotas raciais” como uma das formas de
materialização desse tipo de política, no ensino superior.
A primeira instituição brasileira a adotar um siste-
ma de cotas raciais para o acesso de negros, tanto aos
cursos de graduação quanto de pós-graduação foi a Uni-
versidade do Estado da Bahia (Uneb). Em maio de 2002,
seu Conselho Superior aprovou por unanimidade a ado-
ção da medida, que passaria a vigorar no concurso ves-
tibular do ano de 20031. A política tinha como alvo os
estudantes negros oriundos de escolas públicas. Naquele
momento, a Uneb implantava também seu primeiro cur-
so de mestrado, o Mestrado em Educação e Contempo-
raneidade, que desde o seu surgimento contemplou a
política de “cotas”.
Apesar do seu pioneirismo, a implementação e os
resultados da política adotada pela instituição não tem
merecido dos pesquisadores a atenção devida. Salvo o
artigo de Mattos (2003) analisando o primeiro momento
da implantação da política, pouco se sabe sobre esse
processo.
A análise que apresentaremos a seguir resulta de
dois levantamentos sobre os estudantes da Uneb, que
ingressaram no ano de 2005, pelo sistema de cotas, e
pretende contribuir para o debate em torno das ações
afirmativas e, particularmente, refletir sobre experiência
de adoção de tais medidas na própria universidade, con-

1
A Resolução de n. 196/2002, do Conselho Universitário da Uneb,
instituiu o sistema de cotas da instituição.

242
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

tribuindo para preencher a lacuna de informação e de re-


flexão em torno desse processo. O primeiro levantamen-
to buscou conhecer as características socioeconômicas e
acadêmicas dos estudantes que ingressaram em cursos
de elevada concorrência. O segundo objetivou conhecer
a percepção dos estudantes sobre as relações raciais, as
ações afirmativas e, particularmente, a política de cotas
que os beneficiou.

1 - Desigualdades raciais na sociedade


e na universidade

Apesar do ambiente marcadamente conflituoso


da sociedade colonial brasileira, durante todo o século
XIX (entre outros, REIS, 1986; MATTOS, 2004; CASTRO,
1999), a imagem do Brasil como uma sociedade de con-
vivência harmônica entre as “raças”, de um “paraíso ra-
cial”, difundiu-se e consolidou-se na idéia de “democra-
cia racial”. Tal foi a força dessa imagem que, no final
dos anos 40 do século passado, o Brasil é escolhido
pela Unesco como local de verificação de possibilida-
des de convivência pacífica entre grupos raciais, para
sediar um amplo programa de pesquisas sobre relações
raciais, destinado a mostrar ao mundo, traumatizado
pelo Holocausto, o exemplo de uma experiência bem-
sucedida de relações raciais.
Esses estudos, que ficaram conhecidos como O
Programa UNESCO, foram realizados na Bahia, no Rio
de Janeiro, em São Paulo e em Recife, e coordenados,
respectivamente, por: Tales de Azevedo, Luiz Carlos
Costa Pinto, Florestan Fernandes e Roger Bastide, e
René Ribeiro (MAIO, 1997). Os resultados das pesqui-
sas trouxeram à tona uma realidade insuspeitada: con-
trariando a expectativa otimista dos seus patrocinado-
res, mostraram a antiimagem do “paraíso racial”, isto
é, revelaram uma sociedade marcada pelo preconceito
243
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

racial, com significativa distinção nas condições de vida


de brancos e negros.
Muito embora os resultados desses estudos puses-
sem por terra a imagem do “paraíso”, revelando a rea-
lidade de um país racialmente desigual, alguns autores
mantinham a fé na “democracia racial” e a crença de que
essa desigualdade era um legado do período escravista,
marcado por relações estamentais, alimentando a expec-
tativa de que tais desigualdades fossem paulatinamente
desaparecendo por efeito do processo de modernização
que se consolidava no país.
Ao revelar a realidade do preconceito racial na so-
ciedade brasileira, contudo, esses estudos abriam cami-
nho para a formulação de novas hipóteses. O aprofunda-
mento dos estudos raciais, nessa vertente, irá evidenciar
que o tempo decorrido, desde a extinção do trabalho
escravo, já não autorizava a invocar a escravidão como
fator explicativo da inferioridade social dos negros. No
final dos anos 70, uma tese de doutorado torna-se um
marco nos estudos sobre relações raciais no Brasil. Ao
examinar as estatísticas oficiais, produzidas pelo IBGE,
Carlos Hasenbalg constata que havia profundas distân-
cias entre negros e brancos na sociedade brasileira; que
as desigualdades existentes entre esses segmentos sociais
no mercado de trabalho, na distribuição de renda e no
acesso à educação são desigualdades marcadas pelas
características raciais desses grupos e não apenas pela
condição de classe. Essas conclusões o levam a assinalar
que “a persistência histórica do racismo não deve ser
explicada como mero legado do passado, mas como ser-
vindo aos complexos e diversificados interesses do gru-
po racialmente dominante no presente” (HASENBALG,
1987, p. 11).
Para o autor, o preconceito e a discriminação fun-
cionam como mecanismos de exclusão, cotidianamente
atualizados pela realidade brasileira. Daí a sua observação
de que embora se saiba, hoje, que a raça é tão-somente
244
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

uma representação, um atributo que é elaborado social-


mente, a partir de marcas corporais, essa representação
continua a operar como um dos critérios mais importantes
no recrutamento dos indivíduos às posições da hierarquia
social (HASENBALG, 1987, p. 180).
A perspectiva adotada por Hasenbalg inaugura,
deste modo, uma nova interpretação sobre as relações
sociais brasileiras, desencadeando uma rica produção de
estudos buscando apreender as relações entre brancos e
negros em vários espaços como o mercado de trabalho, a
educação, a política, entre outros espaços sociais, resul-
tando num consistente mapeamento das desigualdades
raciais no país, o que contribuiu para abrir caminho para
a formulação das políticas de combate ao racismo e à
discriminação racial, em curso, no Brasil, na contempo-
raneidade.

2 - A invisibilidade dos negros


no sistema de ensino

Em que pese a longa tradição de estudos das rela-


ções raciais no país, no campo da educação os estudiosos
permaneceram alheios a essa realidade. Embora a aqui-
sição de escolaridade tenha se constituído, ao longo de
todo o século XX, numa questão importante para a agenda
dos movimentos de organização da população negra, para
os educadores essa preocupação aparece tardiamente. Até
o final dos anos 70 do século passado, o acesso do negro
ao sistema de ensino e a sua trajetória nesse espaço não se
apresentavam como um problema que merecesse a aten-
ção dos educadores, mantendo-se restrito ao âmbito dos
militantes e intelectuais comprometidos com esses movi-
mentos (GOMES, 2004).
No final dos anos 80, no contexto das comemora-
ções pelos 100 anos da Abolição, passa a haver uma am-
pliação das pesquisas sobre a situação do negro no Brasil,
245
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

inclusive aquelas denunciando o analfabetismo e a bai-


xa escolaridade da população negra. É ilustrativo desse
contexto a publicação pela Fundação Carlos Chagas, em
novembro de 1987, de um número (63) do Cadernos de
Pesquisa, sob o título “Raça negra e educação”.
No entanto, é mais precisamente a partir dos anos
90 que o debate em torno do acesso do negro ao sistema
de ensino vai ganhar visibilidade, para além do âmbito
dos movimentos negros. O debate se intensificou com a
divulgação, no início da década seguinte, de estudos so-
bre a reduzida presença de negros na universidade, sejam
eles oriundos de organismos oficiais de pesquisa, como o
Ipea2, sejam aqueles realizados por pesquisadores, no âm-
bito acadêmico, como o de Queiroz (2001), que analisou
comparativamente a presença de negros em universidades
federais brasileira.

3 Quem são e o que pensam


os estudantes da Uneb

A seguir analisaremos um conjunto de dados sobre


as características dos estudantes da Uneb, que ingressaram
em 2005. Utilizando um questionário, como instrumento
de coleta, foram levantadas informações sobre as caracte-
rísticas pessoais do estudante, sobre sua trajetória escolar
no ensino médio, tais como o tipo de escola freqüentado,
turno em que estudou, associação entre estudo e traba-
lho, e sobre aspectos referentes à família, como renda,
escolarização e ocupação dos pais. No segundo momento,
examinaremos informações provenientes da coleta reali-
zada, através de entrevistas, entre os estudantes do cur-
so de Pedagogia, que ingressaram na UNEB, também em
2005. A escolha do curso de Pedagogia decorre do nosso
entendimento de que em um curso de formação de pro-

2
Instituto de Pesquisas e Estudo Aplicados

246
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

fessores, supostamente, haveria uma maior preocupação


com as questões sociais, como o racismo e a discrimina-
ção racial, entre outras, e com a tarefa da educação na sua
superação.

3.1 Características do estudante


e percepção das cotas

A pesquisa, cujos resultados serão aqui analisados,


teve como espaço empírico os cursos das áreas de Ciên-
cias Humanas, Ciências Exatas e da Terra, e Ciências da
Vida, do Campus I/Uneb. Em cada área, se tomou o curso
de mais elevada concorrência, no caso, os cursos de En-
fermagem, Comunicação Social e Análise de Sistemas. A
partir do dessas informações, buscou-se refletir sobre a re-
lação entre a condição socioeconômica do estudante, seu
pertencimento racial, sua origem escolar e o significado
do seu acesso a cursos valorizados, através do sistema de
cotas. Evidentemente os resultados desses levantamentos
não podem ser generalizados, porque se referem a um
conjunto pequeno de estudantes, mas representam uma
amostra significativa desse universo, por tomar para análi-
se cursos prestigiados, no campus da universidade que se
localiza na capital do estado.

A “cor” do estudante

A autoclassificação induzida, pelas categorias do


IBGE, indica que 55,6% estudantes se classificaram como
pardos e 33,3% como pretos, perfazendo um total de 88,9%
entrevistados se classificando como negros (Tabela 1). As
demais categorias têm uma presença reduzida nesse con-
junto, realidade que reflete a política de cotas raciais im-
plantada pela instituição.

247
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Tabela 1 – Distribuição percentual dos estudantes


segundo a autodeclaração de cor induzida – Uneb 2005
Cor %
Branca 3,7
Parda 55,6
Preta 33,3
Amarela 3,7
Indígena 3,7
Total 100
Fonte: Pesquisa direta

Condições de vida dos cotistas

A Tabela 2, a seguir, evidencia que uma parcela


bastante significativa (88,9%) desses estudantes possui
casa própria. Esse dado, ao contrário de indicar uma ele-
vada condição socioeconômica dos seus proprietários,
possivelmente está apontando para um fenômeno muito
característico da urbanização das grandes cidades brasi-
leiras, que são as moradias construídas pelo sistema de
“autoconstrução”, nos bairros populares. Se cruzarmos
essa informação com as que analisamos anteriormente,
sobre o local de moradia dos estudantes, reforçaremos
essa suposição.

Tabela 2 – Distribuição percentual dos estudantes


segundo a condição da residência – Uneb 2005
Condição %
Própria 88,9
Alugada 11,1
Total 100
Fonte: Pesquisa direta

A análise da renda familiar dos estudantes entrevis-


tados mostra que mais da metade deles (55,6%) não ul-
trapassa o patamar de cinco salários mínimos (Tabela 3).

248
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

Apesar do nível de renda relativamente baixo, este con-


tingente de estudantes se encontra em uma situação, sen-
sivelmente melhor que a da maioria da população negra
brasileira. Analisando dados do Ipea, Henriques (2001)
assinala que

[...] nascer negro no Brasil está relacionado a uma maior


probabilidade de nascer pobre. A população negra
concentra-se no segmento de menor renda per capita
da distribuição de renda do país. Especificamente, os
negros representam 70% dos 10% mais pobres da po-
pulação, enquanto, entre o décimo mais rico da renda
nacional, somente 15% da população é negra (17).

Tabela 3 – Distribuição percentual dos estudantes


segundo a renda familiar – Uneb 2005
Salários Mínimos %
Abaixo de 2 -
De 2 a 3 11,1
De 4 a 5 44,4
De 6 a10 29,6
De 10 a 20 14,9
Acima de 20 -
Total 100
Fonte: Pesquisa direta

A história escolar do estudante

Cerca de metade do grupo investigado cursou o en-


sino fundamental em escolas privadas (51,9%), enquan-
to que uma parcela em torno de um terço, cursou uma
escola pública, nesse nível de ensino (Tabela 4). Todos
os estudantes investigados cursaram o ensino fundamen-
tal no turno diurno. Uma proporção também expressiva
(88,9%) fez o curso médio, no turno diurno, o que indica
que, em tese, puderam manter-se afastados do mercado
de trabalho durante a formação básica (Tabela 5, anexa).
249
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Apenas 14,8% estudantes fizeram um curso técnico-pro-


fissionalizante, durante o ensino médio (Tabela 6, anexa);
o que leva a supor a existência de um projeto familiar,
cujo horizonte era o ensino superior. Apesar da origem
na escola pública, percebe-se que esse grupo está dis-
tante da trajetória freqüentemente encontrada na maioria
dos estudantes negros. Como assinala Nogueira (2000),
ao contrário do que comumente se observa em estudan-
tes oriundos de escolas privadas, estudantes oriundos de
escolas públicas realizam, não raro, um tipo de caminho
dito “circuito vicioso” (p. 128), em oposição ao “circuito
virtuoso”, realizado por aqueles. São trajetórias escolares
acidentadas, marcadas por episódios freqüentes de inter-
rupções ou pelo simples abandono do curso3, seja por-
que as próprias escolas não reúnem as condições mínimas
necessárias à permanência do estudante, terminando por
expulsá-lo, seja porque ele necessite arcar com o ônus da
própria sobrevivência, ou até mesmo da sobrevivência de
outros, abandonando mais cedo a escola para enfrentar o
mercado de trabalho, ou simplesmente porque a carreira
acadêmica é algo muito distante do horizonte de aspira-
ções do seu grupo social4. Reprovação e repetência são
aspectos destacados pela análise de Portela (1997), como
traços marcantes do sistema escolar público brasileiro, res-
ponsáveis pela permanência do estudante numa mesma
série, por anos seguidos.

3
Queiroz (1997) observou este fenômeno ao examinar as trajetórias
escolares de um grupo de mulheres negras portadoras de instrução
primeira e de segundo grau, ocupadas numa empresa do ramo de co-
mércio, da Região Metropolitana de Salvador.
4
Teixeira (1998), no seu estudo sobre a trajetória de alunos e professo-
res universitários negros no Rio de Janeiro, observou que “para parte
dos entrevistados, a escolha da carreira ou curso não era para a família
uma decisão importante” (p.,241). Para eles, a necessidade de amplia-
ção dos rendimentos da família se sobrepõe, provavelmente, à ambição
de ver um filho na universidade.

250
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

Tabela 4 – Distribuição percentual dos estudantes segundo o


tipo de escola freqüentada no Ensino Fundamental – Uneb 2005
Tipo de escola %
Pública 33,3
Privada 51,9
Pública e depois privada 7,4
Privada e depois pública 7,4
Total 100
Fonte: Pesquisa direta

Mais de um terço dos entrevistados (37%) ingres-


saram na universidade na primeira tentativa; e uma pro-
porção de 18,5% havia tentado vestibular três vezes ou
mais. Os demais, em igual proporção, haviam feito de
uma a duas tentativas, no mesmo curso ou em cursos
diferentes, como mostra a Tabela 7, a seguir. Investi-
gando as desigualdades raciais no acesso à UFBA, no
final da década de 90, Queiroz (2001) havia observado
entre os estudantes uma gradação de cor que corres-
pondia à sua experiência anterior em concursos vesti-
bulares. Assim, em primeiro lugar, isto é, aqueles com
menor número de experiências anteriores, estavam os
“brancos” seguidos pelos “morenos”, depois os “mula-
tos” e, finalmente, os “pretos”. Entre os “brancos” e os
“pretos” havia uma distancia de cerca de onze pontos
percentuais, significando que os “brancos” eram mais
bem-sucedidos na sua tentativa de ingressar na univer-
sidade. Como se pode observar, há uma proximidade
da situação anteriormente descrita para os estudantes
cotistas da Uneb, com a do contingente de “mutatos” e
“pretos”, da UFBA, o que evidencia que há uma desvan-
tagem para os estudantes negros, mesmo no contexto
de uma política diferenciada de acesso, indicando que
as barreiras presentes nas trajetórias desses estudantes
pesam com rigor especial no momento do seu acesso
ao ensino superior.

251
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Tabela 7 – Distribuição percentual dos estudantes segundo


o número de vezes que prestou vestibular – Uneb 2005
Número de vestibulares %
Não fez anteriormente 37
Uma vez para o mesmo curso 11,1
Uma vez para outro curso 11,1
Duas vezes para o mesmo curso 11,1
Duas vezes para outro curso 11,1
Três ou mais vezes 18,5
Total 100
Fonte: Pesquisa direta

Coerente com a análise anteriormente apresentada


sobre as tentativas de ingressar na universidade, uma pro-
porção elevada desses estudantes freqüentou curso pre-
paratório para o vestibular; em alguns casos, até por três
vezes, até conseguir aprovação. Apenas 18,5% deles não
passaram por tal experiência (Tabela 8). Se confrontar-
mos essa informação com outras como a origem escolar,
a renda e o local de residência, p. ex., podemos imaginar,
por um lado, o quanto custou às suas famílias a realiza-
ção desse projeto acadêmico, por outro, que sua trajetória
está muito distante daquilo que é a trajetória padrão dos
estudantes negros de escolas públicas, como têm eviden-
ciado os estudos de Cavalleiro (2000), Rosemberg (1991),
Hasenbalg (1992), Barcelos (1992).

Tabela 8 – Distribuição percentual dos estudantes


segundo a participação em cursinhos – Uneb 2005
Freqüentou cursinho %
Não 18,6
Uma vez 44,4
Duas vezes 25,9
Três vezes ou mais 11,1
Total 100
Fonte: Pesquisa direta

252
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

Características das famílias

Os pais desses estudantes têm em geral uma esco-


laridade de nível médio. A observação da escolaridade do
pai, isoladamente, mostra que dois terços deles cursaram
até o ensino médio (66,7%), sendo pouco expressiva a
parcela dos que concluíram um curso superior (7,4%). En-
tre as mães, o nível de escolaridade é mais elevado, con-
siderando que 59,3% delas têm o segundo grau completo,
11,1% o curso superior incompleto e 7,4% concluíram o
curso superior, o que não chega a surpreender em se tra-
tando da escolaridade das mulheres; a escolaridade mais
elevada entre as mulheres é um fenômeno mais ou menos
universal, em tempos mais recentes (Tabela 9).

Tabela 9 – Distribuição percentual dos estudantes


segundo a escolaridade dos pais – Uneb 2005
Escolaridade Pai Mãe
Até primeiro grau incompleto 7,4 7,4
Primeiro grau completo 7,4 7,4
Segundo grau incompleto 11,1 7,4
Segundo grau completo 66,7 59,3
Curso superior incompleto - 11,1
Curso superior completo 7,4 7,4
Total 100 100
Fonte: Pesquisa direta

No que diz respeito à ocupação do pai, em pro-


porções muito próximas, eles são comerciantes, assisten-
tes administrativos, autônomos, bancários, funcionários
públicos. Também aparecem, numa proporção menor, os
que são gerente de vendas, instrumentista, almoxarife,
engenheiro mecânico, militar, vendedor, contador, técnico
de segurança do trabalho, inspetor. Há alguns aposenta-
dos (11,1%). Quanto à ocupação das mães, chama aten-
ção que 29,6% delas sejam donas de casa, o que demons-
tra que, mesmo com renda pouco elevada, estas famílias

253
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

têm condições de manter um de seus membros fora do


mercado de trabalho. A ocupação de professora apare-
ce bem representada, com 18,5% delas, nessa categoria.
Uma parcela menor aprece como técnica de enfermagem
e vendedora. A menor participação é daquelas cuja ocupa-
ção é agente de limpeza, administradora e comerciante.
O questionário não permitiu conhecer a natureza dessas
ocupações em termos de sua formalização, o que possibi-
litaria um aprofundamento da compreensão do significado
desse indicador.

Visão dos estudantes sobre as cotas

Indagados sobre a pertinência da política de cotas,


55,6% desses estudantes entendem que a medida “deveria
ser expandida para todos os estudantes pobres”. Apenas
18,5% compreendem que essa “é uma medida repara-
dora para os negros”, outros “porque favorece os negros
de escolas públicas”. Uma parcela deles considera que
a medida “é discriminatória, pois julga os negros menos
capazes”. Consideramos que a opinião desfavorável ao
interesse da população negra, predominante entre dois
terços desses estudantes, se deve não apenas à invisibi-
lidade da questão racial, na sociedade brasileira, como
porque a informação que eles recebem sobre a medida
provém, possivelmente, dos meios de comunicação, car-
regados, em geral, de uma visão abertamente tendencio-
sa, quando se trata do questionamento do racismo brasi-
leiro. Pode-se perceber que, na própria universidade que
adotou a medida, a política de cotas está envolta em de-
sinformação entre os universitários, mesmo entre aqueles
que se favoreceram dela, quando se constata, que 22,2%
dos cotistas entrevistados se recusaram a expor sua opi-
nião sobre a medida (Tabela 10).

254
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

Tabela 10 – Distribuição percentual dos estudantes


segundo a opinião sobre as cotas – Uneb 2005
Opinião %
A favor porque favorece os negros 3,7
de escolas públicas
É discriminatória, pois julga os negros 7,4
menos capazes
É justa, pois é uma medida reparadora 11,1
para os negros
Deve ser expandida a todos 55,7
os estudantes pobres
N/D 22,2
Total 100
Fonte: Pesquisa direta

3.2 Percepção sobre a política de cotas e sobre o


racismo na sociedade e na universidade

Com o propósito de aprofundar nossa compreensão


sobre o que pensam os estudantes a respeito do racismo
e das políticas afirmativas para negros, particularmente
sobre a reserva de vagas nessa universidade, coletamos
informações através de entrevistas semi-estruturadas.
A princípio, as entrevistas deveriam ser realizadas com
quatro estudantes de cada turno de funcionamento do
curso, isto é, dos três turnos diários. Deveriam ser entre-
vistados dois homens e duas mulheres, dois deles cotis-
tas, e dois não cotistas. No turno matutino, havia apenas
um homem, que atendia às características definidas para
participar da amostra, o que resultou na participação de
apenas cinco homens e sete mulheres; mantendo assim
os doze estudantes entrevistados. Em geral, a idade dos
entrevistados estava em torno de 23 anos. Apenas dois
entrevistados, do sexo masculino, tinham idade superior
a trinta anos.

255
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Percepção sobre o racismo na universidade


e na sociedade

Quando indagados a respeito do que é o racismo, as


respostas foram, de modo geral, inespecíficas. Disse uma
das entrevistadas, negra e cotista:

Racismo é a discriminação... Deixe-me ver... É muito


difícil essa pergunta. A terminologia racismo, raça...
Acho que temos raças diferentes, somos diferentes.
Eu acho que o racismo é isso mesmo, a gente acaba
defendendo a nossa raça e subjugando a outra.

A resposta parece indicar a existência de “simetria”


na possibilidade de subjugação de uma “raça” por outra,
o que parece conferir certa naturalidade e legitimidade
ao racismo. Ao afirmar que “a gente acaba defendendo a
nossa raça e subjugando a outra”, a entrevistada demons-
tra um desconhecimento das relações de força presentes
na sociedade e do racismo como uma expressão dessas
relações, com suas perversas conseqüências para a popu-
lação negra.
A pergunta seguinte indagava sobre a existência do
racismo na sociedade. A maioria afirmou não perceber.
Essas respostas evidenciam que o discurso da “democracia
racial” está de tal modo incorporado às estruturas cogniti-
vas desses estudantes (RODRIGUES, 2005), que os impede
de perceber a desigualdade de tratamento e de condições
de vida da população negra, nos vários espaços da socie-
dade brasileira. A força da imagem da “democracia racial”
entre nós é tal que, até mesmo aqueles que estão submeti-
dos ao racismo, têm dificuldade de percebê-lo, ou não se
sentem à vontade para denunciá-lo, mesmo na universida-
de, um ambiente onde, em maior ou menor grau, circula
um discurso crítico sobre a sociedade. Podemos também
argumentar que essa invisibilidade do racismo decorre da
ausência do debate, sobre sua existência. Essa ausência

256
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

está também em outros espaços educativos como a “gran-


de mídia”, por exemplo. Tudo isso concorre para o pou-
co entendimento do que seja o racismo, dificultando uma
interpretação adequada da realidade. Apenas uma entre-
vistada, negra, e cotista, afirmou a existência do racismo,
contudo, de modo vago:

Sim, eu acho que existe racismo na sociedade sim, eu


não sei dizer por que, mais eu acho que existe.

No entanto, uma outra das entrevistadas, também


negra e cotista, assim se expressou, sobre sua percepção
do racismo na sociedade brasileira:

Demais... E eu não acho que a discriminação racial


seja uma coisa velada, por baixo do pano, acho que
ela é bem evidente, quem pode, quem não pode,
quem é, quem não. E não como as pessoas falam, que
é por baixo do pano. Preto branco, azul...

Questionados sobre a existência do racismo na uni-


versidade, dois estudantes do sexo masculino, autodecla-
rados pretos, disseram não percebê-lo. Entre as mulheres
apenas uma, também autodeclarada negra, afirmou não
perceber. Respondeu um dos entrevistados:

Aqui eu não vi nada nesse sentido, pelo menos não


aqui. Eu, pelo menos, não presenciei.

Embora alguns estudantes tenham admitido a exis-


tência de racismo na sociedade, uma de forma veemen-
te, inclusive, quando foram perguntados sobre o racismo
num contexto mais próximo, as respostas mostraram-se
pouco esclarecedoras.

257
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Visão sobre cota e ações afirmativas

Sobre o sistema de cotas, quatro dos entrevistados,


homens, mostraram-se totalmente favoráveis. Entre as mu-
lheres, apenas duas, mostraram-se a favor da medida. O
discurso que prevalece é o de que as cotas devem ser
ampliadas para todos os estudantes de escolas públicas,
como se pode depreender da fala a seguir:

Essa é uma pergunta difícil porque eu sou contra! Eu


sou a favor no sentido que favorece a entrada dos
estudantes negros na universidade, na medida em
que eles concorrem com níveis iguais. Só que eu vejo
como ponto negativo a maneira como o governo, ao
invés de dar base, subsídio para melhorar a base, o
ensino fundamental, ele colocou as cotas.

Essa percepção, vinda até mesmo de uma estudante


beneficiada pela política de cotas, demonstra como tem
eco, no seio da sociedade, o discurso contrário às cotas,
reiterado cotidianamente pela mídia, que caracteriza uma
medida reparadora da desvantagem secular a que está
submetida a população negra como um “privilégio”, para
usar a terminologia do “manifesto contra as cotas”5, muito
embora o manifesto seja mais enfático, e caracterize as
“cotas”, como um “privilégio odioso”. Talvez isso explique
a invisibilidade do racismo na universidade, revelado nas
respostas anteriores. Os próprios estudantes não conse-
guem perceber a relação entre o racismo e o alijamento
dos negros de certos espaços sociais. No entanto, aqueles
estudantes que vêm de uma experiência de participação

5
Em 30 de maio de 2006, um grupo de intelectuais subscreveu um
documento posicionando-se com relação às propostas de Estatuto da
Igualdade Racial e da Lei de Cotas, que tramitavam no Congresso Na-
cional, naquele momento. O documento foi publicado na íntegra no
jornal Folha de S. Paulo. Folhaonline <www1.folha.uol.com.br/folha/
educacao/ult305u18773.shtml>. Acesso em 28/03/2008.

258
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

no movimento social demonstram uma outra visão sobre


o tema, considerando que a medida é pertinente e que a
dificuldade dos estudantes negros de terem acesso à uni-
versidade ocorre:

[...] pelo fato de que já nos é negada muita coisa, eu


acho que não é por falta de vontade, de inteligência;
é por falta de oportunidade.

Ao serem perguntados sobre a capacidade de as co-


tas de facilitarem o acesso à universidade, apenas uma
entrevistada, autodeclarada branca, afirmou não acreditar
nisso, apontando para a distância entre a quantidade de
estudantes que demanda os cursos superiores e o resumi-
do número de vagas reservadas para os negros, que são
majoritários na população baiana. Disse ela:

Não facilita tanto, porque é uma quantidade muito pou-


ca de vagas. É muita gente que precisa, e quer entrar.

A respeito da relação entre ingresso através de co-


tas e baixo desempenho acadêmico, foram unânimes em
considerar que, com a instituição das “cotas”, não houve
a propalada diminuição da qualidade do ensino, expec-
tativa demonstrada por muitos dos opositores da política
de cotas, como evidencia o trabalho de Santos e Queiroz
(2008). Ao contrário, argumentaram em favor da medida,
pelos benefícios que podem advir da diversidade propor-
cionada pela presença de estudantes de diferentes contex-
tos societários, como revela a fala a seguir:

Não, de forma nenhuma. Muito pelo contráario, a tur-


ma, ela é muito heterogênea e as contribuições são as
melhores possíveis. Talvez se as pessoas tivessem um
mesmo tipo de experiência de vida, tivessem advindo
da mesma classe da sociedade não seria tão interes-
sante como está sendo.

259
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

Outra entrevistada se mostrou contrária à política


de cotas, mas pareceu sentir-se desconfortável ao revelar
isso, pondo-se a justificar sua posição, como se não qui-
sesse parecer racista aos olhos da entrevistadora negra.
Disse ela:

Eu não sou a favor... Eu não sou contra, porque o go-


verno deve sim fazer algo para mudar esse quadro de
desigualdade. Só que eu acho que é uma maneira...
(pára e respira profundamente). Passa que a pessoa
de cor não tem a mesma capacidade, eles não têm é o
mesmo incentivo, por isso que todos brigam comigo
(essa última fala parecia quase que um lamento).

Sobre a possibilidade de identificação dos cotistas em


sala de aula, a maioria considerou não ser possível estabe-
lecer essa distinção. Porém uma jovem e um jovem, ambos
autodeclarados pretos, consideraram ser possível fazer essa
diferenciação, e não vêem nisso uma exposição dos bene-
ficiários da medida. Ao contrário, a imagem percebida é
bastante positiva como se pode observar por sua fala:

Dá, acho que dá. Não é só pela cor, mais acho que dá
até por atitude. Quem é cotista, a maioria das pessoas
que eu vejo que são cotistas, elas têm uma atitude
diferente, elas sabem o quanto é difícil chegar ali, elas
têm que ter uma atitude. Não é honrar, mais ele sabe
que tem, que se ele lutou pra chegar ali... ele não vai
ter uma atitude displicente de... “Ah! se eu não con-
seguir alguma coisa agora eu vou conseguir depois.”
Quem é cotista não, ele sabe que a oportunidade é
única, ele é mais responsável.

Respostas lacônicas ou pouco precisas foram apre-


sentadas quando perguntados sobre o entendimento do
que sejam “ações afirmativas”, demonstrando um desco-
nhecimento do termo. Disseram eles:

260
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

Nunca ouvi falar.


Pra mim são verdadeiras, né?...
Ações afirmativas são o quê? Eu não sei o que é ação
afirmativa.

Apenas um estudante demonstrou possuir informação


mais ampla, como se pode perceber por sua declaração:

Meu trabalho de Antropologia do primeiro semestre


foi sobre as ações afirmativas, por isso se eu for falar
será um monte. Gostei muito. Achei interessante o que
estão querendo fazer no caso da anemia falciforme. O
Grafita6 tem muito projeto legal; o que eu achei mais
legal foi a Lei que bota a questão da cultura negra na
escola, é o que eu acho que é mais legal.

Percepções da cor

No inicio da entrevista havíamos solicitado que o


entrevistado declarasse sua cor/raça, utilizando para isso
o termo de sua escolha. Ao fim da entrevista, a pergunta
foi refeita solicitando se aos entrevistados que se autoclas-
sificarem com os termos de uso do IBGE, a saber: branco,
pardo, preto amarelo e indígena.
Um dos homens entrevistados que, de início, se ha-
via declarado pardo, no final, se classificou com preto.
Entre as mulheres também se verificou tal fenômeno; uma
estudante que, no início, da entrevista se havia declarado
branca, ao final, disse confusa:

É tão difícil! Pardo. Não sei que cor é essa (risos).


Minha pele, ela é branca, mais na minha família... a
família de minha mãe, ela é negra. Na família de meu
pai é que eles realmente são brancos. Agora eu não

6
Um grupo organizado de “grafiteiros”, que atua no bairro do Cabula,
onde está localizadada a universidade.

261
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

sei o que foi que aconteceu antes disso, que mistura


aconteceu, é uma mistura danada. Eu nasci branca na
cor, né?, mas eu não consigo me definir exatamente.
Eu digo branca só na aparência, mas por dentro acho
que tá bem mesclado.

É interessante ressaltar que essa entrevistada, aos


olhos da entrevistadora é negra/preta.

As impressões da entrevistadora7

Um aspecto, particularmente, chamou atenção duran-


te a realização das entrevistas. A percepção que ficou é de
que as pessoas negras pareciam sentir-se mais à vontade
para falar das questões raciais e desabafar, inclusive. Já en-
tre as pessoas declaradas brancas percebi certo desconforto
ao falarem sobre as questões raciais, sobretudo quando ti-
nham opiniões que iam contra as demandas da população
negra ou à percepção do racismo. Esse fato ocorreu com a
estudante que a principio havia se declarado branca e, no
final da entrevista, se disse “misturada”. O procedimento
adotado na entrevista era perguntar primeiro o nome e,
logo em seguida, indagar sobre a cor da/o entrevistada/o.
Essa entrevistada, ao responder sobre a sua cor, disse, de
modo ríspido, que era branca e, com expressões corporais
e faciais, parecia querer me indagar sobre a razão daquela
pergunta ou se havia, de minha parte, alguma duvida sobre
cor que ela se havia atribuído. No decorrer da entrevista ela
foi ficando mais à vontade, a ponto de, ao final, admitir ter
negros em sua família, e afirmar:

Eu digo branca só na aparência mais por dentro acho


que tá bem mesclado.

7
As entrevistas foram realizadas por Daniela Silva Santo, que se auto-
classifica, racialmente, como negra/preta.

262
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

Em geral, as pessoas que se declaravam brancas


mantinham certa distância, como que respondendo ape-
nas burocraticamente às perguntas. Já as negras, de ime-
diato, construíam uma intimidade a ponto de desabafa-
rem. Essa intimidade podia ser percebida, inclusive, pela
postura que era mais relaxada, confortável até, por gestos
corporais de me tocar ao falar, por exemplo, e sempre sor-
rindo, além do tom de voz, que era mais leve e displicen-
te. Já as pessoas autodeclaradas brancas, freqüentemente,
demonstravam o contrário, inclusive parecendo cautelosas
com o que falavam, utilizando imensas pausas, em meio
às respostas. Quando se mostravam pouco, ou nada, fa-
voráveis à política de cotas, o olhar dessas entrevistadas,
tanto brancas quanto negras, era outro detalhe importan-
te: elas não me encaravam ao falar. Acredito que por me
julgarem a favor da medida.

Considerações finais

A pesquisa indicou que a questão racial é ainda um


assunto delicado para as pessoas, sejam brancas ou ne-
gras, por sua complexidade e pela construção social que
desenvolveu o racismo no Brasil. O país carrega as con-
seqüências da idéia de “democracia racial”, o que faz com
que, mesmo com a denúncia do racismo aqui vivenciado,
muitas das pessoas (entrevistadas) admitem a sua existên-
cia, porém poucos conseguem falar, explicitamente, sobre
o assunto.
Tais fatores poderiam também explicar o pouco en-
tendimento demonstrado pelos estudantes do que sejam
“ações afirmativas”. A desinformação parece maior entre
aqueles que não são beneficiados pela medida, mas tam-
bém está presente entre os que ingressaram na universida-
de pelo sistema de cotas. Mesmo entre os que se disseram
a favor das “cotas”, o conhecimento sobre o tema é do
entendimento de poucos. Apesar do pouco conhecimento
263
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

sobre as “ações afirmativas” e sobre a questão racial, de


modo amplo, os estudantes arriscam sugerir modificações
no “sistema de cotas”, adotando o discurso mais corriquei-
ro de que deveria ser ampliado para estudantes pobres, o
que confirma a invisibilidade do racismo, vez que as cotas
são para negros oriundos de escolas públicas, portanto,
visam especificamente àqueles que se encontram nas ca-
madas menos aquinhoadas.
A pesquisa demonstrou ainda que nos cursos de
maior seletividade, embora o patamar de renda dos cotis-
tas não seja tão elevado, outras características evidenciam
que eles fazem parte de um segmento da população ne-
gra com melhores condições de vida, inclusive quando
comparados aos alunos de outros cursos da própria Uneb,
que não desfrutam do mesmo prestígio, como o curso de
Pedagogia, por exemplo. O que se nota é que, mesmo no
contexto de uma política de acesso diferenciado para os
negros, os cursos mais valorizados ainda ficam reservados
a uma parcela muito restrita desses estudantes.
Os resultados aqui apresentados não permitem,
evidentemente, grandes generalizações, por se restringi-
rem a um contingente limitado de estudantes. Eles, muito
mais, indicam hipóteses, que conclusões, alertando, desse
modo, para a necessidade de investigações mais amplas
que possam responder às questões aqui sinalizadas e ou-
tra tantas sobre o tema, que estão a requerer a atenção dos
pesquisadores. Os resultados também sinalizam para a ne-
cessidade de discussões mais amplas sobre o racismo e a
discriminação racial, inclusive como forma de evidenciar
a relevância de uma política tão importante na contem-
poraneidade, como é o tratamento diferenciado a grupos
excluídos, mas tão pouco compreendida, até mesmo pelos
seus beneficiários.

264
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...

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______. ... Um dia eu vou abrir a porta da frente: mulheres
negras, educação e mercado de trabalho. In: Educação e
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266
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do Rio de Janeiro, Pós-graduação em Antropologia, 1998
(Tese de Dourorado).

ANEXO

Tabela 5 – Distribuição percentual dos estudantes segundo


o turno cursado no Ensino Médio – Uneb 2005
Turno %
Sempre diurno 88,9
Diurno, depois noturno 11,1
Total 100

Tabela 6 – Distribuição percentual dos estudantes segundo o


tipo de curso freqüentado no Ensino Fundamental – Uneb 2005
Tipo de curso %
Colegial 85,2
Técnico 14,8
Total 100
Fonte: Pesquisa direta

267
Sistema de reserva de vagas
na Universidade do Rio de Janeiro
e as ações do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros da Uerj

Maria Alice Rezende Gonçalves

Introdução

Este artigo tem como objetivos tecer considerações


sobre o campo das políticas públicas visando a identificar
as políticas de ação afirmativa como um tipo de política
social, descrever as fases de implantação e implementação
da política Sistema de Reserva de Vagas para Negros na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002/2008) e
destacar as ações do Sempre Negro - Coletivo de Profes-
sores Negros da Uerj, o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros
da Uerj na etapa de implementação da política de reserva
de vagas da Uerj. Neste texto pretendo me concentrar na
análise da reserva de vagas para estudantes que se auto-
declaram negros.
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi uma
das primeiras instituições a implantar ações afirmativas
para grupos sub-representados na educação superior. Em
2000, é aprovada a Lei n. 3.524, que dispõe sobre a re-
serva de 50% de vagas nos vestibulares das universidades
estaduais – Universidade do Estado Rio de Janeiro (Uerj) e
Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) – para
alunos egressos do ensino básico das escolas públicas do
269
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

estado. Em 2001, a Assembléia Legislativa do Estado do


Rio de Janeiro (Alerj) aprova a Lei n. 3.708, que determina,
também, para as duas universidades estaduais, a reserva
de 40% de vagas para estudantes autodeclarados negros
e pardos.
Em 2003, acontece o primeiro vestibular para aten-
der à instituição dessas leis. Foram feitos dois vestibulares
distintos visando a atender as duas leis citadas – o Vesti-
bular Estadual e o Sistema de Acompanhamento de De-
sempenho dos Estudantes do Ensino Médio (Sade). O pri-
meiro volta-se para os candidatos que não podiam ou não
se candidataram ao sistema de cotas e o segundo, para
os que desejavam participar do sistema de cotas. Quanto
ao cumprimento das cotas para negros e pardos, a Uerj
optou por aplicar o percentual sobre a cota de 50% para
escolas publicas (Sade) e em seguida sobre as vagas não
reservadas do Vestibular Estadual. Ainda no ano de 2003
é aprovada a Lei n. 4.061 que reserva 10% vagas para de-
ficientes físicos.
No ano seguinte, a Lei n. 4.151 revoga todas as an-
teriores e institui mudanças nos critérios de seleção e ad-
missão de estudantes nas universidades estaduais, como:
a unificação das duas modalidades de cotas, comprovação
de carência financeira e no percentual das cotas destina-
das aos diferentes beneficiários. Para o vestibular de 2004
foram estabelecidos os seguintes percentuais de cotas:
20% para negros, 20% para egressos de escola pública,
5% para pessoas com deficiências e outras minorias ét-
nicas. Os candidatos às cotas só poderiam concorrer a
uma das modalidades e tinham que comprovar a carência
financeira familiar, ou seja, renda máxima de R$300,00 per
capita. Dada a exigência da baixa renda, ao longo dos
últimos seis anos, a universidade tem recebido estudan-
tes que apresentam um novo perfil socioeconômico. Este
fato é um dos obstáculos enfrentados pelos cotistas e pela
universidade, impondo a necessidade de programas de
permanência desses cotistas.
270
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

Em 2007, a Lei n. 5.074, que altera a Lei n. 4.151, in-


troduz no sistema de reserva de vagas novos beneficiários.
São eles, os filhos de policiais civis e militares, bombeiros
militares e inspetores de segurança e administração peni-
tenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço.
Atualmente, acrescidos os beneficiários impostos
pela Lei n. 5.074, são considerados grupos contemplados
no sistema de reserva de vagas: estudantes da rede públi-
ca do Estado, negros, pessoas com deficiências, indígenas
e outras minorias, todos comprovadamente carentes finan-
ceiramente.
Neste contexto de implantação do sistema de reser-
va de vagas, em 2003 é criado o Sempre Negro – Coletivo
de Professores Negros da Uerj. Este coletivo reúne docen-
tes de diferentes unidades acadêmicas da universidade e
pesquisadores externos associados interessados na temá-
tica da questão racial brasileira. Desde sua fundação, tem
desenvolvido atividades de extensão e pesquisa com a
participação de alunos afro-brasileiros.
As políticas de cotas causaram um grande impacto na
sociedade civil brasileira. Foram e são produzidos artigos
jornalísticos, programas de televisão e de rádio, monogra-
fias, dissertações e teses, cartas, manifestações de apoio e
protesto. Enfim o tema tem mobilizado a população de di-
ferentes maneiras. Em 2006 e em 2008, intelectuais mani-
festaram suas opiniões a favor e contra as políticas raciais
por meio de manifestos. Entre outros assuntos, os quatro
manifestos tratam das políticas de ação afirmativa para ne-
gros no Brasil. Esses documentos foram encaminhados ao
Supremo Tribunal Federal e tinham como finalidade servir
de canal de pressão para aprovar ou vetar o Estatuto da
Igualdade Racial e do Projeto de Lei n. 73/1999, que pro-
põe a adoção de cotas nas universidades federais. Nesse
confronto, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi
tomada como paradigma das ações afirmativas no país.
Por meio dos argumentos expostos nesse conjunto de do-
cumentos é possível discutir o papel dos intelectuais como
271
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

grupo de pressão, dois distintos modelos de políticas de


inclusão na educação superior como também duas inter-
pretações da nação brasileira. Esses acontecimentos vêm
reforçar a importância do acompanhamento e avaliação
da experiência da Uerj e das demais universidades brasi-
leiras que optaram pelo sistema de reserva de vagas para
negros.

1 O campo das políticas públicas

A análise de políticas públicas guarda uma tradição


intelectual anglo-saxã e, mais especificamente, norte-ame-
ricana. A institucionalização desse campo ou subdiscipli-
na, mesmo entre os anglo-saxões e norte-americanos, é
muito recente. Isso decorre, em parte, do caráter interdis-
ciplinar da produção intelectual compartilhado por várias
disciplinas das ciências sociais – sociologia, ciência políti-
ca, economia, direito entre outras (MELO, 1999). O caráter
interdisciplinar da área políticas públicas é observado por
Nelson (apud MELO, 1995, p. 63): “a historia do campo de
políticas publicas é mais a história de um discurso do que
de uma disciplina convencional composta de idéias, mais
instituições, revistas e controle de recursos essenciais. Na
realidade, a ausência nessa área de um aparato material
característico de um campo intelectual é um achado no-
tável de pesquisa”. E notória a ausência de um aparato
material característico de um campo intelectual. Deste
modo, dificilmente pode-se falar em disciplina acadêmica
no sentido literal de uma comunidade que exerce controle
(“disciplina”) sobre padrões de qualificação profissional,
qualidade da produção e conduta de seus membros, além
de controle de recursos organizacionais com acesso a car-
reiras, conclui Melo (1995). Lowi (1994, apud MELO, 1999)
observa que a área de política pública se converteu em
subdisciplina acadêmica hegemônica nos EUA em virtude
de seu potencial para abordagens quantitativas, nas quais
272
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

se importam instrumentos conceituais da ciência econô-


mica – a que denomina “ a nova linguagem do Estado”
em substituição ao direito. Note-se que a recente difusão
e popularização da expressão “política pública” pode ser
vista como concomitante aos processos de democratiza-
ção e institucionalização liberal.
O campo de estudos das políticas públicas é bas-
tante recente no Brasil. Sua análise esteve associada aos
governos e à avaliação dessas políticas realizadas por ins-
tituições governamentais. Os estudos acadêmicos sobre a
área temática análise de políticas públicas se iniciam na
década de 1980, reunindo um conjunto heterogêneo de
contribuições.
A agenda de pesquisa sobre política pública de cor-
te social foi subsumida durante muito tempo no Brasil.
Somente no final do regime autoritário, durante a década
de 1980, foram produzidos os primeiros trabalhos sobre
a reconstrução da política social brasileira sob a égide do
projeto reformista da Nova República. Mais recentemente,
com a adoção das chamadas políticas neoliberais que visa-
vam a reduzir o escopo de intervenção pública, o Estado
brasileiro vem apoiando políticas particularistas, entre elas
as políticas afirmativas, em varias áreas: saúde, educação,
mercado de trabalho, para os grupos minoritários, entre
eles as populações negras. Melo (1999) observa que, não
obstante lacunas significativas – subáreas clássicas da lite-
ratura internacional, como os estudos de impacto das po-
líticas sobre as dimensões de gênero e etnicidade, atraíram
um número muito reduzido de pesquisas –, a qualidade e
o volume da produção apontam para a maturidade já al-
cançada pela produção cientifica da área. Schwarcz (1999)
identifica a emergência de pesquisas mais diretamente en-
gajadas com o debate sobre “ação afirmativa”. Neste con-
texto destaca o patrocínio oficial a um seminário realizado
em 1996, sobre a validade de se estabelecer uma política
oficial de “affirmative action” no país (1999, p. 303).

273
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

A produção acadêmica na área das ciências humanas e


sociais sobre ação afirmativa no Brasil cresce (HENRIQUES,
2002; MACHADO, 2004; MOEHLECKE, 2002; MUNANGA,
1996; SANSONE, 2004; SILVA JR. 2000; TELLES, 2003; SISS,
2003, entre outros), principalmente após a adoção do sis-
tema de cotas por algumas instituições públicas de edu-
cação superior nos primeiros anos do século XXI. Justa-
mente com essa política, acirra-se o debate em torno da
adequação, legalidade e abrangência desse tipo de políti-
ca para o país. No âmbito do acesso à educação superior,
esse debate polariza-se. Os críticos às ações afirmativas se
colocam em posições opostas e inconciliáveis. As políticas
de ação afirmativa são apontadas ora como responsáveis
pela cisão do Brasil em dois brasis, ora como solução para
a inclusão dos setores sub-representados na educação su-
perior. As políticas universalistas são apresentadas como
incompatíveis com as focalizadas. No entanto, todos de-
fendem um maior investimento na educação básica e a
necessidade de expansão da educação superior.
Na revisão bibliográfica sobre a produção acadêmi-
ca do campo das políticas públicas elaborada por Souza
(2006, p. 40), a política pública é tratada como um campo
de conhecimento que busca, ao mesmo tempo, “colocar
o governo em ação” e/ou analisar essa ação (variável in-
dependente) e, quando necessário, propor mudanças no
rumo ou curso dessas ações (variável dependente). A au-
tora concorda com o fato de que a política pública é um
campo que reúne varias disciplinas, porém seu caráter ho-
lístico não significa que ela careça de coerência teórica ou
metodológica, mas sim que ela comporta vários “olhares”.
Conclui que é “um campo do conhecimento que busca
integrar quatro elementos: a própria política pública, a po-
lítica (politics), a sociedade política (policy) e as institui-
ções onde as políticas públicas são decididas, desenhadas
e implementadas”. A autora afirma ainda que “o principal
foco analítico da política pública está na identificação do
tipo de problema que a política publica visa corrigir, na
274
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

chegada desse problema ao sistema político (politics), à


sociedade política (policy), e nas instituições/regras que
irão modelar a decisão à implementação da política públi-
ca” (SOUZA, 2006).
Frey (2000) alerta para a falta de teorização comu-
mente direcionada à policy analysis. Porém a falta de teo-
ria é explicável, se levarmos em consideração o interesse
de conhecimento próprio da policy analysis, que é, a sa-
ber, a empiria e a prática política. No Brasil, estudos sobre
as políticas públicas foram realizados só recentemente.
Nesses estudos, ainda esporádicos, deu-se ênfase à aná-
lise das estruturas e instituições ou à caracterização dos
processos de negociação das políticas setoriais especificas
(FREY, 2000, p. 214).

1.1 As políticas sociais

A política social é um tipo de política pública. Con-


forme Lavinas (2007), a idéia de que cabe ao Estado inter-
vir para proteger os cidadãos remonta ao século XVIII e
foi cunhada por Adam Smith. O termo tem sido utilizado
com vários sentidos, ou seja, não é um termo técnico que
tenha um significado preciso, segundo Marshall (1965). A
política social de um Estado abrange tanto o sistema de
proteção social quanto o gasto social. Em geral diz respei-
to às políticas de governo que visam ao bem-estar dos ci-
dadãos por meio da oferta de serviços ou da transferência
direta de renda – seguro, assistência pública, serviços de
saúde, proteção social, políticas de habitação e educação.
Titmuss e Marshall (ALCOCK et al., 2001:209 apud LAVI-
NAS, 2007) consideram a política social um instrumento
de intervenção positivo para provocar mudanças. É parte
constitutiva de um conjunto mais vasto de mecanismos
que tem por finalidade alterar situações, sistemas, práti-
cas e comportamentos. Implica escolhas com o intuito de
promover e priorizar mudanças sociais. Para Laffite (1962,
275
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

apud LAVINAS, 2007), a política social é uma tentativa


de conduzir a vida da sociedade numa direção que ela
não tomaria se tal rumo fosse deixado ao acaso. Marshall
(1965) define política social como políticas de governo
cujas ações têm impacto direto no bem-estar do cidadão,
através da provisão de serviços de saúde, proteção social
em geral e da política de moradia.
A dimensão aparente da política social é aquela que
diz respeito à provisão de bens públicos – saúde, educa-
ção, saneamento, segurança pública – ou de transferência
direta de renda – aposentadorias, pensões para os inati-
vos, programas de combate à pobreza e outros programas
compensatórios e assistenciais. Há, entretanto, outros ti-
pos de política social menos visível como a política fiscal
e tributária e a política de emprego.
Segundo Briggs (1969, apud LAVINAS, 2007) o siste-
ma de bem-estar tem como objetivo, por meio de políticas
e da administração, modificar as forças de mercado ao
menos em três direções: assegurar renda mínima; reduzir
grau de insegurança – doença, velhice, desemprego –; e
garantir um melhor padrão de atendimento nos serviços
sociais disponíveis aos indivíduos e famílias. Uma política
social será mais ou menos justa dependendo do grau de
desmercantilização de bens e serviços (ESPING-ANDER-
SEN, 2002), ou seja, quando o bem ou serviço é assegura-
do na qualidade de direito ao indivíduo garantindo o seu
padrão de vida independentemente do mercado.

2 A análise da política pública

A análise das políticas públicas possibilita a compre-


ensão do problema para o qual a política pública foi de-
senhada, seus possíveis conflitos, a trajetória seguida e o
papel dos indivíduos, grupos e instituições que estão en-
volvidos na decisão e que serão afetados por ela (SOUSA,
2006). Uma política pública percorre as seguintes etapas
276
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

de análise: (a) Identificação da política pública (o que é


feito, por quem, onde, quando, proposto por quem, para
mudar o quê e que resultados esperamos) e (b) as fases
para análise do impacto na sociedade civil sobre a formu-
lação e implantação da política; o processo de formulação
e modalidade de decisão; o processo de implementação,
a avaliação (interna e externa e a definição de indicadores
sociais). Das diversas definições e modelos sobre políticas
públicas, Souza (2006, p. 36) extrai e sintetiza seus ele-
mentos principais:

• Avaliar as políticas públicas permite distinguir entre


o que o governo pretende fazer e o que, de fato, faz.
• A política pública envolve vários atores e níveis
de decisão, embora seja materializada através dos
governos, e não necessariamente se restringe a par-
ticipantes formais, já que os informais são também
importantes.
• A política pública é abrangente e não se limita a
leis e regras.
• A política pública é uma ação intencional, com
objetivos a serem alcançados.
• A política pública, embora tenha impactos no
curto prazo, é uma política de longo prazo.
• A política pública envolve processos subseqüen-
tes após sua decisão e proposição, ou seja, implica
também implementação, execução e avaliação.

3 Ação afirmativa: um tipo de política pública

A reserva de vagas é uma política recente na história


das políticas públicas brasileiras. A reivindicação de políti-
cas de ação afirmativa destinadas à inclusão de negros no
ensino superior e em outros campos acontece com a re-
democratização do país. Os movimentos sociais começam
a exigir uma postura mais ativa do Estado diante de ques-
277
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

tões como raça e gênero, por meio da adoção de políticas


de ação afirmativa. Apesar das diferenças, a experiência
brasileira tem sido exaustivamente comparada à experi-
ência norte-americana. As políticas estadunidenses vêem
sendo reformuladas, avaliadas e em alguns casos extintas.
No Brasil essas políticas surgem como uma resposta ao
problema da sub-representação de segmentos minoritários
na educação superior, entre eles os negros. Essas políti-
cas contaram com o apoio e/ou participação do governo,
de organismos internacionais e da sociedade civil (movi-
mento negro, intelectuais, artistas e outros setores) em sua
implantação e difusão e adoção por diversas instituições
de educação superior brasileiras. Esses diferentes grupos
influenciaram na forma como as ações afirmativas estão
sendo implementadas no Brasil.
A política de ação afirmativa para negros no Brasil
tem estimulado a polarização entre universalidade versus
seletividade das políticas e introduzido novas categorias
para identificação de beneficiários como negros e caren-
tes. Há que se acompanhar e avaliar essa experiência
com a intenção de criar mecanismos mais amplos e ágeis
de inclusão dos setores sub-representados na educação
superior brasileira. A relevância do tema se justifica, en-
tre outros motivos, pelo fato de as universidades esta-
duais do Rio de Janeiro serem as primeiras instituições
de ensino superior a reservar vagas em seu vestibular
para as populações sub-representadas. Ademais, essa
experiência suscitou grande polêmica em torno do re-
conhecimento da existência de desigualdades raciais no
país. O melhor modelo de política social seria o focal
ou o universal? Ou a conjugação dos dois modelos? Até
hoje, essa temática tem provocado tanto a produção de
conhecimento no campo acadêmico quanto debates na
mídia e nos movimentos negros, enfim envolvendo toda
a sociedade civil.

278
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

3.1 A política de corte racial no Brasil


como resposta a um problema

Uma política pública caracteriza-se por ser uma in-


tervenção deliberada do Estado sobre a sociedade civil.
Apresenta um foco preciso em temas empiricamente con-
textualizados. Cabe destacar o caráter simbólico das polí-
ticas públicas, pois o conceito engloba tanto as decisões
quanto as não-decisões do governo. As políticas focali-
zadas em grupos minoritários são recentes no Brasil. No
final dos anos 1990, as mulheres foram beneficiadas com
a reserva de 30% das vagas nos partidos políticos para
que estas possam se candidatar às eleições municipais,
estaduais e federais. O negro só será o publico alvo de
políticas de ação afirmativa no início do século XXI, com
a adoção de políticas de inclusão na educação superior e
no funcionalismo público.
A difusão internacional das reformas neoliberais,
que visavam a reduzir o escopo da intervenção pública,
estimulou a proposição de políticas particularistas no Bra-
sil. O tema entra na agenda governamental a partir dos
anos 1990. Durante duas gestões de presidente Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), alguns eventos e medidas
foram determinantes para o processo de formulação de
políticas de ação afirmativa para negros. Entre eles, o se-
minário internacional Multiculturalismo e Racismo: o pa-
pel da ação afirmativa nos Estados democráticos contem-
porâneos (1996) que, entre outros objetivos, visava a bus-
car soluções para situações de discriminação e racismo;
a atuação do Grupo de Trabalho Interministerial (1996)
para a valorização e elevação dos padrões de vida dos
afro-brasileiros e a instituição do Programa Nacional de
Direitos Humanos – PNDH (1996). Nesta mesma década
surge o movimento dos pré-vestibulares comunitários, que
visam a preparar alunos de baixa renda e/ou negros para
o ingresso no ensino superior. Em 2000, o então deputado
federal Paulo Paim elabora o Projeto de Lei n. 3.198, por
279
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

meio do qual institui o Estatuto da Igualdade Racial (SISS,


2003; MACHADO, 2004). Durante o ano de 2001, o Bra-
sil se prepara para participar da III Conferência Mundial
contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e formas
correlatas de intolerância, convocada pela Organização
das Nações Unidas (ONU), ocorrida em setembro de
2001 na África do Sul. Neste mesmo ano, o Instituto
de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) reúne em
um texto para discussão dados sobre as desigualdades
raciais no Brasil. Henriques (2001) apresenta as conclu-
sões de várias pesquisas sobre relações raciais que re-
forçam a tese da desigualdade estrutural entre brancos
e negros na sociedade brasileira. A tese da desigualdade
racial funda-se na comparação do desempenho social de
negros e brancos com base em dados dos censos demo-
gráficos brasileiros. Em 2001, a Assembléia Legislativa
do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprova a primeira lei
que reserva vagas para negros e pardos nas universida-
des estaduais do Rio de Janeiro. Em 2003, estimulados
pelos debates em torno da questão racial ocorridos no
interior da universidade e na sociedade civil, um grupo
de professores negros institui o Coletivo de Professores
Negros da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Uerj. No ano
seguinte os núcleos de estudos afro-brasileiros e gru-
pos correlatos reunidos em Brasília assinam um acordo
de cooperação com a Secretaria de Ensino Superior do
Ministério da Educação. Esta secretaria lança o Uniafro
– Programa de Ações Afirmativas para a População Ne-
gra nas Instituições Públicas de Educação Superior, que,
por meio de um concurso, oferece recursos financeiros
que possibilitam a consolidação dos núcleos e o desenvol-
vimento de projetos em três eixos: formação, publicação e
permanência de estudantes.

280
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

3.2 O sistema de reserva de vagas para negros na


Uerj: a formulação.

O que é a política de reserva de vagas? A literatura


sobre política pública considera a política de reserva
de vagas como uma política social que: (1) Barr (2003)
classifica como uma política residual e (2) Lowi (1964)
como uma política redistributiva. De acordo com Barr, a
política social residual visa a atender somente os grupos
que necessitam do apoio do Estado. Já Lowi entende
que a política redistributiva é orientada para o conflito,
ou seja, pelo desvio e o deslocamento consciente de
recursos financeiros, direitos ou outros valores entre ca-
madas sociais e grupos da sociedade. O processo políti-
co que visa a uma redistribuição costuma ser polarizado
e repleto de conflitos (FREY, 2000, p. 224).
A primeira iniciativa no estabelecimento de políti-
cas afirmativas para educação superior no Rio de Janei-
ro somente aconteceu durante o governo Anthony Ga-
rotinho, por meio de leis que instituem cotas para gru-
pos sub-representados nas universidades estaduais. A
Lei n. 3.524/00, que institui a reserva de 50% das vagas
para alunos egressos da rede pública. A Lei n. 3.708/01,
que institui a reserva de 40% das vagas para as popula-
ções autodeclaradas negra e parda. O critério cor/raça
foi objeto de questionamentos desde a aprovação da
lei. Cabe informar que o sistema de classificação de
cor/raça adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística – IBGE compreende cinco possibilidades:
branco, preto, pardo, amarelo e indígena, portanto, a lei
introduz um novo sistema de classificação de cor/raça
para selecionar seus beneficiários (REZENDE GONÇALVES,
2004).
O projeto de reserva de vagas para negros e
pardos foi proposto pelo deputado José Amorim, do
Partido Progressista Brasileiro - PPB-RJ, apresentado e
aprovado por aclamação em sessão ordinária da Alerj
281
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

e em seguida sancionado pelo governador Garotinho.


Segundo o deputado Amorim (apud MACHADO, 2004,
p. ???):

[...] a decisão do presidente Fernando Henrique Car-


doso de criar a cota de 20% para negros no servi-
ço público é, sem dúvida, uma iniciativa que acaba
com o dilema que as populações negra e parda vi-
vem. [...] Precisamos, agora, exigir do governador
Anthony Garotinho que regulamente a lei obrigan-
do as universidades estaduais a aplicar 40% das va-
gas para as populações parda e negra. Estamos nos
associando às medidas aplicadas pelo presidente da
República, porque aqui no estado do Rio foi uma
iniciativa inovadora, que representa um passo im-
portante para a sociedade enfrentar os problemas
raciais (MACHADO, 2004, p. ???).

O governador Anthony Garotinho propõe a jun-


ção das duas leis – a Lei n. 3.524 e a Lei n. 8.708. Para
cumprimento das cotas, foi criado o Sistema de Acom-
panhamento e Desempenho dos Estudantes do Ensino
Médio – o SADE, de acordo com o artigo primeiro da
Lei n. 3.524, “os órgãos e instituições de ensino médio
oficiais situadas no Estado do Rio de Janeiro, em articu-
lação com as universidades publicas estaduais, institui-
rão sistemas de acompanhamento de desempenho de
seus estudantes, atendidas as normas gerais da educa-
ção nacional”.
As referidas leis foram impostas às universida-
des estaduais sem que houvesse discussão no interior
das instituições. Depois de aprovadas as leis, a então
reitora, Nilcéa Freire, realiza uma consulta às unida-
des acadêmicas da Uerj e constata haver uma grande
rejeição à implantação das leis. No ano de 2002, an-
tes do Vestibular 2003, a reitora institui uma comissão
composta de docentes e representantes da sociedade
civil para elaborar um programa de permanência para
282
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

os alunos que ingressariam na universidade pelo sis-


tema de reserva de vagas. Os que são favoráveis à se-
letividade lançam mão de argumentos que defendem
a política de cotas, como: o principio da eqüidade –
tratar desigualmente os desiguais; a necessidade de se
formar uma elite negra com curso superior; em curto
prazo as políticas afirmativas são eficientes e eficazes
para a promoção da população negra. Em contraparti-
da os que defendem políticas universalistas combatem
as políticas de cotas usando argumentos como: leis
somente para beneficiar os pretos e pardos naturaliza-
riam construções sociais como raça e cor; o acesso à
universidade por meio de políticas raciais é um privile-
gio; o investimento governamental deveria ser direcio-
nado para a melhoria da qualidade do ensino básico;
as políticas universais voltadas para as populações de
baixa renda acabariam por atingir os pretos e pardos
já que esses grupos encontram-se super-representados
nos setores de renda mais baixa da sociedade brasileira
e, finalmente, as políticas com corte racial e de renda
criam uma nova categoria classificatória de beneficiá-
rios das políticas sociais – os negros e os carentes ou
negros carentes. Os dois grupos reconhecem a neces-
sidade de reforma e melhoria da qualidade do ensino
fundamental e médio. Os grupos a favor de políticas
sociais exclusivamente universais as defendem argu-
mentando que são mais democráticas e mais justas,
porque atendem a todos. Os defensores das políticas
de cotas afirmam ser conciliáveis os dois tipos de po-
lítica, ou seja, a universal e a seletiva.
Em 2003 as universidades estaduais são surpreen-
didas com uma nova lei de reserva de vagas – a Lei n.
4.061, que dispõe sobre reserva de vagas para portado-
res de deficiências.

283
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

3.3 A fase de implantação e implementação

Na época em que as leis foram promulgadas em


cascata, a comunidade acadêmica da Uerj protestou con-
tra a ausência de tempo para uma discussão aprofundada
no interior da universidade em relação à propriedade e
contra as formas de implementação dessas leis. Visan-
do ao cumprimento da lei, a Uerj realizou, em 2003, os
dois processos seletivos distintos que serão descritos a
seguir. Os dois processos seletivos foram – um no for-
mato tradicional (Vestibular Estadual) para atender a to-
dos os inscritos e outro para atender à reserva de vagas
(Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estu-
dantes no Ensino Médio). Para cumprimento da reserva
de vagas para pardos e negros com base no critério da
autodeclaração, o Departamento de Seleção Acadêmica
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro verificou se
o número de candidatos autodeclarados pardos e negros
classificados no vestibular destinado à reserva de vagas
alcançava os 40% de vagas previstas na lei. Como foi
inferior, o percentual foi completado com os candidatos
autodeclarados pardos e negros classificados no vesti-
bular tradicional. Devido a essas peculiaridades, o Vesti-
bular 2003 diferenciou-se de todos os demais processos
seletivos realizados pela universidade.
O resultado desse processo seletivo inflamou ain-
da mais o debate. Os candidatos reprovados entraram
com recursos na justiça reivindicando vagas seja por
conta da média superior à de um candidato pardo ou
negro seja por discordarem dos critérios de autoclassi-
ficação. A coordenação do vestibular da época avaliou
que o sistema de reserva de vagas para pretos e pardos
teve reduzido impacto na aprovação de alunos somente
pelo critério cor/raça, ou seja, a maior parte deles teria
sido aprovada sem a reserva de vagas. Esse foi um dos
argumentos determinantes para a proposição de novas
mudanças no processo seletivo.
284
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

Em 2003 ocorreram as primeiras alterações nas re-


feridas leis. A Uerj estabelece as modalidades e os per-
centuais de cotas que vigoram ate hoje. Uma comissão
– constituída de membros da comunidade acadêmica e
externos – elaborou uma proposta embrionária da Lei
n. 4.151/03, que regulou o Vestibular 2004. Por essa
lei, caberia às universidades públicas estaduais reser-
var 20% de suas vagas para negros; 20% para egressos
da rede pública estadual e 5% para portadores de ne-
cessidades especiais e indígenas. Os candidatos às co-
tas só concorrem por uma das modalidades e precisam
comprovar o atendimento a outro critério – a carência
financeira. Em 2004, o teto admitido para a renda era
de R$300,00 líquidos por pessoa da família. Atualmente,
para o Vestibular 2008, é precondição para a candidatu-
ra a qualquer cota a renda per capita de R$630,00.
Desde a formulação da primeira lei até as altera-
ções impostas pela Lei n. 4151/03, o processo seletivo
mudou. Para o Vestibular 2004, foram feitas alterações
no percentual e na classificação de cor/raça dos bene-
ficiários. No caso das populações negras, a primeira lei
estabelecia o percentual de 40% para negros e pardos.
Esse percentual mudou para 20% e o grupo beneficiá-
rio passa a ser chamado de negro. No que diz respeito
à população alvo, a primeira lei classifica a cor/raça
dos beneficiários como pardos e negros. A opção por
esse sistema classificatório de cor/raça apresentou pro-
blemas por ser híbrido, ou seja, faz uso da categoria
pardo do sistema de classificação de cor/raça do IBGE
e da categoria negro ausente desse sistema. Em geral,
a denominação de cor/raça negro significa a soma dos
brasileiros que se autoclassificam como pretos e par-
dos. Já a segunda lei classificará os beneficiários como
negros, deste modo torna-se mais objetiva na medida
em que opta por somente um sistema classificatório de
cor/raça. Neste sentido são considerados negros todos
os candidatos que se autoclassificam com tal. Uma ou-
285
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

tra mudança observada foi a ampliação dos beneficiá-


rios do sistema de reserva de vagas. Desde 2007, são
também contemplados os filhos de policiais civis e mi-
litares, bombeiros militares e inspetores de segurança
e administração penitenciária mortos ou incapacitados
em razão do serviço, por meio da Lei n. 5.074.
Essas inovações modificaram o perfil do corpo
discente da universidade e reforçam a necessidade de
políticas de permanência seja para alunos que já fre-
qüentavam a universidade e para os novos oriundos do
sistema de reserva de vaga. Cabe lembrar que a regula-
mentação dessas leis não foi acompanhada de dotação
de recursos para a permanência desse novo alunado.
Atualmente, a universidade conta com recursos da Fa-
perj – Fundação de Amparo à Pesquisa Carlos Chagas,
que destina algumas bolsas para estudantes cotistas no
primeiro ano de ingresso e outras concedidas por uma
empresa.
Visando a receber o novo alunado, a universidade
criou um programa de permanência, intitulado Progra-
ma de Iniciação Acadêmica (Proiniciar), que compre-
ende oferecimento de bolsas-auxílio e atividades como
oficinas de arte, cultura, disciplinas instrumentais. Essas
atividades pretendem “contribuir para o enriquecimento
cultural e resolver algumas lacunas deixadas quanto à
formação intelectual no ensino médio” (ARRUDA, 2007,
p. ??). Uma das principais barreiras encontradas para
o desenvolvimento de um programa de permanência
que possa atender a todos os alunos da universidade
é a falta de recursos financeiros. O programa não faz
qualquer distinção entre os alunos, ou seja, não são
identificados segundo o tipo de cota que permitiu seu
ingresso. Todos são considerados cotistas.
Sabe-se que nos últimos governos têm ocorrido
cortes no orçamento da Uerj. A Constituição Estadual
de 1989 determina o repasse nunca inferior a 6% da
receita tributária líquida exclusivamente para a Uerj. O
286
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

parágrafo 1 do artigo 309 diz que: “o poder publico


destinará anualmente à Universidade do Estado do Rio
de Janeiro – UERJ dotação definida de acordo com a lei
orçamentária estadual, nunca inferior a 6% da receita
tributaria liquida, que lhe será transferida em duodéci-
mos, mensalmente”. A ação Direta de Inconstituciona-
lidade – Adin 780-7, aprovada em 1992, impediu esse
pagamento até dezembro de 2007. O Supremo Tribunal
Federal – STF derrotou a Adin, mas o governo ainda
não cumpriu o que determina a lei. Estima-se que, com
a revogação da Adin, a verba anual da Uerj passe a
girar em torno de um bilhão, o que ainda esta abaixo
de suas necessidades. Em 2007, o orçamento aprova-
do pela Alerj foi de 697 milhões de reais, porem, após
cortes e contingenciamentos, só foram repassados 468
milhões de reais. Se a lei fosse cumprida, a universi-
dade receberia 923 milhões (receita tributaria liquida),
conforme informações da Secretaria de Fazenda do Es-
tado do Rio de Janeiro (Jornal dos Trabalhadores da
UERJ, julho de 2008, p. 4). Os cortes no orçamento e o
rapasse insuficiente para as demandas da universidade
potencializadas com a adoção do sistema de reserva
de vagas têm dificultado a implantação e implementa-
ção de uma política adequada à permanência do corpo
discente, em especial aqueles que carecem de apoio
acadêmico e material para cumprirem as exigências da
vida universitária.
O gasto social é aquela parte do gasto público –
qualquer que seja o nível de governo – que se destina a
atender às demandas sociais (LAVINAS, 2007). No caso
do Rio de Janeiro, o governo ainda não inclui em seus
gastos sociais as despesas com as políticas de reserva de
vagas nas universidades estaduais. A Faperj, ao finan-
ciar bolsas para alunos cotistas, desvia os recursos que
originalmente deveriam se destinar à pesquisa propria-
mente dita. A não inclusão de recursos para as políticas
afirmativas no orçamento social do Estado parece ser
287
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

um dos pontos que tornam a política de reserva de


vagas vulnerável. Desde a sua implantação, o governo
estadual não destinou os recursos necessários para sua
implementação. Agindo de forma precária, contando
com parcos recursos, a instituição, a despeito dos de-
bates em torno das políticas afirmativas, não consegue
suprir as carências dos alunos cotistas. Há que se supe-
rar essa barreira, pois não há como fazer política social
sem orçamento permanente.
As mudanças ocorridas em 2004 foram incorpo-
radas aos exames de acesso dos anos seguintes per-
manecendo até os dias de hoje. Cabe esclarecer que o
valor máximo de renda familiar per capita do candidato
tem sido reajustada anualmente. Em 2006, graduaram-
se os alunos dos cursos de quatro anos de duração que
ingressaram por meio da cotas no Vestibular 2003; em
2007 foi a vez daqueles que matriculados em cursos
que exigiam cinco anos para integralização e, agora,
em 2008, serão graduados os ingressantes em 2003 para
cursos de seis anos.
Os últimos anos transformaram a Uerj na instituição
que detém o maior número de estudantes cujo ingresso
se deu por meio de vagas reservadas no país. Outro fato
que merece destaque é o surgimento do movimento es-
tudantil negro. Hoje, há pelo menos duas organizações
estudantis compostas por estudantes negros – o Denegir
e o Luís Gama. O debate se estendeu ate os currículos
dos cursos de graduação e pós-graduação. Alguns cursos
incluíram disciplinas sobre a cultura afro-brasileira e, ou
relações raciais e estudos sobre a África.

3.4 A avaliação

Apesar do interesse das organizações da socieda-


de civil e da mídia, desde a implantação do sistema
de reservas de vagas na Uerj uma avaliação ampla do
288
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

desempenho dos cotistas ainda não foi concluída. Até o


momento a universidade produziu textos que subsidiam
discussões no interior da instituição. Considerando que
ainda não há uma avaliação satisfatória dos primeiros
anos da política de reserva de vagas, o atual reitor, Ri-
cardo Veiralves de Castro (2008–....), pretende, por meio
de uma comissão avaliadora, realizá-la. Os fragmentos
dos documentos que registram os primeiros dados de
uma avaliação interna serão citados a seguir.
O documento - Acesso à universidade por meio
de ações afirmativas: estudo da situação dos estudantes
com matricula em 2003 e 2004 (UERJ, junho de 2004)
foi encaminhado pela então sub-reitora de graduação,
Raquel Vilardi, ao Conselho Superior de Ensino, Pes-
quisa e Extensão, em junho de 2004. Nas considerações
finais, o documento admite que a adoção de políticas
afirmativas constitui-se num importante fator de enfren-
tamento das desigualdades sociais, porém faz severas
criticas à implantação dessa política na Uerj:

[...] em nosso entender, políticas de ação afirma-


tiva precisam ser praticadas a partir de um tripé:
políticas de investimento efetivo na qualidade da
educação básica; políticas de acesso; e políticas de
permanência. De nada adianta uma sem a outra;
não é possível mudar parte da engrenagem, sem
investir no sistema (2004, p. 16).

Na coletânea Políticas de ação afirmativa na uni-


versidade, divulgada em 2007, as informações sobre os
estudantes negros limitam-se ao número de vagas para
ingresso, e ao número de aprovados. Como ainda não
há dados que possam avaliar o desempenho acadêmico
dos alunos segundo a cor/raça, não há como avaliá-
los neste aspecto. Os dados disponíveis apontam para
a pobreza dos alunos cotistas da Uerj e para a neces-
sidade de um programa de permanência que forneça

289
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

apoio pedagógico e material a esses alunos. Arruda


(2007) apresenta o relato do trabalho realizado para a
implantação da política de cotas e avalia os resultados
decorrentes da aplicação do sistema de cotas. Os dados
apresentados referem-se a dois grupos cotistas e não
cotistas. Apresenta os índices de acompanhamento aca-
dêmico, como aproveitamento de estudos, evasão de
cotistas e não cotistas. Segundo os dados apresentados,
de 2004 a 2007 ingressaram na Uerj 2.409 alunos negros
pelo sistema de reserva de vagas nos diferentes cursos
de graduação (AMADEI, 2007). No entanto, não há ain-
da dados disponíveis sobre a cor/raça dos discentes.
A publicação se encerra afirmando que a universidade
não teve o seu padrão de qualidade acadêmica alterado
em função da presença de estudantes cotistas. A política
de cotas surge como instrumento para minimizar a de-
sigualdade estrutural e considera, também, necessário
promover uma educação básica de qualidade para que
não mais sejam necessárias cotas nas universidades. O
importante é torná-las desnecessárias no futuro.

4 O Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Uerj

O Sempre Negro participou de duas edições do


Programa de Ações Afirmativas para a População Negra
nas Instituições Públicas de Educação Superior – Unia-
fro e, por meio delas, recebeu recursos do Ministério da
Educação para desenvolver o Programa de Formação e
Permanência de Afro-brasileiros da UERJ – o Programa
Neab-Uerj. O Programa Uniafro vem sendo implementa-
do pela Secretaria de Educação Superior – SESu e com
o apoio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabe-
tização e Diversidade - Secad, ambas do Ministério da
Educação. Pela primeira vez, o Ministério da Educação,
por meio dos referidos concursos, destinou recursos fi-
nanceiros para: estruturar os núcleos de estudos afro-
290
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

brasileiros das universidades públicas e para o apoio


das ações afirmativas para afro-brasileiros nas institui-
ções públicas de ensino superior. Foram contempladas
tanto universidades públicas em que já havia reserva de
vagas quanto outras nas quais a questão da reserva de
vagas para negros ainda estava em processo de discus-
são ou aprovação.
O Uniafro tem a finalidade de apoiar propostas
desenvolvidas pelos Neabs e grupos correlatos que vi-
sem a articular a produção e difusão de conhecimento
sobre a temática étnico-racial e o acesso e permanên-
cia da população afro-brasileira no ensino superior, de
modo a: (a) incentivar ações de mobilização e sensibi-
lização de instituições de ensino superior com vistas à
implantação de políticas de ação afirmativas; (b) con-
tribuir para a formação de estudantes afro-brasileiros
nas instituições que adotaram o sistema de cotas; (c)
adequar a formação inicial e continuada de profissio-
nais de educação básica em questões étnico-raciais; e
(d) estimular a integração das ações implantação das
diretrizes curriculares étnico-raciais em todos os níveis
de ensino.
O Programa de Formação e Permanência de Afro-
brasileiros na Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro – Programa Neab-Uerj. (2006-2008) contemplou três
eixos de ações: a pesquisa, a formação e a extensão por
meio das seguintes ações: (1) publicação, (2) seminários
e cursos e (3) pesquisa (bolsas de iniciação científica).
Ao longo do ano de 2006, o programa desenvolveu as
seguintes ações: (1) orientou de 12 bolsas de iniciação
científica para alunos afro-brasileiros de graduação e
1 (uma) bolsa de extensão para um aluno de pós-gra-
duação; (2) realizou o curso de atualização Historia e
Cultura Negra, que teve como objetivo a capacitação
para a implementação da Lei n. 10.639/2003, que ins-
titui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura
afro-brasileira e dos africanos no ensino básico brasileiro;
291
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

(3) realizou de dois seminários sobre a temática étni-


co-racial brasileira; e (4) realizou atividades extramu-
ral (participação em eventos acadêmicos). Em conso-
nância com os interesses do corpo docente e discente
da universidade, do Programa Uniafro do Ministério da
Educação e das entidades representativas da sociedade
civil, as ações do Programa Neab-Uerj atingiram cente-
nas alunos de graduação e pós-graduação, professores
municipais e estaduais, ativistas do movimento negro e
de outros movimentos sociais e demais interessados na
temática. Em 2007, dando continuidade a suas ações, o
Sempre Negro pretende: (1) ofereceu um novo curso de
atualização e (2) lançou dois volumes sobre a literatura
sobre o negro no Brasil.
O Programa tem atingido os objetivos de conso-
lidar o Sempre Negro – Neab-Uerj, por meio da pro-
moção da permanência de alunos afro-brasileiros da
Uerj (bolsas) e da difusão da Lei n. 10.639/03 (curso
de extensão).1 Avaliamos que os reduzidos recursos
financeiros impõem limites e reduzem o alcance des-
sas ações. Este é uma das fragilidades da atual política
de apoio aos Neabs desenvolvida pelo MEC. Os Neabs
têm defendido a necessidade de as ações afirmativas se
transformarem em ações de Estado e não de governo.
Como já afirmamos, a permanência parece ser o
ponto vulnerável da política de reservas de vagas nas
universidades, pois, sem orçamento, não há política pú-
blica. Este fato compromete as futuras avaliações das
políticas de reserva de vagas para negros bem como o
desempenho acadêmico dos cotistas. Em geral, a renda
é usada com uma condição necessária da candidatura
às vagas reservadas. O regime de reserva de vagas, até
então, tem garantido o acesso de negros à educação

1
A Lei n. 10.639/2003 altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Brasileira, introduzindo a obrigatoriedade do ensino de história e cul-
tura da África e dos afro-brasileiros.

292
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

superior, no entanto, a questão da permanência des-


ses beneficiários ainda é um problema. É neste vácuo
de iniciativas e carência de recursos que o Programa
Uniafro promovido pela Secretaria de Ensino Superior
do Ministério da Educação ainda que de uma maneira
tímida, tem atuado.

5 Considerações finais

A política de reserva de vagas é uma experiência


nova na política educacional brasileira. Carece ser im-
plantada, implementada, avaliada com todo o rigor. O
simples enfrentamento de posições, ou seja, o debate
entre modelos diferentes de política social – universa-
listas ou seletivas – sem o cumprimento rigoroso das
etapas dessas políticas compromete o seu sucesso. A
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, hoje com
mais de sete mil cotistas, entre eles os cotistas ne-
gros, enfrenta uma série de problemas nessa fase de
implementação e avaliação. No vestibular de 2007, fo-
ram oferecidas 1.048 vagas para negros, mas apenas
673 estudantes se inscreveram. Desses, 439 passaram.
No inicio do sistema de reserva de vagas havia mais
inscritos que vagas, mais, nos últimos dois anos a si-
tuação mudou. Tem havido uma redução no numero
de inscritos nas vagas reservadas. A universidade pre-
tende realizar estudos para averiguar as causas de tal
fenômeno. Enquanto isso, ainda existe perguntas sem
respostas: a política de cotas é uma política adequada
para promoção do acesso ao ensino superior para os
negros? Por que tem havido uma redução de inscritos
para as vagas reservadas?
Outro problema que torna a política de ação
afirmativa na UERJ vulnerável é a sua ausência no or-
çamento social do Estado. Sem orçamento não se faz
política pública. Esse fato compromete o desempenho
293
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira

dos beneficiários e o futuro da política, ou seja, não há


como avaliar sua eficiência e eficácia.
As ações do Sempre Negro - Coletivo de Profes-
sores Negros, o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da
Uerj, que se desenvolvem na universidade com recursos
do Ministério da Educação, apontam para a necessidade
de sua ampliação, seja no número de beneficiários, seja
na quantidade de recursos financeiros destinados à sua
programação. Cabe concluir enfatizando a necessidade
de políticas de inclusão dos grupos sub-representados
no ensino superior, o caráter temporário das ações afir-
mativas e a necessidade de se garantir a permanência
dos beneficiários. São fatores que devem ser conside-
rados quando da análise dessa política pública. Assim
será possível a compreensão do problema que deu ori-
gem a essa política, seus conflitos e o papel de todos os
envolvidos: indivíduos, grupos e das instituições.

294
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...

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