You are on page 1of 281

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

O Debate entre deontologismo e conseqüencialismo.


Uma proposta de esclarecimento a partir de Kant e Rawls.

Por
Antonio Frederico Saturnino Braga

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, para a obtenção do
título de Doutor em Filosofia

Orientador:
Prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Araújo

Rio de Janeiro
Maio de 2007
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

O Debate entre deontologismo e conseqüencialismo.


Uma proposta de esclarecimento a partir de Kant e Rawls.

Antonio Frederico Saturnino Braga

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Estado


do Rio de Janeiro, para a obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Aprovada em 28 de maio de 2007.

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________
Prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Araújo
Orientador – Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_____________________________________
Profª. Drª. Marina Velasco
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________
Prof. Dr. Ricardo R. Terra
Universidade de São Paulo

_____________________________________
Prof. Dr. Marcelo de Araújo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_____________________________________
Prof. Dr. Ricardo Corrêa Barbosa
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
Maio de 2007
Braga, Antonio Frederico Saturnino [12.08.65]

O debate entre deontologismo e conseqüencialismo.


Uma proposta de esclarecimento a partir de Kant e Rawls.

Rio de Janeiro – UERJ, 2007.

Tese: Doutorado em Filosofia, UERJ.

I.Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ


II.Filosofia/Deontologismo/Conseqüencialismo/
Kant/Rawls.
Agradecimentos

A Luiz Bernardo Leite Araújo, pelo zelo nas tarefas de orientação, que, aliado à sua
competência, tornou este trabalho possível.

Aos professores Marina Velasco, Marcelo de Araújo e Ricardo Barbosa, pelas preciosas
críticas e sugestões feitas num momento decisivo do trabalho, o exame de qualificação.

A Ethel Menezes Rocha, pelos diversos artigos que me arranjou, e, principalmente, pelo
constante apoio ao longo de todo o trabalho.

A meus pais e irmãos.

Aos amigos que estiveram mais próximos de mim nesse período: Jaime Villas da Rocha e
Marcos Benito Derizans.
Para meus pais
RESUMO

Este trabalho representa uma proposta de esclarecimento do debate entre


deontologismo e conseqüencialismo. Ele lida com dois problemas básicos. Primeiro,
situar a disputa entre deontologismo e conseqüencialismo no contexto mais amplo da
discussão contemporânea em ética e filosofia política, indicando os marcos conceituais
que distinguem essa disputa de outros debates que aí se apresentam. Segundo, indicar os
marcos conceituais que, no interior do próprio debate em foco, distinguem as duas
posições em disputa. Meu objetivo se realiza em duas etapas. Em primeiro lugar, mostrar
que estes marcos não devem ser reduzidos à tradicional oposição entre, por um lado, o
respeito a certas regras rígidas e inflexíveis, sem consideração pelas conseqüências, e, por
outro lado, a decisão de promover boas conseqüências. Em seguida, mostrar que eles têm
de ser enquadrados numa discussão sobre o modo mais razoável de determinar quais
conseqüências e resultados devem ser buscados.
ABSTRACT

In this work, I present a proposal for clarifying the debate between deontologism
and consequentialism. I deal with two basic problems. First, I locate the dispute between
deontologism and consequentialism within the wider context of contemporary discussion
on Ethics and Political Philosophy, indicating the conceptual marks that enable to
distinguish this dispute from other debates. Second, I indicate the conceptual marks that,
within the very dispute itself, enable to make the distinction between the two disputing
positions. I carry out my objective through two steps. First, I show that these marks can
not be reduced to the traditional opposition between, on the one hand, the respect for some
inflexible and rigid rules, not considering the consequences, and, on the other hand, the
decision to promote good consequences. Next, I show that it is necessary to fit those
marks into the discussion concerning what is the most reasonable way of determining
which consequences and results are to be pursued.
SUMÁRIO

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 01

1. Posição do Problema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09
1.1. Concepção Atrativa e Concepção Imperativa da Ética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09
1.2. Os Usos do Conceito de Bem e o Conceito de Contrato Social . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
1.2.1. Verdadeiro Bem e Bem Global . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
1.2.2. Bem Privado e Contrato Social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
1.2.3. Contrato Social: Vantagem Mútua ou Imparcialidade? . . . . . . . . . . . . . . . . 28
1.3. Exposição e Justificação da Estrutura do Trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
1.3.1. Deontologismo Rigorista e Deontologismo Não-rigorista . . . . . . . . . . . . . 41
1.3.2. Os Elementos-chave do Procedimento do Contrato . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

PRIMEIRA PARTE: Conseqüencialismo e Deontologismo Rigorista

2. O Conceito de Imperativo Categórico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55


2.1. As Duas Dimensões do Imperativo Categórico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
2.1.1. Imperativo Categórico e Imperativo Hipotético . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
2.1.2. Determinação da Ação Correta e Motivação para a Ação Correta . . . . . . . . 64
2.2. As Fórmulas Kantianas do Imperativo Categórico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
2.2.1. As Três Fórmulas Básicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
2.2.2. O Problema da Fórmula da Autonomia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
2.3. O Imperativo Categórico e o Conseqüencialismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

3. A Fórmula da Lei Universal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100


3.1. A Noção de Agir por Dever e a Fórmula da Lei Universal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
3.1.1. Ou Fim Ou Máxima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
3.1.2. A Noção de Lei e a Extração da Fórmula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
3.2. A Interpretação Formalística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
3.2.1. Qual Máxima? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
3.2.2. Os Testes de Poder Conceber e Poder Querer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122
3.2.3. Contradição no Teste de Poder Conceber . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
3.2.4. Máximas Genéricas e Concepção Rigorista do Dever . . . . . . . . . . . . . . . . 136
3.2.5. Contradição no Teste de Poder Querer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146
SEGUNDA PARTE: Utilitarismo e Deontologismo Não-rigorista.

4. Os Bens do Indivíduo-Legislador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156


4.1. A Interpretação Não-formalística do Procedimento de Universalização . . . . . . . . . 156
4.2. A Teoria do Bem do Utilitarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
4.2.1. Honrar e Promover um Bem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
4.2.2. As Diversas Concepções de Utilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172
4.3. A Teoria do Bem do Deontologismo Não-rigorista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
4.3.1. John Rawls: Bens Primários e Interesses Superiores . . . . . . . . . . . . . . . 183
4.3.2. Contraste com o Utilitarismo de Bem-estar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
4.3.3. Interesses Superiores ou Bem Estritamente Político? . . . . . . . . . . . . . . . 189

5. Teorias da Decisão e Intuições do Resultado Justo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201


5.1. Transição do Procedimento de Universalização para o do Contrato . . . . . . . . . . . . 202
5.2. A Questão da Prioridade do Justo sobre o Bom . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210
5.3. As Diferentes Teorias da Decisão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229
5.3.1. Condições Formais ou Critérios Conteudísticos? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229
5.3.2. Racionalidade ou Razoabilidade? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
5.3.3. Decisão de Conflitos e Intuições do Resultado Justo . . . . . . . . . . . . . . . 250

Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 258

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268
1

Introdução.

Do ponto de vista lógico-conceitual, pode-se afirmar que, na disputa entre


conseqüencialismo e deontologismo, é o conseqüencialista quem dá o pontapé inicial,
enquanto o deontologismo desenvolve-se como uma reação a certas implicações da tese
inicialmente avançada por seu oponente. Com efeito, o conseqüencialismo, como afirma
S. Scheffler na “Introdução” à coletânea sobre a disputa que ele próprio editou1, funda-
se numa idéia ao mesmo tempo simples e sedutora, quase irresistível, a saber, a idéia de
que, do ponto de vista moral, o que as pessoas devem fazer é minimizar o mal e
maximizar o bem.
É claro que o esclarecimento dessa idéia inicial traz elementos um pouco mais
problemáticos. O primeiro reside nas noções de impessoalidade e imparcialidade. Com
efeito, para esclarecer a posição conseqüencialista, é preciso enfatizar que, ao afirmar
que a ação moralmente correta é aquela que produz o melhor resultado global (ou seja, o
resultado em que se minimiza o mal e/ou maximiza o bem), o conseqüencialista está
pressupondo que a avaliação dos possíveis resultados deve ser feita desde um ponto de
vista impessoal e imparcial, em que se dá o mesmo peso aos respectivos interesses de
cada um dos possíveis afetados.2
O elemento da impessoalidade suscita um primeiro tipo de reação ao
conseqüencialismo. 3 Trata-se da objeção segundo a qual a ética não deve deixar de
apoiar-se num ponto de vista pessoal, centrado em considerações sobre o que é bom
para o próprio agente, tendo em vista seus fins, projetos, compromissos e vínculos
pessoais. Para os partidários dessa posição, em vez de transferir-se para o ponto de vista
da impessoalidade, a ética deve combater o fator que provoca essa transferência, o qual
consiste numa visão imprópria, distorcida e até mesmo artificial do bem pessoal,
construída por exageração de um tipo grosseiro, e relativamente raro, de egoísmo.
É importante destacar que, ainda que se trate de uma objeção sólida e influente,
esse tipo de objeção refere-se, não tanto ao conseqüencialismo, mas, antes, a uma
concepção logicamente anterior e mais ampla, que eu, seguindo a terminologia adotada

1
Consequentialism and its critics. Oxford, Oxford University Press, 1988.
2
Cf. Scheffler, Op. Cit., p.1.
3
Ver, por exemplo, Bernard Williams, “A Critique of Utilitarianism”, in Smart, J.C. e Williams, B:
Utilitarianism: For and Against, Cambridge, Cambridge University Press, 1973, p.77-150. Do mesmo
autor, ver também “Persons, character and morality”, in Moral Luck (Cambridge, Cambridge University
Press, 1981, p.1-19), e Ethics and the Limits of Philosophy, Cambridge, Harvard University Press, 1985.
2

por C. Larmore 4 , vou chamar de concepção “imperativa” da ética. Trata-se de uma


concepção que se estrutura por meio da oposição à concepção “atrativa”. A concepção
atrativa adota, justamente, o ponto de vista pessoal acima referido. Nessa concepção, em
outras palavras, o ponto de partida da reflexão ética consiste em considerações sobre o
que verdadeiramente é bom para o próprio agente. A concepção imperativa, em
contrapartida, adota o ponto de vista da impessoalidade e da imparcialidade. Ao adotar
esse ponto de vista, ela altera o modo pelo qual se revela a qualidade positiva da ação
eticamente recomendável: em vez de se apresentar como boa (quer dizer, boa para o
próprio agente), como ocorre na concepção atrativa, a ação eticamente recomendável se
apresenta como correta, ou justa.
Do ponto de vista histórico, a concepção atrativa é a concepção que prevalece
nas épocas antiga e medieval, ao passo que a concepção imperativa se desenvolve e
fortalece com o advento da modernidade. Dois fatores parecem provocar o
desenvolvimento dessa última concepção, ambos ligados à ruptura da solidez e unidade
da cristandade ocidental, com seus tradicionais valores antiegoístas e anti-hedonistas. O
primeiro já foi mencionado: trata-se do processo de degeneração da visão ordinária do
bem pessoal. Ainda que os partidários da ética “pessoal” queiram dizer que há um certo
exagero na ênfase que se dá a esse processo, é inegável que, com o advento da
modernidade, tornou-se mais comum dar lugar, na visão do bem pessoal, a tendências
grosso modo egoístas e hedonistas, o que permite que a expressão “fazer o que é bom
para mim” passe a ser vista como equivalente a uma atitude grosso modo egoísta – e,
conseqüentemente, antiética. Em virtude desse processo, surge a tese de que a
determinação da ação eticamente recomendável não pode mais basear-se no conceito do
(verdadeiro) bem pessoal, e só pode apoiar-se no conceito do que é
(incondicionalmente) devido e correto, o qual exige a adoção de uma perspectiva
impessoal e imparcial. É contra essa tese que se levantam os partidários da “ética das
virtudes”, uma das expressões contemporâneas da concepção atrativa da ética.5
O segundo fator vincula-se mais à esfera política, e suscita um debate no âmbito
da filosofia política – enquanto o debate entre “ética do dever” e “ética das virtudes”
pertence mais ao âmbito da ética em sentido estrito. Mesmo que se admita que há muito
exagero e artificialismo na idéia de uma degeneração da visão do bem pessoal; mesmo
que se admita que concepções não-egoístas do bem pessoal foram em grande parte

4
Em The Morals of Modernity. Cambridge, Cambridge University Press, 1996.
5
Ver, por exemplo, Philippa Foot, Virtues and Vices, Berkeley, University of California Press, 1978.
3

preservadas no advento da modernidade; - mesmo assim, o advento da modernidade


trouxe à tona o fato de que há um pluralismo de concepções razoáveis do bem pessoal, o
que significa que a justiça dos princípios e decisões políticas não pode mais apoiar-se
numa concepção unitária e abrangente, e com reconhecida pretensão de verdade, do
aperfeiçoamento pessoal dos diferentes cidadãos. Ora, isso por sua vez significa que a
justiça política exige a adoção de um ponto de vista que atenda ao requisito de
imparcialidade – ou neutralidade – em relação às diversas concepções de bem pessoal
que podem se manifestar numa sociedade pluralista, - em relação, mais precisamente,
àquelas que podem ser consideradas razoáveis, ou permissíveis. O debate que se
instaura aqui diz respeito, justamente, a esse ideal de neutralidade. Até que ponto pode-
se adotar uma perspectiva efetivamente neutra? Até que ponto a pretensa neutralidade
não esconde, na verdade, uma opção política por uma visão grosso modo individualista?
Não seria melhor tentar retornar a uma visão comunitarista da esfera política – quer
dizer, uma visão apoiada no conceito do verdadeiro bem comum, tomado como foco do
aperfeiçoamento pessoal dos diferentes cidadãos? De que modo se poderia tentar esse
retorno? Trata-se aqui do debate entre “liberais” e “comunitaristas”.6
Como disse acima, a crítica às noções de impessoalidade e neutralidade
representa uma objeção, não tanto ao conseqüencialismo, mas, antes, a uma concepção
logicamente anterior e mais ampla, da qual o conseqüencialismo é apenas parte; - trata-
se, justamente, da concepção imperativa da ética. Ora, ao dizer que se trata de uma
concepção mais ampla estou querendo dizer que ela inclui, não apenas o
conseqüencialismo, mas também o deontologismo. Em outras palavras, estou querendo
dizer que a disputa entre conseqüencialismo e deontologismo é interna à concepção
imperativa da ética, e não deve ser confundida com a disputa entre as concepções
imperativa (impessoal) e atrativa (pessoal) da ação eticamente recomendável. Essa tese
é essencial para o desenvolvimento de todo o meu trabalho, e eu a elaboro e discuto no
Primeiro Capítulo. Nesse capítulo, além de apontar para as confusões terminológicas
geradas pela ambigüidade do conceito de “bom” (“bem”), e para as diferentes
6
Do ponto de vista desse debate, o utilitarismo (ou conseqüencialismo) pertence, inequivocamente, ao
campo liberal. Trata-se aqui de um liberalismo por assim dizer formal, ou procedimental, quer dizer, um
liberalismo que ainda não inclui a determinação mais conteudística da prioridade (absoluta) das
liberdades e direitos individuais. Nesse trabalho, como se verá, tratarei esse liberalismo procedimental
como equivalente, grosso modo, ao procedimento contratualista, e analisarei a disputa entre
deontologismo e utilitarismo a partir, justamente, de uma discussão sobre o procedimento contratualista.
Sobre o debate entre liberais e comunitaristas, ver, entre outros, Michael Sandel: Liberalism and
the Limits of Justice (Cambridge, Cambridge University Press, 1982); A. MacIntyre: After Virtue (Notre
Dame, University of Notre Dame Press, 1981); e S. Mulhall e A. Swift: Liberals and Communitarians
(Oxford, Blackwell, 1992).
4

dimensões em que esse conceito, ao ser devidamente esclarecido, pode ser aplicado,
procuro mostrar também a implicação recíproca entre, por um lado, o conceito de
correção ou justiça, vinculado à perspectiva da imparcialidade, e, por outro lado, o
procedimento contratualista, que ocupará posição decisiva na posterior elaboração da
disputa entre conseqüencialismo e deontologismo. Além disso, faço uma exposição
mais específica do plano e estrutura do trabalho, apresentando, inclusive, uma
justificativa mais detalhada para o fato de nosso tema ser encaminhado por meio de
reflexão sobre o procedimento contratualista.
O Segundo Capítulo é dedicado a uma análise do conceito kantiano de
imperativo categórico. A razão dessa análise é a seguinte. É inegável que o conceito de
imperativo (dever, obrigação) categórico ocupa posição decisiva no desenvolvimento da
concepção imperativa da ética – ele pode ser considerado, inclusive, a expressão mais
clara e influente dessa concepção. É inegável, além disso, que esse conceito tem
exercido importante papel na evolução da disputa entre deontologismo e
conseqüencialismo. Nesse contexto, entretanto, o conceito de imperativo categórico tem
se prestado a uma grave confusão interpretativa, em virtude da qual o dever moral
aparece como incompatível com toda e qualquer consideração pelas conseqüências ou
resultados, inclusive aquela (consideração) que se estrutura desde o ponto de vista da
impessoalidade e imparcialidade, como ocorre no conseqüencialismo propriamente dito.
Como resultado dessa confusão, o conseqüencialismo é excluído da concepção
imperativa, e a disputa entre conseqüencialismo e deontologismo aparece como uma
disputa entre, respectivamente, uma ética “do Bem” e uma ética “do Dever”. Em virtude
dessa confusão, em outras palavras, a disputa entre deontologismo e conseqüencialismo
aparece como uma disputa a respeito da noção de dever moral veiculada ou envolvida
no conceito kantiano de imperativo categórico. Ora, esse modo de ver a disputa parece-
me toldar, de forma irremediável, os pontos que, verdadeiramente, nela estão em
questão, e por isso faz-se mister uma análise que dissolva a confusão interpretativa
vinculada ao conceito de imperativo categórico.
O Terceiro Capítulo está dedicado, fundamentalmente, a uma análise da fórmula
kantiana da lei universal. Entretanto, uma vez que, na “Primeira Seção” da
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant deriva a fórmula (da lei universal)
de uma análise da noção de “agir por dever”, a primeira parte do Terceiro Capítulo
consiste, justamente, numa reflexão sobre o conceito kantiano de “agir por dever”.
Além de complementar a investigação desenvolvida no capítulo anterior, tal reflexão
5

prepara nossa análise da fórmula da universalização, mediante breve discussão de um


dos elementos centrais dessa fórmula, que é o conceito de “máxima”.
Para justificar a relevância, no contexto de nosso trabalho, de uma análise da
fórmula kantiana da lei universal, gostaria de apontar para o segundo grupo de objeções
que a posição conseqüencialista tem suscitado; - trata-se aqui, agora sim, de uma reação
propriamente deontológica, quer dizer, vinda do campo especificamente deontológico.
A idéia básica do conseqüencialismo, como vimos acima, consiste na tese de que a ação
correta é aquela que, globalmente, e imparcialmente, minimiza o mal e maximiza o
bem. Ora, essa tese tem a seguinte implicação: pode ser moralmente correto infligir o
mal a um certo indivíduo – desde que esse seja o único meio de evitar um mal maior, ou
produzir um bem maior. E essa implicação, por sua vez, suscita, como reação, a ênfase
na noção das “restrições deontológicas” – também chamadas “restrições relativas ao
agente”7. Trata-se, grosso modo, da seguinte idéia: há certos atos (ou, talvez, certos
tipos de ato) que você está absolutamente proibido de praticar, mesmo que, nessa ou
naquela situação específica, a prática desse ato pudesse evitar um mal maior, ou pudesse
produzir um resultado comparativamente bom. Em outras palavras, surge no campo
deontológico a tese das proibições absolutas, entendidas como restrições que gozam de
absoluta prioridade em relação a qualquer consideração sobre resultados possivelmente
bons (ou maus).
O problema das restrições deontológicas pode ser discutido em dois níveis
distintos. Ele pode ser colocado, em primeiro lugar, no nível dos casos extremos, das
situações-limite, verdadeiramente trágicas: caso do grupo que, por uma fatalidade da
natureza, se vê numa situação em que o único meio de evitar a morte de todos os
componentes consiste em, deliberadamente, matar um deles; caso do investigador que,
defrontado com a louca obstinação do terrorista, se vê numa situação em que, para
evitar a explosão da bomba que certamente vai matar milhares de pessoas, o único meio
parece ser torturar o pequeno filho do terrorista, na sua própria frente.8
Colocado nesse nível, o problema das restrições deontológicas assume ares de
problema teológico. Como o homem, essa criatura finita, deve lidar com o mal (a
fatalidade da natureza, a loucura do outro)? Praticando, deliberadamente, atos

7
Ver Scheffler, Consequentialism and its critics, p.1-5.
8
O exemplo é tirado de Scheffler, Op.Cit., p.3. Um dos textos clássicos sobre a questão das restrições
deontológicas é “War and Massacre” (1972) de Thomas Nagel, republicado em Mortal Questions,
Cambridge University Press, 1979, p.53-74. Nagel também discute o problema no capítulo IX de sua obra
The View from Nowhere (Oxford University Press, 1986, p.164-188).
6

reconhecidamente maus, para evitar um mal maior? Ou abstendo-se da conduta má, na


convicção de que o mal será reparado ou superado, numa outra dimensão?
Embora esse tipo de dilema tenha alimentado inúmeras páginas de poderosa
reflexão9, não segui esse caminho no presente trabalho, até porque, ao ser colocada nos
termos desse tipo de debate, a disputa entre deontologismo e conseqüencialismo
apresenta uma margem relativamente pequena para o trabalho de ulterior esclarecimento
e elaboração. Em outras palavras, se a diferença entre as duas posições é colocada
nesses termos, pouca coisa, comparativamente, resta a dizer para tentar esclarecê-la e
elaborá-la.
Mas a noção das restrições deontológicas também pode ser colocada de forma
um tanto diferente; ela pode ser colocada, a saber, nos seguintes termos: o sentido
prioritário do dever moral reside no dever de não praticar certos atos ou tipos de ato, e
não no dever de buscar e promover um resultado (um estado de coisas) definido como
bom, ou justo. Desse ponto de vista, a diferença entre as duas posições aparece da
seguinte maneira. O deontologismo dá prioridade aos deveres negativos, tomados como
regras que, para serem válidas, não precisam ser inseridas numa reflexão sobre a justiça
ou bondade do (conteúdo do) estado de coisas resultante (isso também pode ser
expresso da seguinte maneira: para o deontólogo, se as regras negativas são respeitadas,
o estado de coisas resultante é por definição justo, qualquer que seja seu conteúdo). Já o
conseqüencialismo dá prioridade ao dever (positivo) de buscar e promover o estado de
coisas cujo conteúdo foi definido como justo, ou bom – impessoalmente bom, é claro.
Se o ato promove o estado de coisas justo, ele é justo, ainda que represente uma
violação às restrições que os deontólogos tanto valorizam.
Quando se adota esse modo de contrapor o deontologismo ao
conseqüencialismo, o resultado é uma visão “rigorista” do deontologismo – trata-se da
tese de que, para contrapor-se ao conseqüencialismo, o deontologismo deve priorizar
regras rígidas e inflexíveis, cuja validade não depende de qualquer consideração sobre a
justiça (ou bondade) conteudística do estado de coisas resultante.
Quando é colocada nesses termos, a disputa entre deontologismo e
conseqüencialismo pode ser ulteriormente elaborada, de duas maneiras. No campo
conseqüencialista, brota o “conseqüencialismo da regra”, em resposta às críticas que

9
Podemos citar aqui, por exemplo, a reflexão de Max Weber sobre a distinção entre uma “ética da
responsabilidade” e uma “ética da convicção”. Ver “A Política como Vocação”, in Ensaios de Sociologia
– organizados por H. Gerth e C. Wright Mills (Zahar, tradução de Waltensir Dutra, 1964, p.97-153).
7

apontam para a incapacidade do “conseqüencialismo do ato” de garantir o respeito às


liberdades e direitos individuais. No presente trabalho, não tratei da distinção entre
conseqüencialismo do ato e conseqüencialismo da regra, por duas razões. Primeiro, por
julgar que essa distinção é relativamente infecunda para o discernimento e avaliação do
que verdadeiramente está em jogo na distinção e disputa entre conseqüencialismo e
deontologismo. Segundo, por concordar com o juízo de que o conseqüencialismo da
regra “constitui uma combinação intrinsecamente instável, que tenta ocupar um meio-
termo inexistente”10.
No campo deontológico, em contrapartida, brota aquilo que poderia ser chamado
de “deontologismo conseqüencialista”, mas que eu vou chamar de “deontologismo não-
rigorista”, para evitar confusões com o termo “conseqüencialista”. Trata-se de uma
forma de deontologismo que procura se caracterizar, não pela priorização do dever
negativo em relação ao dever de promover um estado de coisas conteudisticamente
justo, mas, sim, por um modo próprio de determinar qual é o estado de coisas
conteudisticamente justo – um modo distinto daquele que é adotado pelo
conseqüencialismo em sentido estrito. Assim, a discussão sobre o (maior ou menor)
valor que deve ser atribuído às liberdades e direitos individuais, assim como a uma
distribuição mais igualitária (ou, ao contrário, a uma distribuição mais centrada na
noção de maximização), - tal discussão torna-se dependente da discussão sobre qual
estado de coisas deve ser considerado conteudisticamente justo, ou bom. Foi esse o
caminho que segui para elaborar a distinção e disputa entre deontologismo e
conseqüencialismo. Em outras palavras, procurei elaborar essa disputa por meio de uma
superação da visão rigorista do deontologismo.
Gostaria agora de retornar à questão da relevância, no contexto de nosso
trabalho, de uma análise da fórmula kantiana da lei universal, tal como efetuada no
Terceiro Capítulo. A relevância dessa análise se explica pelo fato de que a visão
rigorista do deontologismo tem se alimentado de uma certa interpretação da fórmula da
universalização, que eu chamo de interpretação “formalística”, e que tem por eixo a
noção de contradição. Assim, para elaborar nossa disputa por meio de uma superação da
visão rigorista do deontologismo, era preciso apontar para os limites e lacunas dessa
interpretação formalística, e refletir sobre a possibilidade de uma interpretação

10
Scheffler, Consequentialism and its critics, p.8. O juízo não é do próprio Scheffler, é apenas
mencionado por ele.
8

alternativa, que eu chamei de interpretação “não-formalística”. Esse foi o trabalho


realizado no Terceiro Capítulo.
Na interpretação não-formalística, como procuro demonstrar nos capítulos
seguintes, o procedimento de universalização se transmuta no procedimento do contrato
social. Assim, como já disse anteriormente, a análise da disputa entre
conseqüencialismo e deontologismo não-rigorista foi realizada por meio de uma
investigação sobre o procedimento do contrato – e esse trabalho foi realizado nos
capítulos 4 e 5 (no Capítulo 1, como disse acima, apresento uma justificativa mais
detalhada para esse modo de analisar a disputa). No Quarto Capítulo, a investigação
girou em torno das seguintes questões. Considerando a enorme diversidade dos desejos,
interesses e demandas que costumam se manifestar numa sociedade pluralista, que
conceito e teoria devem ser usados para caracterizar a relevância normativa dos
interesses e demandas, quer dizer, para determinar quais são os interesses (ou
demandas) politicamente relevantes, e para explicar por que eles são relevantes? Essa
pergunta também pode ser expressa da seguinte maneira: que interesses devem ser
concedidos aos participantes do procedimento do contrato, quer dizer, aos indivíduos
legisladores? Segunda questão: que tipo de metro deve ser usado para efetuar as
necessárias comparações entre essas demandas? No tratamento dessas questões, mostrei
de que modo a teoria conseqüencialista se apropria da noção de utilidade,
transformando-se, assim, no utilitarismo propriamente dito. Discuti os diferentes modos
pelos quais a noção de utilidade tem sido entendida na tradição utilitarista, e até que
ponto essa noção pode ser aproximada do conceito de bens primários adotado pelo
deontologismo não-rigorista de John Rawls.
O Quinto Capítulo, por fim, consiste numa investigação mais centrada no
procedimento do contrato propriamente dito. Procurei mostrar que esse procedimento
não pode ser caracterizado por meio da noção de justiça procedimental pura, na medida
em que a teoria da decisão nele utilizada – na qual se determina, entre outras coisas, o
sentido que deve ser atribuído aos critérios deliberativos da imparcialidade dos
participantes e da igualdade entre eles, – depende de uma certa intuição a respeito de
quais são os resultados conteudisticamente justos. Procurei mostrar que é aqui que se
encontra a raiz da diferença entre utilitarismo e deontologismo não-rigorista,
destacando, ao mesmo tempo, em que termos essa diferença pode ser adequadamente
caracterizada e esclarecida.
9

Capítulo 1
Posição do problema.

1.1) Concepção Atrativa e Concepção Imperativa da Ética.

Apesar de constituir uma disputa já bastante antiga, o debate entre teorias éticas
deontológicas e teorias éticas conseqüencialistas ainda não encontrou as condições
necessárias para um encaminhamento mais direto, certeiro e objetivo. Há aqui pelo menos
dois focos de obscuridade e desnorteamento, os quais se manifestam, inclusive, em
confusões terminológicas. O primeiro é constituído pelo fato de que a distinção entre essas
duas grandes perspectivas da reflexão ética envolve uma série de nuanças conceituais e
teóricas, as quais não são adequadamente enfocadas pela dicotomia implicada, ou pelo
menos sugerida, no uso ordinário dos títulos deontologismo e conseqüencialismo. O
segundo foco de desorientação é constituído pelo fato de que a essa primeira distinção
sobrepõe-se uma segunda, e de que muitas vezes embaralham-se os conceitos e problemas
que, respectivamente, dão vida a cada uma dessas duas distinções. Na verdade, essa
segunda distinção é mais abrangente do que a divisão entre deontologismo e
conseqüencialismo, e por isso deve ser vista como aquela que, do ponto de vista da ordem
das razões, vem em primeiro lugar.
No primeiro capítulo de seu livro The Morals of Modernity,1 Charles Larmore expõe
com grande clareza essa distinção logicamente primordial. Seguindo os passos trilhados por
H. Sidgwick em seu The Methods of Ethics, Larmore afirma que há dois modos básicos de
se compreender a natureza da ética, e que essa dicotomia corresponde a uma escolha quanto
ao conceito que se quer colocar como o conceito ético fundamental, se o conceito de
“correto” (“right”) ou o conceito de “bom” (“good”). Caso se dê prioridade ao conceito de
correto, tem-se uma concepção “imperativa” da ética e das ações eticamente
recomendáveis; nessa concepção, as ações eticamente recomendáveis são antes de tudo
obrigatórias, e as ações obrigatórias definem-se pelo fato de serem corretas: as ações
obrigatórias são as ações corretas, e vice-versa. Essa concepção resume-se na tese de que a
todo indivíduo impõem-se certas obrigações para com os outros, cuja determinação

1
Larmore, Charles: The Morals of Modernity. Cambridge, Cambridge University Press, 1996.
10

(especificação) é logicamente independente dos desejos, interesses ou concepções de bem


que ele possa eventualmente (ou circunstancialmente) ter. Nessa perspectiva, em outras
palavras, a determinação do conteúdo das ações corretas é logicamente independente da
questão de se (e em que medida) tais ações promovem (ou não), em cada situação, a
realização pessoal do próprio agente de quem se exigem. Caso, ao contrário, se dê
prioridade ao conceito de bom, tem-se uma concepção “atrativa” da ética e das ações
eticamente recomendáveis; nessa concepção, as ações eticamente recomendáveis, antes de
representarem uma obrigação do sujeito para com os outros, representam um bem para o
próprio sujeito a quem se recomendam, por serem aquelas nas quais esse sujeito vai
construindo e conquistando uma vida verdadeiramente bem-sucedida. Em outras palavras,
em vez de serem vistas como obrigatórias e corretas, as ações eticamente recomendáveis
são vistas acima de tudo como boas, quer dizer, boas para o próprio agente a quem se
recomendam, por serem favoráveis à sua realização pessoal; trata-se então de ações
pessoalmente boas. É justamente por isso que se trata de ações “atrativas” ou “atraentes”,
quer dizer, ações que o sujeito se sente atraído a praticar, ou, pelo menos, se sentiria atraído
a praticar, caso estivesse bem informado quanto às verdadeiras condições de uma vida bem-
sucedida. Essa atratividade das ações eticamente recomendáveis é perfeitamente compatível
com o fato de elas eventualmente exigirem a repressão ou controle de certos impulsos
irracionais. A capacidade e o hábito de controlar esses impulsos e, em os controlando,
praticar a ação que a razão recomenda como pessoalmente boa, - tal hábito representa a
virtude, uma noção que é central nessa perspectiva atrativa da ética.
É importante chamar atenção para o fato de que a concepção atrativa da ética não
rejeita nem despreza a noção de obrigação para com os outros. Com efeito, tal noção
representa uma dimensão que é essencial à ética em geral, a dimensão social, constituída,
justamente, pelas obrigações que temos para com os outros. Uma concepção que pura e
simplesmente rejeita tais obrigações não pertence à esfera da ética – ela se coloca em
oposição à ética, como uma concepção antiética. O que acontece com a concepção atrativa
é que, apesar de reconhecer e valorizar as obrigações para com os outros, ela as embute no
ideal de realização pessoal. A concepção atrativa decerto reconhece, por exemplo, que um
comportamento justo e honesto constitui-se numa obrigação do sujeito para com os outros;
mas ela embute tal comportamento no ideal de realização pessoal do próprio agente a quem
11

ele se impõe. Isso significa duas coisas. Em primeiro lugar, significa que, antes de ser algo
de obrigatório e correto – o que ele secundariamente também é -, tal comportamento é algo
de pessoalmente bom, quer dizer, favorável à realização pessoal do próprio agente a quem
ele se impõe. Em segundo lugar, significa que, para determinar o conteúdo do dever da
justiça em diferentes situações e contextos, o agente toma como ponto de partida o conceito
do que é bom para ele; em outras palavras, para saber o que, exatamente, ele deve fazer, ele
toma como ponto de partida a concepção daquilo que o homem realizado (virtuoso) faria –
em vez de uma noção de obrigação para com os outros, pura e simplesmente.
É importante chamar atenção para um outro fato: para pertencer à esfera da ética em
geral, a concepção atrativa precisa não apenas reconhecer nossas obrigações para com os
outros, mas precisa também admitir que tais obrigações caracterizam-se por uma validade,
se não estritamente universal, ao menos supra-individual, associada a tipos de indivíduos
e/ou a papéis sociais; em outras palavras, ela precisa reconhecer não apenas que um
comportamento justo e honesto constitui-se numa obrigação do sujeito para com os outros,
mas também que essa obrigação vale para os sujeitos de um modo geral, na feição e grau
determinados pela posição e circunstâncias de cada um. Ora, se é verdade que a concepção
atrativa embute essa obrigação no ideal de realização pessoal, então, para reconhecer e
legitimar sua validade genérica, ela precisa conferir a esse ideal uma pretensão de validade
geral e objetiva. Em outras palavras, se ser justo e honesto constitui-se numa obrigação que
vale para os sujeitos de um modo geral, e se a validade dessa obrigação está vinculada à
validade de um certo ideal de realização pessoal, é porque esse ideal pretende ter validade
geral e objetiva. E dizer que ele pretende ter validade objetiva equivale a dizer que as
eventuais divergências em relação a ele devem ser vistas como momentos de uma discussão
racional e pública, quer dizer, de uma discussão que se ancora em critérios publicamente
compartilhados, que lhe permitem encaminhar-se para uma solução que possa vir a ser
aceita como objetivamente válida.
Assim, o pressuposto fundamental da concepção atrativa da ética é que o ideal de
realização pessoal no qual ela se ancora pode erguer uma pretensão de validade geral e
objetiva, ou seja, pode legitimamente apresentar-se como objeto de uma discussão racional
e pública, no sentido acima indicado. Ora, esse pressuposto só tem ressonância num
contexto histórico bem definido, a saber, num contexto em que a questão da realização
12

pessoal seja vista, justamente, como legítimo objeto de uma discussão racional e pública,
em vez de ser vista como uma questão essencialmente privada, vinculada a tendências e
preferências individuais, cujos desacordos não podem ser encaminhados e resolvidos
segundo os critérios de uma razão publicamente compartilhada. Num contexto histórico em
que a questão da realização pessoal for vista dessa última maneira, como essencialmente
privada, o pressuposto fundamental da concepção atrativa deixa de ter ressonância.
É por isso que, ainda nos passos de Sidgwick, Larmore afirma que a distinção entre
as concepções imperativa e atrativa da ética não é meramente lógico-conceitual, mas
possui, também, um fundamento histórico. A concepção atrativa corresponde à visão de
ética que predominava na cultura greco-romana, enquanto a imperativa corresponde à visão
que passa a predominar com o advento da modernidade, em resposta a certas experiências
que, para Larmore, são típicas dessa nossa época. Citando o próprio autor: “O elemento
crucial da experiência moderna é a percepção de que, na questão sobre o sentido da vida,
pessoas perfeitamente razoáveis tendem naturalmente a discordar. Nós acabamos por nos
encontrar na expectativa de que, numa discussão livre e aberta sobre a vida bem sucedida, o
bem humano, a natureza da realização pessoal – noções essenciais à concepção centrada
nas virtudes própria da ética antiga -, quanto mais conversarmos, mais vamos discordar,
inclusive com nós mesmos”. 2 Podemos afirmar então que a experiência crucial da
modernidade equivale a uma rejeição da pretensão de objetividade erguida pelos conceitos
sobre os quais se apóia a concepção atrativa da ética. Na modernidade, a questão da
realização pessoal deixa de ser vista como objeto legítimo de uma discussão racional e
pública, e passa a ser vista como uma questão essencialmente privada, vinculada a
tendências e preferências que, apesar de particulares e variadas, são igualmente razoáveis,
desprovidas de critérios de hierarquização intersubjetivamente acolhidos. Para Larmore, as
recentes e renovadas tentativas de resgatar uma ética das virtudes (ou da vida bem-
sucedida), cujas origens remontam, primeiro, a Modern Moral Philosophy (1958), de

2
Idem, Ibidem, p.12. John Rawls faz o mesmo diagnóstico da experiência moderna, especialmente em
Political Liberalism (Nova York, Columbia University Press, 1996). Para ele, com efeito, o traço fundamental
da experiência moderna é o reconhecimento de que foi a própria reflexão racional que gerou (e continua a
gerar) um pluralismo razoável das concepções de bem, o qual, por conseguinte, representa um fato que não
pode ser desrespeitado. Entretanto, Rawls explora as implicações desse fato não tanto pelo viés da ética, quer
dizer, da reflexão sobre o modo como devem estruturar-se as relações entre os indivíduos de um modo geral,
mas, antes, pelo viés da filosofia política, quer dizer, da reflexão sobre o modo como deve estruturar-se o
Estado e as relações do Estado com os cidadãos.
13

G.E.M. Anscombe, e depois a After Virtue (1981), de A. MacIntyre, - tais tentativas não
dão a devida atenção a esse fato. Em outras palavras, por não darem devida atenção a uma
experiência que, além de crucial e inescapável, demole seus pressupostos e pretensões
fundamentais, tais tentativas não têm condição de ser bem sucedidas.
Os resultados desse esvaziamento da pretensão de validade objetiva do ideal de
realização pessoal são os seguintes: a validade objetiva de nossas obrigações para com os
outros não pode mais ancorar-se num ideal de realização pessoal objetivamente válido;
conseqüentemente, tais obrigações desvinculam-se da noção de realização pessoal e
adquirem o status de dever incondicionado. E é justamente na qualidade de dever
incondicionado que a obrigação para com os outros passa a constituir o ponto de partida da
reflexão ética. Em outras palavras, o resultado é a emergência de uma concepção
imperativa da ética e das ações eticamente recomendáveis, que se caracteriza por duas
teses interligadas (a segunda é conseqüência da primeira): em primeiro lugar, a tese de que
a todo indivíduo impõem-se certas obrigações para com os outros, cuja validade objetiva é
logicamente independente da concepção de realização pessoal que cada um possa
eventualmente assumir; em segundo lugar, a tese de que a determinação do conteúdo das
ações obrigatórias é logicamente independente da questão de se (e em que medida) tais
ações promovem (ou não) a realização pessoal do próprio agente de quem se exigem. É
claro que a emergência dessas teses agrava um problema que, no âmbito da concepção
atrativa, era relativamente fácil de ser resolvido, pelo menos no plano teórico; trata-se do
problema da motivação para a ação moralmente devida. Formulado em primeira pessoa, o
problema se expressa nos seguintes termos: se eu já não acredito mais na idéia de que
cumprir minhas obrigações para com os outros é bom para mim, quer dizer, favorável à
minha realização pessoal, que motivo posso encontrar para cumpri-las? Que motivo posso
encontrar para praticar a ação que foi determinada como moralmente obrigatória ou
correta? A meu ver, a gravidade que esse problema adquire no âmbito da concepção
imperativa representa a fonte que alimenta todas as tentativas de recuperar uma concepção
atrativa da ética.3

3
Sobre as dificuldades que a concepção imperativa encontra para lidar com o problema da motivação para o
agir moral, ver Tugendhat, E.: Vorlesungen über Ethik. Frankfurt, Suhrkamp, 1993. Tais dificuldades se
expressam também no famoso debate entre “internalistas” e “externalistas”, o qual é, todo ele, interno à
concepção imperativa da ética. Sobre esse debate, ver Frankena, W.: Obligation and Motivation in Recent
Moral Philosophy, in Melden, A. (Ed.): Essays on Moral Philosophy, Seattle, University of Washington
14

É importante destacar que, embora o problema da motivação suscite grandes


discussões no âmbito da concepção imperativa, uma das características essenciais dessa
concepção é o fato de que, nela, se estabelece uma distinção fundamental entre, por um
lado, a questão da determinação do conteúdo da ação correta e, por outro lado, a questão do
motivo para se praticar a ação correta. No contexto da concepção imperativa, saber qual o
conteúdo da ação correta, e saber que tal ou qual ação é objetivamente correta, - saber isso
é distinto (e logicamente independente) de saber que motivos tenho ou posso vir a ter para
praticar essa ação, ou que motivos efetivamente me levam (ou levaram) a praticar essa
ação. A concepção imperativa não precisa assumir a tese grosso modo kantiana de que o
reconhecimento de que uma ação é objetivamente correta (ou devida) já é ou deve ser um
motivo suficiente para praticá-la. Uma das teses fundamentais desse trabalho é, justamente,
a de que não se deve confundir a concepção imperativa com as teses kantianas sobre a
motivação moral; mais precisamente, trata-se da tese de que é preciso afastar a concepção
imperativa da tendência grosso modo kantiana (mas não apenas kantiana: ela aparece em
vários autores obcecados com o problema da motivação e/ou do valor moral que o motivo
confere à ação praticada) a embaralhar os âmbitos da motivação e da determinação do
conteúdo da ação correta, ou seja, da tendência a “enfiar” a questão da motivação na
questão da determinação do conteúdo da ação correta. No contexto da concepção
imperativa, a tarefa de determinar e justificar o conteúdo da ação correta é logicamente
independente da questão da motivação; ela pode deixar essa questão em suspenso, como
uma questão a ser resolvida depois, e de forma tópica, mais individualizada. Esse ponto é
essencial para a compreensão tanto da concepção imperativa quanto do debate entre
deontologismo e conseqüencialismo, e por isso ele será diversas vezes retomado ao longo
desse trabalho.
Alguns esclarecimentos sobre os limites do presente trabalho: nesse trabalho, não
vou abordar nem a concepção atrativa nem a disputa entre as concepções atrativa e
imperativa da ética. Tampouco vou me concentrar no problema da motivação para a ação
moralmente correta, o qual, como acabei de dizer, constitui um dos grandes problemas que
a concepção imperativa enfrenta. Em vez disso, vou me concentrar num debate que, no

Press, 1958, p.40-81; Korsgaard, C: Skepticism About Practical Reason (1986), in Creating the Kingdom of
Ends, Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p.311-334 e Williams, Bernard: Internal and External
Reasons, in Moral Luck, Cambridge, Cambridge University Press, 1981, p.101-113.
15

âmbito da concepção imperativa, é logicamente distinto do debate sobre a motivação, a


saber, o debate sobre os critérios de correção da ação moralmente devida, ou seja, sobre os
critérios que permitem determinar qual é o conteúdo da ação (ou regra) moralmente correta.
Vou argumentar que é desse debate, justamente, que brota a diferenciação entre teorias
éticas deontológicas e teorias éticas conseqüencialistas. Trata-se de um debate que é interno
à concepção imperativa da ética, o que significa que as diversas posições que ele engendra,
tanto as deontológicas quanto as conseqüencialistas, são internas à concepção imperativa.
No presente trabalho, vou tentar delinear tais posições, apresentando as características que
definem cada uma delas.
A meu ver, o primeiro passo que precisa ser dado para um delineamento adequado
das posições desse debate (interno à concepção imperativa) consiste na dissolução de
confusões terminológicas que misturam a distinção entre tais posições (internas à
concepção imperativa) com a distinção mais ampla entre as concepções atrativa e
imperativa da ética. Em outras palavras, o primeiro passo consiste na dissolução das
confusões terminológicas que toldam o fato de que se trata aqui de posições internas à
concepção imperativa da ética. O segundo passo consiste numa apresentação introdutória
das perguntas, conceitos e condições que, no âmbito da concepção imperativa, constituem
os marcos gerais do debate sobre os meios de se determinar o conteúdo dos princípios
moralmente corretos – que, como disse acima, é o debate do qual brota a diferenciação
entre deontologismo e conseqüencialismo. O terceiro passo consiste na apresentação de um
primeiro esboço da distinção entre deontologismo e conseqüencialismo, o qual possa servir
como roteiro das tarefas que precisam ser cumpridas para um ajuizamento mais certeiro e
preciso dessas duas grandes perspectivas da concepção imperativa da ética. No restante
desse primeiro capítulo, vou me dedicar, justamente, à realização desses três passos.
16

1.2) Os Usos do Conceito de Bem e o Conceito de Contrato Social.

1.2.1) Verdadeiro Bem e Bem Global.

Além de expor de forma bastante clara a distinção entre as concepções imperativa e


atrativa da ética, Larmore argumenta com grande persuasividade que a divisão entre
deontologismo e conseqüencialismo representa uma distinção que só se estabelece no
interior da visão imperativa da ética, ou seja, que tanto o deontologismo quanto o
conseqüencialismo são versões da concepção imperativa da ética, típica da época moderna.
Devido à clareza e persuasividade com que ele destrincha um tema profundamente
embaralhado por confusões terminológicas, gostaria de citar por inteiro o parágrafo em que
o autor apresenta suas considerações:
A concepção imperativa da moralidade (...) dominou grande parte da filosofia moral moderna. A
tradição utilitarista, pelo menos desde o tempo do próprio Sidgwick, não é exceção. Ela também
apela a um dever moral categórico, tanto quanto a filosofia moral de Kant. É errado descrever,
como alguns já fizeram, a diferença entre teorias deontológicas e utilitaristas como residindo em se
o correto ou o bom é tornado o conceito moral fundamental. Ao contrário, ambos os tipos de teoria
dependem da prioridade do correto sobre o bom. O princípio essencial de qualquer teoria
conseqüencialista (o utilitarismo sendo a versão que concebe o bem de maneira subjetiva, como
felicidade experimentada) é que a ação correta consiste em fazer aquilo que vai produzir o máximo
de bem global, para todos os que serão afetados pela ação, cada um deles valendo por um e
somente um. Mas isso não significa que a idéia de ação correta seja derivada de uma noção de bem
independente. Pois o bem a ser maximizado é ele próprio especificado mediante recurso a um
princípio categórico do que é correto: o bem é definido pelo fato de considerarmos
imparcialmente, como se afirma que deve ser feito, o bem global de todos os indivíduos
envolvidos, quaisquer que sejam nossos próprios interesses, e assim o dever de buscá-lo é um
dever que nos obriga incondicionalmente. É claro que uma teoria deontológica sustenta que o
indivíduo está submetido a certas obrigações mesmo que se saiba que um curso alternativo de ação
iria produzir maior bem global. Mas não é esse princípio o que expressa a prioridade do correto
típica da ética moderna. É, antes, a visão que uma teoria desse tipo compartilha com o
conseqüencialismo, a saber, a visão de que o dever moral é independente do bem do próprio
agente. É essa visão compartilhada que explica o fato de o interminável debate entre perspectivas
deontológicas e conseqüencialistas, que está no centro da filosofia moral moderna, ser
desconhecido para a ética antiga.4

As considerações de Larmore permitem-nos detectar e remediar algumas das causas


da grande confusão terminológica que permeia as distinções teóricas típicas da discussão
moral contemporânea. A primeira dessas causas reside no fato do conceito de “bom”
(“bem”) poder ser usado em vários sentidos. Gostaria de, inicialmente, destacar dois desses
sentidos, que classificarei sob os títulos, respectivamente, de “Verdadeiro Bem” e “Bem

4
Larmore, Ibidem, p. 22-23. O grifo é meu.
17

Global”. No caso do uso como “verdadeiramente bom”, o conceito é usado para marcar
ações que são boas para o próprio agente, ou seja, ações que promovem o bem (pessoal) do
próprio agente, tal como definido por um ideal com pretensão de validade geral e objetiva
(ou seja, pretensão de verdade); quando é usado nesse sentido, o “bom” equivale à
qualidade que caracteriza a atratividade da ação para o próprio agente. Nesse caso, o
conceito primordial da deliberação moral é, justamente, o conceito de ação boa para o
próprio agente, cuja explicação exige uma teoria da realização humana com pretensões de
validade objetiva. Tal uso corresponde, precisamente, à concepção atrativa da ética.
Em segundo lugar, entretanto, o conceito de bom pode ser usado para marcar ações
que são globalmente boas, ou seja, ações que maximizam os benefícios para todos os
indivíduos que serão afetados por elas; quando é usado desse modo, o “bom”, em vez de
equivaler à qualidade que caracteriza a atratividade da ação para o próprio agente, equivale
à qualidade que caracteriza a correção de uma ação que, do ponto de vista da determinação
do seu conteúdo, se apresenta, antes de tudo, como obrigatória. Nesse último sentido, o
“(globalmente) bom” representa um critério de determinação e esclarecimento da ação
correta, tomada por sua vez como ação antes de tudo obrigatória. Em outras palavras, o
conceito primordial da deliberação moral é aqui o conceito de ação obrigatória, a qual
possui a marca da correção, e é apenas para explicar a correção da ação que se introduz a
noção de “globalmente bom”. Esse último uso de “bom” corresponde, portanto, a uma
concepção imperativa da ética, quer dizer, a uma certa versão dessa concepção, como
veremos logo a seguir.
Aos dois sentidos de “bom” acima discriminados vinculam-se dois sentidos
igualmente diferentes do conceito de “fim” da ação. Nos dois casos, com efeito, o bem
representa o fim da ação. No primeiro caso, entretanto, o fim da ação é o bem do próprio
agente, ou seja, é a sua própria realização pessoal, tal como definida por um ideal com
pretensão de verdade. Trata-se da finalidade suprema que todo agente tem interesse em
alcançar. Nesse sentido, a ação (pessoalmente) boa é aquela que de algum modo promove a
finalidade suprema que o próprio agente está interessado em alcançar. Ao segundo sentido
de bom acima mencionado, por outro lado, vincula-se a tese de que o fim da ação deve ser
compreendido, não em termos pessoais, mas em termos impessoais, quer dizer, sociais e
globais: o fim refere-se à totalidade das conseqüências sociais da ação, ou seja, ao conjunto
18

das conseqüências que a ação vai provavelmente acarretar para todos os indivíduos que
serão afetados por ela. Nesse caso, o fim da ação é o bem global, ou seja, a maximização de
benefícios no conjunto dos afetados; a ação correta é, precisamente, a ação globalmente
boa, quer dizer, aquela que maximiza o bem entre todos os atingidos. Embora nos dois
casos haja, decerto, uma preocupação com o fim da ação, trata-se de duas preocupações
essencialmente diferentes: no primeiro caso, trata-se de uma preocupação com a finalidade
suprema que o próprio agente está interessado em alcançar, ou seja, trata-se de uma
preocupação com a compatibilidade e fecundidade da ação em relação à realização pessoal
do próprio agente; no segundo caso, trata-se de uma preocupação com as conseqüências
globais da ação, ou seja, trata-se de uma preocupação com a eficácia da ação para gerar um
máximo de benefícios entre todos os afetados. De acordo com o que foi dito acima, o
primeiro entendimento do “fim” (da ação) corresponde à concepção atrativa da ética; já o
segundo corresponde a uma certa versão da concepção imperativa, a qual, por ser pautada
pela preocupação com as conseqüências globais da ação, pode ser chamada de concepção
“imperativo-conseqüencialista” da ética.
Embora as duas preocupações acima discriminadas sejam essencialmente diferentes,
o fato de em ambos os casos se poder falar de uma preocupação com o fim da ação faz com
que as duas concepções éticas acima mencionadas sejam às vezes confusamente agrupadas
sob o título genérico de “teleologia” (de telos, fim). Esse tipo de confusão aparece, por
exemplo, em W. Frankena, o qual, em seu pequeno livro Ethics, classifica a concepção
atrativa como a versão “egoística” da ética teleológica, e a concepção imperativo-
conseqüencialista como a versão “universalista” desse mesmo tipo geral de ética. 5 Para
evitar esse tipo de confusão, dispensaremos os títulos “teleologia” e “ética teleológica”, e
usaremos, conforme o caso, os títulos “concepção atrativa da ética” (ou ética da boa vida) e
“concepção imperativo-conseqüencialista da ética”, ou, mais simplesmente, ética
conseqüencialista. Sempre então que falarmos de teoria conseqüencialista, ou de
conseqüencialismo, estaremos visando a versão conseqüencialista da concepção imperativa
da ética, centrada na noção de ação obrigatória e correta.
Antes de passar para um novo tópico, gostaria de fazer um breve comentário sobre o
modo como essas confusões terminológicas se expressam no plano da filosofia política. No

5
Frankena, W: Ethics. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1973. Páginas 14-16.
19

âmbito da filosofia política, com efeito, a confusão gerada pelo termo “teleológico” se torna
ainda mais aguda. Para apresentar essa confusão, podemos dizer que, nesse caso, o agente é
o Estado, e o fim da ação é o fim da ação do Estado. Ora, segundo a concepção atrativa, o
fim da ação é a realização do próprio agente – no caso em questão, é a realização do
Estado, ou seja, a felicidade do Estado. Grosso modo, entretanto, pode-se dizer que, para a
concepção atrativa, a felicidade do Estado equivale à felicidade dos cidadãos que vivem no
mesmo6; ora, a tese de que o fim da ação do Estado é a felicidade dos cidadãos que vivem
no mesmo parece reproduzir fielmente o pensamento dos teóricos conseqüencialistas.
Parece-me entretanto que, apesar dessa aparente identidade, a diferença permanece,
vinculada a diferentes modos de se entender a noção de felicidade (bem). No caso da
concepção atrativa, como vimos acima, a felicidade é concebida em termos de um ideal de
realização humana com pretensões de validade geral e objetiva. E dizer que esse ideal ergue
uma pretensão de verdade equivale a dizer duas coisas. Em primeiro lugar, todos os
membros do Estado (da comunidade) devem partilhar dele e orientar-se por ele, na feição e
grau determinados pelas circunstâncias peculiares a cada um. É justamente por isso que
esse ideal pode também ser intitulado de uma concepção abrangente do bem. Trata-se de
uma concepção unitária que determina o sentido da vida de cada cidadão e da própria
comunidade como um todo. Em segundo lugar, o Estado deve formar (ou educar) os
cidadãos para a vida segundo esse ideal. A justiça das instituições e ações da comunidade
mede-se, justamente, pelo sucesso na formação de cidadãos virtuosos, ou seja, cidadãos
habituados a viver de acordo com os preceitos da concepção abrangente do bem. E isso
também pode ser expresso da seguinte maneira: na concepção atrativa, há uma prioridade
da concepção abrangente do bem sobre as noções de “justo” e “justiça”.
Ora, no caso da concepção imperativo-conseqüencialista, como vimos acima, a
felicidade dos cidadãos deixa de estar vinculada a uma concepção abrangente do bem, e
passa a ser entendida em termos de experiências e projetos de caráter privado. Enquanto na
concepção atrativa o fim da ação do Estado é a formação dos cidadãos para a verdadeira
felicidade, ou seja, a felicidade alcançada no cumprimento da concepção abrangente do
bem, no caso da concepção conseqüencialista o fim da ação do Estado é a promoção (ou
maximização) da felicidade “privada” dos cidadãos, ou seja, a felicidade alcançada na
6
Sobre essa questão, ver Nussbaum, Martha: Nature, Function and Capability: Aristotle on Political
Distribution, in Oxford Studies in Ancient Philosophy, Supplementary Volume, 1988, p.145-184.
20

realização de desejos, preferências ou projetos de caráter privado. A concepção


conseqüencialista compartilha da tese fundamental da concepção imperativa, a saber, a tese
de que nenhum agente – seja indivíduo, associação, partido ou o próprio Estado – tem o
direito de impor sobre os demais uma concepção abrangente do bem. É claro que,
privadamente, indivíduos e associações podem abraçar uma concepção abrangente do bem,
mas não têm o direito de servir-se de meios coercitivos para impor uma tal concepção.
Nesse tipo de concepção, portanto, a justiça das instituições e ações do Estado vincula-se à
regra de não invadir a esfera privada dos cidadãos em nome de uma concepção abrangente
do bem – em outras palavras, nesse tipo de concepção há uma prioridade da justiça sobre as
concepções abrangentes do bem.
É claro que, no caso da concepção imperativo-conseqüencialista, como se verá mais
à frente, invasões da esfera privada dos cidadãos podem eventualmente ser justificadas, mas
não em nome de uma concepção abrangente do bem, e sim em nome da promoção dos
respectivos “bens privados” do maior número de indivíduos. Nesse caso, não se trata de
tornar a justiça dependente de uma concepção abrangente do bem, mas trata-se, sim, de
definir a justiça (o justo) como maximização dos bens privados dos cidadãos – trata-se de
definir o justo (o correto) como “bem global”. Ainda que possa ser justo invadir a esfera
privada de um indivíduo em nome da promoção da felicidade privada do maior número,
não é justo invadir tal esfera em nome da promoção de uma concepção abrangente do bem.
Também nesse caso, portanto, mantém-se a tese da prioridade do justo sobre as concepções
abrangentes do bem.

1.2.2) Bem Privado e Contrato Social.

Para dar continuidade a esse comentário introdutório sobre os diferentes usos do


conceito de “bom”, gostaria de chamar atenção para um terceiro uso que pode ser dado a
esse conceito. Mais precisamente, trata-se de um segundo uso da noção de “bem privado” –
o primeiro uso consistiu no conceito de “bem global”, entendido como maximização social
do bem privado, e apresentado como determinação (conseqüencialista) do conteúdo das
ações corretas e obrigatórias. Em seu segundo uso, a noção de bem privado é transplantada
para um domínio de aplicação inteiramente diferente – trata-se, não mais da determinação
21

do conteúdo da ação ou regra correta, mas do motivo para se cumprir a regra correta. Nesse
seu novo uso, portanto, a noção de bem privado é inserida no âmbito da motivação.
Para apresentar esse novo uso, gostaria de retomar duas características da concepção
atrativa da ética. Vimos acima que, nessa perspectiva, as obrigações para com os outros são
embutidas na concepção do verdadeiro bem do agente; isso significa que as relações com os
outros constituem o meio (ambiente) no qual, apenas, o indivíduo pode buscar e atingir seu
verdadeiro bem. De forma esquemática e simplificada, podemos dizer o seguinte. Para
atingir seu verdadeiro bem, o indivíduo precisa exercer suas virtudes, e ao exercer suas
virtudes ele simultaneamente atende às necessidades e expectativas dos outros – desde que
essas sejam legítimas, quer dizer, igualmente orientadas pelas virtudes. Há, portanto, uma
tendência socialmente integrativa nessa concepção de felicidade, e é por isso, justamente,
que ela pode ser qualificada como uma concepção unitária e abrangente de bem, tal como
acima indicado.
A segunda característica que gostaria de destacar é a seguinte. Na perspectiva
atrativa da ética, a concepção unitária e abrangente do bem desempenha duas funções,
simultaneamente. (Na verdade, na concepção atrativa essas duas funções estão
essencialmente unidas, e a operação de distingui-las apresenta algo de artificial, ainda que
possa ser considerada legítima, tendo em vista a clareza conceitual). Em primeiro lugar, ela
desempenha a função de princípio de determinação da ação eticamente recomendável; para
determinar qual é, exatamente, a ação eticamente recomendável, o agente toma como ponto
de partida a referida concepção do seu verdadeiro bem. E isso só pode acontecer porque
essa concepção, como foi dito, inclui os deveres ou obrigações para com os outros. Com
efeito, a ação eticamente recomendável, por definição, é uma ação que atende às legítimas
demandas dos outros, e por isso o agente só pode usar uma concepção do seu bem para
determinar a ação eticamente recomendável caso essa concepção (do seu bem) inclua,
essencialmente, consideração pelas legítimas demandas dos outros, quer dizer, inclua,
essencialmente, consideração pelos deveres ou obrigações para com os outros.
Em segundo lugar, entretanto, a concepção unitária e abrangente do bem
desempenha também a função de motivo para se praticar a ação eticamente recomendável.
Com efeito, dizer que se trata de uma concepção do bem do próprio agente, mais ainda, do
seu bem último, equivale a dizer que ela dispõe de suficiente “força motivacional” – é por
22

isso, justamente, que a concepção atrativa tende a interpretar desvios éticos não tanto em
termos de falhas motivacionais, mas, antes, em termos de falhas no conhecimento do
verdadeiro bem.
Façamos agora um contraste com a experiência moral típica da concepção
imperativa. Vimos acima que o que caracteriza essa última concepção é o afastamento da
pretensão de validade geral e objetiva de qualquer ideal de realização pessoal. A questão da
realização pessoal passa a ser vista como essencialmente privada. De forma um tanto
esquemática e simplificada, pode-se afirmar que a essa “privatização” da questão sobre a
felicidade corresponde uma privatização da própria noção de felicidade: excetuando as
relações mais próximas, as relações com os outros deixam de ser vistas como meio
(ambiente) no qual, apenas, o indivíduo pode buscar e atingir seu verdadeiro bem, e passam
a ser vistas como meio (recurso/instrumento) de que o indivíduo simplesmente se serve
para buscar e atingir sua felicidade privada. Ainda de forma um tanto esquemática e
simplificada, pode-se dizer que, pelo menos para efeito da argumentação contra o cético, a
concepção imperativa (da ética) admite e até assume a noção “privatista” (egoísta) que os
sofistas opunham à concepção de verdadeiro bem defendida pelos filósofos, na medida em
que desloca o eixo da argumentação contra o cético, da noção de excelência no viver com
os outros para a noção da inevitabilidade de uma interação minimamente ordenada com os
outros7. Ao assumir essa noção egoísta, o partidário da concepção imperativa desenvolve,
grosso modo, o seguinte argumento: o que eu (qualquer um) quero é meu bem privado, e se
eu tivesse o poder eu imporia meu bem aos outros, usando-os para a minha satisfação. Mas,
(infelizmente), eu (qualquer um) não tenho esse poder, e ao mesmo tempo preciso da

7
Veja, por exemplo, o Livro I da República e o Górgias de Platão, e compare com os temas modernos da
“guerra de todos contra todos” (Hobbes) e da “insociável sociabilidade” (Kant).
Ver também Canto-Sperber, Monique: Bonheur, in Canto-Sperber, Monique (ed.): Dictionnaire d’éthique et
de philosophie morale, Paris, PUF, 2004, p.197-210. Ver, entre outras passagens semelhantes, a página 205:
“Por mais surpreendente que seja uma tal associação entre utilitarismo e kantismo, essas duas filosofias
ilustram duas maneiras profundas e sistemáticas de pensar a divergência existente entre os fins humanos que
se orientam para a felicidade e aqueles que se orientam para a moralidade. (...) A grande dificuldade que os
utilitaristas encontram é então mostrar como à felicidade-prazer, concebida como o fim natural que todos os
indivíduos perseguem (é a tese fundamental do hedonismo psicológico que nós lhes atribuímos mais acima),
deve substituir-se a felicidade do maior número, da qual é difícil dizer à primeira vista que é naturalmente
buscada por todos os seres humanos. A teoria utilitarista formula assim, de modo absolutamente claro, uma
dissociação entre a visada moral do agente (que nesse caso é a busca de uma felicidade imparcial e coletiva) e
a busca da felicidade (entendida como felicidade pessoal).” É essa dissociação, justamente, que não aparece
na concepção atrativa, para a qual “(...) a vida boa é, ao mesmo tempo, a vida feliz e a vida moralmente
perfeita.” (p.197).
23

interação com os outros para atingir meu bem privado. Ora, como não tenho o poder de
pura e simplesmente impor minha vontade aos outros, mas ao mesmo tempo preciso de
uma interação minimamente estável e ordenada com eles, tenho de entrar em acordo com
eles quanto aos princípios que vão reger nossa interação. Na perspectiva privatista da
felicidade, esses princípios aparecem, não como algo que é, essencialmente, bom para mim,
mas como um “mal necessário”, quer dizer, como uma obrigação que devo aceitar e
cumprir, para poder perseguir mais eficazmente meu bem privado. Em outras palavras,
como não tenho o poder de pura e simplesmente impor meu bem aos outros, tenho de
reconhecer que, para perseguir meu bem privado, é necessário assumir certos deveres ou
obrigações para com eles, desde que eles também os assumam para comigo.
Ora, é claro que a determinação do conteúdo desses deveres não pode apoiar-se,
apenas, no conceito do que é bom para mim, uma vez que os outros não aceitariam uma
obrigação que fosse determinada com base, apenas, no que é bom para mim. Tenho de
aceitar uma limitação na busca do que é bom para mim, tendo em vista a necessidade de
que o outro aceite as regras da nossa interação. Assim, a determinação do conteúdo dos
deveres recíprocos só pode apoiar-se no conceito daquilo que todos podem e devem
racionalmente aceitar, quer dizer, no conceito do que é justo e correto para todos. Como
conseqüência da privatização da noção de bem, tal noção não pode mais servir como
princípio da determinação das regras e atos moralmente recomendáveis; tal princípio só
pode agora consistir na noção de obrigação universal, entendida como uma obrigação que,
por ser igualmente exigível de todos, tem de poder ser racionalmente aceita por todos.
No âmbito da concepção imperativa, portanto, a determinação das regras e
princípios da interação social segue, grosso modo, um raciocínio estruturado pelas
seguintes questões. Considerando que as regras serão igualmente exigidas de todos, e que
todos deverão igualmente cumpri-las, pergunta-se: posso conceber um mundo em que tal
(ou qual) regra será universalmente seguida? Posso querer um mundo em que tal (ou qual)
regra será universalmente seguida? Posso afirmar que todos podem e devem aceitar que tal
(ou qual) regra seja universalmente seguida? Posso afirmar que tal (ou qual) regra (tomada
como regra que será universalmente seguida) pode e deve ser objeto de um acordo ou
contrato entre todos os participantes da interação social? O que estou querendo dizer é o
seguinte: no âmbito da concepção imperativa, a determinação das regras da interação
24

social, quer dizer, dos deveres (obrigações) que os indivíduos assumem uns em relação aos
outros, por meio do Estado como poder comum, - tal determinação envolve os conceitos de
universalização e contrato social, que por sua vez envolvem o conceito do indivíduo-
legislador, quer dizer, do protagonista dos procedimentos de universalização e do contrato.
Gostaria agora de elaborar um pouco mais a questão sobre a posição que o conceito
de bem privado (individual) pode ocupar no âmbito da concepção imperativa. Gostaria de
destacar, em primeiro lugar, o seguinte: a conseqüência da privatização (ou atomização) da
noção de bem é a necessidade de se estabelecer uma distinção entre, por um lado, o âmbito
da determinação (e justificação) das regras e princípios moralmente corretos e, por outro
lado, o âmbito da motivação para se aderir ao universo (ou reino) das regras e princípios
moralmente corretos. Trata-se da distinção entre, por um lado, os conceitos e critérios que
regem o procedimento seguido na determinação e justificação do conteúdo dos princípios
morais, e, por outro lado, o motivo para se ingressar no reino dos princípios morais.
De forma esquemática e simplificada, pode-se afirmar que, no âmbito da motivação,
a concepção imperativa admite duas posições típicas. Na primeira posição, o motivo para se
ingressar no reino das regras e princípios morais consiste numa experiência “vital” da
racionalidade prática e legisladora, entendida como uma faculdade radicalmente distinta
dos interesses de caráter privado e egoísta; na segunda posição, o motivo consiste numa
noção prudente e esclarecida do bem privado. 8 Na primeira posição, a experiência da

8
É importante destacar que, por mais prudente e esclarecida que seja, trata-se ainda de uma noção “privada”
do bem pessoal. Em outras palavras, por mais que essa noção (do bem pessoal) inclua consideração pelo bem
dos outros, ela não se apresenta mais em termos de conhecimento com pretensão de verdade, mas em termos
de opinião privada. A diferença fica clara se pensarmos em termos de “razão para agir”. Por referirem-se
primordialmente ao que é pessoalmente bom, os juízos morais da concepção atrativa constituem-se
automaticamente em razão para agir – não só para aqueles que os aceitam, mas também para aqueles que
(equivocadamente) não os aceitam. Mais precisamente, no âmbito da concepção atrativa atribui-se ao juízo
moral a propriedade de ser “verdadeiro” (ou não), e dizer que os juízos morais são verdadeiros equivale a
dizer que eles representam razões para agir objetivamente válidas, mesmo para aqueles que equivocadamente
não os reconheçam, ou seja, mesmo para aqueles que tenham (e conservem) uma opinião objetivamente
errada a respeito dos propósitos da existência humana – e mesmo que esses indivíduos equivocados
aparentemente se saiam muito bem na vida. A concepção atrativa coloca o filósofo numa posição de
superioridade cognitiva em relação ao homem imoral. Mesmo que o homem imoral não se convença com seus
argumentos, ele se arroga o direito de dizer-lhe que ele está objetivamente errado, que ele tem uma razão
(objetiva) para agir de outra maneira, e que ele está sendo irracional – no sentido de que está agindo contra
seu propósito, que é ser feliz.
A situação do filósofo moral no âmbito da concepção imperativa é num certo sentido mais
complicada, como deixa claro o famoso artigo de Philippa Foot, Morality as a System of Hypothetical
Imperatives (reproduzido em Darwall, S., Gibbard, A. e Railton, P. (Eds.), Moral Discourse and Practice:
Some Philosophical Approaches, New York, Oxford University Press, 1997, p.313-320). Por referirem-se
primordialmente ao que é correto e justo, os juízos morais da concepção imperativa não têm a mesma
25

racionalidade prática e legisladora equivale a um sentimento de respeito pelo dever que a


razão sobrepõe aos interesses egoístas em geral; trata-se então da experiência de um dever
que, na própria esfera da motivação, é incondicionado, quer dizer, não está condicionado ao
bem privado do indivíduo. No próprio âmbito da concepção imperativa, entretanto, é
possível afirmar – e se tem afirmado – que essa idéia de um dever que não está
condicionado ao motivo do bem privado não passa de ficção. Trata-se da tese de que, do
ponto de vista da motivação, todo dever está condicionado a uma concepção esclarecida e
prudente do bem privado.9 Em outras palavras, trata-se da tese de que o motivo para se

facilidade de constituir-se em razões para agir. Mesmo que eles ergam pretensão de verdade, e mesmo que sua
verdade seja reconhecida, isso ainda não os transforma em razões para agir – falta, justamente, a conexão com
o que é bom para o agente. O imoral da concepção imperativa pode reconhecer a verdade de um juízo moral e
mesmo assim não reconhecê-lo como razão para agir. É por isso que o imoral da concepção imperativa pode
dizer algo que seria impensável para o imoral da concepção atrativa: “admito que é imoral – mas e daí?” (Ver
Foot, Op. Cit., p.316). No caso da concepção atrativa, com efeito, isso significaria “admito que é ruim para
mim – mas e daí?” – trata-se de algo impensável. Já no caso da concepção imperativa, isso significa “admito
que é incorreto e injusto – mas e daí?” Para transformar o juízo moral numa razão para agir, o filósofo da
concepção imperativa tem dois caminhos argumentativos. Em primeiro lugar, transformar o juízo “deve-se
agir assim”, ele próprio, numa razão para agir objetiva e incondicionada, quer dizer, numa razão para agir cuja
validade não depende de nenhuma noção de bem pessoal – trata-se da posição rejeitada por Foot no referido
artigo. Ou, em segundo lugar, seguir o caminho sugerido por Foot no referido artigo: subordinar o juízo
“deve-se agir assim” a uma certa noção de bem pessoal, e recomendar tal noção ao interlocutor. Mesmo nesse
último caso, entretanto, Foot deixa claro que não se pode dizer ao indivíduo que não chega a adotar essa
noção (como se podia dizer ao imoral da concepção atrativa) – não se pode dizer a ele que ele está sendo
irracional, no sentido de que está agindo contra seu propósito, que é ser feliz (Cf. Foot, Op. Cit., p.316). Ora,
o fato de não se poder dizer isso a ele demonstra que se trata aqui de uma opinião privada sobre o bem
pessoal, e que não pode passar disso.
9
Ver Foot, Philippa: Morality as a System of Hypothetical Imperatives, in Darwall, S., Gibbard, A. e Railton,
P. (Eds.), Moral Discourse and Practice: Some Philosophical Approaches, New York, Oxford University
Press, 1997, p.313-320. Foot afirma que, do ponto de vista da sua efetiva validade prática, o “você deve” da
moralidade pode ser equiparado ao “você deve” da etiqueta da alta sociedade (ou de um clube aristocrático):
em ambos os casos, a correção da regra não depende dos interesses ou sentimentos do indivíduo que se vê
defrontado com ela (o que Foot apresenta como manifestação do uso não-hipotético do “você deve”), embora,
por outro lado, a regra só tenha efetiva validade prática caso o indivíduo, por alguma outra razão (que não a
mera correção da regra), tenha interesse em participar do universo regido pela mesma – quer seja o reino da
moralidade, quer seja o universo da alta sociedade, ou do clube aristocrático (o que Foot apresenta como
demonstração do caráter hipotético do “você deve” – daí a tese de que a moralidade, tanto quanto as regras de
etiqueta, consiste num conjunto de imperativos hipotéticos).
A meu ver, Foot deveria admitir que, embora o reino da moralidade não seja propriamente
inescapável, há uma diferença significativa, pelo menos no âmbito das modernas sociedades pluralistas, entre,
por um lado, sair do universo da etiqueta (quer a etiqueta da alta sociedade, quer a do clube aristocrático), e,
por outro lado, sair do universo da moralidade enquanto tal. Com efeito, numa sociedade pluralista, a
sociedade e o próprio indivíduo reconhecem o “direito individual” de escapar do universo aristocrático (ou do
universo do “bom-tom”, no qual as virtudes éticas e da etiqueta acham-se confundidas) e ir procurar “outra
turma” – e vice-versa. Nesse caso, portanto, a correção “incondicionada” da regra (o fato de sua correção não
depender dos interesses ou cuidados do indivíduo que se vê defrontado com ela) está ligada a esse “direito” de
escapar do universo regido por ela, ou seja, está ligada ao fato de que a regra não se apresenta como
estritamente obrigatória. E é justamente por isso que, nesse caso, a correção da regra não precisa ficar ligada
às noções de aceitação ou aceitabilidade por parte dos indivíduos afetados.
26

ingressar no universo do contrato social (universo moral) só pode consistir numa noção
prudente e esclarecida do bem privado.
O ponto essencial é, porém, o seguinte. Ainda que se adote a posição de que o
motivo para se aderir ao universo do contrato social consiste no bem privado, a noção-
chave do procedimento do contrato (a noção que rege tal procedimento) não pode ser a de
bem privado, quer dizer, do que é bom ou vantajoso para mim, mas tem de ser a do que é
justo, quer dizer, do que pode e deve ser aceito por todos, como universalmente obrigatório.
Com efeito, uma vez que o pressuposto fundamental da idéia do contrato é a igualdade
entre os participantes – pois se não houvesse igualdade os mais fortes simplesmente
imporiam seu bem, em vez de buscar um acordo ou contrato com os outros, - para decidir
quais podem ser as cláusulas do contrato tenho de me reportar, não simplesmente ao que é
bom para mim (quer dizer, àquilo que atende aos meus interesses privados e egoístas), mas
àquilo que pode e deve ser aceito por todos – àquilo que é justo e correto impor a todos.
Assim, ainda que se adote a posição de que, do ponto de vista da motivação, todo
dever é condicionado, quer dizer, condicionado a uma noção do bem privado, - ainda assim,
na esfera da determinação do conteúdo das regras, a noção-chave tem de continuar a ser a
de dever incondicionado, quer dizer, a de um dever cuja exigibilidade objetiva não depende
dos interesses e desejos privados (variados, variáveis) dos indivíduos. É justamente pelo
fato de se tratar de um dever (nesse sentido) incondicionado que se coloca a necessidade de
ele poder ser aceito por todos os concernidos, como justo e correto – o que por sua vez
acarreta a necessidade de esses indivíduos afastarem-se de suas posições meramente
privadas e colocarem-se na posição de indivíduos-legisladores.

Já no caso da moralidade, não há propriamente “direito” de escapar do universo da sociedade


enquanto tal e ir viver isolado na ilha deserta – sair da sociedade não se apresenta como uma possibilidade
viável e socialmente admitida. Assim, a regra moral se apresenta como estrita e incondicionalmente
obrigatória – não no sentido de que ela será necessariamente cumprida por todos, independentemente dos
desejos e interesses de cada um, como se ela tivesse uma força “meio mágica” (Foot, Op.Cit., p.319), mas no
sentido, simplesmente, de que ela será igualmente exigível de todos: independentemente dos desejos e
interesses de cada um, não há “direito” de liberar-se. E o fato da regra se apresentar como estritamente
obrigatória acarreta uma mudança no modo pelo qual se pode justificar seu conteúdo. Nos universos
aristocráticos, a justificação do conteúdo e correção das regras remonta à tradição dos respectivos universos –
pois esses universos fundam-se na premissa de que eles detêm uma verdade maior, e de que é bom para os
indivíduos reconhecerem, viverem e cumprirem essa verdade. Já no caso das sociedades pluralistas, a
justificação do conteúdo e correção das regras morais envolve as noções de aceitação e aceitabilidade. Uma
vez que as regras serão igualmente exigíveis de todos, sem escapatória viável (e uma vez que elas já não
encarnam uma verdade abrangente e transcendente), elas devem poder ser aceitas por todos. O problema
consiste então em conceber um procedimento capaz de mostrar que elas podem e devem ser aceitas por todos.
27

É claro que, num certo sentido, a idéia do contrato supõe que os indivíduos queiram
estabelecer um contrato, quer dizer, tenham uma razão (um motivo) para buscar um
contrato. Mas apenas “num certo sentido”. Com efeito, uma vez que os motivos são
variados e variáveis, e admite-se que eles sejam assim, a especificação do conteúdo do
contrato é logicamente independente dos motivos que os indivíduos podem ter (ou vir a ter,
ou deixar de ter) para aderir a ele – nesse sentido, o contrato é independente dos motivos.
Em outras palavras, as razões que eles podem ter para buscar um contrato não devem ser
confundidas com as razões que eles podem usar para determinar as cláusulas (conteúdo) do
contrato. As razões (motivos) que eles podem ter para buscar um contrato remetem a
desejos e interesses que eles têm “fora” do contrato, quer dizer, “fora” do procedimento do
contrato (quer antes, quer depois – o contrato, afinal, não está propriamente no tempo);
trata-se, além disso, de razões “privadas”, no sentido de razões que se definem pelo
pertencimento à esfera dos indivíduos comuns, com suas respectivas histórias pessoais. Já
as razões que eles usam para determinar as cláusulas do contrato são internas ao
procedimento propriamente dito, quer dizer, são razões que se constituem dentro do
procedimento, na medida em que eles assumem a posição de indivíduos-legisladores.
O motivo para buscar um contrato pode ser, inclusive, o desejo de justificar minha
conduta aos outros, com base em termos de cooperação publicamente aceitos.10 Entretanto,
ainda que eu tenha esse desejo, isso não significa que eu já saiba quais são, exatamente, os
termos de cooperação que podem e devem ser publicamente aceitos; não significa sequer
que eu já disponha das razões capazes de indicar (e justificar) quais são os termos de
cooperação que podem e devem ser publicamente aceitos. É claro que essas últimas razões,
numa certa medida, envolvem a noção do que é bom para mim. Mas apenas “numa certa
medida”. Com efeito, indicar que termos de cooperação podem e devem ser publicamente
aceitos implica especificar e justificar o que o outro deve ceder a mim, tendo em vista o que
é bom para mim (ou seja, que limites o outro deve ceder-me na busca do bem dele, tendo
em vista o que é bom para mim); mas implica também reconhecer o que eu devo ceder a
ele, tendo em vista o que é bom para ele. A idéia básica é: ninguém pode fazer avançar seus
interesses às custas do outro – vale dizer: todos devem reconhecer os termos como justos. O

10
Ver, por exemplo, Freeman, Samuel: Reason and Agreement in Social Contract Views, in Philosophy and
Public Affairs, vol.19, n.2, 1990, p.122-157.
28

conceito-chave é o conceito de justiça, entendida como propriedade capaz de legitimar o


dever que se impõe incondicionalmente a todos.

1.2.3) Contrato Social: Vantagem Mútua ou Imparcialidade?

Em seu artigo The Social Contract Tradition, 11 Will Kymlicka divide as teorias
contratualistas contemporâneas em teorias “hobbesianas” e teorias “kantianas”. Para ele,
enquanto o contratualismo hobbesiano enfatiza a idéia de vantagem mútua, o
contratualismo kantiano enfatiza a idéia de imparcialidade; mais precisamente, enquanto o
contratualismo hobbesiano “enfatiza a igualdade natural de poder físico, que torna
mutuamente vantajoso para os indivíduos aceitar convenções que reconheçam e protejam
os interesses e posses de cada um, reciprocamente”, o contratualismo kantiano “enfatiza a
igualdade natural de status moral, que transforma os interesses de cada pessoa em matéria
de consideração comum e imparcial.” (p.188). Em seu verbete Contractualisme,12 Samuel
Freeman estabelece uma divisão semelhante, embora substitua as noções de “igualdade de
status moral” e “imparcialidade” pela noção de “direitos”.13 Eu cito: “As duas principais
correntes da doutrina do contrato social se interessam, tradicionalmente, pelas questões de
justiça política. As concepções do contrato fundadas nos interesses são oriundas da
reflexão de Hobbes; as concepções democráticas do contrato têm por origem a teoria dos
direitos naturais de Locke, desenvolvida depois por Rousseau e Kant.” (p.406; o grifo é do
autor).14

11
Publicado em Singer, Peter (Ed.): A Companion to Ethics, Oxford, Blackwell, 1993, p. 186-196.
12
Publicado em Canto-Sperber, Monique (Ed.): Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale, Paris, PUF,
2004, p.405-415.
13
É interessante destacar que em artigo anterior (Reason and Agreement in Social Contract Views, in
Philosophy and Public Affairs, vol.19, n.2, 1990, p.122-157) Freeman havia contraposto as concepções
hobbesianas, não a concepções baseadas em “direitos” (rights), mas a concepções baseadas no “correto”
(right), entendido como um princípio que, embora irredutivelmente moral, não necessariamente implica
“direitos individuais”. Na p.124, por exemplo, ele escreve o seguinte: “A característica comum a essas teorias
não é que elas baseiem o acordo numa suposição de direitos individuais prévios (...) É, antes, que os
princípios de correção e justiça não podem ser justificados sem o recurso a certas noções irredutivelmente
morais.” E na nota ele enfatiza a distinção entre “baseado no correto” (right-based) e “baseado em direitos”
(rights-based). Essa distinção, como se verá mais à frente, é essencial para a minha argumentação, pois vou
apresentar o utilitarismo como uma teoria que, embora baseada no correto/justo, entendida como noção
irredutivelmente moral, define o correto/justo como maximização da utilidade individual, o que implica
rejeição da reivindicação de valor absoluto expressa pelo conceito de direitos individuais.
14
No presente trabalho, não vou tratar das teorias clássicas do contrato, elaboradas por Hobbes, Locke,
Rousseau e Kant. Além disso, não vou propriamente me concentrar no tema do contrato social; tal tema só me
29

Freeman faz ainda os seguintes comentários a respeito do contratualismo


hobbesiano. (Contractualisme, p.413. O grifo é do autor.)
Os hobbesianos têm uma concepção redutora das justificações morais, reduzindo-as a questões de
motivação racional, dados os interesses não morais. Mas os hobbesianos também se encontram
confrontados a um problema de motivação (evocado acima), a saber, convencer cada um agora de
que lhe é racionalmente vantajoso aceitar normas que ele admitiria em um hipotético estado de
natureza. Toda concepção do contrato que não tome o status quo atual como base do acordo se
choca, então, com o problema da motivação. E não há nenhuma doutrina moral significativa
referente ao acordo no status quo.

Esse trecho apresenta de forma bastante clara o dilema com que se vêem
confrontados os assim chamados contratualistas hobbesianos. Se quiserem priorizar o
problema da motivação, terão de basear o acordo no atual status quo, o que significa privá-
lo de seu caráter moral – pelo menos segundo o entendimento comum da moralidade, de
acordo com o qual a moralidade é radicalmente distinta da mera estratégia. Mais
precisamente, se quiserem priorizar o problema da motivação, terão de basear o conteúdo
do acordo na configuração de forças própria de um dado status quo, o que significa
transformar o acordo em questão de mera estratégia. Se, por outro lado, quiserem manter o
contrato social como um procedimento propriamente moral, terão de entendê-lo como
acordo num estado hipotético e idealizado, o chamado estado de natureza – o que implica
priorizar, não o problema da motivação, mas o problema da justificação das cláusulas do
acordo, quer dizer, do conteúdo das mesmas. É claro que os hobbesianos podem tentar
justificá-las dizendo que elas são vantajosas para os habitantes daquele hipotético estado de
natureza – mas isso constitui um emprego conceitualmente equivocado da idéia do
“vantajoso”; o que na verdade se está dizendo é que essas cláusulas seriam racionalmente
aceitas pelos indivíduos-legisladores do universo moral, o que por sua vez equivale a dizer
que elas são corretas e justas. A idéia de “vantajoso para o habitante do estado de natureza”
representa, não o que é vantajoso para mim, mas o que é moralmente racional, quer dizer,
correto. O conceito-chave voltou a ser, portanto, o de correto.
Suponhamos que os hobbesianos queiram priorizar o problema da motivação,
reduzindo as justificações morais à questão da motivação racional, e colocando essa última,
além disso, no contexto de uma concepção privatista de interesses não morais (à diferença
da concepção abrangente do interesse no verdadeiro bem). Isso para eles significa o

interessa pelos seus vínculos conceituais com a concepção imperativa e com a distinção entre posições
deontológicas e posições conseqüencialistas.
30

seguinte: justificar o conteúdo das regras da interação equivale a mostrar que elas são
vantajosas para todos os participantes; justificar o conteúdo do acordo equivale a mostrar
que ele é mutuamente vantajoso para os participantes. Como afirmamos acima, entretanto,
os hobbesianos têm de reconhecer que a priorização da questão da motivação apresenta a
seguinte implicação. O vantajoso para mim é, evidentemente, o que é atualmente vantajoso,
dada a atual correlação de forças, marcada, eventualmente, por grandes disparidades de
poder – e não o que seria vantajoso numa hipotética e idealizada situação de igualdade de
forças. Em outras palavras, ao priorizar a questão da motivação, o contratualismo
hobbesiano precisa não apenas enfatizar a idéia de vantagem mútua, mas entendê-la como
vantagem que, dada a atual correlação de forças, cada um obtém ao firmar um acordo com
o(s) outro(s).
É claro que a idéia de vantagem mútua pressupõe uma certa idéia de igualdade, só
que uma idéia bastante “delgada”. Não se trata da idéia de que inexistem diferenças
significativas de poder entre o mais forte e o mais fraco, - pois o acordo aqui concebido é
compatível com a existência de tais diferenças. Para viabilizar o pressuposto da vantagem
mútua, tudo que se exige da noção de igualdade de poder é que, mesmo que haja,
empiricamente, grande disparidade de poder entre o mais forte e o mais fraco, o poder do
mais forte não é grande o bastante para que não haja para ele nenhuma vantagem em um
possível acordo com o mais fraco – assim como o poder do mais fraco não é tão pequeno a
ponto de ele não conseguir obter do mais forte alguma vantagem num acordo comum. Mas
é óbvio que o conteúdo do acordo vai depender, inteiramente, da correlação de forças que
efetivamente se verifica entre os diversos participantes. Nessa perspectiva, não se pode
determinar de antemão qual seria o conteúdo racional do acordo; para saber que cláusulas
são mutuamente vantajosas, é preciso, antes, analisar os dados (empíricos) do status quo.
Esse modo de conceber o acordo suscita o seguinte questionamento. Tal concepção
deve ser vista, não tanto como uma “concepção alternativa da moralidade, mas, antes,
como uma alternativa à moralidade.”15 A idéia é mais ou menos a seguinte. É claro que se
pode sair do âmbito normativo ou moral, concebendo os princípios da interação social
como resultado de um jogo estratégico em que cada participante se reporta, exclusivamente,
ao seu bem privado e às possibilidades de incrementá-lo no atual status quo; nesse caso,

15
Kymlicka, Op. Cit., p.190. O grifo é meu.
31

porém, ainda que se possa afirmar que, dada a atual correlação de forças, o acordo
produzido foi o mais vantajoso para todos (no sentido de que, dada a atual correlação de
forças, todos obtiveram uma vantagem com o acordo, e ninguém poderia obter mais
vantagem do que a que obteve), dificilmente se poderia afirmar que o acordo é moralmente
correto ou justo – ele na verdade partiu de injustiças historicamente geradas, e nesse sentido
tende a representar uma cristalização das mesmas. Nesse caso, substituiu-se o conceito de
contrato social pela noção, justamente, de jogo estratégico, ou barganha coletiva.
É evidente, por outro lado, que esse tipo de questionamento não chega a representar
uma refutação da teoria. Como bem afirma Kymlicka, “O fato de que o contratualismo
hobbesiano não se conforma às visões comuns da moralidade não preocupa àqueles que
julgam que essas visões não se sustentam. Se as visões comuns da moralidade são
insustentáveis, e se o contratualismo hobbesiano não pode gerar moralidade, tanto pior para
a moralidade.”16 Suponhamos, entretanto, que os contratualistas hobbesianos não estejam
tão dispostos assim a abandonar a moralidade; quer dizer, aproveitando as palavras de
Kymlicka acima citadas, suponhamos que eles queiram apresentar seu contrato, não como
uma alternativa à moralidade, mas, antes, como uma concepção alternativa da moralidade.
Que caminho sua investigação deve nesse caso seguir?
O ponto de partida das concepções hobbesianas, como foi sugerido acima, é o
princípio de que o contrato é possível se e somente se há uma certa igualdade entre os
participantes da interação. Partindo desse princípio, entretanto, pode-se seguir dois
caminhos distintos. O investigador pode, em primeiro lugar, encaminhar-se para os fatos
constitutivos de um dado status quo, a fim de verificar se, nessa situação, há ou não
igualdade, e, caso haja, de que tipo e configuração. Seguindo esse caminho, ele vai por
assim dizer submeter-se aos dados empíricos – pois são os dados empíricos (referentes à
existência e configuração da igualdade num dado status quo) que vão determinar, primeiro,
se um contrato é ou não racional, quer dizer, possível; e, depois, qual conteúdo pode
racionalmente ser dado ao (possível) contrato. Seguindo-se esse caminho, como foi dito
acima, sai-se completamente da esfera da moral.

16
Idem, Ibidem, p.191.
32

Não parece ser esse, entretanto, o caminho preferido pelos hobbesianos


contemporâneos. No verbete supramencionado, com efeito, S. Freeman faz as seguintes
afirmações17:
O interesse da concepção hobbesiana se manifesta nos trabalhos de David Gauthier e James
Buchanan, dois eminentes defensores de Hobbes no século XX. Ambos defendem o liberalismo
clássico defendido pelos economistas do “laisser-faire”. Nós nos interessaremos por Gauthier (...)
Seus objetivos são: 1) propor uma “reconstrução racional” da moralidade; 2) mostrar que a
sociedade ocidental fundada no mercado é a sociedade que a razão recomenda (Morals by
Agreement, 339, 353).

Se aceitarmos a exposição que Freeman faz da obra de Gauthier, poderemos dizer o


seguinte. Para Gauthier, apresentar uma “reconstrução racional da moralidade” equivale a
mostrar que ela é racional – mas no sentido de vantajosa. Só que se trata, não do que,
atualmente (no atual status quo), é racional/vantajoso para mim, mas do que é
racional/vantajoso para os habitantes de um hipotético estado de natureza.18 Gauthier retira
a noção do vantajoso da esfera do status quo e coloca-a na esfera do hipotético estado de
natureza. Ora, esse movimento tem duas implicações decisivas. Em primeiro lugar, tal
noção é deslocada, do plano da motivação para se cumprir o contrato, para o plano da
determinação e justificação das cláusulas do contrato; trata-se de mostrar, não que há
motivos (atuais) para se cumprir o contrato, mas que há razões para se reconhecer que tais e
quais cláusulas são corretas. A segunda implicação é conseqüência da primeira. Se você
priva a noção de “vantajoso” de força motivacional e insufla-lhe poder de justificação
racional, você a transforma em sinônimo de “correto”. Mais precisamente, o conceito que
você na verdade está usando é o de correto – falar de “vantajoso” representa uma espécie de
equívoco conceitual. Mais uma vez: dizer que tais e quais cláusulas do contrato são
vantajosas para os habitantes de um estado hipotético e idealizado equivale a dizer que elas
são moralmente corretas, ou que nós temos razões para reconhecê-las como moralmente
corretas, independentemente do fato de, atualmente, elas serem efetivamente vantajosas
para mim ou para você – pois essa última questão, como se verá mais à frente, depende de

17
Freeman, Contractualisme, p.407.
18
Ver Freeman, Reason and Agreement in Social Contract Views, p.133-134: “Gauthier coloca essas pessoas
em um estado de natureza não cooperativo, que é lockeano, no sentido de que a propriedade privada e os
direitos pessoais são reconhecidos, embora na base do interesse próprio, em vez de na base moral, como em
Locke. Cada indivíduo percebe que sua melhor resposta aos outros consiste em deixá-los no calmo gozo de
seus poderes e posses, com a condição de que eles respondam do mesmo modo. Por uma espécie de
convenção humeana, os indivíduos chegam a reconhecer os direitos pessoais e de propriedade uns dos
outros.”
33

um complicado cálculo acerca das atuais (e sempre mutáveis) circunstâncias, e não pode ser
tratada mediante recurso a uma situação hipotética e idealizada.
Essas considerações podem ser complementadas pelo seguinte argumento. Para
propor uma “reconstrução racional da moralidade”, Gauthier precisa tratar a igualdade
como um postulado racional, e não como objeto de investigação e verificação empíricas –
ele precisa tratar a igualdade, não como (possível) característica de um dado status quo,
mas como característica de um estado hipotético introduzido numa reconstrução racional
geralmente válida. Que igualdade é essa? De acordo com o que foi visto acima, ela
funciona como razão para se aceitar os conteúdos do “contrato social”. Assim, para
sabermos de que igualdade se trata, podemos partir dessa outra questão: que conteúdos
Gauthier recomenda?
De acordo com a passagem de Freeman acima citada, Gauthier assume a tese de que
o conteúdo racional do contrato social consiste nos princípios do liberalismo clássico
(liberalismo do “laisser-faire”). Ora, para assumir essa tese, ele precisa postular uma
igualdade muito mais forte do que a envolvida na mera idéia de vantagem mútua. A idéia
de vantagem mútua, como foi sugerido acima, não supõe igualdade no poder de prejudicar
o outro e na vulnerabilidade à ação agressiva do outro; mesmo que o poder de prejudicar o
outro e a vulnerabilidade à retaliação do outro sejam muito desiguais, pode haver, tanto
para o mais forte quanto para o mais fraco, vantagem em ceder algo ao outro, em troca de
outra coisa. Num status quo escravocrata, mesmo considerando a grande desigualdade de
senhores e escravos quanto ao poder de prejudicar o outro e à vulnerabilidade à ação
agressiva do outro, pode ser vantajoso (racional) para o senhor fazer pequenas concessões
ao escravo, em troca de algo que ele, apesar de seu enorme poder, não tem condições de
extorquir do outro 19 – mas não é racional (vantajoso) conceder-lhe liberdade formal e
direito de propriedade, quer dizer, não é racional conceder-lhe cláusulas liberais. E o
mesmo vale, por exemplo, para um status quo em que há monopólio.
Que igualdade o contratualista precisa então postular para justificar os conteúdos
normativos do liberalismo clássico? Se olharmos para a passagem de Freeman acima
citada, segundo a qual “cada indivíduo (do estado de natureza de Gauthier – A.S.B.)
percebe que sua melhor resposta aos outros consiste em deixá-los no calmo gozo de seus

19
O exemplo é tirado de Freeman, Contractualisme, p.413.
34

poderes e posses, com a condição de que eles respondam do mesmo modo”20 – se olharmos
para essa passagem, teremos razões para afirmar que Gauthier parte de um estado em que
há, justamente, igualdade fundamental no poder de prejudicar o outro e na vulnerabilidade
à retaliação do outro. Pelo menos, só há contrato entre indivíduos que são iguais nesse
sentido; os fracos e incapacitados serão eliminados do âmbito do contrato.21
Duas questões se colocam aqui. A primeira já foi mencionada acima: ao colocar os
participantes do contrato num hipotético estado de igualdade “forte”, o hobbesiano
reintroduz a dificuldade da motivação. Repetindo a passagem de Freeman acima citada,
coloca-se a dificuldade de “convencer cada um agora de que lhe é racionalmente vantajoso
aceitar normas que ele admitiria em um hipotético estado de natureza” (Contractualisme,
p.413. O grifo é meu). A dificuldade pode ser mais claramente apresentada da seguinte
maneira. Em que medida o atual status quo mantém a igualdade forte teoricamente
postulada no momento de se determinar e justificar o conteúdo correto do contrato? Se, do
ponto de vista empírico, não for possível afirmar que, no atual status quo, há igualdade no
poder de prejudicar o outro e na vulnerabilidade à retaliação do outro, em que medida os
mais fortes ainda têm motivo para cumprir as cláusulas do contrato? Tratarei dessa
dificuldade mais à frente.
A segunda questão é a seguinte. Se é verdade que, para determinar e justificar os
conteúdos do contrato, o contratualista hobbesiano precisa (e/ou deseja) introduzir uma
noção forte de igualdade, segundo a qual “igualdade” é tomada como igualdade no poder
de prejudicar o outro e na vulnerabilidade à retaliação do outro, - em que medida essa
noção forte de igualdade já não implica o critério “kantiano” da imparcialidade? Com
efeito, postular que há uma igualdade fundamental no poder de prejudicar o outro e na
vulnerabilidade à retaliação do outro equivale a pressupor que eu (qualquer um) não tenho
condições de fazer avançar estrategicamente meus interesses às custas dos interesses do
outro. A igualdade fundamental no poder de prejudicar o outro e na vulnerabilidade à
retaliação do outro implica igualdade na (in)capacidade de fazer avançar estrategicamente
meus interesses, às custas dos interesses dos outros; em outras palavras, implica igualdade
na (in)capacidade de fazer avançar ilegitimamente meus interesses, relativamente aos
interesses dos outros. Assim, a noção forte de igualdade indica que vamos pintar os
20
Freeman, Reason and Agreement in Social Contract Views, p.133-134.
21
Idem, Ibidem, p.134. Ver também Kymlicka, The Social Contract Tradition, p.189-190.
35

indivíduos-legisladores de tal modo que eles são iguais na (in)capacidade de ilegitimamente


fazer avançar seus interesses, relativamente aos interesses (conflitantes) dos outros. Ora,
para mantê-los em situação de igualdade quanto à (in)capacidade de ilegitimamente fazer
avançar seus interesses relativamente aos interesses conflitantes dos outros, é preciso
configurar sua deliberação de tal modo que, ainda que ela seja orientada pelos critérios não-
morais da escolha racional, ela fica desde o princípio restringida por uma condição moral, a
saber, a condição de não poder recorrer a dados e informações que colocariam um ou outro
desses indivíduos numa posição de superioridade quanto ao poder de estrategicamente fazer
avançar seus interesses, às custas dos interesses dos demais. E impedir os indivíduos-
legisladores de recorrerem a esse tipo de dados e informações implica uniformizar suas
respectivas posições deliberativas: ao entrar na posição de indivíduo-legislador, cada
indivíduo fica submetido à condição de raciocinar desde uma perspectiva neutra, como se
ele fosse qualquer indivíduo, ou um indivíduo qualquer – alternativamente, ele raciocina a
partir do princípio de que tem igual chance de ser qualquer pessoa na sociedade.22 Ora, é
óbvio que se trata aqui da condição moral da imparcialidade – e uma condição que, junto
com Kymlicka, podemos atribuir ao “bom” Kant.
O que estou querendo dizer é o seguinte: ao introduzir uma noção forte de igualdade
na situação em que os indivíduos-legisladores determinam as cláusulas do contrato social, o
contratualista hobbesiano configura a deliberação desses indivíduos de tal modo que, ainda
que ela siga os critérios (não-morais) da escolha racional voltada para a maximização da
vantagem individual, ela fica desde o início submetida à condição moral da imparcialidade.
Ainda que ele queira maximizar sua vantagem individual, o indivíduo-legislador (qualquer
um) raciocina e escolhe, não a partir da sua (respectiva) posição individual, mas a partir de
uma posição neutra e imparcial – como se ele fosse ou pudesse ser qualquer indivíduo da
sociedade, ou um indivíduo qualquer. Completa-se aqui uma conclusão a que já havíamos
chegado antes. A noção a que o contratualista hobbesiano em verdade recorre para
determinar as cláusulas do contrato é, não a de “vantajoso”, pura e simplesmente, mas a de

22
“Colocar-se no lugar do outro”, “Véu de Ignorância” (Rawls), “Princípio da Eqüiprobabilidade” (Harsanyi):
diferentes meios de se especificar a condição “kantiana” da imparcialidade. Enfatizo que Harsanyi é um
utilitarista, e afirma, explicitamente, que seu “princípio da eqüiprobabilidade” deve ser visto como um meio
de atender à condição kantiana da reciprocidade, ou imparcialidade – o que significa um meio propriamente
utilitarista de especificar a condição kantiana da imparcialidade. Ver Harsanyi: Morality and the theory of
rational behaviour, in Sen, A. e Williams, B. (Eds.), Utilitarianism and beyond, Cambridge, Cambridge
University Press, 1982, p.39-62.
36

“imparcialmente vantajoso”. Ora, o “imparcialmente vantajoso” está longe de ser o


vantajoso propriamente dito – pois o vantajoso propriamente dito é o vantajoso para mim,
para você, para um indivíduo bem determinado, numa configuração de forças bem
determinada. O “imparcialmente vantajoso” é um sinônimo de “justo” e “correto”; mais
precisamente, trata-se de um modo de esclarecer e aplicar as noções “kantianas” de justo e
correto. Assim, se for correto afirmar que o “vantajoso” do contratualista hobbesiano
representa, na verdade, o “imparcialmente vantajoso”, então poderemos concluir que o
contratualista hobbesiano assume, no fundo, o contratualismo kantiano – ou,
alternativamente, que todo contratualismo tem de ser kantiano.
Avançando uma questão que trabalharemos um pouco mais à frente, poderíamos
dizer que, na verdade, o contratualista hobbesiano acaba assumindo uma posição muito
semelhante à do utilitarista: ele assume o procedimento kantiano do contrato, mas
configura-o nos moldes de uma teoria da escolha racional voltada para a maximização da
vantagem individual. (Incluindo, porém, a condição moral e kantiana da imparcialidade, o
que implica que o justo ou razoável não pode ser derivado, apenas, do racional não-
moral. 23 ) Nesse caso, portanto, embora o procedimento seja formalmente kantiano, os
resultados não são conteudisticamente kantianos – e é isso, justamente, o que teremos de
explicar.
Retomemos agora a dificuldade referente à motivação acima mencionada. A
dificuldade pode ser reapresentada da seguinte maneira. Há uma espécie de
incompatibilidade entre, por um lado, as noções de acordo e contrato e, por outro lado, a
teoria privatista e estratégica da motivação que o contratualismo hobbesiano pretende
adotar como ponto de partida. Com efeito, enquadrado na perspectiva reduzida da
concepção privatista e puramente estratégica do bem, em que a racionalidade prática fica
limitada à capacidade estratégica de fazer avançar meus interesses egoístas, relativamente
aos interesses dos demais, - enquadrado nessa perspectiva limitada, o problema da
motivação assume o caráter de uma questão que precisa ser recolocada a cada momento.
Dada a atual correlação de forças, pode-se dizer que é vantajoso para mim – ou que tenho
motivo para – dizer a você que vou fazer X, em troca de que você me faça Y. Mas no
momento seguinte, dependendo da evolução das circunstâncias, talvez já não seja vantajoso
23
Para Rawls, Gauthier representa uma tentativa “séria”, porém mal-sucedida, de derivar o razoável do
racional. Ver Political Liberalism, p.52-53.
37

para mim manter minha palavra (depois, talvez, que você cumpriu a sua e eu obtive meu
ganho) – depende da sua capacidade de retaliar e da minha capacidade de esquivar-me à
sua retaliação, o que por sua vez depende de inúmeros cálculos sobre a continuidade,
duração e evolução da nossa interação; depende da capacidade punitiva do Poder Público, e
da minha capacidade de esquivar-me a ela – ou de um cálculo de quanto o provável ganho
compensaria a punição do Estado; depende do quanto minha reputação social seria abalada
e da minha capacidade de blindá-la por meio de alguma estratégia de marketing; depende
de um cálculo acerca da possibilidade (ou não) de eu usar o poder ganho às suas custas para
“produzir” ou “fabricar” reputação; e assim por diante.24 A racionalidade enfocada nessa
concepção envolve a motivação do agente no terreno movediço da estratégia. Em nome da
alegada superioridade de uma teoria “realista” da motivação, a concepção hobbesiana acaba
envolvendo o conceito de motivação nesse terreno movediço. Daí se tem de chegar ao
seguinte dilema: ou essa concepção de fato apresenta uma teoria realista da motivação, mas
que dificilmente pode ser enquadrada no conceito de acordo ou contrato (devendo ser
enquadrada, antes, no conceito de “jogo”, “jogo estratégico”); ou, caso seja vista como
parte de uma teoria do contrato, a concepção hobbesiana da motivação é absolutamente
irrealista – não corresponde à realidade do contrato.
Com efeito, as idéias de acordo e contrato trazem consigo a noção de “engajamento
para o futuro”25; em outras palavras, ao firmar um acordo, reconheço uma obrigação cuja
validade estende-se para o futuro, de modo estável e contínuo, - no sentido de que ela não
fica na dependência de efêmeros cálculos sobre as variações nas circunstâncias. No
contexto da noção de “contrato”, variações nas circunstâncias implicam, não cálculo
estratégico sobre a conveniência momentânea da obrigação, mas avaliação normativa sobre
a necessidade de se estabelecer uma nova obrigação, quer dizer, instaurar um novo
compromisso para o futuro. Por constituir-se num compromisso para o futuro, a noção de
contrato traz consigo a idéia de justiça: a idéia de justiça veicula, precisamente, o
reconhecimento de que, por ter sido previamente aceita como razoável e correta, a

24
Cf. Freeman, Contractualisme,, p.408: “Quanto maior a sociedade, menor a possibilidade de a reputação
desempenhar um papel eficaz, de modo que, nas condições modernas, pode-se duvidar que a reputação seja
suficiente para manter a estabilidade”.
25
Cf. Freeman, Contractualisme, p.412: “Freqüentemente (...), a finalidade do acordo não é resolver conflitos
(pode ainda não haver conflitos), mas é iniciar um compromisso para o futuro (engager l’avenir), para que as
partes não possam ulteriormente desviar-se dos objetivos compartilhados ou das normas comuns da
associação.” Trata-se então de um “pré-engajamento partilhado entre os cidadãos” (p.413, grifo do autor).
38

obrigação tem uma validade mais ou menos estável, independente de cálculos efêmeros
sobre aquilo que estrategicamente é (ou não) conveniente em cada momento. Assim, um
contrato é um acordo sobre compromissos que os participantes reconhecem como justos.
É claro que uma obrigação acordada pode (e deve) refletir as diferenças entre os
contratantes – mas isso significa, não que o contratante tem o direito de desviar-se da
obrigação numa circunstância em que isso, dadas as variáveis diferenças de poder, lhe seja
estrategicamente vantajoso, mas, sim, que uma obrigação, para poder ser considerada justa
(razoável e correta), tem de ser acordada numa deliberação que leva em consideração, de
forma neutra e imparcial, as diferenças entre os contratantes, nem que seja para taxá-las
de moralmente irrelevantes. No contexto do contrato, portanto, as diferenças entre as
pessoas têm de se apresentar, não como “fatos brutos” referidos àquilo que
estrategicamente é ou não vantajoso para mim, mas como razões propriamente ditas, quer
dizer, fatores argumentativos que podem e devem ser universalmente aceitos como
justificativa para o conteúdo que se está dando às obrigações recíprocas. Isso significa que
as diferenças entre A e B devem ser apresentadas e consideradas, não como fatores que
aumentam ou diminuem minha (do indivíduo A) capacidade de estrategicamente fazer
avançar meus interesses egoístas, às custas dos interesses dos demais, mas como fatores
que um legislador neutro e imparcial precisa levar em consideração na hora de determinar
que demandas e expectativas o indivíduo A pode legitimamente apresentar em relação a B,
e vice-versa – lembrando que, dependendo da diferença, ela pode e deve ser considerada
moralmente irrelevante. No contexto do contrato, portanto, as diferenças entre os
indivíduos têm de ser enquadradas nos critérios da imparcialidade e justiça.
***
A conclusão da nossa argumentação é: o contratualismo hobbesiano é
conceitualmente equivocado, e todo contratualismo precisa ser do tipo kantiano – fundado
nos conceitos de justiça, correção e, principalmente, imparcialidade. Mas é essencial
complementá-la com o seguinte esclarecimento. Dizer que todo contratualismo precisa ser
do tipo kantiano não significa que todo contratualismo precisa resultar em princípios de
justiça conteudisticamente kantianos (deontológicos). Ao contrário, para elucidar a natureza
do debate entre deontologismo e conseqüencialismo, vou tentar mostrar, justamente, que é
perfeitamente possível configurar os elementos-chave do procedimento contratualista de tal
39

modo que, ainda que sejam atendidas as condições formais da igualdade, consistência e
imparcialidade, chegue-se a um resultado de teor utilitarista (conseqüencialista). Vou tentar
mostrar que o debate entre deontologismo e utilitarismo pode ser esclarecido por meio,
justamente, de uma discussão sobre o modo pelo qual se devem configurar os elementos-
chave do procedimento contratualista.
Ao adotar essa forma de apresentar o debate entre deontologismo e
conseqüencialismo, estou seguindo uma pista deixada por T. Scanlon em seu artigo
Contractualism and utilitarianism.26 Ele afirma, com efeito, o seguinte (p.120 – o grifo é
meu).
A questão fundamental aqui, entretanto, é a de se os princípios aos quais o contratualismo leva têm
de ser princípios cuja adoção geral (quer idealmente quer sob algumas condições mais realistas)
iria promover um máximo de bem-estar agregado. A muitos pareceu que este tem de ser o caso.
Para indicar por que não concordo, vou examinar um dos mais conhecidos argumentos para essa
conclusão e explicar por que julgo que ele não é bem sucedido. 27 (...) O argumento que vou
examinar, que tornou-se familiar a partir dos escritos de Harsanyi e outros, procede por meio de
uma interpretação da noção contratualista de aceitação, e leva ao princípio da maximização da
utilidade média. (...) Para ser relevante, meu juízo de que o princípio é aceitável tem de ser
imparcial.

Destaque-se ainda que o próprio Harsanyi – um dos expoentes mais importantes e


conhecidos do utilitarismo – enfatiza a proximidade entre o seu próprio modelo de
justificação dos princípios morais e o modelo da “posição original” proposto por J. Rawls
em Uma Teoria da Justiça. Em Morality and the theory of rational behaviour28, com efeito,
ele afirma o seguinte (p.47).
Meu modelo da eqüiprobabilidade foi inicialmente publicado em 1953, e desenvolvido em 1955.
Vickrey (outro utilitarista – A.S.B.) havia sugerido uma idéia semelhante, mas meu trabalho foi
independente do seu. Mais tarde, John Rawls, de novo de forma independente, propôs um modelo
muito semelhante, que ele chamou de ‘posição original’, baseada no ‘véu de ignorância’. Porém,

26
Publicado em Sen, A. e Williams, B. (Eds.): Utilitarianism and beyond, Cambridge, Cambridge University
Press, 1982, p.103-128.
27
Para Scanlon, dizer que o argumento de Harsanyi não é bem sucedido equivale a dizer, em princípio, que
ele não deve ser considerado como uma versão do contratualismo propriamente dito, mas como um outro tipo
de argumento. Ao elaborar essa tese, entretanto, - como se verá no capítulo 5 de nosso trabalho, Scanlon
enfatiza as enormes semelhanças entre o argumento de Harsanyi e o argumento desenvolvido por Rawls em
Uma Teoria da Justiça – destacando, inclusive, que o argumento do primeiro Rawls, pelas mesmas razões,
basicamente, que o de Harsanyi, tampouco pode ser considerado “bem sucedido”. Ora, considerando que é
altamente implausível excluir Uma Teoria da Justiça do âmbito das teorias contratualistas, a diferença que
Scanlon estabelece entre seu contratualismo e o argumento de Harsanyi deve então ser entendida, não tanto
como diferença entre um argumento contratualista e um outro tipo de argumento, mas, antes, como diferença
entre duas versões de argumento contratualista – sendo que o argumento de Uma Teoria da Justiça num certo
sentido está mais próximo do de Harsanyi do que da versão de contratualismo que o próprio Scanlon propõe
em seu artigo. Trataremos dessas questões no último capítulo de nosso trabalho.
28
Republicado em Sen, A. e Williams, B. (Eds.): Utilitarianism and beyond, Cambridge, Cambridge
University Press, 1982, p.39-62.
40

enquanto meu modelo serviu de base para uma teoria utilitarista, Rawls derivou conclusões
fortemente não-utilitaristas do seu próprio modelo. Mas a diferença não reside na natureza dos
dois modelos, que são baseados em suposições qualitativas praticamente idênticas. A diferença
reside, sim, na análise de teoria da decisão que é aplicada aos dois modelos.

Harsanyi reconhece e assume a semelhança entre o “véu de ignorância” da posição


original rawlsiana e o seu próprio princípio da eqüiprobabilidade. Considerando que, em
ambos os casos, trata-se de garantir a condição formal da imparcialidade, e que Harsanyi
decerto admite que a posição original é exemplificação do procedimento do contrato social,
podemos afirmar que a semelhança reconhecida e assumida por Harsanyi reside,
justamente, na assunção das condições formais do procedimento do contrato –
imparcialidade e, obviamente, consistência. Para ele, a diferença reside na “teoria da
decisão” usada em cada modelo. Trata-se, justamente, de um dos elementos-chave do
procedimento contratualista. Mais à frente, tentaremos mostrar que esse elemento associa-
se a um outro, para formar o “senso de justiça” respectivamente usado por contratualistas
deontológicos e contratualistas utilitaristas.
41

1.3) Exposição e Justificação da Estrutura do Trabalho.

1.3.1) Deontologismo Rigorista e Deontologismo Não-rigorista.

Para apresentar o caminho que iremos percorrer em nosso esforço de elucidar o


debate entre deontologismo e conseqüencialismo, gostaria de retomar as considerações de
Larmore citadas no início do capítulo. Naquele trecho, Larmore alude a uma outra causa da
grande confusão terminológica presente no debate moral contemporâneo. Trata-se do fato
de que, além de ser usada para caracterizar a distinção entre as concepções atrativa e
imperativa da ética, a contraposição entre o bom e o correto também é freqüentemente
usada para caracterizar a distinção entre as duas versões da concepção imperativa, a
conseqüencialista e a deontológica. Em outras palavras, à semelhança do que ocorre com a
distinção entre éticas da boa vida e éticas do dever, também a distinção entre teorias
conseqüencialistas e teorias deontológicas é freqüentemente caracterizada em termos de
diferentes hierarquizações entre o bom e o correto: segundo esse tipo de caracterização,
enquanto as teorias conseqüencialistas priorizam o bom sobre o correto, as teorias
deontológicas priorizam o correto sobre o bom.29
Ora, as reflexões que acima desenvolvemos acerca dos vários significados de “bom”
permitem-nos esclarecer em que sentido, exatamente, as teorias conseqüencialistas
priorizam o bom sobre o correto: não é que elas erijam a noção de ação boa (para o próprio
agente) à posição de noção primordial da deliberação moral, pois a noção primordial,
também para elas, é, antes, a de ação obrigatória e correta; mas é que, para explicar em que
consiste a ação obrigatória e correta, tais teorias recorrem ao critério do globalmente bom,

29
O próprio Rawls adotou esse tipo de caracterização – que não tem nada de errado, diga-se de passagem;
apenas se presta a confusões terminológicas. Ver, por exemplo, A Theory of Justice, p.24: “Os dois principais
conceitos da ética são os de correto e de bom (...) A estrutura de uma teoria ética é em boa parte determinada
pelo modo como ela define e relaciona essas duas noções básicas. Ora, parece que o modo mais simples de
relacioná-las é o adotado pelas teorias teleológicas (isto é, conseqüencialistas – A.S.B.): o bom é definido
independentemente do correto, e o correto é então definido como aquilo que maximiza o bom.”. Em
correspondência com isso, as teorias deontológicas são apresentadas na p.30 como teorias que “ou não
especificam o bom independentemente do correto, ou não interpretam o correto como maximização do bom.”.
O mesmo tipo de caracterização aparece de forma ainda mais clara em C. Fried, Right and Wrong,
p.9: “A diferença entre as doutrinas é que o conseqüencialismo subordina o correto ao bom, ao passo que para
a deontologia os dois domínios, embora relacionados, são distintos. O fato das conseqüências últimas serem
boas não garante a correção das ações que as produziram. Para o deontólogo, os dois domínios são não apenas
distintos, mas o correto é prioritário em relação ao bom.”.
42

afirmando que a ação correta consiste na ação que maximiza o bem (privado) no conjunto
dos afetados. Para dizê-lo em termos mais contundentes, as teorias conseqüencialistas
sustentam que a ação correta reduz-se à ação globalmente boa, e é nesse sentido, e apenas
nesse, que elas priorizam o bom sobre o correto. Para as teorias deontológicas, em
contrapartida, o critério de correção das ações obrigatórias não pode ser identificado ao
globalmente bom, o que significa que a correção (justiça), tomada como qualidade que
deve ser priorizada na deliberação moral, mantém-se como algo de independente (e
prioritário) em relação ao fato de a ação ser globalmente boa (ou seja, maximizadora do
bem privado). Assim, a afirmação de que as teorias deontológicas priorizam o correto sobre
o bom deve ser entendida no sentido de que, ao afirmarem que o justo (o correto) não é
(não se reduz ao) o globalmente bom, as teorias deontológicas priorizam a correção sobre a
qualidade do “globalmente bom”. Voltaremos a esse ponto logo a seguir.
Antes disso, porém, gostaria de chamar atenção para um último problema
terminológico. Como já deve ter ficado claro, estou querendo defender a tese de que a
concepção imperativa da ética possui duas correntes, a corrente deontológica e a corrente
conseqüencialista; em outras palavras, trata-se da tese de que o debate entre deontologismo
e conseqüencialismo é interno à concepção imperativa da ética. O problema é que a
etimologia do termo “deontologismo” (déontos, “o que tem de ser feito”) sugere uma
identificação entre o deontologismo e a concepção imperativa como um todo.30 E como há
uma longa tradição de se fazer uma contraposição entre deontologismo e
conseqüencialismo, a identificação entre o deontologismo e a concepção imperativa como

30
Ver, por exemplo, Bernard Williams, Ethics and the Limits of Philosophy, p.16: “O desejo de reduzir a
variedade das considerações éticas a um padrão único é, hoje em dia, tão forte quanto sempre foi, e várias
teorias tentam mostrar que um ou outro tipo de consideração ética é básico, com os outros tipos devendo ser
explicados em termos desse primeiro. Algumas teorias tomam como básica a noção de obrigação ou dever, e
o fato de que nós reconhecemos como uma consideração ética, por exemplo, a percepção de que um certo ato
vai provavelmente levar às melhores conseqüências – tal fato é explicado pela tese de que nós temos um
dever, entre outros, de produzir as melhores conseqüências. Teorias desse tipo são chamadas ‘deontológicas’.
(...) Em contraste com estas estão teorias que tomam como básica a idéia de produzir o melhor estado de
coisas possível. Teorias desse tipo são freqüentemente chamadas de ‘teleológicas’. O exemplo mais
importante é o que especifica a natureza boa dos resultados em termos de felicidade das pessoas, ou de elas
obterem o que desejam ou preferem. Essa posição, como já disse, é chamada utilitarismo.”
Esse trecho me parece uma ótima ilustração das confusões terminológicas e conceituais a que estou
me referindo. Na primeira parte, Williams reconhece a possibilidade de um “deontologismo
conseqüencialista”, para logo depois colocar o conseqüencialismo/utilitarismo sob a categoria da “teleologia”.
Em favor de Williams, destaque-se que nesse trecho, como, de resto, no livro todo, ele está preocupado, não
com a distinção entre deontologismo e conseqüencialismo, mas com a pretensão – que ele considera
equivocada – de reduzir a variedade das considerações éticas a uma única noção básica ou fundamental.
43

um todo acaba reforçando a tendência a expulsar o conseqüencialismo do âmbito da


concepção imperativa, ou seja, acaba reforçando a tendência a confundir o
conseqüencialismo com a concepção atrativa, uma tendência que já é alimentada pelo fato
de tanto conseqüencialismo quanto concepção atrativa concederem uma certa prioridade
aos conceitos de “bem” e de “fim”. Em outras palavras, negligenciando a diferença no
modo como esses últimos conceitos são usados, há a tendência a confundir
conseqüencialismo e concepção atrativa sob os títulos genéricos de “éticas do bem”, ou
“éticas teleológicas”, às quais se contrapõem as “éticas do dever”, ou “éticas
deontológicas”. Em oposição a essa tendência, gostaria de repetir os seguintes
esclarecimentos: a concepção atrativa é uma ética do bem pessoal (onde o bem pessoal é
definido em termos de cumprimento de uma concepção unitária e abrangente do verdadeiro
bem), à qual se contrapõe a concepção imperativa, que é uma ética do dever, ou do correto.
A ética do correto, por sua vez, apresenta duas correntes: o conseqüencialismo, que é
aquela vertente que reduz o correto ao globalmente bom (onde o globalmente bom é
definido em termos de soma e maximização dos diferentes bens privados dos cidadãos), e o
deontologismo propriamente dito, que não aceita que o correto seja reduzido ao
globalmente bom.
***
Podemos agora passar para a seguinte questão. Se o deontologismo não aceita que o
correto seja reduzido ao globalmente bom, de que modo ele define o correto? Em outras
palavras, se o deontologismo não aceita que o correto seja definido em termos de
maximização do bem privado no conjunto dos afetados, de que modo ele define o correto?
Essa questão suscitou e tem suscitado duas grandes respostas, que precisam ficar, desde o
início, claramente distinguidas. Gostaria de intitular essas duas respostas, respectivamente,
de concepção “rigorista” e concepção “não-rigorista” do deontologismo.
A primeira resposta – que corresponde à concepção rigorista – é, grosso modo, a
seguinte31: se é verdade que a preocupação em maximizar o bem no conjunto dos afetados
implica consideração pelas conseqüências do ato no mundo, então uma ética deontológica,

31
Conferir, por exemplo, o verbete Déontologisme, de André Berten, no Dictionnaire d’éthique et de
philosophie morale (edição Quadrige, 2004), editado por Monique Canto-Sperber. Ver Volume I, p.477: “De
um modo geral, entende-se por uma ética deontológica uma ética que sustenta que certos atos são moralmente
obrigatórios ou proibidos, sem consideração por suas conseqüências no mundo.”. (O grifo é meu).
44

para contrapor-se a essa preocupação “conseqüencialista”, deve desconsiderar as


conseqüências, ou seja, deve sustentar que correção e incorreção são qualidades que estão
vinculadas ao ato “em si mesmo”, independentemente de qualquer relação com suas
conseqüências no mundo, quer essas conseqüências devam ser julgadas como boas ou
como más.
Essa primeira resposta, por sua vez, apresenta duas manifestações ligeiramente
distintas, dependendo do elemento conceitual que é contraposto à consideração das
conseqüências. Na primeira manifestação, que se enraíza na Fundamentação da Metafísica
dos Costumes de Kant, a consideração pelas conseqüências é identificada a
“interesse/inclinação por conseqüências boas” e “repulsa por conseqüências más”, e a esses
fatores sensíveis é então contraposta a pura consciência do dever, tomada como elemento
puramente racional. Nessa primeira manifestação, o correto é definido em termos de
“consciência do dever”, ou “respeito à Lei”: a ação correta é aquela que é praticada “por
dever”.32
No segundo capítulo do presente trabalho, e também na primeira parte do terceiro,
vou examinar essa primeira manifestação da concepção rigorista, por meio de uma análise,
justamente, da Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant. Ao efetuar essa
análise, terei três objetivos. Primeiro, mostrar que a concepção rigorista apóia-se numa
interpretação confusa e equivocada dos conceitos kantianos de imperativo categórico e de
“agir por dever”; ao evidenciar que ela se apóia em confusões interpretativas, pretendo, ao
mesmo tempo, enfraquecê-la – pois boa parte de sua força deriva do peso, tradição e
autoridade do texto kantiano. Que fique claro desde o início, portanto, que pretendo
defender as teses de que há um deontologismo não-rigorista, que o deontologismo rigorista
é uma posição altamente implausível, que a identificação (o encurtamento) do
deontologismo ao deontologismo rigorista enfraquece sobremaneira a posição deontológica
no debate com o conseqüencialismo, e que, finalmente, o deontologismo rigorista não tem o
“direito” de valer-se da força e autoridade da moral kantiana. Para defender essas teses,
realizarei uma análise daqueles elementos da filosofia kantiana que tradicionalmente têm

32
Conferir André Berten, Déontologisme, p.477: “O primeiro filósofo que defendeu explicitamente uma ética
deontológica foi Kant: um ato é moralmente bom (isto é, correto – A.S.B.) se e somente se é praticado ‘por
dever’, ou por ‘respeito pela lei’. (...) O respeito pela lei deve prevalecer sobre toda consideração acerca do
bem-estar ou da felicidade do agente moral ou de outras pessoas.”.
45

servido de alimento à concepção rigorista e à tese de que, para diferençar-se do


conseqüencialismo, o deontologismo precisa assumir um caráter “rigorista” (total
desconsideração pelas conseqüências do ato). Ao efetuar essa análise, demonstrarei um
terceiro ponto. Ao serem depurados das confusões interpretativas que os têm acometido, os
conceitos kantianos de imperativo categórico e agir por dever deixam de constituir apoio
não só para o deontologismo rigorista, mas para o deontologismo como um todo – indo
além do deontologismo, eles se tornam representativos da concepção imperativa como um
todo, o que significa que eles se tornam compatíveis tanto com um deontologismo não-
rigorista quanto com o próprio conseqüencialismo. Em outras palavras, evidenciarei que
não se pode nem explicar a diferença entre deontologismo e conseqüencialismo, nem apoiar
o deontologismo contra o conseqüencialismo, por meio, apenas, dos conceitos kantianos de
imperativo categórico e agir por dever.
A segunda manifestação da concepção rigorista compartilha da tese que é
característica de tal concepção, a saber, a tese de que, para diferençar-se do
conseqüencialismo, o deontologismo precisa adotar uma atitude de total desconsideração
pelas conseqüências do ato no mundo, quer essas conseqüências devam ser julgadas como
boas ou como más. Nessa segunda manifestação, entretanto, a consideração das
conseqüências é associada (aliás, corretamente associada) à consideração das circunstâncias
que contextualizam a prática do ato, e a essa contextualização do ato é então contraposta
uma consideração pelo tipo de coisa que o ato essencialmente representa,
independentemente das circunstâncias e contextos em que ele a cada vez se realiza.33 Nessa
segunda manifestação da concepção rigorista, a incorreção e, indiretamente, a correção, são
definidas como qualidades que estão ligadas à essência mesma do ato, entendida como algo
que não depende das circunstâncias que contextualizam a prática do mesmo. Ao abraçar a
idéia de que a apreensão da qualidade moral do ato não depende de uma avaliação das
circunstâncias em que ele a cada vez se efetua, ou seja, não depende de uma faculdade de
julgar que faça a ligação entre princípios gerais e circunstâncias particulares, essa segunda
manifestação do rigorismo acaba muitas vezes se associando, de forma um tanto

33
Ver, por exemplo, Davis, Nancy Ann: Contemporary Deontology, in Singer, P: A Companion to Ethics.
Conferir p.206/207: “Na visão do deontólogo, não é a nocividade das conseqüências de uma mentira
específica, nem da mentira em geral, o que torna errado mentir; em vez disso, mentiras são incorretas em
virtude do tipo de coisa que elas são, e, por conseguinte, são incorretas mesmo quando, previsivelmente,
possam produzir boas conseqüências.”. (O grifo é meu).
46

surpreendente, à tese grosso modo “intuicionista” de que tal qualidade pode ser
imediatamente apreendida pela intuição moral do homem comum.34
Na segunda parte do terceiro capítulo do presente trabalho, vou examinar essa
segunda manifestação da concepção rigorista, por meio, mais uma vez, de uma análise da
Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant. Vou tentar mostrar que a concepção
rigorista associa-se, dessa vez, a um modo equivocado de entender e aplicar a fórmula da
lei universal que Kant apresenta na Segunda Seção da Fundamentação. Chamarei essa
interpretação equivocada de interpretação “formalística” da fórmula da lei universal. Meu
objetivo, mais uma vez, é esvaziar a concepção rigorista, mostrando por que ela não pode
valer-se do peso e autoridade da fórmula kantiana da lei universal. Mais uma vez, o
resultado final consistirá em apontar para o fato de que, ao ser corretamente interpretada, a
fórmula da lei universal não só deixa de acarretar ou apoiar uma visão rigorista do dever
moral, mas revela-se como um procedimento que é representativo da concepção imperativa
como um todo, compatível, portanto, não só com um deontologismo não-rigorista, mas
também com o próprio conseqüencialismo. Em outras palavras, o resultado final consistirá
em apontar para o fato de que, ao ser corretamente interpretada, a fórmula da lei universal
acaba se transmutando no procedimento do contrato, o qual, como já disse, é compatível
tanto com o deontologismo não-rigorista quanto com o conseqüencialismo. Mas esse fato
só será evidenciado e elaborado na segunda parte do trabalho, constituída pelos capítulos 4
e 5.
***
Ao abraçarem a idéia de que, para contrapor-se ao conseqüencialismo, o
deontologismo precisa adotar uma atitude de total desconsideração pelas conseqüências do
ato no mundo, as duas concepções que acabam de ser mencionadas merecem bem o título
de interpretações “rigoristas” do deontologismo. As duas concepções, aliás, estão
intimamente associadas: nos dois casos, a posição central é ocupada pela noção de lei,
entendida como um princípio “puramente formal” da vontade. A diferença entre elas é uma
questão de nuança, ou seja, de gradação na coloração com que se apresentam as noções de

34
Assim, nessa segunda manifestação, o deontologismo rigorista se apresenta muitas vezes associado ao
intuicionismo moral. Essa associação é destacada, entre outros, por André Berten, Déontologisme, p.481:
“Muitas vezes se considera que a justificação última das crenças deontológicas no caráter absoluto dos
princípios morais, ou das obrigações morais, é intuitiva. E as doutrinas deontológicas são qualificadas como
teorias morais intuicionistas.”.
47

lei e de princípio formal da vontade. Numa primeira modulação, o princípio formal é


tomado como princípio que não apenas se opõe aos impulsos “materiais” (quer dizer, à
inclinação/interesse por conseqüências boas e à repulsa por conseqüências más), mas que
deve também sobrepujá-los. Nessa primeira modulação, a lei é enfocada sob o aspecto da
rigorosa obrigatoriedade. Numa segunda modulação, que apenas complementa a primeira, e
na verdade é exigida por ela, o princípio formal é tomado como um princípio cuja vigência
e validade são rigorosamente universais, ou seja, completamente independentes das
variações nas circunstâncias e contextos “materiais”. Nessa segunda modulação, a lei é
enfocada sob o aspecto da rigorosa universalidade. Assim, tomada como um princípio
puramente formal, a lei “Não Mentir” tem vigência e validade rigorosamente universais, no
sentido de que sua vigência e validade são completamente independentes das circunstâncias
“materiais”, ou seja, da circunstância de se estar diante de um louco com impulsos
autodestrutivos, ou de um assassino, ou de uma criança, ou de um adulto perfeitamente
honesto e responsável. Isso significa que o ato de mentir é incorreto “em si mesmo”, quer
dizer, independentemente das pessoas que seriam imediatamente afetadas pela mentira, e
dos efeitos que a decisão especificamente teria sobre essas pessoas.
Assim, a desconsideração pelas conseqüências adotada pelo deontologismo rigorista
não é desconsideração, apenas, pelas conseqüências indiretas, remotas e de longo prazo,
mas é, também, desconsideração pelos efeitos que o ato teria sobre as pessoas
imediatamente afetadas por ele. O pressuposto rigorista é o seguinte: a natureza do ato não
depende das pessoas que, nas circunstâncias específicas, serão diretamente afetadas por ele,
quer dizer, não depende dos diferentes efeitos que, conforme as circunstâncias e as pessoas
diretamente afetadas, o ato vai ter. Assim, a natureza do ato de mentir é sempre a mesma, e
não depende dos diferentes efeitos que, conforme se esteja lidando com um criminoso ou
um homem honesto, o ato vai ter.
Ora, essa concepção rigorista parece implausível não apenas aos conseqüencialistas,
mas a muitos teóricos que, rejeitando o conseqüencialismo, pretendem se assumir como
deontólogos.35 Veja, por exemplo, os termos com que J. Rawls a condena: “Deve-se notar

35
E é claro que esse tipo de deontologismo representa um “prato cheio” para os conseqüencialistas. Ver, por
exemplo, o capítulo 1 da Ética Prática, de Peter Singer. Ver, entre outras passagens do mesmo teor, a p.10:
“Às vezes, as pessoas acreditam que a ética é inaplicável ao mundo real, pois imaginam que a ética seja um
sistema de normas simples e breves, do tipo ‘não minta’, ‘não roube’ e ‘não mate’. Não surpreende que os que
se atêm a esse modelo de ética também acreditem que ela não se ajusta às complexidades da vida.”
48

que as teorias deontológicas são definidas como teorias não-teleológicas, e não como
teorias que caracterizam a correção de instituições e atos independentemente das suas
conseqüências. Todas as doutrinas éticas merecedoras de nossa atenção consideram as
conseqüências ao julgarem a correção. Uma doutrina que não o fizesse seria simplesmente
irracional, desequilibrada (crazy).” 36 Para Rawls, portanto, e para todos os teóricos que, tal
como ele, rejeitam o conseqüencialismo, mas julgam implausível definir a correção em
termos de desconsideração pelas conseqüências, - para esses teóricos, deve haver um
deontologismo não-rigorista. Na formulação do próprio Rawls, tal deontologismo é uma
doutrina que, apesar de considerar a natureza e o impacto das conseqüências do ato,
considera-os de um ponto de vista teórico específico, distinto do adotado pelo
conseqüencialismo. A questão é: que ponto de vista é esse? De que modo, exatamente, ele
se distingue do adotado pelos conseqüencialistas?
***
Antes de passar para um esboço dos marcos gerais do debate entre
conseqüencialismo e deontologismo não-rigorista, gostaria de explicar de que modo,
exatamente, a filosofia moral de Kant entra no presente trabalho. Embora eu dedique os
capítulos 2 e 3 à filosofia prática de Kant, vou me concentrar, apenas, naqueles elementos
da obra kantiana que tradicionalmente têm servido de alimento à concepção rigorista e à
tese de que, para diferençar-se do conseqüencialismo, o deontologismo precisa assumir um
caráter rigorista (total desconsideração pelas conseqüências do ato). Isso significa que
minha análise vai se ater, basicamente, à Fundamentação, e, na verdade, a alguns poucos
elementos dessa obra: os conceitos de imperativo categórico e de “agir por dever”, e a
fórmula da lei universal. Vou apontar os equívocos interpretativos que têm transformado
esses elementos em alimento da concepção rigorista do deontologismo. É claro que, para
apontar esses equívocos, vou tratar também de outras questões que a interpretação da
Fundamentação suscita: a questão das duas dimensões do imperativo categórico, a questão
das relações entre as diferentes fórmulas do imperativo categórico, a questão da “máxima”,
entre outras. Mas é importante enfatizar que vou me restringir, deliberadamente, à
Fundamentação e àqueles elementos da Fundamentação que têm se prestado à visão
rigorista do dever moral.

36
Rawls, J.: A Theory of Justice, p.30.
49

Para o debate entre deontologismo e conseqüencialismo, encarado, não do ponto de


vista de sua história, mas do ponto de vista de suas atuais possibilidades conceituais e
temáticas, - desse ponto de vista, esses são, a meu ver, os elementos da obra kantiana que
realmente interessam, uma vez que, desse ponto de vista, os elementos da obra kantiana que
vinculam-se à visão não-rigorista do deontologismo podem ser mais fecundamente
trabalhados a partir da obra de J. Rawls. No contexto do atual debate entre deontologismo e
conseqüencialismo, Rawls pode ser considerado a mais perfeita encarnação do kantismo
não-rigorista. E é por isso que a segunda parte do trabalho, constituída pelos capítulos 4 e 5,
vai estar dedicada, fundamentalmente, ao debate entre Rawls e os utilitaristas.

1.3.2) Os Elementos-chave do Procedimento do Contrato.

A segunda parte do presente trabalho (capítulos 4 e 5) trata, então, do debate entre


conseqüencialismo e deontologismo não-rigorista. Como afirmei acima, o melhor meio
para se esclarecer a natureza desse debate e das duas posições nele envolvidas consiste em
inseri-lo no contexto da discussão sobre o método ou procedimento contratualista, o qual,
do ponto de vista temático, pode ser apresentado como um desenvolvimento do
procedimento de universalização proposto inicialmente por Kant (na fórmula da Lei
Universal). Como afirmei acima, tentarei mostrar, na esteira de Scanlon e Harsanyi, que o
conseqüencialismo pode perfeitamente vincular-se ao procedimento contratualista, e que,
ao se vincular a ele, sua natureza e seus pontos fortes ficam até mais claros, devido ao
grande potencial elucidativo que o procedimento contratualista tem em relação à questão da
avaliação e justificação dos princípios normativos. Tentarei mostrar que o procedimento
contratualista pode resultar tanto numa teoria deontológica (não-rigorista) quanto numa
teoria conseqüencialista, e que seu resultado concreto depende da interpretação que se dá
aos seus elementos-chave. Em outras palavras, tentarei apresentar o debate entre
conseqüencialismo e deontologismo não-rigorista como um debate sobre a configuração
que se deve dar aos elementos-chave do procedimento contratualista.
Que elementos são esses? Para apresentá-los, gostaria de fazer uma breve e
resumida exposição do modo pelo qual, do ponto de vista temático, o procedimento
kantiano de universalização evolui para o procedimento contratualista. Na segunda parte do
50

trabalho, essa transição é introduzida em dois momentos: na primeira seção do capítulo 4


(intitulada “A Interpretação Não-formalística do Procedimento de Universalização”) e na
primeira seção do capítulo 5 (intitulada “A Transição do Procedimento de Universalização
para o do Contrato”).
Afirmei acima que a concepção rigorista tem encontrado apoio numa interpretação
equivocada da fórmula kantiana da lei universal. No capítulo 3, chamarei essa interpretação
de interpretação “formalística” do procedimento de universalização. A idéia básica dessa
interpretação é a seguinte. Considerando os princípios puramente formais da racionalidade
prática e do querer racional em geral, serão moralmente corretas as regras cuja
universalização não implicar incoerência ou contradição. De acordo com a interpretação
formalística, a montagem e o funcionamento do procedimento de universalização não
devem depender dos conteúdos da vontade do(s) indivíduo(s)-legislador(es), mas devem
basear-se, apenas, em princípios e condições formais, entre as quais avulta a condição da
coerência. E por que a interpretação formalística evita introduzir os conteúdos da vontade?
Para garantir a uniformidade dos resultados do procedimento. Com efeito, se o
procedimento depender dos conteúdos da vontade do indivíduo-legislador, qualquer
variação nesses conteúdos implicaria uma variação nos resultados do procedimento, o que o
anularia como teste da correção ou incorreção das regras práticas. Em outras palavras, o
partidário da interpretação formalística raciocina do seguinte modo: se o procedimento
depende dos conteúdos da vontade do indivíduo-legislador, o resultado do procedimento
depende das características pessoais do indivíduo que o aplica, o que anula o poder
justificatório do procedimento.
No capítulo 3, exporei as limitações e defeitos da interpretação formalística, e
argumentarei que ela deve ser abandonada. No início do capítulo 4, então, apresentarei a
interpretação alternativa, que chamarei de interpretação “não-formalística” do
procedimento de universalização. Para evitar os defeitos da interpretação formalística, a
interpretação não-formalística admite os conteúdos volitivos no ponto de partida do
procedimento. Isso por outro lado a obriga a uniformizar tais conteúdos, para evitar os
perigos destacados pelo partidário da interpretação formalística. Assim, ao assumir a
posição de indivíduo-legislador, o indivíduo se despoja da sua vontade distinta e particular
e assume uma vontade genérica e uniforme, definida, justamente, por conteúdos genéricos e
51

uniformes. É preciso então especificar que conteúdos são esses. Assim, para estruturar o
procedimento de universalização, a interpretação não-formalística precisa enfrentar, antes
de tudo, a seguinte questão: por quais conteúdos volitivos, exatamente, vai se orientar a
deliberação do(s) indivíduo(s) legislador(es)? Em outras palavras, que bens serão visados
por ele(s)? O que estou querendo dizer é o seguinte. Para estruturar o procedimento de
universalização, o partidário da interpretação não-formalística precisa, antes de tudo,
apresentar uma teoria sobre os bens pelos quais se orienta a deliberação do(s) indivíduo(s)
legislador(es) – ou, mais simplesmente, uma teoria do bem dos indivíduos legisladores.
Trata-se do primeiro elemento-chave do nosso procedimento de justificação – abordado,
justamente, no capítulo 4 do presente trabalho, intitulado “Os Bens do Indivíduo-
Legislador”.
No contexto de um procedimento orientado para a correção das regras de interação
numa sociedade pluralista, uma teoria sobre os bens pelos quais se orienta a deliberação do
legislador precisa ser, antes de tudo, justa – quer dizer, ela tem de ser neutra e imparcial em
relação às diferentes concepções de bem e felicidade que vicejam na sociedade que vai ser
regulada. Se a vontade do indivíduo-legislador revelar preferência ou parcialidade por uma
ou outra dessas concepções de bem e felicidade, em detrimento de outras, o procedimento
não poderá ser considerado justo. No âmbito da interpretação não-formalística, portanto, a
imparcialidade substitui a coerência como principal condição formal do procedimento. Para
que o procedimento seja justo, a vontade do indivíduo-legislador precisa ser neutra e
imparcial em relação às concepções de bem e felicidade das pessoas que serão afetadas pelo
procedimento, quer dizer, pelas regras de interação que vão resultar do procedimento. No
capítulo 4, veremos de que modo utilitaristas e deontólogos, respectivamente, respondem a
essa exigência de imparcialidade ou neutralidade.
Entretanto, para que o procedimento possa funcionar, não basta uma teoria sobre os
bens pelos quais se orienta a deliberação dos legisladores. Com efeito, ainda que essa teoria
restrinja o âmbito dos conflitos que devem ser considerados moralmente relevantes, o
procedimento precisa levar em consideração o fato de que ainda há (e haverá) conflitos em
relação aos bens que foram admitidos como politicamente relevantes: conflitos entre
liberdade e renda, por exemplo, e entre os indivíduos que, respectivamente, demandam
esses tipos de bens. É o “fato do conflito” que, definitivamente, transforma o procedimento
52

de universalização no procedimento do contrato. Com efeito, para ser justa, a resolução


desses conflitos deve, em princípio, poder ser aceita por todos os afetados. Isso significa,
precisamente, que os princípios que vão ser utilizados na resolução desses conflitos devem,
em princípio, ser objeto de um acordo fundamental entre os participantes da interação
social. O segundo elemento-chave do procedimento do contrato diz respeito à determinação
(e justificação) dos princípios que devem ser usados para a resolução dos conflitos acima
expostos. Qual o princípio justo da resolução desses conflitos? Mais precisamente: qual
“teoria da decisão” deve ser usada para determinar e justificar o princípio justo da resolução
desses conflitos? No capítulo 5, vou abordar esse segundo elemento-chave, intitulando-o,
precisamente, “Teoria da Decisão”. É aqui, justamente, que aparece a diferença
fundamental entre deontólogos e utilitaristas. O resultado do procedimento contratualista
varia, dependendo da teoria da decisão adotada: adotando-se uma teoria da decisão de
caráter utilitarista, tem-se um resultado utilitarista, quer dizer, chega-se a um princípio
utilitarista para a resolução dos conflitos fundamentais (o qual se expressa, grosso modo, na
fórmula “maximização da satisfação e bem-estar no conjunto da sociedade”); adotando-se
uma teoria da decisão de caráter deontológico, tem-se um resultado deontológico, quer
dizer, chega-se a um princípio deontológico para a resolução dos conflitos fundamentais (o
qual se expressa, grosso modo, nas fórmulas “prioridade das liberdades e direitos” e “maior
igualdade distributiva possível”).
Reintroduz-se aqui, portanto, o problema da variação nos resultados. O problema
pode agora ser exposto nos seguintes termos: qual das duas teorias da decisão é mais justa?
Ou, de forma mais abrangente, qual dos dois procedimentos é mais justo? O contratualismo
deontológico ou o contratualismo utilitarista? Para tratar dessa questão, só há um caminho:
adotar a tese de que o procedimento justo é aquele que conduz aos resultados justos (trata-
se da tese de que a justiça do procedimento depende da justiça dos resultados aos quais ele
conduz). Isso significa que uma certa intuição quanto aos resultados justos tem prioridade
em relação ao discernimento de um procedimento justo. Verifica-se aqui que o método do
contratualismo não cumpre o ideal de uma justiça procedimental pura, em que se pretende
discernir um procedimento intrinsecamente justo, independentemente de qualquer intuição
em relação a quais seriam os resultados justos. Coloca-se aqui uma última questão: se as
intuições quanto aos resultados justos são conflitantes, e se esses conflitos transferem-se
53

para a discussão quanto às condições da justiça do próprio procedimento, como encaminhar


esses conflitos? – lembrando que eles precisam ser encaminhados no quadro do pluralismo
dos projetos de vida e das concepções de felicidade. Trataremos dessas questões no último
capítulo de nosso trabalho – o capítulo 5, intitulado “Teorias da Decisão e Intuições do
Resultado Justo”.
54

Primeira Parte

Conseqüencialismo e Deontologismo Rigorista.


55

Capítulo 2.
O Conceito de Imperativo Categórico.

No capítulo 1, afirmei que a concepção imperativa da ética resume-se na tese de que


a todo sujeito impõem-se certas obrigações para com os outros, independentemente da
concepção de realização pessoal que cada um possa assumir, ou seja, independentemente
das inclinações, desejos e interesses oriundos (ou expressivos) das respectivas concepções
de realização pessoal. A validade objetiva dessas obrigações, quer dizer, sua exigibilidade,
não depende de nenhum desejo ou interesse que o sujeito possa ter; nesse sentido, trata-se
de obrigações incondicionadas. As ações eticamente recomendáveis são expressão desse
tipo de obrigação, ou seja, elas aparecem como incondicionalmente obrigatórias (exigíveis).
Afirmei também que a concepção imperativa da ética apresenta duas correntes, o
conseqüencialismo e o deontologismo, e que a diferença entre essas duas correntes diz
respeito ao critério pelo qual se especifica o conteúdo das ações obrigatórias. Para o
conseqüencialismo, o conteúdo das ações corretas é especificado, grosso modo, pelo
critério do “globalmente bom”: a ação incondicionalmente obrigatória é definida em termos
de maximização do bem (ou seja, da felicidade privada) no conjunto dos indivíduos
afetados. Para o conseqüencialista, em outras palavras, a determinação da ação moralmente
correta exige uma consideração pelas conseqüências das diversas ações possíveis, uma
consideração pautada pela preocupação de promover (ou maximizar) a felicidade no
conjunto dos atingidos. Já o deontologismo apresenta duas visões radicalmente distintas
sobre o critério pelo qual se definem as ações moralmente corretas. Na primeira visão, que
pode ser intitulada de visão rigorista, as ações moralmente corretas são definidas a partir de
uma consideração do ato tomado “em si mesmo”, quer dizer, independentemente das
conseqüências que, dependendo das circunstâncias, ele possa ter. Já na segunda visão, que
pode ser chamada de visão não-rigorista, a determinação das ações moralmente obrigatórias
exige uma consideração pelas circunstâncias e conseqüências, pautada, entretanto, por um
critério específico, distinto do da maximização da felicidade privada no conjunto dos
atingidos. (Investigaremos esse último critério nos capítulos 4 e 5).
Nos capítulos 2 e 3, como afirmei no capítulo 1, vou analisar a concepção rigorista
do deontologismo. Vou tentar mostrar que essa concepção se enraíza numa interpretação
56

equivocada de três elementos-chave da Fundamentação da Metafísica dos Costumes de I.


Kant: o conceito de imperativo categórico, a noção de “agir por dever” e a fórmula da lei
universal.
A meu ver, com efeito, o primeiro passo que precisa ser dado para uma avaliação
mais nuançada e precisa do deontologismo consiste numa investigação um pouco mais
detalhada dos conceitos kantianos de “agir por dever” e de imperativo categórico, assim
como das diversas fórmulas que Kant apresentou para o imperativo categórico. É essa
investigação que pretendo iniciar no presente capítulo, e completar no próximo. No
presente capítulo, minha análise vai se restringir a dois problemas: o problema de como se
deve entender o conceito de imperativo categórico e o problema da diversidade das
fórmulas que Kant apresentou para esse imperativo. No próximo capítulo (cap.3), minha
análise vai abordar duas outras questões, intimamente relacionadas a essas primeiras: a
questão de como se deve interpretar a noção kantiana de “agir por dever” e a questão de
como se deve entender e aplicar a fórmula da lei universal.
O presente capítulo possui dois objetivos básicos. Em primeiro lugar, dissolver
algumas confusões interpretativas que costumam acometer o conceito de imperativo
categórico, e que, ao acometê-lo, fazem com que ele tenha de ser visto como expressão de
uma concepção não apenas deontológica, mas, até mesmo, deontológico-rigorista. Ao se
dissolverem essas confusões, correspondentemente, o conceito de imperativo categórico
perde não apenas a coloração deontológico-rigorista, mas, até mesmo, a coloração
deontológica em geral. Ao se dissolverem essas confusões, em outras palavras, o conceito
de imperativo categórico revela-se como uma noção que é representativa da concepção
imperativa como um todo. O que eu estou querendo dizer é o seguinte: quando é
corretamente interpretado, o que o conceito de imperativo categórico expressa são
exigências que são típicas da concepção imperativa como um todo, quer dizer, exigências
que caracterizam ambas as correntes da concepção imperativa, o deontologismo e o
conseqüencialismo. O que diferencia o deontologismo do conseqüencialismo não é o
simples conceito de imperativo categórico, mas o critério conteudístico que se acrescenta a
esse conceito, - que na verdade precisa ser acrescentado a ele, para que ele possa servir
como guia da ação moralmente correta. E ao dizer que um critério conteudístico precisa ser
acrescentado a esse conceito, estou querendo dizer duas coisas. Em primeiro lugar, que o
57

referido critério não está “contido” nesse conceito; em segundo lugar, que a esse conceito
podem se acrescentar tanto um critério conteudístico deontológico quanto um critério
conteudístico conseqüencialista. Assim, ao ser corretamente interpretado, o conceito de
imperativo categórico revela-se como uma noção que, longe de se identificar com os
critérios conteudísticos propriamente deontológicos, é perfeitamente compatível com o
critério conteudístico conseqüencialista – a saber, o critério da maximização de
conseqüências grosso modo boas no conjunto dos indivíduos afetados.
O segundo objetivo do presente capítulo consiste numa depuração das fórmulas que
Kant apresentou para o seu imperativo categórico. É sabido que, apesar de ter apresentado
várias fórmulas para o imperativo categórico, Kant pretendeu serem elas equivalentes entre
si, representando meras variações de um mesmo critério fundamental. Tentarei mostrar que
essa pretensão não se sustenta, e que há diferenças fundamentais entre essas fórmulas; mais
precisamente, tentarei mostrar o papel diferenciado que elas desempenham na questão da
especificação do conteúdo das ações moralmente corretas. Tentarei mostrar que, das cinco
fórmulas que Kant chegou a apresentar, só as fórmulas da lei universal e do fim em si
mesmo interessam ao pesquisador dedicado ao debate entre deontologismo e
conseqüencialismo. Tentarei mostrar também que essa depuração das fórmulas e,
especialmente, o descarte da fórmula da autonomia, representam um complemento
indispensável ao esforço de dissolução das confusões interpretativas que acometem o
conceito de imperativo categórico.
58

2.1) As Duas Dimensões do Imperativo Categórico.

Para se ter clareza quanto às implicações do conceito de imperativo categórico para


a questão da determinação do critério conteudístico das ações moralmente corretas, é
preciso dissolver certas confusões interpretativas que acometem esse nosso conceito. Na
presente seção desse capítulo pretendo discutir a primeira dessas confusões. Trata-se do
embaralhamento das duas dimensões que o conceito apresenta. A primeira pode ser
chamada de dimensão prático-objetiva; nessa primeira dimensão, o conceito de imperativo
categórico indica as condições gerais que devem ser seguidas na determinação de qual é,
objetivamente, a ação moralmente correta. A segunda dimensão pode ser chamada de
dimensão psicológico-subjetiva; nessa segunda dimensão, o conceito indica a disposição
psicológica ou motivacional que confere pleno valor moral àquelas ações que, do ponto de
vista prático-objetivo, foram determinadas como moralmente corretas.
Nosso interesse no presente trabalho concentra-se na primeira dimensão. Com
efeito, ao dizer que o imperativo categórico expressa exigências que são típicas da
concepção imperativa como um todo, estou querendo dizer o seguinte: apesar de
deontologismo e conseqüencialismo apresentarem fórmulas distintas para especificar qual é
o conteúdo das ações moralmente corretas, tanto as fórmulas deontológicas quanto as
fórmulas conseqüencialistas devem seguir as condições gerais expressas no conceito de
imperativo categórico. Para se ter clareza quanto à natureza exata da diferença entre as
fórmulas deontológicas e as fórmulas conseqüencialistas, é preciso ter clareza quanto à
natureza exata das condições gerais que o imperativo categórico estabelece para a
determinação de qual é, objetivamente, a ação moralmente correta. Além disso, para se ter
clareza quanto à natureza exata das condições que o imperativo categórico estabelece para a
determinação do conteúdo objetivo das ações corretas, é preciso desfazer o
embaralhamento entre essas condições e, por outro lado, as condições que ele estabelece
para o ajuizamento do valor moral daquelas ações que, do ponto de vista prático-objetivo,
foram determinadas como moralmente corretas. O embaralhamento desses dois tipos de
condição sobrecarrega o problema dos critérios conteudísticos da ação correta com
questões psicológicas que, além de lhe serem externas, impõem-lhe um elemento de
incerteza que pode e deve ser evitado.
59

Além de prejudicar a apreensão dos termos gerais com que se apresenta, no âmbito
da concepção imperativa como um todo, o problema da determinação do conteúdo objetivo
da ação moralmente correta, o embaralhamento entre as condições prático-objetivas e as
condições psicológico-motivacionais também gera confusão na reflexão sobre as fórmulas
conteudísticas propriamente kantianas. Com efeito, para perceber as importantes diferenças
que existem entre as diversas fórmulas que Kant apresentou para o imperativo categórico,
quer dizer, para perceber o papel diferenciado que essas fórmulas desempenham na questão
da especificação do conteúdo das ações corretas, é preciso desfazer o embaralhamento entre
as duas dimensões do imperativo categórico. Ao embaralhamento dessas dimensões
corresponde um embaralhamento nas fórmulas conteudísticas propriamente kantianas. E o
trabalho de desembaralhamento vai nos permitir descartar algumas fórmulas, ou seja, tratá-
las como irrelevantes para o problema que nos interessa.

2.1.1) Imperativo Categórico e Imperativo Hipotético.

Para apresentar o embaralhamento das duas dimensões que o imperativo categórico


apresenta, comecemos pela distinção entre o imperativo categórico e o imperativo
hipotético, tal como exposta na Segunda Seção da Fundamentação da Metafísica dos
Costumes. Na p. 414 (edição da Academia), Kant apresenta a distinção nos seguintes
termos:
Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a
necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer
(ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma
ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. (...)
No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético;
se a ação é representada como boa em si, por conseguinte, como necessária em uma vontade em si
conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico.1

A tese de Kant nessa passagem parece poder ser esclarecida da seguinte maneira.
Em ambos os tipos de imperativo, uma ação é apresentada como boa, ou seja, como devida.
No caso do imperativo hipotético, porém, a razão só confere a marca de “devida” à ação na
medida em que reconhece nela um meio para alguma finalidade que se tem ou que é
possível que se tenha. A ação só é devida enquanto é meio para alguma finalidade. Já no

1
De um modo geral, sigo a tradução de Paulo Quintela, republicada no volume Kant da coleção Os
Pensadores, da Abril Cultural. Quando eu não seguir essa tradução, deixarei indicado.
60

caso do imperativo categórico, a marca de “devida” cabe à ação tomada em si mesma,


independentemente da relação com qualquer outra finalidade.
Embora corresponda à letra do texto kantiano, sendo adotado pelos comentadores
mais fiéis a Kant, como, por exemplo, H.J. Paton2, esse modo de caracterizar a distinção
parece-me apresentar algo de insatisfatório. A meu ver, o núcleo do problema reside no fato
de que, em muitos casos, é difícil dizer se uma determinada ação é meio para uma outra
finalidade, ou, ao contrário, se ela representa um caso particular de um tipo genérico de
ação, sem relação com qualquer outra finalidade. Pensemos, por exemplo, no caso de um
médico que reconhece que, para salvar a vida de uma pessoa, é necessário amputar-lhe uma
perna. Como caracterizar a ação de amputar a perna? Como meio para a finalidade de
salvar uma vida? Ou como mera particularização (contextualização) da ação genérica de
“salvar uma vida”? Parece perfeitamente possível afirmar que, nesse caso, a ação de
amputar a perna só é devida na medida em que é meio para uma outra finalidade, a de
salvar uma vida. Na verdade, parece muito mais natural apresentá-la como meio do que
como “fim em si mesma” – no sentido de mera particularização da ação genérica de salvar
uma vida. Com efeito, caso haja outra ação capaz de salvar a vida, a ação de amputar a
perna se torna estritamente má e indevida, o que indica que o modo mais natural de
apresentá-la como boa e devida consiste em caracterizá-la, não como mera particularização
da ação genérica de salvar uma vida, mas como meio para a finalidade de salvar uma vida.
Se adotarmos esse modo de caracterizá-la, será que isso transforma o imperativo
(dever) correspondente num imperativo meramente hipotético? A meu ver, a resposta é não.
Mais precisamente, a resposta deve ser a seguinte: uma vez que o objetivo de salvar uma
vida representa nesse caso uma finalidade que se pode e deve exigir do médico, uma
finalidade, em outras palavras, que ele está estritamente obrigado a assumir, e que ele não
tem o direito de rejeitar ou afastar, - atendendo a esse fato, a ação de amputar a perna, ainda
que só seja devida enquanto é meio, ganha o status de dever incondicionado, ou seja,
categórico. Em outras palavras, a ordem (da razão) “Para salvar a vida, ampute a perna”

2
Paton, H.J. The Categorical Imperative. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1971, p.114-115.
Dentre os comentadores que questionam a tese de que o imperativo categórico pode ser adequadamente
esclarecido com a ajuda, apenas, do esquema meio-fim, destacam-se Herman, Barbara: The Practice of Moral
Judgment e Korsgaard, Christine: Creating the Kingdom of Ends.
61

deve nesse caso ser tomada como expressão de um imperativo categórico, ainda que, por
outro lado, deva ser entendida como exemplificação do esquema meio-fim.
Se essas considerações forem procedentes, podemos concluir que o recurso ao
esquema meio-fim não é suficiente para caracterizar a distinção entre o imperativo
hipotético e o imperativo categórico. Precisamos de outros elementos para desenvolvê-lo e
completá-lo. A meu ver, alguns desses elementos podem ser encontrados na nota da p.413
da Fundamentação. O texto da nota é o seguinte:
Chama-se inclinação a dependência em que a faculdade de desejar está em face das sensações; a
inclinação prova sempre, portanto, uma necessidade. Chama-se interesse a dependência em que
uma vontade contingentemente determinável se encontra em face dos princípios da razão. Este
interesse só tem pois lugar numa vontade dependente que não é por si mesma em todo tempo
conforme à razão; na vontade divina não se pode conceber nenhum interesse. Mas a vontade
humana pode também tomar interesse por qualquer coisa sem por isso agir por interesse. O
primeiro significa o interesse prático na ação, o segundo o interesse patológico no objeto da ação.
O primeiro mostra apenas dependência da vontade em face dos princípios da razão em si mesmos,
o segundo em face dos princípios da razão em proveito da inclinação, pois aqui a razão dá apenas
a regra prática para socorrer a necessidade da inclinação. No primeiro caso interessa-me a ação, no
segundo o objeto da ação (enquanto ele me é agradável). Vimos na primeira seção que numa ação
praticada por dever se tem de atender não ao interesse no objeto, mas, sim, ao interesse apenas na
própria ação e no seu princípio racional (a lei).3

Nessa nota, Kant apresenta a distinção entre interesse “prático” e interesse


“patológico”. É verdade que, também aqui, manifesta-se o supracitado problema da relação
meio-fim e do modo como essa relação deve ser aplicada em determinados casos. Num
primeiro momento, com efeito, Kant caracteriza o interesse prático como interesse na ação,
e o interesse patológico como interesse no objeto da ação; – ora, levando-se em conta a
terminologia kantiana, “interesse no objeto da ação” deve ser entendido como interesse na
finalidade que se espera alcançar com a ação. Ora, que tipo de interesse se deve atribuir ao
médico que reconhece que a ação de amputar a perna é devida? Interesse na própria ação de
amputar a perna, tomada como ação que particulariza e realiza a ação genérica de “salvar
uma vida”? Tratar-se-ia então de interesse prático? Ou ele deve ser caracterizado como
interesse na finalidade (resultado, conseqüência) de salvar uma vida? Tratar-se-ia então de
interesse patológico?
Num segundo momento, porém, Kant nos fornece uma preciosa pista para
respondermos a essa pergunta: enquanto o interesse prático expressa a dependência da

3
Na última frase, a tradução de Paulo Quintela pareceu-nos desnecessariamente ambígua, e recorremos à
tradução de Victor Delbos (Paris, Delagrave, 1971).
62

vontade finita (ou seja, da vontade que é contingentemente determinável pela razão) em
relação aos princípios da razão tomados em si mesmos, sem conexão com qualquer
sentimento de agrado, o interesse patológico expressa a dependência dessa vontade em
relação a princípios da razão orientados para as inclinações da sensibilidade. Assim, no
caso do interesse patológico, eu só tenho interesse no resultado (fim) da ação na medida em
que a possibilidade de alcançar esse resultado corresponde às minhas inclinações, ou seja,
me agrada.
Ora, para Kant, as inclinações da sensibilidade caracterizam-se por dois elementos
interligados. Em primeiro lugar, a variabilidade: o que agrada a um sujeito não agrada a
outro sujeito; o que agrada a um sujeito num determinado momento deixa de agradá-lo em
outro momento. Em segundo lugar, o fato de que essa variabilidade representa algo de lícito
ou permitido: o sujeito tem o direito de rejeitar aquilo que agrada a um outro sujeito; um
sujeito tem o direito de afirmar que aquilo que o agradava há algum tempo agora já não o
agrada mais, e que agora é uma outra coisa que o agrada. Em outras palavras, não faz
sentido exigir do sujeito que tenha uma sensação de agrado com este ou aquele objeto.
Juntemos agora as duas seguintes teses. Em primeiro lugar, a tese de que, no caso
do interesse patológico, eu só tenho interesse no resultado da ação na medida em que a
possibilidade de alcançar esse resultado me agrada; em segundo lugar, a tese de que eu
tenho o direito de trocar os objetos do meu agrado. A conjunção dessas duas teses resulta
numa terceira: no caso do interesse patológico, eu tenho direito de rejeitar ou afastar um
interesse que eu antes tinha, ou seja, eu tenho direito de afirmar que um certo resultado
(fim) já não me interessa mais. No caso do interesse patológico, em outras palavras, não faz
sentido exigir do sujeito que tenha interesse nessa ou naquela finalidade. O caso do
interesse prático é distinto: uma vez que ele expressa a dependência da vontade finita em
relação aos princípios da razão tomados em si mesmos, sem vínculo com as inclinações da
sensibilidade, faz sentido exigir do sujeito que tome interesse numa determinada ação. Em
outras palavras, no caso do interesse prático, não se concede ao sujeito o direito de pura e
simplesmente rejeitar o interesse nas ações que a razão indica como devidas.
Gostaria agora de retornar à questão posta mais acima: que tipo de interesse se deve
atribuir ao médico que reconhece que a ação de amputar a perna é devida? Interesse na
própria ação de amputar a perna, tomada como ação que particulariza e realiza a ação
63

genérica de “salvar uma vida”? Ou interesse na finalidade de salvar uma vida? O problema
consiste, como vimos anteriormente, no fato de que, nesse caso, é difícil dizer se a ação de
amputar a perna deve ser descrita como “meio para o fim de salvar uma vida”, ou como
“particularização (contextualização) da ação genérica de salvar uma vida”. Admitamos, a
partir do que foi dito acima, que ela deva ser descrita como meio para o fim de salvar uma
vida. Admitamos, em seqüência, que o interesse do médico deva ser descrito, não como
interesse na própria ação de amputar a perna (sem relação com uma outra finalidade), mas,
sim, como interesse na finalidade de salvar uma vida. Será que isso implica que se trata de
interesse meramente patológico? Mais uma vez, a resposta me parece ser “não”, na medida
em que se pode exigir do médico que tome interesse no resultado de salvar uma vida, ainda
que, devido a um estado de mórbida insensibilidade, ele não sinta nenhum agrado com a
possibilidade de alcançar esse resultado. Ora, se faz sentido exigir do médico que,
independentemente da relação com qualquer sentimento de agrado, tome interesse no
resultado de salvar uma vida, então, ainda que esse interesse deva ser descrito, não como
interesse na própria ação, e sim como interesse no resultado da ação, - ainda assim trata-se
de interesse prático, e não patológico.
Gostaria agora de retornar à caracterização da distinção entre o imperativo
hipotético e o imperativo categórico. É razoável começar com a seguinte tese: enquanto o
imperativo categórico expressa um dever incondicionado, o hipotético expressa um dever
condicionado. Condicionado a que, exatamente? Ao interesse patológico num certo
resultado. Ora, se o que caracteriza o dever expresso no imperativo hipotético é o fato de
ele ser condicionado ao interesse patológico num certo resultado, e se o que caracteriza o
interesse patológico é o fato de que se concede ao sujeito o direito de rejeitá-lo ou afastá-lo
(pô-lo momentaneamente de lado), então a característica essencial do dever expresso no
imperativo hipotético reside no fato de que se concede ao sujeito o direito de
(momentaneamente) se libertar ou eximir dele; em outras palavras, concede-se ao sujeito o
direito de afirmar “eu (agora) não reconheço esse dever”, “eu não reconheço (mais) que
devo agir dessa maneira”.4

4
Embora eu não vá desenvolver o ponto, gostaria de afirmar o seguinte: do ponto de vista da exigibilidade,
que é a marca da moralidade na concepção imperativa, os deveres ligados ao fim da felicidade são tão
“afastáveis” quanto os imperativos hipotéticos propriamente ditos. Com efeito, ainda que, por uma questão de
definição, se possa dizer que todo ser humano (necessariamente) tem interesse na felicidade, o objeto desse
interesse fica indeterminado, enquanto não se especificar o que é a felicidade. E, no contexto do pluralismo
64

E por que, exatamente, o dever expresso no imperativo categórico é


incondicionado? Como já foi sugerido, não é pelo fato de ele escapar ao esquema meio-fim.
Para um médico, a ordem (da razão) “Ampute a perna desse homem, para salvar a sua
vida”, ainda que possa e até deva ser vista como exemplificação do esquema meio-fim,
representa um caso de imperativo categórico; em outras palavras, o dever de amputar a
perna, ainda que possa e até deva ser visto como simples meio para uma outra finalidade,
representa nesse caso um dever incondicionado. O que lhe confere caráter incondicionado é
o fato de que, ainda que ele seja visto como simples meio para o resultado de salvar uma
vida, se pode exigir do sujeito que tome interesse nesse resultado, independentemente de
qualquer relação com os variáveis sentimentos de agrado; em outras palavras, o que lhe
confere caráter incondicionado é o fato de que não se concede ao sujeito o direito de rejeitar
ou afastar (pôr momentaneamente de lado) o interesse no resultado para o qual ele é meio.
Ora, se você está estritamente obrigado a tomar interesse nesse resultado, você está
estritamente obrigado a tomar interesse na ação que é meio para esse resultado; em outras
palavras, a ação lhe é imposta como estritamente obrigatória, independentemente de
qualquer vínculo com os variáveis sentimentos de agrado. Não se concede ao sujeito o
direito de eximir-se do dever de praticar a ação.

2.1.2) Determinação da Ação Correta e Motivação para a Ação Correta.

Para apresentar o embaralhamento das duas dimensões que o imperativo categórico


apresenta, gostaria agora de explorar certas implicações da distinção entre o imperativo
categórico e o imperativo hipotético, tal como acaba de ser apresentada. A partir do que foi
dito acima, podemos destacar uma característica importante do imperativo hipotético, que

moderno, não faz sentido exigir do sujeito que adote essa ou aquela especificação da felicidade. A questão da
felicidade fica circunscrita à esfera das “razões” privadas ou subjetivas, quer dizer, ela é excluída da esfera da
racionalidade (ou razoabilidade) prática objetiva. Assim, ainda que, por uma questão de prudência, se possa
dizer que quem tem interesse na felicidade deve(ria) ter interesse na saúde, - ainda assim, não faz sentido
exigir do sujeito que sempre tenha interesse na saúde, apesar dos apelos do prazer imediato, por exemplo; não
faz sentido exigir do sujeito que conceba felicidade em termos de saúde, e não, por exemplo, em termos de
prazer imediato e brutal. Do ponto de vista da exigibilidade, o interesse na saúde é tão “patológico” quanto o
interesse nos resultados brutalmente prazerosos. Do ponto de vista da moralidade imperativa (moderna),
ninguém pode dizer que a vida dedicada à saúde é eticamente superior à vida dedicada aos prazeres brutais –
desde que os prazeres brutais não envolvam desrespeito ao outro. Aqui se manifesta de forma muito clara a
diferença entre as concepções atrativa e imperativa; mais precisamente, manifesta-se de forma clara o quanto
a separação entre o prudencial e o moral distancia a concepção imperativa da concepção atrativa.
65

não é compartilhada pelo imperativo categórico. Que característica é essa? Trata-se do fato
de que, no caso do imperativo hipotético, há uma espécie de harmonia natural entre as
respostas que se apresentam a duas questões distintas, que são, primeiro, a questão da
determinação de qual é a ação objetivamente devida, e, segundo, a questão da motivação
subjetiva para praticar a ação que se determinou como objetivamente devida (ao estabelecer
essa última distinção, sigo as sugestões que Tugendhat apresenta em seu livro Vorlesungen
über Ethik).5 Com efeito, no caso do imperativo hipotético, para determinar qual é a ação
objetivamente devida, toma-se como ponto de partida o interesse patológico num certo
resultado - por exemplo, para determinar qual é a ação objetivamente devida, se pegar um
táxi ou ir de ônibus, toma-se como ponto de partida o interesse patológico em chegar no
centro da cidade em vinte minutos. Tomando-se esse interesse como ponto de partida,
determina-se que a ação objetivamente devida é, nesse caso, a ação de pegar um táxi. Ora,
acabamos de ver que o interesse patológico é expressão de um sentimento de agrado com a
possibilidade de alcançar o resultado em questão. Considerando agora que o sentimento de
agrado é um elemento naturalmente dotado de força motivacional, podemos concluir que o
interesse patológico, além de servir como princípio de determinação da ação objetivamente
devida, constitui também, natural e automaticamente, o fundamento motivacional subjetivo
para se praticar a ação que foi determinada como objetivamente devida (no exemplo citado,
pegar um táxi, em vez de ir de ônibus). Em outras palavras, há nesse caso uma passagem
natural e automática entre o princípio de determinação da ação objetivamente devida e o
fundamento motivacional subjetivo para praticar a ação objetivamente devida; ao se
determinar qual é a ação objetivamente devida, o problema da motivação subjetiva para
praticá-la já está natural e automaticamente respondido, ou, pelo menos, encaminhado.
À diferença do imperativo hipotético, o imperativo categórico expressa um dever
objetivamente incondicionado, ou seja, um dever que não está condicionado ao interesse
patológico num certo resultado. A ação é incondicionalmente devida. Na verdade, vimos
que o caráter incondicionalmente devido da ação pode manifestar-se de duas maneiras: ou
ela é incondicionalmente devida em si mesma, independentemente da relação com qualquer
outra finalidade, ou ela é incondicionalmente devida como meio para uma finalidade que
incondicionalmente se exige que o sujeito assuma. Em ambos os casos, porém, o caráter
5
Tugendhat, E: Vorlesungen über Ethik. Frankfurt: Suhrkamp, 1993. Há edição brasileira. Lições sobre Ética.
Petrópolis: Vozes, 1996. Ver especialmente a “Primeira Lição”.
66

devido da ação é totalmente independente de um interesse que o sujeito tenha o direito de


afastar ou pôr de lado, e é nesse sentido que se diz, em ambos os casos, que a ação é
incondicionalmente devida. Uma vez que sua validade objetiva não depende de nenhum
interesse que o sujeito tenha o direito de afastar, trata-se de um dever do qual esse sujeito
não pode libertar-se.
No caso do imperativo categórico, portanto, para determinar qual é a ação (ou
finalidade) objetivamente devida, começa-se excluindo todo interesse patológico por
possíveis resultados ou conseqüências. Em outras palavras, para determinar qual é a ação
ou finalidade objetivamente devida, toma-se como ponto de partida a noção de uma
obrigação pura. Antes de entrar no ponto que mais me interessa nesse momento, gostaria de
fazer a seguinte observação, que será posteriormente retomada e desenvolvida. Num
primeiro momento, ao ser tomada como princípio de determinação da ação ou finalidade
objetivamente devida, a noção de obrigação pura ainda é conteudisticamente
indeterminada, ou seja, ela ainda não diz (nem indica) qual é, exatamente, a ação ou
finalidade sobre a qual ela incide. É por isso que ela exige ser complementada por um
critério conteudístico mais bem determinado, ou seja, um critério que especifique,
justamente, que tipo de ação ou finalidade o sujeito está estritamente obrigado a cumprir.
Conforme tentarei mostrar mais à frente (especialmente nos capítulos 4 e 5), ela pode
perfeitamente incidir, por exemplo, sobre a finalidade de maximizar resultados grosso
modo bons no conjunto da sociedade. Nesse caso, dizer que a noção de obrigação pura
incide sobre essa finalidade equivale a dizer duas coisas. Em primeiro lugar, equivale a
dizer que, partindo-se da noção de obrigação pura, o modo mais racional (razoável) de
especificar essa noção consiste em entendê-la como obrigação de maximizar bons
resultados no conjunto da sociedade. Em segundo lugar, equivale a dizer que o sujeito está
obrigado a assumir e seguir essa finalidade, independentemente dos variáveis sentimentos
que ele possa experimentar diante da possibilidade de maximizar bons resultados no
conjunto da sociedade; em outras palavras, equivale a dizer que ele não tem o direito de pôr
essa finalidade de lado, em virtude do fato de não sentir (ou não estar sentindo) nenhum
agrado com a possibilidade de alcançar tais resultados. Nesse caso, o conteúdo do
imperativo categórico se expressaria mais ou menos do seguinte modo: “Aja sempre de
modo a produzir o máximo de felicidade (privada) no conjunto da sociedade”.
67

Gostaria agora de introduzir o ponto que mais me interessa nesse momento da


minha argumentação. No âmbito do imperativo categórico, para determinar qual é a ação
objetivamente devida, começa-se excluindo todo interesse patológico pelos eventuais
resultados das diferentes ações possíveis. Por exemplo, para determinar qual é a ação
objetivamente devida, se mentir ou contar a verdade a uma determinada pessoa, começa-se
excluindo todo interesse patológico pelas eventuais conseqüências de uma ou outra dessas
ações; toma-se como ponto de partida a noção de uma obrigação pura, com caráter de lei.
(É interessante destacar que a determinação da ação objetivamente devida pode exigir, além
de uma fórmula que dê conteúdo à noção de obrigação pura, algum tipo de aplicação do
raciocínio meio-fim. Mas isso não compromete o caráter incondicionalmente devido da
ação). Gostaria de colocar agora a seguinte questão: supondo-se que, provida das devidas
fórmulas explicativas, a noção de uma obrigação pura possa servir como princípio de
determinação da ação objetivamente devida – por exemplo, contar a verdade, em vez de
mentir -, supondo-se isso, até que ponto essa noção pode servir também como fundamento
motivacional subjetivo para se praticar a referida ação? A pergunta poderia ainda ser
colocada nos seguintes termos: até que ponto a noção de obrigação pura pode servir
também como fundamento motivacional para se assumir e perseguir uma finalidade diante
da qual (já) não se experimenta nenhum sentimento de agrado?
A resposta kantiana só poderia ser a seguinte: quer incida sobre uma ação tomada
em si mesma, quer incida sobre uma finalidade, a noção de obrigação pura não só pode
como deve servir de móbil último; o imperativo categórico consiste, justamente, no dever
de agir com esse móbil, quer dizer, movido apenas pela consciência do caráter estritamente
obrigatório da ação, ou da finalidade para a qual a ação é meio.
Entretanto, gostaria de defender a seguinte tese: nesse ponto, é importante distinguir
e separar duas dimensões do imperativo categórico. Numa primeira dimensão, o imperativo
categórico consiste apenas no dever de praticar “tal” ação, ou seja, a ação com tais e tais
características objetivas; nessa primeira dimensão, o imperativo categórico consiste apenas
no dever, por exemplo, de contar a verdade, em oposição a mentir. É só numa segunda
dimensão que o imperativo categórico consiste não só no dever de praticar essa ação, mas
no dever de praticá-la de um certo modo, ou seja, com uma certa disposição interior ou
psicológica, a saber, movido apenas pela consciência do caráter estritamente obrigatório da
68

ação, ou da finalidade para a qual a ação é meio. Em outras palavras, é só nessa segunda
dimensão que o imperativo categórico consiste no dever não apenas de contar a verdade,
mas de fazê-lo apenas “por dever” (quer o dever incida sobre a ação tomada em si mesma,
quer incida sobre a finalidade para a qual a ação é meio).
Nessa segunda dimensão, o móbil do dever se contrapõe a outros móbiles que
muitas vezes vêm se apresentar e imiscuir, como, por exemplo, o desejo de reconhecimento
social, ou a satisfação de um Eu que gosta de se vangloriar com o próprio rigor. Aliás,
como veremos logo a seguir, uma das principais teses da filosofia moral kantiana é,
justamente, a de que o homem, como sujeito racional finito, nunca pode arrogar-se perfeita
clareza e segurança quanto à natureza exata do móbil último de suas ações. Isso significa
que, tomado em sua segunda dimensão, o imperativo categórico representa um ideal – um
estado de pureza motivacional de que o homem deve tentar sempre se aproximar, mas que
ele nunca pode estar certo de ter alcançado. Entretanto, essa incerteza quanto aos móbiles
não chega a afetar a determinação de qual ação se deve objetivamente praticar, pois a
determinação de qual ação se deve praticar não depende de um discernimento preciso
quanto ao móbil: pode haver diferentes móbiles (muitas vezes se interpenetrando) para
praticar aquela ação que foi reconhecida como objetivamente devida (ou para adotar a
finalidade para a qual essa ação é meio), e pode-se saber com perfeita clareza qual é a ação
objetivamente devida sem se ter muita clareza acerca do móbil capaz de, em última
instância, levar à realização dessa ação (ou à adoção da finalidade para a qual essa ação é
meio).
Em vez de afetar a questão de qual é a ação objetivamente devida, o discernimento
quanto ao móbil afeta uma outra questão, a saber, a questão do valor moral das ações que o
sujeito pratica. A natureza do móbil determina o valor moral das ações que o sujeito
pratica. Para Kant, só tem pleno valor moral aquela ação que é praticada apenas “por
dever” (e, como estou tentando mostrar, Kant deveria admitir o seguinte adendo: o móbil
do dever pode incidir quer sobre a ação tomada em si mesma, quer sobre a finalidade para a
qual a ação é meio). A intromissão de outros móbiles diminui o valor moral da ação que se
pratica. Por outro lado, como o homem nunca pode arrogar-se perfeita clareza e segurança
quanto à natureza exata do móbil último de suas ações, ele tampouco pode arrogar-se
clareza e segurança quanto ao valor moral das ações que pratica.
69

Assim, a meu ver, a noção de imperativo categórico possui, antes de tudo, uma
dimensão prático-objetiva: desse ponto de vista, trata-se de um dever que se exige
igualmente de todos, independentemente dos interesses patológicos particulares de cada
um; em outras palavras, trata-se de um dever do qual ninguém pode eximir-se, sob a
alegação de que não assume este ou aquele interesse correspondente. Entretanto, desse
primeiro ponto de vista, não importa a motivação que o sujeito possa vir a encontrar para
seguir esse dever, nem o maior ou menor valor moral que tal motivação confere à sua ação;
o que importa aqui é a conformidade externa a tal dever, ou seja, a mera correção da ação.
É importante destacar que, ao contrário do que possa parecer, isso não transforma o
imperativo correspondente num imperativo hipotético, pois o que caracteriza este último é
o fato de que ele só vale para o sujeito que assume um interesse patológico correspondente.
Uma coisa é dizer: porque (na medida em que) você tem esse interesse (patológico), você
tem esse dever – o que significa que, se você rejeitar ou afastar o interesse, como você tem
direito, você se liberta do dever, e tem o direito de fazê-lo. Essa é a marca do imperativo
hipotético. Outra coisa é dizer, no caso do imperativo categórico: você tem tal dever,
independentemente dos seus interesses patológicos – o que significa, em primeiro lugar,
que você não pode se libertar dele (não tem o direito de se eximir dele), e, em segundo
lugar, que você agora precisa encontrar uma motivação para conformar-se a ele. Segundo
Kant, para você encontrar essa motivação, você em princípio não precisa nem deve recorrer
a nenhum elemento de natureza sensível, pois para você, como sujeito racional, a pura
consciência do dever é não apenas suficiente, mas, sobretudo, valiosa – só tem pleno valor
moral aquela ação que é praticada apenas “por dever”. Mas, ainda que sua ação não tenha
pleno valor moral, pelo fato de algum elemento de natureza sensível ter se imiscuído no
fundamento motivacional que você encontrou para praticá-la, ela pode perfeitamente
conformar-se a um imperativo que, por ser incondicionalmente exigido de todos, já é
objetivamente categórico.
Uma das causas do embaralhamento dessas dimensões reside no fato de que, para
ser incondicionalmente exigível do sujeito, o dever “categórico” tem de poder ser aceito
pelo “mesmo” sujeito – mas é só num certo sentido que se pode falar aqui de um mesmo
sujeito, uma vez que, aqui, é preciso introduzir uma distinção essencial entre duas
dimensões do sujeito moral. Quem aceita a regra como correta, ou, pelo menos, quem pode
70

e deve aceitá-la como correta, é o sujeito como sujeito-legislador, ou seja, o sujeito em que
interesses patológicos, tensões motivacionais e fraquezas psicológicas foram postos em
suspenso. Chamemo-lo de “sujeito racional” (ou “razoável”). Por outro lado, quem deve
sempre seguir a regra, e quem deve esforçar-se por cumpri-la apenas “por respeito à lei”, é
o sujeito patologicamente interessado, que se caracteriza, justamente, por tensões
motivacionais e fraquezas e/ou automatismos psicológicos. Chamemo-lo de “sujeito
empírico”. 6 O sujeito racional avalia as razões da (para a) aceitabilidade da regra; já o
sujeito empírico procura motivos para seguir a regra nas diferentes situações – e motivos
moralmente louváveis. Ora, dizer que o sujeito racional é o sujeito em que interesses
patológicos e tensões motivacionais foram postos em suspenso equivale a dizer, mais
precisamente, que seu raciocínio e avaliação não chegam a ser afetados por fatores (e
incertezas) motivacionais. É por isso que as razões que o sujeito racional reconhece nem
sempre representam motivos para o sujeito empírico. Ao avaliar a aceitabilidade das regras
práticas, o sujeito racional coloca-se no plano de uma racionalidade depurada das tensões
motivacionais e automatismos psicológicos típicos do sujeito empírico. O sujeito racional é
“menos finito” do que o sujeito empírico.
Tenho enfatizado que a marca da moralidade imperativa é a exigibilidade das
regras. É claro que, por um lado, isso não deve nos fazer esquecer que a exigibilidade tem
por contrapartida a aceitabilidade – para ser incondicionalmente exigível, a regra tem de ser
aceitável, quer dizer, tem de poder ser reconhecida como correta e justa pelo próprio sujeito
de quem ela vai ser exigida. A fonte da exigibilidade das regras não reside numa autoridade
“externa” ao próprio sujeito (como um Deus onipotente, por exemplo). Por outro lado,
porém, embora a regra tenha de poder ser reconhecida como correta e justa pelo próprio
sujeito que vai ficar submetido a ela, quem a reconhece como correta e justa é o sujeito
como sujeito racional, e não o sujeito como sujeito empírico. É dessa brecha, justamente,
que se origina o problema da motivação na moralidade imperativa. Tal problema, com
efeito, só se coloca para o sujeito como sujeito empírico. É ele que tem de seguir a regra; é
ele que muitas vezes não encontra suficiente motivação para segui-la. Idealmente, o
reconhecimento de que a regra é correta e justa deveria funcionar também como motivo
suficiente para o sujeito empírico – é nesse caso, justamente, que a conduta do sujeito
6
É óbvio que essa distinção envolve a discussão sobre o conceito de liberdade; entretanto, tendo em vista os
limites do presente trabalho, não entrarei nessa discussão aqui.
71

empírico tem maior valor moral. Mas é claro que isso nem sempre acontece; o sujeito como
sujeito empírico muitas vezes não encontra motivos suficientemente fortes para seguir a
regra. (Como foi dito acima, as razões para o sujeito racional nem sempre representam
motivos suficientemente fortes para o sujeito empírico.) Mas o fato de ele não encontrar tal
motivação não significa que a regra não deva ser aceita por ele – como sujeito racional, ou
razoável. E a condição da validade e exigibilidade da regra consiste, justamente, na
aceitabilidade para o sujeito racional, e não na motivação para o sujeito empírico.7
Em conexão com o argumento que acaba de ser exposto, podemos apresentar o
seguinte argumento. A conveniência de se efetuar uma separação entre essas duas
dimensões do imperativo categórico está ligada à conveniência de separar as questões a que
cada uma dessas dimensões respectivamente se refere: por um lado, a questão da
determinação da ação objetivamente correta e devida; por outro lado, a questão do
discernimento do móbil último da ação praticada, e, principalmente, do ajuizamento do
valor moral que tal móbil confere a ela. A primeira questão se coloca na esfera do sujeito
como sujeito racional; já as outras duas se colocam na esfera do sujeito como sujeito
empírico – nesse caso, o conceito do imperativo categórico expressa uma (interminável)
tarefa do sujeito empírico. Por que me parece importante separar essas questões? Pela
seguinte razão: as questões do móbil e do valor moral estão permeadas de incertezas de
caráter eminentemente psicológico, as quais, por serem externas ao foco prático-objetivo da
questão da determinação de qual é a ação incondicionalmente devida, representam um fator
de imprecisão que não precisa nem deve ser introduzido nessa última questão. Para que a
filosofia prática de Kant seja plausível, eu tenho de poder ter certeza a respeito de “qual” é
a ação objetivamente devida, mesmo que eu não possa arrogar-me certeza quanto à pureza
motivacional que, como ideal, norteia meus esforços para ser um homem moralmente bom.

7
Segundo essa interpretação, as normas do Direito podem perfeitamente ser vistas como expressões do
imperativo categórico, ainda que estejam acompanhadas da ameaça de punição em caso de transgressão. Com
efeito, no campo do Direito Racional, nem a ameaça de punição nem a efetividade dessa ameaça representam
condições da validade (exigibilidade) das normas; as normas continuam válidas (exigíveis) mesmo para o
sujeito que, como sujeito empírico, diz não temer a eventual punição (e tem bons motivos para isso). A
condição da validade (exigibilidade) da norma reside no fato de que ela pode e deve ser reconhecida como
justa – mas pelo sujeito como sujeito racional. Pelo fato de, em certos casos, lhe ser concedida a tese de que
ele tem bons motivos para não temer uma eventual punição, não se concede ao sujeito empírico o direito de
eximir-se do cumprimento das normas – uma vez que elas são perfeitamente aceitáveis pelo sujeito como
sujeito racional. Em vez de ser condição da validade (exigibilidade) das normas, a ameaça de punição
representa simplesmente um reforço da motivação que o sujeito – como sujeito empírico – pode vir a
encontrar para conformar-se a elas.
72

Em outras palavras, para que a filosofia prática kantiana seja plausível, a incerteza que
inevitavelmente afeta o discernimento do móbil último das ações não deve afetar a
determinação de qual é a ação objetivamente devida – e para ela não afetar esse último
juízo, é preciso separar as duas dimensões do imperativo categórico.
***
Ainda que meu interesse no presente trabalho não incida sobre as teses que Kant
desenvolve acerca da psicologia e valor da ação moral,8 gostaria de fazer um brevíssimo
comentário sobre esse assunto, com o intuito apenas de ilustrar o elemento de imprecisão e
incerteza que afeta o discernimento do móbil e do valor moral das ações. Gostaria de
começar meu comentário com algumas observações a respeito da insuficiência e imprecisão
da teoria da motivação que Kant apresenta na “Primeira Seção” da Fundamentação. Como
é sabido, Kant distingue aí três tipos de móbil9: intenção egoísta, inclinação imediata e
dever. Consideremos em primeiro lugar a diferença entre intenção egoísta e inclinação
imediata. Kant ilustra essa diferença mediante dois exemplos extremos. Como exemplo de
ação praticada com intenção egoísta, ele apresenta o comportamento do comerciante que
serve honestamente mesmo a uma criança ingênua e inexperiente, mas que, ao fazê-lo, está
de olho apenas na utilidade desse comportamento para seus propósitos estritamente
egoísticos, sem experimentar nenhum apreço direto pela referida criança. Como exemplo
de ação praticada com inclinação imediata, ele apresenta o comportamento do indivíduo
cuja alma é tão disposta à simpatia que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou
interesse pessoal, experimenta prazer em espalhar alegria à sua volta, e consegue se alegrar
com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua.
Tomada a partir desses exemplos extremos, a distinção apresenta características
bem marcadas, e é fácil de ser aplicada. No caso da ação praticada com intenção egoísta, a
ação é vista apenas como meio, e o fim para o qual ela é meio lhe é completamente externo,
na medida em que, enquanto a ação (o meio) representa consideração pelos outros, o fim,
ao contrário, consiste em preocupação estritamente egoística. Já no caso da ação praticada
por inclinação imediata, a ação é boa em si mesma, ela agrada por si mesma, em virtude de
apoiar-se em uma disposição afetiva imediatamente favorável ao tipo de ação de que ela é

8
Para uma exposição abrangente desse assunto, ver a Parte II do livro Kant’s Theory of Freedom, de Henry
Allison. Cambridge, Cambridge University Press, 1990.
9
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, páginas 397-399 (edição da Academia).
73

exemplo. Nesse último caso, mesmo que a ação venha a ser encaixada no esquema meio-
fim, há uma relação de complementaridade e inteireza entre meio e fim, na medida em que
ambos correspondem a uma mesma disposição afetiva, e uma disposição que é não-
egoística. Por exemplo, mesmo que a ação de fazer uma doação a uma determinada pessoa
seja tomada como meio para o fim de fazer essa pessoa feliz, há uma relação de
complementaridade e inteireza entre meio e fim, na medida em que ambos expressam uma
mesma disposição afetiva. É justamente por isso que essa ação (fazer a doação) também
pode ser tomada como particularização da ação genérica de “promover a felicidade dessa
pessoa”. Por outro lado, mesmo que a ação seja tomada como meio para um fim, pode-se
dizer que ela é boa (agradável) “em si mesma”, pelo fato de haver uma relação de
complementaridade e inteireza entre meio e fim.
Entretanto, há muitos casos intermediários, nos quais a distinção se torna nebulosa e
imprecisa, difícil de ser aplicada. Trata-se de casos em que o móbil da ação oscila entre
dois pólos motivacionais intimamente associados: o impulso de agradar os outros e o desejo
de ser estimado pelos outros. Poder-se-ia fazer a tentativa de colocar a questão em termos
inequívocos: ou bem o móbil último é o impulso de agradar os outros, tomado como
expressão de uma disposição afetiva altruísta, ou bem o móbil último é o desejo de ser
estimado pelos outros, tomado como expressão de uma disposição afetiva egoísta. Mas há
inúmeros casos em que a questão simplesmente não pode ser colocada nesses termos: o
móbil último oscila permanentemente entre esses dois pólos. Mais ainda, os pólos se
embaralham, um se transmuta no outro: o impulso de agradar os outros vira desejo de ser
estimado pelos outros, e o desejo de ser estimado pelos outros vira impulso de agradar os
outros; não é mais possível dizer, inequivocamente, se o móbil é egoísta ou altruísta. Não é
mais possível responder inequivocamente à questão sobre os termos em que a ação deve ser
descrita. Por exemplo, em que termos deve ser descrita a ação de fazer uma doação a uma
pessoa? Será que ela deve ser descrita como meio para o fim (altruísta) de promover a
alegria dessa pessoa? Ou como meio para o fim (egoísta) de ser estimado por ela? Ou será
que ela deve ser descrita como particularização da decisão genérica de “praticar atos que
sejam merecedores da estima dessa pessoa”? Nesse último caso, de que forma deve ser
vista a decisão de “praticar atos que sejam merecedores da estima dessa pessoa”? Como
expressão de uma disposição afetiva egoísta (o desejo de ser estimado por ela)? Ou como
74

expressão de uma disposição afetiva altruísta (o desejo de agradá-la)? Ou como expressão


de uma unidade dialética entre egoísmo e altruísmo?
Poder-se-ia fazer a seguinte objeção: mesmo que a distinção entre intenção egoísta e
inclinação imediata se torne muitas vezes nebulosa e imprecisa, difícil de ser aplicada, a
distinção fundamental e decisiva, para Kant, não é essa, mas, sim, aquela que existe entre,
por um lado, a ação praticada apenas por dever, e, por outro lado, a ação praticada ou com
intenção egoísta ou por inclinação imediata (ou com as duas coisas ao mesmo tempo). Para
caracterizar essa última distinção, podemos afirmar o seguinte: no caso das ações praticadas
ou com intenção egoísta ou por inclinação imediata (ou com as duas coisas ao mesmo
tempo), o móbil último reside num sentimento de agrado, e não importa tanto se esse
sentimento tem um caráter egoísta (ligado a inclinações e desejos egoísticos) ou um caráter
altruísta (ligado a inclinações de perfil altruísta) – ou, finalmente, se ele representa uma
confusa mistura de egoísmo e altruísmo. O que verdadeiramente importa é que se trata de
um sentimento meramente empírico, ou seja, um sentimento que, em vez de ser efeito do
reconhecimento de princípios puramente racionais, é totalmente independente desse
reconhecimento, sendo antes efeito de condicionamentos puramente empíricos (naturais
e/ou culturais). É um sentimento que o sujeito “por natureza” tem (e pode não ter). Kant
chama esse tipo de sentimento de “patológico” (ver, por exemplo, a passagem das páginas
80-81 da Crítica da Razão Prática, transcrita na nota logo abaixo).
Já no caso das ações praticadas apenas por dever, o móbil último reside no
reconhecimento do dever, tomado como um princípio puramente racional. Mais
precisamente, o móbil último reside no sentimento que o reconhecimento do dever produz
na nossa sensibilidade. Kant chama esse sentimento de “respeito pela Lei”, caracterizando-
o como um sentimento “puramente prático”10. Kant esclarece ainda que esse sentimento

10
Cf. Crítica da Razão Prática, Livro Primeiro, Cap. III: “Dos Móbiles da Razão Pura Prática”. Ver, por
exemplo, a passagem das páginas 80-81 (Edição da Academia): “O sentimento que resulta da consciência
dessa coação não é patológico, como aquele que é produzido por um objeto dos sentidos, mas é puramente
prático, ou seja, possível por uma anterior (objetiva) determinação da vontade e causalidade da razão. Esse
sentimento não contém, como submissão a uma lei, quer dizer, como comando (que indica coerção para o
sujeito sensivelmente afetado), nenhum prazer, mas, antes, desprazer na ação. Por outro lado, porém, uma vez
que essa coerção é exercida apenas pela legislação da nossa própria razão, esse sentimento contém também
elevação, e o efeito subjetivo sobre o sentimento, na medida em que a razão pura prática é sua única causa,
pode portanto denominar-se auto-aprovação em relação à razão pura.”
Ver também a seguinte passagem da nota da página 23 de A Religião nos Limites da Simples Razão
(Edição da Academia): “A majestade da lei (igual à lei no Sinai) infunde reverência (não medo, que repele;
também não fascínio, que convida à familiaridade), que desperta o respeito do subordinado por seu soberano,
75

possui uma natureza dupla: por um lado, ele se apresenta em termos de desprazer, na
medida em que o reconhecimento do dever implica rebaixamento (humilhação) das nossas
inclinações empíricas, ou seja, das inclinações que nós “por natureza” temos. Em outras
palavras, na medida em que o reconhecimento do dever implica rebaixamento das
inclinações que nós por natureza temos, o sentimento produzido por ele é um sentimento de
desprazer – à repressão das inclinações naturais associa-se um elemento de desprazer. Por
outro lado, porém, o reconhecimento do dever aponta para nossa destinação mais alta, a
destinação de, rebaixando as inclinações meramente empíricas, seguir e efetivar princípios
e normas puramente racionais. Ora, na medida em que o reconhecimento do dever aponta
para nossa destinação mais alta, e para a possibilidade de alcançarmos ou ao menos
aproximarmo-nos dessa destinação, o sentimento produzido por ele é um sentimento de
“elevação” e “auto-aprovação”. O elemento de auto-aprovação associa-se ao
reconhecimento de nossa verdadeira vocação.
Assim, ao desenvolver isso que Allison classifica como uma “fenomenologia do
respeito”, 11 Kant chama atenção para a tensão interna que caracteriza o sentimento
produzido pelo reconhecimento da lei moral. Sob um primeiro aspecto, esse sentimento
manifesta-se como desprezo pelas inclinações naturais e pelo contentamento que a livre
satisfação dessas inclinações propicia. Ora, considerando que as inclinações naturais e o
contentamento com a livre satisfação dessas inclinações representam elementos essenciais
da condição humana, sob esse primeiro aspecto o sentimento de respeito (pela lei) equivale
a um sentimento de rebaixamento da própria humanidade, de desprezo por si próprio e
pelos homens em geral (enquanto somos “animais”). Manifesta-se aqui um sentimento
acusatório, que envolve acusação contra si próprio e contra os homens em geral. Trata-se de
um sentimento negativo em relação à humanidade em geral. Entretanto, sob um segundo
aspecto, esse sentimento manifesta-se como veneração pela destinação mais alta dos
homens, e pela capacidade que os homens têm de buscar essa destinação, gradualmente, na
medida do possível, e ainda que com quedas. Ora, considerando que essa destinação e
capacidade também representam elementos essenciais da condição humana, sob esse
segundo aspecto o sentimento de respeito (pela Lei) é um sentimento positivo em relação à

mas que nesse caso, em virtude de o soberano residir em nós próprios, desperta um sentimento da sublimidade
da nossa própria destinação, que nos arrebata mais do que toda beleza”.
11
Allison, op.cit., p.123.
76

humanidade: em vez de envolver acusação e desprezo, envolve admiração pelo esforço


sincero e grandioso, amor pelo delicado potencial que se anuncia, compreensão pelas
dificuldades e quedas.
Entretanto, para completar essa fenomenologia do respeito, precisamos reconhecer
mais alguns pontos. Em primeiro lugar, acontece muitas vezes de o elemento de auto-
aprovação misturar-se ao sentimento de desprezo pelas inclinações naturais e pelo
contentamento que a livre satisfação dessas inclinações propicia. Nesse caso, a auto-
aprovação manifesta-se como aprovação do rigor com que o sujeito despreza, calca e
recalca suas inclinações naturais. Porém, nesse caso, a auto-aprovação, em vez de dirigir-se
àquilo que há de sublime, promissor e delicado no Homem em geral, dirige-se
exclusivamente ao pobre e pequeno Eu, ao Eu que, na medida mesmo em que calca e
recalca suas inclinações naturais, acusa raivosamente aqueles que se expandem livremente
na satisfação dessas inclinações. Nesse caso, a auto-aprovação aproxima-se perigosamente
do ressentimento e da inveja. Mais ainda, ela aproxima-se perigosamente do “amor-de-si”.
Na verdade, trata-se de uma das manifestações mais mesquinhas do amor-de-si. Há algo de
profundamente mesquinho na alma que é tomada por esse tipo de sentimento.
Entretanto, é preciso levar a sério as tensões internas do sentimento de respeito.
Manifesta-se aqui, mais uma vez, a unidade dialética de pólos opostos. A alma tomada pelo
sentimento de respeito oscila permanentemente entre os dois pólos, ou seja, entre a
mesquinharia da auto-aprovação raivosa e ressentida e a grandiosidade da veneração pelo
que há de sublime, exigente e misteriosamente promissor no Homem. Mais ainda, os dois
pólos se embaralham, um se transmuta no outro: a auto-aprovação ressentida vira,
subitamente, reverência pela vocação mais alta e exigente do Homem, e vice-versa. Não é
mais possível dizer, definitiva e inequivocamente, se o sentimento, quer dizer, o móbil
último, é o mesquinho e ressentido amor-de-si ou o grandioso e compreensivo amor pelo
Homem.
Gostaria de completar meu comentário com a seguinte observação. Ainda que essa
“fenomenologia do respeito” possa parecer um tanto distante do texto kantiano, ela está
inteiramente de acordo com aquilo que Allison chama de “conhecida doutrina (kantiana –
A.S.B.) da ineliminável incerteza acerca da nossa própria motivação”. 12 Na p.51 de A

12
Allison, op.cit., p.176.
77

Religião nos Limites da Simples Razão, por exemplo, Kant afirma que “o fundo do coração
(o primeiro fundamento subjetivo das suas máximas) é inescrutável para o próprio
indivíduo”. Kant não é psicologicamente tão obtuso quanto alguns de seus críticos gostam
de nos fazer pensar. Ele estaria pronto para admitir o fato de que o respeito pela lei pode
assumir a forma de mesquinho e ressentido amor-de-si, e de que é praticamente impossível
dizer, num determinado caso, se ele assumiu a forma desse tipo mesquinho de sentimento
ou, ao contrário, a forma da grandiosa reverência pela sublime e exigente vocação do
Homem – ou, finalmente, se ele representa uma confusa mistura das duas coisas. Ao dizer
que o fundo do coração é inescrutável, é como se Kant dissesse: não cabe a nós, humanos, a
tarefa de julgar o móbil último das ações, nem o valor moral que tal móbil lhes confere;
deixemos essa tarefa com Deus. Limitemo-nos a julgar a correção das ações, ou seja, sua
conformidade (ou não conformidade) à obrigação que é objetivamente exigível de todos, e
deixemos a cada indivíduo a tarefa de buscar os motivos capazes de levá-lo a cumprir essa
obrigação da forma mais louvável e valiosa possível, assim como a interminável tarefa de
examinar até que ponto ele de fato avançou no sentido de encontrar motivos moralmente
louváveis e valiosos.
***
Gostaria de concluir a presente seção com um breve comentário final. Gostaria de
chamar atenção para o fato de que, ao contrário do que Kant parece muitas vezes sugerir,
determinar qual é a ação objetivamente devida nem sempre é tarefa fácil e trivial. Por
exemplo, em muitas situações, é difícil dizer se a ação objetivamente devida consiste em
contar a verdade ou mentir a uma determinada pessoa; em muitas situações, a ação
objetivamente devida talvez consista em mentir. (É importante repetir que a ação
objetivamente devida equivale aqui à ação moralmente devida, ou seja, à ação cuja
correção independe de qualquer interesse patológico por possíveis resultados. Assim,
determinar que a ação objetivamente devida consiste em mentir equivale a dizer, não que
mentir seja a ação mais fácil, agradável ou recompensadora, mas que é a ação moralmente
correta, ou seja, conforme ao dever categórico e incondicionado). A qualidade de uma
teoria moral aparece justamente em situações desse tipo, pelo fato de ela fornecer um
critério que permita discernir, num contexto embaraçoso, qual é, afinal, a ação
objetivamente devida. Ora, se é verdade que, para Kant, o móbil último das ações é
78

inescrutável, então, para que a teoria moral kantiana seja boa, o móbil último não deve ser
confundido com o critério de determinação da ação objetivamente devida. Ou seja, o
imperativo de agir com o móbil do dever não deve ser confundido com o imperativo de agir
conforme os critérios de correção da ação objetivamente devida. O embaralhamento das
duas dimensões entrava a discussão a meu ver fundamental, que é, justamente, a que diz
respeito aos critérios de determinação da ação objetivamente devida. No contexto do debate
moral contemporâneo, essa última discussão parece-me muito mais relevante do que aquela
que diz respeito às possíveis fontes de motivação para a ação moralmente devida, e ao
maior ou menor valor moral que essas diferentes fontes conferem às respectivas ações.
79

2.2) As Fórmulas Kantianas do Imperativo Categórico.

Como afirmei anteriormente, meu interesse no presente trabalho concentra-se na


primeira dimensão do imperativo categórico. Nessa dimensão, o imperativo categórico
estabelece a condição geral que deve ser seguida na determinação de qual é, objetivamente,
a ação (ou regra) moralmente correta. Em outras palavras, trata-se da condição que deve ser
seguida na determinação do conteúdo objetivo da ação moralmente devida. Vimos também
que essa condição se expressa nos seguintes termos: exclusão de interesse patológico pelo
provável resultado dessa ou daquela ação possível. Para se determinar qual é,
objetivamente, a ação moralmente correta, começa-se por excluir todo interesse patológico
pelo provável resultado dessa ou daquela ação possível, e toma-se como princípio a noção
de uma obrigação pura e incondicionada, com caráter de lei.
Afirmei também que essa noção, por si só, ainda não é suficiente para se determinar
o conteúdo objetivo da ação moralmente correta. Para que essa determinação se torne
possível, é preciso acrescentar a essa noção um critério propriamente conteudístico. E aqui
é importante mencionar uma segunda condição veiculada pelo conceito de imperativo
categórico (trata-se de uma condição que será elaborada mais à frente em nosso trabalho,
nos capítulos 4 e 5): uma vez que o critério conteudístico especifica quais as ações que
serão incondicionalmente exigíveis, ele precisa ser aceitável para o sujeito – tomado,
porém, como sujeito racional, ou razoável. À condição da obrigatoriedade (exigibilidade)
incondicionada vincula-se, portanto, a condição da aceitabilidade racional – é preciso que o
sujeito (como sujeito racional) possa aceitar a tese de que tal (ou qual) critério conteudístico
é (o mais) justo.
Também é interessante mencionar aqui, a título de antecipação, a distinção entre
uma fundamentação “forte” e uma fundamentação “fraca”, apresentada, por exemplo, por
E. Tugendhat em suas Vorlesungen über Ethik.13 Numa fundamentação forte, argumenta-se
que, partindo-se das noções formais de “obrigatoriedade (exigibilidade) incondicional” e
“aceitabilidade racional”, só se pode extrair um único critério conteudístico. Numa
fundamentação fraca, em contrapartida, reconhece-se que, partindo-se de tais condições
formais, pode-se extrair mais de um critério conteudístico; a fundamentação consiste então

13
Ver, especialmente, a “Primeira Lição” e a “Quinta Lição”.
80

em argumentar que um desses critérios é o mais razoável ou justo. Na Fundamentação da


Metafísica dos Costumes, Kant ergue a pretensão de apresentar uma fundamentação forte:
do simples conceito de imperativo categórico (por simples análise desse conceito) extrai-se
um único e inequívoco critério conteudístico – ainda que ele possa ser apresentado sob
diferentes aspectos. É essa relação pretensamente analítica que explica o descuido com que
Kant (e os comentadores que seguem a tradição kantiana de fundamentação forte) trata a
diferença entre, por um lado, a idéia de imperativo categórico e, por outro lado, a fórmula
conteudística do imperativo categórico – fala-se descuidadamente do “imperativo
categórico” para ambos os casos.
Uma das teses centrais desse trabalho é a de que a idéia do imperativo categórico
não autoriza uma fundamentação forte. Tento mostrar que, partindo-se da noção de
imperativo categórico – quer dizer, partindo-se das duas condições formais veiculadas
nessa noção, a condição da exclusão dos interesses patológicos e a condição da
aceitabilidade racional –, partindo-se dessas duas condições formais, é perfeitamente
possível extrair um critério conseqüencialista, segundo o qual o conteúdo da ação
moralmente correta se define nos seguintes termos: a ação moralmente correta é aquela que
maximiza conseqüências grosso modo boas no conjunto dos indivíduos afetados. Como foi
dito, o princípio a partir do qual esse critério se especifica e aplica é a exclusão de qualquer
interesse patológico nesse ou naquele indivíduo, nessa ou naquela conseqüência de alguma
das ações possíveis. A idéia é mais ou menos a seguinte: tomando-se como ponto de partida
a noção de obrigação pura (incondicionada), argumenta-se que o modo mais racional
(razoável, justo) de especificar essa noção consiste em entendê-la como obrigação de
maximizar a felicidade privada no conjunto dos atingidos. Por estar vinculada à noção de
obrigação pura, a deliberação “conseqüencialista” só pode ser entendida como uma
consideração fria e imparcial das prováveis conseqüências das diferentes ações possíveis;
trata-se de uma consideração patologicamente desinteressada. Procedendo-se a um exame
frio e imparcial das prováveis conseqüências das diferentes ações possíveis, determina-se
qual é a ação correta, ou seja, qual é a ação que vai maximizar conseqüências grosso modo
boas no conjunto dos afetados.
Afirmei também que os critérios conteudísticos kantianos representam alternativas
ao critério conseqüencialista. Nosso interesse a partir de agora passa a ser, justamente,
81

esclarecer a natureza exata dos critérios conteudísticos kantianos, e mostrar em que sentido,
exatamente, eles representam alternativas ao critério conseqüencialista. Kant chama seus
critérios conteudísticos de “fórmulas” do imperativo categórico. O problema é que, como
veremos logo a seguir, ele apresentou nada menos do que cinco fórmulas para o imperativo
categórico, e essa superabundância, como é de se esperar, dificulta a percepção de qual é,
exatamente, o foco central do debate entre kantismo (deontologismo) e conseqüencialismo.
Nosso interesse na presente seção é efetuar uma limpeza nessas fórmulas. Tentaremos
mostrar que duas delas – a fórmula da autonomia e a do reino dos fins – devem ser
descartadas pelo pesquisador interessado no debate entre deontologismo e
conseqüencialismo, por dizerem respeito, não tanto à questão central desse debate (que é,
justamente, a questão da determinação do conteúdo objetivo da ação moralmente correta),
mas, muito mais, a uma questão que é externa ao mesmo, a saber, a questão da
determinação do móbil (fundamento subjetivo) capaz de conferir pleno valor moral às
ações moralmente corretas. Tentaremos mostrar também que uma terceira fórmula – a
fórmula da lei da natureza – pode ser reduzida à primeira das fórmulas que Kant apresenta,
a saber, a fórmula da lei universal. Assim, após esse trabalho de limpeza, chegaremos à
conclusão de que só as fórmulas da lei universal e do fim em si mesmo interessam ao
pesquisador dedicado ao debate entre deontologismo e conseqüencialismo. Entretanto, uma
vez que, no presente trabalho, meu interesse na filosofia kantiana está restrito àqueles
elementos que têm sustentado uma interpretação rigorista do deontologismo, não tratarei da
fórmula do fim em si mesmo, mas me limitarei à fórmula da lei universal, uma vez que só
esta última tem alimentado a interpretação rigorista do deontologismo.

2.2.1) As Três Fórmulas Básicas.

As fórmulas que Kant apresentou são as seguintes, e na seguinte ordem. Em


primeiro lugar, a fórmula da lei universal: “Age apenas segundo uma máxima tal que
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (Fundamentação, p.421). Em
segundo lugar, a fórmula da lei da natureza: “Age como se a máxima da tua ação devesse se
tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (Fundamentação, p.421). Em
terceiro lugar, a fórmula do fim em si mesmo: “Age de tal maneira que trates a
82

humanidade, tanto em tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo
tempo como fim, e nunca simplesmente como meio” (Fundamentação, p.429). Em quarto
lugar, a fórmula da autonomia: “Se há um imperativo categórico (ou seja, uma lei para a
vontade de todo ser racional), ele só pode ordenar que tudo se faça em obediência à
máxima de uma vontade que simultaneamente se possa ter a si mesma por objeto como
legisladora universal” (Fundamentação, p.432. O grifo é meu). Um pouco depois, já depois
da introdução do conceito de reino dos fins, Kant apresenta a fórmula da autonomia em
termos um pouco mais simples: “Esta legislação tem de poder encontrar-se em cada ser
racional mesmo, e brotar da sua vontade, cujo princípio é: (...) (agir) só de tal maneira que a
vontade, por sua máxima, se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como
legisladora universal” (Fundamentação, p.434. O grifo é meu). Em quinto lugar, a fórmula
do reino dos fins: “Desta maneira, é possível um mundo de seres racionais (mundus
intelligibilis) como reino dos fins, e isto graças à própria legislação de todas as pessoas
como membros dele. Por conseguinte, cada ser racional terá de agir como se sempre fosse,
pelas suas máximas, um membro legislador no reino universal dos fins” (Fundamentação,
p.438. O grifo é meu).
***
Para lidarmos com esse excesso de fórmulas, o melhor é começarmos por uma
passagem em que Kant reduz as cinco fórmulas a apenas três. A passagem é a seguinte
(Fundamentação, p.436):
As três maneiras indicadas de apresentar o princípio da moralidade são, no fundo, apenas outras
tantas fórmulas dessa mesma lei, das quais uma, por si mesma, reúne em si as outras duas.14
Contudo, há entre elas uma diferença, que na verdade é mais subjetiva do que objetivamente
prática, com o fito de aproximar uma idéia da razão mais e mais da intuição (segundo uma certa
analogia), e desse modo do sentimento. Todas as máximas têm, com efeito:
1) uma forma, que consiste na universalidade, e sob esse ponto de vista a fórmula do imperativo
moral se exprime de maneira que as máximas têm de ser escolhidas como se devessem valer como
leis universais da natureza;
2) uma matéria, isto é, um fim, e então a fórmula diz: o ser racional, como fim segundo sua
natureza, portanto como fim em si mesmo, tem de servir, para toda máxima, de condição restritiva
de todos os fins meramente relativos e arbitrários;
3) uma determinação completa de todas as máximas, por meio daquela fórmula, a saber: que todas
as máximas, por legislação própria, devem concordar com a idéia de um possível reino dos fins,
como um reino da natureza.

14
Sobre a tradução dessa frase, ver a seção 2.2.2, abaixo.
83

Ao analisar essa passagem em seu artigo Sobre as “Fórmulas” do Imperativo


Categórico,15 Guido Antônio de Almeida lança luz sobre um ponto que, ao se tomar apenas
a letra do texto kantiano, permanece um tanto obscuro. Trata-se do fato de que há duas
fontes de diferenciação das fórmulas, e de que essas fontes não devem ser confundidas. A
primeira delas consiste na conveniência de se aproximar o princípio (idéia) racional da
intuição e do sentimento, por meio de uma analogia com a ordem da natureza. Como efeito
desse primeiro fator de diferenciação, a apresentação do imperativo categórico se divide em
dois grupos de fórmulas, ou dois grupos de sub-fórmulas, como ficará claro logo a seguir:
um grupo de (sub-)fórmulas conceptuais e um grupo de (sub-)fórmulas intuitivas. É a essa
diferença que Kant se refere ao afirmar que ela é mais “subjetiva do que objetivamente
prática”.
Entretanto, ao lado dessa primeira fonte de diferenciação, há uma segunda, que
consiste no fato de que é preciso atentar para os três aspectos sob os quais o princípio da
moralidade pode ser apresentado: os aspectos, respectivamente, da forma das máximas, da
matéria das máximas, e da determinação completa de todas as máximas. Como efeito desse
segundo fator de diferenciação, a apresentação do imperativo categórico se divide em três
fórmulas: em primeiro lugar, uma fórmula que expressa a forma que o agente deve observar
na escolha de suas máximas, a qual consiste na universalidade; em segundo lugar, uma
fórmula que expressa a matéria que o agente deve considerar na escolha de suas máximas, a
qual consiste no ser racional, tomado como fim em si mesmo; em terceiro lugar, uma
fórmula que expressa o fundamento último a partir do qual se completa a determinação
(caracterização) das máximas morais, o qual consiste na autonomia (“legislação própria”)
que eleva o agente à condição de membro legislador de um universal reino dos fins. É a
essa segunda espécie de diferenciação que Kant se refere ao afirmar que “as três maneiras
indicadas de apresentar o princípio da moralidade são, fundamentalmente, apenas outras
tantas fórmulas dessa mesma lei, das quais uma, por si mesma, reúne em si as outras duas”.
Ao combinarmos as duas fontes de diferenciação, obtemos o seguinte resultado:
para cada aspecto do princípio da moralidade, quer dizer, para cada fórmula aspectual,
podem-se apresentar duas sub-fórmulas, uma sub-fórmula mais conceptual e uma sub-
fórmula mais intuitiva. Assim, a fórmula que expressa a forma da universalidade pode ser
15
Publicado em DOMINGUES, Ivan, MARGUTTI PINTO, Paulo Roberto e DUARTE, Rodrigo (Org.).
Ética, Política e Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. P.89-103.
84

apresentada quer de um modo mais conceptual quer de um modo mais intuitivo. Quando
ela é apresentada do modo mais conceptual, tem-se a (sub-)fórmula da lei universal; quando
ela é apresentada do modo mais intuitivo, a partir de uma analogia com a ordem da
natureza, tem-se a (sub-)fórmula da lei da natureza. A diferença entre essas duas (sub)-
fórmulas é mais subjetiva do que objetivamente prática: a fórmula da lei da natureza não
acrescenta nenhum elemento ou aspecto novo à fórmula da lei universal, ela apenas
aproxima essa última fórmula da intuição e do sentimento, através de uma analogia com a
ordem da natureza. E é preciso compreendermos bem o sentido dessa “aproximação com a
intuição e o sentimento”: não se trata de fornecer à fórmula da lei universal um incentivo
sensível (pois um incentivo sensível decerto representaria um elemento novo, e, além disso,
um elemento que seria contraditório com a pureza motivacional que o agente moral deve
sempre buscar), mas se trata, sim, de fornecer àquela lei uma noção mais intuitiva (ou seja,
mais nítida do ponto de vista da nossa sensibilidade) do modo como ela deve ser
concretamente tomada e aplicada.
Ora, na medida em que não lhe acrescenta nenhum elemento ou aspecto novo, a
fórmula da lei da natureza pode ser reduzida à fórmula da lei universal; sua única serventia
é facilitar a aplicação desta última, por meio de uma noção mais intuitiva, ou seja, mais
próxima da sensibilidade. O fato de, na passagem da p.436 acima transcrita, a fórmula
mencionada ser a fórmula da lei da natureza, e não a da lei universal, não significa que a
primeira seja mais importante do que esta última, nem contraria a tese de que ela pode ser
reduzida a esta última. A opção pela fórmula da lei da natureza deriva apenas do fato de
que Kant havia acabado de mencionar a conveniência de, para efeito de apreensão e
aplicação concretas, aproximar a fórmula conceptual da intuição e do sentimento.
Entretanto, o fator fundamental na diferenciação das fórmulas não é esse, e sim a
necessidade de distinguir os aspectos sob os quais o princípio da moralidade pode ser
apresentado. Ora, desse último ponto de vista, a fórmula da lei da natureza pode ser
reduzida à fórmula da lei universal, como sustenta P. Stratton-Lake em seu artigo
Formulating Categorical Imperatives.16
A tese de que o fator fundamental na diferenciação das fórmulas é a necessidade de
distinguir os aspectos sob os quais o princípio da moralidade pode ser apresentado, e não a

16
Apud ALMEIDA, Guido Antônio, op.cit., p.91-92.
85

conveniência de aproximar a fórmula conceptual da intuição sensível, - tal tese é


corroborada pelo fato de que, em relação ao aspecto da matéria que o agente deve
considerar na escolha de suas máximas, Kant julga necessário apresentar uma fórmula
específica, a fórmula do fim em si mesmo, mas não julga necessário explicitar uma variante
intuitiva para essa fórmula. Ora, se a variante intuitiva fosse efetivamente importante, Kant
não deixaria de explicitá-la em relação à fórmula do fim em si mesmo, que de resto
desempenha papel imprescindível na compreensão do princípio da moralidade.
Em relação ao terceiro aspecto sob o qual o princípio da moralidade pode ser
apresentado, aplica-se o mesmo argumento que foi desenvolvido para as (sub-)fórmulas do
primeiro aspecto. Como afirmamos acima, a fórmula aspectual é, nesse caso, aquela que
expressa o fundamento último a partir do qual se completa a determinação (caracterização)
das máximas morais. Nas páginas 431 e 432 da Fundamentação, Kant deixa claro que a
terceira maneira de apresentar o princípio da moralidade consiste na fórmula da
autonomia. 17 Já na passagem da p.436, acima transcrita, a fórmula que corresponde ao
“terceiro aspecto” é a fórmula do reino dos fins. Não há, entretanto, dificuldade alguma
nessa discrepância. Das explicações que Kant dá acerca do conceito e da fórmula do reino
dos fins,18 resulta claro que ele vê essa fórmula como uma variante intuitiva da fórmula da
autonomia, ou seja, como uma variante que, apoiada na consideração teleológica da ordem
da natureza, aproxima a fórmula da autonomia da intuição sensível, criando uma imagem
mais nítida do modo como ela deve ser concretamente tomada. Tal como ocorre no caso
das fórmulas da lei universal e da lei da natureza, a opção pela variante intuitiva na
passagem da p.436, longe de significar que essa variante é mais importante do que a
fórmula conceptual, deriva do simples fato de que Kant havia acabado de mencionar a
conveniência de, para efeito de apreensão concreta, aproximar a fórmula conceptual da
intuição e do sentimento. Ora, devemos repetir aqui o mesmo argumento acima
apresentado: o fator fundamental na diferenciação das fórmulas não é a conveniência dessa
17
P.431: “Disto resulta o terceiro princípio prático da vontade, como condição suprema da concordância
dessa vontade com a razão prática universal, quer dizer, a idéia da vontade de todo ser racional concebida
como vontade legisladora universal”. E p. 432: “Ora, é precisamente o que acontece na presente terceira
fórmula do princípio, isto é, na idéia da vontade de todo ser racional como vontade legisladora universal”. (O
grifo é meu).
18
Conferir, por exemplo, Fundamentação, p.433: “O conceito segundo o qual todo ser racional deve
considerar-se como legislador universal por todas as máximas de sua vontade para, deste ponto de vista,
julgar-se a si mesmo e às suas ações, leva a um outro conceito muito fecundo que lhe anda aderente e que é o
de um Reino dos Fins.”
86

aproximação com a sensibilidade, mas é, sim, a necessidade de distinguir os aspectos sob


os quais o princípio da moralidade pode ser apresentado. Ora, desse último ponto de vista, a
fórmula do reino dos fins não acrescenta nenhum elemento ou aspecto novo à fórmula da
autonomia, e, na medida em que não lhe acrescenta nenhum elemento ou aspecto novo,
pode (e deve) ser reduzida a esta última.

2.2.2) O Problema da Fórmula da Autonomia.

A partir dessas análises, nossa investigação tem o direito de se restringir a apenas


três fórmulas: fórmula da lei universal, fórmula do fim em si mesmo e fórmula da
autonomia. Como foi indicado acima, é a essas fórmulas que Kant se refere ao afirmar que
“as três maneiras indicadas de apresentar o princípio da moralidade são, fundamentalmente,
apenas outras tantas fórmulas dessa mesma lei, das quais uma, por si mesma, reúne em si as
outras duas” (Fundamentação, p.436). Nosso problema pode agora ser encaminhado
mediante comentário sobre a afirmação de que “destas fórmulas, uma, por si mesma, reúne
em si as outras duas” (deren die eine die anderen zwei von selbst in sich vereinigt). No
artigo supracitado, Guido de Almeida chama atenção para uma ambigüidade que é
suprimida por boa parte dos tradutores. Com efeito, nas palavras do próprio autor, essa
afirmação “pode ser entendida tanto no sentido de que cada fórmula implica as demais
quanto no sentido de que apenas uma contém em si as duas outras”.19 Ora, boa parte dos
tradutores suprime essa ambigüidade, optando inequivocamente pela interpretação de que
cada fórmula implica as demais.20
Sem pretender resolver a questão da ambigüidade, podemos afirmar o seguinte: caso
essa afirmação venha a ser entendida no sentido de que apenas uma dessas fórmulas contém
em si as outras duas, essa fórmula única e contentora só pode ser a fórmula da lei universal.
Com efeito, é indubitável que, no conjunto da argumentação da Segunda Seção da
Fundamentação, a fórmula da lei universal representa o princípio a partir do qual as demais
fórmulas vão sendo desenvolvidas e apresentadas, e na continuação da passagem

19
ALMEIDA, Guido de, op.cit., p.94.
20
Conferir, por exemplo, as traduções (de resto excelentes) de Paulo Quintela, Victor Delbos e Lewis White
Beck. Victor Delbos chega a apor à sua tradução a seguinte nota explicativa: “Com efeito, de cada uma dessas
fórmulas pode-se, por simples análise, extrair as outras duas (...)” (Fondements de la Métaphysique des
Moeurs. Paris: Librairie Delagrave, 1971, p.162).
87

supracitada, páginas 436-437, Kant chama essa fórmula de “fórmula universal do


imperativo categórico”. Ora, se considerarmos que o nome “fórmula da lei universal” não
foi dado pelo próprio Kant, o adjetivo “universal” com que ele qualifica essa fórmula só
pode significar que se trata da fórmula mais abrangente. Nessa linha de interpretação,
portanto, a afirmação acima referida deveria ser tomada no sentido de que a fórmula da lei
universal, por si mesma, contém em si as outras duas, ou seja, contém em si as fórmulas do
fim em si mesmo e da autonomia. Por outro lado, se a afirmação acima referida vier a ser
entendida no sentido de que cada uma das fórmulas implica as demais, também será correto
afirmar que a fórmula da lei universal contém em si (implica) as fórmulas do fim em si
mesmo e da autonomia. Em outras palavras, qualquer que seja a solução que venha a ser
dada à ambigüidade da afirmação acima referida, sempre será correto entendê-la no sentido
de que a fórmula da lei universal contém em si (implica) as fórmulas do fim em si mesmo e
da autonomia.
O segundo problema diz respeito à natureza exata dessa relação de implicação. Em
outras palavras, qual é o sentido exato da tese de que a fórmula da lei universal, por si
mesma, reúne em si as fórmulas do fim em si mesmo e da autonomia? Como vimos na nota
20, acima, o tradutor Victor Delbos interpreta essa tese no sentido de que, por simples
análise da fórmula da lei universal, pode-se extrair tanto a fórmula do fim em si mesmo
quanto a fórmula da autonomia. Em princípio, isso quer dizer o seguinte: as fórmulas do
fim em si mesmo e da autonomia não contêm nenhum elemento conceptual que já não
esteja implicitamente contido na fórmula da lei universal; nelas não se acrescenta nenhum
elemento conceptual novo, mas apenas explicitam-se os elementos conceptuais que
implicitamente já estavam contidos na fórmula da lei universal. Essa interpretação decerto
corresponde à inspiração “analítica” que perpassa toda a Segunda Seção da Fundamentação
(e também a Primeira, aliás). O projeto de Kant nessa Segunda Seção parece ser o seguinte:
por simples análise do conceito de imperativo categórico, extrair a fórmula da lei universal,
e depois, por simples análise dessa primeira fórmula, extrair as demais fórmulas, quer dizer,
tanto a fórmula do fim em si mesmo quanto a fórmula da autonomia.
No que diz respeito à fórmula da autonomia, entretanto, o próprio Kant
problematiza essa interpretação “analítica”. Consideremos o seguinte parágrafo em que ele
comenta nossa terceira fórmula (Fundamentação, p.431-432):
88

Os imperativos, tais como atrás no-los representamos, quer dizer, como constituindo uma
legislação das ações universalmente semelhante a uma ordem natural, ou como universal
privilégio de finalidade dos seres racionais em si mesmos, excluíam sem dúvida do seu princípio
de autoridade toda mescla de qualquer interesse como móbil, exatamente por serem concebidos
como categóricos; porém, eles só foram admitidos como categóricos porque tínhamos de admiti-
los como tais se queríamos explicar o conceito de dever. Mas que houvesse proposições práticas
que ordenassem categoricamente, eis o que por si não pôde ser provado e o que nesta seção
tampouco se pode provar ainda. Mas podia ter acontecido uma coisa, a saber: indicar no próprio
imperativo, por qualquer determinação nele contida, a renúncia a todo interesse no querer por
dever, como caráter específico de distinção do imperativo categórico em face do hipotético. Ora, é
precisamente o que acontece na presente terceira fórmula do princípio, isto é, na idéia da vontade
de todo ser racional como vontade legisladora universal. (O grifo é meu).

Esse parágrafo é surpreendente. Kant parece estar querendo dizer o seguinte: só na


fórmula da autonomia (ou seja, só na “presente terceira fórmula do princípio”) se apresenta
a nota conceptual da exclusão de qualquer interesse como móbil da vontade; esta nota
(determinação) não é intrínseca às fórmulas da lei universal e do fim em si mesmo.
Entretanto, Kant ao mesmo tempo afirma que esta nota conceptual é a marca que distingue
o imperativo categórico do imperativo hipotético. Ora, se ela é a marca que distingue o
próprio conceito de imperativo categórico, ela deveria estar contida em todas as fórmulas
que são extraídas desse conceito. E as fórmulas da lei universal e do fim em si mesmo são
explicitamente apresentadas como fórmulas extraídas do conceito de imperativo categórico.
Kant não parece ter o direito de afirmar que os imperativos formulados desses dois modos
foram apenas “admitidos” (angenommen) como categóricos; se eles foram explicitamente
extraídos do conceito de imperativo categórico, eles por princípio são categóricos. E se eles
por princípio são categóricos, eles devem conter a marca distintiva do imperativo
categórico. E se a marca distintiva do imperativo categórico é a exclusão de qualquer
interesse como móbil da vontade, as fórmulas da lei universal e do fim em si mesmo devem
conter a determinação dessa exclusão. Ora, é justamente isso o que Kant parece estar
querendo negar, ao afirmar que essa determinação só se apresenta na fórmula da
autonomia, e que nas duas fórmulas anteriores ela foi meramente suposta (admitida).
A meu ver, os paradoxos que esse parágrafo levanta só podem ser resolvidos
mediante recurso à distinção acima apresentada entre as duas dimensões do imperativo
categórico. Recorrendo a essa distinção, podemos levantar a hipótese de que as fórmulas
kantianas devem ser vistas como pertencentes ou à primeira dimensão ou à segunda
dimensão do imperativo categórico. Pertencerão à primeira dimensão as fórmulas que
indicarem critérios objetivos da correção da ação, ou seja, critérios que devem ser
89

considerados na determinação de qual é, objetivamente, a ação moralmente correta;


pertencerão à segunda dimensão as fórmulas que indicarem critérios subjetivos para o valor
moral da ação, ou seja, critérios que digam respeito ao móbil (fundamento subjetivo) pelo
qual se deve praticar a ação moralmente correta, para que ela tenha pleno valor moral. Ora,
é claro que as fórmulas da lei universal e do fim em si mesmo devem ser vistas como
pertencentes à primeira dimensão, na medida em que os critérios que elas indicam –
respectivamente, a forma da universalidade e o fim (matéria) constituído pelo indivíduo
racional – representam, claramente, critérios puramente objetivos, ou seja, critérios cuja
função se restringe à determinação de qual é a ação objetivamente correta. Já a fórmula da
autonomia deve ser vista como pertencente à segunda dimensão, na medida em que o
critério que ela indica – segundo o próprio Kant, a exclusão de qualquer interesse
patológico como móbil da vontade -, longe de representar um critério objetivo, representa
um critério puramente subjetivo, ou seja, um critério que exprime a disposição psicológica
com a qual se deve praticar a ação moralmente correta, para que ela tenha pleno valor
moral.
Podemos então supor que as fórmulas da lei universal e do fim em si mesmo são
extraídas da primeira dimensão do imperativo categórico, enquanto a da autonomia é
extraída da segunda dimensão. Como vimos acima, a primeira dimensão diz respeito apenas
à determinação de qual é, objetivamente, a ação moralmente correta; nessa dimensão, a
questão da motivação (ou seja, do móbil pelo qual se deve praticar a ação moralmente
correta) fica em suspenso. Isso significa, precisamente, que a determinação do móbil não é
intrínseca a essa primeira dimensão. Em outras palavras, a nota conceptual da “exclusão de
qualquer interesse como móbil da vontade” não é intrínseca a essa primeira dimensão, mas
só à segunda. Em vez de tomar a referida nota como marca que distingue o imperativo
categórico do imperativo hipotético, o melhor é tomá-la como marca que distingue as duas
dimensões do imperativo categórico.
Por não ser intrínseca à primeira dimensão do imperativo categórico, a nota
conceptual da “exclusão de qualquer interesse como móbil da vontade” não está contida nas
fórmulas que são extraídas dessa primeira dimensão, a saber, as fórmulas da lei universal e
do fim em si mesmo. Mas isso não significa que os imperativos expressos nessas duas
fórmulas tenham de ser apenas “admitidos” ou “supostos” como categóricos. Por serem
90

explicitamente extraídos do próprio conceito de imperativo categórico, os imperativos


expressos nessas duas fórmulas são absolutamente categóricos. Entretanto, por serem
extraídos da primeira dimensão desse conceito, eles não precisam conter uma nota
conceptual que é característica apenas da segunda dimensão do mesmo.
Por ser extraída da segunda dimensão do imperativo categórico, a fórmula da
autonomia, e só ela, contém a nota conceptual que distingue essa dimensão, a saber, a
exclusão de todo interesse como móbil da vontade. Trata-se de um elemento conceptual
novo, que só se apresenta nessa terceira fórmula. Ora, por conter um elemento conceptual
novo, que não se apresenta na fórmula da lei universal, a fórmula da autonomia não pode
ser reduzida à fórmula da lei universal. Em outras palavras, qualquer interpretação da
relação de “implicação” entre essas duas fórmulas tem de levar em consideração o fato de
que a fórmula da autonomia contém um elemento conceptual que não está contido na
primeira, e de que nesse sentido ela não pode ser reduzida à primeira.21
Por outro lado, porém, do ponto de vista da determinação de qual é, objetivamente,
a ação moralmente correta (o qual, como vimos afirmando, constitui o foco do nosso
interesse no presente trabalho), a fórmula da autonomia pode perfeitamente ser reduzida à
fórmula da lei universal, na medida em que, desse ponto de vista (ou seja, do ponto de vista
dos critérios objetivos da correção da ação), o critério que ela apresenta é absolutamente
idêntico ao dessa última: trata-se do critério de que, para ser objetivamente correta, a ação
precisa conformar-se à idéia de “legislação universal”, ou seja, precisa conformar-se à
forma da lei em geral, quer dizer, à forma da universalidade. O aspecto que ela acrescenta
ao critério da “lei universal” diz respeito, apenas, ao problema da motivação do agente: a
fórmula da autonomia prescreve que, do ponto de vista da motivação, a lei (a que o agente
se conforma) seja vista como emanando da própria racionalidade do agente, em vez de ser
vista em associação com um móbil sensível qualquer.
E nesse momento é importante recordar a distinção entre o sujeito como sujeito
empírico e o sujeito como sujeito racional. O sujeito como sujeito racional é o indivíduo-
legislador, quer dizer, o indivíduo que determina qual é a lei moralmente correta. O sujeito

21
Sobre as dificuldades envolvidas na questão de se é ou não possível reduzir a fórmula da autonomia à
fórmula da lei universal, conferir os argumentos apresentados por Guido de Almeida (em Sobre as
“Fórmulas” do Imperativo Categórico) contra a posição de Stratton-Lake (segundo a qual a fórmula da
autonomia pode ser reduzida à da lei universal).
91

como sujeito empírico é o agente, quer dizer, o indivíduo que deve agir em conformidade
com a lei moralmente correta. Havíamos dito que, para ser incondicionalmente exigível do
sujeito empírico, a lei precisa ser aceitável para o sujeito racional. É claro que essa idéia
também pode ser expressa por meio da afirmação de que, para ser incondicionalmente
exigível, a lei tem de poder ser vista como emanando da própria racionalidade do sujeito –
mas como sujeito racional, justamente. Poder-se-ia afirmar que se apresenta aqui uma
“certa” idéia de autonomia – uma idéia “fraca”, evidentemente. De qualquer modo, esse é
um elemento conceptual que já está contido na própria idéia do imperativo categórico;
trata-se de um elemento conceptual que já está presente nas fórmulas da lei universal e do
fim em si mesmo – é óbvio que a validade objetiva dessas fórmulas está vinculada à tese de
que o sujeito racional as aceita (reconhece) como corretas e justas.
Mas não é esse, claramente, o elemento visado por Kant na passagem sobre a
autonomia acima citada. Claramente, o que Kant estava visando é a motivação do agente,
quer dizer, do sujeito empírico. O elemento novo que a “terceira fórmula” introduz
consiste, justamente, na prescrição de que o sujeito empírico, ao conformar-se à lei
moralmente correta, encare-a como expressão da sua própria racionalidade, quer dizer,
como expressão da sua destinação suprema, em vez de procurar apoio num motivo de
natureza sensível, como o desejo de ser bem visto pelos outros, ou o desejo de receber uma
recompensa de Deus, ou até mesmo uma recompensa do pequeno Eu – a vanglória do ego
que se reprime. Em outras palavras, o que Kant visa com a fórmula da autonomia não é a
idéia de que, para ser incondicionalmente exigível do sujeito empírico, a lei moralmente
correta precisa poder ser vista como expressão da racionalidade do indivíduo-legislador –
esse sujeito em que as tensões e conflitos motivacionais foram postos em suspenso, para
que ele possa realizar a tarefa de determinar o teor da lei moralmente correta. O que Kant
visa com a “terceira” fórmula é a prescrição de que a lei moralmente correta seja vista pelo
próprio agente, quer dizer, pelo sujeito finito, mergulhado nas tormentas motivacionais e
psicológicas da sensibilidade, - que ela seja vista por esse sujeito como expressão da sua
destinação grandiosa e suprema, a elevação ao plano da racionalidade pura.
Assim, o aspecto novo introduzido pela “terceira fórmula” diz respeito, apenas, à
disposição subjetiva com que a ação deve ser praticada, para ter pleno valor moral; ele não
afeta a determinação do conteúdo objetivo da ação moralmente correta. Em outras palavras,
92

o elemento novo que a fórmula da autonomia acrescenta diz respeito, não à determinação
de qual é a ação objetivamente devida, a partir da assunção do critério da conformidade à
universalidade da lei em geral, mas diz respeito, sim, ao móbil que dá uma certa
configuração psicológico-subjetiva às ações praticadas segundo esse critério. Desse último
ponto de vista, as ações do sujeito empírico não devem apoiar-se em nenhum motivo de
natureza sensível; ora, para que elas não se apóiem em nenhum móbil de natureza sensível,
é preciso que a lei moralmente correta seja encarada como absolutamente independente de
qualquer fundamento motivacional que seja “externo” à racionalidade do próprio agente
(seja a sociedade, Deus, ou um Eu que gosta de se vangloriar com o próprio rigor na
obediência à lei). Para que as ações moralmente corretas não se apóiem em nenhum móbil
de natureza sensível, é preciso que a lei seja experimentada como emanando “de dentro” da
racionalidade do próprio agente (sujeito empírico), pois nesse caso, e apenas nesse caso, o
móbil para praticá-las pode consistir, justamente, no respeito à própria racionalidade, que é
o único móbil puramente moral. E poderíamos acrescentar, a título de “aproximação com o
sentimento”: respeitar a própria racionalidade equivale a considerá-la como fim da própria
existência (empírica), ou seja, destinação que, ao modo de princípio, dá sentido e
sustentação motivacional à atividade prática em geral e moral em particular. Todo agente
(sujeito empírico) deve considerar sua própria racionalidade como fim nesse último sentido,
ou seja, deve considerar-se como membro de um reino em que a racionalidade de cada um
é fim nesse último sentido.
Vimos acima que, para Kant, a fórmula da autonomia corresponde a um terceiro
aspecto pelo qual pode ser apresentado o imperativo categórico, que é o aspecto da
“determinação completa de todas as máximas”. Sem entrar aqui no complicado conceito de
máxima, podemos tentar sugerir o sentido geral desse aspecto. A meu ver, a “determinação
completa de todas as máximas” pode ser entendida em termos de um discernimento do
leque completo das condições que as ações precisam cumprir para ser moralmente válidas;
trata-se de um discernimento que abrange não somente as condições que elas precisam
cumprir para ser moralmente corretas, mas também, e até principalmente, as condições que
elas precisam cumprir para ter pleno valor moral. Na verdade, o elemento decisivo consiste
aqui, precisamente, na especificação da condição que elas precisam cumprir para ter pleno
valor moral, na medida em que é essa especificação que dá completude ao discernimento
93

em questão. Ora, essa última condição consiste, precisamente, no móbil do respeito à


própria racionalidade (tomada como faculdade da “legislação própria”), o qual se explicita
na fórmula da autonomia. Mas esse móbil, assim como a fórmula que o explicita, pertence
apenas à segunda dimensão do imperativo categórico, ou seja, à dimensão “psicológico-
subjetiva”; eles não pertencem à dimensão “prático-objetiva”, a qual, como vimos acima,
abrange apenas as condições da correção objetiva das máximas. Do ponto de vista dessas
últimas condições, como vimos acima, a fórmula da autonomia pode perfeitamente ser
reduzida à fórmula da lei universal. O embaralhamento das duas dimensões entrava a
discussão a meu ver fundamental, que é, justamente, a discussão sobre as fórmulas que
permitem determinar qual é, objetivamente, a ação moralmente correta; com efeito, tal
embaralhamento sobrecarrega essa última discussão com fórmulas que, do ponto de vista
desta discussão, são dispensáveis.
***
Como afirmamos acima, nosso interesse no presente trabalho concentra-se no
debate entre deontologismo e conseqüencialismo. Afirmamos também que a questão central
desse debate é a questão do conteúdo objetivo da ação moralmente correta; trata-se da
questão sobre as fórmulas conteudísticas que, em contextos embaraçosos, permitem
determinar qual é, objetivamente, a ação moralmente correta. A partir das análises acima
efetuadas, podemos afirmar o seguinte: das cinco fórmulas que Kant apresentou para o
imperativo categórico, só as fórmulas da lei universal e do fim em si mesmo são relevantes
para essa questão; para o pesquisador interessado apenas nessa questão, as outras três
fórmulas – a da lei da natureza, a da autonomia e a do reino dos fins – são perfeitamente
dispensáveis. Entretanto, uma vez que, no presente trabalho, meu interesse na filosofia
kantiana está restrito àqueles elementos que têm sustentado uma interpretação rigorista do
deontologismo, não tratarei da fórmula do fim em si mesmo, mas me limitarei à fórmula da
lei universal, uma vez que só esta última tem alimentado a interpretação rigorista do
deontologismo.
94

2.3) O Imperativo Categórico e o Conseqüencialismo.

Para encerrar o presente capítulo, gostaria de fazer uma breve recapitulação das
principais teses acima apresentadas, enfatizando certos pontos que me parecem
fundamentais para uma correta compreensão do conceito de imperativo categórico. Em
primeiro lugar, afirmei que, para se ter clareza quanto às implicações do conceito de
imperativo categórico para a questão da determinação do critério conteudístico das ações
moralmente corretas, é preciso distinguir e separar as duas dimensões que esse conceito
apresenta. A primeira pode ser chamada de dimensão prático-objetiva; nessa primeira
dimensão, o conceito de imperativo categórico estabelece as condições gerais que devem
ser seguidas na determinação de qual é, objetivamente, a ação moralmente correta. A
segunda dimensão pode ser chamada de dimensão psicológico-subjetiva; nessa segunda
dimensão, o conceito de imperativo categórico indica a disposição motivacional que
confere pleno valor moral àquelas ações que, do ponto de vista prático-objetivo, foram
determinadas como moralmente corretas.
Em segundo lugar, tentei mostrar que, em ambas as dimensões do conceito, a nota
fundamental é a da “exclusão de interesse patológico pelos possíveis resultados da ação”,
mas que essa nota desempenha funções radicalmente distintas nas duas dimensões. Na
dimensão prático-objetiva, essa nota conceptual assume um caráter puramente objetivo,
funcionando como critério da determinação de qual é, objetivamente, a ação moralmente
correta, mas deixando em suspenso o móbil (fundamento subjetivo) pelo qual a ação correta
pode ou deve vir a ser efetivamente escolhida e praticada. Nessa primeira dimensão, a
função dessa nota pode ser expressa nos seguintes termos: para se determinar qual é,
objetivamente, a ação moralmente correta, começa-se por excluir todo interesse patológico
pelo provável resultado dessa ou daquela ação possível, e toma-se como princípio a noção
de uma obrigação pura e incondicionada, ou seja, uma obrigação cuja validade (ou
exigibilidade) é totalmente independente de qualquer interesse patológico por essa ou
aquela conseqüência possível. Entretanto, nessa primeira dimensão, a referida nota
conceptual deixa em suspenso a possibilidade de que, no momento de se encontrar um
móbil (fundamento subjetivo) capaz de levar à realização da ação anteriormente
determinada como moralmente correta, um interesse patológico por possíveis efeitos
95

(recompensas) dessa ação venha introduzir-se na alma do sujeito. (Esse interesse patológico
pode consistir, por exemplo, no agrado que a pessoa sente diante da possibilidade de, em
reprimindo seus impulsos sensíveis, arrogar-se o direito de acusar os outros). É só na
segunda dimensão do imperativo categórico que a referida nota conceptual desempenha a
função de determinar o móbil pelo qual a ação moralmente correta deve ser praticada.
Nessa segunda dimensão, a função dessa nota pode ser expressa nos seguintes termos: para
encontrar o móbil capaz de conferir pleno valor moral à ação moralmente correta, comece
por excluir todo tipo de interesse patológico por possíveis efeitos ou recompensas dessa
ação, e concentre-se (ou tente concentrar-se) no puro respeito à sua própria racionalidade,
tomada como destinação suprema da sua existência empírica.
Em terceiro lugar, tentei mostrar que, em ambas as dimensões do imperativo
categórico, a nota conceptual da “exclusão de interesse patológico pelos possíveis
resultados da ação” é perfeitamente compatível com a posição conseqüencialista. É esse
ponto que gostaria agora de enfatizar, começando por uma análise da primeira dimensão.
Gostaria de chamar atenção para o fato de que não se deve confundir “exclusão de interesse
patológico por possíveis resultados” com “exclusão de uma consideração puramente lógica
dos possíveis resultados”. Como vimos acima, interesse patológico por um possível
resultado (dessa ou daquela ação possível) consiste no fato de que a possibilidade de
alcançar tal resultado me agrada (corresponde às minhas inclinações). É esse interesse que
deve ser excluído no momento de se determinar, dentre as ações possíveis, qual é a
moralmente correta. Mas isso não significa que, para se determinar, dentre as ações
possíveis, qual é a moralmente correta, se deva excluir uma consideração puramente lógica
dos prováveis resultados de cada uma dessas ações. Com efeito, é perfeitamente possível
proceder a uma consideração desses resultados sem ter qualquer sentimento de agrado em
relação a qualquer um deles. Aliás, é justamente esse tipo de consideração que a posição
conseqüencialista exige: ao considerar as prováveis conseqüências das diferentes ações
possíveis, para determinar qual delas é a moralmente correta, o agente conseqüencialista
deve adotar uma postura de frieza e imparcialidade, excluindo todo tipo de interesse
patológico por esse ou aquele indivíduo, por essa ou aquela conseqüência.
Poder-se-ia objetar, talvez, que o cálculo conseqüencialista não é tão desinteressado
assim, na medida em que está vinculado a um sentimento de “simpatia” pelos homens em
96

geral. Entretanto, tomada como um sentimento perfeitamente imparcial, a simpatia deve ser
vista como expressão sensível de uma obrigação puramente racional, a obrigação,
justamente, de buscar o bem do maior número possível de indivíduos, independentemente
das predileções empíricas particulares de cada um. Por ser expressão sensível de uma
obrigação racional, a simpatia é um sentimento que, dentro do quadro conseqüencialista, se
pode e deve exigir dos sujeitos em geral, independentemente das inclinações empíricas
peculiares a cada um. Nesse sentido, a simpatia deve ser vista como a versão
conseqüencialista daquele tipo de sentimento que Kant qualifica de puramente prático,
contrapondo-o ao sentimento patológico.
A confusão entre “exclusão de interesse patológico por possíveis resultados” e
“exclusão de uma consideração puramente lógica dos possíveis resultados” é alimentada
pela afirmação kantiana de que, no caso do imperativo categórico, a ação objetivamente
devida não deve recomendar-se como meio, mas deve recomendar-se “em si mesma”,
independentemente da relação com qualquer finalidade ou resultado. Mas nós vimos acima
que essa afirmação não merece crédito, na medida em que, em muitos casos, a relação
meio-fim e a consideração dos prováveis resultados são imprescindíveis para uma
caracterização objetiva e adequada da própria ação que está em questão. Por exemplo, em
muitos casos, não se pode fornecer uma caracterização objetiva e adequada da ação de
mentir, ou da ação de cortar a perna de uma pessoa, sem mencionar o fim ou resultado que
se visa com ela, ou as conseqüências que ela vai provavelmente acarretar. A natureza das
conseqüências afeta a natureza da própria ação. E isso independe de qualquer interesse
patológico por tais conseqüências: mesmo que, do ponto de vista dos nossos sentimentos
empíricos e patológicos, sejamos absolutamente indiferentes à sorte de todas as pessoas
envolvidas nos contextos em questão, a ação de mentir para honrar o direito de uma pessoa
à integridade física é objetivamente distinta da ação de mentir para promover a felicidade
de uma pessoa, poupando-a da angústia que a verdade iria provavelmente lhe causar. E, no
primeiro contexto, caso a finalidade de honrar o direito da pessoa à integridade física venha
a se revelar como um propósito que deve ser incondicionalmente assumido por todos e cada
um, a ação de mentir para honrar esse direito será a ação objetivamente correta, mesmo
que, do ponto de vista dos nossos sentimentos empíricos e patológicos, sintamos um
mórbido agrado com a possibilidade de que a pessoa em questão viesse a ser fisicamente
97

lesada. Por outro lado, no segundo contexto, caso a finalidade de promover a felicidade da
pessoa venha a se revelar como um propósito que deve ceder o passo à finalidade de honrar
o direito da pessoa a uma escolha bem informada, a ação de mentir para promover a
felicidade da pessoa será uma ação objetivamente incorreta, mesmo que, do ponto de vista
dos nossos sentimentos empíricos e patológicos, sintamos agrado com a possibilidade de,
pela mentira, poupar a pessoa da angústia que a verdade vai provavelmente lhe causar. O
que estou querendo dizer é o seguinte: mesmo que, seguindo as exigências expressas no
conceito de imperativo categórico, já tenhamos excluído todo interesse patológico pelas
prováveis conseqüências das diferentes ações possíveis, uma consideração puramente
lógica de tais conseqüências é muitas vezes imprescindível para uma caracterização
objetiva e adequada de cada uma dessas ações e, a fortiori, para a determinação de qual
delas é a ação que, no quadro do conceito de imperativo categórico, é objetivamente
correta.
Recapitulando: na primeira dimensão do imperativo categórico, que diz respeito à
determinação de qual é a ação objetivamente correta, a nota conceptual da “exclusão de
interesse patológico por esse ou aquele resultado possível” é perfeitamente compatível com
a tese de que, para se determinar qual é a ação objetivamente correta, deve-se proceder a
uma consideração (lógica) dos efeitos ou resultados das diversas ações possíveis.
E o que acontece na segunda dimensão do imperativo categórico, a qual, como
vimos acima, diz respeito à determinação do móbil capaz de conferir pleno valor moral à
ação objetivamente correta? Nessa segunda dimensão, a nota conceptual da “exclusão de
interesse patológico pelas conseqüências da ação” equivale à tese de que, para ter pleno
valor moral, a ação deve ser praticada apenas “por dever”, ou seja, deve ter por móbil a
pura consciência do dever, ou o puro respeito à lei. No próximo capítulo, analisaremos de
forma mais detalhada as proposições com que Kant esclarece a natureza da ação
moralmente valiosa. Podemos entretanto antecipar que, também nessa segunda dimensão, a
nota conceptual da “exclusão de interesse patológico pelos resultados da ação” é
perfeitamente compatível com a posição conseqüencialista. Com efeito, antecipando a
interpretação que será elaborada no próximo capítulo, podemos afirmar que, ao decidir
praticar ações que venham a maximizar conseqüências grosso modo boas no conjunto dos
indivíduos sob seu alcance, o agente conseqüencialista pode perfeitamente concordar com a
98

tese de que as ações que ele pratica só têm pleno valor moral caso sua motivação última
resida na pura consciência do dever, ou seja, na consciência de que esse tipo de ato é pura e
simplesmente obrigatório; mais ainda, como efeito dessa sua concordância, ele também
pode despreocupar-se inteiramente com o desenvolvimento de qualquer disposição afetiva
favorável a esse tipo de ato, preocupando-se apenas com a pureza e força do seu senso de
dever. Não precisamos supor que a motivação desse agente tenha de residir num sentimento
de agrado com os benefícios que ele produz ou dissemina, e nem mesmo num sentimento
de simpatia pelos homens em geral. Com efeito, a noção de simpatia não é essencial à
posição conseqüencialista. O agente conseqüencialista pode ser absolutamente frio e
empedernido, indiferente às dores ou prazeres dos indivíduos que serão afetados pela sua
ação, e, além disso, sem nenhum interesse egoísta indireto nos efeitos que sua ação vai
provavelmente acarretar, e ainda assim, movido pela pura consciência do dever, praticar
ações grosso modo benéficas ao maior número possível de indivíduos.
Assim, quando são corretamente interpretados, tanto o conceito de imperativo
categórico quanto a noção de “agir por dever” revelam-se compatíveis com a posição
conseqüencialista. Eles só se tornam incompatíveis com essa última posição quando a nota
conceptual da “exclusão de interesse patológico pelos resultados da ação” é (erroneamente)
confundida com “exclusão de uma consideração puramente lógica dos resultados da ação”.
Caso sejam interpretados a partir dessa confusão, entretanto, os conceitos de imperativo
categórico e de “agir por dever” não apenas excluem a posição conseqüencialista, mas
implicam que, para diferençar-se do conseqüencialismo, o deontologismo precisa adotar
uma postura de total desconsideração pelos resultados da ação. Em outras palavras, ao
serem interpretados a partir da confusão acima referida, os conceitos de imperativo
categórico e de agir por dever acabam desembocando na tese de que, para diferençar-se do
conseqüencialismo, o deontologismo precisa ser entendido num sentido rigorista. No
próximo capítulo, pretendo completar a desmontagem desse erro, através de uma análise
um pouco mais detalhada da concepção kantiana da ação moralmente valiosa, ou seja, da
ação cujo móbil último reside na pura consciência do dever.
Recapitulando: ao serem corretamente interpretados, os conceitos kantianos de
imperativo categórico e de “agir por dever” deixam de ser capazes de estabelecer ou
esclarecer qualquer diferença essencial entre deontologismo e conseqüencialismo, e, por
99

conseguinte, deixam de servir como expressão adequada da compreensão especificamente


deontológica do correto, ou da correção objetiva das ações. Eles só são capazes de servir
como expressão da compreensão especificamente deontológica do correto, contra a
compreensão conseqüencialista, quando são interpretados a partir da confusão entre
“exclusão de interesse patológico pelos resultados” e “exclusão de uma consideração
puramente lógica dos resultados”. Ao serem interpretados a partir dessa confusão,
entretanto, esses conceitos restringem o deontologismo à posição rigorista. Na verdade, o
rigorismo só chega a surgir em virtude desse tipo de interpretação – uma interpretação que,
a meu ver, enfraquece muito o deontologismo, restringindo as possibilidades de ele
contrapor-se com sucesso ao conseqüencialismo. Em outras palavras, o rigorismo apóia-se
numa interpretação equivocada e enfraquecedora dos elementos deontológicos da ética
kantiana. No próximo capítulo, pretendo completar a demonstração dessa tese.
100

Capítulo 3.
A Fórmula da Lei Universal.

No capítulo anterior, afirmei que, para o pesquisador dedicado ao debate entre


deontologismo e conseqüencialismo, as únicas fórmulas kantianas que interessam são a
fórmula da lei universal e a fórmula do fim em si mesmo. Afirmei também que, no presente
trabalho, meu interesse na filosofia kantiana está restrito àqueles elementos que têm
sustentado uma interpretação rigorista do deontologismo, o que significa que não tratarei da
fórmula do fim em si mesmo, mas me limitarei à fórmula da lei universal, na medida em
que só esta última tem alimentado a interpretação rigorista do deontologismo. No presente
capítulo, dedicar-me-ei, justamente, à fórmula da lei universal e à concepção rigorista a que
ela tem se prestado. Antes, porém, de me dedicar a ela, gostaria de fazer uma análise do
argumento pelo qual Kant a introduz na “Primeira Seção” da Fundamentação da Metafísica
dos Costumes, o qual está baseado na noção de “agir por dever”. Com efeito, parece-me
que, à semelhança do que ocorre com o conceito de imperativo categórico, a noção de “agir
por dever” costuma ser acometida por confusões interpretativas que acabam transformando-
a em expressão de um deontologismo rigorista. E, na medida mesmo em que afetam os
conceitos de imperativo categórico e de agir por dever, tais confusões afetam também a
fórmula kantiana da lei universal, direcionando sua interpretação e aplicação num sentido
favorável à concepção rigorista.
O presente capítulo tem dois objetivos básicos. Em primeiro lugar, dissolver as
confusões interpretativas que acometem a noção kantiana de agir por dever, reduzindo-a a
manifestação de um deontologismo rigorista. Em segundo lugar, afastar a interpretação da
fórmula da lei universal que tem alimentado a concepção rigorista do deontologismo.
Chamarei essa interpretação de interpretação “formalística” da fórmula da lei universal. De
acordo com essa interpretação, o procedimento de universalização apóia-se,
essencialmente, na noção de contradição. O rótulo “formalística” deriva, justamente, do
fato de que, para essa interpretação, a correção ou incorreção das regras e ações dependem,
apenas, da condição formal da coerência; em outras palavras, a avaliação moral depende de
uma consideração dos aspectos puramente formais envolvidos na universalização das regras
e princípios práticos. Tentarei mostrar duas coisas: que a interpretação formalística
101

expressa uma concepção insuficiente e implausível da função e funcionamento da fórmula


kantiana; e que ela, na medida mesmo em que se associa à concepção rigorista, enfraquece
sobremaneira a posição deontológica, tornando-a presa fácil das objeções
conseqüencialistas.

3.1) A Noção de Agir por Dever e a Fórmula da Lei Universal.

Como é sabido, na Fundamentação, a fórmula da lei universal é introduzida duas


vezes, quer dizer, nas duas primeiras seções. Na primeira seção, ela é introduzida mediante
análise do conceito de uma vontade moralmente boa, ou seja, de uma vontade cujas ações
são não apenas moralmente corretas, mas, sobretudo, moralmente valiosas e louváveis.
Como bem ensina C. Korsgaard1, o que Kant pretende apresentar nessa Primeira Seção é
uma análise motivacional do conceito de ação correta: trata-se de uma reflexão que,
analisando o motivo pelo qual uma vontade moralmente boa pratica as ações corretas,
pretende extrair critérios conteudísticos que permitam identificar quais são, exatamente, as
ações moralmente corretas. A fórmula da lei universal resulta justamente dessa análise, ou
seja, ela representa o critério conteudístico gerado por ela. Já na Segunda Seção, a fórmula
da lei universal é introduzida mediante análise do conceito de imperativo categórico,
apresentado, por sua vez, como um dos modos nos quais se expressa a racionalidade prática
dos seres racionais finitos.
Embora o conceito que serve de ponto de partida para a análise seja ligeiramente
diferente, o argumento das duas seções é substancialmente o mesmo, ou seja, é constituído
pelos mesmos termos e passos argumentativos. E, a meu ver, trata-se de termos e passos
que deixam a referida fórmula num estado de indeterminação quanto ao modo como deve
ser concretamente interpretada e aplicada, permitindo desde uma interpretação rigorista até,
no outro extremo do leque interpretativo, uma apropriação conseqüencialista. Em outras
palavras, a determinação que confere aplicabilidade efetiva a essa fórmula não pode ser
extraída dos termos e passos argumentativos através dos quais ela é introduzida nas duas
primeiras seções da Fundamentação, mas só pode lhe advir de intuições e reflexões que são

1
Cf. Korsgaard, Christine: Kant’s analysis of obligation; the argument of Groundwork I. Republicado em
Creating the Kingdom of Ends, Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p. 43-76. Ver especialmente a
página 47.
102

externas a tais termos e passos, as quais dizem respeito à configuração das suas duas idéias-
chave: as idéias de máxima e, em segundo lugar, do sujeito (indivíduo legislador) cuja
máxima deve ser submetida ao teste (procedimento) de universalização, ou seja, do sujeito
que deve “poder querer” a universalização da máxima.
***
Comecemos com a argumentação da Primeira Seção, na qual a fórmula da lei
universal é introduzida mediante análise do conceito de ação moralmente valiosa. Como
acaba de ser dito, trata-se de uma reflexão que, analisando o motivo pelo qual uma vontade
moralmente boa pratica as ações corretas, pretende extrair critérios conteudísticos que
permitam identificar quais são, exatamente, as ações moralmente corretas. Em princípio,
esse tipo de análise parece incorrer num círculo vicioso. Com efeito, para praticar as ações
corretas segundo a motivação que lhe é própria, a vontade moralmente boa já precisa saber
quais são as ações corretas, ou seja, já precisa dispor dos critérios de identificação das
ações corretas. Em outras palavras, os critérios de identificação das ações corretas devem
estar disponíveis antes que elas possam ser praticadas por uma vontade moralmente boa;
antes, por conseguinte, de podermos analisar o motivo específico pelo qual uma vontade
desse tipo pratica tais ações. Sendo assim, não faz sentido pretender extrair aqueles critérios
de uma análise desse motivo.
Entretanto, esse círculo pode ser evitado da seguinte maneira: é óbvio que há ações
que são prima facie corretas, cuja identificação não exige critérios mais precisos e
detalhados; ora, se analisarmos o motivo pelo qual uma vontade moralmente boa pratica
essas ações, poderemos extrair critérios de correção mais precisos, abrangentes e fecundos,
úteis para a identificação da correção em situações mais complexas ou problemáticas. E
esse, de fato, parece ser o procedimento que Kant pretende seguir na Primeira Seção da
Fundamentação: analisando as características motivacionais que singularizam o modo pelo
qual uma vontade moralmente boa pratica ações prima facie corretas, como atos de
caridade em relação aos outros, Kant pretende extrair um critério conteudístico – a fórmula
da lei universal – que possa então, nas mais diversas situações de decisão, servir de
princípio à vontade, orientando-a quanto à ação moralmente correta.2

2
Cf, por exemplo, Fundamentação, Primeira Seção, p.404: “Seria fácil mostrar aqui como ela (a razão
humana vulgar - A.S.B.), com esta bússola na mão (a fórmula da lei universal - A.S.B.), sabe perfeitamente
103

A análise kantiana da ação moralmente valiosa (ou seja, da ação praticada por uma
vontade moralmente boa) desdobra-se em três proposições. A primeira é a seguinte: a ação
moralmente valiosa é a ação praticada “por dever”. Em outras palavras, a ação moralmente
valiosa é aquela cujo móbil último é a pura consciência do dever. Essa proposição rendeu
muitas críticas a Kant, as quais, por sua vez, desencadearam muitas tentativas de defender
(talvez fosse melhor “salvar”) a posição kantiana. Entretanto, não precisamos nos deter aqui
nem nas críticas nem nas defesas. Só precisamos destacar dois pontos: em primeiro lugar, o
contexto que confere direção e sentido a essa proposição é constituído, não pelo debate
entre deontologismo e conseqüencialismo, mas, sim, pelo debate entre as concepções
imperativa e atrativa da ética. Fundamentalmente, o que Kant faz com essa proposição é
defender a concepção imperativa da ética, contra as pretensões da concepção atrativa. Com
efeito, para a concepção atrativa, a ação objetivamente correta só tem pleno valor moral
caso sua motivação última se encontre, não na pura consciência do dever, mas numa
disposição afetiva imediatamente favorável a ela, ou seja, naquilo que Kant chama de
“inclinação imediata”, ligada à convicção, própria do agente verdadeiramente virtuoso, de
que tal ação é constitutiva de uma “boa vida”. No contexto da concepção atrativa, a
presença desse tipo de disposição afetiva torna o senso de dever fútil e desnecessário, e é
nesse caso, justamente, que a ação praticada tem pleno valor moral. Para os simpatizantes
da concepção atrativa, portanto, a “primeira proposição” de Kant parece não apenas falsa,
mas, sobretudo, contrária à concepção comum do que é uma “boa vontade” (ou seja, uma
vontade verdadeiramente virtuosa).
Entretanto, como estamos interessados, não nas questões da motivação e do valor
moral da ação, mas, sim, na questão do critério conteudístico da ação objetivamente
correta; - como estamos interessados, não no debate entre a concepção atrativa e a
concepção imperativa, o qual, pelo menos em parte, é alimentado, justamente, pelas
questões da motivação e do valor moral, mas, sim, no debate entre deontologismo e
conseqüencialismo, o qual, além de ser interno à concepção imperativa, é alimentado,
justamente, pela questão do critério conteudístico da ação objetivamente correta; - em
virtude desse nosso interesse, não precisamos nos deter nas discussões que a “primeira
proposição” engendrou.

distinguir, em todos os casos que se apresentem, o que é bom e o que é mau, o que é conforme ao dever ou o
que é contrário a ele” (O grifo é meu).
104

O segundo ponto que eu gostaria de destacar diz respeito, justamente, às


implicações da primeira proposição para o debate entre essas duas posições da concepção
imperativa que são deontologismo e conseqüencialismo. Gostaria de enfatizar o seguinte: a
primeira proposição kantiana é perfeitamente compatível com o modo conseqüencialista de
se posicionar dentro da concepção imperativa. Com efeito, como afirmei no final do
capítulo anterior, ao decidir praticar ações que possam maximizar conseqüências grosso
modo boas no conjunto dos indivíduos sob seu alcance, o agente conseqüencialista pode
perfeitamente concordar com a tese de que as ações que ele pratica só têm pleno valor
moral caso sua motivação última resida na pura consciência do dever; mais ainda, como
efeito dessa sua concordância, ele também pode despreocupar-se inteiramente com o
desenvolvimento de qualquer disposição afetiva favorável a esse tipo de ato, preocupando-
se apenas com a pureza e força do seu senso de dever.
A noção de “agir por dever” só se torna incompatível com a posição
conseqüencialista quando se incorre na já mencionada confusão entre, por um lado,
“exclusão de interesse patológico pelos resultados da ação” e, por outro lado, “exclusão de
uma consideração puramente lógica dos resultados da ação”. Com efeito, é óbvio que a
noção de agir por dever implica “exclusão de interesse patológico pelos resultados da
ação”. Ora, quando esse último elemento é confundido com “exclusão de uma consideração
puramente lógica dos resultados da ação”, a noção de agir por dever implica rejeição da
posição conseqüencialista, ou seja, implica adoção da posição deontológica. Entretanto,
quando a rejeição do conseqüencialismo e a adoção do deontologismo estão amparadas
nesse tipo de confusão, o que surge é uma concepção rigorista do deontologismo, ou seja,
uma concepção segundo a qual o deontologismo, para contrapor-se ao conseqüencialismo,
precisa adotar uma postura de total desconsideração pelos resultados da ação. Manifesta-se
aqui o mesmo equívoco interpretativo que foi discutido por ocasião da análise do conceito
de imperativo categórico.
105

3.1.1) Ou Fim ou Máxima.

A segunda proposição da análise kantiana da ação moralmente valiosa é a seguinte


(Fundamentação, p.399): “uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no fim
que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina”. Essa proposição é
normalmente interpretada como equivalendo a uma rejeição do conseqüencialismo.3 Essa
interpretação parece se basear nos seguintes elementos: tal como apresentada nesse
momento, a proposição kantiana parece sugerir que a decisão de praticar uma dada ação se
fundamenta ou bem na intenção de atingir um fim ou bem numa “máxima”; ora, uma vez
que o conseqüencialista fundamenta suas decisões na intenção de atingir um determinado
fim, ao afirmar que uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no fim a ser
atingido por ela, mas na máxima que a determina, Kant estaria se opondo ao
conseqüencialismo.
Essa interpretação parece se basear, portanto, na alternativa “ou fim ou máxima”. O
problema é que essa alternativa não se sustenta dentro do sistema kantiano. Para Kant, com
efeito, toda ação, tanto a moralmente valiosa quanto a carente de valor moral, está referida
a um fim e a uma máxima.4 A dificuldade reside no fato de que, como bem ensina C.
Korsgaard, a máxima da ação pode ser expressa em diferentes níveis, hierarquicamente
organizados, e de que em alguns desses níveis a máxima contém um fim, ao passo que em
um outro nível isso não ocorre.5 Tomemos o exemplo de um homem que pratica um ato de
caridade “por dever”. Num nível mais imediato, a máxima da sua ação pode ser expressa do
3
Cf. por exemplo Paton, H.J., The Categorical Imperative, p.58: “Kant sustenta que uma ação moralmente
boa não depende, quanto ao seu valor, nem dos resultados que efetivamente produz nem dos resultados que
visa produzir. Ao sustentar isso, ele rejeita todas as formas de utilitarismo”. (O grifo é meu).
Cf. também Tugendhat, E., Vorlesungen über Ethik, p.108: “É no parágrafo 14 (no qual aparece
nossa “segunda proposição” – A.S.B.) que se produz a objeção ao utilitarismo”.
4
Em relação ao fato de que toda e qualquer ação está necessariamente referida a um fim, conferir, por
exemplo, A Religião nos Limites da Simples Razão, p.4 (edição da Academia): “Pois na ausência de qualquer
referência a um fim não pode ocorrer no homem nenhuma determinação da vontade (...)”.
Já em relação ao fato de que toda e qualquer ação está necessariamente referida a uma máxima, tal
fato está implícito na própria definição de máxima como “princípio subjetivo do querer” (Fundamentação,
nota da p.400) e “princípio segundo o qual o sujeito age” (Fundamentação, nota da p.420).
5
Conferir Korsgaard, C., Kant’s analysis of obligation; the argument of Groundwork I, op. cit., p.57-58:
“Kant acredita que toda ação humana tem um propósito, e, portanto, que toda máxima de ação contém um
fim. Uma máxima de ação tem usualmente a forma ‘Praticarei a ação-A, a fim de atingir o propósito-P’. Você
só age a partir dessa máxima se você também adota por máxima ‘Atingir propósito-P’. E uma vez que
também esta última máxima deve ser adotada por alguma razão, há razões para ter propósitos, as quais, de
novo, são expressas em máximas. Embora Kant não enfatize esse ponto, o mais fácil, talvez, é conceber as
máximas como hierarquicamente organizadas.” (O grifo é meu).
106

seguinte modo: “Para ajudar as pessoas, dar-lhes dinheiro, na medida do possível” (“Para
atingir tal fim, praticar tal tipo de ação, nas circunstâncias em que isso é possível”). Essa
máxima (máxima 1) está subordinada a uma máxima mais elevada e genérica (máxima 2),
no sentido de que a máxima 2 expressa o motivo pelo qual se assumiu a máxima 1. Assim,
a máxima 2 pode ser expressa do seguinte modo: “Em geral, tentar ajudar os outros” (“Em
geral, buscar tal fim”). Nesses dois primeiros níveis, portanto, a máxima contém um fim.
Em outras palavras, toda e qualquer máxima, pelo menos em algum dos níveis nos quais ela
se expressa, está necessariamente referida a um fim – e é justamente por isso que toda e
qualquer ação está necessariamente referida a um fim.
Mas a máxima 2 também está subordinada a uma máxima mais elevada e genérica,
a máxima 3. Mais uma vez, a máxima 3 expressa o motivo pelo qual se assume a máxima
2. No nosso exemplo, a máxima 3 representa a resposta à seguinte pergunta: por que você
assumiu a máxima de “Em geral, tentar ajudar os outros” (“Em geral, buscar tal fim”)? Para
Kant, fiel às exigências mais radicais da concepção imperativa da ética, a resposta do
homem moralmente bom só poderia ser a seguinte: “Porque ajudar os outros é pura e
simplesmente obrigatório” (“Porque buscar tal fim é pura e simplesmente obrigatório”). Em
outras palavras, para Kant, a máxima fundamental (máxima 3) do homem moralmente bom
só pode ser a seguinte: “porque é meu dever”. É óbvio que há outras possibilidades de
máxima fundamental, que Kant rejeita. A saber: “porque me dá prazer” e “porque me traz
felicidade (me realiza como ser humano)”. De qualquer modo, nesse terceiro e último nível,
em vez de conter um fim (um propósito), a máxima contém uma disposição fundamental do
sujeito, ou seja, uma compreensão básica do sentido da própria existência. Nesse terceiro e
último nível, como já foi dito, a máxima merece ser chamada de “máxima fundamental”.
Na máxima fundamental, como também já foi dito, o que se pretende especificar é o móbil
último do sujeito.
Voltemos agora à “segunda proposição”: “uma ação praticada por dever tem o seu
valor moral, não no fim que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina”. Ora,
se é verdade que, em seus dois primeiros níveis, a máxima indica o fim que se quer atingir,
a “máxima” que Kant nessa proposição contrapõe ao fim só pode ser a máxima
fundamental, pois esta é a única que, em vez de conter um fim a ser buscado, contém uma
disposição fundamental do sujeito. A proposição de Kant poderia ser reescrita da seguinte
107

forma: “uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não na máxima que indica o
fim que se quer atingir (ou seja, não na máxima subordinada), mas na máxima que expressa
a disposição fundamental do sujeito (ou seja, na máxima fundamental)”. E seria preciso
adicionar o seguinte complemento: “Na ação praticada por dever, a máxima fundamental
do sujeito é: meu motivo (porquê) último é a pura consciência do dever”.
Ora, será verdade que essa segunda proposição, tal como acaba de ser reescrita e
complementada, implica objeção ao conseqüencialismo? Vejamos: em primeiro lugar, é
preciso admitir, com base no que foi visto acima, que tanto o agente kantiano (ou seja,
deontológico) quanto o agente conseqüencialista têm máximas que indicam fins a serem
buscados ou atingidos. É claro que, em relação a essas máximas, ou seja, em relação à
determinação dos fins a serem buscados, há uma diferença importante entre o agente
kantiano e o agente conseqüencialista. No caso do conseqüencialista, o fim a ser buscado é
determinado como “maximização de conseqüências grosso modo boas no conjunto dos
afetados”. No caso do kantiano, embora ainda não saibamos de que modo, exatamente, é
determinado o fim a ser buscado (nosso esforço se dirige, justamente, ao esclarecimento
desse ponto ainda obscuro), já sabemos que ele é determinado de outro modo, distinto do
conseqüencialista. Um outro ponto que precisa ficar claro é o seguinte: dependendo do
modo como é determinado o fim a ser buscado ou atingido, a ação objetivamente correta
será ou essa ou aquela. Em outras palavras, a determinação do fim a ser buscado implica
determinação de qual é, objetivamente, a ação moralmente correta; variando a
determinação do fim a ser buscado, varia a determinação de qual é, objetivamente, a ação
moralmente correta. Em outras palavras ainda, a determinação do fim a ser buscado
equivale à determinação do critério de correção das ações. Sendo assim, o ponto em que
diferem deontólogos e conseqüencialistas pode ser localizado, indiferentemente, na questão
do critério de correção das ações e/ou na questão da determinação do fim a ser buscado.
Voltemos, entretanto, à nossa questão do momento. Acabamos de ver que tanto o
agente kantiano quanto o agente conseqüencialista têm máximas que indicam fins a serem
buscados, e que em relação a essas máximas há uma diferença importante entre o agente
kantiano e o agente conseqüencialista. Mas vimos também que a segunda proposição de
Kant não se refere a essas máximas por assim dizer subordinadas, nem, por conseguinte, ao
problema do critério de correção das ações, mas se refere, sim, à máxima fundamental do
108

sujeito, a qual corresponde, não ao problema do critério de correção, mas ao problema do


critério do valor moral. Vimos também que, para Kant, que nesse ponto expressa a teoria do
valor moral típica da concepção imperativa da ética, o critério do valor moral das ações
reside na apresentação (ou não) da seguinte resposta à questão do motivo (porquê) último:
“porque é meu dever”. Em outras palavras, a segunda proposição diz o seguinte: na vontade
moralmente boa, da qual provêm ações com pleno valor moral, a máxima fundamental é
“porque é meu dever”, em vez de “porque me dá prazer”, ou “porque me traz felicidade”.
Ora, vimos mais acima ser perfeitamente razoável sustentar que, se fosse
perguntado acerca do motivo último da sua decisão de praticar ações que maximizem
conseqüências boas no conjunto dos afetados, o conseqüencialista poderia muito bem
responder “porque esse tipo de ato é pura e simplesmente obrigatório”, em vez de “porque
esse tipo de ato me dá prazer”, ou “porque esse tipo de ato me traz felicidade”. Em outras
palavras, se é verdade que o conseqüencialismo impõe uma obrigação de absoluta
imparcialidade (neutralidade) em relação aos indivíduos que serão positiva ou
negativamente afetados, então também é verdade que a primeira resposta não só cabe na
boca do conseqüencialista, mas cabe melhor do que as outras duas. E se isso é verdade,
então também é verdade que a segunda proposição é perfeitamente compatível com a
posição conseqüencialista.
Chegamos assim ao seguinte resultado: do ponto de vista do ajuizamento moral,
kantianos e conseqüencialistas, embora assumam critérios distintos para a questão da
correção objetiva das ações, podem perfeitamente assumir o mesmo critério para a questão
do valor moral das mesmas, o qual remete à disposição fundamental do sujeito. Um
kantiano tem de admitir que a ação do conseqüencialista, embora seja objetivamente
incorreta, por almejar um propósito equivocado, pode ser “subjetivamente” (ou
“internamente”) louvável, por provir de uma disposição subjetiva moralmente boa ou
valiosa, a disposição, justamente, da pura consciência do dever.
Embora um tanto surpreendente, esse resultado corresponde perfeitamente à tese
que Kant apresenta na “segunda proposição”. Com efeito, a idéia básica dessa proposição é,
justamente, a de que o valor moral da ação não depende do fim que ela, por outro lado, não
pode deixar de almejar, ou seja, não depende do fato de esse fim ser, objetivamente,
acertado ou equivocado, correto ou incorreto. Aliás, é importante destacar esse ponto, para
109

evitar a confusão entre, por um lado, “almejar o fim acertado (ou um fim equivocado)”, e,
por outro lado, “ter (ou não) sucesso na consecução do fim almejado”. A idéia básica dessa
proposição não é, apenas, a de que o valor moral da ação não depende do fato de a ação ter
(ou não) sucesso na consecução do fim que ela busca; é mais do que isso. A idéia básica é:
o valor moral não depende do fim a ser atingido, quer dizer, não depende nem do fato de a
ação ter (ou não) sucesso na consecução do fim que ela busca nem do fato de ela buscar o
fim que é objetivamente acertado (em vez de um fim objetivamente equivocado). Em outras
palavras, o valor moral da ação não depende nem do fato de ela ter sucesso na produção de
um determinado estado de coisas nem do fato de ela visar aquele estado de coisas que é
objetivamente bom ou valioso. Em outras palavras ainda, o valor moral da ação não
depende da qualidade objetiva do estado de coisas externo que ela visa produzir (e não
pode deixar de visar), mas depende, sim, da qualidade subjetiva (interna) da disposição de
alma a partir da qual ela é escolhida e praticada. Se o valor moral da ação derivasse da
qualidade objetiva do estado de coisas externo que ela visa produzir, seria falsa a tese de
que a única coisa que é boa sem restrição é a boa vontade: um estado de coisas
objetivamente bom ou valioso teria precedência sobre o valor da boa vontade. Mas o que
acontece é justo o contrário: mesmo que, como ocorre no caso do conseqüencialista, a
vontade se equivoque quanto ao estado de coisas externo que se deve almejar, mesmo que o
estado de coisas que ela visa produzir seja objetivamente mau, no sentido de equivocado, -
mesmo assim a decisão e a ação podem ser consideradas moralmente valiosas, se a
disposição de alma que as gera e alimenta for internamente boa ou valiosa. Assim, longe de
representar uma objeção ao conseqüencialismo, a “segunda proposição” representa o
reconhecimento de que, do ponto de vista moral, a ação do conseqüencialista, ainda que
seja objetivamente incorreta, pode perfeitamente ser subjetivamente (internamente)
louvável, por provir de uma disposição de alma internamente valiosa, ou seja, por provir de
uma vontade que, ainda que equivocada quanto ao alvo, deve ser classificada como uma
“boa vontade”, cujo valor moral se propaga para as ações que ela pratica.6

6
Neste ponto da minha argumentação, valho-me das idéias que Bruce Aune apresenta nas páginas 7-8 de seu
Kant’s Theory of Morals. (Princeton, Princeton University Press, 1979). Comentando a tese kantiana de que a
boa vontade é a única coisa que pode ser considerada boa sem restrição, escreve ele o seguinte: “Caso
tenhamos um ideal moral – talvez o summum bonum de Kant – poderíamos dizer que uma vontade só é boa
com qualificações. Se ela promove ou ajuda a realizar o summum bonum, ela é realmente boa; mas se ela
falha – devido, talvez, a uma falsa idéia do que é bom – ela pode ser considerada, ao menos parcialmente,
110

Como vimos acima, a interpretação de que a “segunda proposição” implica rejeição


do conseqüencialismo está baseada na tese errônea de que a ética kantiana apóia-se na
alternativa “ou fim (conseqüências, resultados) ou máxima”. Nesse tipo de interpretação,
“agir por dever” equivale a “agir segundo a máxima do dever”, e “agir segundo a máxima
do dever” implica desconsiderar completamente o fim (resultados, conseqüências) a que a
ação está referida. Interpretada dessa maneira errônea, a noção de agir por dever implica
rejeição da posição conseqüencialista, ou seja, implica adoção da posição deontológica.
Além disso, quando a rejeição do conseqüencialismo e a adoção do deontologismo estão
amparadas nesse tipo de equívoco interpretativo, o que surge é uma concepção rigorista do
deontologismo, ou seja, uma concepção segundo a qual o deontologismo, para contrapor-se
ao conseqüencialismo, precisa adotar uma postura de total desconsideração pelos resultados
ou conseqüências da ação. Manifesta-se aqui o mesmo equívoco interpretativo que foi
discutido por ocasião da análise do conceito de imperativo categórico.

3.1.2) A Noção de Lei e a Extração da Fórmula.

Na sua “terceira proposição”, Kant introduz a noção de “Lei”, que é decisiva para o
sucesso do argumento que ele desenvolve nessa primeira seção, o qual, como vimos acima,
consiste numa reflexão que, analisando o motivo pelo qual uma vontade moralmente boa
pratica as ações corretas, pretende extrair um critério conteudístico (o princípio da
universalização) que permita identificar, nas diversas situações de decisão moral, quais são,

como não-boa. Dizer isso não implica que uma boa vontade que erre o alvo está necessariamente sujeita a
censura ou crítica; pelo contrário, se a atitude é moral, nada mais precisa ser exigido do agente. Mas disso não
se segue que uma atitude moralmente irreprochável é, necessariamente, boa sem qualificação. Esse último
ponto, entretanto, não precisa representar um problema para Kant. Ele pode preservar o espírito de sua tese
estabelecendo uma distinção semelhante àquela que os utilitaristas do ato algumas vezes estabelecem entre
ações subjetivamente corretas e ações objetivamente corretas. De acordo com essa última distinção, um ato é
objetivamente correto simplesmente quando, grosso modo, maximiza a felicidade humana; ele é
subjetivamente correto quando é realizado com a intenção de maximizar a felicidade. Kant sem dúvida
objetaria a que os termos objetivo e subjetivo sejam aplicados ao valor moral, mas ele poderia estabelecer
uma distinção correspondente entre, digamos, valor moral interno e valor moral externo. Ele poderia então
dizer que uma boa vontade é internamente boa sem qualificação, mas que ela pode ser externamente má.” (O
grifo é meu).
E eu acrescento, elaborando a lição de Aune: a boa vontade, ou seja, a vontade internamente boa, é
externamente má quando, tendo uma visão errônea do estado de coisas objetivamente bom ou valioso, visa
um fim objetivamente equivocado.
111

exatamente, as ações moralmente corretas. Com efeito, como mostra C. Korsgaard 7 , a


introdução da noção de lei na análise do princípio motivacional subjetivo vai permitir que,
por outro lado, a noção de forma da lei (que por sua vez implica as noções de
universalidade e de possibilidade de universalização) seja extraída como critério
conteudístico da correção objetiva das ações. Resta saber se esse critério já é
suficientemente determinado ou se, ao contrário, exige ulterior determinação.
A terceira proposição da análise kantiana é a seguinte (Fundamentação, p.400):
“Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei”. Um pouco adiante, no mesmo
parágrafo, Kant explica essa proposição da seguinte maneira: “Ora, se uma ação realizada
por dever deve excluir totalmente a influência da inclinação, e com ela todo objeto da
vontade (definido mais acima como “efeito da ação em vista” – A.S.B.), nada mais resta à
vontade que a possa determinar senão, objetivamente, a lei, e, subjetivamente, o puro
respeito por essa lei prática, por conseguinte, a máxima que manda obedecer a essa lei,
mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações”.
Antes de passar à noção de “Lei”, gostaria de fazer um breve comentário
introdutório. Nessa passagem, como aliás em muitas outras, Kant identifica “visar um
efeito (ou seja, um objeto)” com “ter inclinação por esse efeito (ou seja, por esse objeto)”.
A partir dessa identificação, “excluir a influência da inclinação” se torna idêntico a “excluir
toda consideração pelo efeito (pelo objeto) da ação”. Mas essas identificações, como já
demonstramos, constituem uma espécie de preconceito de Kant: é perfeitamente possível
visar um efeito sem ter nenhuma inclinação (ou seja, interesse patológico) por ele. Em
outras palavras, visar um efeito pode ser algo pura e simplesmente obrigatório: nos termos
da noção introduzida nessa passagem, pode ser que a lei moral mande, justamente, visar um
determinado tipo de efeito. Sendo assim, o que a ação realizada por dever necessariamente

7
Cf. Korsgaard, C., Kant’s analysis of obligation; the argument of Groundwork I, op. cit., p.61: “O que a
análise revela é que a razão pela qual a pessoa de boa vontade pratica a ação não é simplesmente que a ação
serve a este ou àquele propósito, mas, sim, que é necessário – ou seja, é lei – praticar tal ação ou ter tal
propósito. A máxima da ação, ou a máxima do propósito, possui aquilo que vou chamar de ‘caráter legal’ (...)
Uma vez que o caráter legal da máxima é o que motiva a pessoa de boa vontade, é isso, e nenhuma outra
coisa, o que torna correto o ato ou o propósito. A análise de Kant identifica a correção da ação,
essencialmente, com o caráter legal da sua máxima. (...) O caráter legal da máxima deve ser intrínseco: a
máxima deve ter o que vou chamar de ‘forma legalitária (lawlike form)’. É por isso que o caráter legal, ou
universalidade, deve ser entendido como forma legalitária, ou seja, como uma exigência de possibilidade de
universalização (universalizability).” (O grifo é meu).
112

exclui não é a pura e simples visada de um efeito, mas é a visada patologicamente


interessada, ou seja, é a inclinação por um certo efeito.
Afastado esse preconceito, podemos continuar com a análise da “terceira
proposição”. Como vimos acima, o resultado das duas primeiras proposições foi o seguinte:
do ponto de vista da motivação do sujeito, a ação moralmente boa exclui toda influência da
inclinação por um objeto ou resultado, para ser determinada pela pura consciência do dever.
O que Kant faz com sua terceira proposição é substituir a noção de dever (ou seja, de
obrigação) pela noção de lei. Em outras palavras, há uma substituição dos termos em que é
formulada a máxima fundamental do agente moralmente bom: em vez de “porque esse é o
meu dever”, tem-se agora “porque essa é a lei”. Ou ainda: em vez de “sempre cumprir meu
dever”, tem-se agora “sempre obedecer à lei”. É claro que, do ponto de vista da motivação
do sujeito, ou seja, do ponto de vista da indicação do seu móbil último, essa substituição é
perfeitamente justificada, e não traz nenhum elemento novo. Por outro lado, fica
igualmente claro que essa substituição, por si só, não resolve o problema da determinação
do conteúdo da lei: não basta ter por máxima “sempre obedecer à lei”; é preciso saber qual
é o conteúdo dessa lei, ou seja, é preciso saber que tipo de ato, exatamente, a lei manda
praticar. Em outras palavras, fica igualmente claro que a terceira proposição, tal como as
duas anteriores, ainda não resolve o problema da determinação do critério conteudístico que
permita discernir quais são, objetivamente, as ações moralmente corretas.
Como já foi indicado, a fórmula da lei universal pretende ser, justamente, uma
resposta a esse problema. E é no parágrafo que vem logo a seguir, na p.402 (edição da
Academia), que Kant introduz a fórmula da lei universal, através de um argumento que
pretende basear-se, unicamente, na assunção da máxima fundamental de “sempre obedecer
à lei”. O argumento encontra-se na seguinte passagem – o grifo é meu:
Mas que lei pode ser então essa, cuja representação, mesmo sem tomar em consideração o efeito
que dela se espera, tem de determinar a vontade, para que esta se possa chamar boa absolutamente
e sem restrição? Uma vez que despojei a vontade de todos os estímulos que lhe poderiam advir da
obediência a qualquer lei, nada mais resta senão a universal conformidade das ações à lei em
geral8, a qual, sozinha, deve servir de princípio à vontade. Isto é: devo sempre proceder de maneira
tal, que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal. Aqui é, pois, a

8
Nessa frase, a tradução de Delbos parece-me melhor do que a de Quintela, pois nesse momento da
argumentação, como demonstrarei a seguir, a noção de “lei” tem de ser entendida, não em termos de “uma lei
universal das ações”, o que sugere uma lei conteudisticamente determinada, mas em termos de “lei em geral”,
o que sugere, apenas, a forma da lei (de qualquer lei, da lei em geral, ou da lei como tal).
O texto em alemão é o seguinte: “(...) so bleibt nichts als die allgemeine Gesetzmässigkeit der
Handlungen überhaupt übrig, welche allein (...)”.
113

simples conformidade à lei em geral (sem tomar como base qualquer lei destinada a certas ações)
o que serve de princípio à vontade, e também o que tem de lhe servir de princípio, para que o
dever não seja por toda parte uma vã ilusão e um conceito quimérico.

***

Antes de passar à tentativa de reconstrução do sentido do argumento que Kant


apresenta nessa passagem, gostaria de apresentar a passagem equivalente da “Segunda
Seção”, para mostrar que se trata, substancialmente, do mesmo argumento, apesar do ponto
de partida ser ligeiramente diferente. Na Segunda Seção, como vimos acima, o ponto de
partida do argumento reside no conceito de imperativo categórico. Com base nas análises
que fizemos no capítulo passado, podemos afirmar que, na Segunda Seção da
Fundamentação, o ponto de partida do argumento, em vez de consistir no motivo pelo qual
o sujeito moralmente bom decide e age, consiste num mandamento objetivamente
incondicionado, ou seja, numa ordem cujo cumprimento se exige igualmente de todos,
independentemente das inclinações e interesses particulares de cada um.
Em ambos os casos, o lugar central é ocupado pela noção de lei. Só que, enquanto
na Primeira Seção a lei é enfocada pelo ângulo da motivação última do sujeito moralmente
bom, quer dizer, pelo ângulo da máxima que confere pleno valor moral às ações desse
sujeito, a qual consiste na máxima de “sempre obedecer à lei”, tomada como máxima
fundamental, ou seja, como máxima que não está subordinada nem misturada a nenhuma
outra, - enquanto na Primeira Seção a lei é enfocada por esse ângulo por assim dizer
subjetivo, na Segunda Seção ela é enfocada por um ângulo mais objetivo, quer dizer, pelo
ângulo da exigibilidade incondicionada da ação que objetivamente se conforma a ela, ainda
que por motivos (princípios subjetivos) relativamente impuros.
Entretanto, também nessa segunda perspectiva, ainda que não se exija a pureza
motivacional enfocada no primeiro caso, pode-se dizer que se exige do sujeito a adoção da
máxima de “sempre conformar-se à lei” – só que, nesse segundo caso, ao contrário do
primeiro, tal máxima pode ainda estar subordinada ou misturada a outras máximas, como,
por exemplo, “sempre buscar o prazer (ou a realização) que o reconhecimento e estima dos
outros me proporcionam”. Por representar um princípio que, embora expressando uma
decisão estruturalmente elevada, ainda pode estar subordinado ou misturado a outros
motivos, a máxima de “sempre conformar-se à lei” merece ser chamada de máxima “quase-
114

fundamental”. Mas a diferença entre máxima “fundamental” e máxima “quase-


fundamental” não influi na estrutura básica do argumento pelo qual Kant introduz a
fórmula da lei universal. Com efeito, do ponto de vista da estrutura básica desse argumento,
a máxima “sempre conformar-se à lei” (tomada como máxima que pode estar subordinada
ou misturada a outras máximas, ou seja, tomada como máxima quase-fundamental)
desempenha exatamente a mesma função que a máxima “sempre obedecer à lei” (tomada
como máxima que não está subordinada nem misturada a nenhuma outra, ou seja, tomada
como máxima fundamental). Tanto é assim que, se olharmos para o argumento pelo qual
nossa fórmula é introduzida na Segunda Seção, veremos que os termos e passos são
substancialmente os mesmos que os da primeira seção.
A passagem da Segunda Seção é a seguinte (Fundamentação, p.420-421 – O grifo é
meu):
Quando penso um imperativo hipotético em geral, não sei de antemão o que ele poderá conter. Só
o saberei quando a condição me for dada. Mas se eu pensar um imperativo categórico, saberei
imediatamente o que é que ele contém. Pois, uma vez que o imperativo só contém, além da lei, a
necessidade da máxima que manda conformar-se com esta lei9, e uma vez que a lei não contém
nenhuma condição que a limite, nada mais resta senão a universalidade de uma lei em geral à qual
a máxima da ação deve ser conforme, e é essa conformidade, unicamente, o que o imperativo
propriamente nos representa como necessário.
O imperativo categórico é, portanto, apenas um único, que é este: age apenas segundo uma
máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal.

Tal como exposto nas duas passagens acima transcritas, o argumento pelo qual Kant
introduz a fórmula da lei universal parece poder ser reconstruído mais ou menos da
seguinte maneira. É verdade que o agente ainda não sabe qual é, exatamente, a lei a que ele
deve obedecer ou conformar-se (quer dizer, “rigorosamente” obedecer ou “meramente”
conformar-se, segundo a distinção acima estabelecida entre os dois ângulos pelos quais
pode ser enfocada a noção de lei). Entretanto, em vez de dizer que se trata dessa ou daquela
lei, o que seria injustificado nesse momento, mantenhamos a indeterminação conteudística,
e digamos que, ainda que a lei esteja conteudisticamente indeterminada, e qualquer que seja
9
Em relação à tradução dessa frase, sigo o entendimento de Quintela e Lewis White Beck, contra Delbos.
Delbos entende que o que o imperativo contém, além da lei, é a necessidade, para a máxima “inferior”, de
conformar-se à lei, ao passo que Quintela e White Beck entendem que o que ele contém é a necessidade da
máxima quase-fundamental “Agir em conformidade com a lei”.
De qualquer modo, ao contrário do problema de tradução mencionado na última nota, esse ponto não
é decisivo, nem para o sentido do argumento kantiano, nem para o sentido geral da minha reconstrução.
O texto em alemão é o seguinte: “Denn da der Imperativ ausser dem Gesetze nur die Notwendigkeit
der Maxime enthält, diesem Gesetze gemäss zu sein, das Gesetz aber keine Bedingung (...)”.
115

o conteúdo que se venha a dar a ela, ela possui uma forma invariável, que é a forma da
universalidade. Na idéia de “Lei”, quer dizer, lei em geral, ou lei como tal, está contida a
forma da universalidade. Ora, o que podemos tentar fazer é, justamente, utilizar a forma da
universalidade para determinar o conteúdo da lei. Em outras palavras, podemos tentar
determinar o conteúdo da lei recorrendo apenas à forma da universalidade. O conteúdo da
lei seria então o seguinte: aja de acordo com a forma da universalidade, ou seja, aja de
forma universalizável.10 Mais precisamente, aja de maneira tal, que a regra que orienta sua
conduta possa ser universalizada, ou seja, possa ser transformada em regra universal de
conduta. O que também pode ser formulado da seguinte maneira: aja de maneira tal, que a
máxima que orienta sua conduta possa ser transformada em lei universal da conduta.
Será que essa formulação pode ser considerada um critério suficientemente
determinado para o discernimento de qual é a regra (ou ação) moralmente correta?

10
Nas páginas 28-34 de seu livro Kant’s Theory of Morals, Bruce Aune faz uma crítica a meu ver
injustificada do argumento pelo qual Kant introduz a fórmula da lei universal. Para ele, o máximo que Kant
poderia extrair da máxima do dever é a seguinte fórmula da lei moral: “Conforme suas ações à lei universal”.
Para Aune, há uma lacuna entre essa fórmula e a fórmula da lei universal, e Kant não preenche essa lacuna no
argumento que desenvolve. Parece-me, entretanto, que a crítica de Aune deriva do fato de ele não perceber
que o ponto de partida de Kant não é tanto a noção de “lei universal”, ou seja, não é tanto a máxima “sempre
conformar minhas ações à lei universal”, mas é, antes, a noção de “lei em geral”, ou seja, a máxima “sempre
conformar minhas ações à idéia de lei em geral”. Na noção de “lei universal”, com efeito, a universalidade
indica apenas o âmbito de aplicação da lei, e não pode ser entendida em termos de forma, ou seja, forma a que
as ações devem conformar-se. Na noção de “lei em geral”, em contrapartida, a universalidade expressa a
forma que caracteriza a lei em geral, ou seja, a idéia de lei em geral. Assim, da noção de “agir de acordo com
a idéia de lei em geral” pode-se extrair a noção de “agir de acordo com a forma que caracteriza a lei em
geral”, ou seja, “agir de acordo com a forma da universalidade” – ou ainda, “agir de forma universalizável”.
A meu ver, se há uma lacuna no argumento do qual Kant tira a fórmula da lei universal, ela reside,
não na introdução da forma da universalidade, mas na introdução do verbo querer. Comentarei essa lacuna um
pouco mais à frente.
116

3.2) A Interpretação Formalística.

3.2.1) Qual Máxima?

Retomemos a fórmula introduzida por Kant: Age apenas segundo uma máxima tal
que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal. Considerando os
diferentes níveis de generalidade em que a noção de máxima pode se colocar e expressar, o
primeiro problema que temos de responder é o seguinte: qual é, exatamente, a máxima que
deve ser submetida ao teste (procedimento) de universalização? Trata-se da máxima que se
expressa do modo mais detalhado e circunstanciado (aquela que acima chamamos de
“máxima 1”)? Ou, ao contrário, trata-se da máxima fundamental (“máxima 3”), na qual se
expressa a decisão mais genérica e abrangente do sujeito? Ou trata-se de uma máxima
intermediária (a “máxima 2”)?
A primeira pista que parece se apresentar é a seguinte: no argumento pelo qual Kant
introduz a fórmula, aparecem, indiferentemente, as máximas fundamental e quase-
fundamental. (Com efeito, o cerne desse argumento consiste na seguinte reflexão: ao
contrário do que ocorre no agir por inclinação e/ou no imperativo hipotético, no agir por
dever e/ou no imperativo categórico não entra em cena nenhum interesse patológico dessa
ou daquela espécie, quer dizer, nenhum elemento empírico individual e variável; só entram
em cena as figuras puras da lei em geral e da máxima de sempre obedecer/conformar-se à
lei em geral. Ora, é justamente o fato de essas figuras não estarem misturadas a nenhum
elemento individual e variável que permite que, a partir delas apenas, se deduza um
conteúdo geral e uniforme, quer dizer, um conteúdo que está perfeitamente inscrito nas
figuras puras da lei e da máxima de sempre obedecer/conformar-se à lei – esse conteúdo é,
justamente, a forma da lei.) Ora, se a máxima fundamental (ou quase-fundamental) aparece
no argumento pelo qual se introduz a fórmula, isso parece sugerir que a máxima que
aparece na própria fórmula (“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne uma lei universal”), ou seja, a máxima que deve ser
imediatamente submetida ao teste de universalização, - parece estar sugerido que tal
máxima é, justamente, a máxima fundamental, ou a quase-fundamental, indiferentemente.
117

Mas será que isso é mesmo assim? Será que pode ser assim? Ou será que se trata
aqui da máxima de nível 1, aquela que expressa a estrutura completa e detalhada da própria
ação que se cogita praticar (“para atingir tal fim, praticar tal tipo de ação, em tal tipo de
circunstâncias”)? Ou será que se trata da máxima de nível 2, que expressa uma decisão um
pouco mais elevada e genérica, a decisão, a saber, de “em geral, buscar tal fim”?
A meu ver, para respondermos a essas questões, precisamos refletir sobre dois
pontos. O primeiro é o seguinte. Se a máxima que aparece na própria fórmula é uma
máxima que deve (precisa) ser submetida a um teste de universalização, então ela tem de
ser uma máxima em relação à qual o teste de universalização faça sentido. Isso significa
que ela tem de ser uma máxima da qual em princípio não sabemos se passa (ou não) no
teste de universalização. Ora, parece evidente que a máxima fundamental (ou a quase-
fundamental, indiferentemente) tem de ser tomada como uma máxima que já passou no
teste de universalização. Em outras palavras, parece evidente que não faz sentido perguntar
se a máxima “sempre obedecer/conformar-se à lei” pode ou não transformar-se em lei
universal. Na verdade, essa máxima já é a lei universal, enfocada, entretanto, não do ponto
de vista do conteúdo das ações, e sim do ponto de vista da motivação do sujeito. Desse
último ponto de vista, a “lei universal” se expressa, justamente, nos seguintes termos:
“Sempre obedeça/conforme-se à lei, quaisquer que sejam seus interesses patológicos
particulares”. O problema é que essa formulação “subjetivo/motivacional” ainda não diz o
que, exatamente, essa lei manda fazer. A função do teste de universalização prescrito pela
fórmula da lei universal é, justamente, responder a esse último problema.
Assim, para respondermos à questão sobre o modo pelo qual devemos expressar a
máxima a ser submetida ao teste de universalização, precisamos refletir mais detidamente
sobre a função que se deve atribuir a esse teste e à fórmula da lei universal. E em relação a
esse ponto, gostaria de me socorrer do seguinte ensinamento de C. Korsgaard:
Na Fundamentação, Kant afirma que, para tomar decisões morais, a melhor fórmula é a Fórmula
da Lei Universal (Fundamentação, p.436-437). Curiosamente, na Metafísica dos Costumes, não é
feito nenhum uso direto da Fórmula da Lei Universal: em vez dela, são usados o Princípio
Universal da Justiça e o Princípio Supremo da Virtude. Há duas razões possíveis para isso. Uma,
evidentemente, é que Kant mudou de idéia. Uma outra, melhor, é que os princípios morais da
Metafísica dos Costumes situam-se num nível genérico, e Kant pode ainda pretender que se deva
usar a formulação da lei universal no nível das decisões particulares. Essa segunda interpretação
tem certa plausibilidade, pois a Fórmula da Lei Universal é proposta como um método de decisão.
118

Ela não é uma regra, nem um método para produzir regras gerais, mas um método para tomar
11
decisões em situações concretas. (o grifo é meu).

De acordo com essa interpretação, portanto, a função que se deve atribuir à fórmula
da lei universal é a de permitir a tomada de decisões em situações concretas e específicas.
Entendida dessa maneira, a fórmula diz que, para tomar uma decisão numa situação
concreta e específica, deve-se submeter a máxima da ação a um teste de universalização.
Ora, se a função desse teste é gerar uma decisão concreta e específica, a máxima que deve
ser submetida a ele é aquela que incorpora todos os elementos que são relevantes para uma
decisão concreta e específica. Que espécie de máxima é essa? Aquela que, sem se perder
em detalhes irrelevantes, descreve a verdadeira natureza do ato que concretamente está em
questão. Ora, para descrever a verdadeira natureza do ato que concretamente está em
questão, a máxima tem de descer aos elementos que conferem especificidade e
determinação a tal ato. Em outras palavras, para descrever a verdadeira natureza do ato, a

11
Cf. An introduction to the ethical, political, and religious thought of Kant, nota 25, p. 39 (republicado em
Creating the Kingdom of Ends, p.3-42).
Em Moral Deliberation and the Derivation of Duties (in The Practice of Moral Judgment, p.132-
158), Barbara Herman revela sua “simpatia” por essa concepção do procedimento de universalização. Na
p.132, por exemplo, ela afirma o seguinte: “Duas funções são comumente atribuídas ao procedimento do
imperativo categórico. Pensa-se que ele ou sustenta uma derivação de deveres ou fornece um algoritmo para a
deliberação moral. O modelo da derivação de deveres foi o mais duradouro na história da interpretação do
procedimento do imperativo categórico, e é, provavelmente, a fonte da maioria das costumeiras críticas aos
resultados substantivos da ética kantiana. (...) A concepção mais recente da função do procedimento do
imperativo categórico, e aquela que eu julguei ser a mais interessante, atribui-lhe antes o papel de fornecer um
conjunto de instruções para a deliberação ou ajuizamento moral, através do qual um indivíduo, em
circunstâncias específicas e com intenções específicas, pode determinar a permissibilidade de uma ação ou
fim que ele se propõe.”
Nesse artigo, Herman acaba abandonando essa concepção “deliberativa” do teste de universalização,
mas por uma razão a meu ver equivocada. Ela com razão percebe que a concepção “deliberativa” implica que
a máxima a ser submetida ao procedimento deve incluir circunstâncias e intenções específicas, ou seja, as
circunstâncias e intenções que especificam a ação que o indivíduo está querendo testar. E a partir disso ela
afirma o seguinte: “Parece haver um obstáculo decisivo à concepção de que o procedimento do imperativo
categórico deve regular a deliberação moral: em qualquer das interpretações mais plausíveis dos dois testes do
procedimento do imperativo categórico, a introdução de máximas com circunstâncias específicas faz com que
o procedimento deixe de funcionar.” (p.136).
O problema é que Herman se atém à interpretação “formalística” do procedimento de
universalização, segundo a qual tal procedimento baseia-se, essencialmente, na noção de “contradição”. As
interpretações que ela considera só diferem no modo de entender que tipo de contradição está em jogo no
procedimento – ela simplesmente não considera a possibilidade de que o procedimento possa ser concebido e
aplicado sem o recurso à noção de contradição. Na verdade, ela chega a considerar essa possibilidade, numa
nota em que menciona os comentários de Scanlon sobre a Fundamentação. Mas ela descarta a interpretação
“não-formalística” de Scanlon com uma frase que revela o quanto lhe é importante o peso do texto e da
tradição kantianos: “A considerável vantagem é obtida, porém, ao custo de se abandonar a idéia de que a
noção de contradição desempenha um papel central no procedimento do imperativo categórico.” (p.141, nota
10). Ora, por que o abandono dessa idéia representa um “custo”? A razão só pode encontrar-se na fidelidade
ao texto e à tradição kantianos.
119

máxima tem de descer, do plano das intenções genéricas e globais para o plano do
propósito específico do ato, das circunstâncias em que esse propósito está sendo mantido,
das conseqüências que, nessas circunstâncias, vão provavelmente se produzir; com efeito,
propósito, circunstâncias e conseqüências prováveis são, justamente, os elementos que
conferem especificidade e determinação ao ato (ou ao tipo de ato) que concretamente está
em questão.12
O que eu estou querendo dizer é o seguinte. A fórmula da lei universal não deve ser
entendida como um método para justificar intenções genéricas e globais, como por
exemplo, a intenção de “não mentir”. Se ela fosse apenas isso, ela seria trivialmente pobre,
pois, no plano das intenções genéricas e globais, todas as concepções morais estão
praticamente de acordo. A fórmula da lei universal deve ser entendida, sim, como um
método para justificar decisões concretas e específicas, como, por exemplo, a decisão de,
nessa ou naquela situação específica, ater-se à intenção genérica, quer dizer, não mentir, ou,
ao contrário, desviar-se da intenção genérica, quer dizer, mentir. Afinal, o que caracteriza
uma intenção genérica e global é justamente o fato de que, em princípio, ela admite a
possibilidade de que, numa determinada situação específica, haja boas razões para desviar-
se dela. A função do teste de universalização prescrito pela fórmula da lei universal é
justamente descobrir, numa determinada situação específica, de que lado estão as boas
razões: se do lado da adesão à intenção genérica, ou, ao contrário, do lado do desvio
(exceção) da mesma. Ora, se essa é a função do teste, a máxima que se submete a ele deve

12
Ver, por exemplo, Barbara Herman, The Practice of Moral Judgment (1985), in The Practice of Moral
Judgment, p.73-93. Conferir p.75: “Para usar o imperativo categórico como princípio de ajuizamento ou
avaliação, o agente deve primeiro produzir sua máxima. Ou seja, ele deve formular um princípio (subjetivo)
que corretamente descreva o que ele está pretendendo fazer, e por que (para que fim e em resposta a que
motivo). Como a máxima é um princípio subjetivo da ação, ela contém tantos itens particulares, referidos às
pessoas e circunstâncias, quantos o agente julgar necessários para descrever e explicar a ação que ele se
propõe.”
Essa interpretação também foi anteriormente defendida por Marcus G. Singer. Conferir
Generalization in Ethics (Nova York, Atheneum, 1971), p.237: “O imperativo categórico é proposto como
um princípio para determinar se um ato qualquer é certo ou errado. Mas ele não pode ser aplicado a uma ação
considerada independentemente de um determinado contexto. Ele sempre deve ser aplicado a uma ação
considerada como ocorrendo em certas circunstâncias, ou para um certo propósito. A prova disso é que uma
referência às circunstâncias e propósitos da ação está necessariamente envolvida na ‘máxima’ da ação. E,
Kant insiste, é a máxima da ação o que deve ser querido como lei universal, não a ação tomada
independentemente de alguma determinada máxima, ou seja, independentemente de algum determinado
propósito ou circunstância”. Conferir também p.245: “Uma vez que especificar a máxima de uma ação é
especificar algo das suas circunstâncias e do seu propósito, especificar a máxima de uma ação é parte daquele
processo que num capítulo anterior eu descrevi como ‘preencher o contexto do ato’. Assim especificar a
máxima de uma ação é, na verdade, especificar mais claramente a natureza da ação”.
120

ser apresentada, não em termos vagos e genéricos, como, por exemplo, a máxima de “não
mentir”, mas, sim, em termos razoavelmente precisos e circunstanciados, como, por
exemplo, a máxima de “em tal tipo de situação, e diante dessa espécie de conseqüência, não
mentir” (Ou então: “Tendo em vista o propósito P, mentir nesse tipo de situação”). Com
efeito, a consideração das circunstâncias e conseqüências é essencial para o julgamento de
se há ou não boas razões para desviar-se da intenção genérica de “não mentir”.13
É claro que esse tipo de interpretação parece contrariar a definição kantiana de que a
máxima é um tipo de “princípio prático”, ou seja, uma proposição que expressa uma
“determinação geral da vontade, incluindo sob si diversas regras práticas”.14 Em relação a
essa definição, entretanto, é preciso fazer algumas considerações. Consideremos, por
exemplo, uma proposição do tipo “não fazer falsas promessas”. Será que uma proposição
como essa pode ser tomada como um princípio prático, quer dizer, como princípio de um
raciocínio prático? Em outras palavras, será que ela é capaz de funcionar como princípio de
um raciocínio prático, quer dizer, de um raciocínio cuja conclusão é uma decisão concreta e
específica? Ou será que ela, ao contrário, tem de ser tomada como expressão de uma
intenção absolutamente vaga e indeterminada, a qual, justamente por ser vaga e
indeterminada, não é capaz de funcionar como princípio de um raciocínio destinado a
produzir e justificar uma decisão concreta e específica? A meu ver, ela tem de ser tomada
nesse último sentido, ou seja, como expressão de uma intenção vaga e indeterminada. A
meu ver, para poder ser tomada como uma determinação geral da vontade, quer dizer, para
poder funcionar como princípio de um raciocínio prático, a proposição referente às falsas
promessas tem de incluir algum tipo de menção às circunstâncias nas quais se mantém e
justifica a decisão de ater-se (ou desviar-se) à intenção vaga e indeterminada de “não fazer
falsas promessas”. Em outras palavras, para poder funcionar como princípio de um
raciocínio prático, esse tipo de proposição tem de apresentar-se em termos minimamente
circunstanciados, como, por exemplo, “não fazer falsas promessas, quaisquer que sejam as
circunstâncias”, ou, ao contrário, “não fazer falsas promessas, exceto em circunstâncias

13
A mesma interpretação é defendida por J. Rawls no capítulo sobre Kant do livro Lectures on the History of
Moral Philosophy (editado por Barbara Herman, Harvard University Press, 2000). Com efeito, na p.168,
Rawls formula da seguinte maneira a máxima que, na sua interpretação da fórmula da lei universal, deve ser
submetida ao procedimento de universalização: “Fazer X nas circunstâncias C a fim de produzir Y, a não ser
que Z (onde X é uma ação e Y um fim, um estado de coisas).”
14
Cf. Crítica da Razão Prática, Livro I, Capítulo 1, parágrafo 1 - “Definição”, p.19 (edição da Academia).
121

extraordinárias, desse ou daquele tipo, e tendo em vista um certo tipo de conseqüência”.


Em outras palavras, o verdadeiro princípio prático não é, apenas, “não fazer falsas
promessas”, – esse tipo de proposição expressa apenas uma intenção vaga e indeterminada,
incapaz de servir como princípio de justificação de qualquer decisão mais específica. O
verdadeiro princípio prático, quer dizer, a proposição “máxima” do raciocínio prático, é,
justamente, “não fazer falsas promessas, quaisquer que sejam as circunstâncias”, ou “não
fazer falsas promessas, exceto em circunstâncias extraordinárias, desse ou daquele tipo”.
O que eu estou querendo dizer, em outras palavras, é o seguinte. É verdade que,
para Kant, a máxima, tendo o caráter de princípio do raciocínio prático, quer dizer, tendo o
caráter de proposição à qual subjazem diversas regras e decisões mais específicas, não pode
ser completamente particularizada e detalhada. Mas o caráter de princípio não deve ser
confundido com vagueza e indeterminação. Ainda que a máxima não possa nem deva ser
completamente particularizada e detalhada, ela tem de ser minimamente circunstanciada, na
medida em que uma menção mínima às circunstâncias é essencial para a função que lhe é
própria, que é a função de servir como princípio de justificação de uma regra ou decisão
mais específica. Sem essa menção mínima, cai-se na vagueza e indeterminação, ou seja,
perde-se a função de justificar regras e decisões mais específicas.
O resultado dessas reflexões pode ser resumido da seguinte maneira. Considerando
a função que se deve atribuir ao teste de universalização expresso na fórmula da lei
universal, conclui-se que a máxima que deve ser submetida a esse teste não é, nem a
proposição que expressa a disposição fundamental do sujeito, quer dizer, a compreensão
básica do sentido da sua própria existência, nem a proposição que expressa uma intenção
relativamente vaga e indeterminada, como a intenção de “em geral, perseguir tal fim”, ou
“em geral, praticar tal tipo de ato”; a máxima que deve ser submetida ao teste é, ao
contrário, a proposição que expressa uma intenção suficientemente circunstanciada, quer
dizer, a proposição que faz algum tipo de menção às circunstâncias nas quais se coloca e
mantém a intenção de praticar ou não praticar tal tipo de ato. Nos termos anteriormente
mencionados, trata-se da máxima de nível 1, que é a única que está suficientemente
próxima da decisão mesma que precisa ser justificada. Em outras palavras, trata-se da
máxima que, fazendo uma menção mínima às circunstâncias e conseqüências do tipo de
ação que está em questão, expressa a estrutura básica do ato; essa é a única máxima, com
122

efeito, capaz de servir como princípio de justificação da ação mesma que se pretende
praticar.15

3.2.2) Os Testes de Poder Conceber e Poder Querer.

Havíamos visto que o conteúdo da lei moral kantiana pode ser formulado da
seguinte maneira: aja de acordo com a forma da universalidade; vale dizer, aja de forma
universalizável; vale dizer, aja de maneira tal, que a máxima que tipifica sua conduta possa
ser universalizada. Ora, depois de se resolver o problema de saber qual é, exatamente, a
máxima que deve ser submetida ao teste de universalização, o problema que se coloca diz
respeito à introdução do verbo “querer” na fórmula da lei. Afinal, a fórmula diz: age apenas
segundo aquela máxima da qual tu possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei
universal. Ora, há uma diferença entre dizer, por um lado, que a máxima deve poder ser
universalizada, e dizer, por outro lado, que se deve poder querer que a máxima seja
universalizada. O fato de a máxima poder ser universalizada parece depender apenas de
características da própria máxima, ao passo que o fato de se poder querer a universalização
da máxima parece depender de características da vontade do sujeito. Aliás, o próprio Kant
reconhece essa diferença, ao afirmar que, em alguns casos, a universalização da máxima
gera uma contradição que é interna à própria máxima, ao passo que, em outros casos, a
universalização da máxima leva a uma contradição na vontade do sujeito.16

15
É interessante destacar que, na Crítica da Razão Prática, na seção que trata, justamente, da Típica da
Faculdade de Julgar Pura Prática, Kant aplica a fórmula da lei universal aos mesmos exemplos da Segunda
Seção da Fundamentação, mas apresenta esses exemplos não mais em termos de máximas, mas em termos de
ações, pura e simplesmente. Conferir p.69 (edição da Academia): “A regra da faculdade de julgar submetida
às leis da razão pura prática é a seguinte: pergunte a você mesmo se, caso a ação que você propõe devesse
ocorrer segundo uma lei da natureza da qual você mesmo fizesse parte, você poderia considerá-la como
possível por sua própria vontade. É segundo essa regra, de fato, que cada um julga se as ações são
moralmente boas ou más. Assim, a gente diz: Como! Se cada um tomasse a liberdade de enganar, quando
julgasse vantajoso, ou se considerasse autorizado a encurtar a própria vida, quando estivesse completamente
entediado dela, ou olhasse para a miséria dos outros com total indiferença, e se você pertencesse a uma tal
ordem de coisas, você estaria bem, com assentimento da sua vontade, nessa situação?” (O grifo é meu).
Ao comentar essa passagem em seu livro Generalization in Ethics (Nova York: Atheneum, 1971),
Marcus Singer afirma o seguinte: “O fato de o imperativo categórico ser aqui aplicado diretamente às ações, e
não às máximas das ações, não faz absolutamente nenhuma diferença.” (p.248).
16
Cf. Fundamentação, p.424: “Algumas ações são de tal ordem que sua máxima não pode sequer ser pensada,
sem contradição, como lei universal da natureza, e muito menos ainda se pode querer que ela devesse se
tornar uma tal lei. Em outras não se encontra, é verdade, essa impossibilidade interna, mas é contudo
impossível querer que a máxima viesse a ser erguida à universalidade de uma lei da natureza, pois que uma tal
vontade se contradiria a si mesma. Facilmente se vê que as do primeiro gênero contrariam o dever estrito ou
123

A introdução do verbo “querer” na fórmula da lei levanta três problemas. O


primeiro é o seguinte: por que Kant julgou necessário introduzir esse verbo? Por que Kant
não se restringiu à formulação de que a máxima deve poder ser universalizada? A resposta
a essa questão está claramente indicada na discussão dos quatro exemplos com que Kant
ilustra a aplicação da fórmula. A razão da introdução do verbo querer reside no fato de que,
no caso de algumas ações moralmente incorretas, a máxima pode perfeitamente ser
universalizada, quer dizer, pode-se perfeitamente universalizar a máxima; no caso dessas
ações, a coisa que não se pode é querer a universalização da máxima. Isso significa,
precisamente, que a formulação de “poder universalizar a máxima” não é suficiente para
discriminar, em todos os casos, as máximas moralmente corretas das incorretas. Só a
introdução do verbo querer, por meio da formulação de “poder querer a universalização da
máxima”, fornece um critério exaustivo para a correção das máximas.
O segundo problema levantado pela introdução do verbo querer é o seguinte: se é
verdade que Kant precisava desse verbo, até que ponto ele tinha o direito de introduzi-lo?
Até que ponto essa introdução é legítima, considerando que a fórmula deve ser introduzida
com base apenas nas figuras da lei e da máxima de sempre conformar-se à lei? Afinal, o
argumento pelo qual a fórmula foi introduzida parecia resumir-se aos seguintes passos:
ainda não sabemos qual é, exatamente, a lei a que devemos obedecer, mas sabemos que
sempre se deve agir de acordo com a idéia de lei em geral; ora, da noção de “agir de acordo
com a idéia de lei em geral” pode-se extrair a noção de “agir de acordo com a forma que
caracteriza a lei em geral”, ou seja, “agir de acordo com a forma da universalidade”. Ora,
dizer “sempre se deve agir de acordo com a forma da universalidade” parece igual a dizer
“sempre se deve agir de modo que se possa universalizar a máxima que tipifica a ação”;
entretanto, dizer “sempre se deve agir de acordo com a forma da universalidade” não
parece igual a dizer “sempre se deve agir de modo que se possa querer que a máxima que
tipifica a ação venha a ser universalizada”. Ao que tudo indica, a introdução do verbo
querer representa um passo injustificado e, nesse sentido, ilegítimo.
Com relação a esse problema, gostaria de dizer o seguinte: mesmo que seja verdade
que existe uma lacuna na passagem de “poder universalizar a máxima” para “poder querer a
universalização da máxima”, quer dizer, mesmo que seja verdade que a introdução dessa

estreito (rigoroso), e as do segundo o dever largo (meritório)”. (O grifo é meu). Quanto à tradução do termo
unnachlasslich, optei por “rigoroso”, seguindo Delbos.
124

última formulação representa um passo analiticamente injustificado, podemos conceder a


Kant esse passo, uma vez que a lacuna não chega a implicar um desvio de sentido. Kant
simplesmente reforçou um sentido prático-volitivo que já se anunciava na idéia de uma lei
prática, ou seja, uma lei para a vontade. Em outras palavras, ao extrair o procedimento de
universalização da noção de uma lei para a vontade, Kant já anunciava a possibilidade de
que a universalização em questão viesse a se apoiar em características, não apenas da ação
e da máxima que mais imediatamente tipifica a ação, mas também da vontade como um
todo.
O terceiro problema levantado pela introdução do verbo querer é o seguinte: se é
verdade que Kant precisava desse verbo, e que podemos lhe conceder a introdução do
mesmo, até que ponto essa introdução significa que se deve pura e simplesmente
menosprezar a formulação de “poder universalizar a máxima”? Até que ponto essa
introdução significa que se deve tratar essa última formulação como algo que pode ser pura
e simplesmente dissolvido na formulação de “poder querer a universalização da máxima”?
Em outras palavras, até que ponto se deve pura e simplesmente menosprezar a diferença
entre “poder universalizar a máxima” e “poder querer a universalização da máxima”,
tratando a primeira como uma formulação que pode ser pura e simplesmente dissolvida na
segunda? É a esse problema que quero me dedicar a partir de agora.
***
Para tratar do problema acima especificado, gostaria de passar para um breve
comentário sobre os exemplos com que Kant ilustra a aplicação da fórmula da lei universal.
Com efeito, na Segunda Seção da Fundamentação, depois de introduzir a fórmula da lei
universal, Kant faz duas coisas. Primeiro, ele introduz a fórmula da lei da natureza; depois,
ele apresenta quatro exemplos de aplicação, que são altamente relevantes para a discussão
do problema acima especificado. Entretanto, a questão que esses exemplos primeiramente
colocam é a seguinte: de que fórmula esses exemplos são exemplos de aplicação? Trata-se
de exemplos de aplicação da fórmula da lei universal e/ou da fórmula da lei da natureza,
indiferentemente? Ou trata-se de exemplos de aplicação somente da fórmula que veio em
último lugar, que é a fórmula da lei da natureza? No capítulo anterior, argumentamos que a
fórmula da lei universal e a fórmula da lei da natureza são fundamentalmente equivalentes,
o que significa que os exemplos são exemplos de aplicação das duas fórmulas, quer dizer,
125

de uma e/ou de outra, indiferentemente. Só que, ao ser confrontada com os exemplos (1) e
(3), que dizem respeito aos deveres para consigo mesmo, essa interpretação enfrenta uma
dificuldade. Com efeito, nos exemplos (1) e (3) Kant recorre a considerações teleológicas
que parecem só fazer sentido na medida em que se introduz um elemento teleológico na
noção de lei, o que por sua vez só parece fazer sentido na medida em que se faz uma
distinção entre a “lei universal” e a “lei da natureza”, embutindo nessa última um elemento
teleológico que não estava contido na primeira, e interpretando-a, justamente, como lei
teleológica da natureza. É essa, por exemplo, a interpretação de Paton.17
A interpretação de Paton, entretanto, enfrenta dois obstáculos. Em primeiro lugar,
ela contraria a afirmação de Kant (na p.436 da Fundamentação) de que as formulações do
princípio da moralidade podem ser reduzidas a apenas três, na medida em que essa
afirmação, como tentamos demonstrar no capítulo anterior, só faz sentido caso se reduza a
fórmula da lei da natureza à fórmula da lei universal, tomando-a como uma variante que,
longe de introduzir qualquer aspecto novo, simplesmente facilita a percepção do modo
como se deve concretamente aplicar a fórmula da lei universal. Além disso, à interpretação
de Paton aplica-se o seguinte veredicto de Tugendhat, que me parece inteiramente
adequado e justificado: “Qualquer outra interpretação atribuiria a Kant o erro crasso de ter
infiltrado, na passagem da primeira para a segunda variante da 1ª fórmula, um fator
adicional (um fator teleológico - A.S.B.), que em parte alguma é mencionado”.18
O que parece se apresentar aqui, portanto, é a seguinte alternativa: ou bem (a)
estabelecemos uma diferença significativa entre a fórmula da lei universal e a fórmula da
lei da natureza, embutindo na segunda um elemento teleológico que não estava contido na
primeira, - e com isso tornamos perfeitamente viável a admissão dos exemplos (1) e (3) na
discussão do teste de universalização que está em jogo aqui; ou bem (b) adotamos a tese de
que a fórmula da lei universal e a fórmula da lei da natureza são essencialmente
17
Cf., por exemplo, The Categorical Imperative, p.149: “ (...) e, se não reconhecermos que as leis da natureza
que Kant tem em mente não são leis causais, mas leis teleológicas, não há possibilidade de sequer
começarmos a entender sua doutrina”.
18
Cf. Vorlesungen über Ethik, p.153, nota 11. A mesma tese é defendida por P. Stratton-Lake e Guido A. de
Almeida, embora num tom um pouco mais suave. Cf. Guido de Almeida, Sobre as “Fórmulas” do Imperativo
Categórico, Op. Cit., p.92: “Contra essa interpretação (a de Paton – A.S.B.), Stratton-Lake argumenta antes
de mais nada (e corretamente, a meu ver): primeiro, que não é claro que, ao propor a fórmula da lei da
natureza, Kant tinha em vista leis teleológicas, e não mecânicas, da natureza. Mas, além disso, que também é
falso que Kant a descreva como dando um conteúdo à fórmula da lei universal, pois, muito pelo contrário, ele
a apresenta como também descrevendo a forma das máximas. E, finalmente, que a primeira das fórmulas, a
fórmula da lei universal, já se refere a máximas e, por conseguinte, não é tão vazia assim como pensa Paton.”
126

equivalentes, e de que em nenhuma das duas se devem embutir considerações teleológicas,


- e com isso sugerimos que os exemplos (1) e (3) devem ser negligenciados na discussão do
teste de universalização que está em jogo aqui.
Diante desse dilema, prefiro ficar com a alternativa (b). E isso pela seguinte razão:
ao argumento contra a interpretação de Paton que acaba de ser apresentado, acrescenta-se o
fato de que, no contexto da concepção imperativa da ética, o lugar central, se não exclusivo,
é ocupado pelos deveres para com os outros, o que significa que, no contexto dessa
concepção, os deveres para consigo mesmo se tornam absolutamente secundários, se não
inexistentes.19 E isso por sua vez significa que eles não precisam ser admitidos na discussão
do teste de universalização que está em jogo aqui; mais ainda, significa que, se sua
admissão criar problemas de interpretação, eles devem ser excluídos da discussão.
Assim, para discutirmos qual a importância que se deve conceder à diferença entre
“poder universalizar a máxima” e “poder querer a universalização da máxima”,
restrinjamo-nos aos exemplos (2) e (4), que dizem respeito aos deveres para com os outros.
No exemplo (2), que é idêntico ao exemplo apresentado na primeira seção (p.403), Kant
aplica a fórmula da lei universal à máxima do indivíduo que, para livrar-se de apuros, está
para fazer uma falsa promessa. No exemplo (4), Kant aplica a fórmula à máxima do
indivíduo que, para evitar incômodos, resolve não se importar com as necessidades dos
outros, ou seja, resolve não ajudar aqueles que de algum modo pedem ou esperam ser
ajudados.
Nenhuma das duas máximas passa no teste de universalização. Mas a razão pela
qual respectivamente não passam é diferente. No exemplo (2), a máxima não passa porque
não se pode universalizá-la, ou seja, porque não se pode sequer conceber sua
universalização. Se a máxima “para livrar-se de apuros, fazer uma promessa não
verdadeira” fosse transformada em regra universal de conduta, quer dizer, se todos, ao se
verem em apuros, passassem a fazer promessas não verdadeiras, ninguém acreditaria mais
em qualquer promessa feita em situações de apuro, e com isso o ato de prometer em tais

19
Cf. Tugendhat, Vorlesungen über Ethik, p.153: “Além disso, pode-se por princípio deixar claro que, do
imperativo categórico, pelo menos na 1ª fórmula, não se deixam de modo algum derivar deveres para consigo
mesmo, pois o sentido do imperativo é, justamente, ordenar ações e omissões para com os outros, por meio da
reflexão de que não se poderia querer que os outros se comportassem assim para com a gente. (...) O terceiro
exemplo de Kant deve ser rejeitado, por ser igualmente sofístico. O resultado é que, do modo como Kant
entende o imperativo categórico, não podem existir deveres para consigo mesmo.” (O grifo é meu).
127

situações perderia completamente o sentido: ou ele se tornaria pura e simplesmente


impossível, ou ele se tornaria absolutamente ineficaz para o propósito de livrar-se de
apuros. Assim, ao tentarmos transformar a máxima em lei universal de conduta,
percebemos que surge uma contradição interna, no sentido de que, num mundo regido por
tal lei, não seria mais possível adotar tal máxima (com efeito, se o ato de prometer se
tornasse absolutamente ineficaz para o propósito de livrar-se de apuros, não seria mais
possível adotar a máxima “para livrar-se de apuros, fazer uma promessa não verdadeira”,
pois a validade prática dessa máxima já estaria desde o princípio aniquilada). Em outras
palavras, ao ser transformada em lei universal, a máxima destrói-se a si mesma, e é nesse
sentido que não se pode universalizá-la, ou seja, não se pode sequer conceber sua
universalização.20
Já no exemplo (4), a máxima não passa no teste porque, embora se possa
universalizá-la (ou seja, conceber sua universalização), não se pode querer sua
universalização: a vontade que decidisse transformar a máxima em questão (“para evitar
incômodos, não ajudar aqueles que de algum modo pedem ou esperam ser ajudados”) – a
vontade que decidisse transformar tal máxima em lei universal entraria em desacordo
consigo mesma, na medida em que, por essa decisão, ela se privaria de um auxílio que, em
muitos outros casos, ela presumivelmente deseja, ou pode perfeitamente vir a desejar. Nas
palavras de Kant, “Pois uma vontade que decidisse tal coisa por-se-ia em contradição
consigo mesma; podem com efeito descobrir-se muitos casos em que a pessoa em questão
precise do amor e compaixão dos outros, e nos quais, por essa lei natural nascida da sua
própria vontade, ela roubaria de si mesma toda esperança daquele auxílio que para si
deseja”. (Fundamentação, p.423). Ora, dizer que, ao tentar querer a universalização da
máxima, a vontade entra em contradição consigo mesma, - dizer isso equivale a dizer,
justamente, que o agente não pode querer a universalização da máxima.
Para Kant, quando não se pode conceber a universalização da máxima, não se pode
tampouco querê-la – “Algumas ações são de tal ordem que sua máxima não pode sequer ser
pensada, sem contradição, como lei universal da natureza; muito menos ainda se pode
querer que ela venha a se tornar tal lei” (Fundamentação, p.424 – O grifo é meu). Por outro
lado, quando se pode conceber tal universalização, ainda é preciso verificar se é possível
20
Nesse parágrafo, minha exposição segue a interpretação apresentada por C. Korsgaard em seu artigo Kant’s
Formula of Universal Law (republicado em Creating the Kingdom of Ends, p.77-105).
128

querê-la. Assim, “poder conceber a universalização da máxima” não inclui “poder querer a
universalização da máxima” (pois pode se dar o caso de ser possível concebê-la e não ser
possível querê-la), mas “poder querer a universalização da máxima” inclui “poder conceber
a universalização da máxima” (pois não pode se dar o caso de ser possível querê-la e não
ser possível concebê-la, e, quando se dá o caso de não ser possível concebê-la,
automaticamente também se dá o caso de não ser possível querê-la). Além disso, para que a
máxima passe no teste da universalização, tomado como um teste da sua correção moral,
não basta ser possível conceber sua universalização; também tem de ser possível querer sua
universalização. É por isso que, na fórmula da lei universal, Kant só menciona o “poder
querer” a universalização da máxima – com efeito, esse critério, além de ser necessário, já é
suficiente, na medida em que já inclui o outro critério, o de poder conceber a
universalização da máxima.
Essa análise parece sugerir que se pode menosprezar a diferença entre “poder
universalizar a máxima” e “poder querer a universalização da máxima”, tratando a primeira
como uma formulação que pode ser pura e simplesmente dissolvida na segunda. Entretanto,
antes de se adotar essa linha de interpretação, é preciso atentar para o fato de que, para
Kant, há uma diferença essencial entre, por um lado, os deveres ancorados na primeira
formulação, e, por outro lado, os deveres ancorados na segunda formulação. 21 Mais
precisamente, antes de se adotar a linha de interpretação que acaba de ser sugerida, é
preciso atentar para o fato de que, para Kant, os deveres ancorados no critério do “poder
conceber (a universalização da máxima)” são num certo sentido mais fortes do que os
deveres ancorados no critério do “poder querer (a universalização da máxima)”, o que
sugere que, para Kant, o primeiro critério tem uma força e um impacto todo especiais, que
não permitem que ele seja tomado como algo que pode ser pura e simplesmente dissolvido
no segundo critério (o do “poder querer”).

21
Cf. Fundamentação, p.424: “Algumas ações são de tal ordem que sua máxima não pode sequer ser pensada,
sem contradição, como lei universal da natureza, e muito menos ainda se pode querer que ela devesse se
tornar uma tal lei. Em outras não se encontra, é verdade, essa impossibilidade interna, mas é contudo
impossível querer que a máxima viesse a ser erguida à universalidade de uma lei da natureza, pois que uma tal
vontade se contradiria a si mesma. Facilmente se vê que as do primeiro gênero contrariam o dever estrito ou
estreito (rigoroso), e as do segundo o dever largo (meritório)”. (O grifo é meu). Numa passagem anterior,
p.421, Kant afirma que as ações do primeiro gênero contrariam o dever “perfeito”, e as do segundo o dever
“imperfeito”.
129

Em que sentido, para Kant, os deveres que correspondem ao critério do “poder


conceber” são mais fortes do que os que correspondem ao critério do “poder querer”? No
sentido de que se trata de deveres que, ao contrário desses últimos, não admitem um espaço
de liberdade em relação ao modo e grau de seu cumprimento. Em outras palavras, no
sentido de que, enquanto os deveres que correspondem ao critério do “poder querer” são
deveres “imperfeitos” e “largos”, por admitirem um espaço de liberdade na determinação
do modo e grau de seu cumprimento, os deveres que correspondem ao critério do “poder
conceber” são deveres “perfeitos”, “estreitos” e “rigorosos”, por não admitirem nenhum
espaço de liberdade na determinação do modo e grau de seu cumprimento.
Na Segunda Seção da Fundamentação, Kant reconhece que a divisão entre, por um
lado, deveres perfeitos ou estreitos, e, por outro lado, deveres imperfeitos ou largos – Kant
reconhece que tal divisão é avançada sem nenhum detalhamento, explicação ou
justificativa.22 Com efeito, a única explicação que ele apresenta consiste na afirmação de
que dever perfeito é “aquele que não permite exceção alguma em favor da inclinação”23, o
que sugere que os deveres imperfeitos admitem esse tipo de exceção (exceção em favor da
inclinação do agente). Essa explicação parece dever ser entendida da seguinte maneira: no
caso dos deveres imperfeitos ou largos, no momento de se determinar o modo exato como o
sujeito deve agir numa situação específica, abre-se um certo espaço para a consideração das
inclinações do mesmo, ao passo que, no caso dos deveres perfeitos ou estreitos, tal
determinação não admite nenhum espaço para a consideração das inclinações do agente.
Essa explicação está ligada ao fato de que, no caso dos deveres imperfeitos ou largos,
conforme ensinam Paton e Allison 24 , o que nós estamos obrigados a fazer não é tanto
praticar esse ou aquele ato bem definido, quer dizer, tomar essa ou aquela decisão bem
definida, mas é, antes, seguir uma regra geral de vida, como a regra de “ajudar os outros”;
ora, fica a nosso critério determinar quem, quando, como e quanto vamos ajudar – e é
22
Kant reserva o detalhamento e explicação dessa distinção para “uma futura Metafísica dos Costumes”
(Fundamentação, nota da p.421). Na Metafísica dos Costumes, entretanto, ao ser vinculada à distinção mais
geral entre deveres de justiça e deveres de virtude, a distinção entre deveres estreitos (perfeitos) e deveres
largos (imperfeitos) se torna bastante intrincada, levantando uma série de questões interpretativas. Para os
meus propósitos no presente trabalho, entretanto, não preciso entrar nessas questões, bastando-me um
entendimento do sentido geral da distinção entre deveres estreitos (perfeitos) e deveres largos (imperfeitos),
tal como apresentada na Fundamentação. Para uma boa análise das questões levantadas pela classificação dos
deveres na Metafísica dos Costumes, ver Onora Nell (O’Neill), Acting on Principle: An Essay on Kantian
Ethics, Capítulo 4.
23
Fundamentação, nota da p.421.
24
Paton, The Categorical Imperative, p.148, e Allison, Kant’s Theory of Freedom, p.112.
130

justamente nessa determinação que se abre um certo espaço para a consideração das
inclinações do agente. Já no caso dos deveres perfeitos ou estreitos, o que nós estamos
obrigados a fazer é, justamente, tomar uma decisão bem definida e específica, como a
decisão de “não fazer falsas promessas”; ora, na determinação de que essa é a única decisão
que pode ser tomada, não se abre nenhum espaço para a consideração das inclinações do
agente, na medida em que tal determinação é efetuada com base, apenas, na consideração
de que não se pode universalizar a máxima de “fazer falsas promessas”, ou seja, com base
apenas na consideração de que tal máxima, ao ser universalizada, “destrói-se a si mesma”.
Para completar esse breve comentário sobre o sentido geral da distinção entre
deveres perfeitos (estreitos) e deveres imperfeitos (largos), tal como apresentada na
Fundamentação, gostaria de dizer o seguinte. De um modo geral, os deveres perfeitos ou
estreitos constituem-se em deveres negativos; trata-se do dever de não praticar certos tipos
de ato. Assim, entram nessa categoria, por exemplo, os deveres de: não fazer falsas
promessas, não descumprir promessas feitas, não mentir, não roubar, não matar um
inocente. Já os deveres imperfeitos ou largos constituem-se, grosso modo, em deveres
positivos; trata-se do dever de seguir certas regras gerais de vida, com uma certa margem
de liberdade na determinação do modo exato como essas regras serão cumpridas nas
diferentes situações concretas. Entram nessa categoria, por exemplo, os deveres de: ajudar
os outros, ser amável para com os outros, demonstrar gratidão pelos favores recebidos.

3.2.3) Contradição no Teste de Poder Conceber.

Para termos uma visão mais clara do modo como Kant concebia os deveres perfeitos
ou estreitos, gostaria de retornar ao critério de “(não) poder conceber a universalização da
máxima”. Gostaria de fazer um comentário sobre o modo como esse critério pode chegar a
funcionar. Mais precisamente, gostaria de demonstrar que, para chegar a funcionar, esse
critério exige uma interpretação bem específica da noção de máxima, e que essa
interpretação (da noção de máxima) acaba por implicar uma concepção bastante peculiar
dos deveres que, segundo Kant, se ancoram no referido critério, ou seja, acaba por implicar
uma concepção bastante peculiar dos deveres perfeitos ou estreitos, quer dizer, dos deveres
negativos. Trata-se da concepção segundo a qual o dever perfeito (negativo) deve ser
131

percebido como um dever que nunca admite exceções, quaisquer que sejam as
circunstâncias do agente. Em outras palavras, nessa concepção o dever perfeito é percebido
como o dever de “Nunca praticar tal tipo de ato (quaisquer que sejam as circunstâncias)”.
Por representar uma concepção rígida e inflexível, impermeável à consideração das
circunstâncias do agente, tal concepção merece ser chamada de concepção “rigorista” dos
deveres perfeitos (negativos). Além disso, considerando o fato de que, na tradição moral
que Kant inaugura, que é, justamente, a tradição deontológica, os deveres perfeitos
(negativos) ocupam uma posição preeminente, 25 em função da qual eles ditam o tom à
moralidade em geral, a concepção rigorista dos deveres perfeitos (negativos) acaba por
equivaler a uma concepção igualmente rigorista da moralidade em geral.26
Reflitamos então sobre a lógica de funcionamento do critério “(não) poder conceber
a universalização da máxima”, para percebermos qual interpretação de máxima ele exige
para poder funcionar. Nesse momento, gostaria de desenvolver o seguinte argumento. O
critério “(não) poder conceber a universalização da máxima” só funciona na medida em que
não se incluem na máxima as circunstâncias do indivíduo, ou seja, na medida em que se
deixa a máxima num estado de relativa vagueza e indeterminação. E isso ocorre pela
seguinte razão: quando as circunstâncias do indivíduo são incluídas na máxima a ser
submetida ao teste de universalização, inviabiliza-se a tese de que, ao ser universalizada, a

25
Com efeito, na tradição deontológica que Kant inaugura, o dever negativo (que consiste na proibição de
praticar certos tipos de ato) tem muito mais peso e influência do que o dever positivo (que consiste na
obrigação de seguir uma regra geral de vida). Cf., por exemplo, Nancy Davis, Contemporary Deontology
[publicado em Singer, Peter (ed.), A Companion to Ethics, Blackwell, 1993], p.208: “As restrições
deontológicas são usualmente formuladas de modo negativo, como proibições”.
O mesmo ponto é destacado por André Berten no seu verbete Déontologisme: “As obrigações
deontológicas são habitualmente formuladas de modo negativo, sob a forma de proibições: ‘Tu não matarás’,
‘Tu não mentirás’. Essa característica lógica não é secundária. As formulações positivas não são equivalentes
nem implicadas pelas formulações negativas: assim, ‘tu não mentirás’ não implica ‘tu dirás a verdade; e ‘tu
não ferirás o inocente’ não implica ‘tu darás assistência àqueles que dela têm necessidade’, pois, do ponto de
vista da ação, é possível satisfazer a uma injunção negativa, mas não a uma injunção positiva, sempre
indeterminável.” (Dictionnaire d’Éthique et de Philosophie Morale, Tome 1, p.478 – O grifo é meu).
26
Como exemplo relativamente recente de concepção deontológica rigorista, temos a teoria de Charles Fried,
segundo a qual “o entendimento moral ordinário, assim como algumas das grandes tradições do pensamento
moral ocidental, reconhecem que há algumas coisas que um homem moral não fará, independentemente de
qualquer outra coisa (...) Faz parte da idéia de que a mentira e o assassinato são errados, e não simplesmente
maus, que essas são coisas que você está obrigado a não fazer – independentemente de qualquer outra coisa.
Eles não são simples aspectos negativos que entram em um cálculo, possivelmente contrabalançados pelo
bem que você poderia produzir ou pelo maior prejuízo que você poderia evitar. Assim, pode-se dizer que as
normas que expressam juízos deontológicos – por exemplo, Não cometa assassinato – são absolutas. Elas não
dizem ‘Evite a mentira, outras coisas sendo indiferentes’, mas dizem ‘Não minta, ponto’. Esse caráter
absoluto é uma expressão do modo como as normas ou juízos deontológicos diferem daqueles do
conseqüencialismo.” (Fried, C., Right and Wrong, Harvard University Press, 1978, p.7-9. O grifo é meu).
132

máxima destrói-se a si mesma, tornando-se impossível do ponto de vista prático. Com


efeito, se a máxima a ser universalizada é “em tais circunstâncias, fazer uma falsa
promessa”, a universalização da máxima significa que, em tais circunstâncias, todos fazem
falsas promessas; mas isso, por sua vez, não significa que todas as promessas serão falsas –
não significa, em outras palavras, que o próprio ato de prometer perderá completamente o
sentido, tornando-se impossível do ponto de vista prático. Como ensina Marcus G.
Singer 27 , “É possível imaginar circunstâncias tais, que toda gente pode fazer uma falsa
promessa nessas circunstâncias, sem com isso tornar impossíveis o próprio ato de prometer
e o próprio propósito desse ato (...)”. (O grifo é meu).
Imaginemos que uma falsa promessa esteja para ser feita por um indivíduo, nas
seguintes circunstâncias: ele não chega a se amedrontar com as eventuais sanções da pessoa
que vai se ver iludida. Em outras palavras, as circunstâncias do falso prometedor consistem
no fato de se encontrar diante de uma pessoa cujas eventuais sanções não chegam a
amedrontá-lo. Se a máxima desse indivíduo incluir as circunstâncias em que ele se
encontra, ela se formulará mais ou menos da seguinte maneira: “diante de uma pessoa cujas
eventuais sanções não chegam a amedrontar, fazer uma falsa promessa, para livrar-se de
apuros”. Ora, a universalização dessa máxima significa, não que todos fazem (farão) falsas
promessas ao se verem em apuros, mas sim que, diante de uma pessoa cujas eventuais
sanções não chegam a amedrontar, todos fazem (farão) falsas promessas, para livrarem-
se de apuros. E isso por sua vez significa o seguinte. Diante de um indivíduo que está a lhe
fazer uma promessa, e tendo em mente a “lei universal” que acaba de ser formulada, a
pessoa vai antes de tudo se perguntar: será que eu sou uma pessoa cujas eventuais sanções
não chegam a amedrontá-lo? Ou ainda: se eu de fato estiver numa posição de relativa
impotência, será que ele sabe que minhas eventuais sanções não deveriam chegar a
amedrontá-lo? Ou ainda, num meio-termo: será que alguém pode estar certo de que minhas
eventuais sanções não deveriam chegar a amedrontá-lo? Ora, esse tipo de questionamento,
embora introduza um elemento de preocupação e desconfiança na aceitação das promessas,
com certeza não chega a inviabilizar o próprio ato de prometer, quer dizer, não chega a
inviabilizar todo e qualquer ato de prometer – na verdade, ele não chega a inviabilizar

27
Cf. Singer, Generalization in Ethics, cap. VIII, p.231.
133

nenhum ato de prometer: o fato de só se aceitar uma promessa com cuidado e até
desconfiança é completamente diferente do fato de não se aceitar mais promessa alguma.
Em outras palavras, se a máxima a ser universalizada incluir as circunstâncias do
agente, a universalização da máxima não implica mais a autodestruição da mesma, mas
implica apenas uma relativização do modo e grau em que ela poderá ser com êxito adotada.
Trata-se de uma situação que pode perfeitamente ser concebida; mais ainda, trata-se de uma
situação que, na realidade, acontece com bastante freqüência. Em outras palavras ainda, se
a máxima a ser universalizada incluir as circunstâncias do agente, todas as máximas passam
a admitir universalização, na medida em que não ocorre mais nenhuma autodestruição. Isso
significa que todas as máximas passam a ser validadas pelo critério do “poder conceber a
universalização da máxima”; com isso, o referido critério deixa de funcionar como critério
de discriminação da correção ou incorreção das máximas. O que eu estou querendo dizer
pode ainda ser formulado da seguinte maneira. Se é verdade que o veredicto de que não se
pode conceber a universalização da máxima depende da tese de que, ao ser universalizada,
a máxima destrói-se a si mesma, e se é verdade que, se a máxima incluir as circunstâncias
do agente, nenhuma máxima vai mais destruir-se a si mesma ao ser universalizada, então
também é verdade que, se a máxima incluir as circunstâncias do agente, cai por terra a
própria função de discriminação do critério de “(não) poder conceber a universalização da
máxima”, ou seja, esse critério deixa de poder funcionar como critério da correção moral
das máximas. Fica assim demonstrada a tese que acima colocamos: o critério de “(não)
poder conceber a universalização da máxima” só funciona na medida em que não se
incluem na máxima as circunstâncias do indivíduo, ou seja, na medida em que se deixa a
máxima num estado de relativa vagueza e indeterminação.
Nesse ponto do argumento, a título de corroboração, vale a pena citar as palavras de
Tugendhat, referentes à máxima de “em circunstâncias de extrema necessidade (apuros),
fazer uma falsa promessa”, cuja universalização seria “em circunstâncias de extrema
necessidade (apuros), todos fazem falsas promessas”. Suas palavras são nesse caso as
seguintes28:
A instituição da promessa só não poderia mais existir se cada um, ao seu bel-prazer, ora
mantivesse sua promessa, ora a quebrasse. Se, ao contrário, sua máxima diz que ele só a quer
quebrar caso acredite encontrar-se em particular necessidade, cuja extensão o outro eventualmente
não conhece, a universalização dessa máxima não levaria a que não mais se acreditasse nas

28
Tugendhat, Vorlesungen über Ethik, p.151.
134

promessas em geral, mas tão-somente a que nelas só se acreditasse com cautela. Mas é
precisamente isso o que na realidade acontece, e não obstante a instituição da promessa funciona
mais ou menos bem. (O grifo é meu).

No argumento de Tugendhat, como foi dito acima, a universalização da máxima


seria: “em circunstâncias de extrema necessidade (apuros), todos fazem falsas promessas”.
Tendo em mente essa “lei universal”, a pessoa que se acha diante de um prometedor vai
antes de tudo perguntar: será que ele se encontra em circunstâncias de extrema necessidade
(apuros)? Será que ele sabe que eu sei (ou não sei) quais são, exatamente, as circunstâncias
em que ele se encontra? Como afirma Tugendhat, o surgimento desse tipo de desconfiança
é na realidade algo bastante comum, algo que razoavelmente se espera, e, não obstante isso,
a instituição da promessa funciona mais ou menos bem. Longe de implicar autodestruição,
a universalização da máxima “em tais circunstâncias, fazer uma falsa promessa” implica
uma situação que, na realidade, é bastante comum, e que não chega a afetar a viabilidade
prática da instituição da promessa.
A própria C. Korsgaard, que em seu artigo Kant’s Formula of Universal Law29
procura defender a importância e legitimidade do critério de “(não) poder conceber a
universalização da máxima”, através de uma interpretação pretensamente plausível da tese
kantiana de que, em virtude da autodestruição em que a máxima da falsa promessa incorre
ao ser universalizada, não se pode conceber a universalização da mesma, - a própria
Korsgaard, em seu artigo The right to lie: Kant on dealing with evil30 , desenvolve um
argumento para mostrar que, no famoso caso do indivíduo interrogado pelo assassino em
busca de sua vítima, a máxima da mentira, se fosse avaliada pelo critério de “(não) poder
conceber”, seria perfeitamente admissível, na medida em que, se fosse universalizada, não
se destruiria a si mesma. Seu argumento é mais ou menos o seguinte31. Diante do assassino
em busca de sua vítima, a máxima do indivíduo seria: “diante de um assassino, mentir”. A
universalização dessa máxima implicaria a seguinte lei: “diante de um assassino, todos
mentem”. Suponhamos agora um mundo em que, diante de um assassino, todos mintam
(embora, diante de uma pessoa comum, a prática geral seja a de dizer a verdade).
Suponhamos que o assassino saiba perfeitamente disso. Mas ele não sabe que você sabe
que ele é um assassino. Ele acredita que você julga estar diante de uma pessoa comum, ou

29
Republicado em Creating the Kingdom of Ends, páginas 77 a 105.
30
Republicado em Creating the Kingdom of Ends, páginas 133 a 158.
31
Conferir páginas 135-136.
135

seja, diante de uma pessoa em relação à qual a prática geral seja a de dizer a verdade.
Assim, mesmo que o assassino saiba que “todos mentem diante de um assassino”, ele
acredita que você vai lhe dizer a verdade, ou seja, ele vai acreditar em você, ele vai ser
iludido pela sua mentira, e a mentira continuaria sendo eficaz.
Como se vê, o argumento de Korsgaard é bastante semelhante ao argumento acima
desenvolvido em relação à máxima da falsa promessa. Observemos, aliás, que a máxima da
falsa promessa é um caso especial da máxima mais geral da mentira. O argumento de
Korsgaard, se for levado até o fim, demonstra o seguinte: se forem incluídas na máxima da
mentira as circunstâncias do agente, sempre se poderá conceber a universalização dessa
máxima, sem nenhuma autodestruição. Ora, isso significa que o critério de “(não) poder
conceber a universalização da máxima” deixará de funcionar como critério de
discriminação da correção ou incorreção das diferentes particularizações da máxima da
mentira. É claro que, no caso da máxima “diante de um assassino, mentir”, a máxima é
prima facie correta, o que significa que a possibilidade de se conceber a universalização da
mesma não implica nenhum erro moral. Entretanto, suponhamos que a máxima seja “diante
de uma pessoa ingênua, mentir”. Parece claro que essa máxima é prima facie incorreta.
Entretanto, o argumento de Korsgaard se aplicaria igualmente bem a ela: a pessoa ingênua
provavelmente não sabe que você sabe que ela é ingênua, e assim, mesmo que ela tenha em
mente a lei universal de que “diante de uma pessoa ingênua, todos mentem”, ela julga que
essa lei não se aplica ao seu caso específico; sendo assim, ela vai continuar acreditando em
você, ou seja, a mentira continuaria sendo eficaz. Isso significa, precisamente, que seria
perfeitamente possível conceber a universalização da referida máxima, sem nenhuma
autodestruição. E isso por sua vez significa que, se as circunstâncias do agente forem
incluídas na máxima a ser universalizada, o critério de “(não) poder conceber a
universalização da máxima” passa a validar todas as máximas, indiscriminadamente, o que
implica que ele deixa de funcionar como critério de discriminação da correção ou
incorreção das máximas – como queríamos demonstrar.

3.2.4) Máximas Genéricas e Concepção Rigorista do Dever.


136

Na seção anterior, chegamos à seguinte conclusão. Para poder funcionar, o critério


de “(não) poder conceber a universalização da máxima” exige que a máxima seja
formulada de modo a excluir as circunstâncias do agente. Em outras palavras, para que o
procedimento de universalização (da máxima) possa gerar uma contradição, ou seja, para
que ele possa discriminar as máximas lícitas e as ilícitas, é preciso que a máxima que se
submete a ele seja formulada em termos genéricos – é preciso que se trate de uma máxima
genérica. A máxima deve ser formulada, não de um modo específico, como a máxima de
“em tal tipo de circunstâncias, tal tipo de ato” (“em tal tipo de circunstâncias, fazer uma
falsa promessa, ou mentir), mas, sim, de um modo genérico, como a máxima, curta e
genérica, de “tal tipo de ato” (“fazer uma falsa promessa, mentir, etc.”.). É só assim que, ao
ser universalizada, a máxima “destrói-se a si mesma”. E do fato de que, ao ser
universalizada, a máxima (genérica) de “mentir” destrói-se a si mesma, conclui-se que não
se pode conceber a universalização desse tipo de máxima. E do fato de que não se pode
conceber a universalização da máxima (genérica) de “mentir” extrai-se o dever, estrito e
rigoroso, de “Não mentir”. Assim, à exclusão das circunstâncias na formulação da máxima
corresponde, na formulação do dever correspondente, uma exclusão das possíveis
circunstâncias de exceção ou atenuação do dever. O resultado é uma concepção rigorista do
dever: em vez de “Não mentir, exceto nessas ou naquelas circunstâncias extraordinárias”,
tem-se apenas “Não mentir”, e ponto final.
Essa associação entre, por um lado, a necessidade, para que o procedimento possa
se apoiar na noção de contradição, de se adotar uma máxima genérica, e, por outro lado, o
surgimento de uma concepção rigorista dos deveres, - tal associação é claramente
reconhecida por Barbara Herman em seu livro The Practice of Moral Judgment. Veja, por
exemplo, as afirmações que ela faz no capítulo Murder and Mayhem (Op. Cit., p.113-131):
A razão mais significativa para se começar com essa máxima extrema e genérica é metodológica.
Os testes do procedimento do imperativo categórico só são efetivos e úteis para deliberação na
medida em que se dirigem a máximas genéricas. É claro que essa afirmação pode parecer
imediatamente implausível, em virtude das conhecidas objeções a se avaliar máximas genéricas.
Trazer máximas genéricas ao procedimento do imperativo categórico é visto como algo que
acarreta deveres e proibições inaceitavelmente rigorosos. Além disso, as máximas que os agentes
seguem não são, tipicamente, máximas genéricas; elas contêm os pormenores das circunstâncias
que são considerados relevantes na escolha racional de meios e fins. Uma vez que o ajuizamento
moral deve refletir os pormenores relevantes, restringir o procedimento do imperativo categórico a
máximas genéricas parece condená-lo ao fracasso. Mas se a adequação do procedimento do
imperativo categórico for medida por sua capacidade de gerar juízos claros a respeito de máximas
particulares e específicas, há pouca esperança de sucesso. Qualquer incremento nos pormenores
137

das máximas torna mais improvável que a universalização da ação expressa na máxima seja algo
de impossível (ou impossível de querer). (P.116. O grifo é meu).

Herman reconhece a seguinte implicação. Se adotarmos a concepção segundo a qual


o procedimento de universalização apóia-se, essencialmente, na noção de contradição,
ficamos obrigados a aplicar o procedimento a máximas genéricas, o que por sua vez nos
leva a deveres e proibições absolutos e rigorosos (que ela classifica como “inaceitavelmente
rigorosos”), do tipo “Nunca mentir”. Por outro lado, se quisermos aplicá-lo a máximas que
incluam os pormenores (circunstâncias) relevantes, inviabilizamos a noção de contradição,
ou seja, inviabilizamos a idéia de que a universalização da máxima gera uma contradição –
o que Herman vê como ruína do próprio procedimento, em virtude, provavelmente, de sua
fidelidade ao texto e à tradição kantianos.
Nós, de nosso lado, podemos dizer ainda o seguinte: se estivermos dispostos a
adotar a tese de que o procedimento de universalização não precisa (nem deve) recorrer à
noção de contradição, poderemos, talvez, aplicá-lo com êxito a máximas que incluam as
circunstâncias moralmente relevantes – ou seja, poderemos desvincular o procedimento de
universalização da concepção rigorista do dever moral. A concepção rigorista do dever
moral tem se alimentado da interpretação segundo a qual o procedimento de
universalização apóia-se, essencialmente, na noção de contradição. A contrapartida é a
seguinte: se tivermos boas razões para rejeitar a concepção rigorista do dever moral,
teremos boas razões para tentar uma nova maneira de conceber tal procedimento,
independente do recurso à noção de contradição. Como veremos nos capítulos 4 e 5, essa
tentativa nos levará a transformar o procedimento de universalização no procedimento do
contrato social.
***
É importante termos clareza quanto ao alcance do argumento que acaba de ser
desenvolvido. O que acaba de ser demonstrado restringe-se aos dois seguintes pontos.
Primeiro: para poder funcionar, o critério de “(não) poder conceber a universalização da
máxima” exige a adoção da interpretação generalista das máximas. Segundo: em conexão
com essa interpretação generalista da máxima, o dever ancorado nesse critério, quer dizer, o
dever estreito, acaba tomando a forma de um dever que não admite exceções, sejam quais
forem as circunstâncias do agente. Mas demonstrar esses dois pontos ainda não é
138

demonstrar que não se deve adotar nem a concepção generalista de máxima nem a
concepção rigorista (do dever) que lhe anda associada. Demonstrar a lógica de
funcionamento do critério de “(não) poder conceber” ainda não é demonstrar que não se
devem adotar as concepções de máxima e de dever que estão associadas a esse critério.
Isso fica ainda mais claro se considerarmos uma outra limitação do critério de
“(não) poder conceber a universalização da máxima”. Com efeito, além de exigir uma
formulação generalista da máxima, o critério do “(não) poder conceber” só funciona para o
caso daquelas máximas cuja possibilidade e/ou eficácia dependem de certas instituições ou
práticas (da vida em sociedade) e, por conseguinte, da observância mais ou menos
generalizada das convenções nas quais se ancoram tais instituições ou práticas, como, por
exemplo, a convenção de dizer a verdade (na qual se ancora a prática da comunicação pela
linguagem), de ser sincero no ato de prometer (na qual se ancora a prática da promessa), de
respeitar o direito de propriedade (na qual se ancora a instituição da propriedade), de
pagar/devolver os empréstimos recebidos (na qual se ancora a instituição do empréstimo).
É só no caso dessas máximas que faz sentido afirmar que não se pode conceber a
universalização de uma máxima que se apóia na respectiva instituição ou prática e,
simultaneamente, viola a convenção na qual se ancora essa mesma instituição ou prática.
É o que ocorre, por exemplo, com a máxima da mentira tout court: trata-se de uma máxima
que, simultaneamente, apóia-se na prática da comunicação pela linguagem – pois a mentira
só faz sentido (só é possível e/ou eficaz) num contexto em que as pessoas se comunicam
pela linguagem – e, por outro lado, viola a convenção da qual depende a subsistência dessa
mesma prática, que é a convenção de dizer a verdade. Universalizar a máxima (genérica) de
“mentir” implica instituir uma violação generalizada da convenção na qual se ancora a
prática da comunicação pela linguagem, ou seja, implica suprimir essa prática; ora, como a
máxima por outro lado se apóia nessa mesma prática, a universalização da máxima implica
“autodestruição”.
Consideremos, agora, o caso da máxima (genérica) de “matar um inocente”. Ao
contrário da máxima (genérica) de “mentir”, a máxima de “matar um inocente” não está
vinculada a nenhuma instituição ou prática, quer dizer, a possibilidade e/ou eficácia dessa
139

máxima não depende da subsistência de nenhuma instituição ou prática.32 A diferença pode


ser expressa nos seguintes termos: enquanto a mentira tout court é um ato convencional,
quer dizer, um ato que só é possível e/ou eficaz num contexto em que as pessoas em geral
respeitam a convenção de dizer a verdade, o assassinato de um inocente, por outro lado, é
um ato puramente natural, quer dizer, um ato cuja possibilidade e/ou eficácia dependem
apenas de fatores naturais, sem nenhuma intervenção de convenções – para ser possível e
eficaz matar um inocente, não se exige a observância mais ou menos generalizada da
“convenção” de não matar inocentes. Como a máxima (genérica) de “matar um inocente”
não se apóia na observância mais ou menos generalizada da “convenção” de não matar
inocentes, a universalização dessa máxima não implica desaparecimento de uma prática ou
instituição que porventura se ancorasse nessa mesma “convenção”. Sendo assim, ao
contrário do que ocorre com a máxima de “mentir”, não se pode afirmar, no caso da
máxima de “matar um inocente”, que ela, ao ser universalizada, destrói-se a si mesma.
Entretanto, é claro que, para Kant, o dever de “não matar um inocente” é um dever
perfeito, estreito e rigoroso. Isso significa que nem todos os deveres que, para Kant, são
perfeitos, estreitos e rigorosos têm possibilidade de ancorar-se no critério de “(não) poder
conceber a universalização da máxima”. Por outro lado, o fato de esse dever não poder
ancorar-se nesse último critério não modifica o modo como Kant o percebia: é claro que,
para Kant, assim como o dever de não mentir deve ser visto em termos rigorosos, como um
dever que não admite exceções, sejam quais forem as circunstâncias do agente, também o
dever de não matar um inocente deve ser visto nesses mesmos termos. Em conexão com
isso, a máxima correspondente também deve ser formulada, para Kant, em termos simples e
genéricos, como a máxima de “matar um inocente”, e não em termos específicos e
pormenorizados, como a máxima de “em tal tipo de circunstâncias, matar um inocente, para
tal fim”. Ora, considerando que o dever de “não matar um inocente” não se apóia no
critério de “(não) poder conceber a universalização da máxima”, podemos concluir que a
defesa das concepções genérica de máxima e rigorista do dever não depende, ou pelo
menos não depende apenas, da lógica de funcionamento do referido critério. Tais
concepções também se apóiam em outras considerações. Que considerações são essas?

32
Para uma boa discussão dessa diferença, conferir o já citado artigo Kant’s Formula of Universal Law, de C.
Korsgaard (republicado em Creating the Kingdom of Ends).
140

Para respondermos a essa pergunta, podemos começar com essa outra: qual a
vantagem de se adotar as concepções genérica de máxima e rigorista do dever? A vantagem
parece ser óbvia: evita-se a tentação de admitir exceções em proveito próprio. Com efeito,
levar em consideração circunstâncias excepcionais parece aproximar-se, perigosamente, de
uma tentativa de encontrar um pretexto para eximir-se do dever, em proveito próprio.
Assim, o fundamento último da defesa das concepções genérica de máxima e rigorista do
dever encontra-se na necessidade de preservar, em toda a sua pureza, o princípio de que o
dever moral não pode nem deve ser afetado por interesses patológicos eventualmente
vinculados às circunstâncias do agente e às conseqüências que, nessas circunstâncias, iriam
provavelmente advir dos diferentes atos possíveis.
Entretanto, como já foi sugerido, levar em consideração as circunstâncias do agente
e as conseqüências que, nessas circunstâncias, iriam provavelmente advir dos diferentes
atos possíveis, – fazer isso não precisa necessariamente equivaler a condescender a um
interesse patológico associado a tais circunstâncias e conseqüências. Os interesses
associados a tais circunstâncias e conseqüências podem perfeitamente ser interesses de
outras pessoas, em relação às quais o próprio agente não experimenta nenhum interesse
patológico, quer dizer, nenhum sentimento de agrado pessoal. Levar em consideração as
circunstâncias e conseqüências do ato implica, decerto, admitir a possibilidade de que tais
circunstâncias e conseqüências constituam-se em boas razões para desviar-se de um dever
genericamente formulado, mas não implica comprometer-se com a idéia de que um
interesse patológico (um sentimento de agrado pessoal) possa constituir-se numa boa razão
para esse tipo de desvio. Como já foi demonstrado, para um conseqüencialista, por
exemplo, o fato de que, em determinadas circunstâncias, o ato de mentir maximiza
conseqüências grosso modo boas no conjunto dos afetados, - tal fato pode perfeitamente
constituir-se numa boa razão para desviar-se do dever genérico de não mentir, sem que,
com isso, esse desvio esteja equivalendo a uma exceção em proveito próprio, quer dizer,
uma exceção fundada num interesse patológico. Ao contrário, o conseqüencialista decerto
diria que o interesse patológico não é uma boa razão para desviar-se do dever genérico de
não mentir. Para o conseqüencialista, a única boa razão para desviar-se de um dever
genericamente formulado reside no fato de que, para um olhar imparcial, quer dizer,
141

patologicamente desinteressado, tal desvio maximiza conseqüências grosso modo boas no


conjunto dos afetados.
Por outro lado, podemos aventar a seguinte hipótese: admitir a possibilidade de que
as circunstâncias e conseqüências possam constituir-se numa boa razão para desviar-se de
um dever genericamente formulado talvez não implique compartilhar da tese
conseqüencialista de que a única boa razão para esse tipo de desvio reside no fato de se
maximizarem, de modo imparcial, conseqüências grosso modo boas no conjunto dos
afetados. Talvez haja outras razões que, associadas ainda às circunstâncias e conseqüências
do ato, e distantes ainda de qualquer interesse patológico, não se resumem, apesar disso, ao
valor da maximização imparcial da felicidade (privada) no conjunto dos afetados. Por
exemplo, pode haver razões que estejam vinculadas à necessidade de se promover valores
como racionalidade, liberdade, solidariedade, responsabilidade social – independentemente
de qualquer interesse patológico nesse ou naquele indivíduo. Para um kantiano não-
rigorista, talvez essas sejam as boas razões, em contraposição à razão (conseqüencialista)
da maximização imparcial da felicidade (privada). Embora à primeira vista pareça
implausível, tal hipótese pode acabar se revelando viável. Mas esse é um ponto que não
exploraremos aqui.
A hipótese que estou querendo sugerir é a seguinte. Adotar uma concepção não-
rigorista do dever negativo equivale a admitir a possibilidade de que as circunstâncias e
conseqüências associadas a uma decisão constituam-se em boas razões para desviar-se de
um dever genericamente formulado. Entretanto, o leque das razões (para desviar-se de um
dever genericamente formulado) contém, não apenas duas, mas três possibilidades. A
primeira é a seguinte: a razão para desviar-se de um dever genericamente formulado reside
no fato de que, nas circunstâncias em questão, tal desvio apresenta conseqüências
pessoalmente agradáveis, quer dizer, patologicamente interessantes. Essa possibilidade vai
de encontro não apenas à ética kantiana, mas também, de modo mais geral, à concepção
imperativa da ética. A segunda possibilidade equivale à posição conseqüencialista: a razão
para desviar-se de um dever genericamente formulado reside no fato de que, nas
circunstâncias em questão, tal desvio, avaliado de maneira patologicamente desinteressada,
maximiza conseqüências grosso modo boas no conjunto dos afetados. Essa possibilidade,
ainda que compatível com a concepção imperativa da ética, vai de encontro à concepção
142

kantiana (deontológica) da ética. A terceira possibilidade equivale, justamente, à posição


kantiana, entendida, evidentemente, de um modo não-rigorista: a razão para desviar-se de
um dever genericamente formulado reside no fato de que, nas circunstâncias em questão,
tal desvio, avaliado de maneira patologicamente desinteressada, atende à necessidade de se
promover valores como racionalidade, liberdade, responsabilidade social. Como acabei de
afirmar, essa terceira possibilidade, embora à primeira vista possa parecer implausível,
pode acabar se revelando viável.
***
Voltemos ao nosso argumento: afirmamos acima que, para o deontólogo rigorista, a
vantagem de se adotar as concepções generalista de máxima e rigorista de dever reside no
fato de que, com isso, evita-se a tentação de admitir exceções em proveito próprio, na
medida em que, na concepção contrária, levar em consideração circunstâncias excepcionais
parece aproximar-se, perigosamente, de uma tentativa de encontrar um pretexto para
eximir-se do dever, em proveito próprio. Logo depois, esvaziamos um pouco essa
vantagem, através do argumento de que, ao se levar em consideração as circunstâncias do
agente e as conseqüências que, nessas circunstâncias, iriam provavelmente advir dos
diferentes atos possíveis, – ao se fazer isso, não necessariamente se está condescendendo a
um interesse patológico associado a tais circunstâncias e conseqüências. Gostaria agora de
esvaziar completamente essa suposta vantagem, através do seguinte argumento:
considerando a função que se deve atribuir ao teste de universalização prescrito pela ética
kantiana, a qual, como vimos acima, consiste na função de decidir, justificadamente, se um
determinado ato, numa determinada situação, é moralmente correto ou incorreto, -
considerando essa função, aquela suposta vantagem pode na verdade equivaler à
desvantagem da obtusidade na caracterização da situação e da ação. Com efeito, se você
não leva em consideração as circunstâncias em que se coloca a possibilidade desse ou
daquele ato, você corre o risco de adotar uma caracterização completamente obtusa do ato
em questão, quer dizer, uma caracterização que não chega a alcançar a verdadeira natureza
do ato. Mentir para uma pessoa ingênua é essencialmente diferente de mentir para um
assassino; matar um jovem saudável é essencialmente diferente de matar um doente que
sofre e só sobrevive à custa de aparelhos; devolver um empréstimo a um indivíduo são e
responsável é essencialmente diferente de devolver um empréstimo a um indivíduo que
143

perdeu completamente a razão. A evolução histórica do direito de propriedade dependeu da


percepção de que nem todas as transgressões à propriedade privada devem ser
caracterizadas como “roubo”, e de que a essência mesmo do “roubo” depende das
circunstâncias nas quais se pratica a respectiva transgressão à propriedade. A liberdade de
contrato tem passado por evolução semelhante. E assim por diante.
De modo correspondente, se você não admite a possibilidade de que as
circunstâncias e conseqüências associadas a uma possível decisão possam constituir-se
numa boa razão para desviar-se de um dever genericamente formulado, você corre o risco
de adotar uma concepção obtusa do dever em questão, quer dizer, uma concepção que não
chega a alcançar as exigências e apelos que a situação apresenta. Em conseqüência disso,
em nome de um dever mal formulado, tomam-se decisões moralmente equivocadas, ou pelo
menos questionáveis, quer dizer, decisões que permanecem arrogantemente alheias às
exigências e apelos que a situação apresenta. Assim, diz-se a verdade a um assassino,
devolve-se um empréstimo (um empréstimo de armas, como no famoso exemplo da
República de Platão) a um indivíduo que perdeu completamente a razão, sacraliza-se uma
propriedade (ou um contrato) que, ilegitimamente, prejudica a felicidade ou a liberdade de
indivíduos e grupos, sacraliza-se uma forma de vida que talvez já não faça mais nenhum
sentido. E assim por diante.
Em conseqüência da obtusidade e arrogância que as concepções generalista de
máxima e rigorista do dever parecem implicar, se fosse verdade que, para diferençar-se do
conseqüencialismo, a ética kantiana tivesse de adotar esse tipo de concepção, ela resultaria
tremendamente enfraquecida diante da posição conseqüencialista. É justamente por isso
que alguns conseqüencialistas tentam passar a impressão de que, para diferençar-se do
conseqüencialismo, a ética kantiana (deontológica) precisa adotar esse tipo de concepção.33

33
Cf., por exemplo, a seguinte passagem do primeiro capítulo do livro Ética Prática, de Peter Singer (São
Paulo, Martins Fontes, 1994 – tradução de Jefferson Luiz Camargo): “Às vezes, as pessoas acreditam que a
ética é inaplicável ao mundo real, pois imaginam que a ética seja um sistema de normas simples e breves, do
tipo ‘Não minta’, ‘Não roube’ e ‘Não mate’. Não surpreende que os que se atêm a esse modelo de ética
também acreditem que ela não se ajusta às complexidades da vida. Em situações insólitas, as normas simples
entram em conflito, e, mesmo quando isso não acontece, seguir uma norma pode terminar em desastre. Em
situações normais, pode ser errado mentir, mas, se você vivesse na Alemanha nazista e a Gestapo se
apresentasse à sua porta em busca de judeus, sem dúvida o correto seria negar a existência da família judia
escondida no seu sótão. A exemplo da falha de uma moral sexual restritiva, a falha de uma ética de normas
simples não deve ser vista como uma falha da ética como um todo. Trata-se apenas da falha de uma
concepção da ética, e nem chega a ser irremediável. Os que pensam que a ética é um sistema de normas – os
deontologistas – podem salvar seu ponto de vista encontrando normas mais complexas e específicas que não
144

Mas trata-se apenas de impressão, e não de um fato. Na verdade, o kantismo pode


perfeitamente diferençar-se do conseqüencialismo, não pela desatenção às circunstâncias e
conseqüências associadas a uma possível decisão, mas, sim, pelo modo distinto de
considerar tais circunstâncias e conseqüências - a saber, por um modo de considerá-las, não
a partir da prescrição de maximizar o valor “felicidade (privada)” num cálculo de conjunto,
mas, sim, a partir da prescrição de respeitar e promover valores como “racionalidade” e
“razoabilidade”, mesmo que isso implique, de um ponto de vista mais empírico e
pragmático, um certo grau de frustração ou infelicidade para os indivíduos afetados.
Assim, para diferençar-se do conseqüencialismo, a ética kantiana não precisa adotar
a concepção generalista de máxima, nem a concepção de dever que lhe anda associada.
Essas concepções distinguem, não o kantismo em geral, mas uma vertente específica do
kantismo, a vertente, justamente, “rigorista”. Além de apresentar defeitos que a tornam
incapaz de sustentar o debate com o conseqüencialismo, a vertente rigorista do kantismo
apóia-se numa confusão interpretativa: trata-se da já mencionada confusão entre, por um
lado, “exclusão de interesse patológico pelas conseqüências” e, por outro lado, “exclusão
de uma consideração puramente lógica das conseqüências”. O que se percebe aqui é um
desdobramento dessa confusão: uma vez que as conseqüências do ato estão
inextricavelmente associadas às circunstâncias do mesmo, a consideração das
conseqüências do ato está inextricavelmente ligada à consideração das circunstâncias do
mesmo. Sendo assim, quando o rigorista, ao confundir “exclusão de interesse patológico
pelas conseqüências” com “exclusão de uma consideração puramente lógica das
conseqüências”, - quando o rigorista, ao confundir-se dessa forma, desenvolve uma ojeriza
à consideração das conseqüências do ato, essa sua ojeriza acaba envolvendo uma ojeriza à
consideração das circunstâncias do mesmo. Produz-se assim uma concepção generalista da
máxima que deve ser submetida ao teste de universalização.
***
O resultado da nossa discussão pode ser resumido nos seguintes pontos.

sejam conflitantes, ou classificando as normas em alguma estrutura hierárquica que resolva os conflitos entre
elas. Além do mais, há uma abordagem sempre válida da ética que praticamente não é afetada pelas
complexidades que tornam as normas simples difíceis de serem aplicadas: a concepção conseqüencialista. (...)
As conseqüências de uma ação variam de acordo com as circunstâncias nas quais ela é praticada. Portanto, um
utilitarista nunca pode ser corretamente acusado de falta de realismo, nem de uma rígida adesão a ideais que
desprezem a experiência prática. Para o utilitarista, mentir será mau em algumas circunstâncias e bom em
outras, dependendo das conseqüências que o ato acarretar.” (páginas 10-11).
145

Em primeiro lugar, não precisamos temer que “levar em consideração as


circunstâncias e conseqüências vinculadas a um ato” equivalha a “condescender a um
interesse patológico associado às circunstâncias e conseqüências do ato”. Em outras
palavras, não precisamos temer que “levar em consideração as circunstâncias e
conseqüências vinculadas a um ato” equivalha a “ceder à tentação de eximir-se do dever em
proveito próprio”.
Em segundo lugar, não precisamos nem devemos aceitar que “levar em
consideração as circunstâncias e conseqüências vinculadas a um ato” seja uma prerrogativa
da posição conseqüencialista, e que, para diferençar-se do conseqüencialismo, a ética
deontológica precise adotar uma postura de desconsideração por tais circunstâncias e
conseqüências. Em outras palavras, não devemos aceitar que a desconsideração pelas
circunstâncias e conseqüências vinculadas a um ato seja uma característica distintiva do
deontologismo em geral; ao contrário, devemos afirmar que essa desconsideração distingue
uma vertente, apenas, do deontologismo, à qual se contrapõe uma outra vertente, que adota
uma postura inversa, ou seja, uma postura de consideração pelas circunstâncias e
conseqüências dos diversos atos possíveis.
Em terceiro lugar, a postura de desconsideração pelas circunstâncias e
conseqüências implica obtusidade e arrogância. Qualquer posição moral que a adote resulta
enfraquecida. Assim, ao adotar essa postura, a vertente rigorista do deontologismo fica
muito enfraquecida, tornando-se incapaz de sustentar o debate com o conseqüencialismo.
Em conseqüência disso, o indivíduo que esteja convencido de que é preciso defender os
valores expressos na ética deontológica, contra os valores expressos na ética
conseqüencialista, - tal indivíduo deve afastar a interpretação rigorista do deontologismo,
para abraçar uma interpretação não-rigorista, a única que é capaz de sustentar o debate com
o conseqüencialismo.
Em quarto lugar, a interpretação rigorista do deontologismo articula-se em duas
concepções intimamente associadas: a concepção rigorista do dever e a concepção
generalista da máxima que deve ser submetida ao teste de universalização. Ao perceber que
é preciso afastar a interpretação rigorista do deontologismo, o partidário dos valores
expressos na ética deontológica percebe, simultaneamente, que é preciso afastar, não só a
146

concepção rigorista do dever, mas também a concepção generalista da máxima que deve ser
submetida ao teste de universalização.
Em quinto lugar, sem a concepção generalista de máxima, o critério de “(não) poder
conceber a universalização da máxima” é incapaz de funcionar. Assim, ao perceber que é
preciso afastar a concepção generalista da máxima que deve ser submetida ao teste de
universalização, o partidário dos valores expressos na ética deontológica percebe,
simultaneamente, que o critério de “(não) poder conceber a universalização da máxima”
representa um método de decisão completamente inadequado à defesa e implementação
desses valores. Para implementar tais valores, é preciso encontrar um outro critério de
decisão. O partidário dos valores deontológicos pode tentar encontrá-lo no critério de
“(não) poder querer a universalização da máxima”.
Em sexto e último lugar, ao tentar verificar se o critério de “(não) poder querer a
universalização da máxima” pode constituir-se num método de decisão perfeitamente
adequado aos valores expressos na ética deontológica, o partidário desses valores tem de
enfrentar, antes de tudo, a seguinte questão: considerando que o afastamento da concepção
generalista de máxima implica a adoção de uma concepção “particularista” da mesma,
segundo a qual a máxima deve ser formulada de modo a incluir as circunstâncias do ato, -
considerando esse fato, que repercussão tal concepção particularista (da máxima que deve
ser submetida ao teste de universalização) tem sobre o modo como se deve entender e
aplicar o critério de “(não) poder querer a universalização da máxima”?

3.2.5) Contradição no Teste de Poder Querer.

Em seu artigo Consistency in Action,34 Onora O’Neill distingue dois tipos de testes
de universalização: aqueles que são propostos nas éticas da “heteronomia” e, por outro
lado, aqueles que são propostos nas éticas da “autonomia”. Para ela, os que são propostos
nas éticas da heteronomia referem-se “ou àquilo que todo mundo deseja que seja feito ou
àquilo que uma certa pessoa (normalmente, o próprio agente; algumas vezes, um

34
Republicado em Constructions of Reason, Explorations of Kant’s Practical Philosophy. Cambridge
University Press, 1989.
147

observador moral anônimo) deseja que seja feito, ou por todo mundo ou para todo
mundo”.35 E ela continua:
Uma vez que todos os testes de universalidade desse tipo tornam a aceitabilidade moral de algum
modo dependente daquilo que é desejado (...), todos eles fazem parte de teorias morais que são
heterônomas, no sentido kantiano desse termo. Tais teorias apresentam a aceitabilidade moral
como dependente dos fenômenos naturais do desejo e inclinação, em vez de apresentá-la como
dependente de quaisquer características intrínsecas ou formais dos agentes ou de suas intenções.
Se nos apoiarmos nessa espécie de critério da aceitabilidade moral, não haverá nenhum tipo de ato
que não poderia ser tornado moralmente aceitável mediante alguma(s) mudança(s) nos desejos
humanos. (O grifo é meu).

Como se vê, a crítica de O’Neill ao teste proposto pelas éticas “heterônomas”


consiste na tese de que, ao apresentar a aceitabilidade moral dos atos como dependente dos
fenômenos naturais do desejo e inclinação, esse tipo de teste pode acabar tornando
aceitáveis todos os tipos de ato, ou seja, pode acabar não sendo capaz de apresentar
resultados bem determinados e definidos, na medida em que os desejos e inclinações, por
mais “naturais” ou “razoáveis” que pretendam ser, acabam se revelando como elementos
que podem se modificar indefinidamente, ao sabor da experiência (e até mesmo
conveniência) do indivíduo que eventualmente propõe o teste.
Em contrapartida, os testes que são propostos pelas éticas da “autonomia” são
aqueles, justamente, que apresentam a aceitabilidade moral como dependente de
características “intrínsecas” ou “formais” dos agentes ou de suas intenções. No teste das
éticas da autonomia, a aceitabilidade moral é verificada da seguinte maneira: considerando
as características puramente formais do querer racional em geral, serão moralmente
aceitáveis os atos que não implicarem inconsistência no querer assim entendido. Por não
recorrer a nenhum elemento empírico, o teste tem uma natureza essencialmente racional, e
expressa uma “fundamentação rigorosamente racionalista da ética”. 36 Na opinião de
O’Neill, esse tipo de teste, ao contrário do anterior, é capaz de apresentar resultados bem
determinados e definidos, na medida em que as características formais do querer racional
são, por definição, elementos fixos e invariáveis.
A tese de O’Neill é a de que o teste de universalização proposto pela ética kantiana
pode e deve ser aplicado desse modo puramente racional, quer dizer, sem nenhum recurso a
considerações (“heterônomas”) acerca daquilo que em geral (normalmente) se deseja que
seja feito. Na defesa dessa tese, ela tenta demonstrar que são falsas as numerosas alegações
35
Op. Cit., p.81.
36
Op. Cit., p.82.
148

de que, sem o recurso a tais considerações “heterônomas”, é impossível derivar aplicações


da fórmula da lei universal que, indo além da banalidade vazia, sejam efetivamente
guiadoras da ação, especialmente em situações um pouco mais complexas e problemáticas.
Na interpretação de O’Neill, o funcionamento do critério do “(não) poder querer a
universalização da máxima” se aproxima bastante do funcionamento do critério do “(não)
poder conceber a universalização da máxima”, na medida em que, em ambos os casos, o
funcionamento do teste se apóia na consideração dos aspectos puramente formais
envolvidos na universalização da máxima. Em ambos os casos, em outras palavras, o teste
pretende verificar se, ao se considerarem os aspectos formais envolvidos na universalização
da máxima, surge ou não uma contradição. A diferença reside no lugar em que tal
contradição eventualmente surge. Em alguns casos, a contradição surge na própria máxima,
quer dizer, a contradição consiste no fato de que, ao ser universalizada, a máxima destrói-se
a si mesma. Nesses casos, não se pode sequer conceber a universalização da máxima. Em
outros casos, a contradição surge no querer do sujeito, definido, entretanto, não em termos
de conteúdos empíricos e variáveis, como um querer que deseja isso ou aquilo, mas em
termos de características puramente formais, como um querer que, sendo racional, tem de
obedecer aos princípios formais do querer racional em geral. Nesse último caso, a
contradição consiste no fato de que, ao ser universalizada, a máxima revela
incompatibilidade com tais princípios. É justamente por isso que não se pode querer a
universalização da máxima. Em outras palavras, você não pode querer tal universalização
porque querê-la implica uma contradição no seu querer, tomado como um querer racional.
Assim, para O’Neill, no caso da máxima que infringe o critério do “poder
conceber”, a consideração dos aspectos puramente formais envolvidos na universalização
da mesma evidencia que, ao ser universalizada, a máxima destrói-se a si mesma. Como
exemplos desse tipo de máxima, O’Neill apresenta as máximas de: 37 “Tornar-se um
escravo” (“Se todo mundo viesse a tornar-se um escravo, não haveria ninguém com direitos
de propriedade, e, por conseguinte, não haveria proprietários de escravos;
conseqüentemente, ninguém poderia tornar-se um escravo”); “Tornar-se um proprietário de
escravos” (“Se todo mundo viesse a tornar-se um proprietário de escravos, todo mundo
teria um direito de propriedade, e, por conseguinte, ninguém poderia ser escravo;

37
Op. Cit., p.96.
149

conseqüentemente, não poderia haver proprietários de escravos); “Coagir os outros” (“Se


todos coagem os outros, incluindo aqueles que por sua vez os coagem, cada indivíduo,
sendo coagido, obedece aos outros e, simultaneamente, sendo coator, não obedece aos
outros”); “Iludir os outros quando conveniente” (“Se todo mundo iludisse os outros quando
conveniente, não haveria mais nenhuma confiança nos atos de comunicação dos outros, e,
por conseguinte, ninguém poderia mais ser iludido; conseqüentemente, ninguém poderia
iludir os outros quando conveniente”).
Essa rápida consideração dos exemplos de O’Neill já basta para confirmar os recém-
mencionados defeitos do critério do “(não) poder conceber a universalização da máxima”:
em primeiro lugar, o fato de que ele só funciona na medida em que se adota uma
formulação encurtada e genérica de máxima; em segundo lugar, o fato de que, ao implicar
uma formulação encurtada e genérica de máxima, ele resulta em princípios genéricos e
triviais, do tipo “Não coagir os outros” e “Não iludir os outros quando conveniente”.
Assim, se nos restringirmos ao critério do “(não) poder conceber”, a análise e os exemplos
de O’Neill, longe de refutarem, parecem antes confirmar as alegações de que, se sua
aplicação se apoiar, apenas, em considerações puramente formais, a fórmula da lei
universal resulta em princípios que não ultrapassam o plano da banalidade vazia, e que, em
situações um pouco mais complexas e problemáticas, não são capazes de efetivamente
guiar a ação.
Que análise O’Neill oferece para o caso das máximas que infringem o critério do
“poder querer”? Será que, aplicado de modo formalístico, esse segundo critério é capaz de
remediar as falhas do critério do “(não) poder conceber”? No caso desse segundo critério,
diz O’Neill, a consideração dos aspectos puramente formais envolvidos na universalização
da máxima evidencia que, ao ser universalizada, a máxima entra em contradição com os
princípios formais do querer racional em geral, entre os quais avulta o princípio de que,
quem quer alcançar fins em geral, tem de querer os meios que em geral são necessários
para se alcançar fins em geral. Ela aplica essa análise, por exemplo, ao caso da máxima de
“não ajudar os outros”: “Se eu estou submetido às regras da volição racional que
constituem os diversos Princípios do Querer Racional, então estou obrigado a querer meios
para qualquer fim com o qual eu esteja comprometido, e estes meios têm de incluir a
vontade de que, se eu precisar de ajuda e não for capaz de alcançar meus fins sem ajuda, eu
150

seja apropriadamente ajudado. Ao tentar universalizar uma máxima de não-beneficência, eu


me encontro comprometido a, simultaneamente, querer não ser ajudado quando precisar e
querer ser ajudado quando precisar.” 38 O argumento de O’Neill parece, portanto, ser o
seguinte: quem quer alcançar fins em geral tem de querer os meios que em geral são
necessários para se alcançar fins em geral; ora, para um ser que não é auto-suficiente, a
ajuda dos outros representa um meio que em geral é necessário para se alcançar fins em
geral; assim, ao tentar querer a universalização da máxima de “não ajudar os outros”, ou
seja, ao tentar querer não receber a ajuda dos outros, eu me comprometo a querer a
privação de um meio que em geral é necessário para eu alcançar meus fins em geral; ora,
considerando que eu quero alcançar meus fins em geral, querer a privação de um meio que
em geral é necessário para eu alcançar meus fins em geral representa uma inconsistência
(contradição) no meu querer.
Esse tipo de argumento, como salienta O’Neill 39 , pode ser aplicado a todas as
chamadas virtudes sociais, como a gratidão, a solidariedade, a amabilidade, etc. Com efeito,
pode-se dizer que, em geral, essas virtudes são necessárias para despertar, conservar e
fortalecer a disposição de cooperar dos outros, e que a disposição de cooperar dos outros
representa um meio que em geral é necessário para eu alcançar fins em geral. Em outras
palavras, pode-se dizer que, quem quer alcançar fins em geral, também tem de querer poder
contar com a disposição de cooperar dos outros, na medida em que essa disposição
representa um meio que em geral é necessário para se alcançar fins em geral. Ora, na
medida em que a universalização das máximas “anti-sociais” (“não demonstrar gratidão”,
“não ser solidário”, “não ser amável”) implica diminuição ou eliminação da disposição de
cooperar dos outros, quer dizer, implica enfraquecimento ou eliminação de um meio que
em geral é necessário para se alcançar fins em geral, a tentativa de querer a universalização
desse tipo de máxima implica uma “contradição” no querer em geral – implica violação do
princípio formal de que “Quem quer alcançar fins em geral, também tem de querer poder
contar com os meios que em geral são necessários para se alcançar fins em geral”.
Voltemos agora à questão anteriormente colocada: será que, aplicado de modo
puramente formalístico, o critério do “(não) poder querer” consegue escapar às objeções
que foram levantadas em relação ao critério do “(não) poder conceber”? Como foi visto, as
38
Op. Cit., p.99.
39
Op. Cit., p.100-101.
151

objeções eram duas. A primeira consistia na constatação de que o critério do “(não) poder
conceber” só funciona na medida em que se adota uma formulação encurtada e genérica de
máxima. Ora, do modo como é analisado e aplicado por O’Neill, o critério do “(não) poder
querer a universalização da máxima” também parece só poder funcionar caso se adote uma
formulação encurtada e genérica de máxima. E a razão disso é a seguinte. A idéia de que a
universalização da máxima implica uma contradição, quer se trate de uma contradição na
própria máxima, quer se trate de uma contradição com os princípios formais do querer
racional em geral, - tal idéia pressupõe que a máxima (que está sendo universalizada) não
inclua as circunstâncias do agente. Com efeito, quando a máxima inclui as circunstâncias
do agente, a universalização da mesma não possui o alcance que é necessário para gerar o
tipo de contradição visado por O’Neill. Se a máxima é “em tal tipo de circunstâncias, tomar
tal tipo de decisão”, a universalização da mesma é “em tal tipo de circunstâncias, todos vão
tomar tal tipo de decisão”. Nesse caso, a lei universal não é, apenas, “todos vão tomar tal
tipo de decisão”, mas é, mais precisamente, “em tal tipo de circunstâncias (e somente
nelas), todos vão tomar tal tipo de decisão”. O alcance da lei fica aqui limitado, quer dizer,
limitado a tais circunstâncias. Ora, dizer que o alcance da lei é limitado a essas ou aquelas
circunstâncias equivale a dizer que ela (a lei) não tem força (alcance) suficiente para
aniquilar o estado geral de coisas que a adoção da máxima por outro lado pressupõe – quer
esse estado geral de coisas consista na subsistência de uma instituição ou prática da
sociedade, quer ele consista na possibilidade de contar com os meios que em geral são
necessários para se perseguir máximas e fins em geral. Para aniquilar um estado geral de
coisas, a lei tem de ter um alcance igualmente geral, em vez de um alcance limitado a essas
ou aquelas circunstâncias. E dizer que a universalização da máxima não tem força (alcance)
suficiente para aniquilar o estado geral de coisas que a adoção da máxima por outro lado
pressupõe, - dizer isso equivale a dizer que a universalização da máxima já não implica
mais nenhuma contradição. Ou, por outras palavras: para se poder afirmar que a
universalização da máxima implica uma contradição, quer essa contradição consista no
aniquilamento da instituição ou prática que a máxima por outro lado pressupõe, quer ela
consista no aniquilamento dos meios que em geral são pressupostos pela perseguição de
máximas (e fins) em geral, - para se poder afirmar isso, é preciso configurar a máxima de
152

modo a não incluir as circunstâncias do agente, ou seja, é preciso adotar uma formulação
encurtada e genérica de máxima.
Assim, na interpretação do teste de universalização que O’Neill classifica como
“autônoma”, o critério do “(não) poder querer a universalização da máxima” apresenta o
mesmo defeito que o critério do “(não) poder conceber”: tal como esse último, ele só
funciona na medida em que se adota uma formulação encurtada e genérica de máxima.
Entretanto, no caso do critério do “(não) poder conceber a universalização da
máxima”, nós vimos que o grande problema da configuração encurtada e genérica de
máxima residia no fato de que, ao se adotar tal configuração, obtinha-se como resultado
normas genéricas e triviais, do tipo “não mentir”, “não coagir os outros”, etc. Sendo
genéricas e triviais, tais normas são inadequadas para servir como princípios do raciocínio
prático, quer dizer, princípios que, em situações concretas e específicas, e, especialmente,
em situações complexas e embaraçosas, sejam efetivamente capazes de guiar o raciocínio e
a escolha.
É de se esperar que, no caso do critério do “(não) poder querer a universalização da
máxima”, a adoção da formulação encurtada e genérica de máxima tenha o mesmo efeito;
em outras palavras, é de se esperar que, também nesse caso, ao se adotar uma formulação
encurtada e genérica de máxima, obtenha-se como resultado normas genéricas e triviais, do
tipo “ajudar os outros”, “ser grato para com os outros”, etc. E, se olharmos para os
exemplos de aplicação que O’Neill apresenta para esse segundo critério, constataremos que
é isso o que de fato acontece. Ora, do mesmo modo que no caso anterior, também aqui se
pode afirmar que, sendo genéricas e triviais, tais normas são inadequadas para servir como
princípios do raciocínio prático.
Entretanto, se levarmos em consideração a distinção que Kant estabelece entre
deveres negativos (perfeitos) e deveres positivos (imperfeitos), teremos de reconhecer que,
no caso dos deveres que se ancoram no critério do “(não) poder querer”, que são,
justamente, os deveres positivos (imperfeitos), - teremos de reconhecer que, nesse caso, o
próprio Kant concede que a generalidade e indeterminação das normas representam de fato
um defeito (imperfeição), esclarecendo, entretanto, que esse defeito deve ser imputado à
natureza mesma dos deveres que essas normas expressam, em vez de ser imputado ao
método pelo qual elas são obtidas e justificadas. Em outras palavras, no caso dos deveres
153

ancorados no critério do “(não) poder querer”, o próprio Kant reconhece que as normas que
os expressam são demasiado genéricas para guiarem, sozinhas, a tomada de decisões em
situações concretas e específicas. Ele reconhece que, para a tomada de decisões em
situações concretas e específicas, tais normas exigem ser complementadas pela
consideração de outros fatores. Que outros fatores Kant menciona? Segundo a nota da
p.421 da Fundamentação, no caso dos deveres positivos (imperfeitos), a aplicação das
normas pode (e, diríamos nós, precisa) amparar-se numa consideração das “inclinações” do
agente.
Mas será que as inclinações do agente representam de fato um bom guia? Afinal de
contas, pode-se dizer que, de um modo geral, as inclinações representam princípios em
última instância egoísticos, quer dizer, princípios que predispõem o sujeito a desviar-se do
dever em relação aos outros. Assim, afirmar, pura e simplesmente, quer dizer, sem
nenhuma outra explicação, que a aplicação das normas dos deveres positivos pode e deve
amparar-se numa consideração das inclinações do agente, - afirmar esse tipo de coisa
parece envolver concessões excessivas à tendência (antiética) de desviar-se do dever em
relação aos outros.
O que eu estou querendo dizer é o seguinte: considerando a natureza em geral
egoística das inclinações, parece ser completamente inadequado o recurso que, sem
nenhuma outra explicação, é oferecido por Kant para, no caso das normas de dever positivo
(largo), suprir à generalidade (indeterminação) que resulta da adoção da configuração
encurtada e genérica de máxima. Enquanto no caso dos deveres negativos (estreitos) Kant é
demasiado rigoroso, suprindo a generalidade da norma “não fazer isso” com a cláusula
rigorista “quaisquer que sejam as circunstâncias”, no caso dos deveres positivos (largos) ele
é demasiado condescendente com as inclinações do agente, atribuindo-lhes o papel decisivo
de suprir à generalidade da norma “seguir tal regra de vida”.
Embora distintas (num caso, demasiado rigor; no outro caso, demasiada
condescendência), as falhas têm as mesmas causas; trata-se na verdade de uma série de três
causas sucessivas. Em primeiro lugar, a causa dessas falhas encontra-se na generalidade das
normas que têm de servir como princípios do raciocínio prático; em segundo lugar, a causa
encontra-se na formulação encurtada e genérica de máxima, na medida em que a
generalidade das normas é conseqüência, justamente, desse tipo de formulação da máxima;
154

em terceiro lugar, a causa encontra-se na interpretação “autônoma” (formalística) do teste


de universalização, na medida em que a adoção da formulação encurtada e genérica de
máxima é uma conseqüência do fato de que, para atender à postulação formalística de que
sua universalização implica uma contradição, a máxima precisa ser configurada de modo a
não incluir as circunstâncias do agente.
O resultado de toda essa reflexão pode ser resumido da seguinte maneira. Também
no caso do critério do “(não) poder querer a universalização da máxima”, a adoção da
formulação encurtada e genérica de máxima gera resultados insatisfatórios; também nesse
caso, esse tipo de formulação produz princípios que não são adequados para a tomada de
decisões em situações concretas e específicas. Isso significa que a formulação encurtada e
genérica de máxima deve ser definitivamente abandonada. Mas o abandono dessa
interpretação de máxima implica o abandono da concepção formalística do teste de
universalização, segundo a qual o referido teste consiste na verificação do surgimento (ou
não) de uma contradição no processo de universalização da máxima. Em outras palavras, o
abandono da formulação encurtada e genérica de máxima implica o abandono da
interpretação do teste de universalização que O’Neill classifica de “autônoma”, segundo a
qual o funcionamento do referido teste deve apoiar-se na consideração dos aspectos
puramente formais envolvidos na universalização da máxima.
155

Segunda Parte

Utilitarismo e Deontologismo Não-rigorista.


156

Capítulo 4.
Os Bens do Indivíduo-Legislador.

4.1) A Interpretação Não-formalística do Procedimento de Universalização.

Gostaria de iniciar o presente capítulo com uma breve recapitulação das


principais conclusões a que chegamos no capítulo passado. Em primeiro lugar, a
interpretação rigorista transforma o deontologismo numa posição implausível; se
quisermos preservar a plausibilidade do deontologismo, devemos explorar a
possibilidade de um deontologismo não-rigorista, ou seja, de uma forma de
deontologismo que admita consideração pelas circunstâncias e conseqüências do ato.
Em segundo lugar, a versão rigorista do deontologismo apóia-se numa interpretação
formalística do procedimento de universalização, segundo a qual o referido
procedimento consiste, essencialmente, na verificação do surgimento (ou não) de uma
contradição (formal) no processo de universalização da máxima. Em terceiro lugar, a
interpretação formalística do procedimento de universalização depende de uma
concepção “generalista” da máxima que vai ser submetida a ele, segundo a qual a
referida máxima não deve incluir as circunstâncias do ato que está sendo moralmente
avaliado. Em quarto lugar, e como conseqüência das duas últimas teses, se quisermos
explorar a possibilidade de um deontologismo não-rigorista, devemos afastar não só a
interpretação formalística do procedimento de universalização, mas também a
concepção generalista da máxima (princípio prático) que vai ser submetida a ele.
Assim, para explorar a possibilidade de um deontologismo não-rigorista,
gostaria de retomar a interpretação do procedimento de universalização que Onora
O’Neill chama de “heterônoma”, e que eu prefiro chamar de “não-formalística”. Essa
interpretação se define por duas características fundamentais. Em primeiro lugar, ao
abandonar a tese de que o funcionamento do teste de universalização deve apoiar-se na
consideração dos aspectos puramente formais envolvidos na universalização da
máxima, essa interpretação abandona o critério do “(não) poder conceber a
universalização da máxima” e restringe-se ao critério do “(não) poder querer a
universalização da máxima”. Em segundo lugar, essa interpretação vincula esse último
critério, não às características e princípios puramente formais do querer racional, mas
aos desejos, necessidades e interesses que representam os conteúdos desse querer. Desse
157

ponto de vista, para determinar se uma máxima é ou não moralmente correta, o sujeito
racional deve avaliar se ele, considerando os conteúdos da sua vontade, pode ou não
querer a universalização dessa máxima. Quando o procedimento de universalização é
vinculado aos conteúdos do querer racional, o ponto ao qual ele essencialmente se refere
deixa de consistir na noção de contradição e passa a consistir na noção de reciprocidade.
A questão fundamental não é mais a de se, considerando as características e princípios
puramente formais do querer racional, a universalização da máxima gera (ou não) uma
contradição. A questão fundamental passa a ser a de se o sujeito racional, considerando
os conteúdos da sua vontade, pode (ou não) desejar, ou aceitar, que a máxima
(princípio) que tipifica sua conduta seja transformada em lei universal de conduta, quer
dizer, num princípio que passaria a determinar o modo como os outros se comportariam
em relação a ele mesmo. Para saber se um princípio é moralmente correto, o sujeito
racional deve avaliar se, considerando os conteúdos da sua vontade, ele desejaria, ou
aceitaria, ser tratado segundo esse mesmo princípio.
Essa interpretação é perfeitamente compatível com a configuração alongada e
particularista da máxima, quer dizer, é perfeitamente compatível com uma consideração
das circunstâncias e conseqüências do ato a ser moralmente avaliado. Com efeito, nesse
tipo de interpretação, como acaba de ser dito, o teste de universalização pode ser
descrito nos seguintes termos. Assumindo o papel de sujeito racional (indivíduo-
legislador), e considerando os conteúdos da sua vontade, você desejaria, ou aceitaria,
que a máxima da sua conduta fosse transformada num princípio que regeria o modo
como os outros se comportariam em relação a você mesmo? Ora, essa pergunta é
perfeitamente compatível com uma formulação alongada e particularista do princípio
em questão. Com efeito, nesse tipo de formulação, a máxima se expressaria mais ou
menos nos seguintes termos: “em tal tipo de circunstâncias, tal tipo de decisão ou ato”.
Correspondentemente, a universalização da máxima resultaria no seguinte princípio:
“em tal tipo de circunstâncias, todos adotam tal tipo de decisão ou ato”. A implicação
desse último princípio é óbvia: em tal tipo de circunstâncias, tal tipo de decisão ou ato
será adotado em relação a você mesmo. Assim, nessa linha de interpretação, o teste de
universalização se expressaria mais ou menos nos seguintes termos: sabendo que, em tal
tipo de circunstâncias, tal tipo de decisão ou ato tem tal tipo de conseqüências, e
considerando esse tipo de conseqüências, você desejaria ou aceitaria que, em tal tipo de
circunstâncias, esse tipo de decisão ou ato fosse adotado em relação a você mesmo?
Considerando os conteúdos da sua vontade, e as conseqüências que tal tipo de decisão
158

tem em tal tipo de circunstâncias, você desejaria, ou aceitaria, ou escolheria, ser tratado
desse modo? Ora, essa pergunta é perfeitamente compreensível e respondível.
Entretanto, embora a pergunta seja perfeitamente respondível, a resposta que
concretamente se vai dar a ela parece depender inteiramente das inclinações, desejos e
interesses da pessoa que vai responder a ela. Dependendo das inclinações e desejos da
pessoa que ocupa a posição de legislador, a resposta pode variar. É essa, justamente, a
crítica de O’Neill, como vimos no capítulo passado: “Se nos apoiarmos nessa espécie de
critério da aceitabilidade moral, não haverá nenhum tipo de ato que não poderia ser
tornado moralmente aceitável mediante alguma(s) mudança(s) nos desejos humanos.”
Ora, essa variabilidade das respostas ou resultados constitui um grave problema para um
procedimento que pretende constituir-se em critério da correção objetiva dos atos e
princípios. Assim, embora a interpretação não-formalística do procedimento de
universalização possua a vantagem de permitir a adoção da formulação alongada e
particularista do princípio que vai se submeter a ele, quer dizer, embora ela possua a
vantagem de permitir que a consideração das circunstâncias e conseqüências seja
incluída no teste de universalização, - embora essa interpretação possua essa vantagem,
ela por outro lado incorre na desvantagem de tornar o procedimento dependente dos
(variáveis) desejos e interesses dos indivíduos que, a cada vez, ocupam a posição do
legislador.
Essa dificuldade também é destacada por J. Rawls no capítulo sobre Kant do
livro Lectures on the History of Moral Philosophy. 1 Com efeito, na seção sobre a
“primeira formulação” do imperativo categórico, Rawls destaca que, para decidirmos se
um agente pode ou não querer (escolher) um determinado “mundo social equilibrado”
(ou seja, um mundo definido pelo fato de que a máxima em questão foi transformada
em lei que todos seguem), precisamos dar um conteúdo à vontade desse agente, ou seja,
precisamos saber o que, mais precisamente, esse agente quer, ou deseja. 2 E, dando
continuidade à questão na seção sobre “a prioridade do correto”, ele afirma o seguinte:3
Num primeiro momento, poderíamos pensar que a comparação (e escolha – A.S.B.) dos
mundos sociais equilibrados pode ser feita com base na concepção de felicidade do agente.
Mas mesmo que o agente saiba qual é sua concepção de felicidade, subsiste ainda uma séria
dificuldade, uma vez que Kant supõe que diferentes agentes têm diferentes concepções de
felicidade. (...) Conseqüentemente, se as concepções de felicidade forem usadas para julgar os
mundos sociais equilibrados, o fato de uma máxima passar ou não no procedimento do
imperativo categórico vai depender da pessoa particular que aplica tal procedimento. Ora, tal
dependência está destinada a pôr em xeque a concepção kantiana. Pois, se do fato de

1
Editado por Barbara Herman, Harvard University Press, 2000.
2
Op. Cit., p.173.
3
Idem, p.221.
159

seguirmos o procedimento do imperativo categórico não resultar um certo acordo a respeito de


quais máximas passam quando aplicamos o procedimento de forma inteligente e consciente,
contra o pano de fundo das mesmas informações, a lei moral carecerá de conteúdo objetivo.
(O grifo é meu).

É claro que se pode tentar contornar esse problema. O partidário da interpretação


não-formalística do procedimento de universalização pode argumentar, plausivelmente,
que, ao se colocar uma pessoa na posição de legisladora, deve-se excluir desejos e
interesses de natureza contingente, ou seja, desejos e interesses oriundos ou expressivos
de fatores particulares e, nesse sentido, contingentes, como dotação biológica e
psicológica, posição social, formação cultural, etc. Ele pode argumentar,
plausivelmente, que só se deve atribuir ao indivíduo legislador aqueles desejos e
interesses que podem razoavelmente ser classificados como gerais e objetivos, no
sentido de que podem razoavelmente ser atribuídos aos seres humanos de um modo
geral, independentemente das tendências e preferências oriundas dos fatores particulares
e contingentes acima referidos. A idéia fundamental aqui é a de que a variação (e
variabilidade) dos conteúdos da vontade está associada a tais fatores contingentes, e de
que, ao se excluírem tais fatores, será possível descobrir um conteúdo uniforme da
vontade do sujeito racional. Trata-se de desejos e interesses que “todo mundo” tem, ou
que “qualquer indivíduo” tem, tais como o desejo de renda e riqueza, de liberdade, de
boas condições de vida, de oportunidade de emprego, etc. Podemos classificar tais
desejos e interesses como “neutros”, no sentido, justamente, de que combinam com
qualquer indivíduo, podendo ser atribuídos, sem desagrado, a qualquer um. A vontade
constituída por tais conteúdos neutros pode ser igualmente classificada como “neutra”,
no sentido de que pode ser encaixada, sem desarmonia ou desagrado, em qualquer
vontade mais específica.
É essa, justamente, a sugestão inicial de Rawls. Com efeito, ao tratar da questão
do conteúdo que se deve atribuir à vontade do indivíduo-legislador, Rawls afirma que
esse conteúdo deve ser definido em termos de “verdadeiras necessidades humanas”: “Eu
entendo Kant como alguém que afirma que nós temos certas verdadeiras necessidades
humanas, certas condições indispensáveis, cuja satisfação é necessária para que os seres
humanos gozem suas vidas. (...) Como parte do procedimento do imperativo categórico,
suponhamos que nós temos tais necessidades, e que elas são mais ou menos as mesmas
para todo mundo.”4 E Rawls esclarece essa idéia da seguinte maneira. Para termos uma
concepção adequada dessas verdadeiras necessidades humanas, e também do ponto de

4
Idem, p.174.
160

vista no qual essas necessidades propriamente se encaixam, que é um ponto de vista


genérico e neutro (imparcial), - para termos uma concepção adequada dos elementos
fundamentais do procedimento de universalização, precisamos observar duas restrições
nas informações de que dispõem os indivíduos-legisladores. 5 A primeira restrição
consiste no fato de que se deve ignorar as características mais particulares das pessoas,
assim como o conteúdo específico dos seus desejos e fins últimos. A segunda restrição
consiste no fato de que “ao nos perguntarmos se podemos querer o mundo social
equilibrado associado à nossa máxima, devemos raciocinar como se ignorássemos que
posição eventualmente ocupamos nesse mundo”.
Afirmamos acima que, quando o procedimento de universalização é vinculado
aos conteúdos do querer racional, o ponto ao qual ele essencialmente se refere deixa de
consistir na noção de contradição e passa a consistir na noção de reciprocidade.
Devemos agora acrescentar que a noção de reciprocidade precisa ser complementada
pelas noções de generalidade, neutralidade e imparcialidade. A posição do indivíduo-
legislador, quer dizer, do indivíduo que vai avaliar se poderia (ou não) desejar, ou
aceitar, ser tratado segundo um certo princípio – tal posição deve ser ocupada, não por
um “eu” particular, idiossincrático e tendencioso, mas por um indivíduo genérico,
neutro e imparcial, que se define pelo fato de que os conteúdos da sua vontade são,
justamente, genéricos e neutros, e de que ele, ao ser privado de certas informações, está
impedido de decidir de uma forma parcial, quer dizer, de um modo que favoreça uma
posição ou grupo particular, sem uma justificativa normativamente admissível.
A questão que nesse momento se coloca é a seguinte. Será que as noções de
generalidade, neutralidade e imparcialidade são suficientes para produzir a esperada (e
desejada) uniformidade nos resultados do procedimento de universalização? Vou tentar
demonstrar que não. Mais precisamente, vou tentar demonstrar que há diferentes
maneiras de se configurar o indivíduo genérico, neutro e imparcial que agora está sendo
posto na base do procedimento de universalização, e que, dependendo do modo como se
o configura, o procedimento vai apresentar diferentes resultados. Vou tentar demonstrar
que a diferença entre o conseqüencialismo e o deontologismo não-rigorista diz respeito,
justamente, à maneira de se configurar o indivíduo neutro e imparcial que deve ser
posto na base do procedimento de universalização.
Na interpretação rigorista do deontologismo, a diferença entre
conseqüencialismo e deontologismo diz respeito à consideração (ou desconsideração)
5
Idem, p.175-176.
161

das circunstâncias e conseqüências do ato. Afirmamos que, para conservar a


plausibilidade do deontologismo, é preciso encontrar uma forma não-rigorista de
deontologismo, ou seja, uma forma de deontologismo que admita consideração pelas
circunstâncias e conseqüências do ato. Correspondendo ao fato de que a versão rigorista
do deontologismo apóia-se numa interpretação formalística do procedimento de
universalização, sugerimos que uma interpretação não-formalística desse procedimento
poderia propiciar uma forma não-rigorista de deontologismo. Ora, para propiciar uma
forma não-rigorista de deontologismo, a interpretação não-formalística do procedimento
de universalização precisa cumprir duas condições. Primeiro, admitir uma consideração
das circunstâncias e conseqüências do ato ou máxima em questão – e nós vimos que a
interpretação não-formalística de fato admite esse tipo de consideração; segundo,
produzir resultados de coloração inequivocamente deontológica. O que estou sugerindo
agora é que essa segunda condição só é cumprida caso se ponha na base do
procedimento um indivíduo de natureza deontológica – caso se ponha na base do
procedimento um indivíduo cuja neutralidade e imparcialidade foram configuradas
segundo critérios deontológicos. Caso sua neutralidade e imparcialidade sejam
configuradas segundo critérios conseqüencialistas – e a partir de agora, como veremos
logo a seguir, o rótulo “conseqüencialista” vai mudar de sentido, acarretando sua
substituição pelo rótulo “utilitarista” – caso isso ocorra, a versão não-formalística do
procedimento de universalização vai produzir resultados de coloração utilitarista.
Ora, considerando que o funcionamento e resultado do procedimento de
universalização dependem de uma escolha prévia a respeito do modo de se configurar a
neutralidade e imparcialidade do indivíduo legislador, podemos afirmar que esse
procedimento não cumpre sua pretensão de constituir-se, ele próprio, num método de
decisão neutro e imparcial, quer dizer, neutro em relação às posições em disputa.
Podemos afirmar que o procedimento de universalização não cumpre sua pretensão
“fundacional”, quer dizer, não cumpre sua pretensão de constituir-se num fundamento
neutro, a partir do qual a escolha por uma das posições em disputa resultaria
perfeitamente justificada. Na verdade, é justo o contrário o que acontece: é a escolha
prévia por uma das posições em disputa que determina que tipo de procedimento de
universalização você vai ter. Se você previamente assume uma posição deontológica,
adotando o modo deontológico de configurar a neutralidade e imparcialidade do
indivíduo legislador, você vai ter um procedimento de universalização com resultados
deontológicos; se, ao contrário, você previamente assume uma posição utilitarista,
162

adotando o modo utilitarista de configurar a neutralidade e imparcialidade do indivíduo


legislador, você vai ter um procedimento de universalização com resultados utilitaristas.
Isso significa que o procedimento de universalização, por si só, não serve como critério
para a distinção e escolha entre deontologismo e utilitarismo. O verdadeiro critério de
distinção reside na orientação normativa que se coloca na base desse procedimento, e a
escolha dessa orientação não é passível de justificação forte e absoluta – entendida
como derivação inequívoca, a partir de um fundamento neutro, inquestionável e
impositivo.
163

4.2) A Teoria do Bem do Utilitarismo.

Afirmamos acima que o funcionamento e o resultado do procedimento de


universalização dependem do modo como se configura a neutralidade e imparcialidade
do indivíduo legislador. Afirmamos também que a diferença entre conseqüencialismo e
deontologismo não-rigorista diz respeito, justamente, ao modo de se configurar tal
neutralidade e imparcialidade. Ora, a operação de modelar a figura do indivíduo
legislador possui dois aspectos principais. O primeiro diz respeito aos conteúdos da
vontade desse indivíduo. Que desejos e interesses devem ser atribuídos a ele,
exatamente? O que equivale a perguntar: por que bens, exatamente, se orienta sua
vontade? Por que bens, exatamente, se orienta sua deliberação, sua escolha? A esse
primeiro aspecto do procedimento de universalização corresponde uma teoria do bem. O
segundo aspecto diz respeito aos critérios deliberativos propriamente ditos: de que
modo, exatamente, delibera e decide o indivíduo legislador? A esse segundo aspecto
corresponde uma teoria da decisão.
Assim, a diferença entre conseqüencialismo e deontologismo não-rigorista
refere-se às teorias do bem e da decisão que conseqüencialistas e deontólogos
respectivamente adotam para operar o procedimento de universalização. E embora esses
dois aspectos estejam intimamente relacionados, no presente capítulo vou me dedicar,
primordialmente, à teoria do bem, para no próximo concentrar-me na teoria da decisão.

4.2.1) Honrar e Promover um Bem.

Antes, porém, de apresentar as teorias do bem e da decisão que


conseqüencialistas e deontólogos respectivamente adotam, gostaria de discutir o modo
como P. Pettit expõe e analisa a diferença entre essas duas posições. As análises de
Pettit, com efeito, parecem-me representar um bom modo de introduzir o problema que
agora nos interessa.
Em seu artigo Consequentialism, publicado em A Companion to Ethics (editado
por P. Singer), P. Pettit afirma que as teorias morais envolvem dois componentes
distintos: o primeiro deles pode ser descrito como “uma teoria do valor, ou uma teoria
do bem”, ou seja, uma teoria sobre “o que é bom ou valioso”, quer dizer, sobre “as
propriedades que devemos querer ver realizadas em nossas ações e no mundo de um
164

modo geral.”6. O segundo componente pode ser descrito como “uma teoria do correto”,
ou seja, “uma teoria, não sobre quais propriedades são valiosas, mas sobre o que os
indivíduos devem fazer a título de resposta às propriedades valiosas.” E na continuação
imediata: “Dependendo da visão adotada sobre essa questão (a da ação correta –
A.S.B.), as teorias morais são usualmente divididas em dois tipos, conseqüencialistas e
não-conseqüencialistas, ou, para usar uma terminologia mais antiga, teleológicas e não-
teleológicas: o não-teleológico é algumas vezes identificado ao deontológico, e algumas
vezes considerado como simplesmente incluindo-o.”. 7 Para simplificar as coisas,
adotemos duas medidas de caráter terminológico. Em primeiro lugar, evitemos os
termos “teleológico” e “não-teleológico”, e restrinjamo-nos aos termos
“conseqüencialista” e “não-conseqüencialista”; em segundo lugar, adotemos a
alternativa que identifica o não-conseqüencialismo ao deontologismo – lembrando que,
a partir de agora, estaremos visando o deontologismo não-rigorista, ou seja, o
deontologismo que admite uma certa consideração pelas conseqüências de atos e
normas.
Na concepção de Pettit, conseqüencialismo e deontologismo devem ser vistos
como teorias que dizem respeito apenas à ação correta, ou seja, à ação que se deve
praticar a título de resposta à visão do que é bom ou valioso. Para ele, tanto o
conseqüencialismo quanto o deontologismo, tomados como teorias sobre a ação correta,
são compatíveis com qualquer teoria sobre o bem, ou seja, sobre o que é bom ou
valioso; nem conseqüencialismo nem deontologismo precisam comprometer-se com
qualquer teoria do bem. Na concepção dele, em outras palavras, a distinção e o debate
entre conseqüencialismo e deontologismo não dependem de distinção e debate sobre o
que é bom ou valioso, mas referem-se apenas à questão sobre a ação que se deve
praticar a título de resposta à visão do que é bom, qualquer que ela seja.8
Para Pettit, portanto, a distinção entre deontologismo e conseqüencialismo pode
ser reduzida aos seguintes termos. Para o conseqüencialista, a relação entre o bem
(qualquer que ele seja) e a ação correta é uma relação instrumental:9 a ação correta é
aquela que “promove” o bem (qualquer que ele seja) no mundo em geral, mesmo que,

6
Pettit, Consequentialism, p. 230.
7
Idem, Ibidem, p.230.
8
Idem, Ibidem, p.237: “Um outro aspecto da nossa proposição fundamental é o de que com qualquer
valor, com qualquer propriedade considerada desejável, pode-se identificar uma resposta
conseqüencialista e uma resposta não-conseqüencialista. Pode-se dar sentido à noção de promover o valor
ou à noção de honrá-lo”. (O grifo é meu).
9
Idem, Ibidem, p.231.
165

tomada nela mesma, ela deixe de “honrar” (ou seja, respeitar) o bem em questão
(qualquer que ele seja). Para o deontólogo, em contrapartida, a relação entre o bem
(qualquer que ele seja) e a ação correta é uma relação não-instrumental:10 a ação correta
é aquela que, nela mesma, honra o bem em questão (qualquer que ele seja), mesmo que,
ao honrá-lo, deixe de promovê-lo no mundo em geral.
Ora, esse modo de apresentar a distinção parece-me apresentar dois defeitos. Em
primeiro lugar, é muito fácil associá-lo ao preconceito que identifica o deontologismo
ao deontologismo rigorista. Com efeito, é fácil associar a distinção entre “promover” e
“honrar” (um bem) à distinção entre “preocupar-se com as conseqüências da ação” e
“desconsiderar as conseqüências da ação, e considerar apenas a ação nela mesma”. O
segundo defeito de certa forma decorre desse primeiro, embora vá ocupar uma posição
muito mais importante na minha argumentação. Parece-me que, se configurarmos a
distinção que interessa como distinção entre conseqüencialismo e deontologismo não-
rigorista, o vocabulário de “honrar” e “promover” (um bem) remete, não tanto à
distinção entre essas duas posições, mas, antes, à distinção entre tipos de bens. Há bens
em relação aos quais a noção de honrar fica deslocada, tanto na boca do
conseqüencialista quanto na do deontólogo (não-rigorista) – trata-se de bens que pedem
a noção de promover, tanto ao deontólogo quanto ao conseqüencialista. Em relação a
outros tipos de bens, em contrapartida, a noção de promover fica deslocada – trata-se de
bens que pedem a noção de honrar, tanto ao deontólogo quanto ao conseqüencialista.
Assim, se quisermos usar a distinção entre promover e honrar para caracterizar a
distinção entre conseqüencialismo e deontologismo não-rigorista, teremos de dizer, não
que o deontólogo prefere o honrar ao promover, mas, sim, que ele em princípio concede
prioridade aos bens que pedem a noção de honrar, em relação aos bens que pedem a
noção de promover. De forma correspondente, teremos de dizer, não que o
conseqüencialista prefere o promover ao honrar, mas, sim, que ele em princípio concede
prioridade aos bens que pedem a noção de promover, em relação aos bens que pedem a
noção de honrar.
Tomemos, por exemplo, um bem como liberdade. Para Pettit, esse bem, como
qualquer outro, se encaixa tanto na noção de honrar quanto na de promover – o encaixe
depende apenas da opção do agente quanto à resposta correta aos bens em geral. Se o
agente é adepto do conseqüencialismo, ele escolhe promover a liberdade; se ele é adepto

10
Idem, Ibidem, p.231.
166

do deontologismo, ele escolhe honrar a liberdade. E Pettit apresenta a distinção por


meio do seguinte exemplo.11
Suponha que um governo liberal chegue ao poder, um governo interessado, primordialmente,
em que as pessoas gozem a liberdade. Deveria um tal governo, em sua própria conduta, honrar
rigorosamente a liberdade das pessoas, evitando qualquer interferência que ofenda a
liberdade? Ou deveria ele adotar toda e qualquer medida, incluindo ofensas à liberdade, que
promova um maior grau de liberdade no conjunto das pessoas? Imagine que se forme um
grupo que começa a defender um retorno a padrões autoritários: digamos, padrões vinculados
a uma tradição religiosa influente. Para afiar a questão, imagine que o grupo tem real chance
de êxito. Deveria o governo permitir que o grupo conduza suas atividades, com a justificativa
de honrar a liberdade das pessoas para formarem quaisquer associações que desejem? Ou
deveria ele proibir o grupo, com a justificativa de que, embora a proibição interfira na
liberdade das pessoas, ela promove a fruição de um maior grau de liberdade no conjunto das
pessoas, significando que não haverá retorno a uma sociedade iliberal?

Pettit apresenta a questão nos seguintes termos. Honrar a liberdade significa


considerá-la como um valor absoluto; significa que não se pode tocar ou interferir na
liberdade das pessoas, quer dizer, de qualquer pessoa ou grupo. Qualquer interferência
na liberdade individual representa uma ofensa à mesma, quer dizer, uma violação da
mesma, o que contraria a atitude de honrá-la. Se você julga correto interferir na
liberdade de algumas pessoas, para promover um maior grau de liberdade no conjunto
da sociedade, você se afastou da atitude de honrar a liberdade e abraçou a atitude de
promovê-la. E se você prefere o deontologismo, você tem de preferir a atitude de honrá-
la (tal como acaba de ser descrita), afastando-se da atitude de promovê-la.
Ora, é óbvio que esse modo de apresentar a questão não seria aceito por um
deontólogo não-rigorista como Rawls – independentemente da solução que Rawls daria
ao problema mais específico da agitação política do grupo religioso. Com efeito, em seu
artigo The basic liberties and their priority (finalizado em 1982, e reproduzido na
“Conferência VIII” de Political Liberalism), Rawls enfatiza dois pontos. O primeiro é o
de que “(...) as liberdades básicas mencionadas no primeiro princípio de justiça são
especificadas por uma lista, como a seguinte: liberdade de pensamento e liberdade de
consciência; liberdades políticas e liberdade de associação, (...) Nenhuma prioridade é
atribuída à liberdade enquanto tal, como se o exercício de algo chamado ‘liberdade’
tivesse um valor preeminente e fosse o principal se não o único fim da justiça política e
social”.12 Se quisermos usar a noção de honrar para parafrasear o pensamento de Rawls,
teremos de dizer que a atitude de honrar refere-se, não à liberdade enquanto tal, mas a

11
Idem, Ibidem, p.231. O grifo é meu.
12
Rawls, Political Liberalism, p.291-292. O grifo é meu.
167

uma lista relativamente restrita de liberdades precisas e bem determinadas, como


liberdade de consciência, de expressão, de associação, etc.
A segunda idéia destacada por Rawls é ainda mais importante. Trata-se do
seguinte. “Para entendermos a prioridade das liberdades básicas, devemos fazer uma
distinção entre a restrição dessas liberdades e a regulação das mesmas. A prioridade
dessas liberdades não é infringida quando elas são meramente reguladas, como elas
precisam ser, a fim de serem combinadas num esquema unitário, e adaptadas a certas
condições sociais necessárias ao seu exercício continuado e duradouro”.13 Vimos acima
que a prioridade visada por Rawls refere-se, não à liberdade enquanto tal, mas a uma
lista relativamente restrita de liberdades, as chamadas liberdades básicas. E agora
estamos vendo que a prioridade visada por Rawls tampouco se refere a qualquer uma
dessas liberdades tomada isoladamente, mas se refere, sim, ao esquema dessas
liberdades, o qual exige que elas sejam devidamente reguladas. 14 Para combinar as
liberdades básicas num esquema politicamente adequado e duradouro, é preciso regulá-
las, e regulá-las equivale, obviamente, a interferir no seu exercício, toda vez que esse
exercício, tomado individualmente, tiver efeitos danosos para a manutenção do esquema
(politicamente adequado). Nessa conferência fica muito claro o caráter não-rigorista do
deontologismo de Rawls, ou seja, sua preocupação com as conseqüências ou efeitos do
exercício das liberdades. Sempre que esse exercício, tomado individualmente, tiver
efeitos danosos à preservação do esquema politicamente adequado dessas liberdades, é
preciso submetê-lo a regras, regulá-lo; é preciso, em outras palavras, interferir nele – o
que não deve ser classificado como uma restrição da liberdade, quer dizer, uma ofensa à
mesma. Se quisermos usar a noção de honrar para parafrasear o pensamento de Rawls,
teremos de dizer duas coisas: primeiro, que a atitude de honrar refere-se, não às
liberdades básicas tomadas isoladamente, mas ao esquema politicamente adequado e
duradouro dessas liberdades; honrar a liberdade significa honrar o esquema das
liberdades. Em segundo lugar, honrar esse esquema de liberdades implica interferir no
exercício de uma ou outra dessas liberdades, sempre que esse exercício, tomado
individualmente, tiver efeitos danosos à preservação do esquema.

13
Idem, Ibidem, p.295. O grifo é meu.
14
A mesma idéia é repetida em outras passagens dessa “Conferência VIII” de Political Liberalism. Ver,
por exemplo, as páginas 356-357: “É preciso enfatizar que as liberdades básicas constituem uma família,
e que é essa família que tem prioridade, e não uma liberdade isolada tomada por si só, ainda que, do ponto
de vista prático, uma ou outra dessas liberdades básicas possa ser absoluta sob certas condições”. (O grifo
é meu).
168

É claro que o conseqüencialista à moda de Pettit poderia dizer que esse


posicionamento de Rawls deve ser descrito, não em termos de honrar a liberdade ou o
esquema das liberdades, mas, sim, em termos de promover a liberdade no conjunto da
sociedade. E esse conseqüencialista poderia continuar: ao admitir a necessidade de se
interferir no exercício da liberdade de um ou outro indivíduo (ou grupo), para promover
a liberdade no conjunto da sociedade, Rawls está reconhecendo as limitações do
“honrar” e a superioridade do “promover”, o que por sua vez significa que Rawls está
reconhecendo as limitações do deontologismo e a superioridade do conseqüencialismo.
Parece-me provável, por outro lado, que Rawls não aceitaria que sua posição
deva ser descrita em termos de “promover”, e não de “honrar”. Com efeito, parece-me
que ele tenderia a associar a distinção promover-honrar à distinção que ele faz entre
restrição e regulação das liberdades. Ao enfatizar que o ajuste das liberdades num
esquema politicamente adequado e duradouro não deve ser entendido em termos de
restrição da liberdade deste ou daquele indivíduo (ou grupo), Rawls parece estar
sugerindo, justamente, que não se trata de diminuir a liberdade de alguns para promover
um maior grau de liberdade no conjunto. Em outras palavras, parece-me que Rawls diria
que, caso se queira manter a dicotomia entre honrar e promover, o único sentido que se
pode conferir à noção de “promover a liberdade” consiste em entendê-la em termos de
“para promover a liberdade no conjunto, restringir a liberdade deste ou daquele
indivíduo (ou grupo)”. E ele diria que a atitude correta em relação à liberdade consiste
em honrar o esquema politicamente adequado das liberdades, entendendo-a em termos
de “para honrar o esquema politicamente adequado das liberdades, regular a liberdade
deste ou daquele indivíduo (ou grupo)”. Rawls sugeriria então os seguintes
esclarecimentos. (1) Promover a liberdade tem o seguinte sentido: se quisermos
promover a liberdade no conjunto da sociedade, teremos eventualmente de restringir a
liberdade desse ou daquele indivíduo (ou grupo). Falar de promover a liberdade implica
admitir a necessidade de restringir a liberdade desse ou daquele indivíduo ou grupo. (2)
Honrar a liberdade significa honrar o esquema das liberdades, e se quisermos honrar
esse esquema, teremos de regular as liberdades de indivíduos e grupos. Falar de honrar a
liberdade implica admitir a necessidade de regular as liberdades, de modo a combiná-las
num esquema politicamente adequado e duradouro.
É claro que o conseqüencialista poderia replicar que a distinção entre “restringir”
e “regular” a liberdade é artificial e ilusória, e que isso que Rawls descreve como
169

“regulação” da liberdade consiste no fundo numa restrição da mesma, tendo em vista a


promoção da liberdade no conjunto da sociedade.
Nesse ponto, o debate parece congelar-se numa discussão meramente
terminológica, ou seja, numa discussão sobre os termos em que o problema deve ser
descrito. Deve ele ser descrito em termos de “promover-restringir” (a liberdade) ou em
termos de “honrar-regular”? Se quisermos evitar esse congelamento, teremos de
encontrar um outro meio de conferir sentido à distinção entre honrar e promover um
bem. E parece-me que podemos encontrar esse outro meio, seguindo a seguinte linha de
raciocínio. No caso do bem liberdade, ainda que o poder público deva agir (intervir)
para delimitar as liberdades dos indivíduos (ou grupos), o sentido último dessa
intervenção reside num dever de caráter essencialmente negativo: não interferir na
esfera de liberdade a que cada indivíduo (ou grupo) verdadeiramente tem direito. O
sentido último da intervenção consiste em (re)estabelecer os limites de liberdade a que
cada indivíduo (ou grupo) verdadeiramente tem direito, de modo a que todos possam
cumprir o dever (negativo) de não interferir nessa esfera de liberdade politicamente
legítima.
No caso do bem liberdade, em outras palavras, o sentido último da intervenção
não reside no dever (positivo) de fornecer bens que os (ou alguns) indivíduos não têm –
bens de que os (ou alguns) indivíduos estão normativamente carecendo, e que eles, por
conseguinte, merecem receber. Não se trata aqui de promover o fornecimento desses
bens. O sentido último da intervenção reside no respeito que é politicamente devido a
um bem que os indivíduos num certo sentido – no sentido normativo – já possuem, uma
vez que não é preciso que ninguém lhes forneça esse bem. As ações (positivas)
eventualmente exigidas têm por fim, não fornecer esse bem, mas (re)estabelecer suas
fronteiras, evitando invasões e ataques politicamente ilegítimos. Trata-se de respeitar
um bem que os indivíduos normativamente já possuem, evitando invasões politicamente
ilegítimas. Seguindo essa linha de raciocínio, chegamos à seguinte conclusão. Uma vez
que, no caso do bem liberdade, o sentido último das intervenções eventualmente
exigidas reside, não no fornecimento de bens que os indivíduos precisam e merecem
receber, mas no respeito a um bem que os indivíduos normativamente já possuem, –
considerando esse fato, é preciso admitir que, no caso do bem liberdade, as intervenções
eventualmente exigidas devem ser encaixadas na noção de “honrar”, e não na de
“promover”. No caso do bem liberdade, a noção de promover fica deslocada, tanto na
170

boca do deontólogo quanto na do conseqüencialista. Trata-se de um bem que pede a


noção de honrar.
Seguindo essa linha de raciocínio, conseqüencialistas e deontólogos teriam de
admitir também que as intervenções eventualmente exigidas só devem ser encaixadas na
noção de promover caso se trate, justamente, de fornecer bens que, do ponto de vista
político-normativo, os (ou alguns) indivíduos precisam e merecem receber. Em outras
palavras, conseqüencialistas e deontólogos teriam de admitir também que as
intervenções eventualmente exigidas só devem ser encaixadas na noção de promover
caso seu sentido último resida no dever (positivo) de fornecer bens que os (ou alguns)
indivíduos não têm – bens de que os (ou alguns) indivíduos estão normativamente
carecendo, e que eles, por conseguinte, merecem receber. Que bens são esses? Renda,
por exemplo, e tudo que a renda permite comprar. Com efeito, o conseqüencialista teria
de admitir o seguinte. No âmbito das teorias que se preocupam com os resultados da
interação social, que insistem em que a qualidade normativa desses resultados precisa
ser levada em consideração, - no âmbito dessas teorias, entre as quais se inclui o
deontologismo não-rigorista, o bem renda pede a noção de promover, na medida em
que, nesse caso, a idéia de respeitar uma renda que os indivíduos normativamente já
possuem fica inteiramente deslocada. Ao contrário do deontologismo “libertário”, o
deontologismo não-rigorista evita incluir propriedade e renda na categoria dos direitos
fundamentais. Para o deontologismo não-rigorista, renda entra na categoria política dos
bens que os (ou alguns) indivíduos precisam e merecem receber. E o deontólogo não-
rigorista concorda com o conseqüencialista quanto à tese de que, para promover o
fornecimento desse bem àqueles que politicamente o merecem, quer dizer, para cumprir
o dever positivo de fornecer esse bem àqueles que politicamente o merecem, é justo
restringir a renda de outros indivíduos.
E, na medida em que a renda (e o poder de compra da renda) for considerada um
bem essencial à felicidade – nessa mesma medida felicidade também deve ser
considerada um bem que os (ou alguns) indivíduos precisam e merecem receber. Em
outras palavras, felicidade também pode ser considerada um bem que pede a noção de
promover, em vez da de honrar. Por outro lado, na medida em que a liberdade for
considerada um bem essencial à felicidade – nessa mesma medida felicidade deve ser
considerada um bem que os indivíduos normativamente já possuem, ou seja, um bem
que pede a noção de honrar, em vez da de promover (ou ainda: um bem ao qual
171

corresponde o dever negativo de não interferir na esfera de felicidade de que cada


indivíduo normativamente já desfruta).
No artigo acima mencionado, Pettit chega a discutir o bem felicidade. Ele
afirma, por exemplo, o seguinte. “Honrar esse bem significa tentar não causar
diretamente a ninguém nenhuma infelicidade, ainda que causar essa infelicidade viesse
a aumentar a felicidade global”. 15 Ora, é óbvio que um deontólogo como Rawls
reconhece que o bem felicidade exige o bem renda, ou está estreitamente vinculado ao
bem renda. Um deontólogo como Rawls admite que perdas de renda equivalem em
geral a uma certa infelicidade. Isso significa que um deontólogo como Rawls poderia
parafrasear a tese de Pettit da seguinte maneira. “Honrar a felicidade significa não
causar diretamente a ninguém perdas de renda, ainda que essas perdas viessem a
aumentar a felicidade global”. Ora, é igualmente óbvio que o deontólogo à moda de
Rawls não admitiria que a atitude correta seja nesse caso honrar a felicidade/renda – ele
escolheria o “promover”, e essa sua escolha seria totalmente independente das objeções
que ele teria com relação ao fato de que o “promover” está sendo entendido aqui em
termos quantitativos e maximizadores (sugeridos pela expressão “aumentar a felicidade
global”). Por outro lado, o deontólogo rawlsiano também poderia admitir, com ressalvas
que não nos interessam nesse momento (apesar de serem importantes), que o bem
felicidade exige o bem liberdade. Nesse caso, ele parafrasearia a tese de Pettit da
seguinte maneira. “Honrar a felicidade significa não causar diretamente a ninguém
danos à liberdade a que os indivíduos justificadamente têm direito, ainda que esses
danos viessem a aumentar a felicidade global”. Ora, é óbvio que, nesse caso, o
deontólogo rawlsiano reconhece que a atitude correta é, justamente, honrar a
felicidade/liberdade.
A questão depende então do modo como o bem felicidade é inserido e
configurado na esfera política, quer dizer, na esfera das demandas que devem ser
consideradas politicamente relevantes. Ou ainda: a questão depende do modo como os
bens liberdade e renda são inseridos, configurados e organizados na esfera política. De
um modo mais geral, a questão depende de uma teoria sobre a lista e a hierarquia dos
bens que devem ser considerados politicamente relevantes; ela depende da prioridade
que respectivamente se concede, por exemplo, à liberdade ou à renda (e ao poder de
compra da renda). De um modo mais geral ainda, a questão depende do modo como se

15
Pettit, Op.Cit., p.237.
172

configura o bem (o bom, o valioso) na esfera política. A questão depende de uma teoria
política do bem.
Resumindo o argumento. Se quisermos usar a distinção entre honrar e promover
para esclarecer o debate entre conseqüencialismo e deontologismo não-rigorista,
precisamos vincular essa distinção a uma teoria política dos bens. Ainda que se possa
atribuir ao conseqüencialismo uma certa priorização do promover sobre o honrar, essa
priorização só faz sentido quando se atribui ao conseqüencialismo uma certa teoria
sobre o que é bom ou valioso; de modo correspondente, ainda que se possa atribuir ao
deontologismo, mesmo ao deontologismo não-rigorista, uma certa priorização do honrar
sobre o promover, essa priorização só faz sentido quando se atribui ao deontologismo
não-rigorista uma certa teoria sobre o que é bom ou valioso. Isso significa o seguinte.
Ao contrário do que pensa Pettit, a distinção e o debate entre conseqüencialismo e
deontologismo dependem de distinção e debate sobre o que é bom ou valioso. Mais
precisamente, a distinção e o debate entre conseqüencialismo e deontologismo não-
rigorista só fazem sentido quando se atribuem a essas posições suas diferentes (e
respectivas) teorias políticas do bem.

4.2.2) As Diversas Concepções de Utilidade.

Gostaria de começar com a teoria do bem própria do conseqüencialismo. Em seu


artigo Utility and the good 16 , Robert Goodin mostra que, em seu veio principal, o
pensamento conseqüencialista sempre alimentou-se da repulsa pelas teorias do bem que
concebem-no em termos de valores “teóricos” e “abstratos”, como “Verdade”,
“Beleza”, “Justiça”. Em oposição aos teóricos que vêem o bem em termos
“metafísicos”, como algo que é bom “em si mesmo”, independentemente de seu valor
prático e concreto para as pessoas envolvidas, - em oposição a isso, os
conseqüencialistas querem ver o bem em termos “práticos” ou “pragmáticos”, como
algo que é “realmente” bom para as pessoas envolvidas. Para marcar o fato de que o
bem deve ser entendido como “bom para” (para as pessoas envolvidas), o pensamento
conseqüencialista recorreu ao termo “utilidade”: utilidade é, precisamente, aquilo que é
(realmente) bom para as pessoas envolvidas.

16
Goodin, Robert: Utility and the good; publicado em Singer, P. (ed.), A Companion to Ethics, p.241/248.
Ver as páginas 241-242.
173

A partir de agora, por conseguinte, vou identificar o conseqüencialismo ao


utilitarismo, ou seja, à teoria que concebe o bem em termos de utilidade, e que entende
utilidade como aquilo que é “realmente” bom para as pessoas. É claro que essa
definição genérica de utilidade pede e exige uma caracterização mais precisa e
detalhada, e é a partir disso, justamente, que o pensamento utilitarista vai se desdobrar
em diferentes posições. Antes de passar para esses desdobramentos, entretanto, gostaria
de destacar o seguinte. A concepção do bem em termos de utilidade representa uma
“visão de mundo” que, ao abordar as questões envolvidas na interação social, prioriza a
dimensão “realista”, “empírica” e “prática” (“pragmática”) da vida em sociedade, contra
aquela dimensão que se pode chamar de “normativa”. O utilitarista tende a ver a
dimensão normativa em termos de “idealização”, e tende a ver a idealização como
expressão ou de ingenuidade ou de presunção. Assim, contra todas as formas de
idealização, o pensamento utilitarista determina que o ponto de partida da reflexão
ético-política reside na constatação daquilo que “de fato” acontece na vida em
sociedade: constatação do valor que as pessoas de fato atribuem às coisas (contra a
idealização do valor que elas deveriam atribuir-lhes); constatação do modo como a vida
em sociedade de fato se estrutura e desenrola (contra a idealização do modo como ela
deveria se estruturar e desenrolar).
É claro que um teórico antiutilitarista poderia dizer que isso que o utilitarista
apresenta como “realismo” e “pragmatismo” constitui, na verdade, submissão ingênua e
acrítica a uma dimensão ontológica que representa, não “O Real” enquanto tal, mas,
apenas, o modo como o real está acontecendo. De modo mais preciso, o antiutilitarista
poderia dizer o seguinte: o utilitarista não percebe que “O Real” não se reduz ao modo
como o real está acontecendo, mas inclui também possibilidades de desenvolvimento,
num sentido ou noutro sentido. Assim, ver o real não se reduz a ver como as coisas de
fato se passam, quer dizer, estão se passando. Ver o real implica também ver as
possibilidades de desenvolvimento do real. E isso permite uma introdução realista das
considerações normativas: entre as possibilidades reais de desenvolvimento, umas são
piores e outras são melhores, umas não devem ser e outras devem ser. Ver o real em
todas as suas dimensões envolve ver o “Dever-ser” que o real pode vir a ser, e ver de
que modo, nas diferentes situações e contextos, o real pode aproximar-se desse dever-
ser (ver quais são as possibilidades reais de aproximação ao dever-ser).
Nessa linha de raciocínio, o antiutilitarista poderia dizer ainda o seguinte. O real
é, essencialmente, processo, processo histórico; sendo assim, ver o real implica
174

configurar esse processo a partir de um fim, o dever-ser. Isso significa que o dever-ser
representa, não uma idealização ingênua ou presunçosa, mas o fim que configura nossa
visão do real. Ver o real é ver o fim que ele pode vir a ser, e ver de que modo, nas
diferentes circunstâncias, ele pode aproximar-se desse fim. O teórico antiutilitarista
poderia dizer, portanto, que o verdadeiro realismo inclui a dimensão normativa, quer
dizer, inclui uma consideração (normativa) sobre o dever-ser e sobre os possíveis modos
de realização do dever-ser. Essas considerações normativas, longe de deverem ser vistas
como idealizações inteiramente descoladas dos interesses e valores reais das pessoas,
devem ser vistas, não só como possibilidades já inscritas na esfera prática das pessoas,
mas também, e principalmente, como fatores potencialmente formadores ou educativos,
capazes de se atualizarem na consciência e na existência da coletividade, por meio,
justamente, da reflexão e discussão éticas. A discussão ética referida ao dever-ser não
está descolada da esfera prática real; ao contrário, ela está plenamente inserida nessa
esfera, e tem capacidade de fecundar (atualizar) as melhores possibilidades (reais) de
desenvolvimento dessa esfera, que são, justamente, as possibilidades que “devem-ser”.
***
Passemos agora aos debates que, no âmbito do pensamento utilitarista,
desenvolveram-se em torno da noção de “utilidade”. Lembremos que os utilitaristas
visam aquilo que “de fato” é bom para as pessoas, e recusam as hipóteses “normativas”
sobre aquilo que (teoricamente) é bom para elas, na medida mesmo em que vêem tais
hipóteses como suposições presunçosas sobre aquilo que as pessoas deveriam valorizar.
Movidos por esse impulso antinormativo, a primeira definição que os utilitaristas
deram para a noção de utilidade consistiu em caracterizá-la em termos de prazer. O que
de fato é bom para as pessoas é ter prazer, e evitar a dor. Essa resposta suscitou (e
suscita) objeções no próprio campo utilitarista. Entretanto, como bem destaca Robert
Goodin 17 , essas objeções dizem respeito, não tanto à tese geral de que o bom é ter
prazer, mas, antes, à teoria por assim dizer psicológica que essa tese em princípio
sugere. Com efeito, dizer que o bom é ter prazer sugere uma teoria psicológica
hedonista, segundo a qual os móbiles que em última instância movem as pessoas
consistem, fundamentalmente, nos impulsos sensuais mais imediatos (e grosseiros).
Para evitar essa psicologia hedonista, os utilitaristas substituíram (e substituem) a noção
de prazer pela noção de “satisfação das preferências”: o que de fato é bom para as
pessoas é satisfazer suas preferências. Com efeito, é fácil desvincular a noção de
17
Idem, Ibidem, páginas 242-243.
175

preferências da teoria empírica hedonista: do ponto de vista empírico, é absurdo reduzir


“preferências” em geral a preferências pelos impulsos sensuais mais imediatos.
Mas o que o utilitarista das preferências modifica é, apenas, a teoria empírica
exigida pelo impulso antinormativo do utilitarismo em geral. Com efeito, esse impulso
antinormativo exige uma teoria (empírica) acerca daquilo que “de fato” orienta e move
as pessoas. O utilitarista das preferências introduz uma teoria psicológica segundo a
qual, do ponto de vista empírico, o que orienta e move as pessoas são suas preferências,
que vão muito além das preferências sensuais mais imediatas. Valendo-se dessa teoria
empírica, ele sustenta que “utilidade” (o que “de fato” é bom para as pessoas) é, não
simplesmente “ter prazer”, mas, de modo muito mais amplo e abrangente, “satisfazer
preferências”.
Mas é claro que a noção de prazer também pode ser desvinculada da teoria
psicológica hedonista; é fácil dizer que “ter prazer” não se reduz a “satisfazer os
impulsos sensuais”. Em outras palavras, é fácil dizer que “satisfazer preferências”
equivale a “ter prazer”. Trata-se apenas de diferentes tipos de prazer. O que estou
querendo dizer é o seguinte. Em princípio, o utilitarista das preferências não modifica a
estrutura ética do utilitarismo hedonista, de acordo com a qual o bem deve ser entendido
como aquilo que, do ponto de vista empírico, é de fato bom para as pessoas. Mais
precisamente, ele não mexe no impulso antinormativo segundo o qual, para determinar
o que de fato é bom para as pessoas, devemos nos ater aos juízos empiricamente
verificados acerca daquilo que é bom, em vez de introduzir suposições “teóricas” acerca
daquilo que as pessoas deveriam achar bom. Devemos nos ater às observações
empíricas acerca daquilo que as pessoas de fato valorizam, em vez de introduzir
suposições teóricas acerca daquilo que elas deveriam valorizar. Movidos pelo impulso
antinormativo do utilitarismo em geral, utilitarismo hedonista e utilitarismo das
preferências coincidem num ponto fundamental, que consiste na ausência de
comprometimento com qualquer avaliação crítica sobre os tipos de prazer ou de
preferência que deveriam ser valorizados pelas pessoas envolvidas – e também pelo
legislador utilitarista. Essa semelhança entre o utilitarista das preferências e o utilitarista
hedonista é muito bem destacada por Robert Goodin. “Para o utilitarista das
preferências, assim como para o utilitarista hedonista, não há nada na teoria que diga
que as pessoas devam ter esses ou aqueles tipos de preferências. É simplesmente uma
teoria sobre o que se segue, moralmente, se lhes acontece ter tais tipos de preferências.
176

É bom para elas ter suas preferências satisfeitas, quaisquer que sejam essas
preferências.”18
Mas essa imagem do utilitarismo de preferências não cobre todas as nuanças de
que essa posição pode se revestir. Tomemos, por exemplo, um teórico como John
Harsanyi. Em seu artigo Morality and the theory of rational behaviour, Harsanyi se
declara, explicitamente, um partidário do utilitarismo de preferências.19 E, ao defender
essa sua posição, ele afirma, de um modo que parece um tanto injusto com o
utilitarismo hedonista, que “O utilitarismo de preferências é a única forma de
utilitarismo que é compatível com o importante princípio filosófico da autonomia das
preferências. Por autonomia das preferências eu entendo o princípio de que, ao decidir o
que é bom e o que é ruim para um dado indivíduo, o critério último só pode consistir
nos seus próprios desejos e nas suas próprias preferências (ou seja, nos desejos e
preferências do próprio indivíduo – A.S.B.)”. 20 Ora, é óbvio que a “autonomia das
preferências” expressa, de forma muito clara, isso que venho chamando de impulso
antinormativo do utilitarismo. Para decidir o que de fato é bom para o indivíduo,
devemos consultar o que o próprio indivíduo acha bom, e não nossas suposições sobre o
que é bom para ele, ou sobre o que ele deveria achar bom.
Mas, logo depois de introduzir o princípio da autonomia das preferências,
Harsanyi faz as seguintes afirmações. (Op. Cit., p.55. O grifo é do próprio autor).
É verdade que uma pessoa pode irracionalmente desejar algo que é muito ‘ruim para ela’. (...)
Qualquer teoria ética razoável deve fazer uma distinção entre desejos racionais e desejos
irracionais, entre preferências racionais e preferências irracionais. (...) Mas é perfeitamente
possível manter essa distinção mesmo sem recorrer a qualquer outro critério que não as
preferências pessoais do próprio indivíduo. Tudo que temos de fazer é distinguir entre as
preferências manifestas de uma pessoa e suas verdadeiras preferências. Suas preferências
manifestas são suas preferências atuais, tal como se manifestam em seu comportamento
observado, incluindo preferências possivelmente baseadas em crenças factuais errôneas, ou
em análise lógica descuidada, ou em emoções fortes que num dado momento dificultam
enormemente a escolha racional. Em contrapartida, as verdadeiras preferências de uma pessoa
são as preferências que ela teria se possuísse toda a informação factual relevante, se sempre
raciocinasse com o maior cuidado possível, e se estivesse no estado mental mais propício à
escolha racional.

Ora, o que Harsanyi está reconhecendo aqui é aquilo que T. Scanlon chama de
“frágil conexão entre preferência e bem”.21 O Princípio da Autonomia das Preferências

18
Idem, Ibidem, p.243.
19
O artigo de Harsanyi foi republicado em Sen, Amartya e Williams, Bernard (eds.): Utilitarianism and
beyond. Cambridge, Cambridge University Press, 1982. Páginas 39 a 62. Conferir, especialmente, a seção
7, páginas 54-56.
20
Op. Cit., p.55. O grifo é do próprio autor.
21
Ver Scanlon, Thomas, The moral basis of interpersonal comparisons, in Elster, J. e Roemer, J. (eds.),
Interpersonal Comparisons of Well-Being. Cambridge, Cambridge University Press, 1991. Páginas 17 a
44. A citação é da página 38.
177

dita que, para decidir o que é bom para a pessoa, devemos consultar o que a própria
pessoa prefere, em vez de consultar suposições teóricas sobre o que ela deveria preferir.
Mas o próprio Harsanyi reconhece que a conexão entre o que a pessoa (manifestamente)
prefere e o que realmente é bom para ela não é tão sólida e imediata assim, pois as
pessoas podem ter preferências errôneas e equivocadas. Assim, para decidir o que é
bom para a pessoa, o que devemos consultar é, não tanto as preferências que a pessoa
(manifestamente) tem, mas as preferências que ela teria, “se possuísse toda a
informação factual relevante, se sempre raciocinasse com o maior cuidado possível, e se
estivesse no estado mental mais propício à escolha racional”. Ora, ao passar das
preferências manifestas para as verdadeiras preferências, o que o utilitarista Harsanyi
parece estar fazendo é, justamente, introduzir suposições teóricas sobre aquilo que a
pessoa deveria preferir – algo que o Princípio da Autonomia das Preferências proibia.
É óbvio, portanto, que há um conflito entre, por um lado, o princípio da
Autonomia das Preferências, e, por outro lado, o movimento das preferências manifestas
para as verdadeiras preferências. Na visão de Scanlon, esse conflito “reflete uma tensão
moral fundamental, e não apenas uma inconsistência na teoria de Harsanyi”. 22 Para
percebermos todo o alcance dessa tensão, é preciso atentarmos para um fato que
Scanlon, como sói acontecer, apresenta com grande clareza. Trata-se do seguinte.23 Ao
defender o Princípio da Autonomia das Preferências, Harsanyi na verdade está
respondendo a uma exigência que não é especificamente utilitarista, mas pertence ao
contexto da filosofia política moderna como um todo, incluindo posições deontológicas
e liberais. Trata-se da exigência de “neutralidade”: nas discussões e decisões sobre
justiça social, não devemos impor aos indivíduos nenhuma concepção acerca dos
elementos que transformam a vida numa boa vida, mas devemos, ao contrário, respeitar
as diferentes opiniões que eles empiricamente têm e manifestam a esse respeito. Para ser
justa, uma teoria política tem de respeitar essas diferenças, quer dizer, tem de ser neutra
em relação a elas. É óbvio que o Princípio da Autonomia das Preferências atende
perfeitamente à exigência de neutralidade. Por outro lado, ele incide no problema da
“frágil conexão entre preferência e bem” – que Scanlon também chama de “problema da
maleabilidade”. 24 Assim, a “tensão moral fundamental” para a qual Scanlon chama
atenção consiste na tensão entre, por um lado, a exigência de neutralidade, e, por outro

22
Op. Cit., p.29.
23
Op. Cit., p.30.
24
Op. Cit., p.29.
178

lado, o problema da frágil conexão entre preferência e bem. Tratando-se de uma tensão
fundamental, é de se esperar que, se uma teoria quiser evitar esse último problema
mediante exclusão da noção de preferência e concentração exclusiva na noção de bem,
ela corre o risco de, impondo uma certa concepção de bem, não atender de forma
satisfatória à exigência de neutralidade.
Na última seção de seu artigo, Scanlon sugere que a teoria dos bens primários de
J. Rawls representa uma resposta mais plausível a essa “tensão fundamental” do que o
utilitarismo de preferências de Harsanyi.25 Antes de passar para esse tópico, entretanto,
gostaria de voltar ao texto de R. Goodin anteriormente mencionado. Nesse texto, com
efeito, embora não fale de Harsanyi, nem do movimento que este realiza das
preferências manifestas para as verdadeiras preferências, Goodin apresenta uma terceira
variante do utilitarismo, distinta tanto do utilitarismo hedonista quanto do utilitarismo
das preferências. Goodin chama essa terceira variante de “utilitarismo do bem-estar”
(welfare utilitarianism)26. É importante destacar que se trata de uma variante que não é
considerada por Scanlon no texto que vimos discutindo. Sendo assim, é pertinente tentar
responder à seguinte pergunta: de que modo essa terceira variante responde à tensão
fundamental exposta por Scanlon?
O utilitarismo de bem-estar substitui a noção de preferência pela noção de
“interesse de bem-estar”, e define utilidade como “satisfação dos interesses de bem-
estar”. Mas o que são esses “interesses de bem-estar”? Nas palavras do próprio Goodin,
“Os interesses de bem-estar consistem simplesmente naquele conjunto de recursos
genéricos que as pessoas precisam possuir antes de perseguirem quaisquer das
preferências mais particulares que possam eventualmente ter. Saúde, dinheiro, moradia,
alimento e itens dessa espécie podem ser, todos eles, razoavelmente considerados
interesses de bem-estar, recursos úteis quaisquer que sejam os projetos e planos
particulares das pessoas.” 27 Podemos dizer, portanto, que “interesse de bem-estar” é
interesse na posse e fruição daqueles recursos que são sempre úteis, quer dizer, úteis
para todo e qualquer projeto de vida. Podemos dizer também que se trata do interesse na
posse e fruição de recursos que são objetivamente úteis, qualquer que seja o projeto de
vida do indivíduo. Dizer que “utilidade” consiste na satisfação dos interesses de bem-
estar equivale portanto a dizer que “utilidade”, aquilo que de fato é bom para as pessoas,

25
Op. Cit., p.39-44.
26
Goodin, Op. Cit., p.244-245.
27
Idem, Ibidem, p.244. O grifo é meu.
179

consiste na posse e fruição de recursos que são objetivamente úteis, qualquer que seja o
projeto de vida do indivíduo. Chamemos tais recursos de “recursos de bem-estar”.
Voltemos à pergunta: de que modo o utilitarismo de bem-estar responde à tensão
fundamental exposta por Scanlon? Ora, ao substituir a noção de preferências pela noção
de recursos que são objetivamente úteis, o utilitarismo de bem-estar supera o problema
da frágil conexão entre preferência e bem. É razoável admitir que recursos
objetivamente úteis são recursos objetivamente bons (para as pessoas). Por outro lado,
ao priorizar recursos que são úteis para todo e qualquer projeto de vida, o utilitarismo de
bem-estar parece atender de modo igualmente satisfatório à exigência de neutralidade.
Com efeito, se os recursos de bem-estar definem-se pelo fato de serem úteis para todo e
qualquer projeto de vida, é razoável admitir que eles são neutros em relação aos
diferentes projetos de vida que os indivíduos podem adotar. Assim, parece razoável
admitir que o utilitarismo de bem-estar responde de modo satisfatório à tensão
fundamental exposta por Scanlon.
Entretanto, para fazer justiça à posição de Harsanyi, devemos colocar a seguinte
pergunta. Será que, do ponto de vista da teoria sobre o que é bom, os interesses de bem-
estar não são no fim das contas equivalentes (pelo menos mais ou menos equivalentes)
às “verdadeiras preferências” de Harsanyi? Com efeito, poderíamos dizer que os
recursos de bem-estar constituem o objeto dessas preferências verdadeiras. Possuir e
aproveitar os recursos de bem-estar equivaleria a satisfazer as preferências verdadeiras.
É claro que os recursos de bem-estar podem em princípio ser apresentados numa lista
relativamente restrita, o que significa que eles representam uma restrição no leque das
preferências, mesmo das verdadeiras. Mas isso talvez não chegue a constituir-se numa
diferença decisiva. Há outra diferença, porém, essa mais significativa. Mesmo que os
recursos de bem-estar constituam o objeto das verdadeiras preferências, “satisfazer
preferências” aponta para a quantidade de satisfação que o sujeito experimenta ao
satisfazê-las, ao passo que “possuir recursos de bem-estar” aponta para a quantidade de
coisas (itens objetivos) que são possuídas. Dizer que “utilidade” consiste na satisfação
das preferências (verdadeiras) equivale a dizer, justamente, que utilidade consiste na
satisfação que o sujeito experimenta ao satisfazer suas preferências (verdadeiras). Por
outro lado, dizer que utilidade consiste na posse e fruição dos recursos de bem-estar
equivale a dizer, justamente, que utilidade consiste na posse e fruição de itens objetivos.
Essa diferença se expressa de forma decisiva no problema das comparações
interpessoais de utilidade. Comparações interpessoais de utilidade são comparações da
180

utilidade de diferentes pessoas. Se o utilitarista se propõe escolher a ação que maximize


a utilidade no conjunto dos atingidos, ele precisa comparar, não só a utilidade que
diferentes pessoas têm antes de uma possível decisão, mas, principalmente, a utilidade
que as diferentes pessoas ganhariam – ou não ganhariam, ou perderiam – com essa
possível decisão. Citando Goodin, o utilitarista precisa saber “se (a utilidade) que eu
perdi é maior ou menor do que a que você ganhou em decorrência de uma ação
específica”.28
Ora, do ponto de vista das comparações interpessoais de utilidade, dizer que
“utilidade” consiste na satisfação que o sujeito experimenta ao satisfazer suas
preferências suscita dois tipos de problema. O primeiro tem a ver com o fato de que, em
princípio, uma mente é imperscrutável às outras mentes. Citando Goodin, “Na medida
em que a utilidade refere-se essencialmente a um estado mental (e os critérios de
utilidade hedonistas e baseados em preferências claramente fazem isso (...)), fazer uma
medição da utilidade exige que se entre na mente de uma outra pessoa.”29 Ora, é isso,
justamente, que a imperscrutabilidade das mentes tornaria impossível.
Embora esse primeiro problema tenha suscitado longas discussões, ele me
parece menos relevante do que o segundo. O segundo problema pode ser apresentado do
seguinte modo. Dizer que “utilidade” consiste na satisfação que o sujeito experimenta
ao satisfazer suas preferências implica admitir que a utilidade que o sujeito ganharia
com uma possível decisão depende do grau de insatisfação que ele atualmente
experimenta, e do grau em que essa decisão aliviaria essa insatisfação. Ora, como bem
destaca Scanlon, 30 satisfação e insatisfação, por si sós, não carregam consigo apelo
moral (político). Dizer que um sujeito está insatisfeito não implica que suas demandas
(preferências) sejam moralmente (politicamente) relevantes – ele pode, simplesmente,
ser uma pessoa demasiado exigente, com demasiada tendência à insatisfação. Tomada
por si só, “insatisfação” não constitui uma razão politicamente legítima para reivindicar
a satisfação de preferências, e “satisfação” não constitui uma razão politicamente

28
Idem, Ibidem, p. 245.
29
Idem, Ibidem, p.245.
30
Scanlon, Op. Cit., seção 5 (páginas 30-38). Esse ponto já havia sido agudamente discutido por Rawls
em seu artigo Social unity and primary goods (1982). Ver, especialmente, a seção IV, onde Rawls expõe
a tese de que os cidadãos devem ser considerados responsáveis pela formação e cultivo de suas
preferências, o que significa, justamente, que a insatisfação vinculada a preferências irresponsáveis não
deve ter relevância política.
O problema também é destacado e discutido por A. Sen, que enfatiza o quanto os critérios
utilitaristas da satisfação e insatisfação, tomados como critérios da justiça política, podem ser distorcidos
por atitudes de adaptação e condicionamento mental. Ver, por exemplo, o capítulo 3 (Liberdade e os
Fundamentos da Justiça) do livro Desenvolvimento como Liberdade (Companhia das Letras, 2000).
181

legítima para defender que é justo satisfazer uma preferência, mesmo uma preferência
“verdadeira”. Ainda que o movimento para as preferências verdadeiras resolva uma
parte do problema da “frágil conexão entre preferência e bem”, ele não resolve todo o
problema. 31 A parte que ele resolve refere-se ao fato de que, ao concentrar-se nas
preferências verdadeiras, o utilitarista ganha o direito de sustentar que a satisfação
dessas preferências é realmente boa para o indivíduo beneficiado. Mas ele ainda não
ganha o direito de afirmar que a satisfação dessas preferências é politicamente
(moralmente) relevante, legítima, boa. Ao vincular-se às noções de
satisfação/insatisfação, a noção de utilidade perde boa parte do seu apelo político (no
sentido normativo).
Ora, o utilitarismo de bem-estar parece contornar de forma relativamente
simples os dois problemas que o utilitarista das preferências (mesmo o das preferências
verdadeiras) enfrenta ao tratar da questão das comparações interpessoais de utilidade.
Para o utilitarista de bem-estar, como vimos acima, “utilidade” deve ser entendida como
posse e fruição de itens objetivos (recursos de bem-estar). Ora, para comparar níveis de
posse e fruição de itens objetivos, não é preciso entrar na mente das pessoas – basta uma
investigação empírica relativamente simples e “objetiva”. Assim, como destaca Goodin,
o utilitarista de bem-estar tem todo o direito de afirmar que “o problema (quer dizer, o
primeiro problema por nós destacado – A.S.B.) só constitui problema para o utilitarista
hedonista ou das preferências”32 E com relação ao segundo problema, o utilitarista de
bem-estar pode afirmar a mesma coisa. Com efeito, a característica essencial dos
recursos de bem-estar consiste justamente no fato de que eles são publicamente
reconhecidos como objetivamente necessários ou úteis; em outras palavras, a posse e
fruição desses recursos são publicamente reconhecidas como estados de coisas
politicamente bons. Isso significa que, ao contrário do que ocorre com a mera
“insatisfação”, a carência desses recursos é publicamente reconhecida como uma boa
justificativa para uma decisão que vise remediá-la. Ao substituir “insatisfação (ou
satisfação)” por “carência (ou fruição) de recursos objetivamente necessários ou úteis”,
o utilitarista de bem-estar devolve à noção de utilidade todo seu apelo moral (político).
Ao concentrar-se na noção de recursos publicamente reconhecidos como objetivamente
necessários ou úteis (para todo e qualquer projeto de vida), o utilitarista de bem-estar

31
Sobre as duas partes desse problema, ver Scanlon, Op. Cit., p.38.
32
Goodin, Op.Cit., p.246.
182

resolve as duas partes do problema da frágil conexão entre preferência e bem, sem, por
outro lado, contrariar a exigência de neutralidade.
Chegamos assim à seguinte conclusão. Além de resolver de forma plausível a
tensão fundamental exposta por Scanlon – a qual, como vimos acima, consiste na tensão
entre, por um lado, a exigência de neutralidade, e, por outro lado, o problema da frágil
conexão entre preferência e bem, - além de resolver essa tensão, o utilitarismo de bem-
estar resolve de forma igualmente plausível as duas partes do problema da frágil
conexão entre preferência e bem (a parte referente ao que é bom para o indivíduo e a
parte referente ao que deve ser reconhecido como politicamente bom). Isso nos autoriza
a afirmar que o utilitarismo de bem-estar constitui a forma mais plausível de
utilitarismo.
Ora, estamos tratando do debate entre utilitarismo e deontologismo. Afirmamos
acima que, para fazermos justiça ao deontologismo nesse debate, a posição que
devemos contrapor ao utilitarismo é a posição deontológica mais plausível, a do
deontologismo não-rigorista. De forma correspondente, podemos agora afirmar que,
para fazermos justiça ao utilitarismo nesse debate, a posição que devemos contrapor ao
deontologismo não-rigorista é a posição utilitarista mais plausível, a do utilitarismo de
bem-estar.
Devemos então apresentar nosso debate como uma discussão entre
deontologismo não-rigorista e utilitarismo de bem-estar. Para delinear de forma mais
precisa os contornos desse debate, devemos colocar as seguintes questões: qual a teoria
do bem do deontologismo não-rigorista? De que modo essa teoria resolve a tensão
fundamental exposta por Scanlon?
183

4.3) A Teoria do Bem do Deontologismo Não-rigorista.

4.3.1) J. Rawls: Bens Primários e Interesses Superiores.

Para identificarmos que teoria do bem o deontólogo não-rigorista pode e deve


contrapor à adotada pelo utilitarista de bem-estar, devemos começar pela teoria dos bens
primários de John Rawls, por três razões. Primeiro, porque Rawls pode ser considerado
o teórico que articulou de forma mais abrangente, sistemática e influente a posição que
aqui estou intitulando de deontologismo não-rigorista. A segunda razão consiste no
seguinte argumento. Dentro do sistema de Rawls, a teoria dos bens primários representa
o melhor ponto de partida para uma análise das semelhanças e diferenças entre as
teorias do bem adotadas, respectivamente, pelo deontólogo não-rigorista e pelo
utilitarista de bem-estar, na medida em que, com aquela teoria (a dos bens primários),
Rawls tenta resolver aquela mesma “tensão fundamental” que encaminhou o
pensamento utilitarista para a posição do utilitarismo de bem-estar. Na verdade, do
ponto de vista lógico, essa tensão fundamental representa o ponto de partida de todas as
teorias do bem que se desenvolvem no âmbito da filosofia política moderna, e é por isso
que a teoria dos bens primários, ao representar a tentativa especificamente rawlsiana de
responder a essa tensão, representa também o melhor ponto de partida para uma análise
comparativa de deontologismo rawlsiano e utilitarismo de bem-estar. E a terceira razão
está intimamente ligada à segunda. Embora a concepção dos bens primários não esgote
a teoria do bem que se pode (e deve) atribuir ao deontologismo rawlsiano, os outros
elementos dessa teoria (como, por exemplo, o bem das virtudes políticas e o bem de
uma esfera política bem ordenada33) dependem da concepção dos bens primários, na
medida em que têm de atender às condições e exigências envolvidas nessa concepção –
que na verdade, como foi dito acima, são as condições e exigências envolvidas na
tensão fundamental da filosofia política moderna.
Vejamos então de que modo Rawls apresenta os bens primários em Uma Teoria
da Justiça. Entre inúmeras passagens, podemos selecionar a seguinte:34
Os bens primários, como já notei, são coisas que se supõe que um homem racional quer,
quaisquer que sejam as outras coisas que ele queira. Independentemente de qual seja, em
detalhe, o plano racional de um indivíduo, supõe-se que existem diversas coisas que ele
gostaria de ter, na maior quantidade possível. Com uma maior medida desses bens, os homens

33
Ver, por exemplo, a “Conferência V” de Political Liberalism, intitulada A Prioridade do Justo (right) e
as Idéias do Bem.
34
A Theory of Justice, p.92-93. O grifo é meu.
184

podem, em geral, estar certos de maior sucesso na execução de suas intenções e na realização
de seus fins, quaisquer que sejam essas intenções e fins. (...) A suposição é a de que, embora
os planos racionais dos indivíduos tenham diferentes fins últimos, todos eles, não obstante,
exigem para sua execução certos bens primários, naturais e sociais. (...) Qualquer que seja o
sistema de fins de um indivíduo, os bens primários constituem meios necessários.

Ora, é óbvio que, caracterizados dessa maneira, os bens primários ficam bem
próximos dos “recursos de bem-estar”, tal como caracterizados por Goodin
(recordemos: para Goodin, os recursos de bem-estar “consistem simplesmente naquele
conjunto de recursos genéricos que as pessoas precisam possuir antes de perseguirem
quaisquer das preferências mais particulares que possam eventualmente ter. Saúde,
dinheiro, moradia, alimento e itens dessa espécie podem ser, todos eles, razoavelmente
considerados interesses de bem-estar, recursos úteis quaisquer que sejam os projetos e
planos particulares das pessoas”). Em outras palavras, se considerássemos apenas essa
caracterização inicial e genérica dos bens primários, teríamos de concluir que a teoria do
bem adotada por Rawls é bastante semelhante à do utilitarista de bem-estar: em ambos
os casos, o bem (quer dizer, o bem que deve ser considerado politicamente relevante) é
entendido em termos de posse/fruição de bens/recursos/meios que são polivalentes, ou
seja, úteis/necessários para a perseguição de qualquer projeto de vida/sistema de fins
mais específico.
Entretanto, já no artigo Kantian Constructivism in Moral Theory (1980), Rawls
efetua uma alteração importante na teoria dos bens primários. Na seção IV da Parte I
(Autonomia Racional e Autonomia Completa) desse artigo, Rawls afirma o seguinte: 35
É preciso notar que a concepção das pessoas morais como possuidoras de certos interesses
superiores bem precisos vincula a especificação dos bens primários ao quadro das concepções-
modelo36. Assim, esses bens não devem ser compreendidos como meios genéricos essenciais à
realização de quaisquer fins últimos que uma investigação empírica ou histórica permitiria

35
Kantian Constructivism in Moral Theory. The Journal of Philosophy, vol.77, n.9, 1980, p.515-572. A
citação é da p.526-527. O grifo é meu.
36
Em Kantian Constructivism, Rawls fala de duas concepções-modelo fundamentais, a de “pessoa moral”
e a de “sociedade bem ordenada” (cf. p.520). Entretanto, em dois outros artigos bastante próximos a este,
tanto temporalmente quanto pelo fato de estarem referidos à mesma reformulação na análise dos bens
primários – trata-se de Social unity and primary goods (1982) e The basic liberties and their priority
(1982), - nesses dois artigos, Rawls associa a concepção de pessoa, não tanto à concepção de “sociedade
bem ordenada”, mas, antes, à concepção de “cooperação social”. E na “Conferência I” de Political
Liberalism (Fundamental Ideas) a concepção de pessoa é explicitamente subordinada à concepção de
cooperação social. Não é preciso entrar em discussões interpretativas mais detalhadas para perceber que
as mudanças de ênfase na apresentação das concepções-modelo têm a ver com a coloração estritamente
política que Rawls precisa atribuir à concepção de pessoa. Com efeito, parece óbvio que, para adquirir
essa coloração estritamente política, a concepção de pessoa deve de fato ser entendida a partir da
concepção de cooperação social. Em Kantian Constructivism, a noção de cooperação social também
aparece, mas numa seção dedicada à discussão da “autonomia completa” dos cidadãos de uma sociedade
bem ordenada (seção V da Primeira Parte). Ora, por mais que Rawls tente evitar essa aproximação, a
noção de “autonomia completa” aproxima as “concepções-modelo” de uma concepção liberal (kantiana)
de boa vida, estendendo-as para além do plano estritamente político em que ele deseja manter-se.
185

atribuir de maneira habitual ou normal às pessoas, quaisquer que sejam as condições sociais.
Existem poucos fins desse tipo, se é que existem. Os que porventura existam não podem servir
à construção de uma concepção de justiça razoável para nós. (...) E aqui eu devo notar que, ao
fundar a análise dos bens primários sobre uma concepção particular da pessoa, eu opero uma
revisão nas sugestões de Uma Teoria da Justiça, uma vez que, nesse livro, podia parecer que a
lista dos bens primários era o resultado de uma pesquisa puramente psicológica, estatística ou
histórica.

Vale notar que a mesma reformulação pode ser encontrada em dois artigos de
1982: Social unity and primary goods (1982), publicado no livro Utilitarianism and
beyond (editado por A. Sen e B. Williams), e The basic liberties and their priority
(1982), reproduzido na “Conferência VIII” de Political Liberalism. Em ambos os
artigos, Rawls resume sua idéia central da seguinte maneira: “Embora a determinação
dos bens primários invoque um conhecimento das circunstâncias e exigências genéricas
da vida social, ela só faz isso à luz de uma concepção de pessoa previamente dada”.37
No artigo The basic liberties and their priority (1982), Rawls deixa claro que
essa reformulação foi (ao menos parcialmente) motivada pelas críticas que H. Hart fez à
teoria da liberdade apresentada em Uma Teoria da Justiça.38 Mais precisamente, Rawls
deixa claro que essa reformulação tem a ver, basicamente, com a prioridade daquele
subgrupo dos bens primários que ele classifica sob o título de “liberdades básicas”.
Podemos dizer algo de mais preciso ainda: a reformulação tem a ver com a prioridade
desses bens sobre aquele outro subgrupo que ele classifica sob o título de “renda e
riqueza”. (Lembremos que uma teoria política do bem deve incluir uma ordem ou
hierarquia dos diferentes bens que podem ser considerados politicamente relevantes, ou
então algum critério de decisão dos eventuais conflitos entre esses bens). Com efeito, na
mesma seção em que a reformulação é efetuada (tanto em Kantian Constructivism
quanto em Social Unity e The Basic Liberties), enquanto os bens “renda e riqueza”
continuam a ser apresentados nos moldes de Uma Teoria da Justiça, como “meios
polivalentes” (all-purpose means), quer dizer, meios que são proveitosos para nossos
fins em geral (quaisquer que eles sejam), - enquanto os bens “renda e riqueza”
continuam a ser apresentados como meios polivalentes para fins quaisquer e em geral,
os bens representados pelas liberdades básicas passam a estar vinculados, não a fins
quaisquer e em geral, mas a fins bem específicos, ainda que “de ordem superior”.39 Pois,

37
Social unity and primary goods, seção III, p.166/167; The basic liberties and their priority, § 4, p.308.
O grifo é meu.
38
As críticas de Hart foram expostas no artigo Rawls on Liberty and its Priority (1973), republicado em
Daniels, Norman (Ed.), Reading Rawls. New York, Basic Books, 1975.
39
Kantian Constructivism, p.526; Social unity and primary goods, p.165-166; The basic liberties and
their priority, p.308.
186

ainda que Rawls vincule as liberdades básicas, não a objetivos conteudisticamente


determinados, mas ao desenvolvimento e exercício de certas capacidades, o
desenvolvimento e exercício dessas capacidades não podem deixar de ser considerados
como fins específicos – quer dizer, eles não podem ser enquadrados na categoria dos
“fins em geral” (“fins quaisquer”), mas têm de ser considerados como fins específicos.
Tais fins específicos pertencem à “concepção-modelo” da pessoa, e consistem na
realização dos dois “interesses superiores” da pessoa moral – que correspondem,
justamente, ao desenvolvimento e exercício dos dois poderes ou capacidades da
personalidade moral. Que interesses são esses? Que capacidades são essas? Em Social
unity and primary goods (1982), Rawls os apresenta da seguinte maneira. “Assim, ao
formular uma concepção de justiça para a estrutura básica da sociedade, nós começamos
vendo cada pessoa como uma pessoa moral, movida por dois interesses de ordem
superior, a saber, os interesses de realizar e exercer os dois poderes da personalidade
moral. Esses dois poderes são a capacidade para um senso de correção e justiça (a
capacidade de honrar os justos termos da cooperação), e a capacidade de escolher, rever
e perseguir racionalmente uma concepção do bem”.40
O que estou querendo dizer é o seguinte. Rawls percebeu que, para justificar a
prioridade que os bens primários constituídos pelas liberdades básicas sempre têm em
relação aos bens primários constituídos por renda e riqueza, era preciso proceder a uma
reformulação geral da teoria dos bens primários: tais bens devem ser apresentados, não
mais como meios polivalentes para fins quaisquer e em geral, mas como condições da
realização dos dois interesses superiores da personalidade moral. Mesmo que os bens
“renda e riqueza” continuem a ser vistos como meios polivalentes para fins quaisquer e
em geral, o interesse na realização desses fins (quaisquer e em geral) deve ser
subsumido no interesse “superior” de desenvolver e exercer a capacidade de escolher,
rever e perseguir racionalmente uma concepção do bem.41 Veremos logo a seguir de que
modo essa reformulação permite justificar a prioridade das liberdades básicas.

40
Utilitarianism and beyond, p.164-165. Ver a página 302 de Political Liberalism, onde a caracterização
das duas capacidades é praticamente idêntica.
41
Conferir, por exemplo, p.167 de Social unity and primary goods: “Aqui nós invocamos a natureza
prática dos bens primários. Com isso eu quero dizer que nós realmente podemos propiciar um esquema de
iguais liberdades básicas, o qual, quando tornado parte da constituição política e estabelecido na estrutura
básica da sociedade (como objeto primário da justiça), assegura a todos os cidadãos o desenvolvimento e
exercício dos seus interesses de ordem superior, desde que certos meios polivalentes sejam
equitativamente (fairly) assegurados para todos. (O grifo é meu).
187

4.3.2) Contraste com o Utilitarismo de Bem-estar.

Antes de discutir até que ponto a teoria do bem de Rawls consegue justificar a
prioridade das liberdades básicas, gostaria de destacar o seguinte. É óbvio que a
reformulação acima apresentada implica uma diferenciação significativa da teoria do
bem de Rawls em relação à do utilitarista de bem-estar. Para apreciarmos os contornos
dessa diferenciação, voltemos à noção dos recursos de bem-estar, tal como exposta por
R. Goodin. Lembremos que, na lista que Goodin apresenta a título de exemplo (“Saúde,
dinheiro, moradia, alimento e itens dessa espécie”), não aparecem as liberdades básicas.
Mas é óbvio que tais liberdades poderiam e deveriam ser incluídas na lista do
utilitarista, a título, justamente, de “recursos úteis, quaisquer que sejam os projetos e
planos particulares das pessoas”. Em outras palavras, o utilitarista de bem-estar tem de
reconhecer que, de um modo geral, e em princípio, as liberdades básicas constituem-se
de fato em recursos (objetivamente) úteis, na medida em que podem ser
proveitosamente utilizadas na perseguição dos mais variados projetos de vida.
Mas será que, em casos de conflito, o utilitarista de bem-estar concederia
prioridade às liberdades, em relação a bens de cunho mais concreto ou material, como,
por exemplo, renda (“dinheiro”)? A hipótese de um conflito desse tipo, que vou chamar
de conflito entre os recursos de bem-estar, - a hipótese de um tal conflito constitui a
meu ver um ponto extremamente importante, na medida em que permite vislumbrar o
fundamento último da posição utilitarista, inclusive da do utilitarista de bem-estar.
(Notemos a propósito que o conflito em questão não precisa ser restringido ao conflito
liberdade versus dinheiro; ele pode consistir também em educação versus dinheiro, ou
educação versus transporte, ou saúde versus transporte, e assim por diante).
Como vimos acima, ao definir utilidade como “posse/fruição de recursos
objetivamente úteis”, em vez de “satisfação de preferências”, o utilitarista de bem-estar
visava (e conseguiu) resolver o problema da frágil conexão entre preferência e bem, nas
suas duas dimensões: nem toda preferência é objetivamente boa para o indivíduo, mas a
posse (e fruição) de recursos objetivamente úteis sempre é objetivamente boa para o
indivíduo; nem toda “satisfação de preferência”, mesmo de uma preferência
“verdadeira”, é politicamente relevante (ou seja, boa), mas a posse (e fruição) de
recursos objetivamente úteis sempre é politicamente relevante e boa. Entretanto, como o
utilitarista de bem-estar resolveria conflitos entre recursos que pertencem, ambos (ou
todos), à sua lista (relativamente aberta) de recursos de bem-estar? Liberdade versus
188

dinheiro, educação versus dinheiro, educação versus transporte, ... - como o utilitarista
de bem-estar resolveria conflitos desse tipo?
É claro que ele poderia tentar asseverar, por conta própria, que um desses
recursos é, objetivamente, melhor do que o outro, quer dizer, mais útil para os
indivíduos concernidos; é claro que ele poderia tentar asseverar, por conta própria, que a
posse (e fruição) de um desses recursos é politicamente mais relevante (melhor) do que
a do outro. De um modo geral, entretanto, parece-me que o utilitarista de bem-estar
sentiria uma certa repulsa por esse caminho, na medida em que ele se afasta do impulso
antinormativo que caracteriza o utilitarismo em geral. Parece-me que, no caso desse tipo
de conflito, ele tenderia a consultar os próprios concernidos, para averiguar qual dos
recursos é o preferido pela maioria; parece-me que, no caso desse tipo de conflito, ele
tenderia a asseverar que, para decidir qual dos recursos deve ser considerado
politicamente mais relevante ou melhor, é preciso averiguar qual dos recursos é o
preferido pela maioria dos concernidos. Em outras palavras, parece-me que, no caso
desse tipo de conflito, o utilitarista de bem-estar voltaria ao princípio da autonomia das
preferências, expressão da exigência de neutralidade. Na tensão entre a exigência de
neutralidade e o problema da frágil conexão entre preferência e bem, e premido por um
conflito na distribuição de recursos que em princípio são igualmente bons (pelo menos
de forma aproximada), o utilitarista de bem-estar, movido por seu impulso
antinormativo, tende para o lado da exigência de neutralidade. Ele evita o juízo de que
um dos recursos é objetivamente melhor do que o outro, pois isso equivaleria a passar
por cima das opiniões que os próprios concernidos têm acerca daquilo que é bom para
suas vidas, e escolhe, ao contrário, o recurso que é preferido pela maioria. Com efeito,
em casos de conflito desse tipo, em que os recursos foram inicialmente colocados, todos
eles, na esfera do “(objetivamente/politicamente) bom”, e não das “preferências”, ser
neutro é, justamente, respeitar a opinião da maioria, quer dizer, atender à preferência da
maioria.
Ora, atender à preferência da maioria equivale a gerar a maior quantidade de
satisfação na sociedade. Mais precisamente, orientar-se pela preferência da maioria
equivale a buscar a maior quantidade de satisfação na sociedade. Podemos então
concluir que, desde que o papel da idéia de satisfação seja restringido ao de critério de
decisão dos conflitos entre os recursos de bem-estar, - nessas condições, o “bem” (o
bem que deve ser considerado politicamente relevante) do utilitarista de bem-estar
continua a ser entendido em termos de maior quantidade de satisfação na sociedade. Em
189

outras palavras, do ponto de vista político o utilitarismo de bem-estar define o bem


como aquela hierarquia-distribuição dos recursos de bem-estar que gera a maior
quantidade de satisfação na sociedade.
Embora eu não vá entrar na discussão desse ponto, gostaria de mencionar
rapidamente o seguinte. O utilitarista de bem-estar subordina a noção de satisfação à
definição de utilidade como “posse/fruição dos recursos de bem-estar”. Com isso, ele
depura a noção de satisfação dos seus aspectos mentais, subjetivos e idiossincráticos.
Satisfação passa a equivaler, simplesmente, à utilidade que o sujeito objetivamente
ganha (para sua vida) ao poder fruir dos recursos de bem-estar que ele prefere.
Entendida dessa maneira “objetiva”, como “utilidade objetivamente obtida”, a noção de
satisfação pode perfeitamente ser encaixada no princípio (empírico) da “diminuição da
utilidade marginal”, segundo o qual a utilidade (satisfação “objetiva”) que o indivíduo
extrai de uma primeira porção dos recursos de bem-estar é maior do que a que ele extrai
de uma segunda porção, e assim por diante.42 De acordo com esse princípio empírico,
em outras palavras, quem tem menos recursos de bem-estar tende a obter mais utilidade
(satisfação objetiva) deles do que quem tem mais. De acordo com esse princípio,
portanto, a distribuição dos recursos de bem-estar que gera mais utilidade (satisfação
objetiva) tende a ser uma distribuição relativamente igualitária. Assim, além de definir
politicamente o bem como aquela hierarquia-distribuição dos recursos de bem-estar que
gera a maior quantidade de satisfação (objetiva) na sociedade, o utilitarista de bem-estar
acrescenta a essa definição a teoria empírica de que essa distribuição tende a ser uma
distribuição relativamente igualitária. A teoria do bem político dos utilitaristas de bem-
estar combina o princípio normativo do atendimento das preferências da maioria
(quanto aos recursos de bem-estar) com o princípio empírico que favorece uma
distribuição relativamente igualitária.

4.3.3) Interesses Superiores ou Bem Estritamente Político?

Ao adotar a preferência da maioria como critério de decisão dos conflitos entre


os recursos de bem-estar, o utilitarista de bem-estar deixa de conceder prioridade
normativa a qualquer subgrupo desses recursos, inclusive ao subgrupo das liberdades
básicas. A decisão vai depender de uma consulta às preferências empíricas dos
concernidos; se eles manifestarem preferência, não pelas liberdades, mas por qualquer
42
Conferir Goodin, Op. Cit., p.247.
190

outro recurso de bem-estar, as liberdades devem ceder o passo a esse outro recurso. É
para evitar isso, justamente, que Rawls desenvolve uma teoria política do bem fundada
numa concepção-modelo da pessoa moral. Em outras palavras, é para garantir a
prioridade normativa das liberdades básicas que Rawls desenvolve uma teoria política
do bem na qual os bens primários ficam vinculados aos interesses superiores da pessoa
moral, que são os interesses no desenvolvimento e exercício dos dois poderes da
personalidade moral. Efetuando esse movimento, Rawls define o bem (quer dizer, o
bem que deve ser considerado politicamente relevante) como realização dos interesses
superiores da personalidade moral. E a prioridade das liberdades passa a poder ser
justificada, grosso modo, por meio das seguintes premissas. Premissa 1: o bem consiste
na realização dos interesses superiores da personalidade moral. Premissa 2: para a
realização desse bem, as liberdades básicas são requisitos indispensáveis; ou então: para
a realização desse bem, elas têm mais relevância e significação do que os recursos de
cunho mais concreto ou material, como renda e riqueza.
O problema que esse movimento acarreta para Rawls diz respeito, obviamente, à
possibilidade de violação da exigência de neutralidade. Ao ancorar sua teoria do bem
numa concepção “modelo” de pessoa moral, não estaria Rawls infringindo essa
exigência? Até que ponto uma teoria do bem ancorada numa concepção específica – e
fortemente normativa – da pessoa pode ser considerada neutra em relação aos diversos
projetos de vida que os diferentes indivíduos abraçam e preferem? Logo no início de
The basic liberties and their priority, Rawls afirma que “Essas correções revelam que as
liberdades básicas e sua prioridade baseiam-se em uma concepção de pessoa
reconhecidamente liberal e não, como pensava Hart, em considerações de interesse
racional apenas”.43 Ora, até que ponto uma concepção reconhecidamente liberal pode
ser considerada neutra em relação a projetos de vida que não concedem tanta
importância assim às liberdades básicas, nem às capacidades (interesses) morais para as
quais tais liberdades representam requisitos indispensáveis? Até que ponto ela pode ser
considerada neutra em relação a indivíduos que, às liberdades e capacidades “morais”,
preferem bens e capacidades de cunho mais concreto ou material, como a renda e a
capacidade de fruir de conforto e bem-estar material? E, caso se venha a admitir que ela
(essa concepção liberal) de fato tem de ser reconhecida como relativamente não-neutra,
seria possível justificar essa relativa não-neutralidade?

43
Political Liberalism, p.290.
191

No próximo capítulo, discutiremos essas questões de forma mais detalhada, no


contexto de uma reflexão sobre a teoria da decisão utilizada no procedimento
contratualista. Para preparar essa discussão, entretanto, gostaria de realizar uma análise
mais meticulosa do modo como Rawls justifica a prioridade das liberdades em seu
artigo The basic liberties and their priority. Parece-me, com efeito, que o argumento de
Rawls nesse artigo apresenta certos problemas que merecem ser apontados desde já,
para que se destaquem certos limites que ele, caso queira atender minimamente à
exigência de neutralidade, não deve transgredir. Ao destacar esses problemas e limites,
nosso intuito é preparar o caminho interpretativo que tentaremos seguir no último
capítulo de nosso trabalho.
O cerne do problema reside na caracterização da “posição original”, entendida
como um procedimento deliberativo no qual se expressa o modo pelo qual os
indivíduos-legisladores devem escolher os “justos termos da cooperação social”, quer
dizer, os princípios de justiça que regulam a estrutura básica da sociedade. Mais
precisamente, o problema reside no modo pelo qual se relacionam, nessa posição
original, os elementos conceituais que Rawls chama, respectivamente, de “o racional” e
“o razoável”. Na p.305/306 de Political Liberalism, Rawls faz as seguintes afirmações a
esse respeito.
Duas partes diferentes da posição original devem ser cuidadosamente distinguidas. Essas
partes correspondem aos dois poderes da personalidade moral, ou seja, ao que eu chamei de
“capacidade de ser razoável” e “capacidade de ser racional”. Ainda que a posição original
como um todo represente ambas as capacidades morais, e represente, portanto, a concepção
plena da pessoa, os participantes (the parties), enquanto representantes racionalmente
autônomos das pessoas na sociedade, representam apenas o racional: os participantes chegam
a um acordo quanto aos princípios que eles acreditam ser os melhores para as pessoas que eles
representam, avaliando esses princípios a partir das concepções de bem dessas pessoas e da
sua capacidade de formar, rever e perseguir racionalmente uma concepção de bem – até onde
os participantes podem conhecer essas coisas. O razoável, ou a capacidade das pessoas para
um senso de justiça, que aqui consiste na sua capacidade de respeitar os justos termos da
cooperação social, é representado pelas diversas restrições a que os participantes estão
submetidos na posição original e pelas condições que são impostas ao seu acordo. Quando os
princípios de justiça adotados pelos participantes são proclamados e cumpridos pelos cidadãos
iguais na sociedade, então esses cidadãos agem com autonomia completa. A diferença entre
autonomia racional e autonomia completa é esta: autonomia racional significa atuar a partir,
unicamente, da nossa capacidade de ser racional e da concepção determinada de bem que
temos num dado momento. A autonomia completa inclui não apenas essa capacidade de ser
racional, mas também a capacidade de perseguir nossa concepção de bem de um modo
compatível com o respeito aos justos termos da cooperação social. (...) Os participantes,
porém, são apenas racionalmente autônomos, uma vez que as restrições do razoável lhes são
simplesmente impostas de fora. (...) São os cidadãos iguais numa sociedade bem ordenada que
são completamente autônomos, na medida em que aceitam livremente as restrições do
razoável.

A dificuldade interpretativa que esse trecho suscita diz respeito ao modo como
uma “capacidade moral” chega (ou não) a transformar-se numa capacidade deliberativa
192

passível de ser exercida no procedimento deliberativo da posição original. No caso da


capacidade de ser racional, que Rawls define como a capacidade de formar, rever e
perseguir racionalmente uma determinada concepção do bem individual,44 não chega a
surgir nenhuma dificuldade maior. Essa capacidade facilmente se transforma numa
capacidade deliberativa passível de ser exercida pelo indivíduo-legislador, na posição
original. Com efeito, essa capacidade equivale à capacidade de deliberar (refletir,
formar, rever e perseguir racionalmente, discernindo os meios mais adequados) sobre o
meu bem individual, e essa capacidade facilmente se transforma na capacidade do
indivíduo-legislador de, na posição original, deliberar sobre quais são os termos da
cooperação mais adequados à concepção de bem individual de todo e qualquer
indivíduo, ou de um indivíduo qualquer, assim como ao desenvolvimento e exercício da
capacidade de examinar e rever essa concepção, tendo em vista o bem de todo e
qualquer indivíduo, ou de um indivíduo qualquer.
A dificuldade aparece no caso da capacidade de ser razoável, que Rawls define
como a capacidade para um senso de justiça. Numa passagem anterior ao trecho acima
citado, Rawls esclarece que a capacidade para um senso de justiça consiste na
capacidade de respeitar (honrar) os justos termos da cooperação social, e detalha esse
esclarecimento afirmando que se trata da capacidade de compreender e aplicar os
princípios de justiça (que representam, precisamente, os justos termos da cooperação
social), e de ser normalmente movido por um desejo de agir a partir desses princípios, e
não simplesmente de acordo com eles.45 Ora, entendida dessa forma, a capacidade de
ser razoável não chega a corresponder a uma capacidade deliberativa a ser usada no
procedimento deliberativo voltado para a escolha dos princípios de justiça. Ela se
apresenta como uma capacidade a ser usada depois que os princípios foram escolhidos;
trata-se da capacidade de compreender e aplicar princípios já escolhidos, e de ser
movido por um desejo de agir a partir desses princípios, e não simplesmente de acordo
com eles. É por isso que, no trecho acima citado, Rawls afirma que os participantes da
posição original representam apenas o racional, quer dizer, usam apenas a capacidade
deliberativa da racionalidade, orientada para o bem individual. É por isso, também, que
ele afirma que a capacidade para um senso de justiça pertence, não à autonomia racional
dos participantes da posição original, mas à autonomia completa dos cidadãos de uma

44
Na p.300 de Political Liberalism, Rawls afirma, explicitamente, que o racional refere-se ao bem
individual: “o racional refere-se à vantagem racional de cada participante; àquilo que os participantes,
enquanto indivíduos, estão tentando promover”.
45
Political Liberalism, p.302.
193

sociedade bem ordenada, que compreendem, aplicam e internalizam princípios de


justiça já escolhidos (escolhidos, justamente, pelos participantes racionalmente
autônomos da posição original).
A caracterização da posição original em The basic liberties pode então ser
resumida da seguinte maneira. Na posição original, a única capacidade deliberativa que
entra é a capacidade da racionalidade, entendida como uma capacidade orientada para a
promoção do bem individual. Ao deliberarem sobre os justos termos da cooperação
social, os participantes tentam fazer o melhor que podem para promover a concepção de
bem individual adotada pelas pessoas que eles representam. É claro que, para garantir a
eqüidade (justiça) dos princípios da cooperação, os participantes precisam ser
submetidos a certas restrições e condições “externas”, quer dizer, externas à sua
racionalidade, à sua capacidade de deliberar sobre o próprio bem (lembre da frase “os
participantes são apenas racionalmente autônomos, uma vez que as restrições do
razoável lhes são simplesmente impostas de fora”). Trata-se de condições que dizem
respeito, não tanto ao seu modo de deliberar, mas, antes, àquilo que eles estão
impedidos de fazer, e que eles estariam tentados a fazer, dado seu interesse de promover
sua própria concepção do bem individual. Assim, eles estão submetidos, em primeiro
lugar, à condição da igualdade e simetria, que os impede de valer-se de posições de
poder ou superioridade de qualquer tipo; eles também estão submetidos a certas
restrições informacionais (que se expressam no “véu de ignorância”), que os impedem
de ser parciais na escolha dos princípios de justiça (ou seja, que os impedem de,
conhecendo certas características dos indivíduos que representam, escolherem
princípios de justiça mais favoráveis a esses indivíduos, em detrimento dos outros). Na
posição original, o elemento da razoabilidade só entra sob a forma de tais restrições e
condições externas.
Entretanto, numa outra passagem desse mesmo artigo de 1982, ao apresentar a
conexão entre a concepção de pessoa e a concepção de cooperação social, Rawls sugere
uma outra noção de razoabilidade, mais apta a ser tomada como uma capacidade
deliberativa que, apesar de distinta da capacidade da racionalidade, é passível de ser
usada no procedimento deliberativo voltado para a escolha dos princípios de justiça. A
passagem é a seguinte.46
A cooperação social sempre é para benefício mútuo e isto implica que ela envolve dois
elementos: o primeiro é uma noção compartilhada dos justos termos da cooperação, que se
pode razoavelmente esperar que cada participante aceite, desde que todos os outros
46
Political Liberalism, p.300. O grifo é meu.
194

participantes igualmente os aceitem. Os justos termos da cooperação articulam uma idéia de


reciprocidade e mutualidade: todos que cooperam devem beneficiar-se da cooperação, ou
dividir os ônus comuns, de uma forma apropriada, julgada a partir de um padrão de
comparação adequado. Esse elemento da cooperação social eu chamo de “o razoável”. O outro
elemento corresponde ao “racional”: ele se refere à vantagem racional de cada participante;
àquilo que os participantes, enquanto indivíduos, estão tentando promover.

A noção de razoabilidade sugerida nessa passagem se aproxima bastante da


noção de razoabilidade apresentada por T. Scanlon em seu artigo Contractualism and
utilitarianism, 47 que também é de 1982, e que nós analisaremos de forma mais
detalhada no próximo capítulo. Por que essa noção me parece mais apta a ser tomada
como uma capacidade deliberativa passível de ser usada na posição original? Porque, ao
afirmar que a razoabilidade diz respeito àquilo que se pode razoavelmente esperar que
cada participante aceite, ao afirmar que a razoabilidade diz respeito ao discernimento de
uma forma apropriada de dividir os benefícios e ônus da interação social, - ao afirmar
essas coisas, Rawls sugere que a razoabilidade pode ser tomada, não tanto como a
capacidade de compreender, aplicar e internalizar termos de cooperação previamente
escolhidos, mas, antes, como a capacidade de discernir que termos de cooperação
podem ser razoavelmente propostos como passíveis de aceitação razoável por cada
participante. E a capacidade de discernir que termos de cooperação podem ser
razoavelmente propostos como passíveis de aceitação razoável por cada participante
equivale à capacidade de discernir o que é razoável conceder ao(s) outro(s)
participante(s), e o que é razoável pedir ou exigir do(s) outro(s) participante(s). Tomada
nesse sentido, em outras palavras, a capacidade da razoabilidade diz respeito às
seguintes questões. O que é razoável conceder ao outro? O que é razoável pedir ou
esperar do outro? Que princípio eu tenho razoavelmente de aceitar, considerando o que
é razoável conceder ao outro? Que princípio eu posso razoavelmente propor à aceitação
do outro, considerando o que é razoável eu esperar e exigir dele?
Ora, é óbvio que, tomada nesse sentido, a razoabilidade constitui-se numa
capacidade deliberativa passível de ser usada no procedimento deliberativo voltado para
a escolha dos princípios de justiça. E é igualmente óbvio que se trata de uma capacidade
deliberativa distinta da capacidade da racionalidade, na medida em que, enquanto esta
última refere-se ao que é bom para o próprio indivíduo (mesmo que se trate de qualquer
indivíduo, ou de um indivíduo qualquer), a primeira refere-se ao que é razoável
conceder e pedir em relação ao(s) outro(s) participante(s). Por estar referida ao que é
bom para o próprio indivíduo, a capacidade da racionalidade só se refere à esfera
47
Publicado em Sen, Amartya e Williams, Bernard (eds.), Utilitarianism and Beyond (1982).
195

política de uma forma indireta – na medida em que, ao perseguirem racionalmente seu


próprio bem, os indivíduos precisam e se servem do meio da cooperação social
politicamente organizada e regulada, e, eventualmente, politicamente justa. No caso da
capacidade da racionalidade, o alvo é o bem individual, e a noção de justiça aponta
apenas para restrições e condições externas, ou seja, aponta apenas para os limites que
devem ser impostos à busca do bem individual.
Já a capacidade da razoabilidade, ao referir-se ao que é razoável conceder e
pedir em relação aos outros participantes, refere-se à esfera política de uma forma muito
mais direta. O ponto fundamental é o seguinte: tomado como capacidade deliberativa, o
senso de justiça refere-se diretamente à razoabilidade da esfera política, entendida como
um valor autônomo, independente do bem individual dos cidadãos. Em vez de apontar
apenas para restrições e limites externos, a justiça representa aqui o próprio alvo, e é
nesse sentido, precisamente, que a justiça pode ser apresentada como um bem – um bem
estritamente político. Pode-se dizer então que o bem pelo qual se orienta a deliberação
(e escolha) dos indivíduos legisladores consiste, justamente, na razoabilidade (justiça)
da esfera política, tomada como um valor autônomo, independente – e num certo
sentido prioritário – em relação ao bem individual (não-político) dos cidadãos em geral.
Em outras palavras, tomado como elemento deliberativo propriamente dito, o
elemento da razoabilidade permite que a escolha dos termos da cooperação se oriente,
não tanto por uma concepção de bem individual submetida às restrições e condições
(externas) da justiça, mas, antes, por uma noção de razoabilidade interna ao próprio
modo de deliberar dos participantes, e referida a um bem específico, diretamente (e
estritamente) político – a justiça, precisamente. Isso significa que, tomado como
elemento deliberativo propriamente dito, o elemento da razoabilidade permite que a
prioridade das liberdades básicas se fundamente na sua relevância/significação para um
bem estritamente político, a saber, a justiça da esfera política – em vez de ser
fundamentada na sua relevância/significação para o bem individual de pessoas “morais”
e “liberais” (quer dizer, dotadas de interesses morais superiores, de caráter
reconhecidamente liberal). A razoabilidade (senso de justiça), como capacidade
deliberativa, se orienta pela razoabilidade (justiça política), como bem estritamente
político.
Como foi dito acima, entretanto, em The basic liberties Rawls não inclui essa
noção “deliberativa” da razoabilidade na caracterização da posição original. Em
conseqüência disso, ele tampouco a inclui nos argumentos de justificação da prioridade
196

das liberdades – na medida em que se trata (e tem de se tratar) de argumentos que se


articulam no contexto da posição original. Com efeito, todos os argumentos que Rawls
apresenta nos parágrafos 5 e 6 de The basic liberties, inclusive os que se referem à
capacidade de ser razoável, tomada como capacidade de compreender, assimilar e
internalizar princípios de justiça previamente escolhidos, - todos os argumentos baseiam
a prioridade das liberdades no interesse de promover o bem individual, que é o interesse
que norteia a capacidade da racionalidade.
O primeiro argumento do parágrafo 5 baseia a prioridade das liberdades numa
concepção determinada do bem individual, que os participantes sabem que pode vir a
ser aquela que é adotada pelas pessoas que representam.48 Trata-se de uma concepção
em que convicções religiosas ou metafísicas ocupam posição central – não essa ou
aquela convicção religiosa e/ou metafísica, mas convicções religiosas e/ou metafísicas
em geral, qualquer uma delas. Podemos dizer que o que define essas convicções é a
possibilidade de conflito, não apenas entre elas, mas também em relação a concepções
de outro tipo, quer dizer, concepções de cunho (grosso modo) “materialista”. E é a
possibilidade de conflito, justamente, que faz com que a liberdade de consciência
assuma grande relevância e significação – afinal, a condição da imparcialidade (uma das
condições “externas” da justiça) implica que os participantes da posição original não
sabem se a convicção dos seus representados será minoritária ou majoritária. Em outras
palavras, uma vez que os participantes têm de admitir a possibilidade não só de que uma
dada concepção religiosa e/ou metafísica venha a ser aquela que é adotada pelas pessoas
que eles representam, mas também de que se trate de uma concepção minoritária, que
corre o risco de ser atropelada pelas preferências da maioria (quer essas preferências
incidam sobre uma outra concepção religiosa e/ou metafísica, quer sobre uma
concepção de cunho mais materialista), - uma vez que eles têm de admitir essa
possibilidade, eles não podem deixar de conceder prioridade às liberdades básicas, a fim
de proteger essa concepção determinada (e eventualmente minoritária) do bem
individual.
No próximo capítulo, analisaremos de forma mais detalhada esse tipo de
argumento. Na verdade, enfocaremos esse tipo de argumento, não tanto do ponto de
vista do conflito das concepções metafísicas entre si, mas, antes, do ponto de vista do
conflito entre concepções “metafísicas”, que atribuem grande valor à liberdade, e
concepções “materialistas”, que atribuem grande valor à renda – pois é esse último
48
Ver páginas 311-312 de Political Liberalism.
197

conflito que revela de forma mais clara as limitações e falhas desse tipo de argumento.
Eu gostaria de antecipar o seguinte ponto. Em casos de conflito radical entre “liberdade”
e “renda”, esse tipo de argumento, se não for complementado por outras considerações
(as quais dizem respeito à justiça da esfera política), - em casos de conflito radical, esse
tipo de argumento só pode basear-se no postulado de que, para os partidários de projetos
de vida de cunho religioso ou metafísico, as liberdades apresentam uma significação
(relevância) maior do que a significação que renda e conforto apresentam para os
partidários de projetos de vida de cunho mais “materialista”. Ora, esse postulado é
inteiramente injustificado; ele na verdade parece mascarar uma preferência injustificada
pelas concepções de bem (individual) de cunho religioso ou metafísico, em detrimento
daquelas de cunho mais materialista. E uma tal preferência representa violação
inaceitável da exigência de neutralidade.
A mesma violação parece resultar dos outros argumentos que Rawls apresenta
no parágrafo 5 de The basic liberties. 49 Esses outros argumentos baseiam-se na
valorização da capacidade de examinar, reafirmar ou rever a concepção determinada de
bem (individual) que se tem num dado momento, uma capacidade para a qual as
liberdades básicas representam requisitos indispensáveis. Em outras palavras, esses
argumentos baseiam-se no “interesse superior” de desenvolver e exercer a capacidade
de ser racional, tomada como capacidade de examinar, reafirmar ou rever a concepção
determinada de bem (individual) que se tem num dado momento. No primeiro
argumento, essa capacidade é valorizada como meio para uma realização efetiva do que
é bom para o indivíduo; no segundo argumento ela é valorizada como parte essencial
desse bem individual. Ora, os dois argumentos parecem mascarar uma preferência
injustificada por projetos de vida ordenados pela reflexão crítica sobre o bem individual,
em detrimento de projetos menos reflexivos. E uma tal preferência, mais uma vez,
representa uma violação inaceitável da exigência de neutralidade. Até que ponto o
interesse “moral” de exercer a capacidade de refletir criticamente sobre o bem
(individual) pode ser atribuído ao homem comum e mediano? Até que ponto a
atribuição desse interesse moral pode ser considerada neutra em relação aos interesses
que esse homem de fato tem? Parece claro que essa capacidade não pode deixar de ser
vista como elemento de uma certa concepção de boa vida – trata-se de uma concepção
em que a reflexão crítica é vista ou como meio (para) ou como parte essencial do que é
bom na vida. Parece difícil negar que se trata de uma concepção de boa vida grosso
49
Ver páginas 312-314 de Political Liberalism.
198

modo liberal – algo que a exigência de neutralidade proíbe terminantemente. Podemos


juntar essa concepção liberal da boa vida às concepções religiosas ou filosóficas (de boa
vida) invocadas no primeiro argumento, reunindo-as sob o título mais geral de
concepções metafísicas da boa vida. Ora, basear a prioridade das liberdades numa
concepção metafísica de boa vida viola frontalmente a exigência de neutralidade.
No parágrafo 6 de The basic liberties, Rawls apresenta as razões (para a
prioridade das liberdades básicas) referidas à capacidade para o senso de justiça.50 Ao
apresentar essas razões, Rawls parte de dois princípios. Primeiro, a capacidade para o
senso de justiça pertence à autonomia completa dos cidadãos de uma sociedade bem
ordenada, e não à deliberação dos participantes da posição original. Segundo, é bom
para a promoção do bem individual de cada cidadão (é um bom meio para isso) que os
cidadãos em geral ajam de forma completamente autônoma, ou seja, que eles assimilem
(internalizem) e apliquem os princípios de justiça escolhidos pelos participantes da
posição original.51 Sabendo disso, e sendo racionalmente autônomos, os participantes
devem escolher aqueles princípios que são mais fáceis de ser efetivamente assimilados
pelos cidadãos de um modo geral. E o raciocínio é levado a cabo com a seguinte tese:
princípios que incorporam a prioridade das liberdades básicas são mais fáceis de ser
efetivamente assimilados do que princípios que não admitem tal prioridade.
A dificuldade em que esse raciocínio incorre diz respeito, não tanto a uma
violação direta da exigência de neutralidade, mas, antes, à tese de que, no contexto do
procedimento deliberativo voltado para a escolha dos princípios de justiça, o valor de
tais princípios e da sua assimilação pelos cidadãos reduz-se ao seu valor como meio
para a promoção do bem individual das pessoas. Ao ser vinculada a essa tese
fundamental, quer dizer, ao ser subordinada à bússola do bem individual, a tese de que
os princípios que incorporam a prioridade das liberdades básicas são mais fáceis de ser

50
É interessante destacar que esse parágrafo foi cortado, com a anuência do próprio Rawls, da tradução
francesa desse artigo, publicada pela primeira vez na revista Critique, e republicada na coletânea Justice e
Démocratie, organizada por C. Audard. Ao concordar com a supressão desse parágrafo, Rawls parecia
estar admitindo que, partindo-se da caracterização da posição original apresentada nas seções
precedentes, a capacidade para o senso de justiça só pode desempenhar papel muito fraco – se é que pode
desempenhar algum papel – nos argumentos de justificação da prioridade das liberdades básicas, na
medida em que tais argumentos têm de ser articulados no contexto da posição original.
51
Ver, por exemplo, p.315 de Political Liberalism: “Os participantes estão restritos a argumentos
fundados em considerar a capacidade para o senso de justiça apenas como meio para o bem individual de
uma pessoa”. E também na p.316: “Mas quando os participantes admitem, como uma consideração em
favor de certos princípios de justiça, o fato de que os cidadãos na sociedade vão efetiva e regularmente
agir a partir deles, os participantes só podem fazer isso por acreditarem que agir a partir dos princípios de
justiça serve como meio efetivo para as concepções determinadas de bem das pessoas que eles
representam”.
199

assimilados (internalizados) do que princípios que não admitem tal prioridade – ao ser
subordinada à bússola deliberativa do bem individual, tal tese suscita questionamentos,
na medida em que ela só parece ser plausível caso se atribua às pessoas na sociedade
uma concepção de bem (individual) que já incorpora a relevância e significação das
liberdades básicas. Ora, concepções do bem individual que incorporam a relevância e
significação das liberdades básicas têm de entrar na categoria das concepções
metafísicas da boa vida. Ainda que de forma apenas indireta, a violação da exigência de
neutralidade acaba novamente se revelando.
***
O resultado da minha argumentação pode ser resumido da seguinte maneira.
Para garantir a prioridade normativa das liberdades básicas, Rawls definiu politicamente
o bem como realização dos interesses superiores da personalidade moral, ou seja, como
desenvolvimento e exercício das duas capacidades da personalidade moral, a capacidade
para o senso de justiça e a capacidade para o bem individual. Mas a prioridade das
liberdades básicas tem de ser estabelecida no contexto da posição original, e no contexto
da posição original a capacidade para o senso de justiça só entra como meio para o bem
individual. Isso significa que, no contexto da posição original, a prioridade das
liberdades básicas só pode ser justificada com base na relevância e significação que tais
liberdades têm para o bem individual das pessoas, - ou então para sua capacidade de
examinar, reafirmar ou rever a concepção de bem individual que elas têm num dado
momento, na medida, justamente, em que o exercício dessa capacidade for considerado
relevante para seu bem individual. Ora, para que as liberdades básicas possam ter esse
tipo de relevância e significação para o bem individual das pessoas, é preciso que esse
bem seja configurado nos moldes de uma concepção metafísica (religiosa/filosófica, ou
metafisicamente liberal) de boa vida. Assim, a teoria política do bem apresentada em
The basic liberties acaba envolvendo uma concepção metafísica de boa vida. E isso
representa violação inaceitável da exigência de neutralidade.
Mas nós vimos também que The basic liberties sugere uma alternativa. Talvez a
prioridade das liberdades básicas possa ser justificada a partir da capacidade
deliberativa da razoabilidade, quer dizer, a partir do bem pelo qual essa capacidade
especificamente se orienta, que é a razoabilidade (justiça) da esfera política. Como
afirmamos acima, talvez a prioridade das liberdades básicas possa se fundamentar na
sua relevância/significação para a justiça da esfera política, entendida não só como um
bem específico e independente, mas também como o bem (o alvo) pelo qual
200

especificamente se orienta a deliberação (e decisão) dos indivíduos-legisladores da


posição original. Nessa linha de raciocínio, a justiça da esfera política pode ser
considerada um bem autônomo, distinto daqueles bens mais diretamente ligados ao bem
individual dos cidadãos, como as liberdades e a renda, ou a própria capacidade de
examinar, reafirmar ou rever a concepção de bem individual que se tem num dado
momento. E, ainda que uma esfera política “boa”, quer dizer, marcada e regulada pela
razoabilidade – ainda que uma tal esfera política possa ter influências diferenciadas
sobre as diferentes concepções de boa vida; ainda que ela possa ser mais favorável a
algumas dessas concepções, em detrimento de outras; ainda que o bem constituído pela
justiça da esfera política deva, por conseguinte, ser considerado (relativamente) não-
neutro do ponto de vista da influência sobre as diferentes concepções de boa vida; -
ainda assim essa relativa não-neutralidade poderá vir a ser justificada a partir de um
bem estritamente político, e nesse sentido neutro, que é, justamente, a razoabilidade da
esfera política, quer dizer, a justiça da esfera política. É essa alternativa que tentaremos
desenvolver no último capítulo do presente trabalho.
201

Capítulo 5.
Teorias da Decisão e Intuições do Resultado Justo.

No capítulo anterior, afirmei que, quando o procedimento de universalização é


interpretado de modo não-formalístico, seu funcionamento e resultado dependem da
maneira como se modela a figura do indivíduo legislador. Afirmei também que a
operação de modelar tal figura possui dois aspectos principais, o primeiro referindo-se
aos bens pelos quais se orienta a deliberação desse indivíduo e o segundo referindo-se
ao modo exato pelo qual ele delibera e decide. Afirmei ainda que esses dois aspectos
estão intimamente relacionados. Para iniciar a argumentação do presente capítulo,
gostaria de precisar essa última afirmação, dizendo que, na verdade, há uma relação de
dependência recíproca entre esses dois aspectos. A teoria do bem do legislador
utilitarista implica uma certa teoria da decisão (ou seja, uma teoria da decisão de caráter
utilitarista), assim como a teoria do bem do legislador deontológico implica uma outra
teoria da decisão (uma teoria da decisão de caráter deontológico). No capítulo passado,
vimos que o bem pelo qual se orienta a deliberação do legislador utilitarista consiste na
maximização da satisfação que pode ser obtida no contexto da posse e fruição dos
recursos de bem-estar. Para o legislador utilitarista, em outras palavras, os recursos de
bem-estar representam os elementos da felicidade privada que devem ser considerados
politicamente relevantes, e o alvo pelo qual se orienta sua deliberação consiste na
maximização da satisfação que pode ser obtida no contexto circunscrito, justamente,
pela posse e fruição de tais recursos. A questão que vai se colocar a partir de agora é a
seguinte: qual a teoria da decisão envolvida nessa teoria do bem?
Sugerimos também que o bem pelo qual se orienta a deliberação do legislador
deontológico deve ser entendido em termos de justiça (razoabilidade) da esfera política,
tomada como um bem independente – e num certo sentido prioritário – em relação ao
bem individual (ou felicidade privada) dos cidadãos. A questão que se coloca agora é a
seguinte: qual a teoria da decisão envolvida nessa teoria do bem? Nesse último caso
(embora numa certa medida também no primeiro), a análise da teoria da decisão vai
aclarar bastante a correspondente teoria do bem. Em outras palavras, a análise dos
problemas envolvidos na teoria da decisão vai tornar mais claro em que sentido o
legislador deontológico concebe a justiça da esfera política como um bem específico e
independente – em vez de concebê-la, quer em termos, apenas, de maximização da
202

felicidade privada, quer, por outro lado, em termos, apenas, de restrições e/ou
proibições que devem ser “externamente” impostas à busca da felicidade privada. Para
contrapor-se à tese utilitarista de que a justiça (ou seja, o bem político) deve ser definida
em termos de maximização do bem privado, o legislador deontológico não precisa
defini-la em termos, apenas, de restrições e/ou proibições que devem ser impostas à
busca do bem privado e da maximização do mesmo; ele pode tomá-la como um fim
propriamente dito, quer dizer, um bem propriamente dito, - só que um bem que não
pode ser reduzido ao bem privado e à maximização do mesmo.

5.1) Transição do Procedimento de Universalização para o do Contrato.

Para introduzir os problemas envolvidos na questão da teoria da decisão,


gostaria de retomar a discussão da interpretação não-formalística do procedimento de
universalização. Com efeito, a elaboração e desenvolvimento dessa interpretação fazem
com que o procedimento de universalização se transmute no procedimento do contrato,
e é nessa transmutação, justamente, que surgem os problemas mais específicos a que
utilitaristas e deontólogos vão ter de responder por meio das respectivas teorias da
decisão. Mais precisamente, na transformação do procedimento de universalização em
procedimento do contrato, as dificuldades envolvidas no problema do conteúdo da
vontade do indivíduo legislador vão aparecer e se desdobrar de uma forma um tanto
diferente, e é a partir disso que vão se tornar claros, não só a necessidade de uma teoria
da decisão propriamente dita, mas também a natureza e o alcance da diferença entre as
teorias da decisão que deontólogos e utilitaristas respectivamente adotam.
Para efetuar a transformação que acaba de ser referida, façamos uma breve
recapitulação dos modos pelos quais se pode configurar o procedimento de
universalização. Vimos que, num primeiro momento, esse procedimento pode ser
apresentado na forma da seguinte pergunta: partindo do princípio de que, para ser
eticamente correta, uma regra de conduta deve poder ser erigida à categoria de lei
universal, será que eu, enquanto indivíduo racional, poderia querer que essa ou aquela
regra de conduta fosse transformada em lei universal?
Vimos também que essa pergunta foi e tem sido muitas vezes entendida como
uma pergunta que deve ser respondida com base, apenas, nos critérios e princípios
puramente formais da racionalidade prática e do querer racional. A influência dessa
interpretação formalística deriva do peso que ela tinha nos escritos de Kant, que pode
203

ser considerado o grande mentor do procedimento de universalização. Encarada desse


ponto de vista formalístico, a referida pergunta é entendida como uma pergunta cujo
encaminhamento e resposta apóiam-se, basicamente, na noção de contradição. A
pergunta é, nesse caso, formulada nos seguintes termos: considerando os critérios e
princípios puramente formais da racionalidade prática e do querer racional, será que eu,
ao tentar erigir uma possível regra de conduta à categoria de lei universal, incorro numa
contradição? Se eu incorro numa contradição, então eu não posso querer a
universalização da regra, o que significa que ela é eticamente incorreta.
Vimos ainda que essa interpretação formalística do procedimento de
universalização produz resultados insatisfatórios e frustrantes, e que ela deve ser
abandonada. Numa interpretação adequada, a base do referido procedimento não pode
restringir-se aos critérios e princípios puramente formais da racionalidade prática e do
querer racional, mas deve incluir, como elemento essencial, algum conteúdo – quer
dizer, algum conteúdo do querer racional. A idéia pode ser apresentada da seguinte
maneira. Para dar uma resposta satisfatória à pergunta “Será que eu, enquanto indivíduo
racional, poderia querer que essa ou aquela regra de conduta fosse transformada em lei
universal?” – para responder a essa pergunta, eu preciso atribuir algum conteúdo ao meu
querer, tomado como querer racional; em outras palavras, eu preciso saber,
conteudisticamente, que estados de coisas eu, enquanto indivíduo racional, gostaria de
ver realizados no mundo.
Vimos ainda que essa ancoragem nos conteúdos do querer suscita uma grave
dificuldade para os partidários do procedimento de universalização, tomado como um
procedimento destinado a determinar, entre as diversas alternativas que se apresentam,
qual é o princípio prático eticamente correto (ou seja, qual é o princípio prático que
deve valer como lei universal). A dificuldade diz respeito às possíveis variações nos
conteúdos do querer. Com efeito, se há variações nos conteúdos que agora estão sendo
postos na base do procedimento, também haverá variação no resultado do
procedimento; dependendo dos conteúdos que tiverem sido adotados na base do
procedimento, princípios práticos eventualmente incompatíveis poderão ser erigidos à
categoria de lei universal. Em outras palavras, dependendo dos conteúdos que tiverem
sido adotados em sua base, o procedimento de universalização poderá vir a justificar leis
universais eventualmente incompatíveis. Ora, esse tipo de variação, como vimos no
capítulo anterior, é fatal ao procedimento de universalização.
204

Nesse momento da minha argumentação, entretanto, gostaria de dar um novo


encaminhamento a esse último ponto, para iniciar a transição do procedimento de
universalização para o procedimento do contrato. Gostaria de fazer o seguinte
comentário. O que a variação acima referida em verdade arruína é a própria idéia de lei
universal (e não apenas a especificação e justificação da mesma). Com efeito, no
contexto do procedimento de universalização, “lei universal” não significa, apenas, lei
que se aplica igualmente a todos os indivíduos, inclusive àquele que a está propondo – o
qual, por isso mesmo, para reconhecê-la como justificada, tem de poder querê-la; “lei
universal” significa, também, lei que é universalmente reconhecida como válida, ou
seja, unanimemente reconhecida como válida. Ao servir-se do procedimento de
universalização para erigir um princípio à categoria de lei universal, o indivíduo
legislador não está pensando apenas numa lei que vai igualmente aplicar-se a ele
próprio, mas está pensando, também, numa lei que possa vir a ser unanimemente
reconhecida como válida, ou seja, uma lei em relação à qual possa haver acordo ou
unanimidade.
Assim, a inclusão dos conteúdos do querer na base do procedimento de
universalização obriga a uma reformulação da pergunta na qual se articula a essência do
procedimento. Na interpretação formalística, como vimos acima, a pergunta podia ser
formulada nos seguintes termos: considerando os critérios e princípios puramente
formais da racionalidade prática e do querer racional, posso eu querer, sem contradição,
que esse (ou aquele) princípio prático seja erigido em lei universal? Com efeito,
atendendo ao fato de que os princípios puramente formais do querer racional são tidos
por fixos e invariáveis, se a base do “poder querer” constitui-se, apenas, de tais
princípios, responder que “eu” posso querer tal universalização equivale a dizer que
todos podem querê-la; equivale a dizer, em outras palavras, que eu posso afirmar,
categoricamente, que todos podem querer tal lei, e que ela poderá vir a ser
unanimemente reconhecida como válida. Entretanto, se a base do “poder querer” passa a
incluir os conteúdos do querer, e admitindo-se que esses conteúdos são variáveis,
responder que “eu” posso querer a universalização de um princípio não equivale mais a
dizer que todos podem querê-la. Dizer que eu posso querê-la equivale a dizer que eu,
em virtude dos conteúdos da minha vontade, posso querer que o princípio em questão
seja igualmente aplicado a todos, inclusive a mim próprio. Mas isso não me autoriza a
supor que os outros, atendendo aos respectivos conteúdos das suas vontades, também
poderiam querer que esse princípio fosse igualmente aplicado a todos, inclusive a eles
205

próprios. Assim, na interpretação não-formalística do procedimento de universalização,


essa última suposição tem de ser explicitamente incluída na pergunta em que se articula
a essência do procedimento. A pergunta precisa ser formulada mais ou menos da
seguinte maneira: tomando como base os conteúdos das vontades de todos os indivíduos
concernidos, posso eu supor que todos, unanimemente, poderiam querer que esse (ou
aquele) princípio prático fosse erigido em lei universal?
Entretanto, configurado dessa forma, o procedimento só pode contar com
alguma chance de êxito caso se parta de um pressuposto fundamental, a saber, o
pressuposto de que todos os concernidos querem (desejam) entrar em acordo quanto às
leis que deverão aplicar-se igualmente a todos.1 Sem esse pressuposto, a idéia de que
cada um tem de “poder querer” uma possível lei representaria uma exigência excessiva,
quer dizer, praticamente impossível de ser atendida. Assim, é preciso colocar, na base
do procedimento, o desejo de entrar em acordo com todos os demais concernidos, em
relação às leis que deverão igualmente aplicar-se a todos.
Mas a introdução desse desejo sugere uma mudança na pergunta que os
concernidos se colocam diante dos princípios que se candidatam à posição de lei. Se eu
(qualquer um) desejo entrar em acordo com os demais concernidos, a pergunta que eu
devo me colocar diante de um desses candidatos é, não tanto se eu posso “querer” sua
elevação ao posto de lei, mas, num tom mais moderado, se eu posso “aceitar” essa
elevação. Com efeito, perguntar-me se eu posso querer a universalização de um
princípio sugere que eu devo avaliar se eu prefiro esse princípio aos outros candidatos
que se apresentam; ora, considerando que eu preciso admitir que o princípio que eu
prefiro pode perfeitamente não ser o princípio que os outros preferem, essa forma de
colocar a pergunta vai de encontro ao desejo de entrar em acordo com os demais.
Atendendo a esse desejo, eu tenho de tentar encontrar um equilíbrio entre aquilo que eu
prefiro e, por outro lado, aquilo que os outros preferem. De um modo mais geral, não se
trata nem de abdicar das minhas preferências nem, por outro lado, de desconsiderar as
preferências dos outros. Trata-se, sim, de encontrar um meio de determinar, de comum
acordo, que relevância se deve respectivamente atribuir às diferentes preferências, de
modo a determinar, de comum acordo, quem deve ceder, e até que ponto, diante das
preferências dos demais.

1
Conforme deixarei claro logo a seguir, nesse estágio da minha argumentação estou me servindo,
decisivamente, das preciosas lições que T.M. Scanlon apresenta em seu artigo Contractualism and
utilitarianism, publicado em Sen, Amartya e Williams, Bernard (Eds.), Utilitarianism and beyond.
Cambridge, Cambridge University Press, 1982.
206

Ora, considerando a necessidade de encontrar um equilíbrio entre as diversas


preferências, quer dizer, considerando a necessidade de encaminhar a questão de modo
a que eu (qualquer um) nem abdique das minhas preferências nem, por outro lado,
desconsidere as preferências dos demais, a formulação mais adequada é, justamente, a
de se eu posso “aceitar” a universalização de um princípio. O “aceitar” sugere,
precisamente, uma decisão em que eu, cedendo diante de certas demandas dos outros,
protejo, contudo, certas demandas das quais por outro lado não abdico. Trata-se, na
verdade, de uma decisão coletiva, tomada de comum acordo. Para que isso seja viável, é
preciso acrescentar uma outra suposição, a saber, a suposição de que todos os
concernidos são razoáveis. Com efeito, ao perguntar-me se eu (qualquer um) posso
aceitar a universalização de um princípio, a idéia que está na base dessa pergunta pode
ser expressa da seguinte maneira. Embora eu reconheça que é razoável que os outros
peçam (ou até exijam) de mim a renúncia a algumas de minhas demandas, eu por outro
lado suponho que eles reconheçam que não é razoável pedir de mim a renúncia a
algumas outras das minhas demandas. Assim, a substituição do “querer” pelo “aceitar”
sugere a introdução da suposição de que todos os concernidos são razoáveis, quer dizer,
reconhecem o que é e o que não é razoável pedir dos outros e ceder aos outros. Dessa
forma, a pergunta em que se articula a essência do procedimento de universalização
passa a ser formulada mais ou menos da seguinte maneira: tomando como base, em
primeiro lugar, o desejo de todos os concernidos de entrar em acordo quanto às leis que
vão igualmente aplicar-se a todos; em segundo lugar, a razoabilidade de todos os
concernidos; e, em terceiro lugar, os conteúdos das vontades (ou seja, as preferências)
de todos concernidos, posso eu (qualquer um) razoavelmente supor que todos, de
comum acordo, poderiam aceitar que esse (ou aquele) princípio prático fosse erigido em
lei universal?
Valendo-me das preciosas lições que T. M. Scanlon apresenta em seu artigo
Contractualism and utilitarianism, gostaria agora de afirmar o seguinte: ao ser
configurado nos termos da pergunta acima apresentada, o procedimento de
universalização se transmuta no procedimento do contrato, quer dizer, no procedimento
adotado na teoria do contratualismo. Com efeito, nas palavras do próprio Scanlon, “De
acordo com o contratualismo, a argumentação moral concerne à possibilidade de acordo
entre pessoas que são, todas elas, movidas pelo desejo de entrar em acordo quanto a
207

(quais são os – A.S.B.) princípios que ninguém que tem esse desejo (de entrar em
acordo quanto a princípios – A.S.B.) poderia razoavelmente rejeitar”.2
É verdade que, para Scanlon, o método do contratualismo deve servir-se, não da
pergunta “será que todo mundo poderia, razoavelmente, aceitar esse princípio?”, mas,
sim, da pergunta “será que alguém poderia, razoavelmente, rejeitar esse princípio?”.
Entretanto, para estabelecer essa diferença entre, por um lado, “é razoável aceitar” e,
por outro lado, “é irrazoável rejeitar”, Scanlon se apóia no exemplo hipotético de uma
pessoa que, altruisticamente, abdica de uma certa demanda que em princípio parece
inteiramente legítima, em favor das demandas dos demais. Diz Scanlon que,
considerando o caráter altruísta dessa pessoa, nós teríamos de admitir que, no caso dela,
é razoável aceitar um princípio que lhe imponha sacrifícios aparentemente excessivos,
embora, por outro lado, se nós a imaginássemos rejeitando tal princípio, nós não
taxaríamos essa rejeição de “irrazoável”.3 Como o princípio parece ilegítimo, conclui
Scanlon que, ao refletir sobre a legitimidade dos princípios, o contratualista deve
preferir a pergunta “seria irrazoável rejeitar?” à pergunta “seria razoável aceitar?”
A meu ver, entretanto, a introdução desse caráter altruísta representa um desvio
em relação ao tipo de pessoa que, por definição, se coloca na base do procedimento
contratualista. Com efeito, como vimos acima, esse procedimento só faz sentido caso a
pessoa que se coloca em sua base seja definida como alguém que, em princípio, nem
abdica das suas demandas nem desconsidera as demandas dos demais, mas, antes,
procura avaliar, de forma razoável, a relevância que respectivamente se deve atribuir a
cada uma das demandas em conflito, para determinar quais devem ter prioridade. Em
termos que se tornaram famosos, essa pessoa não é nem altruísta nem egoísta, mas,
antes, razoável. (Do ponto de vista do procedimento contratualista, fundado no caráter
por assim dizer anônimo e impessoal da pessoa que se coloca em sua base, não é só o
egoísmo que deve ser taxado de irrazoável; também o altruísmo deve receber essa
qualificação). Ora, para esse tipo de pessoa, o veredicto de que “é razoável aceitar esse
princípio” se torna perfeitamente equivalente ao veredicto de “seria irrazoável rejeitar
esse princípio”, e vice-versa. A conclusão que podemos tirar é então a seguinte: não é
necessário nem conveniente estabelecer qualquer distinção entre “é razoável aceitar” e
“é irrazoável rejeitar”, e a pergunta que acima apresentamos, seguindo as lições do
próprio Scanlon, pode ser mantida em seus termos originais.

2
Scanlon, Ibidem, p.111.
3
Idem, Ibidem, p. 111/112.
208

***
Gostaria de concluir essa seção com um breve comentário sobre as alterações
envolvidas na passagem do procedimento de universalização para o procedimento do
contrato. Vimos que a interpretação não-formalística do procedimento de
universalização gerou um problema que pode ser chamado de “problema da variação”:
trata-se das variações no resultado do procedimento, decorrentes das variações nos
conteúdos da vontade do indivíduo legislador. Num primeiro momento, que ainda pode
ser situado na esfera do procedimento de universalização, esse problema é enfrentado
por meio de uma teoria do bem: trata-se de um esforço de produzir (e justificar) uma
certa uniformidade no conteúdo das vontades, atribuindo-lhes desejos e interesses que
possam ser considerados, por um lado, suficientemente gerais e neutros, e, por outro
lado, politicamente legítimos e relevantes. Ora, na transição para o procedimento do
contrato, a resposta ao problema da variação adquire feição ligeiramente distinta. Não se
trata tanto de produzir e justificar uma certa uniformidade no conteúdo das vontades,
mas trata-se, antes, de atribuir aos legisladores a capacidade da razoabilidade, ou seja, a
capacidade de reconhecer o que é razoável pedir/exigir dos outros, e o que é razoável
conceder aos outros. Mesmo que haja variações nos desejos e interesses dos indivíduos-
legisladores, isso não impede que haja uniformidade nos resultados do procedimento:
basta que os legisladores sejam razoáveis, quer dizer, reconheçam até que ponto,
respectivamente, eles devem abrir mão de seus próprios interesses, diante dos interesses
dos outros, e até que ponto eles podem pedir/exigir dos outros que abram mão de seus
próprios interesses, para produzir um acordo justo (razoável).
Por outro lado, mesmo que se insista na conveniência de se produzir uma certa
uniformidade no conteúdo das vontades, nem por disso diminui a exigência de
razoabilidade por parte dos indivíduos-legisladores. Com efeito, mesmo que uma
“teoria do bem” tenha êxito na produção de uma vontade genérica, uniforme e neutra, e
mesmo que, com isso, ela consiga restringir o âmbito dos conflitos que devem ser
considerados politicamente relevantes, nem por isso ela consegue eliminar todos os
conflitos: sempre haverá conflitos em relação aos bens que foram admitidos como
politicamente relevantes – sempre haverá conflitos, não só entre os bens (liberdade e
renda, por exemplo), mas também entre os indivíduos que demandam os bens. É para
resolver esses conflitos, justamente, que se exige a razoabilidade; mais precisamente, a
razoabilidade constitui a capacidade que vai ser usada para se determinar qual o
princípio razoável (justo) para a resolução desses conflitos.
209

Ora, a tentativa de determinar os critérios da razoabilidade equivale a uma teoria


da deliberação e da decisão. Determinar o que é razoável pedir dos outros e o que é
razoável conceder aos outros equivale a determinar de que modo os legisladores devem
deliberar para decidir quais são os princípios justos da interação social. No contexto do
contratualismo, a teoria da decisão consiste numa teoria sobre o modo como se deve
configurar e exercer a capacidade da razoabilidade. E no âmbito da teoria da decisão,
vai se estabelecer, mais uma vez, uma diferença fundamental entre deontologismo e
utilitarismo. Deontólogos e utilitaristas vão apresentar diferentes critérios para a
capacidade da razoabilidade, ou seja, diferentes versões sobre o modo como se deve
configurar e exercer a capacidade da razoabilidade, a fim de decidir quais são os
princípios justos da interação social. E nós veremos que há uma forte correspondência
entre essas (diferentes) teorias da decisão e as (diferentes) teorias do bem. Assim, ainda
que o foco da nossa atenção no presente capítulo resida na teoria da decisão, as questões
envolvidas na teoria do bem estarão constantemente presentes, e deverão ser
constantemente retomadas. O esclarecimento das diferenças na teoria da decisão vai
depender, em muitos casos, de uma retomada dessas últimas questões.
210

5.2) A Questão da Prioridade do Justo sobre o Bom.

Retomemos a pergunta na qual se articula a essência do procedimento


contratualista. “Tomando como base, em primeiro lugar, o desejo de todos os
concernidos de entrar em acordo quanto às leis que vão igualmente aplicar-se a todos;
em segundo lugar, a razoabilidade de todos os concernidos; e, em terceiro lugar, os
conteúdos das vontades (ou seja, as preferências) de todos concernidos, posso eu
(qualquer um) razoavelmente supor que todos, de comum acordo, poderiam aceitar que
esse (ou aquele) princípio prático fosse erigido em lei universal?”
A primeira dificuldade que essa pergunta suscita pode ser exposta da seguinte
maneira. Lembremos que a condição da razoabilidade não implica abdicação
indiscriminada de toda e qualquer preferência pessoal que possa entrar em conflito com
as preferências do outro, nem, por outro lado, desconsideração indiscriminada por toda
e qualquer preferência do outro que possa entrar em conflito com as minhas próprias
preferências. Ela implica que eu (qualquer um), ao mesmo tempo em que, avaliando
razoavelmente as preferências do outro, procuro discernir quais dentre elas seria
irrazoável eu exigir-lhe que abdicasse delas, procuro discernir também, avaliando
razoavelmente as minhas próprias preferências, quais dentre elas seria irrazoável o outro
exigir-me que abdicasse delas. Trata-se então de discernir, avaliando de forma razoável
as grandes espécies de preferências, quais dentre elas seria irrazoável exigir-se (ou
pedir-se) uma abdicação, de quem quer que seja.
Ora, avaliando de forma razoável as grandes espécies de preferências, em
princípio parece correto afirmar que é irrazoável exigir-se (de quem quer que seja) uma
abdicação daquelas que dizem respeito aos fins últimos adotados pelo indivíduo, quer
dizer, ao seu projeto global de vida, à sua concepção global do que seja uma boa vida.
Supondo-se que nossos projetos de vida sejam diferentes, num contexto em que eles
entram em conflito, mesmo que eu (qualquer um) deseje entrar em acordo com você,
por que eu deveria aceitar sacrificar o meu projeto em favor do seu? Por que eu deveria
aceitar que o meu projeto fosse prejudicado, em favor do seu? Por que não o contrário?
Ainda que, levando em consideração nosso desejo de entrar em acordo, eu possa e deva
julgar razoável sacrificar algumas das minhas preferências em favor das suas, no caso
dessa espécie mais fundamental de preferência não parece razoável exigir-se isso de
mim– mesmo levando em consideração meu desejo de entrar em acordo.
211

A conclusão que se segue é a seguinte. Se um determinado princípio envolve


proteção ou favorecimento de um determinado projeto de vida em detrimento de outros,
deve-se admitir que não seria irrazoável que os prejudicados rejeitassem sua elevação à
posição de lei universal. E disso, por sua vez, parece seguir-se a seguinte conclusão.
Para que se possa afirmar que um determinado princípio poderia, razoavelmente, ser
aceito por todos os concernidos, é preciso que esse princípio seja neutro em relação aos
diferentes projetos de vida, quer dizer, em relação à capacidade e oportunidade que os
diferentes indivíduos devem ter de perseguirem seus respectivos projetos de vida. A
questão que os contratualistas precisam portanto enfrentar é a seguinte: será possível
encontrar princípios que atendam a esse requisito (exigência) de neutralidade? O que
fazer se não for possível encontrá-los?
***
Antes de dar continuidade ao argumento principal da presente seção, gostaria de
fazer um breve comentário sobre o modo como estou introduzindo o tema da
neutralidade, apenas para deixar mais claros os contornos gerais do interesse que orienta
meu argumento. É fácil perceber que estou introduzindo o tema da neutralidade por
meio de uma análise das condições e critérios envolvidos no funcionamento do
procedimento contratualista. É claro que ele também pode ser introduzido por outros
meios; - na verdade, ele é usualmente introduzido no contexto de uma discussão sobre a
teoria liberal. Em The Morals of Modernity, por exemplo, Charles Larmore afirma que
“A noção natural para descrever o caráter essencial do liberalismo é a de neutralidade.
Os princípios de uma ordem política liberal pretendem ser ‘neutros’ em relação às idéias
controvertidas do bem (da boa vida – A.S.B.)” (p.125).
A questão que naturalmente se coloca aqui é a seguinte: qual a relação entre o
liberalismo e o contratualismo? Trata-se de uma questão que mereceria um trabalho à
parte, evidentemente – o que significa que eu não vou persegui-la aqui. Mas, mesmo
assim, gostaria de mencionar alguns pontos, para deixar mais claros os contornos gerais
do meu “fio condutor”. Na continuação imediata da passagem acima citada, ao afastar a
interpretação errônea segundo a qual o liberalismo seria neutro com relação à
moralidade em geral, Larmore afirma que “O ponto é, antes, o de que o liberalismo
pretende ser neutro com relação às controvertidas visões da boa vida. Pois a busca
liberal da neutralidade expressa, ela própria, o compromisso moral de encontrar termos
de associação política que possam ser objeto de um acordo razoável” (p.125 – o grifo é
meu). Ora, essa afirmação deixa bem claros os fortes vínculos entre liberalismo e
212

contratualismo. O problema que gera e alimenta a teoria liberal é o do pluralismo


(razoável) das concepções de boa vida; a experiência que sustenta a teoria liberal é o
reconhecimento de que não é mais possível (ou, pelo menos, não é desejável, ou não é
razoável) fundamentar a correção dos princípios políticos na pretensão de verdade
tradicionalmente erguida pelas concepções de boa vida. Trata-se da tese de que, em
virtude do irredutível pluralismo das concepções de boa vida, a correção dos princípios
políticos deve agora fundar-se num acordo (contrato) razoável entre todos os
concernidos – tomados, igualmente, como indivíduos razoáveis.
Assim, à pergunta “Por que se deve buscar a neutralidade (com relação às
concepções de boa vida)?”, o liberal contratualista responde: porque esse é o modo mais
razoável (ou seja, o modo moralmente recomendável, independentemente de qualquer
tese de caráter epistemológico) de lidar com o pluralismo das concepções de boa vida;
porque não é razoável (não é moralmente recomendável, independentemente de
questões de natureza epistemológica) insistir no argumento de que, uma vez que essa é
a verdadeira concepção de boa vida, o Estado deve apoiá-la, submetendo e
(re)educando os indivíduos que estão pura e simplesmente errados quanto à natureza do
bem supremo.
O liberal contratualista precisa enfrentar, contudo, uma segunda questão: é
possível ser neutro? Até que ponto as idéias-chave do liberalismo contratualista, que
apontam para “escolha” e “consentimento” de “indivíduos” razoáveis, - até que ponto
essas idéias podem ser consideradas neutras em relação a concepções de boa vida
ancoradas nas tradições e costumes da comunidade? Até que ponto essas idéias não têm
de ser consideradas como expressões de uma moral individualista, quer dizer, de uma
moral que se opõe aos valores “comunitaristas”? Trata-se da questão que é levantada,
justamente, pelos assim chamados comunitaristas.
Essa questão, decerto, animou boa parte da reflexão do Rawls pós Teoria da
Justiça. Sua melhor resposta, a meu ver, encontra-se no artigo The Priority of Right and
Ideas of the Good. 4 O argumento de Rawls, resumidamente, é o seguinte. Primeira
premissa: É verdade que o liberalismo político (isso que eu nesse momento estou
chamando de liberalismo contratualista) é relativamente desfavorável às concepções
verdadeiramente comunitaristas. Mas não pode haver convivência entre uma ordem
liberal e uma ordem verdadeiramente comunitarista. Em qualquer mundo social, uma

4
Publicado originalmente em Philosophy and Public Affairs, vol.17, n.4, 1988, p.251-276, e republicado,
com algumas modificações, na “Conferência V” de Political Liberalism.
213

das duas terá, inevitavelmente, de ser abandonada. “Nenhuma sociedade pode incluir
em seu seio todas as formas de vida. (...) Como afirmou I. Berlin (é um dos seus temas
fundamentais), não há mundo social sem perdas, quer dizer, não há mundo social que
não exclua certas formas de vida que realizam, de modo especial, certos valores
fundamentais.” (Political Liberalism, p. 197). Segunda premissa: Além de ser
incompatível com uma ordem liberal, uma ordem verdadeiramente comunitarista é
incompatível com outras espécies do mesmo gênero, ou seja, ela implica oposição e
repressão a concepções que entendem de outra forma o “verdadeiro” bem e o modo
como o verdadeiro bem deve moldar a ordem política. Terceira premissa: Nossa
sociedade, empiricamente, caracteriza-se por um pluralismo de concepções do
verdadeiro bem, o que significa que uma ordem verdadeiramente comunitarista
implicaria, inevitavelmente, oposição e repressão a concepções do verdadeiro bem que
empiricamente se apresentam em nossa cultura. Quarta premissa: Embora seja
incompatível com uma ordem política verdadeiramente comunitarista, e embora seja
relativamente desfavorável aos valores e projetos de cunho comunitarista, uma ordem
política liberal é perfeitamente compatível com a fidelidade não-política aos (diferentes,
plurais) valores e projetos de cunho comunitarista – desde que essa fidelidade respeite
certos limites da ordem política. Conclusão: a ordem política liberal é a mais justa com
as (diversas) concepções de verdadeiro bem associadas a projetos de vida de cunho
comunitarista.
Embora Political Liberalism se nutra, em boa parte, das objeções comunitaristas
ao ideal de neutralidade do liberalismo contratualista, não me parece ser esse (o
comunitarista) o questionamento com que os rawlsianos deveriam essencialmente se
preocupar. O desafio comunitarista, como acabamos de ver, parte e vem “de fora”, quer
dizer, seu ponto de partida é externo às noções contratualistas que o liberalismo
rawlsiano assume e elabora. Em outras palavras, o que o desafio comunitarista visa e
ataca é a visão grosso modo “individualista” que acaba sendo reconhecida como
inerente ao procedimento contratualista do liberalismo rawlsiano. Mas o problema da
neutralidade também pode ser colocado “dentro” do contratualismo, quer dizer, no
próprio seio do procedimento individualista delineado pelas noções de escolha,
aceitação e acordo de indivíduos razoáveis.
Para entendermos essa segunda manifestação do problema da neutralidade,
gostaria de retomar um resultado a que chegamos no capítulo passado. Vimos que, no
primeiro momento da estruturação do procedimento contratualista, ao se elaborar a
214

noção das demandas e bens pelos quais se orienta a deliberação dos indivíduos-
legisladores, as demandas referidas ao “verdadeiro bem”, quer dizer, aos fins últimos da
existência individual, – tais demandas ficam desde o início excluídas; elas são desde o
início consideradas como politicamente irrelevantes (demandas com que o Estado não
precisa nem deve se preocupar). No contexto do procedimento contratualista, as únicas
demandas que interessam são as demandas por bens “primários”, ou recursos básicos –
entendidos como recursos polivalentes, qualquer que seja a concepção de boa vida
assumida pelo indivíduo. Na medida mesmo em que são tomados como recursos
polivalentes, qualquer que seja a concepção de boa vida, tais recursos são considerados
neutros em relação às diferentes (e controvertidas) concepções de boa vida.
Como tentarei mostrar na próxima seção (5.3.1), entretanto, mesmo que as
demandas politicamente relevantes sejam desse modo restringidas, ainda surgirão
conflitos, não só entre indivíduos que demandam um (mesmo) bem escasso, mas
também entre demandas por diferentes espécies de bem; conflitos, por exemplo, entre as
demandas por “liberdade” e “renda” – tomadas, em princípio, como recursos que os
diferentes indivíduos podem considerar “polivalentes”, quer dizer, como recursos de
que eles podem proveitosamente se servir para perseguirem seus respectivos projetos de
vida. No contexto do procedimento contratualista, princípios de justiça consistem,
essencialmente, em princípios para a resolução desse tipo de conflito. A questão que se
coloca aqui é a seguinte: ainda que, em princípio, os recursos básicos possam ser
considerados neutros em relação às controvertidas concepções de boa vida, será que,
nos casos de conflito entre eles, os princípios que precisam ser usados para a resolução
desse conflito podem, eles próprios, ser considerados neutros em relação às diferentes
concepções de boa vida?
A segunda manifestação do problema da neutralidade (a qual, como disse acima,
é “interna” ao procedimento contratualista, com seu viés individualista) consiste,
portanto, no seguinte questionamento. Ainda que, em princípio, “liberdade” e “renda”
possam ser consideradas neutras em relação às diferentes concepções de boa vida, (no
sentido de que é razoável afirmar que, qualquer que seja a concepção de boa vida do
indivíduo, ele sempre pode ver “liberdade” e “renda” como recursos que podem ser
proveitosamente utilizados), no caso de um conflito radical entre liberdade e renda,
talvez esses recursos não possam mais ser considerados neutros em relação aos
diferentes projetos de vida; no caso de conflito radical, esses recursos talvez acabem se
associando, como itens mais favoráveis, a esse ou àquele projeto de vida, o que significa
215

que um princípio que resolva o conflito em favor de um ou outro desses recursos


acabaria envolvendo favorecimento desse ou daquele projeto de vida. Mesmo no
contexto definido, grosso modo, pela noção de “escolha (revisão) individual” da
concepção de boa vida, a neutralidade dos princípios políticos acabaria se revelando
impraticável. Em outras palavras, mesmo que as concepções de boa vida sejam
encaradas desde a perspectiva centrada na noção de escolha/revisão individual, (o que
significa que já não se estão considerando concepções verdadeiramente comunitaristas),
os princípios políticos não poderiam ser considerados neutros em relação a elas.
Tomemos, por exemplo, um item como “liberdade religiosa”. Para os adeptos de
um projeto de vida “verdadeiramente” religioso, liberdade religiosa é, em princípio,
algo de mau; num ambiente verdadeiramente religioso, não é bem vista a idéia de que o
indivíduo deve ser livre para escolher (e abandonar) sua religião. Num contexto grosso
modo individualista, entretanto, os adeptos da “verdadeira” religião podem ver a
liberdade como um recurso útil. Em outras palavras, num contexto grosso modo
individualista, um adepto da “verdadeira” religião pode chegar a valorizar a liberdade
religiosa, mas só na medida em que a vê como um recurso de que ele pode se servir –
quer dizer, não como algo que é verdadeiramente bom, mas como algo que é
(eventualmente) útil. Entretanto, ainda que o experimento nos pareça (e de fato é) um
tanto artificial, imaginemos um conflito radical entre “liberdade” (religiosa e em geral)
e “renda”. No contexto desse tipo de conflito, é natural pensarmos numa associação
entre os respectivos recursos e, por outro lado, os projetos de vida para os quais eles
são, respectivamente, mais úteis. Assim, é natural pensarmos numa associação entre o
recurso “renda” e, por outro lado, um projeto de vida de cunho grosso modo
“materialista” – entendido, justamente, como um projeto para o qual o recurso renda é
mais útil do que o recurso liberdade. De modo correspondente, é natural pensarmos
numa associação entre o recurso “liberdade” (religiosa e em geral) e, por outro lado, um
projeto de vida de cunho grosso modo “metafísico” (que pode ser tanto um projeto
“verdadeiramente” religioso quanto um projeto metafisicamente liberal) – por se tratar,
justamente, de um projeto de vida para o qual o recurso liberdade é mais útil do que o
recurso renda. Se esse tipo de associação acabar tendo de ser reconhecido como algo
que efetivamente acontece, um princípio que resolva o conflito em favor de “liberdade”
terá de ser reconhecido como mais favorável a um certo projeto de vida, em detrimento
de um outro. E o mesmo vale para um princípio que resolva o conflito em favor de
“renda”. A neutralidade, nesse caso, vai se revelar impraticável – e trata-se da
216

neutralidade em relação a concepções de boa vida que devem ser escolhidas (e/ou
revisadas) pelos indivíduos, e não mais em relação às concepções de boa vida
verdadeiramente comunitaristas.5
***
Retornemos agora ao argumento principal da presente seção. Para retomar o fio
condutor, gostaria de repetir as questões que havíamos previamente colocado, a partir de
uma primeira elaboração das noções envolvidas no procedimento contratualista: será
possível encontrar princípios que atendam ao requisito (exigência) de neutralidade? O
que fazer se não for possível encontrá-los?
Gostaria de afirmar agora o seguinte. Essas questões permitem-nos vislumbrar
três momentos da lógica contratualista, quer dizer, três momentos do processo de
desdobramento do potencial conceitual do contratualismo. Para apresentar esses
momentos, gostaria de explorar um pouco mais os contornos das questões acima
referidas. Num primeiro momento do seu processo argumentativo, um contratualista
poderia expressar as idéias acima apresentadas da seguinte maneira. Partindo do
pressuposto da razoabilidade de todos os concernidos, todos os concernidos deveriam
concordar que, se um determinado princípio implica proteção ou favorecimento de um
determinado projeto de vida em detrimento de outro, qualquer eventual prejudicado
poderia razoavelmente recusar tal princípio, quer dizer, poderia razoavelmente taxá-lo
de injusto. Partindo do pressuposto da razoabilidade, todos os concernidos deveriam
concordar que, para ser justo, um princípio precisa ser neutro em relação aos diversos
projetos de vida eventualmente conflitantes – ou seja, deveriam concordar que a justiça
dos princípios equivale à neutralidade dos mesmos.
Assim, ainda que, partindo do lado mais afetivo da sua personalidade, os
concernidos possam atribuir grande peso às suas respectivas concepções do que seja
uma boa vida, eles ao mesmo tempo reconhecem, partindo do lado mais razoável da sua
personalidade, que, no contexto da especificação dos princípios da interação social, as
considerações de razoabilidade devem ter prioridade sobre suas concepções do que seja
uma boa vida. Além disso, num primeiro momento da lógica contratualista, essa
5
Em The Priority of Right and Ideas of the Good, ao estabelecer uma distinção entre “neutralidade de
objetivo” e “neutralidade de influência”, Rawls está pensando, evidentemente, na influência desfavorável
que uma ordem liberal tem sobre concepções de boa vida verdadeiramente comunitaristas. A questão que
estou colocando agora é outra. Trata-se de perguntar se, mesmo em relação às concepções de boa vida
inseridas no contexto grosso modo individualista do procedimento contratualista, os princípios resultantes
(do procedimento) podem ser considerados neutros. No caso dessas concepções “individualizadas” de boa
vida, a distinção acima referida talvez não faça mais sentido. Mas esse é um ponto que não vou abordar
aqui.
217

prioridade da razoabilidade (ou seja, do senso de justiça) sobre as concepções de boa


vida se expressa na tese de que a justiça dos princípios equivale à neutralidade dos
mesmos. É óbvio, por outro lado, que a prioridade do senso de justiça sobre as
concepções de boa vida representa o fundamento lógico da tese da prioridade do justo
sobre o bom, tão cara à tradição contratualista (e também, diga-se de passagem, à
tradição deontológica – embora ela seja igualmente compatível com a posição
conseqüencialista, como tentamos demonstrar em nossas considerações iniciais sobre as
características gerais da concepção imperativa). Assim, num primeiro momento da
lógica contratualista, a tese da prioridade do justo sobre o bom reveste-se de um duplo
significado: ela é entendida, em primeiro lugar, no sentido de que a justiça dos
princípios equivale à neutralidade dos mesmos (em relação às diferentes concepções do
bem individual); e, em segundo lugar, no sentido de que os princípios justos (quer dizer,
neutros) devem ter prioridade normativa sobre as (diferentes) concepções de boa vida.6
Para introduzirmos o segundo momento da lógica contratualista, suponhamos
agora que, como resultado das peripécias sobrevindas aos envolvidos no procedimento
contratualista, chegue-se à conclusão de que, em situações de conflito radical, o
procedimento contratualista não é capaz de detectar princípios que sejam rigorosamente
neutros em relação aos diferentes projetos de vida, considerando, inclusive, (e até
principalmente), aqueles que são encarados desde o ponto da vista grosso modo
individualista assumido pelo contratualismo. Qualquer princípio aventado acaba se
revelando (relativamente) não-neutro em relação a esses diferentes projetos. Nesse
contexto, se nos aferrarmos à tese de que a justiça dos princípios equivale à neutralidade
dos mesmos, chegaremos à conclusão de que não é mais possível falar de justiça dos
princípios, quer dizer, não é mais possível falar de princípios justos. Ora, tal conclusão
parece altamente implausível. Antes de adotá-la, parece mais plausível tentar afastar a
tese de que a justiça dos princípios equivale à neutralidade dos mesmos, e ver se é
possível justificar, de forma razoável, uma relativa não-neutralidade dos princípios. Em
outras palavras, parece mais plausível considerar a tese de que um princípio justo não
precisa ser entendido como um princípio rigorosamente neutro em relação às diferentes

6
No artigo de Rawls The Priority of Right and Ideas of the Good, fica muito clara essa associação entre,
por um lado, a idéia da prioridade do justo e, por outro lado, a idéia de neutralidade em relação às
concepções de boa vida. Com efeito, Rawls começa o artigo com uma referência às objeções suscitadas
pela idéia da prioridade do justo; na seção V do artigo, ele retoma essas mesmas objeções, vinculando-as
agora à idéia de neutralidade (em relação a esse tópico, a versão original, publicada em Philosophy and
Public Affairs, é mais clara, na medida em que Rawls não demonstra tanto medo em usar o termo
“neutralidade”).
218

concepções de boa vida possivelmente adotadas pelos indivíduos, mas pode ser
entendido como um princípio que pode envolver um relativo favorecimento de uma
certa concepção de boa vida, em detrimento de outras – desde que esse favorecimento
possa ser razoavelmente justificado, ou seja, desde que ele atenda às condições ditadas
pela razoabilidade, ou pelo senso de justiça.
Nessa situação, o que acontece com a tese da prioridade do justo sobre o bom? É
óbvio que ela perde o primeiro significado acima discriminado: se os princípios justos
não precisam mais ser neutros, a prioridade do justo sobre o bom não pode mais ser
entendida no sentido de que a justiça dos princípios equivale à neutralidade dos mesmos
(em relação às diferentes concepções do bem individual). Além disso, se essa tese
conservasse o segundo significado acima discriminado, a saber, o significado de que os
princípios justos devem ter prioridade (normativa) sobre as concepções de boa vida,
teríamos a seguinte implicação: um princípio que implica relativo favorecimento de
uma dessas concepções, em detrimento de outras, deve ter prioridade sobre essas outras
concepções. Ora, sozinha, sem nenhum outro argumento explicativo, essa conclusão
estaria em flagrante conflito com as considerações da razoabilidade, quer dizer, com o
senso de justiça. Isso demonstra que, num segundo momento da lógica contratualista, a
tese da prioridade do justo sobre o bom não pode mais ser entendida, pura e
simplesmente, no sentido de que princípios justos têm prioridade sobre as concepções
de boa vida. Falta aqui um esclarecimento complementar.
Para entendermos que sentido essa tese adquire no segundo momento da lógica
contratualista, temos de estabelecer e destacar uma distinção entre, por um lado, o
procedimento contratualista, e, por outro lado, os princípios que resultam desse
procedimento – ou seja, os princípios que são escolhidos como resultado do
procedimento. O “segundo momento” nasceu da percepção de que os princípios que
resultam do procedimento não podem ser considerados rigorosamente neutros em
relação às diferentes concepções de bem individual. Ora, se a justiça está vinculada à
neutralidade, e se a neutralidade não pode mais ser localizada nos princípios que
resultam do procedimento, resta a saída de localizar a neutralidade no próprio
procedimento – trata-se de estruturar e aplicar um procedimento neutro, definido como
um procedimento que pode ser reconhecido como “intrinsecamente” justo,
independentemente de qualquer preferência pré-procedimental por essa ou aquela
concepção de boa vida. Assim, ainda que os princípios que resultam do procedimento
tenham de ser reconhecidos como relativamente não-neutros em relação às diferentes
219

concepções de boa vida possivelmente preferidas pelos indivíduos, essa não-


neutralidade seria “neutralizada” (justificada, tornada justa) pela neutralidade do próprio
procedimento. Se o procedimento é neutro, o resultado é justo – mesmo que seja
(relativamente) não-neutro. Se princípios não-neutros representarem o resultado de um
procedimento neutro, sua não-neutralidade poderá deixar de ser vista como expressão de
uma preferência prévia (e injustificada) pela concepção de boa vida que está sendo
relativamente favorecida.7
Esse argumento pode ser desenvolvido da seguinte maneira. Lembremos que o
fundamento lógico da tese da prioridade do justo reside na prioridade do senso de
justiça (ou da capacidade da razoabilidade) sobre as concepções de boa vida. Ora, o
senso de justiça consiste no reconhecimento de certas condições que precisam ser
cumpridas no procedimento do qual vão resultar os princípios de justiça; para poderem
ser considerados justos, os princípios políticos têm de resultar de um procedimento que
cumpra determinadas condições. Trata-se então de condições da (para a) justiça do
procedimento, e, indiretamente, para a justiça dos princípios que vão resultar do

7
Nesse segundo momento da lógica contratualista, portanto, a tese da prioridade do justo vincula-se ao
ideal de uma justiça procedimental pura. Não vou discutir esse tópico aqui, mas gostaria de mencionar as
mudanças no posicionamento de Rawls em relação à possibilidade de se usar a noção de justiça
procedimental para esclarecer o artifício da posição original (que representa a configuração rawlsiana do
procedimento contratualista). Tal mudança se manifesta de forma muito clara em Political Liberalism,
especialmente se tomarmos a edição paperback, que inclui o artigo Resposta a Habermas, de 1995.
A esse respeito, gostaria de destacar as seguintes passagens. No §5 da conferência “As
Capacidades dos Cidadãos e sua Representação” (Conferência II), Rawls repete a tese apresentada no
artigo O Construtivismo Kantiano na Teoria Moral, de 1980; trata-se da tese de que a posição original
pode e deve ser vista como um caso de justiça procedimental pura (Political Liberalism, p.72-73). Já
no §5 da conferência “A Prioridade do Justo e Idéias do Bem” (Conferência V), Rawls afirma que a
teoria da “justiça como eqüidade” não é procedimentalmente neutra – a noção de “procedimento neutro” é
aqui substituída pela noção de “terreno comum” [e na “conferência” publicada em Political Liberalism
Rawls introduziu uma frase que não aparecia no artigo original, publicado em 1988. Trata-se da
afirmação de que “terreno comum, definido dessa forma (como o foco de um overlapping consensus –
A.S.B.), não é terreno procedimentalmente neutro”. (Political Liberalism, p.192)].
Ora, é óbvio que a noção de justiça procedimental pura envolve a noção de um procedimento
neutro – pois o que define a justiça procedimental é a tese de que a justiça do procedimento não só é
anterior à justiça dos resultados, mas transfere-se para os resultados, como o elemento que, unicamente,
os torna justos, independentemente de qualquer preferência “pré-procedimental” por esse ou aquele
resultado; isso significa, precisamente, que a justiça do procedimento envolve neutralidade em relação a
qualquer resultado possivelmente preferido “antes” do procedimento. Assim, ao dizer que a teoria da
“justiça como eqüidade” não é procedimentalmente neutra, Rawls parece estar dizendo que a justiça dos
seus princípios não pode fundar-se no ideal de um procedimento neutro, mas precisa recorrer a certos
“pré-juízos” (juízos pré-procedimentais) a respeito da justiça dos possíveis resultados do procedimento –
que são, justamente, os princípios da interação social.
Por fim, no §5 do artigo Resposta a Habermas, de 1995 (Conferência IX da edição paperback de
Political Liberalism), Rawls explicitamente afirma que a justiça procedimental, quer dizer, a justiça do
procedimento, “sempre depende” da justiça substantiva, quer dizer, da justiça dos resultados do
procedimento (Political Liberalism, p.421). Em outras palavras, um procedimento justo não pode mais ser
definido pela neutralidade em relação aos “pré-juízos” acerca da justiça dos possíveis resultados.
Endossar um procedimento como justo implica endossar certos juízos pré-procedimentais a respeito de
quais são os resultados justos (quais são os princípios justos).
220

procedimento. Para estabelecer uma diferença entre, por um lado, essas condições (quer
dizer, as condições para a justiça do procedimento e dos princípios que dele vão
resultar), e, por outro lado, a justiça do conteúdo dos princípios (quer dizer, a justiça
conteudística dos princípios), - para estabelecer essa diferença, o contratualista pode
chamar essas condições de condições formais da justiça. Trata-se de condições que
precisam ser consideradas e respeitadas no procedimento em que os indivíduos-
legisladores avaliam e discriminam a justiça conteudística dos princípios. Mais
precisamente, trata-se de condições que precisam ser cumpridas para que o
procedimento contratualista possa ser considerado neutro e, por conseguinte, justo.
Trata-se de condições que, ao garantirem a neutralidade do próprio procedimento,
garantem sua justiça – e que, ao garantirem a justiça do próprio procedimento, garantem
também, por intermédio deste, a justiça dos princípios que resultam do procedimento.
Ora, pode-se falar de, pelo menos, três condições formais: 8 coerência (para
avaliar a justiça conteudística dos princípios, os participantes do procedimento
contratualista devem atentar para o fato de que os princípios deverão ser aplicados de
forma coerente); igualdade e simetria entre os indivíduos-legisladores (a determinação
de quais são os princípios conteudisticamente justos não pode ser minimamente
influenciada por desigualdades de poder entre os participantes do procedimento);
imparcialidade dos indivíduos-legisladores (ao avaliarem a justiça conteudística dos
princípios, os participantes não devem ser influenciados por considerações de ordem
afetiva, quer dizer, considerações ditadas pelo peso afetivo de interesses estritamente
particulares ou pessoais).
Como resultado do que vem sido dito, podemos afirmar que a idéia básica do
contratualismo pode agora ser expressa da seguinte maneira. Ainda que, partindo do
lado mais afetivo da sua personalidade, os concernidos possam atribuir grande peso às
suas respectivas concepções do que seja uma boa vida, eles ao mesmo tempo
reconhecem, partindo do lado mais razoável da sua personalidade, que as considerações
ditadas pelas condições formais de justiça devem ter prioridade sobre tais concepções.
No segundo momento da lógica contratualista, em outras palavras, a tese da prioridade
do justo sobre o bom muda de significado: não se trata mais de afirmar que princípios

8
Nesse momento da argumentação, estou recorrendo à apresentação que Rawls faz de um possível
procedimento neutro, no mencionado artigo The Priority of Right and Ideas of the Good. Ver Political
Liberalism, p.191/192. A apresentação feita por Rawls nesse artigo, com efeito, parece-me bem
representativa, não só da sua própria posição a respeito do que seria um procedimento neutro, mas, de
modo mais abrangente, da própria idéia geral de um procedimento neutro.
221

(conteudisticamente) justos devem ter prioridade sobre as concepções individuais da


boa vida, mas, antes, de afirmar que as considerações ditadas pelas condições formais
da justiça devem ter prioridade sobre tais concepções.
A idéia básica é agora a seguinte. Tomado como uma faculdade da razão prática,
o senso de justiça consiste, essencialmente, no reconhecimento de certas condições
formais, quer dizer, condições que se impõem a todos os sujeitos racionais,
independentemente das suas respectivas (e possivelmente variadas) intuições a respeito
de quais são os elementos conteudisticamente valiosos da vida humana em geral.
Estabelece-se aqui uma equivalência entre, por um lado, razoabilidade (tomada como
capacidade deliberativa) e, por outro lado, consideração e respeito pelas condições
formais da justiça. A partir disso, desenvolve-se o seguinte argumento. Mesmo sendo
não-neutro em relação às diferentes concepções de boa vida, um princípio ainda pode
atender aos critérios da razoabilidade, quer dizer, às condições formais da justiça.
Talvez seja possível extrair da noção de razoabilidade (atribuída a todos os concernidos)
critérios de avaliação que permitam julgar que um determinado princípio, mesmo
implicando relativo favorecimento de uma determinada concepção de boa vida, ainda
pode ser considerado razoável e justo. Assim, mesmo na eventualidade de que os
princípios de justiça impliquem um relativo favorecimento de uma determinada
concepção de boa vida, em detrimento de outras, ainda se poderá manter a tese da
prioridade do justo sobre o bom, desde que ela seja entendida no sentido de que as
considerações referidas às condições formais da justiça (ou seja, às condições da
razoabilidade) têm prioridade sobre as diferentes concepções de boa vida.
Em outras palavras, o fato de se adotar um princípio que favoreça uma
determinada concepção de boa vida (em detrimento de outras) não precisa ser
interpretado como evidência de que a justiça dos princípios foi subordinada a esta
concepção de boa vida (ou seja, não precisa ser interpretado como evidência de que o
bom, afinal de contas, tem prioridade sobre o justo); tal fato pode ser interpretado por
meio do argumento de que tal favorecimento pode ser justificado (e unanimemente
aceito) com base em considerações referidas às condições formais da justiça. Assim, as
condições formais da justiça continuam a ter prioridade sobre as diversas concepções de
boa vida (em conflito), e são essas condições que ditam e justificam a proteção que
eventualmente se concede a uma dessas concepções, em detrimento das outras.
***
222

Avancemos agora uma última hipótese sobre os possíveis desdobramentos do


potencial conceitual do contratualismo – quer dizer, lancemos uma hipótese sobre o
terceiro momento da lógica contratualista. Suponhamos que, da noção de razoabilidade
que se pode razoavelmente atribuir a todos os concernidos, não seja possível extrair
critérios de avaliação que permitam justificar, de uma forma que pareça razoável a todos
os concernidos, a proteção que eventualmente se concede a uma determinada concepção
de boa vida, na escolha dos princípios justos. Na verdade, a melhor maneira de formular
essa hipótese é a seguinte. Suponhamos que, apesar de todos os esforços dos
contratualistas, não seja possível estabelecer um conceito de razoabilidade (um senso de
justiça) comum e compartilhado, igualmente aceito por todos os concernidos;
suponhamos que os contratualistas tenham finalmente de admitir que, assim como há
diferentes conceitos de boa vida, há também diferentes conceitos/critérios de
razoabilidade, diferentes sensos de justiça. Que conclusões seria preciso tirar daí?
É importante termos clareza quanto ao teor dessa última hipótese. No segundo
momento da lógica contratualista, o senso de justiça foi identificado ao reconhecimento
e respeito de certas condições formais, como coerência, igualdade/simetria e
imparcialidade. Afirmar que, num terceiro momento, não há mais um senso de justiça
comum e compartilhado, mas diferentes sensos de justiça, - afirmar isso não equivale a
afirmar que não há mais acordo quanto à necessidade ou relevância dessas condições
formais da justiça; enquanto condições formais, tais condições continuam a ser
unanimemente aceitas e compartilhadas. O que se está afirmando é que, nesse terceiro
momento, percebe-se que essas condições formais não são suficientes para resolver ou
decidir eventuais conflitos quanto à justiça conteudística dos princípios. Uma outra
maneira de se afirmar isso é a seguinte: nesse terceiro momento, percebe-se que é
preciso dar uma interpretação conteudística a tais condições formais; percebe-se que é
preciso “encher” essas condições com elementos decisórios vinculados a valores
conteudisticamente determinados. Em outras palavras, se quiser chegar a resultados
definidos, o procedimento contratualista não pode restringir-se à observância e
atendimento de condições puramente formais – são necessários outros elementos
decisórios, referidos, diretamente, a valores conteudisticamente determinados. É em
relação a esses últimos elementos decisórios, justamente, que se estabelece a variedade
nos sensos de justiça.
Podemos reunir esses últimos elementos decisórios sob o título de “teoria da
decisão”. Em outras palavras, a teoria da decisão diz respeito, não tanto às condições
223

formais da justiça, mas, muito mais, aos elementos decisórios que são necessários para
dar “enchimento” a essas condições, os quais estão referidos a valores
conteudisticamente determinados. É aqui, justamente, que se estabelece a diferença
entre o senso de justiça do legislador deontológico e o senso de justiça do legislador
utilitarista.
O que acontece agora com a tese da prioridade do justo sobre o bom? Antes de
mais nada, pintemos em cores fortes as dificuldades que essa tese enfrenta a partir de
agora – que estão por sua vez relacionadas a dificuldades de ordem mais geral. Se os
princípios de justiça acabam inevitavelmente envolvendo um certo favorecimento de
uma dada concepção de boa vida, em detrimento de outras, e se esse favorecimento não
pode mais ser razoavelmente justificado com base, apenas, em considerações referidas a
condições formais (de razoabilidade ou justiça) compartilhadas por todos os
concernidos, então parece ser preciso concluir que é a preferência por essa concepção
(de boa vida), e não um senso de justiça supostamente comum e compartilhado, que
representa o verdadeiro ponto de partida da escolha dos princípios justos. Isso parece
significar duas coisas: em primeiro lugar, que essa preferência (por uma concepção de
boa vida) é por assim dizer anterior aos próprios princípios de justiça; em segundo
lugar, que ela dá o tom ao próprio senso de justiça a que cada indivíduo ou grupo
recorre na escolha dos “seus” princípios de justiça.
Dessas considerações, por sua vez, parecem resultar duas conclusões. Em
primeiro lugar, parece que, nesse caso, é preciso abandonar a tese da prioridade do justo
sobre o bom, e admitir que, afinal de contas, o bom tem prioridade sobre o justo. Em
segundo lugar – e esse é o ponto mais grave -, considerando que a tese da prioridade do
justo sobre o bom representa a resposta contratualista ao problema de justificação
gerado pelo irredutível pluralismo das concepções de boa vida, o abandono dessa tese
parece implicar que, num cenário de conflito irredutível entre as concepções de boa
vida, não se pode mais ter a pretensão de justificar um determinado princípio de justiça
– o máximo que se pode fazer é apregoar seus méritos, quer dizer, apregoar os méritos
da concepção de boa vida a que ele está vinculado.
A questão pode ainda ser exposta em cores menos fortes, da seguinte maneira.
Uma vez que a tese da prioridade do justo sobre o bom está intimamente associada à
tese de que, mesmo na eventualidade de que os princípios de justiça envolvam
favorecimento de uma dada concepção de boa vida, esse favorecimento pode ser
razoavelmente justificado com base em considerações de razoabilidade que podem ser
224

genericamente atribuídas a todos os concernidos, o abandono da primeira tese (a da


prioridade do justo sobre o bom) parece implicar o abandono dessa última tese, ou seja,
parece implicar o abandono da pretensão de que os princípios de justiça podem ser
razoavelmente justificados com base em critérios de razoabilidade que podem ser
genericamente atribuídos a todos os concernidos – mas isso não necessariamente
implica que não seja mais possível nenhum tipo de justificação; implica apenas que,
caso ela seja possível, ela precisa apoiar-se em outra base. Nesse caso, porém, que base
se poderá adotar para apresentar certos princípios como justos? Se essa base não pode
mais ser descrita em termos de critérios formais compartilhados por todos os
concernidos, de que modo pode ela ser descrita?
Vários problemas surgiram aqui, e é importante, antes de mais nada, distingui-
los claramente. Em primeiro lugar, o problema da unanimidade ou acordo quanto à
escolha dos princípios (conteudisticamente) justos. Do modo como o retratamos, o
terceiro momento da lógica contratualista desembocou na constatação de que o
procedimento contratualista não é capaz de produzir unanimidade quanto à questão de
quais são os princípios justos. (Na verdade, a falta de acordo quanto à determinação dos
princípios justos é expressão da falta de acordo quanto à teoria da decisão que deve ser
usada no procedimento). Mas isso não significa que não seja mais possível justificar
(fundamentar) a escolha de um determinado princípio, em oposição a outro. A pretensão
de produzir unanimidade é característica, apenas, de uma fundamentação “forte”; mas
talvez seja possível, também, uma fundamentação “fraca”, que se caracterizaria pelo
fato de que, ainda que se apresente uma justificativa para a escolha de um determinado
princípio (em oposição a outro), tal justificativa não ergue a pretensão de produzir ou
“arrancar” unanimidade.
O segundo problema com que os contratualistas se deparam no seu “terceiro
momento” consiste, justamente, no questionamento a respeito da possibilidade e
natureza de uma tal fundamentação “fraca”. Na noção de “fundamentação”, mesmo que
se esteja tratando de uma fundamentação que não pretende gerar unanimidade, está
contida a noção de um diálogo (propriamente dito) entre os participantes do
empreendimento de fundamentação, quer dizer, de um discurso referido, não àqueles
elementos que tendem a separá-los e dividi-los, como, por exemplo, as opiniões a
respeito do que “é bom para mim”, mas àqueles elementos que tendem a aproximá-los e
uni-los, como, por exemplo, as afirmações a respeito do que é correto e justo. Em outras
palavras, o “fundamento” a que se recorre no empreendimento de fundamentação tem
225

de constituir-se num terreno comum, minimamente compartilhado. É por isso,


justamente, que a tradição kantiana sempre gostou de recorrer ao fundamento
constituído pelas “condições formais” da justiça – a idéia que está por trás desse “gosto”
é a de que, sendo expressões da racionalidade prática em geral, tais condições
necessariamente se impõem a todos os participantes, independentemente de suas
opiniões e preferências particulares.
As questões que surgem nesse momento são, portanto, as seguintes. Se o
fundamento a que se recorre no empreendimento de fundamentação não pode mais ser
caracterizado em termos de reconhecimento e observância de condições puramente
formais, de que modo pode ele ser caracterizado? Em segundo lugar, em que sentido e
medida esse “novo” fundamento consegue transcender o plano das opiniões estritamente
particulares e privadas – em que sentido e medida ele cumpre a exigência de um terreno
comum, minimamente compartilhado?
Vimos acima que o problema das condições formais reside, não na sua
incorreção ou irrelevância, mas na sua insuficiência: para justificar a escolha de um
determinado princípio (conteudístico) de justiça, tais condições formais não são
suficientes, mas têm de ser complementadas por elementos discursivos referidos a
valores conteudisticamente determinados. Vimos ainda que esses últimos elementos
discursivos estão inevitavelmente associados a uma certa diversidade ou variedade, o
que significa que eles não se deixam caracterizar como elementos que necessária e
uniformemente se impõem a todos os sujeitos racionais, enquanto racionais. Ora, na
medida em que não se deixam caracterizar como elementos que necessária e
uniformemente se impõem a todos os sujeitos racionais, tais elementos discursivos
escapam da esfera da racionalidade “pura” – eles pertencem àquela esfera em que a
racionalidade se mistura a “intuições”. O que eu estou querendo dizer é o seguinte: o
fundamento a que se recorre no empreendimento de fundamentação só pode agora ser
caracterizado em termos de “intuições”.
O problema passa então a ser o seguinte: em que sentido e medida um
fundamento vinculado a “intuições” consegue transcender o plano das meras “opiniões”
– quer dizer, das opiniões estritamente particulares e privadas? Em que sentido e medida
ele consegue constituir-se num terreno discursivo propriamente dito, quer dizer, um
terreno argumentativo comum, minimamente compartilhado?
No contexto da concepção imperativa (moderna) da ética, elementos que
pertencem à esfera da “intuição” só conseguem transcender o plano das opiniões
226

privadas caso se refiram, não àquilo que é bom para o indivíduo (quer dizer, não à boa
vida individual), mas, sim, àquilo que é justo. É claro que “o justo” não está mais
apontando aqui para condições, restrições e limites de caráter meramente formal; em
outras palavras, ele não está mais apontando para condições e restrições que devem ser
impostas à busca do alvo (fim) propriamente dito. Ao contrário, ele representa aqui,
precisamente, o alvo (fim) propriamente dito. E é justamente pelo fato de “o justo” estar
representando aqui o fim propriamente dito que ele também pode ser chamado de
“bom”, “valioso” – quer dizer, o politicamente bom e valioso. Em outras palavras, o
fundamento a que os contratualistas têm agora de recorrer só pode vincular-se às
intuições sobre o que é politicamente bom ou valioso – quer dizer, “substancialmente
justo”. Para recorrer a esse fundamento, entretanto, eles têm de conseguir separar tais
intuições das opiniões pessoais e privadas a respeito do que é “bom para o indivíduo”.
Caso eles consigam efetuar essa separação, eles conseguirão, também, manter a tese da
prioridade do justo sobre o bom – entendendo-a como prioridade das intuições a
respeito do “substancialmente justo” (ou seja, a respeito do “politicamente
bom/valioso”) sobre, por outro lado, as opiniões a respeito do “bom para o indivíduo”
(ou seja, a respeito da “felicidade privada”).
***
Recapitulemos e concluamos.
No terceiro momento de sua Lógica, os contratualistas têm de admitir duas
coisas. Primeiro, que a única possibilidade que lhes resta consiste em descrever sua base
de justificação em termos de “intuição”; segundo, que há diferentes bases de
justificação, correspondendo a diferentes intuições. Entretanto, para salvar a tese da
prioridade do justo sobre o bom, os contratualistas podem tentar estabelecer a seguinte
distinção. Uma coisa é a intuição sobre qual é a boa vida, ou seja, a vida que os
indivíduos devem buscar na dimensão não-política da sua existência; outra coisa é a
intuição sobre quem é o cidadão justo e qual é a polis (esfera política) justa. Uma coisa
é a intuição acerca daquilo que é valioso na vida (não-política) dos indivíduos; outra
coisa é a intuição acerca daquilo que é valioso na esfera política ocupada pelos
cidadãos. É essa última (intuição) que configura o senso de justiça a que cada cidadão
recorre para robustecer as prioridades e razões que estão na base da sua escolha dos
princípios de justiça. E é no terreno dessa intuição que os indivíduos-legisladores
podem dialogar, e nesse sentido se aproximar – ainda que inevitavelmente subsistam
diferenças entre eles.
227

Assim, ainda que os princípios justos envolvam favorecimento de uma dada


concepção (não-política) de boa vida, não é essa concepção que está na base da escolha
dos princípios justos; o que está na base dessa escolha é uma certa intuição acerca
daquilo que é mais valioso para a justiça da esfera política, ou seja, uma certa intuição
sobre quais são os melhores critérios substantivos para a justiça da esfera política.
Considerando que essa intuição configura um certo senso de justiça, a preferência por
uma concepção de boa vida, em vez de representar o ponto de partida, continua a ser
justificada a partir do senso de justiça dos cidadãos. É claro que essa justificação
tornou-se muito mais fraca, na medida em que seu fundamento não consiste mais num
senso de justiça puramente formal, comum e compartilhado, mas num senso de justiça
que, ao definir-se por certas intuições conteudísticas, precisa, ele próprio, tentar
justificar-se perante sensos de justiça alternativos e rivais.
É claro que os contratualistas têm de admitir também que essa distinção não
apresenta traços nítidos. Não é tão fácil assim separar a vida não-política dos indivíduos
da vida política dos cidadãos – uma repercute sobre a outra, em ambas as direções. A
questão não reside, evidentemente, no ponto de que é perfeitamente admissível
descrever o cidadão justo e a polis justa em termos de bom cidadão e boa polis; a
questão, mais fundamentalmente, é a de que não é tão simples assim separar o bom
cidadão e a boa polis da boa vida dos indivíduos. E o “fato do pluralismo”, que constitui
o ponto de partida da teoria contratualista, não pode ser restringido à admissão de que,
na modernidade, há diferentes (e conflitantes) intuições acerca daquilo que é valioso na
vida “não-política” dos indivíduos; ele precisa abranger o reconhecimento de que esse
conflito de intuições incide também sobre os ideais de bom cidadão e boa polis, e de
que essas intuições conflitantes estão estreitamente ligadas umas às outras. O que o
contratualismo tentava fazer era, justamente, evitar esse conflito aparentemente
irredutível de intuições, mediante recurso a uma base formal supostamente comum, e
compartilhada por todos. Se não é mais possível recorrer a critérios formais
supostamente compartilhados, se a escolha dos princípios de justiça recorre, em última
instância, a intuições, e se as intuições são irredutivelmente conflitantes, não seria
necessário concluir que não é mais possível haver discussão racional sobre a escolha
dos princípios de justiça? Não seria necessário concluir que, no que diz respeito a essa
escolha, a única coisa que pode haver é um embate retórico e propagandístico? Afinal,
“intuição” não se discute (racionalmente) – no máximo se combate (retoricamente).
228

Nesse ponto, parece-me que os partidários do contratualismo podem (e devem)


tentar insistir na idéia de que ainda é possível priorizar as noções de “razoabilidade” e
“senso de justiça”, tomando-as, não mais como um ponto de partida formal, mas, sim,
como um meio conceitual/argumentativo de discutir, de forma minimamente racional,
as diferentes intuições sobre o que é (mais) valioso para a esfera política ocupada pelos
cidadãos. Os contratualistas podem tentar insistir na idéia de que, ainda que seja
impossível separar inteiramente as dimensões política e não-política da existência,
pode-se separá-las grosso modo, com base no fato de que a primeira tem alcance e
densidade menores do que a segunda. E, justamente pelo fato de ela ter alcance e
densidade menores, é mais fácil discutir sobre ela e produzir um consenso, ou pelo
menos uma aproximação, em relação aos critérios substantivos que devem regulá-la.
Tendo em vista o desejo de entrar em acordo quanto às leis que vão igualmente aplicar-
se a todos, pode-se, sim, discutir sobre as intuições que os diferentes cidadãos têm
acerca daquilo que é (mais) valioso para a convivência política, na medida, pelo menos,
em que essas intuições afetam a escolha e o acordo sobre as leis comuns. E essa
discussão se processa, em grande parte, por meio da discussão sobre as noções de
“razoabilidade” e “senso de justiça”. Ainda que não se possa mais supor um senso de
justiça puramente formal, quer dizer, comum e compartilhado, ainda que os diferentes
cidadãos tenham diferentes sensos de justiça, moldados por suas respectivas intuições
acerca daquilo que é (mais) valioso para a vida em sociedade, - ainda assim a noção de
“senso de justiça” pode constituir-se num foco de diálogo e aproximação entre essas
intuições, tendo em vista o desejo de entrar em acordo quanto às leis comuns.
229

5.3) As Diferentes Teorias da Decisão.

5.3.1) Condições Formais ou Critérios Conteudísticos?

Para desenvolver agora os temas da inevitabilidade dos conflitos e da


necessidade de teorias da decisão conteudisticamente determinadas, gostaria de retomar
o tópico da neutralidade. Para tanto, gostaria de repetir o parágrafo em que procurei
apresentar a primeira dificuldade que os partidários do procedimento contratualista
precisam enfrentar. Eu disse o seguinte. “Se um determinado princípio implica
favorecimento de um determinado projeto de vida em detrimento de outros, deve-se
admitir que não seria irrazoável que os prejudicados rejeitassem sua elevação à posição
de lei universal. E disso, por sua vez, parece seguir-se a seguinte conclusão. Para que se
possa afirmar que um determinado princípio poderia, razoavelmente, ser aceito por
todos os concernidos, é preciso que esse princípio seja neutro em relação aos diferentes
projetos de vida, quer dizer, em relação à capacidade e oportunidade que os diferentes
indivíduos devem ter de perseguirem seus respectivos projetos de vida. A questão que
os contratualistas precisam portanto enfrentar é a seguinte: será possível encontrar
princípios que atendam a esse requisito de neutralidade?”
No esforço de encontrar tais princípios, o contratualista pode tentar valer-se da
seguinte idéia. Embora seja preciso admitir que, quanto aos fins, os diferentes
indivíduos querem perseguir e realizar diferentes projetos de vida, talvez se possa
mesmo assim dizer que, quanto aos meios, todos os indivíduos querem possuir mais ou
menos os mesmos recursos. Para que se possa dizer isso, é preciso supor,
evidentemente, que esses recursos são igualmente necessários ou úteis para todos os
projetos de vida – pelo menos de forma aproximada. E talvez se possa supor que haja
recursos desse tipo, tais como liberdade (em sentido amplo, vago e genérico),
oportunidades de emprego, renda. Tomados como meios igualmente necessários ou
úteis para todos os projetos de vida, tais recursos – chamemo-los de “recursos básicos”
– parecem atender ao requisito de neutralidade (em relação, justamente, aos diferentes
projetos de vida possivelmente preferidos pelos indivíduos).
Assim, o contratualista poderia dizer o seguinte. Uma vez que os recursos
básicos são igualmente desejados por todos os concernidos, independentemente dos
variados projetos de vida que eles possam respectivamente preferir, se os princípios de
justiça disserem respeito, apenas, a tais recursos, eles serão neutros em relação a esses
230

diferentes projetos. Mas ao propor que os princípios de justiça digam respeito, apenas, a
tais recursos, o contratualista está sugerindo, obviamente, que eles digam respeito,
apenas, à distribuição de tais recursos entre os diversos concernidos. Assim, para que os
princípios de justiça atendam ao requisito de neutralidade, não basta que os recursos
básicos sejam neutros em relação aos diferentes projetos de vida; é preciso, também,
que se possa pensar numa distribuição desses recursos que seja igualmente neutra, quer
dizer, neutra em relação à capacidade e oportunidade dos indivíduos de perseguirem e
realizarem diferentes projetos de vida.
Ora, em situações de escassez e conflito, esses dois requisitos são
manifestamente problemáticos. E aqui, com efeito, é preciso enfatizar a distinção entre,
por um lado, uma situação ideal de escolha, na qual a escolha dos concernidos não é
premida por dilemas e conflitos mais urgentes, e, por outro lado, situações de escassez e
conflito, que se caracterizam, justamente, pela forte pressão desses dilemas e conflitos.9
É óbvio que, partindo-se de uma situação ideal, quer dizer, de uma situação
artificialmente depurada de certos conflitos mais prementes, é perfeitamente plausível
afirmar que há certos recursos que todos os indivíduos querem igualmente possuir,
independentemente dos variados projetos de vida que eles, por outro lado, querem
perseguir. É igualmente óbvio que, partindo-se de uma situação desse tipo, é
perfeitamente possível imaginar uma distribuição desses recursos que seja neutra em
relação a esses projetos, quer dizer, que não implique proteção ou favorecimento de um
desses projetos, em detrimento de outros.

9
As implicações dessa distinção são muito bem apresentadas por David Lyons, num artigo de crítica a
Rawls intitulado Nature and Soundness of the Contract and Coherence Arguments, publicado em
Daniels, Norman (ed.), Reading Rawls, New York, Basic Books, 1975, p.141-167. Mais precisamente,
Lyons expõe as implicações dessa distinção para o debate entre deontologismo e utilitarismo, destacando
que os deontólogos muitas vezes cometem a injustiça de apresentar certas escolhas que os utilitaristas (só)
sugerem em situações de escassez e conflito como se elas estivessem sendo sugeridas numa situação
ideal. Com isso, obviamente, tais escolhas tornam-se presa fácil, e os deontólogos demolem tais escolhas
como se estivessem demolindo os próprios princípios utilitaristas.
A idéia que o artigo de Lyons sugere é a seguinte. Numa situação ideal de escolha, as escolhas
dos deontólogos e dos utilitaristas resultam muito semelhantes, a despeito das diferenças nos critérios
fundamentais. Só que, numa situação desse tipo, tais escolhas parecem muito melhor justificadas a partir
dos critérios deontológicos, e esse fato se explica da seguinte maneira: enquanto os critérios
deontológicos estão predominantemente voltados para as escolhas numa situação ideal, os critérios
utilitaristas estão predominantemente voltados para escolhas em situações de conflito. Mas o fato de,
numa situação ideal, as escolhas fundamentais, apesar de igualmente feitas por deontólogos e utilitaristas,
parecerem melhor justificadas a partir dos critérios deontológicos, – tal fato não implica que, em situações
de conflito, nas quais as escolhas vão realmente se diferençar, os critérios deontológicos vão funcionar
igualmente bem, ou seja, não implica que, numa avaliação despida de preconceitos anti-utilitaristas
oriundos do fato acima referido, as escolhas baseadas nos critérios deontológicos vão parecer mais
plausíveis do que as baseadas nos critérios utilitaristas. Assim, para sermos justos com o utilitarismo,
temos de comparar o modo como seus critérios funcionam em situações de conflito com o modo como
funcionam, em situações desse mesmo tipo, os critérios deontológicos.
231

Entretanto, em situações de escassez e conflito, tais obviedades se desvanecem,


e os pontos em questão tornam-se manifestamente problemáticos. Nesse tipo de
situação, com efeito, mesmo que tentemos restringir a reflexão às demandas pelos itens
que se apresentam como “recursos básicos”, surgem demandas conflitantes por esses
itens, quer dizer, demandas em relação às quais é preciso, nessa situação, fazer uma
escolha, por não ser possível, nessa situação, atendê-las igualmente, ou de modo
igualmente satisfatório para todos. Nesse tipo de situação, é preciso adotar uma escala
de prioridades para a distribuição dos recursos básicos. Ora, a dificuldade que então se
insinua é a seguinte: ainda que, numa situação ideal, os recursos básicos possam ser
considerados neutros, em situações de escassez e conflito a escala de prioridades que é
preciso adotar para eles parece estar necessariamente (inevitavelmente) vinculada à
preferência por este ou aquele projeto de vida, em detrimento de outros. Em situações
de escassez e conflito, os recursos básicos não podem mais ser vistos desde a
perspectiva de sua suposta neutralidade, mas precisam ser vistos desde o ponto de vista
de sua maior ou menor adequação (serventia) a este ou àquele projeto de vida.
Ainda que de modo vago e genérico, podemos tentar imaginar uma dessas
situações de conflito, apenas para ilustrar o ponto em questão. Podemos pensar num
conflito entre as demandas que diferentes indivíduos apresentam por diferentes recursos
básicos, como, por exemplo, “liberdade” (em sentido amplo, vago e genérico) e “renda
minimamente adequada”. Destaquemos a propósito que, para se adequar ao requisito de
neutralidade, um item como liberdade tem de ser tomado, não como algo que é valioso
em si mesmo (pois isso a vincularia a um projeto de vida muito específico, em relação
ao qual não é razoável supor que se produziria unanimidade), mas como um mero
recurso, ainda que “básico” – ou seja, como um item que todas as pessoas, decerto,
querem igualmente possuir, mas só na medida em que o vêem como algo de que podem
proveitosamente se servir para perseguirem seus respectivos (e variados) projetos de
vida. E, de fato, partindo-se de uma situação ideal, parece plausível afirmar que todos os
indivíduos, igualmente, reconheceriam na liberdade um recurso de que podem
proveitosamente se servir, qualquer que seja o projeto de vida que respectivamente
adotem. Partindo-se de uma situação ideal, em outras palavras, parece plausível afirmar
que todos os indivíduos querem, igualmente, possuir liberdade, do mesmo modo que
querem, igualmente, possuir uma renda minimamente adequada.
Numa situação ideal, além disso, não há conflito entre as demandas por
“liberdade” e “renda minimamente adequada”; o que define esse tipo de situação é,
232

justamente, o pressuposto de que é possível atender, de modo igualmente satisfatório


para todos, tanto a demanda por liberdade quanto a demanda por renda minimamente
adequada. Nesse tipo de situação, não há que se falar de uma escala de prioridades entre
“liberdade” e “renda minimamente adequada”. Assim, nesse tipo de situação, o único
conflito que pode surgir entre liberdade e renda é o conflito entre a demanda por
“liberdade” e, por outro lado, a demanda por “renda (indeterminadamente) superior à
minimamente adequada”. Nesse caso, entretanto, essa última demanda pode ser vista,
não como uma demanda por um recurso “básico”, ou seja, um recurso que é igualmente
desejado por todos, mas como uma demanda por um recurso “extra”, ou seja, um
recurso que só é desejado por alguns, ou que é mais desejado por alguns do que por
outros, em virtude de desejos e hábitos que lhes são peculiares, e que estão vinculados a
um projeto de vida mais específico. Sendo assim, para que a distribuição desses
recursos seja neutra em relação aos diferentes projetos de vida, é preciso que o
fornecimento de “liberdade” tenha prioridade sobre o fornecimento de “renda
(indeterminadamente) superior à minimamente adequada”, na medida em que a
liberdade está sendo vista como um recurso básico, ou seja, um recurso igualmente
desejado por todos os concernidos, independentemente do projeto de vida que eles
possam individualmente abraçar, ao passo que “renda (indeterminadamente) superior à
minimamente adequada” está sendo vista como um recurso extra, ou seja, um recurso
que, devido a um projeto de vida específico, é mais desejado por alguns – os que
preferem esse projeto – do que por outros, o que significa que uma eventual prioridade
dada ao seu fornecimento implicaria preferência por este projeto, em detrimento de
outros.
Imaginemos agora a passagem dessa situação ideal para uma situação de
conflito. O conflito poderia ter início na própria determinação do que seja “renda
minimamente adequada”. Um indivíduo poderia dizer que a renda minimamente
adequada consiste em 10 moedas, enquanto para um outro ela consiste em 15 moedas.
Imaginemos ainda, para radicalizar o conflito, que a única maneira de propiciar para
todos um aumento de 5 moedas na renda mínima consista na restrição, também para
todos, do atendimento à demanda por liberdade (em sentido vago e indeterminado). O
defensor da renda de 15 moedas poderia dizer que, com uma renda de apenas 10
moedas, a liberdade deixa de valer como um recurso básico, ou seja, um recurso que
todos, igualmente, querem possuir, por verem nela algo de que podem proveitosamente
se servir para perseguirem seus respectivos (e variados) projetos de vida. Em outras
233

palavras, ele poderia dizer que, diante desses dois pacotes alternativos, ou 10 moedas
com mais liberdade ou 15 moedas com menos liberdade, os concernidos, se forem
razoáveis, vão unanimemente preferir o segundo pacote, pois é ele que melhor atende às
condições que definem a noção de “recursos básicos” (a saber, recursos que são
igualmente desejados por todos os concernidos, independentemente do projeto de vida
que possam por outro lado preferir). Em resposta a essas afirmações, o partidário da
renda de 10 moedas poderia dizer várias coisas. Em primeiro lugar, ele poderia dizer
que não aceita trocar a restrição da liberdade por um aumento de 5 moedas, uma vez
que a renda de 10 moedas é razoavelmente adequada, ou seja, atende perfeitamente às
condições que definem a noção de “recursos básicos”, ao passo que o aumento de 5
moedas deve ser visto como um recurso “extra”. A essa primeira afirmação ele
imediatamente acrescentaria, a título de conseqüência, a afirmação de que, mesmo com
uma renda de 10 moedas, a liberdade continua a valer como um recurso básico, ou seja,
um recurso que todos, se forem razoáveis, querem igualmente possuir, por verem nela
algo de que podem proveitosamente se servir para perseguirem seus respectivos (e
variados) projetos de vida. Em terceiro lugar, ele poderia afirmar que o partidário das 15
moedas só julga as 10 moedas insuficientes, e só aceita trocar a liberdade por um
aumento de 5 moedas, - só faz isso em virtude de certos desejos extravagantes e
irrazoáveis, oriundos de um projeto de vida desmedidamente materialista (e é
justamente por isso que o aumento de 5 moedas deve ser visto como um recurso extra).
A isso o partidário das 15 moedas poderia responder o seguinte: quem abraça interesses
extravagantes e irrazoáveis é o defensor das 10 moedas; ele só julga que, mesmo com
uma renda de 10 moedas, a liberdade continua a valer como um recurso básico, quer
dizer, ele só não aceita trocar uma restrição da liberdade por um aumento de 5 moedas, -
ele só faz isso em virtude, justamente, desses seus interesses extravagantes e
irrazoáveis, vinculados a um projeto de vida abusivamente metafísico. Sendo assim, é a
liberdade, e não o aumento de 5 moedas, que deve ser vista como um recurso extra.
O que estou querendo sugerir é o seguinte. Numa situação em que surge um
conflito quanto a quais recursos são “básicos” e quais são “extras”, quer dizer, numa
situação em que é preciso escolher quais recursos devem ser considerados “básicos” e
quais devem ser considerados “extras”, não se pode mais encarar os recursos em
questão desde a perspectiva de sua suposta neutralidade, mas é preciso encará-los desde
o ponto de vista de sua maior ou menor adequação (serventia) a este ou àquele projeto
de vida. Nesse tipo de situação, um esquema distributivo (ou seja, um princípio de
234

justiça) que conceda prioridade ao fornecimento de liberdade (em detrimento do


fornecimento de uma renda de 15 moedas) não pode mais ser considerado neutro em
relação aos diferentes projetos de vida, mas tem de ser visto como um princípio que
implica relativo favorecimento de um determinado projeto de vida, em detrimento de
um outro. E o mesmo ocorre com um princípio que conceda prioridade ao fornecimento
de uma renda de 15 moedas, em detrimento do fornecimento de liberdade.
***
Ora, se não se pode mais encontrar um princípio de justiça que possa ser
considerado neutro em relação aos diferentes projetos de vida; se qualquer princípio
aventado envolve favorecimento de um determinado projeto de vida, em detrimento de
um outro, - nesse caso parece razoável admitir que os eventuais prejudicados poderiam
razoavelmente rejeitar o princípio em questão, sob a alegação, justamente, de
parcialidade.
É nesse momento, como vimos acima, que os partidários do contratualismo
podem tentar elaborar um pouco mais a noção de razoabilidade, de modo a extrair dela
critérios de avaliação que permitam decidir que, mesmo implicando relativo
favorecimento de um determinado projeto de vida em detrimento de um outro, um
esquema distributivo (ou seja, um princípio de justiça) ainda pode ser considerado
razoável (justo) por todos os concernidos. Trata-se de mostrar que, mesmo implicando
relativo favorecimento de um determinado projeto de vida em detrimento de um outro,
um princípio distributivo ainda pode ser considerado como uma proposta que, com base
nas noções de razoabilidade e senso de justiça, deveria ser aceita por todos os
concernidos, mesmo pelos eventuais prejudicados. O pressuposto de que se parte aqui é
o de que há um conceito de razoabilidade que pode ser inequivocamente atribuído a
todos os concernidos; trata-se, mais precisamente, do pressuposto de que é possível
encontrar um senso de justiça comum e compartilhado, suficiente para justificar o
relativo favorecimento que inevitavelmente se acaba concedendo, na escolha dos
princípios de justiça, a esta ou àquela concepção da boa vida.
Como vimos acima, ao se falar de um senso de justiça comum e compartilhado,
está se pensando, essencialmente, no reconhecimento e observância de certas condições
formais da justiça, quer dizer, condições que necessariamente se impõem a todos os
sujeitos racionais, independentemente de suas respectivas (e variadas) concepções
(individualizadas) de boa vida. E, como também sugerimos acima, as condições formais
de justiça são, basicamente, três: coerência na aplicação dos princípios,
235

igualdade/simetria entre os indivíduos-legisladores e imparcialidade dos indivíduos-


legisladores. Para avaliar a contribuição que esses critérios podem dar para a decisão do
conflito acima imaginado, gostaria de começar com o critério da imparcialidade, para
depois comentar o critério da igualdade (para a decisão de conflitos fundamentais, o
critério da coerência é pouco relevante).
Tomemos então o critério formal da imparcialidade. Para garantir a
imparcialidade, podemos tentar nos servir do conhecido experimento do “véu da
ignorância”, proposto por J. Rawls.10 Para avaliar a justiça conteudística dos princípios,
devo imaginar-me numa situação em que eu (qualquer um) não sei qual é o meu projeto
de vida (não sei, por exemplo, se sou partidário de “mais liberdade e renda de 10

10
Gostaria de fazer duas observações sobre o passo que estou dando nesse momento da minha
argumentação. Em primeiro lugar, gostaria de destacar que estou usando o “véu da ignorância” como um
recurso conceitual que pode ser considerado representativo do contratualismo em geral, e não apenas do
contratualismo deontológico de Rawls. Para justificar esse uso, gostaria de repetir uma afirmação de
Harsanyi que já citei em meu primeiro capítulo – lembrando que Harsanyi representa um dos expoentes
mais importantes e influentes do utilitarismo. Trata-se de uma afirmação em que Harsanyi reconhece a
grande semelhança entre o “véu da ignorância” de Rawls e, por outro lado, o recurso conceitual que ele
próprio usou para satisfazer à condição formal da imparcialidade, a saber, o princípio da
“eqüiprobabilidade”. A passagem de Harsanyi é a seguinte (Morality and the Theory of Rational
Behaviour, p.47): “Meu modelo da eqüiprobabilidade foi inicialmente publicado em 1953, e desenvolvido
em 1955. Vickrey (outro utilitarista – A.S.B.) havia sugerido uma idéia semelhante, mas meu trabalho foi
independente do seu. Mais tarde, John Rawls, de novo de forma independente, propôs um modelo muito
semelhante, que ele chamou de ‘posição original’, baseada no ‘véu de ignorância’. Porém, enquanto meu
modelo serviu de base para uma teoria utilitarista, Rawls derivou conclusões fortemente não-utilitaristas
do seu próprio modelo. Mas a diferença não reside na natureza dos dois modelos, que são baseados em
suposições qualitativas praticamente idênticas. A diferença reside, sim, na análise de teoria da decisão que
é aplicada aos dois modelos.”
A segunda observação que gostaria de fazer é a seguinte. Nesse momento da argumentação,
passo por cima do fato de que, ao propor o véu da ignorância em Uma Teoria da Justiça, Rawls o
encaixou, não tanto no contexto das noções de razoabilidade e senso de justiça, mas, antes, no contexto da
noção de escolha racional, orientada pelo interesse próprio. Parece óbvio, com efeito, que o véu da
ignorância pode ser transferido, sem alterações significativas (nem perdas substantivas), do contexto da
deliberação/escolha racional para o contexto da deliberação/escolha razoável (ou seja,
deliberação/escolha guiada pelo senso de justiça, ou pela capacidade deliberativa da razoabilidade). Em
ambos os casos, trata-se, do mesmo modo e na mesma medida, de garantir a imparcialidade, quer dizer, a
impossibilidade de se transferirem para a escolha do legislador critérios avaliativos que expressem
interesse ou preferência por uma dada concepção de boa vida.
Nas próximas seções do presente capítulo, tentarei mostrar que, ao contrário do que pensa
Scanlon em Contractualism and utilitarianism, a distinção entre escolha “racional” e escolha
“razoável/justa” não é tão relevante assim – desde que a escolha racional esteja submetida à condição da
imparcialidade. Mais precisamente, tentarei mostrar que essa distinção não tem relevância, nem para a
compatibilidade do utilitarismo com o contratualismo, nem para a avaliação dos méritos desse
contratualismo utilitarista (ela na verdade tem muito mais relevância para a avaliação dos méritos do
contratualismo deontológico). Mesmo que o contratualismo recorra, como deve recorrer, à noção de
“razoabilidade”, em vez de à noção de “escolha racional”, isso ainda não decide a disputa entre
utilitarismo e deontologismo, uma vez que, ainda que as críticas de Harsanyi ao deontologismo de Rawls
tenham visado a “escolha racional” feita pelo deontólogo rawlsiano, quer dizer, ainda que Harsanyi tenha
vinculado a defesa do utilitarismo à crítica da “escolha racional” feita pelo deontólogo rawlsiano, - ainda
assim a posição utilitarista não é dependente da noção de escolha racional (orientada pelo interesse
próprio), mas pode, perfeitamente, recorrer à noção de decisão razoável/justa, tal como embutida no
procedimento contratualista proposto por Scanlon.
236

moedas”, ou, ao contrário, “menos liberdade e renda de 15 moedas). Colocado no


contexto da deliberação razoável (procedimentalmente justa), o objetivo do experimento
é claro: impedir que o sujeito transfira para a noção de razoabilidade, de modo sub-
reptício ou inconsciente, critérios de avaliação que em verdade pertencem à sua
concepção particular de boa vida (quer dizer, que em verdade expressam sua preferência
por uma dada concepção de boa vida). Supõe-se que, caso o experimento seja bem-
sucedido, produzir-se-á, justamente, aquele senso de razoabilidade e justiça acima
referido: comum e compartilhado, e suficiente para justificar o relativo favorecimento
que inevitavelmente se acaba concedendo, na escolha dos princípios de justiça, a esta ou
àquela concepção da boa vida.
Mas a operação do véu de ignorância não parece suficiente para produzir um
conceito único e unívoco de razoabilidade, ou seja, não parece suficiente para produzir
um senso de justiça comum e compartilhado. Tomemos, de novo, o conflito acima
imaginado entre, por um lado, uma concepção de boa vida que prefere o fornecimento
de (mais) liberdade ao fornecimento de uma renda de 15 moedas, e, por outro lado, uma
concepção de boa vida que prefere o fornecimento de uma renda de 15 moedas ao
fornecimento de (mais) liberdade. No caso desse conflito, com efeito, mesmo que se
tenha efetuado com sucesso a operação do véu da ignorância, duas possibilidades
parecem se apresentar com relação a quais seriam os melhores critérios de razoabilidade
e justiça. No caso desse conflito, em outras palavras, mesmo que o indivíduo consiga,
com êxito, colocar-se na posição de quem não conhece sua própria concepção de boa
vida, mesmo que ele não transfira para a noção de razoabilidade critérios de avaliação
expressivos do interesse em uma ou outra dessas duas concepções de boa vida, - ainda
assim duas possibilidades parecem se apresentar com relação a quais seriam os
melhores critérios de razoabilidade e justiça. E isso significa, precisamente, que o
critério formal da imparcialidade não é suficiente para decidir o conflito acima
imaginado, e precisa ser complementado por um critério conteudisticamente
determinado (ou seja, determinado por um valor “substantivo”).
A primeira dessas possibilidades enfatiza o peso do maior número. Mesmo que
eu (qualquer um) não saiba qual é o meu projeto de vida, é razoável (justo) admitir que
o projeto que conta com maior número de adeptos obtenha preferência sobre o projeto
adotado pelo menor número – supondo-se que se tenha chegado a admitir que, do ponto
de vista político (normativo), não é possível determinar que o primeiro projeto seja
menos (ou mais) relevante ou legítimo do que o segundo. A idéia básica é aqui a
237

seguinte: num contexto de conflito irredutível entre duas concepções de boa vida, e
supondo-se que não é possível afirmar que uma dessas concepções é mais (ou menos)
legítima do que a outra, ser imparcial consiste em escolher a concepção preferida pela
maioria – ser imparcial é orientar-se pelo valor substantivo “maior satisfação global
possível”. A implicação desse primeiro critério é a seguinte. Se a minha concepção de
boa vida é minoritária em relação à outra, eu (qualquer um) tenho de admitir que é
razoável (justo) que a concepção majoritária goze de prioridade, e eu tenho de aceitar –
seria irrazoável rejeitar – princípios de justiça que expressem essa prioridade.
Suponhamos que a minha concepção de boa vida – a minoritária – seja aquela que
prefere o pacote “10 moedas com mais liberdade”, e que a concepção majoritária seja
aquela que prefere o pacote “15 moedas com menos liberdade” (É óbvio que
poderíamos também supor o contrário com relação a qual seria a concepção
minoritária). Nesse caso, meu senso de razoabilidade e justiça manda que eu aceite um
princípio de justiça que implique uma escolha pelo segundo pacote, - mesmo que esse
princípio envolva prejuízo para o meu projeto de vida (ou seja, diminua minha
capacidade e oportunidade de perseguir meu projeto).11
Como foi sugerido acima, o critério do maior número está associado ao valor
substantivo da maior quantidade de satisfação (ou de frustração) na sociedade. Trata-se
do critério de decisão adotado pelo contratualismo utilitarista. O argumento que
embasa esse critério é o seguinte. Suponhamos que se tenha chegado a admitir que, do
ponto de vista político (normativo), não é possível determinar que um primeiro projeto
de vida seja mais (ou menos) legítimo do que um segundo, nem que o interesse no
primeiro projeto seja mais (ou menos) relevante do que o interesse no segundo – nem,
conseqüentemente, que a satisfação vinculada ao atendimento do primeiro interesse seja
mais (ou menos) relevante do que a satisfação vinculada ao atendimento do segundo.

11
No capítulo 4 de seu livro Political Equality (Princeton University Press, 1989), mais precisamente nas
páginas 84-91, Charles Beitz também apresenta um argumento de derivação da regra da maioria a partir
do critério formal da imparcialidade – é importante mencionar que Beitz não deseja endossar o
argumento, ao contrário, ele o apresenta para criticá-lo. No argumento apresentado por Beitz, entretanto, a
noção de imparcialidade é embutida, não no contexto do “senso de justiça”, mas no contexto da “escolha
racional” (orientada pelo interesse próprio). A regra da maioria é apresentada como a “escolha ótima” de
indivíduos racionais submetidos à condição restritiva da ignorância quanto a seus interesses e preferências
(p.88). Parece-me óbvio, entretanto, que a regra da maioria pode igualmente ser apresentada como a
“escolha justa” de indivíduos que, sendo razoáveis, não desejam dar peso indevido (ilegítimo), nem a seus
próprios interesses e preferências, nem aos de qualquer outro indivíduo. O próprio Beitz aponta para essa
última possibilidade, ao afirmar, um pouco antes de desenvolver sua própria crítica à pretensão de uma
justiça puramente procedimental, que “Muitas vezes se pensa que a imparcialidade exige que se dê igual
peso aos interesses de todos os envolvidos, e é possível que haja um sentido em que a teoria da
imparcialidade que nós esboçamos (aquela que desemboca na regra da maioria – A.S.B.) incorpora essa
idéia.” (P.89).
238

Nesse contexto de igual relevância, o único critério de escolha que pode ser considerado
imparcial (razoável e justo) é o critério numérico e quantitativo – nesse contexto, ser
imparcial só pode consistir em orientar-se pelo critério substantivo da maior satisfação
global possível. Se é inevitável que, em relação aos respectivos projetos de vida, alguns
cidadãos sejam favorecidos e outros desfavorecidos pelos princípios de justiça
escolhidos pela sociedade, e se todos previamente concordaram que não há um meio
razoável para decidir que um determinado projeto é melhor ou pior do que outro, a
razoabilidade (imparcialidade) manda que se escolha aquele princípio de justiça que
satisfaça ao maior número de cidadãos, ou seja, que produza a maior quantidade de
satisfação na sociedade (ou a menor quantidade de frustração). Dizer que eu “caí” no
grupo minoritário equivale a dizer que uma escolha que favoreça o meu grupo produz
menos satisfação do que uma escolha que favoreça o outro grupo. Ora, que justificativa
se poderia razoavelmente apresentar para escolher o princípio que produz a menor
quantidade de satisfação? – supondo-se que nós previamente concordamos que, nesse
caso, não há um meio razoável para determinar que a satisfação de uns seja
politicamente (no sentido normativo) mais (ou menos) relevante ou legítima do que a
satisfação de outros. Se eu (qualquer um) caí no grupo minoritário, é razoável (justo)
que nós sejamos desfavorecidos e frustrados. Se os outros, mesmo sendo em maior
número, fossem desfavorecidos e frustrados, e não nós, manifestar-se-ia aí uma
preferência irrazoável (injusta) pelo nosso projeto de vida e pela nossa satisfação.
Manifestar-se-ia aí, justamente, “falta de imparcialidade”.
A segunda possibilidade de se interpretar o critério formal da imparcialidade
consiste no seguinte argumento. Para você ser imparcial, você deve avaliar, não o peso
do maior número e da maior quantidade de satisfação, mas a significação por assim
dizer qualitativa das eventuais perdas, quando comparadas a possíveis não-perdas. 12
Desse segundo ponto de vista, o critério formal deve ser complementado pelo critério
substantivo da “consideração pelo perdedor”; pode-se dizer, por paradoxal que possa a
princípio soar, que “ser imparcial” consiste em impedir certos tipos de perda, ou, pelo
menos, impedir que certos tipos de perda se tornem mais profundas – trata-se das perdas
que têm origem na parcialidade dos deuses. Ser imparcial é ter consideração por esse

12
Ao apresentar essa segunda maneira de se interpretar o critério formal da imparcialidade, estou me
servindo, mais uma vez, das preciosas lições que T. Scanlon desenvolve em seu artigo Contractualism
and utilitarianism. Nas próximas seções (5.3.2 e 5.3.3), apresentarei a posição de Scanlon de forma mais
minuciosa.
239

tipo de perda, é ter consideração pelo indivíduo que foi (ou está sendo) prejudicado pela
parcialidade da Fortuna.
Nas próximas seções (5.3.2 e 5.3.3), tentarei expor essa posição de forma mais
precisa e detalhada – trata-se do critério de decisão adotado pelo contratualismo
deontológico. Gostaria, entretanto, de adiantar o seguinte. Na perspectiva desse
segundo critério (quer dizer, dessa segunda maneira de se dar conteúdo ao critério da
imparcialidade), o partidário do primeiro critério peca ao apresentar a questão em
termos de “inevitavelmente, uns perdem e outros ganham, e o problema reduz-se a
escolher quem deve perder e quem deve ganhar”. Na perspectiva desse segundo critério,
além disso, o partidário do primeiro critério peca ao argumentar que, para escolher
quem deve perder e quem deve ganhar, o cenário em que uns indivíduos (chamemo-los
de “A”) perdem e outros (chamemo-los de “B”) ganham deve ser comparado ao cenário
contrário, em que os primeiros indivíduos (“A”) ganham e os segundos (“B”) perdem,
para que se possa determinar qual dos dois cenários produz maior quantidade de
satisfação. Na perspectiva dessa segunda maneira de se interpretar a imparcialidade, a
maneira correta de apresentar a questão é: até que ponto/limite uns devem perder para
permitir o ganho de outros, e até que ponto/limite esses outros devem deixar de ganhar
para permitir a não-perda dos primeiros? Na perspectiva desse segundo critério,
conseqüentemente, o cenário a ser comparado ao cenário em que uns indivíduos perdem
e outros ganham deve ser descrito, não como um cenário em que os primeiros
indivíduos ganham e os segundos (os outros) perdem, mas, sim, como um cenário em
que os primeiros indivíduos deixam de perder e os segundos (os outros) deixam de
ganhar.
Assim, a tese de que a perda de um está vinculada ao ganho de um outro precisa
ser complementada pela tese de que a não-perda de um está vinculada ao não-ganho de
um outro. A partir disso, é preciso perceber a significação qualitativa de que se reveste o
cenário em que um perde e outro ganha, quando comparado ao cenário em que um não
perde e o outro não ganha (ou seja, deixa de ganhar). Dependendo do significado
qualitativo da sua perda, vinculado ao significado qualitativo daquilo que o outro
deixaria de ganhar para permitir sua possível não-perda, a perda que um indivíduo
sofreria para permitir o ganho do outro pode e deve ser considerada como “irrazoável,
injusta”. Assim, mesmo que a perda de um único indivíduo esteja vinculada aos ganhos
de muitos outros, isso não basta para justificar a afirmação de que seria irrazoável esse
indivíduo recusar essa perda (quer dizer, taxá-la de injusta). É preciso avaliar a
240

significação qualitativa de que essa perda se reveste ao ser comparada ao significado


qualitativo daquilo que esses (muitos) outros deixariam de ganhar para permitir uma
possível não-perda sua. Se, ao ser desse modo comparada, a perda do indivíduo revestir-
se da significação de “irrazoável”, é razoável que esse indivíduo a taxe de injusta (a
rejeite como injusta).
***
A esses dois modos de se dar conteúdo ao critério formal da imparcialidade
correspondem dois modos de se dar conteúdo ao critério formal da igualdade entre os
indivíduos-legisladores. Para entendermos esse ponto, entretanto, é preciso, antes de
mais nada, termos clareza quanto ao significado preciso da condição formal da
igualdade (entre os indivíduos-legisladores). Trata-se da seguinte idéia: a determinação
de quais são os princípios conteudisticamente justos não deve ser minimamente
influenciada pelos diversos tipos de desigualdade de poder que se manifestam na
sociedade. Ao entrarem na esfera normativa da deliberação quanto aos princípios de
justiça, quer dizer, ao assumirem o papel de indivíduos-legisladores, os participantes do
procedimento entram com o mesmo poder, eles se tornam iguais quanto ao poder – o
que não significa que eles se tornam estritamente iguais. A condição formal da
igualdade não equivale nem implica uma igualação substantiva dos indivíduos e de suas
demandas.13 Os participantes do procedimento contratualista deixam para trás todas as
espécies, ou todas as manifestações, de desigualdade de poder – mas não todas as
espécies de diferença. Na esfera normativa da deliberação política, decerto há diferenças
substantivas – há a figura do empreendedor rico e a figura do pobre conformado, a
figura do socialmente influente e a figura do desprovido de influência, a figura do
talentoso e a figura do desprovido de talento, a figura do pertencente à maioria e a
figura do pertencente a uma minoria. O que não há são as desigualdades de poder que,
na sociedade concreta, estão inevitavelmente vinculadas a essas figuras. Ao serem
admitidas na esfera normativa do procedimento contratualista, o que essas figuras

13
Esse ponto é importante, a fim de evitar certas críticas a meu ver equivocadas ao ideal de uma justiça
puramente procedimental. Charles Beitz, por exemplo, ataca esse ideal com a afirmação de que um
procedimento “formalmente” justo não consegue (não é capaz de) levar em consideração diferenças
significativas “na importância ou urgência dos interesses que estão em jogo na política” (Political
Equality, cap.4, p.90). A meu ver, a falha de uma justiça puramente procedimental reside, não no fato de
ela ser incapaz de levar em consideração as diferenças entre os indivíduos, e as diferenças entre suas
demandas, mas no fato de que, sem juízos “extra-procedimentais” a respeito de quais são os resultados
justos, ela não é capaz de determinar que valor se deve respectivamente atribuir àquelas demandas que ela
admite e reconhece como significativamente diferentes.
241

trazem consigo é, não o poder que contingentemente têm na sociedade concreta, mas as
razões que podem ser apresentadas (e reconhecidas) em favor de suas demandas.
Assim, se supusermos que um (cada) indivíduo-legislador representa uma
demanda presente na sociedade, concluiremos que, ao entrarem no procedimento, todas
as demandas são, num certo sentido, iguais; no sentido, mais precisamente, de que elas
entram no procedimento com o mesmo peso, quer dizer, elas não entram carregando
consigo o peso que respectivamente (e contingentemente) apresentam na sociedade
concreta – na medida, justamente, em que esse peso “social” está inevitavelmente
vinculado às desigualdades de poder que se manifestam na sociedade concreta. Em
outras palavras, se o peso de uma demanda expressa o poder do indivíduo (ou grupo)
que a apresenta, todas as demandas entram no procedimento com o mesmo peso – o que
não significa, mais uma vez, que o procedimento deva lhes atribuir a mesma relevância
ou valor. Uma das características do procedimento normativo do contratualismo é,
justamente, a necessidade de se estabelecer uma distinção entre, por um lado, o peso
que uma demanda empiricamente apresenta (que está ligado ao poder, em sentido
amplo, que seus proponentes empiricamente têm), e, por outro lado, a relevância ou
valor que se deve atribuir a ela (que está ligada às razões que podem ser apresentadas
em seu favor).
Assim, a demanda de um indivíduo talentoso decerto entra no procedimento
como uma demanda vinculada à figura do indivíduo talentoso, - quer dizer, ao entrar no
procedimento ela carrega consigo as razões que especificamente podem ser
apresentadas em seu favor; mas ela não carrega o peso que a sociedade concreta
contingentemente concede às demandas do indivíduo talentoso – na medida, justamente,
em que esse peso é determinado, não por razões propriamente ditas, mas pela simples
satisfação que os indivíduos talentosos empiricamente propiciam (ou tendem a
propiciar) à sociedade em geral. Isso não significa, evidentemente, que a provável
satisfação “concreta” não possa ser tomada como uma razão propriamente dita; é claro
que ela pode – mas não pode se tratar de uma identificação imediata, é preciso que haja
uma “assunção argumentativa”: a satisfação precisa, por assim dizer, ser “elevada” ao
plano das razões propriamente ditas.
O problema da condição formal da igualdade é, justamente, sua indeterminação
e insuficiência. A condição formal da igualdade diz o seguinte: ao entrarem no
procedimento, todas as demandas entram com o mesmo peso. Ora, isso significa que, ao
entrarem no procedimento, as demandas devem ser encaradas e discutidas com igual
242

consideração – nenhuma delas é desprezada ou privilegiada, em virtude de preconceitos


ou pré-juízos, quer dizer, conceitos e juízos prévios e alheios ao procedimento
argumentativo propriamente dito. O problema é que a condição da “igual consideração”
ainda não determina que relevância (valor) o procedimento deve conceder a cada uma
dessas demandas. Dar “conteúdo” à condição formal da igualdade (igual consideração)
consiste, justamente, em determinar por que critério a igual consideração vai se traduzir
no plano substantivo da relevância normativa; em outras palavras, trata-se de “encher” a
igual consideração com um critério que determine que valor se deve respectivamente
atribuir a cada uma das demandas em conflito.
E aqui, mais uma vez, se apresentam duas possibilidades. A primeira
corresponde à teoria da decisão assumida pelos utilitaristas. Desse primeiro ponto de
vista, tratar as demandas com “igual consideração” significa que o valor que se deve
atribuir a elas deve ser determinado, unicamente, pelo número de indivíduos que
respectivamente as expressam e apresentam, e, por conseguinte, pela quantidade de
satisfação que seu atendimento provavelmente propiciaria. O fundamento a partir do
qual se determina a relevância que deve ser atribuída a cada demanda consiste no fim de
se gerar na sociedade a maior quantidade de satisfação possível. Em outras palavras,
tratar as demandas com igual consideração significa que os conflitos entre elas devem
ser resolvidos pela regra da maioria. Em outras palavras ainda, significa julgá-las a
partir do princípio da igual consideração pelas preferências de cada indivíduo
(preferências por recursos básicos, como já foi visto). Com efeito, “igual consideração
pelas preferências de cada indivíduo” significa, justamente, que cada preferência, toda e
qualquer preferência (por recursos básicos), vale “um”, e não mais (nem menos) do que
isso, e que os conflitos políticos devem ser resolvidos por uma comparação dos valores
numéricos que se agregam a cada uma das demandas em conflito, a partir da pesquisa e
constatação das preferências de cada indivíduo.14

14
Em seu artigo Resposta a Habermas (Conferência IX de Political Liberalism), ao defender a tese de
que se deve abandonar o ideal de uma justiça puramente procedimental, Rawls faz a seguinte afirmação:
“A descrição de Habermas do procedimento de raciocínio e argumentação nos discursos ideais é
incompleta. Não fica claro que formas de argumentação podem ser usadas, mas essas têm grande
importância na determinação do resultado. Deveríamos pensar, como ele parece sugerir, que se deve dar,
no discurso ideal, igual consideração aos interesses de cada pessoa? Quais são os interesses relevantes?
Ou todos os interesses devem ser contados, como algumas vezes se faz ao se aplicar o princípio da igual
consideração? Isso poderia resultar no princípio utilitarista de satisfazer o maior saldo de
interesses.” (Political Liberalism, p.430 – o grifo é meu).
Sem entrar na procedência da crítica a Habermas, é óbvio que Rawls está enfatizando aqui o fato
de que o princípio (formal, procedimental) da igual consideração pode perfeitamente ser interpretado em
termos utilitaristas. É óbvio, por outro lado, que ele dá por certo que esse princípio também pode ser
interpretado em termos deontológicos. Isso significa, precisamente, que a condição da igualdade formal,
243

A segunda possibilidade de se dar conteúdo à condição formal da igualdade


corresponde, obviamente, à teoria da decisão assumida pelos deontólogos. Desse
segundo ponto de vista, o fundamento a partir do qual se determina a relevância que
deve ser atribuída a cada demanda consiste no fim de se preservar (e eventualmente
restabelecer) a maior igualdade substantiva possível – trata-se do fim de preservar (e
eventualmente restabelecer) a integridade, equilíbrio e harmonia da rede da cooperação
social, evitando o aprofundamento das perdas e desigualdades oriundas da parcialidade
da Fortuna. Tratar indivíduos e demandas com “igual consideração” significa
compensar desigualdades arbitrárias e injustificadas, concedendo, para tanto, valor
diferenciado às demandas dos “perdedores”, mesmo que, do ponto de vista do número
de indivíduos e da quantidade de satisfação, elas tenham um peso relativamente
pequeno. Em outras palavras, “tratar os indivíduos com igual consideração” deve ser
entendido em termos de igual consideração pela dignidade de cada pessoa, ou, mais
precisamente, em termos de valorização da igual dignidade de cada pessoa – não se
trata de aumentar ou diminuir a dignidade do indivíduo, como se se tratasse de um mero
recurso de que ele pode se servir, mas de preservar (e eventualmente restabelecer) a
igual dignidade a que cada um tem direito, a qual pode ser posta em risco (e
eventualmente aviltada) por certos tipos de privação e certos tipos de desigualdade.

5.3.2) Racionalidade ou Razoabilidade?

Antes de desenvolver uma reflexão um pouco mais aprofundada sobre o


significado desses dois modos de interpretar as condições formais da justiça, - e na
verdade para preparar tal reflexão, gostaria de chamar atenção para o fato de que se está
tratando aqui de condições e critérios da capacidade da razoabilidade, ou do senso de
justiça. Em outras palavras, para configurar o senso de justiça que deve ser usado no
procedimento contratualista, apresentam-se duas possibilidades; mas isso implica,
justamente, que o procedimento contratualista está sendo concebido e montado com
base na capacidade da razoabilidade, - e não, como algumas vezes ocorreu, a partir da

por “procedimentalmente” justa que seja, não é capaz de determinar um resultado preciso, e pode levar a
um resultado que nós tenderíamos a considerar “injusto” – o que nos levaria a afirmar que o próprio
procedimento, na medida em que levou a um resultado injusto, é injusto. É por isso que se deve
abandonar a idéia de uma justiça puramente procedimental, e abraçar a idéia de que a justiça do
procedimento está inextricavelmente ligada à justiça dos resultados a que o procedimento leva.
Sobre o tema das relações entre justiça do procedimento e justiça dos resultados, ver também
Cohen, Joshua: Pluralism and Proceduralism, in Chicago-Kent Law Review, vol.69, 1994, p.589-618.
244

capacidade da racionalidade, orientada pelo interesse próprio, e simplesmente


restringida por certas condições externas, representativas da justiça, como a
imparcialidade.
Esse ponto é importante, pela seguinte razão. Ao apresentar o critério de
razoabilidade assumido pelos deontólogos, eu me servi, como disse acima, das
preciosas lições que T. Scanlon desenvolve em seu artigo Contractualism and
utilitarianism. Só que Scanlon, ao defender esse critério, vincula-o de forma direta e
estreita à capacidade deliberativa da razoabilidade, o que dá a impressão de que se trata
da única possibilidade que resta quando se obtém maior clareza sobre o ponto de vista
da razoabilidade. Em outras palavras, o texto de Scanlon sugere que o referido critério
representa a única possibilidade que se tem para configurar a capacidade deliberativa da
razoabilidade, em vez de representar, como eu próprio estou pretendendo, uma segunda
possibilidade. Nesse artigo, mais precisamente, Scanlon defende duas teses. Em
primeiro lugar, que o procedimento contratualista deve ser concebido e montado a partir
da noção de deliberação razoável e justa, e não, como algumas vezes aconteceu, a partir
da noção de escolha racional, orientada pelo interesse próprio. Em outras palavras, trata-
se da tese de que uma compreensão adequada do procedimento contratualista estrutura-
o a partir da capacidade da razoabilidade, e não a partir da capacidade da racionalidade
(submetida a certas condições externas, como a imparcialidade). Essa tese me parece
inteiramente acertada. Em segundo lugar, Scanlon apresenta a tese de que a única
maneira de se configurar a capacidade da razoabilidade consiste em vinculá-la ao
critério da “consideração pelos perdedores” – essa tese me parece equivocada. Acredito
que a capacidade da razoabilidade pode ser configurada de duas maneiras, uma maneira
deontológica (centrada na “consideração pelos perdedores”) e uma maneira utilitarista
(centrada na “maximização da satisfação”).
***
Analisemos então o artigo de Scanlon. Para defender seu ponto, Scanlon
contrapõe a compreensão adequada do procedimento contratualista a uma compreensão
a seu ver inadequada, que ele atribui tanto ao utilitarista Harsanyi quanto ao Rawls de
Uma Teoria da Justiça. 15 Nessa compreensão inadequada, o eixo do procedimento
consiste na escolha racional do indivíduo que se orienta pelo interesse próprio. Nessa
compreensão, em outras palavras, a escolha dos princípios de justiça é apresentada
como uma escolha feita por um único indivíduo, orientado pelo interesse próprio. É
15
Cf. Scanlon, Contractualism and utilitarianism, p.120-128.
245

óbvio que, para ocupar a posição de legislador, esse indivíduo precisa atender, de modo
perfeito, não apenas às condições da racionalidade, mas também às condições da justiça,
entendidas como condições que restringem, externamente, a busca racional do interesse
próprio. Dentre essas condições “externas” da justiça, avulta, precisamente, a condição
da imparcialidade. Assim, o indivíduo-legislador precisa poder ser visto como
expressão perfeita da racionalidade e da imparcialidade.
Suponhamos que um determinado princípio se apresente como candidato à
posição de lei universal. Enquadrado nas condições da racionalidade e da
imparcialidade, de que modo o indivíduo legislador deveria raciocinar, para avaliar se
deveria escolher esse princípio como lei universal – lembrando que ele se orienta pelo
interesse próprio? Consideremos o indivíduo-legislador retratado em Uma Teoria da
Justiça. Lembremos em primeiro lugar que, para enquadrar-se nas condições da
imparcialidade, esse indivíduo está submetido ao véu da ignorância – ele não conhece
nem seu projeto de vida, nem sua posição na estrutura social, nem seus dotes físicos,
mentais e psicológicos.
Partindo dessa questão, quer dizer, da questão assim formulada, e passando por
cima de dificuldades interpretativas mais específicas16, não parece incorreto atribuir a
Uma Teoria da Justiça a tese de que esse indivíduo deve raciocinar como se estivesse
no lugar do indivíduo que, tendo sido o mais prejudicado pelas casualidades naturais e
sociais, pode ser classificado como “o perdedor”. A posição de perdedor pode ser
preenchida de diversas formas, dependendo da casualidade que se focalize. Para

16
Essas dificuldades dizem respeito ao lugar, função e significado que se pode atribuir ao critério
maximin em Uma Teoria da Justiça. Em princípio, ao ser tomado como critério da escolha racional, o
critério maximin fica restrito ao âmbito da questão sobre a distribuição da renda, ou seja, fica restrito à
escolha do “princípio da diferença”, e não desempenha nenhuma função na escolha do princípio da
prioridade das liberdades. Entretanto, o primeiro argumento que Rawls apresenta para a prioridade das
liberdades em The basic liberties and their priority representa uma clara aplicação do critério maximin,
onde o lugar do perdedor é ocupado pelas concepções de boa vida socialmente minoritárias (Conferir
Political Liberalism, p.311-312).
O ponto que estou tentando defender é o seguinte: partindo das críticas que Scanlon faz ao procedimento
contratualista baseado na noção de escolha racional, é possível “alargar” o critério maximin, de modo a
poder traduzir seu sentido fundamental, do contexto dos critérios de racionalidade para o contexto dos
critérios de razoabilidade. A meu ver, com efeito, as críticas de Harsanyi ao critério maximin como
critério de escolha racional são irrefutáveis, e tanto Rawls quanto Scanlon acabam admitindo isso.
Entretanto, mesmo que o critério maximin deva ser abandonado como critério de escolha racional, talvez
seu sentido último possa ser preservado, e transplantado para o contexto da noção de razoabilidade. Para
isso, entretanto, é preciso interpretá-lo de uma maneira um tanto alargada, a saber: já em Uma Teoria da
Justiça, o sentido último do critério maximin reside na recomendação de que é preciso considerar o
significado qualitativo das perdas do perdedor. E essa consideração pelo perdedor está referida à ênfase
na dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos, ao passo que as considerações
predominantemente quantitativas vinculadas aos critérios de racionalidade e razoabilidade defendidos
pelos utilitaristas referem-se à dimensão “realista” da competição dos cidadãos por recursos escassos.
Discutirei esse argumento na próxima nota, e também no corpo principal do trabalho.
246

mencionar algumas possibilidades, o perdedor pode ser o indivíduo a quem a natureza


concedeu menos talento e habilidade; pode ser aquele que a história colocou numa
posição de inferioridade econômica; pode ser aquele que a história colocou num grupo
minoritário – e assim por diante. 17 Raciocinando a partir da perspectiva/lugar do
perdedor, o indivíduo legislador chegaria à seguinte conclusão: caso o princípio em
questão lhe acarrete perdas ou não-ganhos que ele poderia evitar com princípios
alternativos, ele deve rejeitar o princípio em questão e escolher um princípio alternativo
– e aqui é preciso lembrar que ele se orienta, primordialmente, pelo interesse próprio (e
não pelo desejo de entrar num acordo razoável com outros indivíduos). Encaixada no
contexto mais geral das possibilidades argumentativas do método contratualista, Uma
Teoria da Justiça pode ser descrita em termos da seguinte idéia básica: a escolha mais
racional é aquela que procura aliviar e melhorar a sorte do perdedor “casual” (ou seja,
do indivíduo ou grupo que foi desfavorecido pelas casualidades da história),
protegendo-o do poderio que os ganhadores casuais tendem a exercer, reforçar e
aumentar.

17
Como disse na nota anterior, para encaixar o critério maximin no contexto da minha discussão nesse
momento, quer dizer, para encaixá-lo no contexto do critério de razoabilidade que Scanlon defende
mediante reflexão sobre as falhas que Harsanyi apontou no critério de racionalidade envolvido em Uma
Teoria da Justiça, - para fazer isso, estou efetuando um alargamento do critério maximin, tal como
exposto no primeiro livro de Rawls. Ao ser desse modo alargado, o critério maximin passa a ficar
envolvido, não apenas na defesa do “princípio da diferença” (referido, grosso modo, à distribuição de
renda), mas também na defesa do princípio da prioridade das liberdades, prescrevendo que é preciso levar
em consideração o interesse dos grupos minoritários – dos “perdedores numéricos” – nas liberdades, e
que tal interesse não pode ser suplantado, apenas, pelo peso quantitativo da satisfação dos “ganhadores
numéricos” (os grupos socialmente majoritários).
Mas, e se o grupo minoritário (o dos perdedores numéricos) for aquele que prefere o pacote “menos
liberdade e renda de 15 moedas”? Ao recomendar consideração pelos perdedores, o critério maximin
implicaria nesse caso restrição da liberdade, para permitir um aumento de 5 moedas na renda? Ora, se
interpretarmos o critério maximin em termos de oposição às considerações predominantemente
quantitativas dos critérios de racionalidade e razoabilidade defendidos pelos utilitaristas, veremos que a
coisa não é bem assim. Antecipando um argumento que será exposto no corpo principal do trabalho,
poderíamos defender a seguinte interpretação do critério maximin. Contra as considerações quantitativas
do utilitarismo, é preciso considerar o significado qualitativo das perdas do perdedor. E considerar o
significado qualitativo das perdas do perdedor vincula-se à ênfase na dimensão normativa da cooperação
entre os cidadãos, ao passo que as considerações predominantemente quantitativas vinculam-se à ênfase
na dimensão “realista” da competição dos cidadãos por recursos escassos. No conflito entre “liberdade” e
“renda”, a questão fundamental não é quantos preferem mais liberdade e quantos preferem mais renda. A
questão é que, em princípio, a preferência por “liberdade” vincula-se mais à dimensão normativa da
cooperação entre os cidadãos, ao passo que a preferência por “renda”, em princípio, vincula-se mais à
dimensão realista da competição dos cidadãos por recursos escassos. Se o sentido último do critério
maximin reside na ênfase na dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos (contra a ênfase na
dimensão realisticamente competitiva associada às considerações quantitativas do utilitarismo), então,
mesmo que os partidários da renda sejam numericamente inferiores, sua posição de “perdedores
numéricos” não tem relevância política – na medida, justamente, em que a relevância política da
consideração pelo perdedor está vinculada à ênfase na dimensão normativa da cooperação entre os
cidadãos, a qual sugere que a preferência por renda deve ceder o passo à preferência por liberdade.
247

Ora, diante dessa tese acerca da escolha racional do indivíduo imparcial, o


utilitarista Harsanyi levantou a seguinte objeção: esse modo de escolher é, na verdade,
absolutamente irracional, ou seja, viola os postulados básicos da escolha racional. Sua
irracionalidade pode ser descrita da seguinte maneira. Raciocinar dessa forma equivale a
atribuir uma probabilidade absurdamente grande à eventualidade de se cair numa única
posição da estrutura social, a posição, justamente, do perdedor – qualquer que seja o
modo como ela esteja sendo tomada ou preenchida. E atribuir essa espécie de
probabilidade é absolutamente irracional.18 Para atender às condições da racionalidade
(e, simultaneamente, da imparcialidade), a escolha dos princípios deve adotar o
pressuposto da “eqüiprobabilidade”: deve-se atribuir igual probabilidade a todas as
eventualidades, quer dizer, à eventualidade de se cair em qualquer uma das inúmeras
posições da estrutura social – seja a do perdedor (ou seja, o que ficou em último lugar),
seja a do vencedor, seja qualquer uma das inúmeras posições intermediárias. E Harsanyi
conclui: adotando esse pressuposto, o indivíduo racional (que se orienta pelo interesse
próprio) vai escolher o princípio que assegura o maior nível de satisfação (ou de
utilidade) média, ou seja, vai escolher o princípio da utilidade média.19
Defrontado com o caráter aparentemente irrefutável das críticas, correções e
conclusões que o utilitarista Harsanyi apresentou em relação ao modelo argumentativo
desenvolvido em Uma Teoria da Justiça, Scanlon sustenta que é preciso reconhecer que
havia algo de fundamentalmente errado na compreensão do procedimento contratualista
adotada no primeiro livro de Rawls. E ele localiza o erro: o erro reside no fato de que o
eixo do procedimento foi definido em termos de escolha racional de um único
indivíduo, movido pelo interesse próprio e, ao mesmo tempo, imparcial. E Scanlon
corrige o erro: o eixo do procedimento deve ser definido em termos de acordo razoável
entre diversos indivíduos, movidos, justamente, pelo desejo de entrar num acordo que
possa (e deva) ser considerado razoável (justo) por todos.

18
Conferir Harsanyi, Can The Maximin Principle Serve as a Basis for Morality? A Critique of John
Rawls’s Theory (1975), in Harsanyi, John: Essays in Ethics, Social Behaviour, and Scientific
Explanation. Dordrecht, Reidel Pub. Co., 1976, p.37-63.
É verdade que Rawls havia tentado argumentar que o indivíduo racional não deveria usar
probabilidades na escolha efetuada na posição original. Mas Harsanyi demole esse argumento com
críticas a meu ver irrefutáveis – desde que se tome a escolha racional como uma escolha orientada pelo
interesse próprio. Ver, a esse respeito, a seção 6 do referido artigo de Harsanyi (p.46-48). Tendo em vista
os propósitos da minha argumentação nesse momento, posso passar por cima dos detalhes desse último
debate, que envolveu diversos comentadores da obra de Rawls.
19
Tendo em vista os propósitos da minha argumentação nesse momento, posso passar por cima dos
detalhes do raciocínio de Harsanyi para essa conclusão.
248

A partir desse novo eixo, a idéia básica de Uma Teoria da Justiça assume um
sentido completamente diferente. Em outras palavras, embora os candidatos a “lei
universal” continuem a ser avaliados desde o ponto de vista do perdedor, essa forma de
avaliá-los assume um significado completamente diferente. Não se trata mais de dizer
que, para escolher qual o princípio correto, o indivíduo imparcial e racional (movido
pelo interesse próprio) deve raciocinar a partir da eventualidade de cair na posição do
perdedor “casual”, de modo a aliviar e melhorar sua sorte. Trata-se sim de dizer que,
para decidir se um determinado princípio poderia ser razoavelmente aceito por todos os
concernidos, o indivíduo razoável deve avaliá-lo desde o ponto de vista dos que
perderiam com sua escolha, para avaliar se suas perdas são irrazoáveis (injustas) ou não.
Com isso, a posição de “perdedor” se torna muito mais complexa. Em primeiro
lugar, o perdedor passa a consistir numa mistura balanceada do “perdedor/ganhador
casual” (ou seja, aquele que foi des/-favorecido pelas contingências da natureza,
sociedade e história) e do “perdedor escolhido” (ou seja, aquele que perde com a
escolha de um determinado princípio político). Chamemos essa figura de “perdedor
combinado”. Mais precisamente, o “perdedor combinado” sempre é o “perdedor
escolhido”, mas o significado qualitativo da sua perda depende do fato de se ele é,
também, um “perdedor casual”, ou se, ao contrário, ele é um “ganhador casual”, alguém
que foi favorecido pelas contingências da vida. Assim, se o perdedor combinado é uma
mistura de perdedor escolhido com ganhador casual, ele é menos perdedor do que
aquele que consiste numa mistura de perdedor escolhido com perdedor casual. Para
avaliar se as perdas dos perdedores (escolhidos) são injustas ou não, é preciso verificar
se elas são compensadas ou, ao contrário, agravadas pelas contingências da história.
Continua a valer a tese de que, em princípio, a melhor escolha (que agora é definida
como a escolha mais razoável) é aquela que alivia a sorte dos perdedores casuais; - só
que, agora, essa tese entra, não no contexto da escolha de um único indivíduo, mas no
contexto de um acordo entre diversos indivíduos, o que significa que, caso sejam
perdedores escolhidos, os ganhadores casuais também podem apresentar suas demandas
de perdedores, temperando-as, de forma razoável, com o fato de serem ganhadores
casuais.
Em segundo lugar – e essa é a conseqüência mais importante da substituição da
noção de escolha racional pela noção de acordo razoável, - o significado qualitativo das
perdas do perdedor escolhido (ou seja, o significado político da posição do perdedor)
associa-se à ênfase na dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos, contra a
249

ênfase na dimensão realista da competição dos cidadãos por recursos escassos. A


relevância política da figura do perdedor depende da tese de que, numa sociedade que se
orienta pela dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos, e não pela dimensão
realista da competição dos cidadãos por recursos escassos, é preciso ter consideração
pelas perdas dos perdedores, de modo a preservar a rede da cooperação, quer dizer, de
modo a preservar um lugar nessa rede para os perdedores. O perdedor não é,
simplesmente, o perdedor numérico/quantitativo; o perdedor é aquele que, numa
sociedade orientada pela dimensão da competição dos cidadãos por recursos escassos,
tende a ser esmagado pelo peso da “quantidade de satisfação” que ele, cada vez mais,
revela-se incapaz de veicular. Trata-se da figura que tende a ser excluída da rede e dos
ganhos da cooperação – o que acaba reforçando a orientação pela dimensão da
competição dos cidadãos por recursos escassos. Para manter viva a dimensão normativa
da cooperação entre os cidadãos, é preciso, na medida do possível, incluir (e manter) os
perdedores na rede e nos ganhos da cooperação, abafando, na medida do possível, o
impulso competitivo daqueles que, cada vez mais, tenderiam a ganhar.
O vínculo entre a figura do perdedor e a ênfase na dimensão normativa da
cooperação entre os cidadãos, contra a ênfase na dimensão realista da competição dos
cidadãos por recursos escassos, - tal vínculo implica reflexão sobre o bem/recurso que o
perdedor vai (eventualmente) perder com a escolha de um dado princípio político. Se
esse bem/recurso está mais associado à dimensão realista da competição dos cidadãos, a
perda do perdedor tem uma relevância política menor do que no caso em que o
bem/recurso (em questão) está mais associado à dimensão normativa da cooperação
entre os cidadãos. Por exemplo, no conflito entre “liberdade” e “renda”, “renda” está em
princípio mais associada à dimensão da competição por recursos escassos, ao passo que
“liberdade” está em princípio mais associada à dimensão normativa da cooperação entre
os cidadãos – com efeito, “liberdade” em princípio vincula-se a atividades e realizações
que são essenciais a essa dimensão, como (livre) reflexão, (livre) intercâmbio de
informações, experiências e vivências, (livre) diálogo e discussão, (livre) associação
entre pessoas que se reconhecem como afins. Tendo em vista a discussão que
desenvolverei a seguir, gostaria de antecipar a seguinte formulação. Devido à sua
grande relevância política, ligada à sua significação para a dimensão normativa da
cooperação entre os cidadãos, a perda de “liberdade” deve em princípio ser classificada
como uma perda propriamente dita; em contrapartida, pelo fato de sua relevância
250

política ser em princípio menor, a perda de “renda” deve em princípio ser classificada,
não como uma perda propriamente dita, mas, antes, como um “não-ganho”.

5.3.3) Decisão de Conflitos e Intuições do Resultado Justo.

A tese de que Scanlon parte para proceder à avaliação da razoabilidade de um


princípio é a seguinte: os que mais perderiam com o princípio são, justamente, os que
mais têm razões para rejeitá-lo. É preciso então avaliar se essas razões são razoáveis,
legítimas, justas – ou não. Dizer que elas são razoáveis (legítimas) equivale a dizer que
não seria irrazoável esses perdedores rejeitarem o princípio em questão – e isso significa
que não se pode afirmar que esse princípio poderia ser razoavelmente aceito por todos
os concernidos. Precisa-se então de um critério que permita decidir se as razões que os
(eventuais) perdedores poderiam invocar para rejeitar um determinado princípio são ou
não são razoáveis. É óbvio que esse critério envolve uma comparação entre as razões
dos (eventuais) perdedores e, por outro lado, as razões dos (eventuais) ganhadores, para
se decidir quais razões são mais razoáveis.
É aqui, precisamente, que Scanlon introduz o segundo critério de razoabilidade
acima referido. Embora ele não se expresse exatamente nesses termos, acredito que não
seria incorreto atribuir-lhe o seguinte argumento. 20 Numa compreensão adequada do
procedimento contratualista, para decidir se um determinado princípio poderia ser
razoavelmente aceito por todos os concernidos, o indivíduo razoável deve avaliá-lo
desde o ponto de vista dos que mais perderiam com sua eventual adoção, para decidir se
as razões desses (eventuais) perdedores são razoáveis ou não. Ora, - e aqui entra a parte
controvertida do argumento, a única possibilidade razoável de avaliar a legitimidade das
razões dos perdedores (para rejeitarem o princípio) consiste em comparar o significado
qualitativo da sua perda com o significado qualitativo daquilo que os outros deixariam
de ganhar para evitá-la. Admitindo-se que a razoabilidade implica consideração pelos
eventuais perdedores, quer dizer, implica uma tentativa de avaliar se suas perdas devem
ou não ser consideradas irrazoáveis (injustas), é preciso reconhecer que a única maneira
razoável de fazer essa avaliação consiste em comparar o significado qualitativo dessas
perdas com o significado qualitativo daquilo que os outros deixariam de ganhar para
evitá-las.

20
Ver, por exemplo, Scanlon, Op. Cit., p.123.
251

Parece-me entretanto que, mesmo que os utilitaristas aceitem e adotem não só o


procedimento contratualista, mas também a interpretação desse procedimento que
Scanlon julga adequada, segundo a qual, em primeiro lugar, tal procedimento deve
apoiar-se no senso de justiça, e não na capacidade da racionalidade, e, em segundo
lugar, o senso de justiça envolve uma avaliação (razoável) das razões dos eventuais
perdedores, comparadas às razões dos eventuais ganhadores, - mesmo que os
utilitaristas assumam esses postulados, eles teriam todo o direito de discordar da tese de
que o critério proposto por Scanlon constitui a única maneira razoável de avaliar a
legitimidade das razões dos perdedores, em comparação com as razões dos ganhadores.
Com efeito, eles teriam todo o direito de invocar o primeiro critério de razoabilidade
acima referido. Se todos os concernidos concordaram que, do ponto de vista político
(normativo), não é possível determinar que um primeiro projeto de vida é mais (ou
menos) relevante ou legítimo do que um segundo, nem que o interesse no primeiro
projeto é mais (ou menos) relevante ou legítimo do que o interesse no segundo, nem,
conseqüentemente, que a satisfação vinculada ao atendimento do primeiro interesse é
mais (ou menos) relevante do que a satisfação vinculada ao atendimento do segundo, -
se tudo isso é verdade, então, mesmo que avaliemos a questão desde o ponto de vista
dos perdedores, é razoável exigir deles o reconhecimento de que, se eles são
minoritários, sua perda é razoável, legítima, justa. No contexto normativo definido pela
igual relevância, tanto dos projetos de vida quanto dos recursos que são publicamente
reconhecidos como úteis para esses projetos, é razoável exigir dos (eventuais)
perdedores o reconhecimento de que, se eles são minoritários, eles não têm boas razões
para taxar sua perda de “injusta”. Se é inevitável que, com relação à capacidade e
oportunidade que os diferentes grupos vão ter de perseguirem seus respectivos projetos
de vida, com relação, em outras palavras, ao interesse que esses grupos têm em seus
respectivos projetos de vida, - se é inevitável que um grupo saia perdendo e um outro
ganhando, e se não há um meio para determinar que o interesse de um grupo é mais (ou
menos) relevante ou legítimo do que o do outro, o único critério razoável de escolha é o
critério quantitativo. Qual o maior grupo? Que escolha produziria maior quantidade de
satisfação na sociedade?
Diante desse posicionamento dos contratualistas utilitaristas, acredito que o
contratualista deontológico reconheceria que, para que sua posição faça pleno sentido, é
preciso complementar a idéia de que a perda de A está vinculada ao ganho de B,
acrescentando-lhe, como complemento indispensável, a idéia de que a não-perda de A
252

está vinculada ao não-ganho de B. Com efeito, se você não efetua essa


complementação, você é levado a uma perspectiva do tipo “ou perde ou ganha” (“É
inevitável que um grupo saia perdendo e um outro ganhando”). Nessa perspectiva, “A
não perde” fica entendido como “A ganha”, e “B não ganha” fica entendido como “B
perde”. Nessa perspectiva, conseqüentemente, a alternativa ao cenário em que A perde e
B ganha só pode ser descrita como um cenário em que A ganha e B perde. Ora, no
contexto dessa descrição dos cenários alternativos, a maneira mais razoável de escolher
entre eles consiste, de fato, numa avaliação quantitativa – trata-se de medir a quantidade
de satisfação (ou frustração) associada, respectivamente, às posições “A” e “B”.
Para que se possa dar pleno sentido à tese de que, para escolher entre os cenários
alternativos, deve-se proceder a uma avaliação qualitativa, e não quantitativa, - quer
dizer, para que se possa dar pleno sentido à tese de que é preciso proceder a uma
avaliação do significado qualitativo dos dois cenários alternativos, esses cenários devem
ser descritos em termos, respectivamente, de “A perde e B ganha” e “A não perde e B
não ganha” (e não “A ganha e B perde”). É possível, com efeito, dizer que, numa
avaliação qualitativa dos cenários alternativos, a questão que nos orienta deve ser
descrita em termos qualitativos, a saber: a perda de A deve ou não ser considerada
qualitativamente irrazoável? E, para conferir pleno sentido a essa pergunta, podemos
acrescentar-lhe os seguintes esclarecimentos: dizer que a perda de A é qualitativamente
irrazoável equivale a dizer, não que A deve ganhar, mas, sim, que A não deve perder; de
modo correspondente, dizer que o ganho de B, quando confrontado com a perda de A, é
qualitativamente irrazoável – dizer isso equivale a dizer, não que B deve perder, mas,
sim, que B não deve ganhar.
E o contratualista deontológico poderia completar seu argumento da seguinte
maneira. Na perspectiva do “ou perde ou ganha”, qualquer cenário, inclusive o cenário
politicamente justo, será, inevitavelmente, um cenário em que um perde e o outro
ganha. Trata-se apenas de decidir quem deve perder e quem deve ganhar. Nessa
perspectiva, a única maneira (razoável) de decidir isso consiste, de fato, numa avaliação
quantitativa. Mas, se forem bem entendidos, a razoabilidade e o senso de justiça
ordenam que, antes de aceitar a tese de que o cenário politicamente justo é,
inevitavelmente, um cenário em que um perde e o outro ganha, tentemos encontrar um
cenário que possa ser descrito em termos de “um não perde e o outro não ganha”. Mais
precisamente, se forem bem entendidos, a razoabilidade e o senso de justiça ordenam
que, ao avaliar os cenários alternativos do ponto de vista da justiça política, tentemos
253

encaixar um deles na descrição “um não perde e o outro não ganha” – afinal de contas,
faz parte da razoabilidade e do senso de justiça o reconhecimento de que a justiça
política está (e sempre esteve) associada a uma exigência normativa de igualdade,
equilíbrio e harmonia, que representam o sentido fundamental da cooperação entre as
pessoas.
Diante desse movimento do contratualista deontológico, o contratualista
utilitarista poderia lançar o seguinte desafio: o que você quer dizer com “um não perde e
o outro não ganha”? De que modo você aplicaria essa fórmula ao exemplo de dois
grupos que preferem, respectivamente, “(mais) liberdade e renda de 10 moedas” e
“(menos) liberdade e renda de 15 moedas”? E o utilitarista continuaria com seu desafio:
você poderia tentar dizer que “um não perde e o outro não ganha” tem o significado de
“um não perde um bem mais precioso (uma liberdade, por exemplo), e o outro não
ganha um bem menos precioso (um aumento de 5 moedas na renda, por exemplo)”. E
você, deontólogo, poderia tentar explicar essa última fórmula dizendo o seguinte: se os
eventuais ganhadores (os partidários da renda) olharem a questão do ponto de vista
daqueles que sairão perdendo (o grupo da liberdade), eles (os próprios ganhadores)
reconhecerão que, comparando-se o significado qualitativo que o bem perdido (a
liberdade) tem para os perdedores com, por outro lado, o significado qualitativo que o
bem não-ganho (a renda) tem para os que deixariam de ganhá-lo, o primeiro significado
revela-se “mais significativo”.
Se você disser isso, continua o utilitarista, eu pelo meu lado digo: ao
eliminarmos a possibilidade de determinar que um projeto de vida é mais (ou menos)
relevante ou legítimo do que outro, nós simultaneamente eliminamos a possibilidade
desse tipo de comparação dos “significados qualitativos” que os bens têm para os
respectivos interessados. A única comparação possível é quantitativa: qual a medida dos
respectivos interesses? E isso implica: qual a quantidade de satisfação que o
atendimento dos respectivos interesses geraria? Se acatarmos o “fato do pluralismo”,
torna-se impossível dizer que o significado qualitativo que o bem perdido tem para os
perdedores é “mais significativo” do que o significado qualitativo que o bem não-ganho
tem para os que deixariam de ganhá-lo. No contexto do respeito ao “fato do
pluralismo”, não existe uma perspectiva interpessoal que permita esse tipo de
comparação qualitativa – as únicas comparações interpessoais possíveis são as de
natureza quantitativa. Assim, ao dizer que o significado qualitativo que o bem perdido
tem para os perdedores é “mais significativo” do que o significado qualitativo que o
254

bem não-ganho tem para os que deixariam de ganhá-lo, você no fundo está expressando
sua preferência qualitativa pelos perdedores, quer dizer, pela concepção de boa vida dos
perdedores – algo que você mesmo tinha concordado que não podia ser feito.
Em resposta a esse movimento do contratualista utilitarista, o contratualista
deontológico poderia dizer o seguinte. Talvez seja verdade que minha posição implica
preferência por uma certa concepção de boa vida. Mas trata-se de uma preferência
indireta, que expressa uma preferência anterior, essa sim fundamental. E essa
preferência fundamental refere-se, não à concepção de boa vida que os indivíduos
devem perseguir em sua existência não-política, mas à visão de justiça que os cidadãos
e a polis devem adotar e perseguir. Essa preferência fundamental expressa, não minha
opinião a respeito da boa vida individual, mas minha convicção a respeito do fim que os
cidadãos e a polis devem perseguir. Admitindo-se que a justiça representa,
precisamente, o fim (resultado) a ser buscado pela polis, o que está em jogo aqui é
minha crença a respeito de quais são os resultados da interação social que devem ser
considerados (mais) justos. Admitindo-se além disso que, ao ser tomada como o fim da
interação social, a “justiça” também pode ser chamada de “bem” (bem político), o que
está em jogo aqui é minha intuição a respeito de quais são os resultados da interação
social que devem ser considerados politicamente bons ou valiosos.
Embora eu (o deontólogo) admita que haja uma outra visão de justiça, afirmo
que a que deve ser adotada pelos cidadãos e pela polis é aquela que enfatiza a dimensão
normativa da cooperação entre os cidadãos. Em outras palavras, admito que se possa
preferir uma visão de justiça que enfatize não apenas a dimensão da competição dos
cidadãos por recursos e benefícios escassos, mas também a maximização da satisfação
que normalmente se associa a essa dimensão; mas não é essa a visão que eu, pelo meu
lado, prefiro. Prefiro a visão de justiça que enfatiza não apenas a dimensão da
cooperação entre os cidadãos, mas também os fins que logicamente se associam a tal
dimensão, que são a igualdade, equilíbrio e harmonia entre as pessoas. Como disse
acima, admito que minha preferência por essa visão de justiça implica, ao menos em
certos casos, preferência por uma certa concepção de boa vida. Trata-se da concepção
de boa vida que, num eventual conflito (radical) entre, por um lado, os bens (recursos)
mais associados à dimensão da competição dos cidadãos por vantagens (e satisfações)
escassas, como, por exemplo, o bem “renda”, e, por outro lado, os bens mais associados
à dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos, como, por exemplo, o bem
255

“liberdade”, - trata-se da concepção de boa vida que, num conflito desse tipo, escolhe
esses últimos bens.
E o contratualista deontológico continuaria sua resposta ao contratualista
utilitarista da seguinte maneira. O cerne da nossa discussão consiste em diferentes
intuições sobre os resultados justos da interação social. A sua intuição (do utilitarista)
tem por ponto de partida uma ênfase não apenas na dimensão realista da competição dos
cidadãos por vantagens escassas, mas também na maximização da satisfação que
normalmente se associa a essa dimensão. Ao enfatizar esses elementos, você
(utilitarista) é levado a conceber a justiça (o bem da polis) em termos de “é inevitável
que uns percam e outros ganhem”. De acordo com essa visão, justiça e senso de justiça
ordenam que, para decidir quem deve perder e quem deve ganhar, deve proceder-se a
uma avaliação essencialmente quantitativa. De acordo com essa visão, em outras
palavras, a deliberação e a decisão dos indivíduos legisladores devem orientar-se pelos
critérios quantitativos da preferência da maioria e da maximização da satisfação no
conjunto dos cidadãos. E a conseqüência disso é uma teoria da justiça segundo a qual o
bem, no sentido político, deve ser definido, precisamente, em termos de maximização
da satisfação que pode ser obtida no contexto (competitivo) da posse e fruição dos
recursos de bem-estar. De acordo com essas intuições, além disso, o cidadão
razoável/justo é aquele que admite esses fatos, e que se conforma a eles. “Ser
razoável/justo” implica admitir e assumir os riscos e ônus da competição pelos escassos
recursos de bem-estar, e pelas vantagens (satisfações) escassas que esses recursos
podem propiciar.
E o contratualista deontológico continuaria. A minha (do deontólogo) intuição,
em contrapartida, tem por ponto de partida uma ênfase na dimensão normativa da
cooperação entre os cidadãos. Ao enfatizar essa dimensão, eu (deontólogo) sou levado a
entender a justiça da esfera política em termos de igualdade, equilíbrio e harmonia entre
os cidadãos, quer dizer, em termos de preservação e fortalecimento da rede de
cooperação. De acordo com essa minha intuição, às demandas cujas razões associam-se,
predominantemente, à dimensão realista da competição por vantagens e satisfações
escassas, deve-se preferir as demandas cujas razões associam-se, predominantemente, à
dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos. Em relação às demandas cujas
razões associam-se, predominantemente, à dimensão normativa da cooperação, pode-se
dizer que o não atendimento dessas demandas deve ser descrito como “perda”; em
relação às demandas cujas razões associam-se, predominantemente, à dimensão realista
256

da competição, pode-se dizer que o não atendimento dessas demandas deve ser descrito
como “não-ganho”. De acordo com essa intuição, por conseguinte, sou levado a afirmar
que a deliberação e a decisão dos indivíduos legisladores devem orientar-se,
basicamente, pelo seguinte critério: para que uns não percam bens cujas razões
associam-se à dimensão da cooperação e da preservação da igualdade, outros não
devem ganhar bens cujas razões associam-se à dimensão da competição e da
maximização das vantagens e satisfações privadas. Em correspondência com isso, eu
(deontólogo) adoto uma visão da justiça segundo a qual o bem, em sentido político,
deve ser definido em termos de preservação e fortalecimento da rede da cooperação
social. Para mim, “ser razoável/justo” implica admitir e assumir os ônus (os não-
ganhos) associados à necessidade de integrar e manter os perdedores na rede e nos
ganhos da cooperação social, - associados, em outras palavras, à necessidade de impedir
ou corrigir desigualdades que acabariam por expulsar os perdedores da rede básica da
cooperação. E o bem, em sentido político, equivale, justamente, à justiça da esfera
política, entendida em termos de integração e preservação dos perdedores na rede da
cooperação social.
Acredito que o contratualista utilitarista poderia concordar com esse modo de
pôr o problema – embora talvez desejasse dar um colorido um pouco diferente às
respectivas posições. Ele poderia apresentar argumentos para taxar a posição do
deontólogo de “utópica”. Ou ainda de “autoritária”, por querer impor à força uma
harmonia que não encontra respaldo nas disposições fundamentais dos concernidos –
nem mesmo dos desfavorecidos. Ou ainda de “ingênua”: na tentativa de agradar a todos,
acaba desagradando a todos. Ou ainda de “ingenuamente autoritária”, ao tentar inculcar
nos concernidos a convicção sobre os pretensos benefícios de uma harmonia que, por
não encontrar respaldo em suas disposições fundamentais, acaba sendo, no fundo,
insatisfatória para todos. Ele poderia dizer que a posição do deontólogo esvazia as
forças do progresso social. E assim por diante. Não precisamos entrar nos meandros
desse debate.
Podemos nos fixar no seguinte ponto. Se nossos dois debatedores concordassem
com esse modo de pôr o problema, eles poderiam concordar também com o seguinte.
Não há um senso de justiça comum e compartilhado. Mas isso não significa que o
debate se reduza a intuições sobre a boa vida, quer dizer, a intuições sobre os fins que o
indivíduo deve adotar na sua existência não-política. Significa que o debate incide sobre
o próprio senso de justiça, tomado como uma noção a ser adotada, não pelo indivíduo,
257

mas pelo cidadão. As concepções de pessoa e vida em sociedade que estão em jogo aqui
pertencem, não tanto à noção de boa vida a ser adotada pelo indivíduo, mas, antes, à
noção de razoabilidade (senso de justiça), entendida como capacidade deliberativa que
deve ser usada pelos cidadãos na esfera da polis. O que está em jogo aqui são diferentes
intuições a respeito dos resultados (mais) justos da interação social; são essas intuições
que configuram o senso de justiça preconizado, respectivamente, por deontólogos e
utilitaristas.
Para o utilitarista, a justiça pode e deve ser reduzida à maximização do bem
privado – para o utilitarista, não há um bem político independente do bem privado, o
que significa que o bem político só pode ser definido em termos de maximização do
bem privado. Para o utilitarista, postular um bem político independente do bem privado
equivaleria a desrespeitar o pluralismo razoável das concepções de bem. Para o
deontólogo, em contrapartida, a igualdade e harmonia na rede da cooperação
representam um bem especificamente político, independente dos bens privados dos
indivíduos, quer dizer, irredutível a estes. Para evitar uma politização indevida da noção
de bem privado, o que equivaleria a um desrespeito ao “fato do pluralismo”, o
deontólogo abandona essa noção ao campo da competição dos indivíduos por vantagens
e satisfações escassas; por outro lado, ele não admite que a esfera do “valioso” seja
reduzida a essa dimensão competitiva, maximizadora e privatista, mas afirma que há um
valor especificamente político, constituído pela igualdade e harmonia na rede da
cooperação social.
258

Conclusão.

No artigo Social Unity and Primary Goods,1 ao destacar que a ordem política
liberal, ao lidar com o fato do pluralismo, precisa enfrentar o problema das comparações
interpessoais, Rawls introduz esse problema da seguinte maneira (p.161).
Uma outra característica de uma sociedade bem-ordenada é que existe um entendimento
público acerca dos tipos de reivindicação que são apropriadas, quer dizer, que os cidadãos
podem apropriadamente fazer quando surgem questões de justiça, e esse entendimento
envolve um entendimento adicional, a respeito dos elementos capazes de apoiar tais
reivindicações. Esses entendimentos são necessários para se alcançar um acordo a respeito do
modo como as reivindicações dos cidadãos devem ser avaliadas e seu peso relativo
determinado. (...) Assim, na teoria da justiça como eqüidade, o problema das comparações
interpessoais é o seguinte: dadas as diferentes e opostas, e até incomensuráveis, concepções de
bem que se manifestam numa sociedade bem-ordenada, como é possível um tal entendimento
público?

Na Conferência V de Political Liberalism, intitulada A Prioridade do Justo e


Idéias do Bem (e que corresponde a um artigo com o mesmo título publicado em 1988),
Rawls retoma o mesmo problema, apresentando-o praticamente nos mesmos termos
(Political Liberalism, p.179-180). Nesse artigo, entretanto, ele exacerba a imagem do
utilitarismo que, desde o artigo anterior, vem vinculada ao problema das comparações
interpessoais. De acordo com essa imagem exacerbada, a teoria utilitarista não apenas
desrespeita o pluralismo razoável das concepções de bem – esse é um juízo que já se
apresentava na imagem do utilitarismo veiculada no artigo de 822 -, mas, ao fazer isso,
merece ser integralmente identificada às teorias perfeccionistas e religiosas do bem – e
trata-se agora de um juízo que exacerba a posição do artigo de 82.3 Cito as palavras de
Rawls (Political Liberalism, p.179-180. O grifo é meu).4
No liberalismo político o problema das comparações interpessoais aparece da seguinte
maneira: dadas as conflitantes concepções abrangentes do bem, como é possível alcançar um
tal entendimento político a respeito do que deve valer como reivindicações apropriadas? A
dificuldade é que o governo, assim como não pode agir para promover o catolicismo ou o
protestantismo, ou qualquer outra religião, tampouco pode agir para maximizar a satisfação
das preferências ou desejos racionais dos cidadãos (como no utilitarismo), ou para promover a
excelência humana ou os valores da perfeição (como no perfeccionismo). Nenhuma dessas
visões sobre o significado, valor e propósito da vida humana, tal como especificada pelas

1
In Sen, Amartya e Williams, Bernard (Eds.), Utilitarianism and Beyond, 1982, p.159-185.
2
Ver, por exemplo, Social Unity, p.160: “Vou indicar de que modo tanto o utilitarismo clássico quanto
uma versão contemporânea do utilitarismo implicam uma concepção de pessoa que torna essa doutrina
incompatível com a pressuposição de que existem diversas concepções racionais do bem.”
3
Em Social Unity, Rawls não chega ao ponto de identificar o utilitarismo às concepções perfeccionistas e
religiosas; nesse artigo, ele parece admitir que, ainda que envolva o conceito de um bem uno e único, o
utilitarismo, ao entender esse bem em termos meramente subjetivos, diferencia-se das doutrinas
perfeccionistas e religiosas, que o entendem em termos de uma meta objetivamente delineada e
determinada. Ver, por exemplo, a seção VII, especialmente a p.182.
4
É importante destacar que a concepção do utilitarismo como uma doutrina abrangente aparece em outras
passagens de Political Liberalism. Ver, por exemplo, as páginas 37 e 170-171.
259

respectivas doutrinas religiosas ou filosóficas abrangentes, é afirmada pelos cidadãos em


geral, e por isso a busca de qualquer uma delas por meio das instituições sociais básicas daria
à sociedade política um caráter sectário.

Surpreendentemente, a passagem citada também contém uma nota em que


Rawls, reportando-se ao conceito de utilidade discutido por T. Scanlon no artigo The
Moral Basis of Interpersonal Comparisons, 5 admite que, talvez, não seja correto
caracterizar o utilitarismo como uma doutrina abrangente. O texto da nota é o seguinte
[é importante destacar que a nota é aposta no fim da frase “o governo (...) tampouco
pode agir para maximizar a satisfação das preferências ou desejos racionais dos
cidadãos (como no utilitarismo)”].
No caso de um utilitarismo tal como o de Henry Sidgwick em Methods of Ethics, ou o de R.
Brandt em The Good and the Right, que pretende ser uma teoria do bem dos indivíduos, tal
como eles devem entendê-lo quando são racionais, e no qual o bem é caracterizado
hedonisticamente, ou em termos de satisfação de desejos ou interesses, a afirmação no texto
(no texto principal – A.S.B.) é, penso eu, correta. Mas, como T. Scanlon defendeu, há uma
outra idéia de utilidade, freqüentemente encontrada na economia do bem-estar, cujo alvo é
bem diferente: não se trata de propiciar uma teoria do bem dos indivíduos, tal como eles
devem entendê-lo desde um ponto de vista puramente pessoal6. Trata-se antes de descobrir
uma caracterização genérica do bem dos indivíduos, que faça abstração do modo como eles
mais especificamente o entendem, e que seja adequadamente imparcial em relação às pessoas,
podendo, portanto, ser usada na argumentação moral e na teoria econômica normativa, ao se
considerarem as questões de políticas públicas. (...) A visão exposta no texto (no texto
principal – A.S.B.) talvez precise ser reformulada, para lidar com esse uso da idéia de
utilidade. (O grifo é meu).

A conjunção do texto principal e da nota suscita as seguintes questões.


Considerando que, em relação a uma certa versão do utilitarismo, aquela que é
“freqüentemente encontrada na economia do bem-estar”, Rawls chegou a admitir a
possibilidade de que não seria correto caracterizá-la como doutrina abrangente, que
razões ele poderia apresentar para manter a caracterização do utilitarismo hedonista
(junto com o utilitarismo das preferências) como uma doutrina abrangente? Será que se
trata de boas razões? – ou, ao contrário, de razões que ele deveria abandonar, a partir de
uma reflexão um pouco mais aprofundada sobre o caráter do utilitarismo hedonista,
associado ao utilitarismo das preferências? E, caso se trate de razões que ele deveria
abandonar, - quer dizer, caso seja necessário admitir que, de um modo geral, não é
correto caracterizar o utilitarismo como uma doutrina abrangente, que implicações esse
5
In Elster, Jon e Roemer, John (Eds.), Interpersonal Comparisons of Well-Being, p.17-44.
6
É interessante destacar que no artigo original, publicado em 1988 (in Philosophy and Public Affairs,
vol.17, n.4, p.251-276), essa frase aparecia de outra forma, a saber: “Não se trata de propiciar uma teoria
do bem dos indivíduos, tal como eles devem entendê-lo desde um ponto de vista moral.” (P.256). Ao
substituir “ponto de vista moral” por “ponto de vista puramente pessoal”, para caracterizar o ponto de
vista desde o qual se oferece a teoria do bem propiciada pelo utilitarismo hedonista (e também, ao que
tudo indica, pelo utilitarismo das preferências), Rawls parece estar começando a admitir que mesmo o
utilitarismo hedonista (junto com o utilitarismo das preferências) não deve(m) ser caracterizado(s) como
“doutrina abrangente”.
260

fato teria para a distinção entre o utilitarismo e, por outro lado, o deontologismo
rawlsiano? Mais precisamente, que implicações esse fato teria para a inserção e
compreensão dessa distinção no contexto do pluralismo razoável das concepções de
bem?
A razão que Rawls tem em vista ao caracterizar o utilitarismo hedonista como
uma doutrina abrangente parece ser a seguinte. O utilitarismo hedonista funda-se na tese
de que o significado e propósito da vida humana consistem, fundamentalmente, no
“prazer”; ora, ao fundar-se numa tese sobre o significado e propósito da vida humana, o
utilitarismo hedonista assume o caráter de doutrina abrangente. Mais precisamente, ao
fundar-se numa tese sobre o conteúdo em que uniformemente consistem o significado e
o propósito da vida humana, - tal conteúdo seria, no caso, o prazer, - ao fundar-se nesse
tipo de tese, o utilitarismo hedonista merece o rótulo de doutrina abrangente.
No capítulo 4, vimos que, de fato, o utilitarismo hedonista sugere uma teoria
psicológica e moral de tipo hedonista, segundo a qual os móbiles básicos, o significado
e o propósito da vida humana consistem, em última instância, no prazer. Vimos também
que essa é, justamente, a razão pela qual, no seio mesmo da tradição utilitarista, o
utilitarismo hedonista foi substituído pelo utilitarismo das preferências, o qual recusa
qualquer tese sobre o conteúdo uniforme e universal do significado e propósito da vida
humana, e assume em seu lugar a tese da autonomia do sujeito (indivíduo) quanto às
preferências que ele vai seguir em sua vida pessoal. Mas nós vimos também duas outras
coisas. Em primeiro lugar, a noção de prazer pode ser mantida no utilitarismo das
preferências – desde que ela deixe de apontar para o conteúdo uniforme e universal do
significado da vida humana, e passe a apontar para o estado subjetivo a que se pode
recorrer para oferecer uma descrição genérica e abstrata de um valor que se pode
uniformemente descobrir (e medir) nos diferentes projetos, esforços e reivindicações
dos diferentes indivíduos. Nesse último caso, a noção de prazer se torna equivalente à
de “satisfação” – tomada, justamente, como estado subjetivo, ou estado mental.
Tomemos, por exemplo, os seguintes indivíduos: um primeiro inclui em seu
projeto de vida o esforço de abdicar de pratos gordurosos que lhe agradam
imensamente, em nome da promoção de sua saúde – ele prefere “saúde” a “prazer
sensual imediato”; já o segundo, ao contrário, inclui em seu projeto de vida uma
desistência de qualquer esforço de abdicar de prazeres imediatos em nome de
prescrições prudenciais ou éticas – ele prefere “prazer sensual imediato” a, por exemplo,
“saúde”. É claro que, se viesse a ser utilizada como descrição do conteúdo uniforme e
261

universal do significado e propósito da vida humana, a noção de prazer encontraria


grandes dificuldades para lidar com a diferença entre esses dois indivíduos e,
principalmente, para compatibilizar-se com o significado e propósito que o primeiro
indivíduo parece atribuir à sua vida. Entretanto, se for utilizada como nome para o
estado subjetivo a que se pode recorrer para oferecer uma descrição genérica e abstrata
daquele valor que se pode uniformemente vincular aos diferentes projetos e realizações
dos diferentes indivíduos, a noção de prazer revela-se perfeitamente compatível, não só
com a diferença entre esses dois indivíduos, mas também com o significado e propósito
que o primeiro indivíduo confere à sua vida. Com efeito, ainda que o significado que ele
confere à sua vida tenha um conteúdo bem diferente daquele do segundo indivíduo, o
primeiro indivíduo, ao perseguir e satisfazer sua preferência por “saúde”, encontra-se
num estado mental que, tanto quanto o estado mental do indivíduo que satisfaz sua
preferência por pratos gordurosos, pode ser genérica e abstratamente descrito em termos
de “prazer”, ou “satisfação” – trata-se apenas de diferentes tipos de prazer, ou de
satisfação. Num caso, prazer sensível imediato; no outro caso, satisfação de fazer “o que
se deve fazer”. Com um pouco de boa vontade, essa descrição genérica, abstrata e
uniforme pode ser aplicada até mesmo ao estado mental vinculado a esforços e
realizações que implicam efetiva dor física – trata-se da satisfação de fazer “o que o
dever manda”, ou de satisfazer (realizar) a preferência pelo dever.
Com base no que foi visto no capítulo 4, podemos destacar um segundo ponto
em relação à noção de prazer. Ao ser tomada, não como descrição do conteúdo
universal do significado da vida humana, mas, simplesmente, como nome para o estado
mental a que se pode recorrer para oferecer uma descrição genérica e abstrata do valor
que se pode uniformemente vincular aos diferentes projetos dos diferentes indivíduos, a
noção de prazer não apenas se mostra compatível com o utilitarismo das preferências,
mas revela também, ela própria, o elemento que aproxima o utilitarismo hedonista do
utilitarismo das preferências, e que permite que o primeiro seja reinterpretado e
agrupado junto com o segundo, sob um mesmo título – digamos “utilitarismo
subjetivista”. Tal elemento pode ser caracterizado da seguinte maneira: autonomia do
sujeito (indivíduo) quanto à escolha dos desejos, tendências, interesses e objetivos que
ele vai assumir, acalentar e perseguir em sua vida pessoal; autonomia do sujeito quanto
ao tipo de prazer ou satisfação a que ele vai dar preferência. Esse elemento constitui
aquilo que se pode chamar de tendência “antinormativa” do utilitarismo subjetivista: em
vez de ditar ao indivíduo (sujeito) aquilo que ele deve(ria) considerar bom para ele, ou,
262

ainda, aquilo que ele deve(ria) considerar politicamente bom, o utilitarismo subjetivista
deseja manter uma postura de absoluto respeito – e nesse sentido de absoluta
neutralidade – em relação às variadas (e muitas vezes conflitantes) opiniões que os
diferentes indivíduos empiricamente revelam a esse respeito.
Ora, se é verdade que o utilitarismo subjetivista mantém uma postura de respeito
e neutralidade com relação às diferentes opiniões a respeito do bem individual, então é
preciso reconhecer que essa forma de utilitarismo não merece o rótulo de “doutrina
abrangente” – na medida em que esse rótulo cabe, justamente, às teorias que pretendem
indicar o conteúdo objetivo e universal do significado que se deve igualmente
reconhecer e impor, para todos os seres humanos. E se é verdade, além disso, que a
categoria “utilitarismo subjetivista” expressa a proximidade e até identidade entre o
utilitarismo hedonista e o utilitarismo das preferências, então é preciso concluir que não
é correto caracterizar essas espécies de utilitarismo como doutrinas abrangentes. Ao
contrário, trata-se de doutrinas que se encaixam perfeitamente no contexto definido pelo
“fato do pluralismo”.
Vimos acima que, para Rawls, o fato do pluralismo gera o problema das
comparações interpessoais. Dadas as conflitantes e incomensuráveis concepções de
bem, quer dizer, dada a impossibilidade de avaliar e pesar as reivindicações conflitantes
com base numa concepção de bem supra-individual, só se pode avaliar e pesar tais
reivindicações com base em comparações interpessoais do bem especificamente
individual – o que exige o recurso a um metro normativo comum e uniforme, quer dizer,
exige o recurso a um valor que possa adequadamente funcionar como metro comum e
uniforme. Respondendo à exigência de neutralidade em relação às diferentes opiniões
sobre o que é bom, o utilitarismo subjetivista assume uma postura essencialmente
antinormativa, modelando da seguinte maneira o processo político: em princípio, todas
as reivindicações são igualmente apropriadas; o cidadão apóia sua reivindicação
remetendo-a à satisfação que seu atendimento acarretaria; e o governo avalia e pesa as
reivindicações conflitantes por meio de uma comparação da satisfação que seu
respectivo atendimento geraria, a longo prazo, na sociedade como um todo. Assim, ao
assumir a postura antinormativa que lhe é própria, o utilitarismo subjetivista apresenta o
seguinte argumento: se é verdade que as comparações interpessoais do bem individual
exigem o recurso a um valor comum e uniforme, então, para respeitar o pluralismo das
concepções de bem, esse valor só pode ser o da satisfação individual – trata-se do único
valor que não prejulga o mérito das diferentes preferências individuais. As comparações
263

interpessoais devem então ser entendidas como comparações interpessoais da satisfação


individual, quer dizer, do estado mental que acompanha a satisfação (realização) das
diferentes preferências individuais.
Gostaria agora de retomar uma questão anteriormente colocada. Se é verdade
que a distinção entre utilitarismo e deontologismo rawlsiano não pode ser retratada
como uma distinção entre, por um lado, uma doutrina metafisicamente abrangente, e,
por outro lado, uma doutrina que respeita o fato do pluralismo, - se é verdade, em outras
palavras, que deontologismo e utilitarismo diferem, não pelo fato de encaixar-se ou não
no quadro do pluralismo razoável, mas, apenas, pelo modo distinto de encaixar-se, - se
isso é verdade, quais os marcos que separam o encaixe deontológico do encaixe
utilitarista?
No artigo citado por Rawls e discutido em nosso capítulo 4, Thomas Scanlon, ao
elaborar a teoria dos bens primários exposta em Uma Teoria da Justiça, apresenta os
bens primários como elementos envolvidos no bem-estar das pessoas. Partindo dessa
idéia, poder-se-ia sugerir o seguinte: o encaixe deontológico caracteriza-se pela tese de
que a noção de satisfação, tomada como um estado mental, não representa um bom
critério para se avaliar e pesar as reivindicações possivelmente conflitantes. Em vez de
se recorrer à noção de satisfação, deve-se recorrer à noção de bem-estar, entendendo-a,
além disso, em termos objetivos, e ao mesmo tempo neutros: “ter bem-estar” significa
dispor e fruir, objetivamente, de certos recursos polivalentes – quer dizer, recursos que
são importantes ou úteis para os diferentes projetos de vida que podem se apresentar e
ser adotados numa sociedade pluralista. Assim, as comparações interpessoais devem ser
entendidas, não como comparações interpessoais de satisfação, mas como comparações
interpessoais de posse e fruição objetiva dos recursos de bem-estar. De acordo com essa
sugestão, as reivindicações devem ser ponderadas, não com base numa avaliação da
satisfação subjetiva que seu respectivo atendimento provavelmente acarretaria, mas com
base numa comparação de graus objetivos de bem-estar, concebidos em termos de posse
e fruição dos recursos objetivos do bem-estar.
Como vimos no capítulo 4, porém, pode-se afirmar que há uma variante do
utilitarismo que também adota esse viés objetivista – trata-se, justamente, do
utilitarismo de bem-estar, o qual nasceu das reflexões e críticas que, no seio da própria
tradição utilitarista, desenvolveram-se em torno dos problemas epistemológicos que o
viés mentalista acarretava para o utilitarismo subjetivista. Como vimos no capítulo 4, o
utilitarismo de bem-estar caracteriza-se por dois passos. Primeiro, ele substitui a noção
264

de “preferência” pela noção de “interesse de bem-estar”, e define utilidade como


“satisfação dos interesses de bem-estar”. Em segundo lugar, ele define da seguinte
maneira os interesses de bem-estar: “Os interesses de bem-estar consistem
simplesmente naquele conjunto de recursos genéricos que as pessoas precisam possuir
antes de perseguirem quaisquer das preferências mais particulares que possam
eventualmente ter. Saúde, dinheiro, moradia, alimento e itens dessa espécie podem ser,
todos eles, razoavelmente considerados interesses de bem-estar, recursos úteis quaisquer
que sejam os projetos e planos particulares das pessoas.”7
Assim, do mesmo modo que o deontologismo rawlsiano, o utilitarismo de bem-
estar dá uma configuração objetivista ao processo político das comparações
interpessoais e da conseqüente ponderação das reivindicações em conflito. Em outras
palavras, do mesmo modo que o deontologismo rawlsiano, o utilitarismo de bem-estar
assume as seguintes teses: primeiro, a tese de que as comparações interpessoais devem
ser entendidas, não como comparações de satisfação, mas como comparações de posse e
fruição dos recursos de bem-estar; segundo, a tese de que a base da ponderação política
consiste nesse tipo objetivista de comparação interpessoal.
É óbvio, porém, que essas teses objetivistas ainda não dizem por que critério,
exatamente, devem ser levadas a cabo as comparações interpessoais, de modo a
produzir um veredicto para os possíveis conflitos quanto às reivindicações pelos
recursos de bem-estar. Como tentei mostrar no capítulo 5, é aqui, justamente, que se
introduzem as diferenças entre o utilitarismo de bem-estar e, por outro lado, o
deontologismo rawlsiano. Com efeito, enquanto o deontologismo rawlsiano assume a
tese de que, em casos de conflito entre reivindicações por diferentes bens primários,
deve-se conceder prioridade às reivindicações pelas liberdades, em relação a
reivindicações por bens mais concretos, como renda, o utilitarismo de bem-estar,
atendendo à postura antinormativa típica do utilitarismo em geral, assume a tese de que
esse tipo de conflito deve ser resolvido por meio de uma consulta às opiniões dos
próprios concernidos, guiada pelo critério da maximização do bem-estar, quer dizer,
(maximização) do atendimento dos interesses de bem-estar, tal como expressos e
defendidos pelos próprios concernidos. Ora, isso implica, concretamente, que se deve
atender à preferência da maioria. Além disso, enquanto o deontologismo rawlsiano
assume um critério grosso modo igualitário, segundo o qual a melhor distribuição é a
distribuição mais igualitária possível, o utilitarismo de bem-estar assume um critério
7
Goodin, Robert: Utility and the Good, in Singer, Peter, A Companion to Ethics, p.244. O grifo é meu.
265

grosso modo maximizador, segundo o qual a melhor distribuição é aquela que gera
maior quantidade de bem-estar na sociedade como um todo, mesmo que isso implique
que alguns indivíduos, comparativamente, fiquem em níveis de bem-estar
significativamente baixos.
No capítulo 5, tentei mostrar de que forma essas diferenças podem ser reduzidas
a diferenças no modo como as duas teorias abordam e elaboram o tópico da justiça. O
deontologismo rawlsiano aborda o tema da justiça a partir de uma ênfase na dimensão
da cooperação social, o que o leva a entender a justiça em termos de preservação do
equilíbrio, igualdade e harmonia na rede da cooperação. Ora, ao conceber a justiça em
termos de igualdade e harmonia na rede da cooperação, o deontologismo rawlsiano é
levado a apresentá-la como um bem especificamente político, quer dizer, um bem
político independente: trata-se de um bem que não pode ser reduzido ao bem privado
dos indivíduos, ou, mais precisamente, de um bem que pertence a uma esfera, a esfera
política, que não pode ser reduzida à esfera do bem privado dos indivíduos.
Já o utilitarismo de bem-estar aborda o tema da justiça a partir de uma ênfase na
dimensão da escassez dos recursos do bem-estar, e da conseqüente competição por tais
recursos. Por partir de uma ênfase na dimensão da escassez e da competição, o
utilitarismo de bem-estar não só encara a justiça como uma norma destinada a
determinar quem deve perder e quem deve ganhar, mas sustenta que essa norma só pode
ser a da maximização da quantidade de bem-estar na sociedade como um todo. É justo
que ganhem os interesses da maioria, pois é dessa forma que se produz a maior
quantidade de bem-estar na sociedade como um todo; é justo que ganhem os indivíduos
mais capazes, quer dizer, mais capazes de alavancar o processo de produção e difusão
dos recursos de bem-estar; e é justo que os outros percam, e fiquem reduzidos a níveis
significativamente baixos de bem-estar. Ora, dizer que a justiça consiste na
maximização do bem-estar dos indivíduos equivale a dizer que a justiça pode (e deve)
ser reduzida à esfera do bem privado dos indivíduos; em vez de se apresentar como um
bem específico e independente, próprio da esfera especificamente política, a justiça se
apresenta como um bem coextensivo à esfera do bem privado – trata-se apenas de
maximizar esse bem privado.
No §7 da Conferência A Prioridade do Justo e Idéias do Bem, Rawls discute a
quinta idéia de bem admitida e utilizada pela teoria da justiça como eqüidade, a qual
consiste, justamente, no bem da sociedade política. Ao afirmar que a teoria da justiça
como eqüidade admite e valoriza essa idéia de bem, Rawls pretende responder à crítica
266

de que, ao recusar a tese de que a sociedade deve unir-se em torno de uma doutrina
abrangente sobre o verdadeiro bem, essa teoria fica obrigada a ver a sociedade como um
mero agregado de indivíduos e associações, que só cooperam para perseguir suas
respectivas vantagens privadas, sem terem qualquer fim em comum. Em outras
palavras, trata-se da crítica de que o deontologismo rawlsiano estaria obrigado a
conceber a sociedade como mera “sociedade privada”.8
Antes de mostrar de que forma Rawls rejeita essa crítica, quer dizer, antes de
mostrar de que modo Rawls rejeita a concepção “privatista” da sociedade, gostaria de
destacar que, nesse tipo de concepção, as relações e interações sociais são encaradas
como meros meios para o bem privado de indivíduos e associações. Ora, isso implica,
evidentemente, que a qualidade positiva dessas relações e interações, quer dizer, a
justiça das mesmas, só pode ser entendida em termos de eficácia para a geração da
maior quantidade possível de bem-estar privado. Ora, é essa, justamente, a essência da
posição utilitarista. Isso significa que o utilitarismo, longe de dever ser visto como uma
doutrina abrangente, deve ser visto, ao contrário, como uma doutrina “privatista”, quer
dizer, uma doutrina que reduz os valores políticos a valores da mera “sociedade
privada”.
A sociedade visada pelo deontologismo rawlsiano, em contrapartida, não é uma
sociedade privada, uma vez que, nas palavras do próprio Rawls, “(...) os cidadãos têm
fins em comum. Embora seja verdade que eles não afirmam a mesma doutrina
abrangente, eles afirmam a mesma concepção política de justiça; e isso significa que
eles compartilham um fim político básico, e um fim que tem alta prioridade: a saber, o
fim de sustentar instituições justas e de, desta forma, fornecer justiça uns aos outros”.9
Assim, o deontologismo rawlsiano eleva as noções de “justiça” e “fornecer justiça uns
aos outros” ao posto de fim comum e compartilhado, categorialmente distinto dos fins
privados perseguidos por indivíduos e associações. Ora, o deontologismo rawlsiano só
pode fazer isso na medida em que, opondo-se à ênfase na dimensão da escassez e da
competição, aborda a justiça a partir de uma ênfase na dimensão da cooperação,
entendendo-a, correspondentemente, em termos de preservação da harmonia e equilíbrio
na rede da cooperação, ou seja, em termos de preservação da igualdade de status
político e moral, que representa a característica pela qual se define todo participante da
rede da cooperação.

8
Political Liberalism, p.201.
9
Political Liberalism, p.202.
267

A conclusão de nossa argumentação é a seguinte: ao contrário do que Rawls


sugere ao classificar o utilitarismo como uma doutrina abrangente; ao contrário,
também, do mapeamento que é sugerido pelo fato de tanto as doutrinas perfeccionistas
quanto as doutrinas utilitaristas serem classificadas como “éticas teleológicas”, ou
“éticas do bem”, - ao contrário das aparências sugeridas por um uso irrefletido das
noções de “justo” e “bom”, e também de “fim”, o utilitarismo está muito mais distante
das doutrinas perfeccionistas do que o deontologismo rawlsiano; em outras palavras, o
deontologismo rawlsiano está muito mais próximo das teorias perfeccionistas do que o
utilitarismo em geral. E a razão disso reside nos diferentes conteúdos normativos
assumidos, respectivamente, pelo deontologismo rawlsiano e pelo utilitarismo.
Enquanto o utilitarismo assume uma postura fortemente antinormativa, reduzindo a
justiça ao âmbito do bem-estar privado, e modelando esse âmbito pelo princípio da
autonomia das preferências privadas, o deontologismo rawlsiano, ao contrário,
constitui-se numa teoria normativa do bem político, apresentando a justiça como um fim
que, apesar de categorialmente distinto dos fins meramente privados, deve gozar de
prioridade normativa em relação a esses últimos. Duas questões se colocam aqui.
Primeiro, saber se o deontologismo rawlsiano consegue fazer isso sem incorrer numa
postura grosso modo perfeccionista; segundo, saber se, caso ele de fato tenha de assumir
uma postura grosso modo perfeccionista, - saber se isso, afinal, representaria um
defeito.
268

Bibliografia

Allison, Henry: Kant’s Theory of Freedom. Cambridge, Cambridge University


Press, 1990.
Almeida, Guido Antônio de: “Sobre as ‘Fórmulas’ do Imperativo Categórico”, in
Domingues, I., Margutti Pinto, P.R. e Duarte, R. (Organizadores): Ética,
Política e Cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002, p. 89-103.
Almond, Brenda: “Rights”, in Singer, Peter (Ed.): A Companion to Ethics. Oxford,
Blackwell, 1993, p.259-269.
Aubenque, Pierre: La Prudence chez Aristote. Paris, PUF, 1993.
Audard, Catherine: “Utilitarisme”, in Canto-Sperber, Monique (Ed.): Dictionnaire
d’éthique et de philosophie morale. Paris, PUF, 2004, p.2001-2009.
Aune, Bruce: Kant’s Theory of Morals. Princeton, Princeton University Press, 1979.
Beck, Lewis White: A Commentary on Kant’s “Critique of Practical Reason”.
Chicago, University of Chicago Press, 1960.
Beitz, Charles: Political Equality. Princeton, Princeton University Press, 1989.
Berten, André: “Déontologisme”, in Canto-Sperber, Monique (Ed.): Dictionnaire
d’éthique et de philosophie morale. Paris, PUF, 2004, p.477-483.
Canto-Sperber, Monique: “Bonheur”, in Canto-Sperber, Monique (Ed.):
Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale. Paris, PUF, 2004, p.197-210.
Cohen, Joshua: “Pluralism and Proceduralism”, in Chicago-Kent Law Review,
vol.69, 1994, p.589-618.
Davis, Nancy Ann: “Contemporary deontology”, in Singer, Peter (Ed.): A
Companion to Ethics. Oxford, Blackwell, 1993, p.205-218.
Dworkin, Ronald: “The Original Position” (1973), in Daniels, Norman (Ed.):
Reading Rawls. New York, Basic Books, 1975, p.16-53.
Foot, Philippa: “Morality as a System of Hypothetical Imperatives” (1972), in
Darwall, S., Gibbard, A. e Railton, P. (Eds.): Moral Discourse and Practice:
Some Philosophical Approaches. New York, Oxford University Press, 1997,
p.313-320.
_________: Virtues and Vices. Berkeley, University of California Press, 1978.
269

Frankena, W.: “Obligation and Motivation in Recent Moral Philosophy”, in


Melden, A. (Ed.): Essays on Moral Philosophy. Seattle, University of
Washington Press, 1958, p.40-81.
_________: Ethics. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1973.
Freeman, Samuel: “Reason and Agreement in Social Contract Views”, in
Philosophy and Public Affairs, vol.19, n.2, 1990, p.122-157.
_________: “Contractualisme”, in Canto-Sperber, Monique (Ed.): Dictionnaire
d’éthique et de philosophie morale. Paris, PUF, 2004, p.405-415.
Fried, Charles: Right and Wrong. Cambridge, Harvard University Press, 1978.
Gewirth, Alan: Human Rights, Essays on Justification and Applications. Chicago,
University of Chicago Press, 1982.
Goodin, Robert: “Utility and the good”, in Singer, Peter (Ed.): A Companion to
Ethics. Oxford, Blackwell, 1993, p.241-248.
Hare, R.M.: “Ethical theory and utilitarianism” (1976), in Sen, Amartya e Williams,
Bernard (Eds.): Utilitarianism and Beyond. Cambridge, Cambridge University
Press, 1982, p.23-38.
Harsanyi, John: “Cardinal Welfare, Individualistic Ethics, and Interpersonal
Comparisons of Utility” (1955), in Harsanyi, John: Essays on Ethics, Social
Behaviour, and Scientific Explanation. Dordrecht, Reidel, 1976, p.6-23.
_________: “Can the Maximin Principle Serve as a Basis for Morality? A Critique
of John Rawls’ Theory” (1975), in Harsanyi, John: Essays on Ethics, Social
Behaviour, and Scientific Explanation. Dordrecht, Reidel, 1976, p.37-63.
_________: “Morality and the theory of rational behaviour” (1977), in Sen,
Amartya e Williams, Bernard (Eds.): Utilitarianism and Beyond. Cambridge,
Cambridge University Press, 1982, p.39-62.
Hart, H.L.A.: “Rawls on Liberty and its Priority” (1973), in Daniels, Norman (Ed.):
Reading Rawls. New York, Basic Books, 1975, p.230-252.
_________: “Between Utility and Rights” (1979), in Essays in Jurisprudence and
Philosophy. Oxford, Oxford University Press, 1983, p.198-222.
Herman, Barbara: The Practice of Moral Judgment. Cambridge, Harvard University
Press, 1993.
Hobbes, Thomas: Leviatã (Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza
da Silva). São Paulo, Abril Cultural, 1974.
270

Höffe, Otfried: Introduction à la Philosophie Pratique de Kant (tradução de


François Rüegg e Stéphane Gillioz). Paris, Vrin, 1985.
Kant, Immanuel: Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista
Cosmopolita. (tradução de Rodrigo Naves e Ricardo Terra). São Paulo,
Brasiliense, 1986.
_________: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Darmstadt, Wissenschaftliche
Buchgesellschaft, 1983.
_________: Foundations of the Metaphysics of Morals (tradução de Lewis White
Beck). New York, Macmillan, 1990.
_________: Fundamentação da Metafísica dos Costumes (tradução de Paulo
Quintela). São Paulo, Abril Cultural, 1974.
_________: Fondements de la Métaphysique des Moeurs (tradução e notas de
Victor Delbos). Paris, Delagrave, 1971.
_________: Kritik der Praktischen Vernunft. Darmstadt, Wissenschaftliche
Buchgesellschaft, 1983.
_________: Critique de la Raison Pratique (tradução e notas de François Picavet).
Paris, PUF, 1949.
_________: Religion within the Boundaries of Mere Reason (tradução de George di
Giovanni). Cambridge, Cambridge University Press, 1998.
_________: The Metaphysics of Morals (tradução e notas de Mary Gregor).
Cambridge, Cambridge University Press, 1991.
Korsgaard, Christine: Creating the Kingdom of Ends. Cambridge, Cambridge
University Press, 1996.
Kymlicka, Will: “The Social Contract Tradition”, in Singer, Peter (Ed.): A
Companion to Ethics. Oxford, Blackwell, 1993, p. 186-196.
Larmore, Charles: The Morals of Modernity. Cambridge, Cambridge University
Press, 1996.
Lyons, David: Nature and Soundness of the Contract and Coherence Arguments, in
Daniels, Norman (Ed.): Reading Rawls. New York, Basic Books, 1975, p.141-
167.
MacIntyre, Alasdair: After Virtue. Notre Dame, University of Notre Dame Press,
1984.
Mackie, John: Ethics, Inventing Right and Wrong. Londres, Penguin Books, 1977.
271

Mulhall, Stephen e Swift, Adam: Liberals and Communitarians. Oxford, Blackwell,


1992.
Nagel, Thomas: The Possibility of Altruism. Princeton, Princeton University Press,
1970.
_________: “War and Massacre” (1972), in Mortal Questions. Cambridge
University Press, 1991, p.53-74.
_________: “Rawls on Justice” (1973), in Daniels, Norman (Ed.): Reading Rawls.
New York, Basic Books, 1975, p.1-16.
_________: The View from Nowhere. Nova York, Oxford University Press, 1986.
Nussbaum, Martha: “Nature, Function and Capability: Aristotle on Political
Distribution”, in Oxford Studies in Ancient Philosophy, Supplementary
Volume, 1988, p.145-184.
O’Neill, Onora: Acting on Principle: An Essay on Kantian Ethics. New York,
Columbia University Press, 1975.
_________: “Consistency in Action” (1985), in O’Neill, Onora: Constructions of
Reason, Explorations of Kant’s Practical Philosophy. Cambridge, Cambridge
University Press, 1989, p.81-104.
Paton, H.J.: The Categorical Imperative, A Study in Kant’s Moral Philosophy.
Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 1971.
Pettit, Philip: “Consequentialism”, in Singer, Peter (Ed.): A Companion to Ethics.
Oxford, Blackwell, 1993, p.230-240.
Platão: A República. (Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira). Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, sem data.
_________: Górgias. (Tradução de Jaime Bruna). Rio de Janeiro, Ed. Bertrand
Brasil, 1989.
Rawls, John: A Theory of Justice. Cambridge, Harvard University Press, 1971.
_________: “Kantian Constructivism in Moral Theory”, in The Journal of
Philosophy, vol.77, n.9, 1980, p.515-572.
_________: “Social unity and primary goods”, in Sen, Amartya e Williams,
Bernard (Eds.): Utilitarianism and Beyond. Cambridge, Cambridge University
Press, 1982, p.159-185.
_________: “The Priority of Right and Ideas of the Good”, in Philosophy and
Public Affairs, vol.17, n.4, 1988, p.251-276.
272

_________: Justice et Démocratie (coletânea de artigos organizada por Catherine


Audard). Paris, Seuil, 1993.
_________: Political Liberalism. Nova York, Columbia University Press, 1996.
_________: Lectures on the History of Moral Philosophy (organizado por Barbara
Herman). Cambridge, Harvard University Press, 2000.
Sandel, Michael: Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge, Cambridge
University Press, 1982.
Scanlon, Thomas: “Contractualism and utilitarianism”, in Sen, Amartya e
Williams, Bernard (Eds.): Utilitarianism and Beyond. Cambridge, Cambridge
University Press, 1982, p.103-128.
_________: “The moral basis of interpersonal comparisons”, in Elster, Jon e
Roemer, John (Eds.): Interpersonal Comparisons of Well-Being. Cambridge,
Cambridge University Press, 1991, p.17-44.
Scheffler, Samuel: “Introduction”, in Scheffler, Samuel (Ed.), Consequentialism
and its critics. New York, Oxford University Press, 1988, p.1-13.
Sen, Amartya: Ethique et économie Et autres essais (tradução de Sophie Marnat).
Paris, PUF, 1993.
_________: Desenvolvimento como liberdade (tradução de Laura Teixeira Motta;
revisão técnica de Ricardo Doninelli Mendes). São Paulo, Companhia das
Letras, 2000.
_________: “Elements of a Theory of Human Rights”, in Philosophy and Public
Affairs, vol.32, 2004, p.315-356.
Singer, Marcus: Generalization in Ethics. New York, Atheneum, 1961.
Singer, Peter: Ética Prática (tradução de Jefferson Luiz Camargo). São Paulo,
Martins Fontes, 2002.
Smart, J.J.C. e Williams, Bernard: Utilitarianism: For and Against. Cambridge,
Cambridge University Press, 1973.
Tugendhat, Ernst: Vorlesungen über Ethik. Frankfurt, Suhrkamp, 1993.
Weber, Max: A Política como Vocação, in Max Weber: Ensaios de Sociologia –
Organização e Introdução de H. Gerth e C. Wright Mills. (Tradução de
Waltensir Dutra). Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1964, p.97-153.
Williams, Bernard: Moral Luck. Cambridge, Cambridge University Press, 1981.
_________: Ethics and the Limits of Philosophy. Cambridge, Harvard University
Press, 1985.

You might also like