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Por
Antonio Frederico Saturnino Braga
Orientador:
Prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Araújo
Rio de Janeiro
Maio de 2007
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________
Prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Araújo
Orientador – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________
Profª. Drª. Marina Velasco
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________
Prof. Dr. Ricardo R. Terra
Universidade de São Paulo
_____________________________________
Prof. Dr. Marcelo de Araújo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________
Prof. Dr. Ricardo Corrêa Barbosa
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
Maio de 2007
Braga, Antonio Frederico Saturnino [12.08.65]
A Luiz Bernardo Leite Araújo, pelo zelo nas tarefas de orientação, que, aliado à sua
competência, tornou este trabalho possível.
Aos professores Marina Velasco, Marcelo de Araújo e Ricardo Barbosa, pelas preciosas
críticas e sugestões feitas num momento decisivo do trabalho, o exame de qualificação.
A Ethel Menezes Rocha, pelos diversos artigos que me arranjou, e, principalmente, pelo
constante apoio ao longo de todo o trabalho.
Aos amigos que estiveram mais próximos de mim nesse período: Jaime Villas da Rocha e
Marcos Benito Derizans.
Para meus pais
RESUMO
In this work, I present a proposal for clarifying the debate between deontologism
and consequentialism. I deal with two basic problems. First, I locate the dispute between
deontologism and consequentialism within the wider context of contemporary discussion
on Ethics and Political Philosophy, indicating the conceptual marks that enable to
distinguish this dispute from other debates. Second, I indicate the conceptual marks that,
within the very dispute itself, enable to make the distinction between the two disputing
positions. I carry out my objective through two steps. First, I show that these marks can
not be reduced to the traditional opposition between, on the one hand, the respect for some
inflexible and rigid rules, not considering the consequences, and, on the other hand, the
decision to promote good consequences. Next, I show that it is necessary to fit those
marks into the discussion concerning what is the most reasonable way of determining
which consequences and results are to be pursued.
SUMÁRIO
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 01
1. Posição do Problema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09
1.1. Concepção Atrativa e Concepção Imperativa da Ética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09
1.2. Os Usos do Conceito de Bem e o Conceito de Contrato Social . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
1.2.1. Verdadeiro Bem e Bem Global . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
1.2.2. Bem Privado e Contrato Social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
1.2.3. Contrato Social: Vantagem Mútua ou Imparcialidade? . . . . . . . . . . . . . . . . 28
1.3. Exposição e Justificação da Estrutura do Trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
1.3.1. Deontologismo Rigorista e Deontologismo Não-rigorista . . . . . . . . . . . . . 41
1.3.2. Os Elementos-chave do Procedimento do Contrato . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 258
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268
1
Introdução.
1
Consequentialism and its critics. Oxford, Oxford University Press, 1988.
2
Cf. Scheffler, Op. Cit., p.1.
3
Ver, por exemplo, Bernard Williams, “A Critique of Utilitarianism”, in Smart, J.C. e Williams, B:
Utilitarianism: For and Against, Cambridge, Cambridge University Press, 1973, p.77-150. Do mesmo
autor, ver também “Persons, character and morality”, in Moral Luck (Cambridge, Cambridge University
Press, 1981, p.1-19), e Ethics and the Limits of Philosophy, Cambridge, Harvard University Press, 1985.
2
4
Em The Morals of Modernity. Cambridge, Cambridge University Press, 1996.
5
Ver, por exemplo, Philippa Foot, Virtues and Vices, Berkeley, University of California Press, 1978.
3
dimensões em que esse conceito, ao ser devidamente esclarecido, pode ser aplicado,
procuro mostrar também a implicação recíproca entre, por um lado, o conceito de
correção ou justiça, vinculado à perspectiva da imparcialidade, e, por outro lado, o
procedimento contratualista, que ocupará posição decisiva na posterior elaboração da
disputa entre conseqüencialismo e deontologismo. Além disso, faço uma exposição
mais específica do plano e estrutura do trabalho, apresentando, inclusive, uma
justificativa mais detalhada para o fato de nosso tema ser encaminhado por meio de
reflexão sobre o procedimento contratualista.
O Segundo Capítulo é dedicado a uma análise do conceito kantiano de
imperativo categórico. A razão dessa análise é a seguinte. É inegável que o conceito de
imperativo (dever, obrigação) categórico ocupa posição decisiva no desenvolvimento da
concepção imperativa da ética – ele pode ser considerado, inclusive, a expressão mais
clara e influente dessa concepção. É inegável, além disso, que esse conceito tem
exercido importante papel na evolução da disputa entre deontologismo e
conseqüencialismo. Nesse contexto, entretanto, o conceito de imperativo categórico tem
se prestado a uma grave confusão interpretativa, em virtude da qual o dever moral
aparece como incompatível com toda e qualquer consideração pelas conseqüências ou
resultados, inclusive aquela (consideração) que se estrutura desde o ponto de vista da
impessoalidade e imparcialidade, como ocorre no conseqüencialismo propriamente dito.
Como resultado dessa confusão, o conseqüencialismo é excluído da concepção
imperativa, e a disputa entre conseqüencialismo e deontologismo aparece como uma
disputa entre, respectivamente, uma ética “do Bem” e uma ética “do Dever”. Em virtude
dessa confusão, em outras palavras, a disputa entre deontologismo e conseqüencialismo
aparece como uma disputa a respeito da noção de dever moral veiculada ou envolvida
no conceito kantiano de imperativo categórico. Ora, esse modo de ver a disputa parece-
me toldar, de forma irremediável, os pontos que, verdadeiramente, nela estão em
questão, e por isso faz-se mister uma análise que dissolva a confusão interpretativa
vinculada ao conceito de imperativo categórico.
O Terceiro Capítulo está dedicado, fundamentalmente, a uma análise da fórmula
kantiana da lei universal. Entretanto, uma vez que, na “Primeira Seção” da
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant deriva a fórmula (da lei universal)
de uma análise da noção de “agir por dever”, a primeira parte do Terceiro Capítulo
consiste, justamente, numa reflexão sobre o conceito kantiano de “agir por dever”.
Além de complementar a investigação desenvolvida no capítulo anterior, tal reflexão
5
7
Ver Scheffler, Consequentialism and its critics, p.1-5.
8
O exemplo é tirado de Scheffler, Op.Cit., p.3. Um dos textos clássicos sobre a questão das restrições
deontológicas é “War and Massacre” (1972) de Thomas Nagel, republicado em Mortal Questions,
Cambridge University Press, 1979, p.53-74. Nagel também discute o problema no capítulo IX de sua obra
The View from Nowhere (Oxford University Press, 1986, p.164-188).
6
9
Podemos citar aqui, por exemplo, a reflexão de Max Weber sobre a distinção entre uma “ética da
responsabilidade” e uma “ética da convicção”. Ver “A Política como Vocação”, in Ensaios de Sociologia
– organizados por H. Gerth e C. Wright Mills (Zahar, tradução de Waltensir Dutra, 1964, p.97-153).
7
10
Scheffler, Consequentialism and its critics, p.8. O juízo não é do próprio Scheffler, é apenas
mencionado por ele.
8
Capítulo 1
Posição do problema.
Apesar de constituir uma disputa já bastante antiga, o debate entre teorias éticas
deontológicas e teorias éticas conseqüencialistas ainda não encontrou as condições
necessárias para um encaminhamento mais direto, certeiro e objetivo. Há aqui pelo menos
dois focos de obscuridade e desnorteamento, os quais se manifestam, inclusive, em
confusões terminológicas. O primeiro é constituído pelo fato de que a distinção entre essas
duas grandes perspectivas da reflexão ética envolve uma série de nuanças conceituais e
teóricas, as quais não são adequadamente enfocadas pela dicotomia implicada, ou pelo
menos sugerida, no uso ordinário dos títulos deontologismo e conseqüencialismo. O
segundo foco de desorientação é constituído pelo fato de que a essa primeira distinção
sobrepõe-se uma segunda, e de que muitas vezes embaralham-se os conceitos e problemas
que, respectivamente, dão vida a cada uma dessas duas distinções. Na verdade, essa
segunda distinção é mais abrangente do que a divisão entre deontologismo e
conseqüencialismo, e por isso deve ser vista como aquela que, do ponto de vista da ordem
das razões, vem em primeiro lugar.
No primeiro capítulo de seu livro The Morals of Modernity,1 Charles Larmore expõe
com grande clareza essa distinção logicamente primordial. Seguindo os passos trilhados por
H. Sidgwick em seu The Methods of Ethics, Larmore afirma que há dois modos básicos de
se compreender a natureza da ética, e que essa dicotomia corresponde a uma escolha quanto
ao conceito que se quer colocar como o conceito ético fundamental, se o conceito de
“correto” (“right”) ou o conceito de “bom” (“good”). Caso se dê prioridade ao conceito de
correto, tem-se uma concepção “imperativa” da ética e das ações eticamente
recomendáveis; nessa concepção, as ações eticamente recomendáveis são antes de tudo
obrigatórias, e as ações obrigatórias definem-se pelo fato de serem corretas: as ações
obrigatórias são as ações corretas, e vice-versa. Essa concepção resume-se na tese de que a
todo indivíduo impõem-se certas obrigações para com os outros, cuja determinação
1
Larmore, Charles: The Morals of Modernity. Cambridge, Cambridge University Press, 1996.
10
ele se impõe. Isso significa duas coisas. Em primeiro lugar, significa que, antes de ser algo
de obrigatório e correto – o que ele secundariamente também é -, tal comportamento é algo
de pessoalmente bom, quer dizer, favorável à realização pessoal do próprio agente a quem
ele se impõe. Em segundo lugar, significa que, para determinar o conteúdo do dever da
justiça em diferentes situações e contextos, o agente toma como ponto de partida o conceito
do que é bom para ele; em outras palavras, para saber o que, exatamente, ele deve fazer, ele
toma como ponto de partida a concepção daquilo que o homem realizado (virtuoso) faria –
em vez de uma noção de obrigação para com os outros, pura e simplesmente.
É importante chamar atenção para um outro fato: para pertencer à esfera da ética em
geral, a concepção atrativa precisa não apenas reconhecer nossas obrigações para com os
outros, mas precisa também admitir que tais obrigações caracterizam-se por uma validade,
se não estritamente universal, ao menos supra-individual, associada a tipos de indivíduos
e/ou a papéis sociais; em outras palavras, ela precisa reconhecer não apenas que um
comportamento justo e honesto constitui-se numa obrigação do sujeito para com os outros,
mas também que essa obrigação vale para os sujeitos de um modo geral, na feição e grau
determinados pela posição e circunstâncias de cada um. Ora, se é verdade que a concepção
atrativa embute essa obrigação no ideal de realização pessoal, então, para reconhecer e
legitimar sua validade genérica, ela precisa conferir a esse ideal uma pretensão de validade
geral e objetiva. Em outras palavras, se ser justo e honesto constitui-se numa obrigação que
vale para os sujeitos de um modo geral, e se a validade dessa obrigação está vinculada à
validade de um certo ideal de realização pessoal, é porque esse ideal pretende ter validade
geral e objetiva. E dizer que ele pretende ter validade objetiva equivale a dizer que as
eventuais divergências em relação a ele devem ser vistas como momentos de uma discussão
racional e pública, quer dizer, de uma discussão que se ancora em critérios publicamente
compartilhados, que lhe permitem encaminhar-se para uma solução que possa vir a ser
aceita como objetivamente válida.
Assim, o pressuposto fundamental da concepção atrativa da ética é que o ideal de
realização pessoal no qual ela se ancora pode erguer uma pretensão de validade geral e
objetiva, ou seja, pode legitimamente apresentar-se como objeto de uma discussão racional
e pública, no sentido acima indicado. Ora, esse pressuposto só tem ressonância num
contexto histórico bem definido, a saber, num contexto em que a questão da realização
12
pessoal seja vista, justamente, como legítimo objeto de uma discussão racional e pública,
em vez de ser vista como uma questão essencialmente privada, vinculada a tendências e
preferências individuais, cujos desacordos não podem ser encaminhados e resolvidos
segundo os critérios de uma razão publicamente compartilhada. Num contexto histórico em
que a questão da realização pessoal for vista dessa última maneira, como essencialmente
privada, o pressuposto fundamental da concepção atrativa deixa de ter ressonância.
É por isso que, ainda nos passos de Sidgwick, Larmore afirma que a distinção entre
as concepções imperativa e atrativa da ética não é meramente lógico-conceitual, mas
possui, também, um fundamento histórico. A concepção atrativa corresponde à visão de
ética que predominava na cultura greco-romana, enquanto a imperativa corresponde à visão
que passa a predominar com o advento da modernidade, em resposta a certas experiências
que, para Larmore, são típicas dessa nossa época. Citando o próprio autor: “O elemento
crucial da experiência moderna é a percepção de que, na questão sobre o sentido da vida,
pessoas perfeitamente razoáveis tendem naturalmente a discordar. Nós acabamos por nos
encontrar na expectativa de que, numa discussão livre e aberta sobre a vida bem sucedida, o
bem humano, a natureza da realização pessoal – noções essenciais à concepção centrada
nas virtudes própria da ética antiga -, quanto mais conversarmos, mais vamos discordar,
inclusive com nós mesmos”. 2 Podemos afirmar então que a experiência crucial da
modernidade equivale a uma rejeição da pretensão de objetividade erguida pelos conceitos
sobre os quais se apóia a concepção atrativa da ética. Na modernidade, a questão da
realização pessoal deixa de ser vista como objeto legítimo de uma discussão racional e
pública, e passa a ser vista como uma questão essencialmente privada, vinculada a
tendências e preferências que, apesar de particulares e variadas, são igualmente razoáveis,
desprovidas de critérios de hierarquização intersubjetivamente acolhidos. Para Larmore, as
recentes e renovadas tentativas de resgatar uma ética das virtudes (ou da vida bem-
sucedida), cujas origens remontam, primeiro, a Modern Moral Philosophy (1958), de
2
Idem, Ibidem, p.12. John Rawls faz o mesmo diagnóstico da experiência moderna, especialmente em
Political Liberalism (Nova York, Columbia University Press, 1996). Para ele, com efeito, o traço fundamental
da experiência moderna é o reconhecimento de que foi a própria reflexão racional que gerou (e continua a
gerar) um pluralismo razoável das concepções de bem, o qual, por conseguinte, representa um fato que não
pode ser desrespeitado. Entretanto, Rawls explora as implicações desse fato não tanto pelo viés da ética, quer
dizer, da reflexão sobre o modo como devem estruturar-se as relações entre os indivíduos de um modo geral,
mas, antes, pelo viés da filosofia política, quer dizer, da reflexão sobre o modo como deve estruturar-se o
Estado e as relações do Estado com os cidadãos.
13
G.E.M. Anscombe, e depois a After Virtue (1981), de A. MacIntyre, - tais tentativas não
dão a devida atenção a esse fato. Em outras palavras, por não darem devida atenção a uma
experiência que, além de crucial e inescapável, demole seus pressupostos e pretensões
fundamentais, tais tentativas não têm condição de ser bem sucedidas.
Os resultados desse esvaziamento da pretensão de validade objetiva do ideal de
realização pessoal são os seguintes: a validade objetiva de nossas obrigações para com os
outros não pode mais ancorar-se num ideal de realização pessoal objetivamente válido;
conseqüentemente, tais obrigações desvinculam-se da noção de realização pessoal e
adquirem o status de dever incondicionado. E é justamente na qualidade de dever
incondicionado que a obrigação para com os outros passa a constituir o ponto de partida da
reflexão ética. Em outras palavras, o resultado é a emergência de uma concepção
imperativa da ética e das ações eticamente recomendáveis, que se caracteriza por duas
teses interligadas (a segunda é conseqüência da primeira): em primeiro lugar, a tese de que
a todo indivíduo impõem-se certas obrigações para com os outros, cuja validade objetiva é
logicamente independente da concepção de realização pessoal que cada um possa
eventualmente assumir; em segundo lugar, a tese de que a determinação do conteúdo das
ações obrigatórias é logicamente independente da questão de se (e em que medida) tais
ações promovem (ou não) a realização pessoal do próprio agente de quem se exigem. É
claro que a emergência dessas teses agrava um problema que, no âmbito da concepção
atrativa, era relativamente fácil de ser resolvido, pelo menos no plano teórico; trata-se do
problema da motivação para a ação moralmente devida. Formulado em primeira pessoa, o
problema se expressa nos seguintes termos: se eu já não acredito mais na idéia de que
cumprir minhas obrigações para com os outros é bom para mim, quer dizer, favorável à
minha realização pessoal, que motivo posso encontrar para cumpri-las? Que motivo posso
encontrar para praticar a ação que foi determinada como moralmente obrigatória ou
correta? A meu ver, a gravidade que esse problema adquire no âmbito da concepção
imperativa representa a fonte que alimenta todas as tentativas de recuperar uma concepção
atrativa da ética.3
3
Sobre as dificuldades que a concepção imperativa encontra para lidar com o problema da motivação para o
agir moral, ver Tugendhat, E.: Vorlesungen über Ethik. Frankfurt, Suhrkamp, 1993. Tais dificuldades se
expressam também no famoso debate entre “internalistas” e “externalistas”, o qual é, todo ele, interno à
concepção imperativa da ética. Sobre esse debate, ver Frankena, W.: Obligation and Motivation in Recent
Moral Philosophy, in Melden, A. (Ed.): Essays on Moral Philosophy, Seattle, University of Washington
14
Press, 1958, p.40-81; Korsgaard, C: Skepticism About Practical Reason (1986), in Creating the Kingdom of
Ends, Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p.311-334 e Williams, Bernard: Internal and External
Reasons, in Moral Luck, Cambridge, Cambridge University Press, 1981, p.101-113.
15
4
Larmore, Ibidem, p. 22-23. O grifo é meu.
17
Global”. No caso do uso como “verdadeiramente bom”, o conceito é usado para marcar
ações que são boas para o próprio agente, ou seja, ações que promovem o bem (pessoal) do
próprio agente, tal como definido por um ideal com pretensão de validade geral e objetiva
(ou seja, pretensão de verdade); quando é usado nesse sentido, o “bom” equivale à
qualidade que caracteriza a atratividade da ação para o próprio agente. Nesse caso, o
conceito primordial da deliberação moral é, justamente, o conceito de ação boa para o
próprio agente, cuja explicação exige uma teoria da realização humana com pretensões de
validade objetiva. Tal uso corresponde, precisamente, à concepção atrativa da ética.
Em segundo lugar, entretanto, o conceito de bom pode ser usado para marcar ações
que são globalmente boas, ou seja, ações que maximizam os benefícios para todos os
indivíduos que serão afetados por elas; quando é usado desse modo, o “bom”, em vez de
equivaler à qualidade que caracteriza a atratividade da ação para o próprio agente, equivale
à qualidade que caracteriza a correção de uma ação que, do ponto de vista da determinação
do seu conteúdo, se apresenta, antes de tudo, como obrigatória. Nesse último sentido, o
“(globalmente) bom” representa um critério de determinação e esclarecimento da ação
correta, tomada por sua vez como ação antes de tudo obrigatória. Em outras palavras, o
conceito primordial da deliberação moral é aqui o conceito de ação obrigatória, a qual
possui a marca da correção, e é apenas para explicar a correção da ação que se introduz a
noção de “globalmente bom”. Esse último uso de “bom” corresponde, portanto, a uma
concepção imperativa da ética, quer dizer, a uma certa versão dessa concepção, como
veremos logo a seguir.
Aos dois sentidos de “bom” acima discriminados vinculam-se dois sentidos
igualmente diferentes do conceito de “fim” da ação. Nos dois casos, com efeito, o bem
representa o fim da ação. No primeiro caso, entretanto, o fim da ação é o bem do próprio
agente, ou seja, é a sua própria realização pessoal, tal como definida por um ideal com
pretensão de verdade. Trata-se da finalidade suprema que todo agente tem interesse em
alcançar. Nesse sentido, a ação (pessoalmente) boa é aquela que de algum modo promove a
finalidade suprema que o próprio agente está interessado em alcançar. Ao segundo sentido
de bom acima mencionado, por outro lado, vincula-se a tese de que o fim da ação deve ser
compreendido, não em termos pessoais, mas em termos impessoais, quer dizer, sociais e
globais: o fim refere-se à totalidade das conseqüências sociais da ação, ou seja, ao conjunto
18
das conseqüências que a ação vai provavelmente acarretar para todos os indivíduos que
serão afetados por ela. Nesse caso, o fim da ação é o bem global, ou seja, a maximização de
benefícios no conjunto dos afetados; a ação correta é, precisamente, a ação globalmente
boa, quer dizer, aquela que maximiza o bem entre todos os atingidos. Embora nos dois
casos haja, decerto, uma preocupação com o fim da ação, trata-se de duas preocupações
essencialmente diferentes: no primeiro caso, trata-se de uma preocupação com a finalidade
suprema que o próprio agente está interessado em alcançar, ou seja, trata-se de uma
preocupação com a compatibilidade e fecundidade da ação em relação à realização pessoal
do próprio agente; no segundo caso, trata-se de uma preocupação com as conseqüências
globais da ação, ou seja, trata-se de uma preocupação com a eficácia da ação para gerar um
máximo de benefícios entre todos os afetados. De acordo com o que foi dito acima, o
primeiro entendimento do “fim” (da ação) corresponde à concepção atrativa da ética; já o
segundo corresponde a uma certa versão da concepção imperativa, a qual, por ser pautada
pela preocupação com as conseqüências globais da ação, pode ser chamada de concepção
“imperativo-conseqüencialista” da ética.
Embora as duas preocupações acima discriminadas sejam essencialmente diferentes,
o fato de em ambos os casos se poder falar de uma preocupação com o fim da ação faz com
que as duas concepções éticas acima mencionadas sejam às vezes confusamente agrupadas
sob o título genérico de “teleologia” (de telos, fim). Esse tipo de confusão aparece, por
exemplo, em W. Frankena, o qual, em seu pequeno livro Ethics, classifica a concepção
atrativa como a versão “egoística” da ética teleológica, e a concepção imperativo-
conseqüencialista como a versão “universalista” desse mesmo tipo geral de ética. 5 Para
evitar esse tipo de confusão, dispensaremos os títulos “teleologia” e “ética teleológica”, e
usaremos, conforme o caso, os títulos “concepção atrativa da ética” (ou ética da boa vida) e
“concepção imperativo-conseqüencialista da ética”, ou, mais simplesmente, ética
conseqüencialista. Sempre então que falarmos de teoria conseqüencialista, ou de
conseqüencialismo, estaremos visando a versão conseqüencialista da concepção imperativa
da ética, centrada na noção de ação obrigatória e correta.
Antes de passar para um novo tópico, gostaria de fazer um breve comentário sobre o
modo como essas confusões terminológicas se expressam no plano da filosofia política. No
5
Frankena, W: Ethics. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1973. Páginas 14-16.
19
âmbito da filosofia política, com efeito, a confusão gerada pelo termo “teleológico” se torna
ainda mais aguda. Para apresentar essa confusão, podemos dizer que, nesse caso, o agente é
o Estado, e o fim da ação é o fim da ação do Estado. Ora, segundo a concepção atrativa, o
fim da ação é a realização do próprio agente – no caso em questão, é a realização do
Estado, ou seja, a felicidade do Estado. Grosso modo, entretanto, pode-se dizer que, para a
concepção atrativa, a felicidade do Estado equivale à felicidade dos cidadãos que vivem no
mesmo6; ora, a tese de que o fim da ação do Estado é a felicidade dos cidadãos que vivem
no mesmo parece reproduzir fielmente o pensamento dos teóricos conseqüencialistas.
Parece-me entretanto que, apesar dessa aparente identidade, a diferença permanece,
vinculada a diferentes modos de se entender a noção de felicidade (bem). No caso da
concepção atrativa, como vimos acima, a felicidade é concebida em termos de um ideal de
realização humana com pretensões de validade geral e objetiva. E dizer que esse ideal ergue
uma pretensão de verdade equivale a dizer duas coisas. Em primeiro lugar, todos os
membros do Estado (da comunidade) devem partilhar dele e orientar-se por ele, na feição e
grau determinados pelas circunstâncias peculiares a cada um. É justamente por isso que
esse ideal pode também ser intitulado de uma concepção abrangente do bem. Trata-se de
uma concepção unitária que determina o sentido da vida de cada cidadão e da própria
comunidade como um todo. Em segundo lugar, o Estado deve formar (ou educar) os
cidadãos para a vida segundo esse ideal. A justiça das instituições e ações da comunidade
mede-se, justamente, pelo sucesso na formação de cidadãos virtuosos, ou seja, cidadãos
habituados a viver de acordo com os preceitos da concepção abrangente do bem. E isso
também pode ser expresso da seguinte maneira: na concepção atrativa, há uma prioridade
da concepção abrangente do bem sobre as noções de “justo” e “justiça”.
Ora, no caso da concepção imperativo-conseqüencialista, como vimos acima, a
felicidade dos cidadãos deixa de estar vinculada a uma concepção abrangente do bem, e
passa a ser entendida em termos de experiências e projetos de caráter privado. Enquanto na
concepção atrativa o fim da ação do Estado é a formação dos cidadãos para a verdadeira
felicidade, ou seja, a felicidade alcançada no cumprimento da concepção abrangente do
bem, no caso da concepção conseqüencialista o fim da ação do Estado é a promoção (ou
maximização) da felicidade “privada” dos cidadãos, ou seja, a felicidade alcançada na
6
Sobre essa questão, ver Nussbaum, Martha: Nature, Function and Capability: Aristotle on Political
Distribution, in Oxford Studies in Ancient Philosophy, Supplementary Volume, 1988, p.145-184.
20
do conteúdo da ação ou regra correta, mas do motivo para se cumprir a regra correta. Nesse
seu novo uso, portanto, a noção de bem privado é inserida no âmbito da motivação.
Para apresentar esse novo uso, gostaria de retomar duas características da concepção
atrativa da ética. Vimos acima que, nessa perspectiva, as obrigações para com os outros são
embutidas na concepção do verdadeiro bem do agente; isso significa que as relações com os
outros constituem o meio (ambiente) no qual, apenas, o indivíduo pode buscar e atingir seu
verdadeiro bem. De forma esquemática e simplificada, podemos dizer o seguinte. Para
atingir seu verdadeiro bem, o indivíduo precisa exercer suas virtudes, e ao exercer suas
virtudes ele simultaneamente atende às necessidades e expectativas dos outros – desde que
essas sejam legítimas, quer dizer, igualmente orientadas pelas virtudes. Há, portanto, uma
tendência socialmente integrativa nessa concepção de felicidade, e é por isso, justamente,
que ela pode ser qualificada como uma concepção unitária e abrangente de bem, tal como
acima indicado.
A segunda característica que gostaria de destacar é a seguinte. Na perspectiva
atrativa da ética, a concepção unitária e abrangente do bem desempenha duas funções,
simultaneamente. (Na verdade, na concepção atrativa essas duas funções estão
essencialmente unidas, e a operação de distingui-las apresenta algo de artificial, ainda que
possa ser considerada legítima, tendo em vista a clareza conceitual). Em primeiro lugar, ela
desempenha a função de princípio de determinação da ação eticamente recomendável; para
determinar qual é, exatamente, a ação eticamente recomendável, o agente toma como ponto
de partida a referida concepção do seu verdadeiro bem. E isso só pode acontecer porque
essa concepção, como foi dito, inclui os deveres ou obrigações para com os outros. Com
efeito, a ação eticamente recomendável, por definição, é uma ação que atende às legítimas
demandas dos outros, e por isso o agente só pode usar uma concepção do seu bem para
determinar a ação eticamente recomendável caso essa concepção (do seu bem) inclua,
essencialmente, consideração pelas legítimas demandas dos outros, quer dizer, inclua,
essencialmente, consideração pelos deveres ou obrigações para com os outros.
Em segundo lugar, entretanto, a concepção unitária e abrangente do bem
desempenha também a função de motivo para se praticar a ação eticamente recomendável.
Com efeito, dizer que se trata de uma concepção do bem do próprio agente, mais ainda, do
seu bem último, equivale a dizer que ela dispõe de suficiente “força motivacional” – é por
22
isso, justamente, que a concepção atrativa tende a interpretar desvios éticos não tanto em
termos de falhas motivacionais, mas, antes, em termos de falhas no conhecimento do
verdadeiro bem.
Façamos agora um contraste com a experiência moral típica da concepção
imperativa. Vimos acima que o que caracteriza essa última concepção é o afastamento da
pretensão de validade geral e objetiva de qualquer ideal de realização pessoal. A questão da
realização pessoal passa a ser vista como essencialmente privada. De forma um tanto
esquemática e simplificada, pode-se afirmar que a essa “privatização” da questão sobre a
felicidade corresponde uma privatização da própria noção de felicidade: excetuando as
relações mais próximas, as relações com os outros deixam de ser vistas como meio
(ambiente) no qual, apenas, o indivíduo pode buscar e atingir seu verdadeiro bem, e passam
a ser vistas como meio (recurso/instrumento) de que o indivíduo simplesmente se serve
para buscar e atingir sua felicidade privada. Ainda de forma um tanto esquemática e
simplificada, pode-se dizer que, pelo menos para efeito da argumentação contra o cético, a
concepção imperativa (da ética) admite e até assume a noção “privatista” (egoísta) que os
sofistas opunham à concepção de verdadeiro bem defendida pelos filósofos, na medida em
que desloca o eixo da argumentação contra o cético, da noção de excelência no viver com
os outros para a noção da inevitabilidade de uma interação minimamente ordenada com os
outros7. Ao assumir essa noção egoísta, o partidário da concepção imperativa desenvolve,
grosso modo, o seguinte argumento: o que eu (qualquer um) quero é meu bem privado, e se
eu tivesse o poder eu imporia meu bem aos outros, usando-os para a minha satisfação. Mas,
(infelizmente), eu (qualquer um) não tenho esse poder, e ao mesmo tempo preciso da
7
Veja, por exemplo, o Livro I da República e o Górgias de Platão, e compare com os temas modernos da
“guerra de todos contra todos” (Hobbes) e da “insociável sociabilidade” (Kant).
Ver também Canto-Sperber, Monique: Bonheur, in Canto-Sperber, Monique (ed.): Dictionnaire d’éthique et
de philosophie morale, Paris, PUF, 2004, p.197-210. Ver, entre outras passagens semelhantes, a página 205:
“Por mais surpreendente que seja uma tal associação entre utilitarismo e kantismo, essas duas filosofias
ilustram duas maneiras profundas e sistemáticas de pensar a divergência existente entre os fins humanos que
se orientam para a felicidade e aqueles que se orientam para a moralidade. (...) A grande dificuldade que os
utilitaristas encontram é então mostrar como à felicidade-prazer, concebida como o fim natural que todos os
indivíduos perseguem (é a tese fundamental do hedonismo psicológico que nós lhes atribuímos mais acima),
deve substituir-se a felicidade do maior número, da qual é difícil dizer à primeira vista que é naturalmente
buscada por todos os seres humanos. A teoria utilitarista formula assim, de modo absolutamente claro, uma
dissociação entre a visada moral do agente (que nesse caso é a busca de uma felicidade imparcial e coletiva) e
a busca da felicidade (entendida como felicidade pessoal).” É essa dissociação, justamente, que não aparece
na concepção atrativa, para a qual “(...) a vida boa é, ao mesmo tempo, a vida feliz e a vida moralmente
perfeita.” (p.197).
23
interação com os outros para atingir meu bem privado. Ora, como não tenho o poder de
pura e simplesmente impor minha vontade aos outros, mas ao mesmo tempo preciso de
uma interação minimamente estável e ordenada com eles, tenho de entrar em acordo com
eles quanto aos princípios que vão reger nossa interação. Na perspectiva privatista da
felicidade, esses princípios aparecem, não como algo que é, essencialmente, bom para mim,
mas como um “mal necessário”, quer dizer, como uma obrigação que devo aceitar e
cumprir, para poder perseguir mais eficazmente meu bem privado. Em outras palavras,
como não tenho o poder de pura e simplesmente impor meu bem aos outros, tenho de
reconhecer que, para perseguir meu bem privado, é necessário assumir certos deveres ou
obrigações para com eles, desde que eles também os assumam para comigo.
Ora, é claro que a determinação do conteúdo desses deveres não pode apoiar-se,
apenas, no conceito do que é bom para mim, uma vez que os outros não aceitariam uma
obrigação que fosse determinada com base, apenas, no que é bom para mim. Tenho de
aceitar uma limitação na busca do que é bom para mim, tendo em vista a necessidade de
que o outro aceite as regras da nossa interação. Assim, a determinação do conteúdo dos
deveres recíprocos só pode apoiar-se no conceito daquilo que todos podem e devem
racionalmente aceitar, quer dizer, no conceito do que é justo e correto para todos. Como
conseqüência da privatização da noção de bem, tal noção não pode mais servir como
princípio da determinação das regras e atos moralmente recomendáveis; tal princípio só
pode agora consistir na noção de obrigação universal, entendida como uma obrigação que,
por ser igualmente exigível de todos, tem de poder ser racionalmente aceita por todos.
No âmbito da concepção imperativa, portanto, a determinação das regras e
princípios da interação social segue, grosso modo, um raciocínio estruturado pelas
seguintes questões. Considerando que as regras serão igualmente exigidas de todos, e que
todos deverão igualmente cumpri-las, pergunta-se: posso conceber um mundo em que tal
(ou qual) regra será universalmente seguida? Posso querer um mundo em que tal (ou qual)
regra será universalmente seguida? Posso afirmar que todos podem e devem aceitar que tal
(ou qual) regra seja universalmente seguida? Posso afirmar que tal (ou qual) regra (tomada
como regra que será universalmente seguida) pode e deve ser objeto de um acordo ou
contrato entre todos os participantes da interação social? O que estou querendo dizer é o
seguinte: no âmbito da concepção imperativa, a determinação das regras da interação
24
social, quer dizer, dos deveres (obrigações) que os indivíduos assumem uns em relação aos
outros, por meio do Estado como poder comum, - tal determinação envolve os conceitos de
universalização e contrato social, que por sua vez envolvem o conceito do indivíduo-
legislador, quer dizer, do protagonista dos procedimentos de universalização e do contrato.
Gostaria agora de elaborar um pouco mais a questão sobre a posição que o conceito
de bem privado (individual) pode ocupar no âmbito da concepção imperativa. Gostaria de
destacar, em primeiro lugar, o seguinte: a conseqüência da privatização (ou atomização) da
noção de bem é a necessidade de se estabelecer uma distinção entre, por um lado, o âmbito
da determinação (e justificação) das regras e princípios moralmente corretos e, por outro
lado, o âmbito da motivação para se aderir ao universo (ou reino) das regras e princípios
moralmente corretos. Trata-se da distinção entre, por um lado, os conceitos e critérios que
regem o procedimento seguido na determinação e justificação do conteúdo dos princípios
morais, e, por outro lado, o motivo para se ingressar no reino dos princípios morais.
De forma esquemática e simplificada, pode-se afirmar que, no âmbito da motivação,
a concepção imperativa admite duas posições típicas. Na primeira posição, o motivo para se
ingressar no reino das regras e princípios morais consiste numa experiência “vital” da
racionalidade prática e legisladora, entendida como uma faculdade radicalmente distinta
dos interesses de caráter privado e egoísta; na segunda posição, o motivo consiste numa
noção prudente e esclarecida do bem privado. 8 Na primeira posição, a experiência da
8
É importante destacar que, por mais prudente e esclarecida que seja, trata-se ainda de uma noção “privada”
do bem pessoal. Em outras palavras, por mais que essa noção (do bem pessoal) inclua consideração pelo bem
dos outros, ela não se apresenta mais em termos de conhecimento com pretensão de verdade, mas em termos
de opinião privada. A diferença fica clara se pensarmos em termos de “razão para agir”. Por referirem-se
primordialmente ao que é pessoalmente bom, os juízos morais da concepção atrativa constituem-se
automaticamente em razão para agir – não só para aqueles que os aceitam, mas também para aqueles que
(equivocadamente) não os aceitam. Mais precisamente, no âmbito da concepção atrativa atribui-se ao juízo
moral a propriedade de ser “verdadeiro” (ou não), e dizer que os juízos morais são verdadeiros equivale a
dizer que eles representam razões para agir objetivamente válidas, mesmo para aqueles que equivocadamente
não os reconheçam, ou seja, mesmo para aqueles que tenham (e conservem) uma opinião objetivamente
errada a respeito dos propósitos da existência humana – e mesmo que esses indivíduos equivocados
aparentemente se saiam muito bem na vida. A concepção atrativa coloca o filósofo numa posição de
superioridade cognitiva em relação ao homem imoral. Mesmo que o homem imoral não se convença com seus
argumentos, ele se arroga o direito de dizer-lhe que ele está objetivamente errado, que ele tem uma razão
(objetiva) para agir de outra maneira, e que ele está sendo irracional – no sentido de que está agindo contra
seu propósito, que é ser feliz.
A situação do filósofo moral no âmbito da concepção imperativa é num certo sentido mais
complicada, como deixa claro o famoso artigo de Philippa Foot, Morality as a System of Hypothetical
Imperatives (reproduzido em Darwall, S., Gibbard, A. e Railton, P. (Eds.), Moral Discourse and Practice:
Some Philosophical Approaches, New York, Oxford University Press, 1997, p.313-320). Por referirem-se
primordialmente ao que é correto e justo, os juízos morais da concepção imperativa não têm a mesma
25
facilidade de constituir-se em razões para agir. Mesmo que eles ergam pretensão de verdade, e mesmo que sua
verdade seja reconhecida, isso ainda não os transforma em razões para agir – falta, justamente, a conexão com
o que é bom para o agente. O imoral da concepção imperativa pode reconhecer a verdade de um juízo moral e
mesmo assim não reconhecê-lo como razão para agir. É por isso que o imoral da concepção imperativa pode
dizer algo que seria impensável para o imoral da concepção atrativa: “admito que é imoral – mas e daí?” (Ver
Foot, Op. Cit., p.316). No caso da concepção atrativa, com efeito, isso significaria “admito que é ruim para
mim – mas e daí?” – trata-se de algo impensável. Já no caso da concepção imperativa, isso significa “admito
que é incorreto e injusto – mas e daí?” Para transformar o juízo moral numa razão para agir, o filósofo da
concepção imperativa tem dois caminhos argumentativos. Em primeiro lugar, transformar o juízo “deve-se
agir assim”, ele próprio, numa razão para agir objetiva e incondicionada, quer dizer, numa razão para agir cuja
validade não depende de nenhuma noção de bem pessoal – trata-se da posição rejeitada por Foot no referido
artigo. Ou, em segundo lugar, seguir o caminho sugerido por Foot no referido artigo: subordinar o juízo
“deve-se agir assim” a uma certa noção de bem pessoal, e recomendar tal noção ao interlocutor. Mesmo nesse
último caso, entretanto, Foot deixa claro que não se pode dizer ao indivíduo que não chega a adotar essa
noção (como se podia dizer ao imoral da concepção atrativa) – não se pode dizer a ele que ele está sendo
irracional, no sentido de que está agindo contra seu propósito, que é ser feliz (Cf. Foot, Op. Cit., p.316). Ora,
o fato de não se poder dizer isso a ele demonstra que se trata aqui de uma opinião privada sobre o bem
pessoal, e que não pode passar disso.
9
Ver Foot, Philippa: Morality as a System of Hypothetical Imperatives, in Darwall, S., Gibbard, A. e Railton,
P. (Eds.), Moral Discourse and Practice: Some Philosophical Approaches, New York, Oxford University
Press, 1997, p.313-320. Foot afirma que, do ponto de vista da sua efetiva validade prática, o “você deve” da
moralidade pode ser equiparado ao “você deve” da etiqueta da alta sociedade (ou de um clube aristocrático):
em ambos os casos, a correção da regra não depende dos interesses ou sentimentos do indivíduo que se vê
defrontado com ela (o que Foot apresenta como manifestação do uso não-hipotético do “você deve”), embora,
por outro lado, a regra só tenha efetiva validade prática caso o indivíduo, por alguma outra razão (que não a
mera correção da regra), tenha interesse em participar do universo regido pela mesma – quer seja o reino da
moralidade, quer seja o universo da alta sociedade, ou do clube aristocrático (o que Foot apresenta como
demonstração do caráter hipotético do “você deve” – daí a tese de que a moralidade, tanto quanto as regras de
etiqueta, consiste num conjunto de imperativos hipotéticos).
A meu ver, Foot deveria admitir que, embora o reino da moralidade não seja propriamente
inescapável, há uma diferença significativa, pelo menos no âmbito das modernas sociedades pluralistas, entre,
por um lado, sair do universo da etiqueta (quer a etiqueta da alta sociedade, quer a do clube aristocrático), e,
por outro lado, sair do universo da moralidade enquanto tal. Com efeito, numa sociedade pluralista, a
sociedade e o próprio indivíduo reconhecem o “direito individual” de escapar do universo aristocrático (ou do
universo do “bom-tom”, no qual as virtudes éticas e da etiqueta acham-se confundidas) e ir procurar “outra
turma” – e vice-versa. Nesse caso, portanto, a correção “incondicionada” da regra (o fato de sua correção não
depender dos interesses ou cuidados do indivíduo que se vê defrontado com ela) está ligada a esse “direito” de
escapar do universo regido por ela, ou seja, está ligada ao fato de que a regra não se apresenta como
estritamente obrigatória. E é justamente por isso que, nesse caso, a correção da regra não precisa ficar ligada
às noções de aceitação ou aceitabilidade por parte dos indivíduos afetados.
26
ingressar no universo do contrato social (universo moral) só pode consistir numa noção
prudente e esclarecida do bem privado.
O ponto essencial é, porém, o seguinte. Ainda que se adote a posição de que o
motivo para se aderir ao universo do contrato social consiste no bem privado, a noção-
chave do procedimento do contrato (a noção que rege tal procedimento) não pode ser a de
bem privado, quer dizer, do que é bom ou vantajoso para mim, mas tem de ser a do que é
justo, quer dizer, do que pode e deve ser aceito por todos, como universalmente obrigatório.
Com efeito, uma vez que o pressuposto fundamental da idéia do contrato é a igualdade
entre os participantes – pois se não houvesse igualdade os mais fortes simplesmente
imporiam seu bem, em vez de buscar um acordo ou contrato com os outros, - para decidir
quais podem ser as cláusulas do contrato tenho de me reportar, não simplesmente ao que é
bom para mim (quer dizer, àquilo que atende aos meus interesses privados e egoístas), mas
àquilo que pode e deve ser aceito por todos – àquilo que é justo e correto impor a todos.
Assim, ainda que se adote a posição de que, do ponto de vista da motivação, todo
dever é condicionado, quer dizer, condicionado a uma noção do bem privado, - ainda assim,
na esfera da determinação do conteúdo das regras, a noção-chave tem de continuar a ser a
de dever incondicionado, quer dizer, a de um dever cuja exigibilidade objetiva não depende
dos interesses e desejos privados (variados, variáveis) dos indivíduos. É justamente pelo
fato de se tratar de um dever (nesse sentido) incondicionado que se coloca a necessidade de
ele poder ser aceito por todos os concernidos, como justo e correto – o que por sua vez
acarreta a necessidade de esses indivíduos afastarem-se de suas posições meramente
privadas e colocarem-se na posição de indivíduos-legisladores.
É claro que, num certo sentido, a idéia do contrato supõe que os indivíduos queiram
estabelecer um contrato, quer dizer, tenham uma razão (um motivo) para buscar um
contrato. Mas apenas “num certo sentido”. Com efeito, uma vez que os motivos são
variados e variáveis, e admite-se que eles sejam assim, a especificação do conteúdo do
contrato é logicamente independente dos motivos que os indivíduos podem ter (ou vir a ter,
ou deixar de ter) para aderir a ele – nesse sentido, o contrato é independente dos motivos.
Em outras palavras, as razões que eles podem ter para buscar um contrato não devem ser
confundidas com as razões que eles podem usar para determinar as cláusulas (conteúdo) do
contrato. As razões (motivos) que eles podem ter para buscar um contrato remetem a
desejos e interesses que eles têm “fora” do contrato, quer dizer, “fora” do procedimento do
contrato (quer antes, quer depois – o contrato, afinal, não está propriamente no tempo);
trata-se, além disso, de razões “privadas”, no sentido de razões que se definem pelo
pertencimento à esfera dos indivíduos comuns, com suas respectivas histórias pessoais. Já
as razões que eles usam para determinar as cláusulas do contrato são internas ao
procedimento propriamente dito, quer dizer, são razões que se constituem dentro do
procedimento, na medida em que eles assumem a posição de indivíduos-legisladores.
O motivo para buscar um contrato pode ser, inclusive, o desejo de justificar minha
conduta aos outros, com base em termos de cooperação publicamente aceitos.10 Entretanto,
ainda que eu tenha esse desejo, isso não significa que eu já saiba quais são, exatamente, os
termos de cooperação que podem e devem ser publicamente aceitos; não significa sequer
que eu já disponha das razões capazes de indicar (e justificar) quais são os termos de
cooperação que podem e devem ser publicamente aceitos. É claro que essas últimas razões,
numa certa medida, envolvem a noção do que é bom para mim. Mas apenas “numa certa
medida”. Com efeito, indicar que termos de cooperação podem e devem ser publicamente
aceitos implica especificar e justificar o que o outro deve ceder a mim, tendo em vista o que
é bom para mim (ou seja, que limites o outro deve ceder-me na busca do bem dele, tendo
em vista o que é bom para mim); mas implica também reconhecer o que eu devo ceder a
ele, tendo em vista o que é bom para ele. A idéia básica é: ninguém pode fazer avançar seus
interesses às custas do outro – vale dizer: todos devem reconhecer os termos como justos. O
10
Ver, por exemplo, Freeman, Samuel: Reason and Agreement in Social Contract Views, in Philosophy and
Public Affairs, vol.19, n.2, 1990, p.122-157.
28
Em seu artigo The Social Contract Tradition, 11 Will Kymlicka divide as teorias
contratualistas contemporâneas em teorias “hobbesianas” e teorias “kantianas”. Para ele,
enquanto o contratualismo hobbesiano enfatiza a idéia de vantagem mútua, o
contratualismo kantiano enfatiza a idéia de imparcialidade; mais precisamente, enquanto o
contratualismo hobbesiano “enfatiza a igualdade natural de poder físico, que torna
mutuamente vantajoso para os indivíduos aceitar convenções que reconheçam e protejam
os interesses e posses de cada um, reciprocamente”, o contratualismo kantiano “enfatiza a
igualdade natural de status moral, que transforma os interesses de cada pessoa em matéria
de consideração comum e imparcial.” (p.188). Em seu verbete Contractualisme,12 Samuel
Freeman estabelece uma divisão semelhante, embora substitua as noções de “igualdade de
status moral” e “imparcialidade” pela noção de “direitos”.13 Eu cito: “As duas principais
correntes da doutrina do contrato social se interessam, tradicionalmente, pelas questões de
justiça política. As concepções do contrato fundadas nos interesses são oriundas da
reflexão de Hobbes; as concepções democráticas do contrato têm por origem a teoria dos
direitos naturais de Locke, desenvolvida depois por Rousseau e Kant.” (p.406; o grifo é do
autor).14
11
Publicado em Singer, Peter (Ed.): A Companion to Ethics, Oxford, Blackwell, 1993, p. 186-196.
12
Publicado em Canto-Sperber, Monique (Ed.): Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale, Paris, PUF,
2004, p.405-415.
13
É interessante destacar que em artigo anterior (Reason and Agreement in Social Contract Views, in
Philosophy and Public Affairs, vol.19, n.2, 1990, p.122-157) Freeman havia contraposto as concepções
hobbesianas, não a concepções baseadas em “direitos” (rights), mas a concepções baseadas no “correto”
(right), entendido como um princípio que, embora irredutivelmente moral, não necessariamente implica
“direitos individuais”. Na p.124, por exemplo, ele escreve o seguinte: “A característica comum a essas teorias
não é que elas baseiem o acordo numa suposição de direitos individuais prévios (...) É, antes, que os
princípios de correção e justiça não podem ser justificados sem o recurso a certas noções irredutivelmente
morais.” E na nota ele enfatiza a distinção entre “baseado no correto” (right-based) e “baseado em direitos”
(rights-based). Essa distinção, como se verá mais à frente, é essencial para a minha argumentação, pois vou
apresentar o utilitarismo como uma teoria que, embora baseada no correto/justo, entendida como noção
irredutivelmente moral, define o correto/justo como maximização da utilidade individual, o que implica
rejeição da reivindicação de valor absoluto expressa pelo conceito de direitos individuais.
14
No presente trabalho, não vou tratar das teorias clássicas do contrato, elaboradas por Hobbes, Locke,
Rousseau e Kant. Além disso, não vou propriamente me concentrar no tema do contrato social; tal tema só me
29
Esse trecho apresenta de forma bastante clara o dilema com que se vêem
confrontados os assim chamados contratualistas hobbesianos. Se quiserem priorizar o
problema da motivação, terão de basear o acordo no atual status quo, o que significa privá-
lo de seu caráter moral – pelo menos segundo o entendimento comum da moralidade, de
acordo com o qual a moralidade é radicalmente distinta da mera estratégia. Mais
precisamente, se quiserem priorizar o problema da motivação, terão de basear o conteúdo
do acordo na configuração de forças própria de um dado status quo, o que significa
transformar o acordo em questão de mera estratégia. Se, por outro lado, quiserem manter o
contrato social como um procedimento propriamente moral, terão de entendê-lo como
acordo num estado hipotético e idealizado, o chamado estado de natureza – o que implica
priorizar, não o problema da motivação, mas o problema da justificação das cláusulas do
acordo, quer dizer, do conteúdo das mesmas. É claro que os hobbesianos podem tentar
justificá-las dizendo que elas são vantajosas para os habitantes daquele hipotético estado de
natureza – mas isso constitui um emprego conceitualmente equivocado da idéia do
“vantajoso”; o que na verdade se está dizendo é que essas cláusulas seriam racionalmente
aceitas pelos indivíduos-legisladores do universo moral, o que por sua vez equivale a dizer
que elas são corretas e justas. A idéia de “vantajoso para o habitante do estado de natureza”
representa, não o que é vantajoso para mim, mas o que é moralmente racional, quer dizer,
correto. O conceito-chave voltou a ser, portanto, o de correto.
Suponhamos que os hobbesianos queiram priorizar o problema da motivação,
reduzindo as justificações morais à questão da motivação racional, e colocando essa última,
além disso, no contexto de uma concepção privatista de interesses não morais (à diferença
da concepção abrangente do interesse no verdadeiro bem). Isso para eles significa o
interessa pelos seus vínculos conceituais com a concepção imperativa e com a distinção entre posições
deontológicas e posições conseqüencialistas.
30
seguinte: justificar o conteúdo das regras da interação equivale a mostrar que elas são
vantajosas para todos os participantes; justificar o conteúdo do acordo equivale a mostrar
que ele é mutuamente vantajoso para os participantes. Como afirmamos acima, entretanto,
os hobbesianos têm de reconhecer que a priorização da questão da motivação apresenta a
seguinte implicação. O vantajoso para mim é, evidentemente, o que é atualmente vantajoso,
dada a atual correlação de forças, marcada, eventualmente, por grandes disparidades de
poder – e não o que seria vantajoso numa hipotética e idealizada situação de igualdade de
forças. Em outras palavras, ao priorizar a questão da motivação, o contratualismo
hobbesiano precisa não apenas enfatizar a idéia de vantagem mútua, mas entendê-la como
vantagem que, dada a atual correlação de forças, cada um obtém ao firmar um acordo com
o(s) outro(s).
É claro que a idéia de vantagem mútua pressupõe uma certa idéia de igualdade, só
que uma idéia bastante “delgada”. Não se trata da idéia de que inexistem diferenças
significativas de poder entre o mais forte e o mais fraco, - pois o acordo aqui concebido é
compatível com a existência de tais diferenças. Para viabilizar o pressuposto da vantagem
mútua, tudo que se exige da noção de igualdade de poder é que, mesmo que haja,
empiricamente, grande disparidade de poder entre o mais forte e o mais fraco, o poder do
mais forte não é grande o bastante para que não haja para ele nenhuma vantagem em um
possível acordo com o mais fraco – assim como o poder do mais fraco não é tão pequeno a
ponto de ele não conseguir obter do mais forte alguma vantagem num acordo comum. Mas
é óbvio que o conteúdo do acordo vai depender, inteiramente, da correlação de forças que
efetivamente se verifica entre os diversos participantes. Nessa perspectiva, não se pode
determinar de antemão qual seria o conteúdo racional do acordo; para saber que cláusulas
são mutuamente vantajosas, é preciso, antes, analisar os dados (empíricos) do status quo.
Esse modo de conceber o acordo suscita o seguinte questionamento. Tal concepção
deve ser vista, não tanto como uma “concepção alternativa da moralidade, mas, antes,
como uma alternativa à moralidade.”15 A idéia é mais ou menos a seguinte. É claro que se
pode sair do âmbito normativo ou moral, concebendo os princípios da interação social
como resultado de um jogo estratégico em que cada participante se reporta, exclusivamente,
ao seu bem privado e às possibilidades de incrementá-lo no atual status quo; nesse caso,
15
Kymlicka, Op. Cit., p.190. O grifo é meu.
31
porém, ainda que se possa afirmar que, dada a atual correlação de forças, o acordo
produzido foi o mais vantajoso para todos (no sentido de que, dada a atual correlação de
forças, todos obtiveram uma vantagem com o acordo, e ninguém poderia obter mais
vantagem do que a que obteve), dificilmente se poderia afirmar que o acordo é moralmente
correto ou justo – ele na verdade partiu de injustiças historicamente geradas, e nesse sentido
tende a representar uma cristalização das mesmas. Nesse caso, substituiu-se o conceito de
contrato social pela noção, justamente, de jogo estratégico, ou barganha coletiva.
É evidente, por outro lado, que esse tipo de questionamento não chega a representar
uma refutação da teoria. Como bem afirma Kymlicka, “O fato de que o contratualismo
hobbesiano não se conforma às visões comuns da moralidade não preocupa àqueles que
julgam que essas visões não se sustentam. Se as visões comuns da moralidade são
insustentáveis, e se o contratualismo hobbesiano não pode gerar moralidade, tanto pior para
a moralidade.”16 Suponhamos, entretanto, que os contratualistas hobbesianos não estejam
tão dispostos assim a abandonar a moralidade; quer dizer, aproveitando as palavras de
Kymlicka acima citadas, suponhamos que eles queiram apresentar seu contrato, não como
uma alternativa à moralidade, mas, antes, como uma concepção alternativa da moralidade.
Que caminho sua investigação deve nesse caso seguir?
O ponto de partida das concepções hobbesianas, como foi sugerido acima, é o
princípio de que o contrato é possível se e somente se há uma certa igualdade entre os
participantes da interação. Partindo desse princípio, entretanto, pode-se seguir dois
caminhos distintos. O investigador pode, em primeiro lugar, encaminhar-se para os fatos
constitutivos de um dado status quo, a fim de verificar se, nessa situação, há ou não
igualdade, e, caso haja, de que tipo e configuração. Seguindo esse caminho, ele vai por
assim dizer submeter-se aos dados empíricos – pois são os dados empíricos (referentes à
existência e configuração da igualdade num dado status quo) que vão determinar, primeiro,
se um contrato é ou não racional, quer dizer, possível; e, depois, qual conteúdo pode
racionalmente ser dado ao (possível) contrato. Seguindo-se esse caminho, como foi dito
acima, sai-se completamente da esfera da moral.
16
Idem, Ibidem, p.191.
32
17
Freeman, Contractualisme, p.407.
18
Ver Freeman, Reason and Agreement in Social Contract Views, p.133-134: “Gauthier coloca essas pessoas
em um estado de natureza não cooperativo, que é lockeano, no sentido de que a propriedade privada e os
direitos pessoais são reconhecidos, embora na base do interesse próprio, em vez de na base moral, como em
Locke. Cada indivíduo percebe que sua melhor resposta aos outros consiste em deixá-los no calmo gozo de
seus poderes e posses, com a condição de que eles respondam do mesmo modo. Por uma espécie de
convenção humeana, os indivíduos chegam a reconhecer os direitos pessoais e de propriedade uns dos
outros.”
33
um complicado cálculo acerca das atuais (e sempre mutáveis) circunstâncias, e não pode ser
tratada mediante recurso a uma situação hipotética e idealizada.
Essas considerações podem ser complementadas pelo seguinte argumento. Para
propor uma “reconstrução racional da moralidade”, Gauthier precisa tratar a igualdade
como um postulado racional, e não como objeto de investigação e verificação empíricas –
ele precisa tratar a igualdade, não como (possível) característica de um dado status quo,
mas como característica de um estado hipotético introduzido numa reconstrução racional
geralmente válida. Que igualdade é essa? De acordo com o que foi visto acima, ela
funciona como razão para se aceitar os conteúdos do “contrato social”. Assim, para
sabermos de que igualdade se trata, podemos partir dessa outra questão: que conteúdos
Gauthier recomenda?
De acordo com a passagem de Freeman acima citada, Gauthier assume a tese de que
o conteúdo racional do contrato social consiste nos princípios do liberalismo clássico
(liberalismo do “laisser-faire”). Ora, para assumir essa tese, ele precisa postular uma
igualdade muito mais forte do que a envolvida na mera idéia de vantagem mútua. A idéia
de vantagem mútua, como foi sugerido acima, não supõe igualdade no poder de prejudicar
o outro e na vulnerabilidade à ação agressiva do outro; mesmo que o poder de prejudicar o
outro e a vulnerabilidade à retaliação do outro sejam muito desiguais, pode haver, tanto
para o mais forte quanto para o mais fraco, vantagem em ceder algo ao outro, em troca de
outra coisa. Num status quo escravocrata, mesmo considerando a grande desigualdade de
senhores e escravos quanto ao poder de prejudicar o outro e à vulnerabilidade à ação
agressiva do outro, pode ser vantajoso (racional) para o senhor fazer pequenas concessões
ao escravo, em troca de algo que ele, apesar de seu enorme poder, não tem condições de
extorquir do outro 19 – mas não é racional (vantajoso) conceder-lhe liberdade formal e
direito de propriedade, quer dizer, não é racional conceder-lhe cláusulas liberais. E o
mesmo vale, por exemplo, para um status quo em que há monopólio.
Que igualdade o contratualista precisa então postular para justificar os conteúdos
normativos do liberalismo clássico? Se olharmos para a passagem de Freeman acima
citada, segundo a qual “cada indivíduo (do estado de natureza de Gauthier – A.S.B.)
percebe que sua melhor resposta aos outros consiste em deixá-los no calmo gozo de seus
19
O exemplo é tirado de Freeman, Contractualisme, p.413.
34
poderes e posses, com a condição de que eles respondam do mesmo modo”20 – se olharmos
para essa passagem, teremos razões para afirmar que Gauthier parte de um estado em que
há, justamente, igualdade fundamental no poder de prejudicar o outro e na vulnerabilidade
à retaliação do outro. Pelo menos, só há contrato entre indivíduos que são iguais nesse
sentido; os fracos e incapacitados serão eliminados do âmbito do contrato.21
Duas questões se colocam aqui. A primeira já foi mencionada acima: ao colocar os
participantes do contrato num hipotético estado de igualdade “forte”, o hobbesiano
reintroduz a dificuldade da motivação. Repetindo a passagem de Freeman acima citada,
coloca-se a dificuldade de “convencer cada um agora de que lhe é racionalmente vantajoso
aceitar normas que ele admitiria em um hipotético estado de natureza” (Contractualisme,
p.413. O grifo é meu). A dificuldade pode ser mais claramente apresentada da seguinte
maneira. Em que medida o atual status quo mantém a igualdade forte teoricamente
postulada no momento de se determinar e justificar o conteúdo correto do contrato? Se, do
ponto de vista empírico, não for possível afirmar que, no atual status quo, há igualdade no
poder de prejudicar o outro e na vulnerabilidade à retaliação do outro, em que medida os
mais fortes ainda têm motivo para cumprir as cláusulas do contrato? Tratarei dessa
dificuldade mais à frente.
A segunda questão é a seguinte. Se é verdade que, para determinar e justificar os
conteúdos do contrato, o contratualista hobbesiano precisa (e/ou deseja) introduzir uma
noção forte de igualdade, segundo a qual “igualdade” é tomada como igualdade no poder
de prejudicar o outro e na vulnerabilidade à retaliação do outro, - em que medida essa
noção forte de igualdade já não implica o critério “kantiano” da imparcialidade? Com
efeito, postular que há uma igualdade fundamental no poder de prejudicar o outro e na
vulnerabilidade à retaliação do outro equivale a pressupor que eu (qualquer um) não tenho
condições de fazer avançar estrategicamente meus interesses às custas dos interesses do
outro. A igualdade fundamental no poder de prejudicar o outro e na vulnerabilidade à
retaliação do outro implica igualdade na (in)capacidade de fazer avançar estrategicamente
meus interesses, às custas dos interesses dos outros; em outras palavras, implica igualdade
na (in)capacidade de fazer avançar ilegitimamente meus interesses, relativamente aos
interesses dos outros. Assim, a noção forte de igualdade indica que vamos pintar os
20
Freeman, Reason and Agreement in Social Contract Views, p.133-134.
21
Idem, Ibidem, p.134. Ver também Kymlicka, The Social Contract Tradition, p.189-190.
35
22
“Colocar-se no lugar do outro”, “Véu de Ignorância” (Rawls), “Princípio da Eqüiprobabilidade” (Harsanyi):
diferentes meios de se especificar a condição “kantiana” da imparcialidade. Enfatizo que Harsanyi é um
utilitarista, e afirma, explicitamente, que seu “princípio da eqüiprobabilidade” deve ser visto como um meio
de atender à condição kantiana da reciprocidade, ou imparcialidade – o que significa um meio propriamente
utilitarista de especificar a condição kantiana da imparcialidade. Ver Harsanyi: Morality and the theory of
rational behaviour, in Sen, A. e Williams, B. (Eds.), Utilitarianism and beyond, Cambridge, Cambridge
University Press, 1982, p.39-62.
36
para mim manter minha palavra (depois, talvez, que você cumpriu a sua e eu obtive meu
ganho) – depende da sua capacidade de retaliar e da minha capacidade de esquivar-me à
sua retaliação, o que por sua vez depende de inúmeros cálculos sobre a continuidade,
duração e evolução da nossa interação; depende da capacidade punitiva do Poder Público, e
da minha capacidade de esquivar-me a ela – ou de um cálculo de quanto o provável ganho
compensaria a punição do Estado; depende do quanto minha reputação social seria abalada
e da minha capacidade de blindá-la por meio de alguma estratégia de marketing; depende
de um cálculo acerca da possibilidade (ou não) de eu usar o poder ganho às suas custas para
“produzir” ou “fabricar” reputação; e assim por diante.24 A racionalidade enfocada nessa
concepção envolve a motivação do agente no terreno movediço da estratégia. Em nome da
alegada superioridade de uma teoria “realista” da motivação, a concepção hobbesiana acaba
envolvendo o conceito de motivação nesse terreno movediço. Daí se tem de chegar ao
seguinte dilema: ou essa concepção de fato apresenta uma teoria realista da motivação, mas
que dificilmente pode ser enquadrada no conceito de acordo ou contrato (devendo ser
enquadrada, antes, no conceito de “jogo”, “jogo estratégico”); ou, caso seja vista como
parte de uma teoria do contrato, a concepção hobbesiana da motivação é absolutamente
irrealista – não corresponde à realidade do contrato.
Com efeito, as idéias de acordo e contrato trazem consigo a noção de “engajamento
para o futuro”25; em outras palavras, ao firmar um acordo, reconheço uma obrigação cuja
validade estende-se para o futuro, de modo estável e contínuo, - no sentido de que ela não
fica na dependência de efêmeros cálculos sobre as variações nas circunstâncias. No
contexto da noção de “contrato”, variações nas circunstâncias implicam, não cálculo
estratégico sobre a conveniência momentânea da obrigação, mas avaliação normativa sobre
a necessidade de se estabelecer uma nova obrigação, quer dizer, instaurar um novo
compromisso para o futuro. Por constituir-se num compromisso para o futuro, a noção de
contrato traz consigo a idéia de justiça: a idéia de justiça veicula, precisamente, o
reconhecimento de que, por ter sido previamente aceita como razoável e correta, a
24
Cf. Freeman, Contractualisme,, p.408: “Quanto maior a sociedade, menor a possibilidade de a reputação
desempenhar um papel eficaz, de modo que, nas condições modernas, pode-se duvidar que a reputação seja
suficiente para manter a estabilidade”.
25
Cf. Freeman, Contractualisme, p.412: “Freqüentemente (...), a finalidade do acordo não é resolver conflitos
(pode ainda não haver conflitos), mas é iniciar um compromisso para o futuro (engager l’avenir), para que as
partes não possam ulteriormente desviar-se dos objetivos compartilhados ou das normas comuns da
associação.” Trata-se então de um “pré-engajamento partilhado entre os cidadãos” (p.413, grifo do autor).
38
obrigação tem uma validade mais ou menos estável, independente de cálculos efêmeros
sobre aquilo que estrategicamente é (ou não) conveniente em cada momento. Assim, um
contrato é um acordo sobre compromissos que os participantes reconhecem como justos.
É claro que uma obrigação acordada pode (e deve) refletir as diferenças entre os
contratantes – mas isso significa, não que o contratante tem o direito de desviar-se da
obrigação numa circunstância em que isso, dadas as variáveis diferenças de poder, lhe seja
estrategicamente vantajoso, mas, sim, que uma obrigação, para poder ser considerada justa
(razoável e correta), tem de ser acordada numa deliberação que leva em consideração, de
forma neutra e imparcial, as diferenças entre os contratantes, nem que seja para taxá-las
de moralmente irrelevantes. No contexto do contrato, portanto, as diferenças entre as
pessoas têm de se apresentar, não como “fatos brutos” referidos àquilo que
estrategicamente é ou não vantajoso para mim, mas como razões propriamente ditas, quer
dizer, fatores argumentativos que podem e devem ser universalmente aceitos como
justificativa para o conteúdo que se está dando às obrigações recíprocas. Isso significa que
as diferenças entre A e B devem ser apresentadas e consideradas, não como fatores que
aumentam ou diminuem minha (do indivíduo A) capacidade de estrategicamente fazer
avançar meus interesses egoístas, às custas dos interesses dos demais, mas como fatores
que um legislador neutro e imparcial precisa levar em consideração na hora de determinar
que demandas e expectativas o indivíduo A pode legitimamente apresentar em relação a B,
e vice-versa – lembrando que, dependendo da diferença, ela pode e deve ser considerada
moralmente irrelevante. No contexto do contrato, portanto, as diferenças entre os
indivíduos têm de ser enquadradas nos critérios da imparcialidade e justiça.
***
A conclusão da nossa argumentação é: o contratualismo hobbesiano é
conceitualmente equivocado, e todo contratualismo precisa ser do tipo kantiano – fundado
nos conceitos de justiça, correção e, principalmente, imparcialidade. Mas é essencial
complementá-la com o seguinte esclarecimento. Dizer que todo contratualismo precisa ser
do tipo kantiano não significa que todo contratualismo precisa resultar em princípios de
justiça conteudisticamente kantianos (deontológicos). Ao contrário, para elucidar a natureza
do debate entre deontologismo e conseqüencialismo, vou tentar mostrar, justamente, que é
perfeitamente possível configurar os elementos-chave do procedimento contratualista de tal
39
modo que, ainda que sejam atendidas as condições formais da igualdade, consistência e
imparcialidade, chegue-se a um resultado de teor utilitarista (conseqüencialista). Vou tentar
mostrar que o debate entre deontologismo e utilitarismo pode ser esclarecido por meio,
justamente, de uma discussão sobre o modo pelo qual se devem configurar os elementos-
chave do procedimento contratualista.
Ao adotar essa forma de apresentar o debate entre deontologismo e
conseqüencialismo, estou seguindo uma pista deixada por T. Scanlon em seu artigo
Contractualism and utilitarianism.26 Ele afirma, com efeito, o seguinte (p.120 – o grifo é
meu).
A questão fundamental aqui, entretanto, é a de se os princípios aos quais o contratualismo leva têm
de ser princípios cuja adoção geral (quer idealmente quer sob algumas condições mais realistas)
iria promover um máximo de bem-estar agregado. A muitos pareceu que este tem de ser o caso.
Para indicar por que não concordo, vou examinar um dos mais conhecidos argumentos para essa
conclusão e explicar por que julgo que ele não é bem sucedido. 27 (...) O argumento que vou
examinar, que tornou-se familiar a partir dos escritos de Harsanyi e outros, procede por meio de
uma interpretação da noção contratualista de aceitação, e leva ao princípio da maximização da
utilidade média. (...) Para ser relevante, meu juízo de que o princípio é aceitável tem de ser
imparcial.
26
Publicado em Sen, A. e Williams, B. (Eds.): Utilitarianism and beyond, Cambridge, Cambridge University
Press, 1982, p.103-128.
27
Para Scanlon, dizer que o argumento de Harsanyi não é bem sucedido equivale a dizer, em princípio, que
ele não deve ser considerado como uma versão do contratualismo propriamente dito, mas como um outro tipo
de argumento. Ao elaborar essa tese, entretanto, - como se verá no capítulo 5 de nosso trabalho, Scanlon
enfatiza as enormes semelhanças entre o argumento de Harsanyi e o argumento desenvolvido por Rawls em
Uma Teoria da Justiça – destacando, inclusive, que o argumento do primeiro Rawls, pelas mesmas razões,
basicamente, que o de Harsanyi, tampouco pode ser considerado “bem sucedido”. Ora, considerando que é
altamente implausível excluir Uma Teoria da Justiça do âmbito das teorias contratualistas, a diferença que
Scanlon estabelece entre seu contratualismo e o argumento de Harsanyi deve então ser entendida, não tanto
como diferença entre um argumento contratualista e um outro tipo de argumento, mas, antes, como diferença
entre duas versões de argumento contratualista – sendo que o argumento de Uma Teoria da Justiça num certo
sentido está mais próximo do de Harsanyi do que da versão de contratualismo que o próprio Scanlon propõe
em seu artigo. Trataremos dessas questões no último capítulo de nosso trabalho.
28
Republicado em Sen, A. e Williams, B. (Eds.): Utilitarianism and beyond, Cambridge, Cambridge
University Press, 1982, p.39-62.
40
enquanto meu modelo serviu de base para uma teoria utilitarista, Rawls derivou conclusões
fortemente não-utilitaristas do seu próprio modelo. Mas a diferença não reside na natureza dos
dois modelos, que são baseados em suposições qualitativas praticamente idênticas. A diferença
reside, sim, na análise de teoria da decisão que é aplicada aos dois modelos.
29
O próprio Rawls adotou esse tipo de caracterização – que não tem nada de errado, diga-se de passagem;
apenas se presta a confusões terminológicas. Ver, por exemplo, A Theory of Justice, p.24: “Os dois principais
conceitos da ética são os de correto e de bom (...) A estrutura de uma teoria ética é em boa parte determinada
pelo modo como ela define e relaciona essas duas noções básicas. Ora, parece que o modo mais simples de
relacioná-las é o adotado pelas teorias teleológicas (isto é, conseqüencialistas – A.S.B.): o bom é definido
independentemente do correto, e o correto é então definido como aquilo que maximiza o bom.”. Em
correspondência com isso, as teorias deontológicas são apresentadas na p.30 como teorias que “ou não
especificam o bom independentemente do correto, ou não interpretam o correto como maximização do bom.”.
O mesmo tipo de caracterização aparece de forma ainda mais clara em C. Fried, Right and Wrong,
p.9: “A diferença entre as doutrinas é que o conseqüencialismo subordina o correto ao bom, ao passo que para
a deontologia os dois domínios, embora relacionados, são distintos. O fato das conseqüências últimas serem
boas não garante a correção das ações que as produziram. Para o deontólogo, os dois domínios são não apenas
distintos, mas o correto é prioritário em relação ao bom.”.
42
afirmando que a ação correta consiste na ação que maximiza o bem (privado) no conjunto
dos afetados. Para dizê-lo em termos mais contundentes, as teorias conseqüencialistas
sustentam que a ação correta reduz-se à ação globalmente boa, e é nesse sentido, e apenas
nesse, que elas priorizam o bom sobre o correto. Para as teorias deontológicas, em
contrapartida, o critério de correção das ações obrigatórias não pode ser identificado ao
globalmente bom, o que significa que a correção (justiça), tomada como qualidade que
deve ser priorizada na deliberação moral, mantém-se como algo de independente (e
prioritário) em relação ao fato de a ação ser globalmente boa (ou seja, maximizadora do
bem privado). Assim, a afirmação de que as teorias deontológicas priorizam o correto sobre
o bom deve ser entendida no sentido de que, ao afirmarem que o justo (o correto) não é
(não se reduz ao) o globalmente bom, as teorias deontológicas priorizam a correção sobre a
qualidade do “globalmente bom”. Voltaremos a esse ponto logo a seguir.
Antes disso, porém, gostaria de chamar atenção para um último problema
terminológico. Como já deve ter ficado claro, estou querendo defender a tese de que a
concepção imperativa da ética possui duas correntes, a corrente deontológica e a corrente
conseqüencialista; em outras palavras, trata-se da tese de que o debate entre deontologismo
e conseqüencialismo é interno à concepção imperativa da ética. O problema é que a
etimologia do termo “deontologismo” (déontos, “o que tem de ser feito”) sugere uma
identificação entre o deontologismo e a concepção imperativa como um todo.30 E como há
uma longa tradição de se fazer uma contraposição entre deontologismo e
conseqüencialismo, a identificação entre o deontologismo e a concepção imperativa como
30
Ver, por exemplo, Bernard Williams, Ethics and the Limits of Philosophy, p.16: “O desejo de reduzir a
variedade das considerações éticas a um padrão único é, hoje em dia, tão forte quanto sempre foi, e várias
teorias tentam mostrar que um ou outro tipo de consideração ética é básico, com os outros tipos devendo ser
explicados em termos desse primeiro. Algumas teorias tomam como básica a noção de obrigação ou dever, e
o fato de que nós reconhecemos como uma consideração ética, por exemplo, a percepção de que um certo ato
vai provavelmente levar às melhores conseqüências – tal fato é explicado pela tese de que nós temos um
dever, entre outros, de produzir as melhores conseqüências. Teorias desse tipo são chamadas ‘deontológicas’.
(...) Em contraste com estas estão teorias que tomam como básica a idéia de produzir o melhor estado de
coisas possível. Teorias desse tipo são freqüentemente chamadas de ‘teleológicas’. O exemplo mais
importante é o que especifica a natureza boa dos resultados em termos de felicidade das pessoas, ou de elas
obterem o que desejam ou preferem. Essa posição, como já disse, é chamada utilitarismo.”
Esse trecho me parece uma ótima ilustração das confusões terminológicas e conceituais a que estou
me referindo. Na primeira parte, Williams reconhece a possibilidade de um “deontologismo
conseqüencialista”, para logo depois colocar o conseqüencialismo/utilitarismo sob a categoria da “teleologia”.
Em favor de Williams, destaque-se que nesse trecho, como, de resto, no livro todo, ele está preocupado, não
com a distinção entre deontologismo e conseqüencialismo, mas com a pretensão – que ele considera
equivocada – de reduzir a variedade das considerações éticas a uma única noção básica ou fundamental.
43
31
Conferir, por exemplo, o verbete Déontologisme, de André Berten, no Dictionnaire d’éthique et de
philosophie morale (edição Quadrige, 2004), editado por Monique Canto-Sperber. Ver Volume I, p.477: “De
um modo geral, entende-se por uma ética deontológica uma ética que sustenta que certos atos são moralmente
obrigatórios ou proibidos, sem consideração por suas conseqüências no mundo.”. (O grifo é meu).
44
32
Conferir André Berten, Déontologisme, p.477: “O primeiro filósofo que defendeu explicitamente uma ética
deontológica foi Kant: um ato é moralmente bom (isto é, correto – A.S.B.) se e somente se é praticado ‘por
dever’, ou por ‘respeito pela lei’. (...) O respeito pela lei deve prevalecer sobre toda consideração acerca do
bem-estar ou da felicidade do agente moral ou de outras pessoas.”.
45
33
Ver, por exemplo, Davis, Nancy Ann: Contemporary Deontology, in Singer, P: A Companion to Ethics.
Conferir p.206/207: “Na visão do deontólogo, não é a nocividade das conseqüências de uma mentira
específica, nem da mentira em geral, o que torna errado mentir; em vez disso, mentiras são incorretas em
virtude do tipo de coisa que elas são, e, por conseguinte, são incorretas mesmo quando, previsivelmente,
possam produzir boas conseqüências.”. (O grifo é meu).
46
surpreendente, à tese grosso modo “intuicionista” de que tal qualidade pode ser
imediatamente apreendida pela intuição moral do homem comum.34
Na segunda parte do terceiro capítulo do presente trabalho, vou examinar essa
segunda manifestação da concepção rigorista, por meio, mais uma vez, de uma análise da
Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant. Vou tentar mostrar que a concepção
rigorista associa-se, dessa vez, a um modo equivocado de entender e aplicar a fórmula da
lei universal que Kant apresenta na Segunda Seção da Fundamentação. Chamarei essa
interpretação equivocada de interpretação “formalística” da fórmula da lei universal. Meu
objetivo, mais uma vez, é esvaziar a concepção rigorista, mostrando por que ela não pode
valer-se do peso e autoridade da fórmula kantiana da lei universal. Mais uma vez, o
resultado final consistirá em apontar para o fato de que, ao ser corretamente interpretada, a
fórmula da lei universal não só deixa de acarretar ou apoiar uma visão rigorista do dever
moral, mas revela-se como um procedimento que é representativo da concepção imperativa
como um todo, compatível, portanto, não só com um deontologismo não-rigorista, mas
também com o próprio conseqüencialismo. Em outras palavras, o resultado final consistirá
em apontar para o fato de que, ao ser corretamente interpretada, a fórmula da lei universal
acaba se transmutando no procedimento do contrato, o qual, como já disse, é compatível
tanto com o deontologismo não-rigorista quanto com o conseqüencialismo. Mas esse fato
só será evidenciado e elaborado na segunda parte do trabalho, constituída pelos capítulos 4
e 5.
***
Ao abraçarem a idéia de que, para contrapor-se ao conseqüencialismo, o
deontologismo precisa adotar uma atitude de total desconsideração pelas conseqüências do
ato no mundo, as duas concepções que acabam de ser mencionadas merecem bem o título
de interpretações “rigoristas” do deontologismo. As duas concepções, aliás, estão
intimamente associadas: nos dois casos, a posição central é ocupada pela noção de lei,
entendida como um princípio “puramente formal” da vontade. A diferença entre elas é uma
questão de nuança, ou seja, de gradação na coloração com que se apresentam as noções de
34
Assim, nessa segunda manifestação, o deontologismo rigorista se apresenta muitas vezes associado ao
intuicionismo moral. Essa associação é destacada, entre outros, por André Berten, Déontologisme, p.481:
“Muitas vezes se considera que a justificação última das crenças deontológicas no caráter absoluto dos
princípios morais, ou das obrigações morais, é intuitiva. E as doutrinas deontológicas são qualificadas como
teorias morais intuicionistas.”.
47
35
E é claro que esse tipo de deontologismo representa um “prato cheio” para os conseqüencialistas. Ver, por
exemplo, o capítulo 1 da Ética Prática, de Peter Singer. Ver, entre outras passagens do mesmo teor, a p.10:
“Às vezes, as pessoas acreditam que a ética é inaplicável ao mundo real, pois imaginam que a ética seja um
sistema de normas simples e breves, do tipo ‘não minta’, ‘não roube’ e ‘não mate’. Não surpreende que os que
se atêm a esse modelo de ética também acreditem que ela não se ajusta às complexidades da vida.”
48
que as teorias deontológicas são definidas como teorias não-teleológicas, e não como
teorias que caracterizam a correção de instituições e atos independentemente das suas
conseqüências. Todas as doutrinas éticas merecedoras de nossa atenção consideram as
conseqüências ao julgarem a correção. Uma doutrina que não o fizesse seria simplesmente
irracional, desequilibrada (crazy).” 36 Para Rawls, portanto, e para todos os teóricos que, tal
como ele, rejeitam o conseqüencialismo, mas julgam implausível definir a correção em
termos de desconsideração pelas conseqüências, - para esses teóricos, deve haver um
deontologismo não-rigorista. Na formulação do próprio Rawls, tal deontologismo é uma
doutrina que, apesar de considerar a natureza e o impacto das conseqüências do ato,
considera-os de um ponto de vista teórico específico, distinto do adotado pelo
conseqüencialismo. A questão é: que ponto de vista é esse? De que modo, exatamente, ele
se distingue do adotado pelos conseqüencialistas?
***
Antes de passar para um esboço dos marcos gerais do debate entre
conseqüencialismo e deontologismo não-rigorista, gostaria de explicar de que modo,
exatamente, a filosofia moral de Kant entra no presente trabalho. Embora eu dedique os
capítulos 2 e 3 à filosofia prática de Kant, vou me concentrar, apenas, naqueles elementos
da obra kantiana que tradicionalmente têm servido de alimento à concepção rigorista e à
tese de que, para diferençar-se do conseqüencialismo, o deontologismo precisa assumir um
caráter rigorista (total desconsideração pelas conseqüências do ato). Isso significa que
minha análise vai se ater, basicamente, à Fundamentação, e, na verdade, a alguns poucos
elementos dessa obra: os conceitos de imperativo categórico e de “agir por dever”, e a
fórmula da lei universal. Vou apontar os equívocos interpretativos que têm transformado
esses elementos em alimento da concepção rigorista do deontologismo. É claro que, para
apontar esses equívocos, vou tratar também de outras questões que a interpretação da
Fundamentação suscita: a questão das duas dimensões do imperativo categórico, a questão
das relações entre as diferentes fórmulas do imperativo categórico, a questão da “máxima”,
entre outras. Mas é importante enfatizar que vou me restringir, deliberadamente, à
Fundamentação e àqueles elementos da Fundamentação que têm se prestado à visão
rigorista do dever moral.
36
Rawls, J.: A Theory of Justice, p.30.
49
uniformes. É preciso então especificar que conteúdos são esses. Assim, para estruturar o
procedimento de universalização, a interpretação não-formalística precisa enfrentar, antes
de tudo, a seguinte questão: por quais conteúdos volitivos, exatamente, vai se orientar a
deliberação do(s) indivíduo(s) legislador(es)? Em outras palavras, que bens serão visados
por ele(s)? O que estou querendo dizer é o seguinte. Para estruturar o procedimento de
universalização, o partidário da interpretação não-formalística precisa, antes de tudo,
apresentar uma teoria sobre os bens pelos quais se orienta a deliberação do(s) indivíduo(s)
legislador(es) – ou, mais simplesmente, uma teoria do bem dos indivíduos legisladores.
Trata-se do primeiro elemento-chave do nosso procedimento de justificação – abordado,
justamente, no capítulo 4 do presente trabalho, intitulado “Os Bens do Indivíduo-
Legislador”.
No contexto de um procedimento orientado para a correção das regras de interação
numa sociedade pluralista, uma teoria sobre os bens pelos quais se orienta a deliberação do
legislador precisa ser, antes de tudo, justa – quer dizer, ela tem de ser neutra e imparcial em
relação às diferentes concepções de bem e felicidade que vicejam na sociedade que vai ser
regulada. Se a vontade do indivíduo-legislador revelar preferência ou parcialidade por uma
ou outra dessas concepções de bem e felicidade, em detrimento de outras, o procedimento
não poderá ser considerado justo. No âmbito da interpretação não-formalística, portanto, a
imparcialidade substitui a coerência como principal condição formal do procedimento. Para
que o procedimento seja justo, a vontade do indivíduo-legislador precisa ser neutra e
imparcial em relação às concepções de bem e felicidade das pessoas que serão afetadas pelo
procedimento, quer dizer, pelas regras de interação que vão resultar do procedimento. No
capítulo 4, veremos de que modo utilitaristas e deontólogos, respectivamente, respondem a
essa exigência de imparcialidade ou neutralidade.
Entretanto, para que o procedimento possa funcionar, não basta uma teoria sobre os
bens pelos quais se orienta a deliberação dos legisladores. Com efeito, ainda que essa teoria
restrinja o âmbito dos conflitos que devem ser considerados moralmente relevantes, o
procedimento precisa levar em consideração o fato de que ainda há (e haverá) conflitos em
relação aos bens que foram admitidos como politicamente relevantes: conflitos entre
liberdade e renda, por exemplo, e entre os indivíduos que, respectivamente, demandam
esses tipos de bens. É o “fato do conflito” que, definitivamente, transforma o procedimento
52
Primeira Parte
Capítulo 2.
O Conceito de Imperativo Categórico.
referido critério não está “contido” nesse conceito; em segundo lugar, que a esse conceito
podem se acrescentar tanto um critério conteudístico deontológico quanto um critério
conteudístico conseqüencialista. Assim, ao ser corretamente interpretado, o conceito de
imperativo categórico revela-se como uma noção que, longe de se identificar com os
critérios conteudísticos propriamente deontológicos, é perfeitamente compatível com o
critério conteudístico conseqüencialista – a saber, o critério da maximização de
conseqüências grosso modo boas no conjunto dos indivíduos afetados.
O segundo objetivo do presente capítulo consiste numa depuração das fórmulas que
Kant apresentou para o seu imperativo categórico. É sabido que, apesar de ter apresentado
várias fórmulas para o imperativo categórico, Kant pretendeu serem elas equivalentes entre
si, representando meras variações de um mesmo critério fundamental. Tentarei mostrar que
essa pretensão não se sustenta, e que há diferenças fundamentais entre essas fórmulas; mais
precisamente, tentarei mostrar o papel diferenciado que elas desempenham na questão da
especificação do conteúdo das ações moralmente corretas. Tentarei mostrar que, das cinco
fórmulas que Kant chegou a apresentar, só as fórmulas da lei universal e do fim em si
mesmo interessam ao pesquisador dedicado ao debate entre deontologismo e
conseqüencialismo. Tentarei mostrar também que essa depuração das fórmulas e,
especialmente, o descarte da fórmula da autonomia, representam um complemento
indispensável ao esforço de dissolução das confusões interpretativas que acometem o
conceito de imperativo categórico.
58
Além de prejudicar a apreensão dos termos gerais com que se apresenta, no âmbito
da concepção imperativa como um todo, o problema da determinação do conteúdo objetivo
da ação moralmente correta, o embaralhamento entre as condições prático-objetivas e as
condições psicológico-motivacionais também gera confusão na reflexão sobre as fórmulas
conteudísticas propriamente kantianas. Com efeito, para perceber as importantes diferenças
que existem entre as diversas fórmulas que Kant apresentou para o imperativo categórico,
quer dizer, para perceber o papel diferenciado que essas fórmulas desempenham na questão
da especificação do conteúdo das ações corretas, é preciso desfazer o embaralhamento entre
as duas dimensões do imperativo categórico. Ao embaralhamento dessas dimensões
corresponde um embaralhamento nas fórmulas conteudísticas propriamente kantianas. E o
trabalho de desembaralhamento vai nos permitir descartar algumas fórmulas, ou seja, tratá-
las como irrelevantes para o problema que nos interessa.
A tese de Kant nessa passagem parece poder ser esclarecida da seguinte maneira.
Em ambos os tipos de imperativo, uma ação é apresentada como boa, ou seja, como devida.
No caso do imperativo hipotético, porém, a razão só confere a marca de “devida” à ação na
medida em que reconhece nela um meio para alguma finalidade que se tem ou que é
possível que se tenha. A ação só é devida enquanto é meio para alguma finalidade. Já no
1
De um modo geral, sigo a tradução de Paulo Quintela, republicada no volume Kant da coleção Os
Pensadores, da Abril Cultural. Quando eu não seguir essa tradução, deixarei indicado.
60
2
Paton, H.J. The Categorical Imperative. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1971, p.114-115.
Dentre os comentadores que questionam a tese de que o imperativo categórico pode ser adequadamente
esclarecido com a ajuda, apenas, do esquema meio-fim, destacam-se Herman, Barbara: The Practice of Moral
Judgment e Korsgaard, Christine: Creating the Kingdom of Ends.
61
deve nesse caso ser tomada como expressão de um imperativo categórico, ainda que, por
outro lado, deva ser entendida como exemplificação do esquema meio-fim.
Se essas considerações forem procedentes, podemos concluir que o recurso ao
esquema meio-fim não é suficiente para caracterizar a distinção entre o imperativo
hipotético e o imperativo categórico. Precisamos de outros elementos para desenvolvê-lo e
completá-lo. A meu ver, alguns desses elementos podem ser encontrados na nota da p.413
da Fundamentação. O texto da nota é o seguinte:
Chama-se inclinação a dependência em que a faculdade de desejar está em face das sensações; a
inclinação prova sempre, portanto, uma necessidade. Chama-se interesse a dependência em que
uma vontade contingentemente determinável se encontra em face dos princípios da razão. Este
interesse só tem pois lugar numa vontade dependente que não é por si mesma em todo tempo
conforme à razão; na vontade divina não se pode conceber nenhum interesse. Mas a vontade
humana pode também tomar interesse por qualquer coisa sem por isso agir por interesse. O
primeiro significa o interesse prático na ação, o segundo o interesse patológico no objeto da ação.
O primeiro mostra apenas dependência da vontade em face dos princípios da razão em si mesmos,
o segundo em face dos princípios da razão em proveito da inclinação, pois aqui a razão dá apenas
a regra prática para socorrer a necessidade da inclinação. No primeiro caso interessa-me a ação, no
segundo o objeto da ação (enquanto ele me é agradável). Vimos na primeira seção que numa ação
praticada por dever se tem de atender não ao interesse no objeto, mas, sim, ao interesse apenas na
própria ação e no seu princípio racional (a lei).3
3
Na última frase, a tradução de Paulo Quintela pareceu-nos desnecessariamente ambígua, e recorremos à
tradução de Victor Delbos (Paris, Delagrave, 1971).
62
vontade finita (ou seja, da vontade que é contingentemente determinável pela razão) em
relação aos princípios da razão tomados em si mesmos, sem conexão com qualquer
sentimento de agrado, o interesse patológico expressa a dependência dessa vontade em
relação a princípios da razão orientados para as inclinações da sensibilidade. Assim, no
caso do interesse patológico, eu só tenho interesse no resultado (fim) da ação na medida em
que a possibilidade de alcançar esse resultado corresponde às minhas inclinações, ou seja,
me agrada.
Ora, para Kant, as inclinações da sensibilidade caracterizam-se por dois elementos
interligados. Em primeiro lugar, a variabilidade: o que agrada a um sujeito não agrada a
outro sujeito; o que agrada a um sujeito num determinado momento deixa de agradá-lo em
outro momento. Em segundo lugar, o fato de que essa variabilidade representa algo de lícito
ou permitido: o sujeito tem o direito de rejeitar aquilo que agrada a um outro sujeito; um
sujeito tem o direito de afirmar que aquilo que o agradava há algum tempo agora já não o
agrada mais, e que agora é uma outra coisa que o agrada. Em outras palavras, não faz
sentido exigir do sujeito que tenha uma sensação de agrado com este ou aquele objeto.
Juntemos agora as duas seguintes teses. Em primeiro lugar, a tese de que, no caso
do interesse patológico, eu só tenho interesse no resultado da ação na medida em que a
possibilidade de alcançar esse resultado me agrada; em segundo lugar, a tese de que eu
tenho o direito de trocar os objetos do meu agrado. A conjunção dessas duas teses resulta
numa terceira: no caso do interesse patológico, eu tenho direito de rejeitar ou afastar um
interesse que eu antes tinha, ou seja, eu tenho direito de afirmar que um certo resultado
(fim) já não me interessa mais. No caso do interesse patológico, em outras palavras, não faz
sentido exigir do sujeito que tenha interesse nessa ou naquela finalidade. O caso do
interesse prático é distinto: uma vez que ele expressa a dependência da vontade finita em
relação aos princípios da razão tomados em si mesmos, sem vínculo com as inclinações da
sensibilidade, faz sentido exigir do sujeito que tome interesse numa determinada ação. Em
outras palavras, no caso do interesse prático, não se concede ao sujeito o direito de pura e
simplesmente rejeitar o interesse nas ações que a razão indica como devidas.
Gostaria agora de retornar à questão posta mais acima: que tipo de interesse se deve
atribuir ao médico que reconhece que a ação de amputar a perna é devida? Interesse na
própria ação de amputar a perna, tomada como ação que particulariza e realiza a ação
63
genérica de “salvar uma vida”? Ou interesse na finalidade de salvar uma vida? O problema
consiste, como vimos anteriormente, no fato de que, nesse caso, é difícil dizer se a ação de
amputar a perna deve ser descrita como “meio para o fim de salvar uma vida”, ou como
“particularização (contextualização) da ação genérica de salvar uma vida”. Admitamos, a
partir do que foi dito acima, que ela deva ser descrita como meio para o fim de salvar uma
vida. Admitamos, em seqüência, que o interesse do médico deva ser descrito, não como
interesse na própria ação de amputar a perna (sem relação com uma outra finalidade), mas,
sim, como interesse na finalidade de salvar uma vida. Será que isso implica que se trata de
interesse meramente patológico? Mais uma vez, a resposta me parece ser “não”, na medida
em que se pode exigir do médico que tome interesse no resultado de salvar uma vida, ainda
que, devido a um estado de mórbida insensibilidade, ele não sinta nenhum agrado com a
possibilidade de alcançar esse resultado. Ora, se faz sentido exigir do médico que,
independentemente da relação com qualquer sentimento de agrado, tome interesse no
resultado de salvar uma vida, então, ainda que esse interesse deva ser descrito, não como
interesse na própria ação, e sim como interesse no resultado da ação, - ainda assim trata-se
de interesse prático, e não patológico.
Gostaria agora de retornar à caracterização da distinção entre o imperativo
hipotético e o imperativo categórico. É razoável começar com a seguinte tese: enquanto o
imperativo categórico expressa um dever incondicionado, o hipotético expressa um dever
condicionado. Condicionado a que, exatamente? Ao interesse patológico num certo
resultado. Ora, se o que caracteriza o dever expresso no imperativo hipotético é o fato de
ele ser condicionado ao interesse patológico num certo resultado, e se o que caracteriza o
interesse patológico é o fato de que se concede ao sujeito o direito de rejeitá-lo ou afastá-lo
(pô-lo momentaneamente de lado), então a característica essencial do dever expresso no
imperativo hipotético reside no fato de que se concede ao sujeito o direito de
(momentaneamente) se libertar ou eximir dele; em outras palavras, concede-se ao sujeito o
direito de afirmar “eu (agora) não reconheço esse dever”, “eu não reconheço (mais) que
devo agir dessa maneira”.4
4
Embora eu não vá desenvolver o ponto, gostaria de afirmar o seguinte: do ponto de vista da exigibilidade,
que é a marca da moralidade na concepção imperativa, os deveres ligados ao fim da felicidade são tão
“afastáveis” quanto os imperativos hipotéticos propriamente ditos. Com efeito, ainda que, por uma questão de
definição, se possa dizer que todo ser humano (necessariamente) tem interesse na felicidade, o objeto desse
interesse fica indeterminado, enquanto não se especificar o que é a felicidade. E, no contexto do pluralismo
64
moderno, não faz sentido exigir do sujeito que adote essa ou aquela especificação da felicidade. A questão da
felicidade fica circunscrita à esfera das “razões” privadas ou subjetivas, quer dizer, ela é excluída da esfera da
racionalidade (ou razoabilidade) prática objetiva. Assim, ainda que, por uma questão de prudência, se possa
dizer que quem tem interesse na felicidade deve(ria) ter interesse na saúde, - ainda assim, não faz sentido
exigir do sujeito que sempre tenha interesse na saúde, apesar dos apelos do prazer imediato, por exemplo; não
faz sentido exigir do sujeito que conceba felicidade em termos de saúde, e não, por exemplo, em termos de
prazer imediato e brutal. Do ponto de vista da exigibilidade, o interesse na saúde é tão “patológico” quanto o
interesse nos resultados brutalmente prazerosos. Do ponto de vista da moralidade imperativa (moderna),
ninguém pode dizer que a vida dedicada à saúde é eticamente superior à vida dedicada aos prazeres brutais –
desde que os prazeres brutais não envolvam desrespeito ao outro. Aqui se manifesta de forma muito clara a
diferença entre as concepções atrativa e imperativa; mais precisamente, manifesta-se de forma clara o quanto
a separação entre o prudencial e o moral distancia a concepção imperativa da concepção atrativa.
65
não é compartilhada pelo imperativo categórico. Que característica é essa? Trata-se do fato
de que, no caso do imperativo hipotético, há uma espécie de harmonia natural entre as
respostas que se apresentam a duas questões distintas, que são, primeiro, a questão da
determinação de qual é a ação objetivamente devida, e, segundo, a questão da motivação
subjetiva para praticar a ação que se determinou como objetivamente devida (ao estabelecer
essa última distinção, sigo as sugestões que Tugendhat apresenta em seu livro Vorlesungen
über Ethik).5 Com efeito, no caso do imperativo hipotético, para determinar qual é a ação
objetivamente devida, toma-se como ponto de partida o interesse patológico num certo
resultado - por exemplo, para determinar qual é a ação objetivamente devida, se pegar um
táxi ou ir de ônibus, toma-se como ponto de partida o interesse patológico em chegar no
centro da cidade em vinte minutos. Tomando-se esse interesse como ponto de partida,
determina-se que a ação objetivamente devida é, nesse caso, a ação de pegar um táxi. Ora,
acabamos de ver que o interesse patológico é expressão de um sentimento de agrado com a
possibilidade de alcançar o resultado em questão. Considerando agora que o sentimento de
agrado é um elemento naturalmente dotado de força motivacional, podemos concluir que o
interesse patológico, além de servir como princípio de determinação da ação objetivamente
devida, constitui também, natural e automaticamente, o fundamento motivacional subjetivo
para se praticar a ação que foi determinada como objetivamente devida (no exemplo citado,
pegar um táxi, em vez de ir de ônibus). Em outras palavras, há nesse caso uma passagem
natural e automática entre o princípio de determinação da ação objetivamente devida e o
fundamento motivacional subjetivo para praticar a ação objetivamente devida; ao se
determinar qual é a ação objetivamente devida, o problema da motivação subjetiva para
praticá-la já está natural e automaticamente respondido, ou, pelo menos, encaminhado.
À diferença do imperativo hipotético, o imperativo categórico expressa um dever
objetivamente incondicionado, ou seja, um dever que não está condicionado ao interesse
patológico num certo resultado. A ação é incondicionalmente devida. Na verdade, vimos
que o caráter incondicionalmente devido da ação pode manifestar-se de duas maneiras: ou
ela é incondicionalmente devida em si mesma, independentemente da relação com qualquer
outra finalidade, ou ela é incondicionalmente devida como meio para uma finalidade que
incondicionalmente se exige que o sujeito assuma. Em ambos os casos, porém, o caráter
5
Tugendhat, E: Vorlesungen über Ethik. Frankfurt: Suhrkamp, 1993. Há edição brasileira. Lições sobre Ética.
Petrópolis: Vozes, 1996. Ver especialmente a “Primeira Lição”.
66
ação, ou da finalidade para a qual a ação é meio. Em outras palavras, é só nessa segunda
dimensão que o imperativo categórico consiste no dever não apenas de contar a verdade,
mas de fazê-lo apenas “por dever” (quer o dever incida sobre a ação tomada em si mesma,
quer incida sobre a finalidade para a qual a ação é meio).
Nessa segunda dimensão, o móbil do dever se contrapõe a outros móbiles que
muitas vezes vêm se apresentar e imiscuir, como, por exemplo, o desejo de reconhecimento
social, ou a satisfação de um Eu que gosta de se vangloriar com o próprio rigor. Aliás,
como veremos logo a seguir, uma das principais teses da filosofia moral kantiana é,
justamente, a de que o homem, como sujeito racional finito, nunca pode arrogar-se perfeita
clareza e segurança quanto à natureza exata do móbil último de suas ações. Isso significa
que, tomado em sua segunda dimensão, o imperativo categórico representa um ideal – um
estado de pureza motivacional de que o homem deve tentar sempre se aproximar, mas que
ele nunca pode estar certo de ter alcançado. Entretanto, essa incerteza quanto aos móbiles
não chega a afetar a determinação de qual ação se deve objetivamente praticar, pois a
determinação de qual ação se deve praticar não depende de um discernimento preciso
quanto ao móbil: pode haver diferentes móbiles (muitas vezes se interpenetrando) para
praticar aquela ação que foi reconhecida como objetivamente devida (ou para adotar a
finalidade para a qual essa ação é meio), e pode-se saber com perfeita clareza qual é a ação
objetivamente devida sem se ter muita clareza acerca do móbil capaz de, em última
instância, levar à realização dessa ação (ou à adoção da finalidade para a qual essa ação é
meio).
Em vez de afetar a questão de qual é a ação objetivamente devida, o discernimento
quanto ao móbil afeta uma outra questão, a saber, a questão do valor moral das ações que o
sujeito pratica. A natureza do móbil determina o valor moral das ações que o sujeito
pratica. Para Kant, só tem pleno valor moral aquela ação que é praticada apenas “por
dever” (e, como estou tentando mostrar, Kant deveria admitir o seguinte adendo: o móbil
do dever pode incidir quer sobre a ação tomada em si mesma, quer sobre a finalidade para a
qual a ação é meio). A intromissão de outros móbiles diminui o valor moral da ação que se
pratica. Por outro lado, como o homem nunca pode arrogar-se perfeita clareza e segurança
quanto à natureza exata do móbil último de suas ações, ele tampouco pode arrogar-se
clareza e segurança quanto ao valor moral das ações que pratica.
69
Assim, a meu ver, a noção de imperativo categórico possui, antes de tudo, uma
dimensão prático-objetiva: desse ponto de vista, trata-se de um dever que se exige
igualmente de todos, independentemente dos interesses patológicos particulares de cada
um; em outras palavras, trata-se de um dever do qual ninguém pode eximir-se, sob a
alegação de que não assume este ou aquele interesse correspondente. Entretanto, desse
primeiro ponto de vista, não importa a motivação que o sujeito possa vir a encontrar para
seguir esse dever, nem o maior ou menor valor moral que tal motivação confere à sua ação;
o que importa aqui é a conformidade externa a tal dever, ou seja, a mera correção da ação.
É importante destacar que, ao contrário do que possa parecer, isso não transforma o
imperativo correspondente num imperativo hipotético, pois o que caracteriza este último é
o fato de que ele só vale para o sujeito que assume um interesse patológico correspondente.
Uma coisa é dizer: porque (na medida em que) você tem esse interesse (patológico), você
tem esse dever – o que significa que, se você rejeitar ou afastar o interesse, como você tem
direito, você se liberta do dever, e tem o direito de fazê-lo. Essa é a marca do imperativo
hipotético. Outra coisa é dizer, no caso do imperativo categórico: você tem tal dever,
independentemente dos seus interesses patológicos – o que significa, em primeiro lugar,
que você não pode se libertar dele (não tem o direito de se eximir dele), e, em segundo
lugar, que você agora precisa encontrar uma motivação para conformar-se a ele. Segundo
Kant, para você encontrar essa motivação, você em princípio não precisa nem deve recorrer
a nenhum elemento de natureza sensível, pois para você, como sujeito racional, a pura
consciência do dever é não apenas suficiente, mas, sobretudo, valiosa – só tem pleno valor
moral aquela ação que é praticada apenas “por dever”. Mas, ainda que sua ação não tenha
pleno valor moral, pelo fato de algum elemento de natureza sensível ter se imiscuído no
fundamento motivacional que você encontrou para praticá-la, ela pode perfeitamente
conformar-se a um imperativo que, por ser incondicionalmente exigido de todos, já é
objetivamente categórico.
Uma das causas do embaralhamento dessas dimensões reside no fato de que, para
ser incondicionalmente exigível do sujeito, o dever “categórico” tem de poder ser aceito
pelo “mesmo” sujeito – mas é só num certo sentido que se pode falar aqui de um mesmo
sujeito, uma vez que, aqui, é preciso introduzir uma distinção essencial entre duas
dimensões do sujeito moral. Quem aceita a regra como correta, ou, pelo menos, quem pode
70
e deve aceitá-la como correta, é o sujeito como sujeito-legislador, ou seja, o sujeito em que
interesses patológicos, tensões motivacionais e fraquezas psicológicas foram postos em
suspenso. Chamemo-lo de “sujeito racional” (ou “razoável”). Por outro lado, quem deve
sempre seguir a regra, e quem deve esforçar-se por cumpri-la apenas “por respeito à lei”, é
o sujeito patologicamente interessado, que se caracteriza, justamente, por tensões
motivacionais e fraquezas e/ou automatismos psicológicos. Chamemo-lo de “sujeito
empírico”. 6 O sujeito racional avalia as razões da (para a) aceitabilidade da regra; já o
sujeito empírico procura motivos para seguir a regra nas diferentes situações – e motivos
moralmente louváveis. Ora, dizer que o sujeito racional é o sujeito em que interesses
patológicos e tensões motivacionais foram postos em suspenso equivale a dizer, mais
precisamente, que seu raciocínio e avaliação não chegam a ser afetados por fatores (e
incertezas) motivacionais. É por isso que as razões que o sujeito racional reconhece nem
sempre representam motivos para o sujeito empírico. Ao avaliar a aceitabilidade das regras
práticas, o sujeito racional coloca-se no plano de uma racionalidade depurada das tensões
motivacionais e automatismos psicológicos típicos do sujeito empírico. O sujeito racional é
“menos finito” do que o sujeito empírico.
Tenho enfatizado que a marca da moralidade imperativa é a exigibilidade das
regras. É claro que, por um lado, isso não deve nos fazer esquecer que a exigibilidade tem
por contrapartida a aceitabilidade – para ser incondicionalmente exigível, a regra tem de ser
aceitável, quer dizer, tem de poder ser reconhecida como correta e justa pelo próprio sujeito
de quem ela vai ser exigida. A fonte da exigibilidade das regras não reside numa autoridade
“externa” ao próprio sujeito (como um Deus onipotente, por exemplo). Por outro lado,
porém, embora a regra tenha de poder ser reconhecida como correta e justa pelo próprio
sujeito que vai ficar submetido a ela, quem a reconhece como correta e justa é o sujeito
como sujeito racional, e não o sujeito como sujeito empírico. É dessa brecha, justamente,
que se origina o problema da motivação na moralidade imperativa. Tal problema, com
efeito, só se coloca para o sujeito como sujeito empírico. É ele que tem de seguir a regra; é
ele que muitas vezes não encontra suficiente motivação para segui-la. Idealmente, o
reconhecimento de que a regra é correta e justa deveria funcionar também como motivo
suficiente para o sujeito empírico – é nesse caso, justamente, que a conduta do sujeito
6
É óbvio que essa distinção envolve a discussão sobre o conceito de liberdade; entretanto, tendo em vista os
limites do presente trabalho, não entrarei nessa discussão aqui.
71
empírico tem maior valor moral. Mas é claro que isso nem sempre acontece; o sujeito como
sujeito empírico muitas vezes não encontra motivos suficientemente fortes para seguir a
regra. (Como foi dito acima, as razões para o sujeito racional nem sempre representam
motivos suficientemente fortes para o sujeito empírico.) Mas o fato de ele não encontrar tal
motivação não significa que a regra não deva ser aceita por ele – como sujeito racional, ou
razoável. E a condição da validade e exigibilidade da regra consiste, justamente, na
aceitabilidade para o sujeito racional, e não na motivação para o sujeito empírico.7
Em conexão com o argumento que acaba de ser exposto, podemos apresentar o
seguinte argumento. A conveniência de se efetuar uma separação entre essas duas
dimensões do imperativo categórico está ligada à conveniência de separar as questões a que
cada uma dessas dimensões respectivamente se refere: por um lado, a questão da
determinação da ação objetivamente correta e devida; por outro lado, a questão do
discernimento do móbil último da ação praticada, e, principalmente, do ajuizamento do
valor moral que tal móbil confere a ela. A primeira questão se coloca na esfera do sujeito
como sujeito racional; já as outras duas se colocam na esfera do sujeito como sujeito
empírico – nesse caso, o conceito do imperativo categórico expressa uma (interminável)
tarefa do sujeito empírico. Por que me parece importante separar essas questões? Pela
seguinte razão: as questões do móbil e do valor moral estão permeadas de incertezas de
caráter eminentemente psicológico, as quais, por serem externas ao foco prático-objetivo da
questão da determinação de qual é a ação incondicionalmente devida, representam um fator
de imprecisão que não precisa nem deve ser introduzido nessa última questão. Para que a
filosofia prática de Kant seja plausível, eu tenho de poder ter certeza a respeito de “qual” é
a ação objetivamente devida, mesmo que eu não possa arrogar-me certeza quanto à pureza
motivacional que, como ideal, norteia meus esforços para ser um homem moralmente bom.
7
Segundo essa interpretação, as normas do Direito podem perfeitamente ser vistas como expressões do
imperativo categórico, ainda que estejam acompanhadas da ameaça de punição em caso de transgressão. Com
efeito, no campo do Direito Racional, nem a ameaça de punição nem a efetividade dessa ameaça representam
condições da validade (exigibilidade) das normas; as normas continuam válidas (exigíveis) mesmo para o
sujeito que, como sujeito empírico, diz não temer a eventual punição (e tem bons motivos para isso). A
condição da validade (exigibilidade) da norma reside no fato de que ela pode e deve ser reconhecida como
justa – mas pelo sujeito como sujeito racional. Pelo fato de, em certos casos, lhe ser concedida a tese de que
ele tem bons motivos para não temer uma eventual punição, não se concede ao sujeito empírico o direito de
eximir-se do cumprimento das normas – uma vez que elas são perfeitamente aceitáveis pelo sujeito como
sujeito racional. Em vez de ser condição da validade (exigibilidade) das normas, a ameaça de punição
representa simplesmente um reforço da motivação que o sujeito – como sujeito empírico – pode vir a
encontrar para conformar-se a elas.
72
Em outras palavras, para que a filosofia prática kantiana seja plausível, a incerteza que
inevitavelmente afeta o discernimento do móbil último das ações não deve afetar a
determinação de qual é a ação objetivamente devida – e para ela não afetar esse último
juízo, é preciso separar as duas dimensões do imperativo categórico.
***
Ainda que meu interesse no presente trabalho não incida sobre as teses que Kant
desenvolve acerca da psicologia e valor da ação moral,8 gostaria de fazer um brevíssimo
comentário sobre esse assunto, com o intuito apenas de ilustrar o elemento de imprecisão e
incerteza que afeta o discernimento do móbil e do valor moral das ações. Gostaria de
começar meu comentário com algumas observações a respeito da insuficiência e imprecisão
da teoria da motivação que Kant apresenta na “Primeira Seção” da Fundamentação. Como
é sabido, Kant distingue aí três tipos de móbil9: intenção egoísta, inclinação imediata e
dever. Consideremos em primeiro lugar a diferença entre intenção egoísta e inclinação
imediata. Kant ilustra essa diferença mediante dois exemplos extremos. Como exemplo de
ação praticada com intenção egoísta, ele apresenta o comportamento do comerciante que
serve honestamente mesmo a uma criança ingênua e inexperiente, mas que, ao fazê-lo, está
de olho apenas na utilidade desse comportamento para seus propósitos estritamente
egoísticos, sem experimentar nenhum apreço direto pela referida criança. Como exemplo
de ação praticada com inclinação imediata, ele apresenta o comportamento do indivíduo
cuja alma é tão disposta à simpatia que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou
interesse pessoal, experimenta prazer em espalhar alegria à sua volta, e consegue se alegrar
com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua.
Tomada a partir desses exemplos extremos, a distinção apresenta características
bem marcadas, e é fácil de ser aplicada. No caso da ação praticada com intenção egoísta, a
ação é vista apenas como meio, e o fim para o qual ela é meio lhe é completamente externo,
na medida em que, enquanto a ação (o meio) representa consideração pelos outros, o fim,
ao contrário, consiste em preocupação estritamente egoística. Já no caso da ação praticada
por inclinação imediata, a ação é boa em si mesma, ela agrada por si mesma, em virtude de
apoiar-se em uma disposição afetiva imediatamente favorável ao tipo de ação de que ela é
8
Para uma exposição abrangente desse assunto, ver a Parte II do livro Kant’s Theory of Freedom, de Henry
Allison. Cambridge, Cambridge University Press, 1990.
9
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, páginas 397-399 (edição da Academia).
73
exemplo. Nesse último caso, mesmo que a ação venha a ser encaixada no esquema meio-
fim, há uma relação de complementaridade e inteireza entre meio e fim, na medida em que
ambos correspondem a uma mesma disposição afetiva, e uma disposição que é não-
egoística. Por exemplo, mesmo que a ação de fazer uma doação a uma determinada pessoa
seja tomada como meio para o fim de fazer essa pessoa feliz, há uma relação de
complementaridade e inteireza entre meio e fim, na medida em que ambos expressam uma
mesma disposição afetiva. É justamente por isso que essa ação (fazer a doação) também
pode ser tomada como particularização da ação genérica de “promover a felicidade dessa
pessoa”. Por outro lado, mesmo que a ação seja tomada como meio para um fim, pode-se
dizer que ela é boa (agradável) “em si mesma”, pelo fato de haver uma relação de
complementaridade e inteireza entre meio e fim.
Entretanto, há muitos casos intermediários, nos quais a distinção se torna nebulosa e
imprecisa, difícil de ser aplicada. Trata-se de casos em que o móbil da ação oscila entre
dois pólos motivacionais intimamente associados: o impulso de agradar os outros e o desejo
de ser estimado pelos outros. Poder-se-ia fazer a tentativa de colocar a questão em termos
inequívocos: ou bem o móbil último é o impulso de agradar os outros, tomado como
expressão de uma disposição afetiva altruísta, ou bem o móbil último é o desejo de ser
estimado pelos outros, tomado como expressão de uma disposição afetiva egoísta. Mas há
inúmeros casos em que a questão simplesmente não pode ser colocada nesses termos: o
móbil último oscila permanentemente entre esses dois pólos. Mais ainda, os pólos se
embaralham, um se transmuta no outro: o impulso de agradar os outros vira desejo de ser
estimado pelos outros, e o desejo de ser estimado pelos outros vira impulso de agradar os
outros; não é mais possível dizer, inequivocamente, se o móbil é egoísta ou altruísta. Não é
mais possível responder inequivocamente à questão sobre os termos em que a ação deve ser
descrita. Por exemplo, em que termos deve ser descrita a ação de fazer uma doação a uma
pessoa? Será que ela deve ser descrita como meio para o fim (altruísta) de promover a
alegria dessa pessoa? Ou como meio para o fim (egoísta) de ser estimado por ela? Ou será
que ela deve ser descrita como particularização da decisão genérica de “praticar atos que
sejam merecedores da estima dessa pessoa”? Nesse último caso, de que forma deve ser
vista a decisão de “praticar atos que sejam merecedores da estima dessa pessoa”? Como
expressão de uma disposição afetiva egoísta (o desejo de ser estimado por ela)? Ou como
74
10
Cf. Crítica da Razão Prática, Livro Primeiro, Cap. III: “Dos Móbiles da Razão Pura Prática”. Ver, por
exemplo, a passagem das páginas 80-81 (Edição da Academia): “O sentimento que resulta da consciência
dessa coação não é patológico, como aquele que é produzido por um objeto dos sentidos, mas é puramente
prático, ou seja, possível por uma anterior (objetiva) determinação da vontade e causalidade da razão. Esse
sentimento não contém, como submissão a uma lei, quer dizer, como comando (que indica coerção para o
sujeito sensivelmente afetado), nenhum prazer, mas, antes, desprazer na ação. Por outro lado, porém, uma vez
que essa coerção é exercida apenas pela legislação da nossa própria razão, esse sentimento contém também
elevação, e o efeito subjetivo sobre o sentimento, na medida em que a razão pura prática é sua única causa,
pode portanto denominar-se auto-aprovação em relação à razão pura.”
Ver também a seguinte passagem da nota da página 23 de A Religião nos Limites da Simples Razão
(Edição da Academia): “A majestade da lei (igual à lei no Sinai) infunde reverência (não medo, que repele;
também não fascínio, que convida à familiaridade), que desperta o respeito do subordinado por seu soberano,
75
possui uma natureza dupla: por um lado, ele se apresenta em termos de desprazer, na
medida em que o reconhecimento do dever implica rebaixamento (humilhação) das nossas
inclinações empíricas, ou seja, das inclinações que nós “por natureza” temos. Em outras
palavras, na medida em que o reconhecimento do dever implica rebaixamento das
inclinações que nós por natureza temos, o sentimento produzido por ele é um sentimento de
desprazer – à repressão das inclinações naturais associa-se um elemento de desprazer. Por
outro lado, porém, o reconhecimento do dever aponta para nossa destinação mais alta, a
destinação de, rebaixando as inclinações meramente empíricas, seguir e efetivar princípios
e normas puramente racionais. Ora, na medida em que o reconhecimento do dever aponta
para nossa destinação mais alta, e para a possibilidade de alcançarmos ou ao menos
aproximarmo-nos dessa destinação, o sentimento produzido por ele é um sentimento de
“elevação” e “auto-aprovação”. O elemento de auto-aprovação associa-se ao
reconhecimento de nossa verdadeira vocação.
Assim, ao desenvolver isso que Allison classifica como uma “fenomenologia do
respeito”, 11 Kant chama atenção para a tensão interna que caracteriza o sentimento
produzido pelo reconhecimento da lei moral. Sob um primeiro aspecto, esse sentimento
manifesta-se como desprezo pelas inclinações naturais e pelo contentamento que a livre
satisfação dessas inclinações propicia. Ora, considerando que as inclinações naturais e o
contentamento com a livre satisfação dessas inclinações representam elementos essenciais
da condição humana, sob esse primeiro aspecto o sentimento de respeito (pela lei) equivale
a um sentimento de rebaixamento da própria humanidade, de desprezo por si próprio e
pelos homens em geral (enquanto somos “animais”). Manifesta-se aqui um sentimento
acusatório, que envolve acusação contra si próprio e contra os homens em geral. Trata-se de
um sentimento negativo em relação à humanidade em geral. Entretanto, sob um segundo
aspecto, esse sentimento manifesta-se como veneração pela destinação mais alta dos
homens, e pela capacidade que os homens têm de buscar essa destinação, gradualmente, na
medida do possível, e ainda que com quedas. Ora, considerando que essa destinação e
capacidade também representam elementos essenciais da condição humana, sob esse
segundo aspecto o sentimento de respeito (pela Lei) é um sentimento positivo em relação à
mas que nesse caso, em virtude de o soberano residir em nós próprios, desperta um sentimento da sublimidade
da nossa própria destinação, que nos arrebata mais do que toda beleza”.
11
Allison, op.cit., p.123.
76
12
Allison, op.cit., p.176.
77
Religião nos Limites da Simples Razão, por exemplo, Kant afirma que “o fundo do coração
(o primeiro fundamento subjetivo das suas máximas) é inescrutável para o próprio
indivíduo”. Kant não é psicologicamente tão obtuso quanto alguns de seus críticos gostam
de nos fazer pensar. Ele estaria pronto para admitir o fato de que o respeito pela lei pode
assumir a forma de mesquinho e ressentido amor-de-si, e de que é praticamente impossível
dizer, num determinado caso, se ele assumiu a forma desse tipo mesquinho de sentimento
ou, ao contrário, a forma da grandiosa reverência pela sublime e exigente vocação do
Homem – ou, finalmente, se ele representa uma confusa mistura das duas coisas. Ao dizer
que o fundo do coração é inescrutável, é como se Kant dissesse: não cabe a nós, humanos, a
tarefa de julgar o móbil último das ações, nem o valor moral que tal móbil lhes confere;
deixemos essa tarefa com Deus. Limitemo-nos a julgar a correção das ações, ou seja, sua
conformidade (ou não conformidade) à obrigação que é objetivamente exigível de todos, e
deixemos a cada indivíduo a tarefa de buscar os motivos capazes de levá-lo a cumprir essa
obrigação da forma mais louvável e valiosa possível, assim como a interminável tarefa de
examinar até que ponto ele de fato avançou no sentido de encontrar motivos moralmente
louváveis e valiosos.
***
Gostaria de concluir a presente seção com um breve comentário final. Gostaria de
chamar atenção para o fato de que, ao contrário do que Kant parece muitas vezes sugerir,
determinar qual é a ação objetivamente devida nem sempre é tarefa fácil e trivial. Por
exemplo, em muitas situações, é difícil dizer se a ação objetivamente devida consiste em
contar a verdade ou mentir a uma determinada pessoa; em muitas situações, a ação
objetivamente devida talvez consista em mentir. (É importante repetir que a ação
objetivamente devida equivale aqui à ação moralmente devida, ou seja, à ação cuja
correção independe de qualquer interesse patológico por possíveis resultados. Assim,
determinar que a ação objetivamente devida consiste em mentir equivale a dizer, não que
mentir seja a ação mais fácil, agradável ou recompensadora, mas que é a ação moralmente
correta, ou seja, conforme ao dever categórico e incondicionado). A qualidade de uma
teoria moral aparece justamente em situações desse tipo, pelo fato de ela fornecer um
critério que permita discernir, num contexto embaraçoso, qual é, afinal, a ação
objetivamente devida. Ora, se é verdade que, para Kant, o móbil último das ações é
78
inescrutável, então, para que a teoria moral kantiana seja boa, o móbil último não deve ser
confundido com o critério de determinação da ação objetivamente devida. Ou seja, o
imperativo de agir com o móbil do dever não deve ser confundido com o imperativo de agir
conforme os critérios de correção da ação objetivamente devida. O embaralhamento das
duas dimensões entrava a discussão a meu ver fundamental, que é, justamente, a que diz
respeito aos critérios de determinação da ação objetivamente devida. No contexto do debate
moral contemporâneo, essa última discussão parece-me muito mais relevante do que aquela
que diz respeito às possíveis fontes de motivação para a ação moralmente devida, e ao
maior ou menor valor moral que essas diferentes fontes conferem às respectivas ações.
79
13
Ver, especialmente, a “Primeira Lição” e a “Quinta Lição”.
80
esclarecer a natureza exata dos critérios conteudísticos kantianos, e mostrar em que sentido,
exatamente, eles representam alternativas ao critério conseqüencialista. Kant chama seus
critérios conteudísticos de “fórmulas” do imperativo categórico. O problema é que, como
veremos logo a seguir, ele apresentou nada menos do que cinco fórmulas para o imperativo
categórico, e essa superabundância, como é de se esperar, dificulta a percepção de qual é,
exatamente, o foco central do debate entre kantismo (deontologismo) e conseqüencialismo.
Nosso interesse na presente seção é efetuar uma limpeza nessas fórmulas. Tentaremos
mostrar que duas delas – a fórmula da autonomia e a do reino dos fins – devem ser
descartadas pelo pesquisador interessado no debate entre deontologismo e
conseqüencialismo, por dizerem respeito, não tanto à questão central desse debate (que é,
justamente, a questão da determinação do conteúdo objetivo da ação moralmente correta),
mas, muito mais, a uma questão que é externa ao mesmo, a saber, a questão da
determinação do móbil (fundamento subjetivo) capaz de conferir pleno valor moral às
ações moralmente corretas. Tentaremos mostrar também que uma terceira fórmula – a
fórmula da lei da natureza – pode ser reduzida à primeira das fórmulas que Kant apresenta,
a saber, a fórmula da lei universal. Assim, após esse trabalho de limpeza, chegaremos à
conclusão de que só as fórmulas da lei universal e do fim em si mesmo interessam ao
pesquisador dedicado ao debate entre deontologismo e conseqüencialismo. Entretanto, uma
vez que, no presente trabalho, meu interesse na filosofia kantiana está restrito àqueles
elementos que têm sustentado uma interpretação rigorista do deontologismo, não tratarei da
fórmula do fim em si mesmo, mas me limitarei à fórmula da lei universal, uma vez que só
esta última tem alimentado a interpretação rigorista do deontologismo.
humanidade, tanto em tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo
tempo como fim, e nunca simplesmente como meio” (Fundamentação, p.429). Em quarto
lugar, a fórmula da autonomia: “Se há um imperativo categórico (ou seja, uma lei para a
vontade de todo ser racional), ele só pode ordenar que tudo se faça em obediência à
máxima de uma vontade que simultaneamente se possa ter a si mesma por objeto como
legisladora universal” (Fundamentação, p.432. O grifo é meu). Um pouco depois, já depois
da introdução do conceito de reino dos fins, Kant apresenta a fórmula da autonomia em
termos um pouco mais simples: “Esta legislação tem de poder encontrar-se em cada ser
racional mesmo, e brotar da sua vontade, cujo princípio é: (...) (agir) só de tal maneira que a
vontade, por sua máxima, se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como
legisladora universal” (Fundamentação, p.434. O grifo é meu). Em quinto lugar, a fórmula
do reino dos fins: “Desta maneira, é possível um mundo de seres racionais (mundus
intelligibilis) como reino dos fins, e isto graças à própria legislação de todas as pessoas
como membros dele. Por conseguinte, cada ser racional terá de agir como se sempre fosse,
pelas suas máximas, um membro legislador no reino universal dos fins” (Fundamentação,
p.438. O grifo é meu).
***
Para lidarmos com esse excesso de fórmulas, o melhor é começarmos por uma
passagem em que Kant reduz as cinco fórmulas a apenas três. A passagem é a seguinte
(Fundamentação, p.436):
As três maneiras indicadas de apresentar o princípio da moralidade são, no fundo, apenas outras
tantas fórmulas dessa mesma lei, das quais uma, por si mesma, reúne em si as outras duas.14
Contudo, há entre elas uma diferença, que na verdade é mais subjetiva do que objetivamente
prática, com o fito de aproximar uma idéia da razão mais e mais da intuição (segundo uma certa
analogia), e desse modo do sentimento. Todas as máximas têm, com efeito:
1) uma forma, que consiste na universalidade, e sob esse ponto de vista a fórmula do imperativo
moral se exprime de maneira que as máximas têm de ser escolhidas como se devessem valer como
leis universais da natureza;
2) uma matéria, isto é, um fim, e então a fórmula diz: o ser racional, como fim segundo sua
natureza, portanto como fim em si mesmo, tem de servir, para toda máxima, de condição restritiva
de todos os fins meramente relativos e arbitrários;
3) uma determinação completa de todas as máximas, por meio daquela fórmula, a saber: que todas
as máximas, por legislação própria, devem concordar com a idéia de um possível reino dos fins,
como um reino da natureza.
14
Sobre a tradução dessa frase, ver a seção 2.2.2, abaixo.
83
apresentada quer de um modo mais conceptual quer de um modo mais intuitivo. Quando
ela é apresentada do modo mais conceptual, tem-se a (sub-)fórmula da lei universal; quando
ela é apresentada do modo mais intuitivo, a partir de uma analogia com a ordem da
natureza, tem-se a (sub-)fórmula da lei da natureza. A diferença entre essas duas (sub)-
fórmulas é mais subjetiva do que objetivamente prática: a fórmula da lei da natureza não
acrescenta nenhum elemento ou aspecto novo à fórmula da lei universal, ela apenas
aproxima essa última fórmula da intuição e do sentimento, através de uma analogia com a
ordem da natureza. E é preciso compreendermos bem o sentido dessa “aproximação com a
intuição e o sentimento”: não se trata de fornecer à fórmula da lei universal um incentivo
sensível (pois um incentivo sensível decerto representaria um elemento novo, e, além disso,
um elemento que seria contraditório com a pureza motivacional que o agente moral deve
sempre buscar), mas se trata, sim, de fornecer àquela lei uma noção mais intuitiva (ou seja,
mais nítida do ponto de vista da nossa sensibilidade) do modo como ela deve ser
concretamente tomada e aplicada.
Ora, na medida em que não lhe acrescenta nenhum elemento ou aspecto novo, a
fórmula da lei da natureza pode ser reduzida à fórmula da lei universal; sua única serventia
é facilitar a aplicação desta última, por meio de uma noção mais intuitiva, ou seja, mais
próxima da sensibilidade. O fato de, na passagem da p.436 acima transcrita, a fórmula
mencionada ser a fórmula da lei da natureza, e não a da lei universal, não significa que a
primeira seja mais importante do que esta última, nem contraria a tese de que ela pode ser
reduzida a esta última. A opção pela fórmula da lei da natureza deriva apenas do fato de
que Kant havia acabado de mencionar a conveniência de, para efeito de apreensão e
aplicação concretas, aproximar a fórmula conceptual da intuição e do sentimento.
Entretanto, o fator fundamental na diferenciação das fórmulas não é esse, e sim a
necessidade de distinguir os aspectos sob os quais o princípio da moralidade pode ser
apresentado. Ora, desse último ponto de vista, a fórmula da lei da natureza pode ser
reduzida à fórmula da lei universal, como sustenta P. Stratton-Lake em seu artigo
Formulating Categorical Imperatives.16
A tese de que o fator fundamental na diferenciação das fórmulas é a necessidade de
distinguir os aspectos sob os quais o princípio da moralidade pode ser apresentado, e não a
16
Apud ALMEIDA, Guido Antônio, op.cit., p.91-92.
85
19
ALMEIDA, Guido de, op.cit., p.94.
20
Conferir, por exemplo, as traduções (de resto excelentes) de Paulo Quintela, Victor Delbos e Lewis White
Beck. Victor Delbos chega a apor à sua tradução a seguinte nota explicativa: “Com efeito, de cada uma dessas
fórmulas pode-se, por simples análise, extrair as outras duas (...)” (Fondements de la Métaphysique des
Moeurs. Paris: Librairie Delagrave, 1971, p.162).
87
Os imperativos, tais como atrás no-los representamos, quer dizer, como constituindo uma
legislação das ações universalmente semelhante a uma ordem natural, ou como universal
privilégio de finalidade dos seres racionais em si mesmos, excluíam sem dúvida do seu princípio
de autoridade toda mescla de qualquer interesse como móbil, exatamente por serem concebidos
como categóricos; porém, eles só foram admitidos como categóricos porque tínhamos de admiti-
los como tais se queríamos explicar o conceito de dever. Mas que houvesse proposições práticas
que ordenassem categoricamente, eis o que por si não pôde ser provado e o que nesta seção
tampouco se pode provar ainda. Mas podia ter acontecido uma coisa, a saber: indicar no próprio
imperativo, por qualquer determinação nele contida, a renúncia a todo interesse no querer por
dever, como caráter específico de distinção do imperativo categórico em face do hipotético. Ora, é
precisamente o que acontece na presente terceira fórmula do princípio, isto é, na idéia da vontade
de todo ser racional como vontade legisladora universal. (O grifo é meu).
21
Sobre as dificuldades envolvidas na questão de se é ou não possível reduzir a fórmula da autonomia à
fórmula da lei universal, conferir os argumentos apresentados por Guido de Almeida (em Sobre as
“Fórmulas” do Imperativo Categórico) contra a posição de Stratton-Lake (segundo a qual a fórmula da
autonomia pode ser reduzida à da lei universal).
91
como sujeito empírico é o agente, quer dizer, o indivíduo que deve agir em conformidade
com a lei moralmente correta. Havíamos dito que, para ser incondicionalmente exigível do
sujeito empírico, a lei precisa ser aceitável para o sujeito racional. É claro que essa idéia
também pode ser expressa por meio da afirmação de que, para ser incondicionalmente
exigível, a lei tem de poder ser vista como emanando da própria racionalidade do sujeito –
mas como sujeito racional, justamente. Poder-se-ia afirmar que se apresenta aqui uma
“certa” idéia de autonomia – uma idéia “fraca”, evidentemente. De qualquer modo, esse é
um elemento conceptual que já está contido na própria idéia do imperativo categórico;
trata-se de um elemento conceptual que já está presente nas fórmulas da lei universal e do
fim em si mesmo – é óbvio que a validade objetiva dessas fórmulas está vinculada à tese de
que o sujeito racional as aceita (reconhece) como corretas e justas.
Mas não é esse, claramente, o elemento visado por Kant na passagem sobre a
autonomia acima citada. Claramente, o que Kant estava visando é a motivação do agente,
quer dizer, do sujeito empírico. O elemento novo que a “terceira fórmula” introduz
consiste, justamente, na prescrição de que o sujeito empírico, ao conformar-se à lei
moralmente correta, encare-a como expressão da sua própria racionalidade, quer dizer,
como expressão da sua destinação suprema, em vez de procurar apoio num motivo de
natureza sensível, como o desejo de ser bem visto pelos outros, ou o desejo de receber uma
recompensa de Deus, ou até mesmo uma recompensa do pequeno Eu – a vanglória do ego
que se reprime. Em outras palavras, o que Kant visa com a fórmula da autonomia não é a
idéia de que, para ser incondicionalmente exigível do sujeito empírico, a lei moralmente
correta precisa poder ser vista como expressão da racionalidade do indivíduo-legislador –
esse sujeito em que as tensões e conflitos motivacionais foram postos em suspenso, para
que ele possa realizar a tarefa de determinar o teor da lei moralmente correta. O que Kant
visa com a “terceira” fórmula é a prescrição de que a lei moralmente correta seja vista pelo
próprio agente, quer dizer, pelo sujeito finito, mergulhado nas tormentas motivacionais e
psicológicas da sensibilidade, - que ela seja vista por esse sujeito como expressão da sua
destinação grandiosa e suprema, a elevação ao plano da racionalidade pura.
Assim, o aspecto novo introduzido pela “terceira fórmula” diz respeito, apenas, à
disposição subjetiva com que a ação deve ser praticada, para ter pleno valor moral; ele não
afeta a determinação do conteúdo objetivo da ação moralmente correta. Em outras palavras,
92
o elemento novo que a fórmula da autonomia acrescenta diz respeito, não à determinação
de qual é a ação objetivamente devida, a partir da assunção do critério da conformidade à
universalidade da lei em geral, mas diz respeito, sim, ao móbil que dá uma certa
configuração psicológico-subjetiva às ações praticadas segundo esse critério. Desse último
ponto de vista, as ações do sujeito empírico não devem apoiar-se em nenhum motivo de
natureza sensível; ora, para que elas não se apóiem em nenhum móbil de natureza sensível,
é preciso que a lei moralmente correta seja encarada como absolutamente independente de
qualquer fundamento motivacional que seja “externo” à racionalidade do próprio agente
(seja a sociedade, Deus, ou um Eu que gosta de se vangloriar com o próprio rigor na
obediência à lei). Para que as ações moralmente corretas não se apóiem em nenhum móbil
de natureza sensível, é preciso que a lei seja experimentada como emanando “de dentro” da
racionalidade do próprio agente (sujeito empírico), pois nesse caso, e apenas nesse caso, o
móbil para praticá-las pode consistir, justamente, no respeito à própria racionalidade, que é
o único móbil puramente moral. E poderíamos acrescentar, a título de “aproximação com o
sentimento”: respeitar a própria racionalidade equivale a considerá-la como fim da própria
existência (empírica), ou seja, destinação que, ao modo de princípio, dá sentido e
sustentação motivacional à atividade prática em geral e moral em particular. Todo agente
(sujeito empírico) deve considerar sua própria racionalidade como fim nesse último sentido,
ou seja, deve considerar-se como membro de um reino em que a racionalidade de cada um
é fim nesse último sentido.
Vimos acima que, para Kant, a fórmula da autonomia corresponde a um terceiro
aspecto pelo qual pode ser apresentado o imperativo categórico, que é o aspecto da
“determinação completa de todas as máximas”. Sem entrar aqui no complicado conceito de
máxima, podemos tentar sugerir o sentido geral desse aspecto. A meu ver, a “determinação
completa de todas as máximas” pode ser entendida em termos de um discernimento do
leque completo das condições que as ações precisam cumprir para ser moralmente válidas;
trata-se de um discernimento que abrange não somente as condições que elas precisam
cumprir para ser moralmente corretas, mas também, e até principalmente, as condições que
elas precisam cumprir para ter pleno valor moral. Na verdade, o elemento decisivo consiste
aqui, precisamente, na especificação da condição que elas precisam cumprir para ter pleno
valor moral, na medida em que é essa especificação que dá completude ao discernimento
93
Para encerrar o presente capítulo, gostaria de fazer uma breve recapitulação das
principais teses acima apresentadas, enfatizando certos pontos que me parecem
fundamentais para uma correta compreensão do conceito de imperativo categórico. Em
primeiro lugar, afirmei que, para se ter clareza quanto às implicações do conceito de
imperativo categórico para a questão da determinação do critério conteudístico das ações
moralmente corretas, é preciso distinguir e separar as duas dimensões que esse conceito
apresenta. A primeira pode ser chamada de dimensão prático-objetiva; nessa primeira
dimensão, o conceito de imperativo categórico estabelece as condições gerais que devem
ser seguidas na determinação de qual é, objetivamente, a ação moralmente correta. A
segunda dimensão pode ser chamada de dimensão psicológico-subjetiva; nessa segunda
dimensão, o conceito de imperativo categórico indica a disposição motivacional que
confere pleno valor moral àquelas ações que, do ponto de vista prático-objetivo, foram
determinadas como moralmente corretas.
Em segundo lugar, tentei mostrar que, em ambas as dimensões do conceito, a nota
fundamental é a da “exclusão de interesse patológico pelos possíveis resultados da ação”,
mas que essa nota desempenha funções radicalmente distintas nas duas dimensões. Na
dimensão prático-objetiva, essa nota conceptual assume um caráter puramente objetivo,
funcionando como critério da determinação de qual é, objetivamente, a ação moralmente
correta, mas deixando em suspenso o móbil (fundamento subjetivo) pelo qual a ação correta
pode ou deve vir a ser efetivamente escolhida e praticada. Nessa primeira dimensão, a
função dessa nota pode ser expressa nos seguintes termos: para se determinar qual é,
objetivamente, a ação moralmente correta, começa-se por excluir todo interesse patológico
pelo provável resultado dessa ou daquela ação possível, e toma-se como princípio a noção
de uma obrigação pura e incondicionada, ou seja, uma obrigação cuja validade (ou
exigibilidade) é totalmente independente de qualquer interesse patológico por essa ou
aquela conseqüência possível. Entretanto, nessa primeira dimensão, a referida nota
conceptual deixa em suspenso a possibilidade de que, no momento de se encontrar um
móbil (fundamento subjetivo) capaz de levar à realização da ação anteriormente
determinada como moralmente correta, um interesse patológico por possíveis efeitos
95
(recompensas) dessa ação venha introduzir-se na alma do sujeito. (Esse interesse patológico
pode consistir, por exemplo, no agrado que a pessoa sente diante da possibilidade de, em
reprimindo seus impulsos sensíveis, arrogar-se o direito de acusar os outros). É só na
segunda dimensão do imperativo categórico que a referida nota conceptual desempenha a
função de determinar o móbil pelo qual a ação moralmente correta deve ser praticada.
Nessa segunda dimensão, a função dessa nota pode ser expressa nos seguintes termos: para
encontrar o móbil capaz de conferir pleno valor moral à ação moralmente correta, comece
por excluir todo tipo de interesse patológico por possíveis efeitos ou recompensas dessa
ação, e concentre-se (ou tente concentrar-se) no puro respeito à sua própria racionalidade,
tomada como destinação suprema da sua existência empírica.
Em terceiro lugar, tentei mostrar que, em ambas as dimensões do imperativo
categórico, a nota conceptual da “exclusão de interesse patológico pelos possíveis
resultados da ação” é perfeitamente compatível com a posição conseqüencialista. É esse
ponto que gostaria agora de enfatizar, começando por uma análise da primeira dimensão.
Gostaria de chamar atenção para o fato de que não se deve confundir “exclusão de interesse
patológico por possíveis resultados” com “exclusão de uma consideração puramente lógica
dos possíveis resultados”. Como vimos acima, interesse patológico por um possível
resultado (dessa ou daquela ação possível) consiste no fato de que a possibilidade de
alcançar tal resultado me agrada (corresponde às minhas inclinações). É esse interesse que
deve ser excluído no momento de se determinar, dentre as ações possíveis, qual é a
moralmente correta. Mas isso não significa que, para se determinar, dentre as ações
possíveis, qual é a moralmente correta, se deva excluir uma consideração puramente lógica
dos prováveis resultados de cada uma dessas ações. Com efeito, é perfeitamente possível
proceder a uma consideração desses resultados sem ter qualquer sentimento de agrado em
relação a qualquer um deles. Aliás, é justamente esse tipo de consideração que a posição
conseqüencialista exige: ao considerar as prováveis conseqüências das diferentes ações
possíveis, para determinar qual delas é a moralmente correta, o agente conseqüencialista
deve adotar uma postura de frieza e imparcialidade, excluindo todo tipo de interesse
patológico por esse ou aquele indivíduo, por essa ou aquela conseqüência.
Poder-se-ia objetar, talvez, que o cálculo conseqüencialista não é tão desinteressado
assim, na medida em que está vinculado a um sentimento de “simpatia” pelos homens em
96
geral. Entretanto, tomada como um sentimento perfeitamente imparcial, a simpatia deve ser
vista como expressão sensível de uma obrigação puramente racional, a obrigação,
justamente, de buscar o bem do maior número possível de indivíduos, independentemente
das predileções empíricas particulares de cada um. Por ser expressão sensível de uma
obrigação racional, a simpatia é um sentimento que, dentro do quadro conseqüencialista, se
pode e deve exigir dos sujeitos em geral, independentemente das inclinações empíricas
peculiares a cada um. Nesse sentido, a simpatia deve ser vista como a versão
conseqüencialista daquele tipo de sentimento que Kant qualifica de puramente prático,
contrapondo-o ao sentimento patológico.
A confusão entre “exclusão de interesse patológico por possíveis resultados” e
“exclusão de uma consideração puramente lógica dos possíveis resultados” é alimentada
pela afirmação kantiana de que, no caso do imperativo categórico, a ação objetivamente
devida não deve recomendar-se como meio, mas deve recomendar-se “em si mesma”,
independentemente da relação com qualquer finalidade ou resultado. Mas nós vimos acima
que essa afirmação não merece crédito, na medida em que, em muitos casos, a relação
meio-fim e a consideração dos prováveis resultados são imprescindíveis para uma
caracterização objetiva e adequada da própria ação que está em questão. Por exemplo, em
muitos casos, não se pode fornecer uma caracterização objetiva e adequada da ação de
mentir, ou da ação de cortar a perna de uma pessoa, sem mencionar o fim ou resultado que
se visa com ela, ou as conseqüências que ela vai provavelmente acarretar. A natureza das
conseqüências afeta a natureza da própria ação. E isso independe de qualquer interesse
patológico por tais conseqüências: mesmo que, do ponto de vista dos nossos sentimentos
empíricos e patológicos, sejamos absolutamente indiferentes à sorte de todas as pessoas
envolvidas nos contextos em questão, a ação de mentir para honrar o direito de uma pessoa
à integridade física é objetivamente distinta da ação de mentir para promover a felicidade
de uma pessoa, poupando-a da angústia que a verdade iria provavelmente lhe causar. E, no
primeiro contexto, caso a finalidade de honrar o direito da pessoa à integridade física venha
a se revelar como um propósito que deve ser incondicionalmente assumido por todos e cada
um, a ação de mentir para honrar esse direito será a ação objetivamente correta, mesmo
que, do ponto de vista dos nossos sentimentos empíricos e patológicos, sintamos um
mórbido agrado com a possibilidade de que a pessoa em questão viesse a ser fisicamente
97
lesada. Por outro lado, no segundo contexto, caso a finalidade de promover a felicidade da
pessoa venha a se revelar como um propósito que deve ceder o passo à finalidade de honrar
o direito da pessoa a uma escolha bem informada, a ação de mentir para promover a
felicidade da pessoa será uma ação objetivamente incorreta, mesmo que, do ponto de vista
dos nossos sentimentos empíricos e patológicos, sintamos agrado com a possibilidade de,
pela mentira, poupar a pessoa da angústia que a verdade vai provavelmente lhe causar. O
que estou querendo dizer é o seguinte: mesmo que, seguindo as exigências expressas no
conceito de imperativo categórico, já tenhamos excluído todo interesse patológico pelas
prováveis conseqüências das diferentes ações possíveis, uma consideração puramente
lógica de tais conseqüências é muitas vezes imprescindível para uma caracterização
objetiva e adequada de cada uma dessas ações e, a fortiori, para a determinação de qual
delas é a ação que, no quadro do conceito de imperativo categórico, é objetivamente
correta.
Recapitulando: na primeira dimensão do imperativo categórico, que diz respeito à
determinação de qual é a ação objetivamente correta, a nota conceptual da “exclusão de
interesse patológico por esse ou aquele resultado possível” é perfeitamente compatível com
a tese de que, para se determinar qual é a ação objetivamente correta, deve-se proceder a
uma consideração (lógica) dos efeitos ou resultados das diversas ações possíveis.
E o que acontece na segunda dimensão do imperativo categórico, a qual, como
vimos acima, diz respeito à determinação do móbil capaz de conferir pleno valor moral à
ação objetivamente correta? Nessa segunda dimensão, a nota conceptual da “exclusão de
interesse patológico pelas conseqüências da ação” equivale à tese de que, para ter pleno
valor moral, a ação deve ser praticada apenas “por dever”, ou seja, deve ter por móbil a
pura consciência do dever, ou o puro respeito à lei. No próximo capítulo, analisaremos de
forma mais detalhada as proposições com que Kant esclarece a natureza da ação
moralmente valiosa. Podemos entretanto antecipar que, também nessa segunda dimensão, a
nota conceptual da “exclusão de interesse patológico pelos resultados da ação” é
perfeitamente compatível com a posição conseqüencialista. Com efeito, antecipando a
interpretação que será elaborada no próximo capítulo, podemos afirmar que, ao decidir
praticar ações que venham a maximizar conseqüências grosso modo boas no conjunto dos
indivíduos sob seu alcance, o agente conseqüencialista pode perfeitamente concordar com a
98
tese de que as ações que ele pratica só têm pleno valor moral caso sua motivação última
resida na pura consciência do dever, ou seja, na consciência de que esse tipo de ato é pura e
simplesmente obrigatório; mais ainda, como efeito dessa sua concordância, ele também
pode despreocupar-se inteiramente com o desenvolvimento de qualquer disposição afetiva
favorável a esse tipo de ato, preocupando-se apenas com a pureza e força do seu senso de
dever. Não precisamos supor que a motivação desse agente tenha de residir num sentimento
de agrado com os benefícios que ele produz ou dissemina, e nem mesmo num sentimento
de simpatia pelos homens em geral. Com efeito, a noção de simpatia não é essencial à
posição conseqüencialista. O agente conseqüencialista pode ser absolutamente frio e
empedernido, indiferente às dores ou prazeres dos indivíduos que serão afetados pela sua
ação, e, além disso, sem nenhum interesse egoísta indireto nos efeitos que sua ação vai
provavelmente acarretar, e ainda assim, movido pela pura consciência do dever, praticar
ações grosso modo benéficas ao maior número possível de indivíduos.
Assim, quando são corretamente interpretados, tanto o conceito de imperativo
categórico quanto a noção de “agir por dever” revelam-se compatíveis com a posição
conseqüencialista. Eles só se tornam incompatíveis com essa última posição quando a nota
conceptual da “exclusão de interesse patológico pelos resultados da ação” é (erroneamente)
confundida com “exclusão de uma consideração puramente lógica dos resultados da ação”.
Caso sejam interpretados a partir dessa confusão, entretanto, os conceitos de imperativo
categórico e de “agir por dever” não apenas excluem a posição conseqüencialista, mas
implicam que, para diferençar-se do conseqüencialismo, o deontologismo precisa adotar
uma postura de total desconsideração pelos resultados da ação. Em outras palavras, ao
serem interpretados a partir da confusão acima referida, os conceitos de imperativo
categórico e de agir por dever acabam desembocando na tese de que, para diferençar-se do
conseqüencialismo, o deontologismo precisa ser entendido num sentido rigorista. No
próximo capítulo, pretendo completar a desmontagem desse erro, através de uma análise
um pouco mais detalhada da concepção kantiana da ação moralmente valiosa, ou seja, da
ação cujo móbil último reside na pura consciência do dever.
Recapitulando: ao serem corretamente interpretados, os conceitos kantianos de
imperativo categórico e de “agir por dever” deixam de ser capazes de estabelecer ou
esclarecer qualquer diferença essencial entre deontologismo e conseqüencialismo, e, por
99
Capítulo 3.
A Fórmula da Lei Universal.
1
Cf. Korsgaard, Christine: Kant’s analysis of obligation; the argument of Groundwork I. Republicado em
Creating the Kingdom of Ends, Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p. 43-76. Ver especialmente a
página 47.
102
externas a tais termos e passos, as quais dizem respeito à configuração das suas duas idéias-
chave: as idéias de máxima e, em segundo lugar, do sujeito (indivíduo legislador) cuja
máxima deve ser submetida ao teste (procedimento) de universalização, ou seja, do sujeito
que deve “poder querer” a universalização da máxima.
***
Comecemos com a argumentação da Primeira Seção, na qual a fórmula da lei
universal é introduzida mediante análise do conceito de ação moralmente valiosa. Como
acaba de ser dito, trata-se de uma reflexão que, analisando o motivo pelo qual uma vontade
moralmente boa pratica as ações corretas, pretende extrair critérios conteudísticos que
permitam identificar quais são, exatamente, as ações moralmente corretas. Em princípio,
esse tipo de análise parece incorrer num círculo vicioso. Com efeito, para praticar as ações
corretas segundo a motivação que lhe é própria, a vontade moralmente boa já precisa saber
quais são as ações corretas, ou seja, já precisa dispor dos critérios de identificação das
ações corretas. Em outras palavras, os critérios de identificação das ações corretas devem
estar disponíveis antes que elas possam ser praticadas por uma vontade moralmente boa;
antes, por conseguinte, de podermos analisar o motivo específico pelo qual uma vontade
desse tipo pratica tais ações. Sendo assim, não faz sentido pretender extrair aqueles critérios
de uma análise desse motivo.
Entretanto, esse círculo pode ser evitado da seguinte maneira: é óbvio que há ações
que são prima facie corretas, cuja identificação não exige critérios mais precisos e
detalhados; ora, se analisarmos o motivo pelo qual uma vontade moralmente boa pratica
essas ações, poderemos extrair critérios de correção mais precisos, abrangentes e fecundos,
úteis para a identificação da correção em situações mais complexas ou problemáticas. E
esse, de fato, parece ser o procedimento que Kant pretende seguir na Primeira Seção da
Fundamentação: analisando as características motivacionais que singularizam o modo pelo
qual uma vontade moralmente boa pratica ações prima facie corretas, como atos de
caridade em relação aos outros, Kant pretende extrair um critério conteudístico – a fórmula
da lei universal – que possa então, nas mais diversas situações de decisão, servir de
princípio à vontade, orientando-a quanto à ação moralmente correta.2
2
Cf, por exemplo, Fundamentação, Primeira Seção, p.404: “Seria fácil mostrar aqui como ela (a razão
humana vulgar - A.S.B.), com esta bússola na mão (a fórmula da lei universal - A.S.B.), sabe perfeitamente
103
A análise kantiana da ação moralmente valiosa (ou seja, da ação praticada por uma
vontade moralmente boa) desdobra-se em três proposições. A primeira é a seguinte: a ação
moralmente valiosa é a ação praticada “por dever”. Em outras palavras, a ação moralmente
valiosa é aquela cujo móbil último é a pura consciência do dever. Essa proposição rendeu
muitas críticas a Kant, as quais, por sua vez, desencadearam muitas tentativas de defender
(talvez fosse melhor “salvar”) a posição kantiana. Entretanto, não precisamos nos deter aqui
nem nas críticas nem nas defesas. Só precisamos destacar dois pontos: em primeiro lugar, o
contexto que confere direção e sentido a essa proposição é constituído, não pelo debate
entre deontologismo e conseqüencialismo, mas, sim, pelo debate entre as concepções
imperativa e atrativa da ética. Fundamentalmente, o que Kant faz com essa proposição é
defender a concepção imperativa da ética, contra as pretensões da concepção atrativa. Com
efeito, para a concepção atrativa, a ação objetivamente correta só tem pleno valor moral
caso sua motivação última se encontre, não na pura consciência do dever, mas numa
disposição afetiva imediatamente favorável a ela, ou seja, naquilo que Kant chama de
“inclinação imediata”, ligada à convicção, própria do agente verdadeiramente virtuoso, de
que tal ação é constitutiva de uma “boa vida”. No contexto da concepção atrativa, a
presença desse tipo de disposição afetiva torna o senso de dever fútil e desnecessário, e é
nesse caso, justamente, que a ação praticada tem pleno valor moral. Para os simpatizantes
da concepção atrativa, portanto, a “primeira proposição” de Kant parece não apenas falsa,
mas, sobretudo, contrária à concepção comum do que é uma “boa vontade” (ou seja, uma
vontade verdadeiramente virtuosa).
Entretanto, como estamos interessados, não nas questões da motivação e do valor
moral da ação, mas, sim, na questão do critério conteudístico da ação objetivamente
correta; - como estamos interessados, não no debate entre a concepção atrativa e a
concepção imperativa, o qual, pelo menos em parte, é alimentado, justamente, pelas
questões da motivação e do valor moral, mas, sim, no debate entre deontologismo e
conseqüencialismo, o qual, além de ser interno à concepção imperativa, é alimentado,
justamente, pela questão do critério conteudístico da ação objetivamente correta; - em
virtude desse nosso interesse, não precisamos nos deter nas discussões que a “primeira
proposição” engendrou.
distinguir, em todos os casos que se apresentem, o que é bom e o que é mau, o que é conforme ao dever ou o
que é contrário a ele” (O grifo é meu).
104
seguinte modo: “Para ajudar as pessoas, dar-lhes dinheiro, na medida do possível” (“Para
atingir tal fim, praticar tal tipo de ação, nas circunstâncias em que isso é possível”). Essa
máxima (máxima 1) está subordinada a uma máxima mais elevada e genérica (máxima 2),
no sentido de que a máxima 2 expressa o motivo pelo qual se assumiu a máxima 1. Assim,
a máxima 2 pode ser expressa do seguinte modo: “Em geral, tentar ajudar os outros” (“Em
geral, buscar tal fim”). Nesses dois primeiros níveis, portanto, a máxima contém um fim.
Em outras palavras, toda e qualquer máxima, pelo menos em algum dos níveis nos quais ela
se expressa, está necessariamente referida a um fim – e é justamente por isso que toda e
qualquer ação está necessariamente referida a um fim.
Mas a máxima 2 também está subordinada a uma máxima mais elevada e genérica,
a máxima 3. Mais uma vez, a máxima 3 expressa o motivo pelo qual se assume a máxima
2. No nosso exemplo, a máxima 3 representa a resposta à seguinte pergunta: por que você
assumiu a máxima de “Em geral, tentar ajudar os outros” (“Em geral, buscar tal fim”)? Para
Kant, fiel às exigências mais radicais da concepção imperativa da ética, a resposta do
homem moralmente bom só poderia ser a seguinte: “Porque ajudar os outros é pura e
simplesmente obrigatório” (“Porque buscar tal fim é pura e simplesmente obrigatório”). Em
outras palavras, para Kant, a máxima fundamental (máxima 3) do homem moralmente bom
só pode ser a seguinte: “porque é meu dever”. É óbvio que há outras possibilidades de
máxima fundamental, que Kant rejeita. A saber: “porque me dá prazer” e “porque me traz
felicidade (me realiza como ser humano)”. De qualquer modo, nesse terceiro e último nível,
em vez de conter um fim (um propósito), a máxima contém uma disposição fundamental do
sujeito, ou seja, uma compreensão básica do sentido da própria existência. Nesse terceiro e
último nível, como já foi dito, a máxima merece ser chamada de “máxima fundamental”.
Na máxima fundamental, como também já foi dito, o que se pretende especificar é o móbil
último do sujeito.
Voltemos agora à “segunda proposição”: “uma ação praticada por dever tem o seu
valor moral, não no fim que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina”. Ora,
se é verdade que, em seus dois primeiros níveis, a máxima indica o fim que se quer atingir,
a “máxima” que Kant nessa proposição contrapõe ao fim só pode ser a máxima
fundamental, pois esta é a única que, em vez de conter um fim a ser buscado, contém uma
disposição fundamental do sujeito. A proposição de Kant poderia ser reescrita da seguinte
107
forma: “uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não na máxima que indica o
fim que se quer atingir (ou seja, não na máxima subordinada), mas na máxima que expressa
a disposição fundamental do sujeito (ou seja, na máxima fundamental)”. E seria preciso
adicionar o seguinte complemento: “Na ação praticada por dever, a máxima fundamental
do sujeito é: meu motivo (porquê) último é a pura consciência do dever”.
Ora, será verdade que essa segunda proposição, tal como acaba de ser reescrita e
complementada, implica objeção ao conseqüencialismo? Vejamos: em primeiro lugar, é
preciso admitir, com base no que foi visto acima, que tanto o agente kantiano (ou seja,
deontológico) quanto o agente conseqüencialista têm máximas que indicam fins a serem
buscados ou atingidos. É claro que, em relação a essas máximas, ou seja, em relação à
determinação dos fins a serem buscados, há uma diferença importante entre o agente
kantiano e o agente conseqüencialista. No caso do conseqüencialista, o fim a ser buscado é
determinado como “maximização de conseqüências grosso modo boas no conjunto dos
afetados”. No caso do kantiano, embora ainda não saibamos de que modo, exatamente, é
determinado o fim a ser buscado (nosso esforço se dirige, justamente, ao esclarecimento
desse ponto ainda obscuro), já sabemos que ele é determinado de outro modo, distinto do
conseqüencialista. Um outro ponto que precisa ficar claro é o seguinte: dependendo do
modo como é determinado o fim a ser buscado ou atingido, a ação objetivamente correta
será ou essa ou aquela. Em outras palavras, a determinação do fim a ser buscado implica
determinação de qual é, objetivamente, a ação moralmente correta; variando a
determinação do fim a ser buscado, varia a determinação de qual é, objetivamente, a ação
moralmente correta. Em outras palavras ainda, a determinação do fim a ser buscado
equivale à determinação do critério de correção das ações. Sendo assim, o ponto em que
diferem deontólogos e conseqüencialistas pode ser localizado, indiferentemente, na questão
do critério de correção das ações e/ou na questão da determinação do fim a ser buscado.
Voltemos, entretanto, à nossa questão do momento. Acabamos de ver que tanto o
agente kantiano quanto o agente conseqüencialista têm máximas que indicam fins a serem
buscados, e que em relação a essas máximas há uma diferença importante entre o agente
kantiano e o agente conseqüencialista. Mas vimos também que a segunda proposição de
Kant não se refere a essas máximas por assim dizer subordinadas, nem, por conseguinte, ao
problema do critério de correção das ações, mas se refere, sim, à máxima fundamental do
108
evitar a confusão entre, por um lado, “almejar o fim acertado (ou um fim equivocado)”, e,
por outro lado, “ter (ou não) sucesso na consecução do fim almejado”. A idéia básica dessa
proposição não é, apenas, a de que o valor moral da ação não depende do fato de a ação ter
(ou não) sucesso na consecução do fim que ela busca; é mais do que isso. A idéia básica é:
o valor moral não depende do fim a ser atingido, quer dizer, não depende nem do fato de a
ação ter (ou não) sucesso na consecução do fim que ela busca nem do fato de ela buscar o
fim que é objetivamente acertado (em vez de um fim objetivamente equivocado). Em outras
palavras, o valor moral da ação não depende nem do fato de ela ter sucesso na produção de
um determinado estado de coisas nem do fato de ela visar aquele estado de coisas que é
objetivamente bom ou valioso. Em outras palavras ainda, o valor moral da ação não
depende da qualidade objetiva do estado de coisas externo que ela visa produzir (e não
pode deixar de visar), mas depende, sim, da qualidade subjetiva (interna) da disposição de
alma a partir da qual ela é escolhida e praticada. Se o valor moral da ação derivasse da
qualidade objetiva do estado de coisas externo que ela visa produzir, seria falsa a tese de
que a única coisa que é boa sem restrição é a boa vontade: um estado de coisas
objetivamente bom ou valioso teria precedência sobre o valor da boa vontade. Mas o que
acontece é justo o contrário: mesmo que, como ocorre no caso do conseqüencialista, a
vontade se equivoque quanto ao estado de coisas externo que se deve almejar, mesmo que o
estado de coisas que ela visa produzir seja objetivamente mau, no sentido de equivocado, -
mesmo assim a decisão e a ação podem ser consideradas moralmente valiosas, se a
disposição de alma que as gera e alimenta for internamente boa ou valiosa. Assim, longe de
representar uma objeção ao conseqüencialismo, a “segunda proposição” representa o
reconhecimento de que, do ponto de vista moral, a ação do conseqüencialista, ainda que
seja objetivamente incorreta, pode perfeitamente ser subjetivamente (internamente)
louvável, por provir de uma disposição de alma internamente valiosa, ou seja, por provir de
uma vontade que, ainda que equivocada quanto ao alvo, deve ser classificada como uma
“boa vontade”, cujo valor moral se propaga para as ações que ela pratica.6
6
Neste ponto da minha argumentação, valho-me das idéias que Bruce Aune apresenta nas páginas 7-8 de seu
Kant’s Theory of Morals. (Princeton, Princeton University Press, 1979). Comentando a tese kantiana de que a
boa vontade é a única coisa que pode ser considerada boa sem restrição, escreve ele o seguinte: “Caso
tenhamos um ideal moral – talvez o summum bonum de Kant – poderíamos dizer que uma vontade só é boa
com qualificações. Se ela promove ou ajuda a realizar o summum bonum, ela é realmente boa; mas se ela
falha – devido, talvez, a uma falsa idéia do que é bom – ela pode ser considerada, ao menos parcialmente,
110
Na sua “terceira proposição”, Kant introduz a noção de “Lei”, que é decisiva para o
sucesso do argumento que ele desenvolve nessa primeira seção, o qual, como vimos acima,
consiste numa reflexão que, analisando o motivo pelo qual uma vontade moralmente boa
pratica as ações corretas, pretende extrair um critério conteudístico (o princípio da
universalização) que permita identificar, nas diversas situações de decisão moral, quais são,
como não-boa. Dizer isso não implica que uma boa vontade que erre o alvo está necessariamente sujeita a
censura ou crítica; pelo contrário, se a atitude é moral, nada mais precisa ser exigido do agente. Mas disso não
se segue que uma atitude moralmente irreprochável é, necessariamente, boa sem qualificação. Esse último
ponto, entretanto, não precisa representar um problema para Kant. Ele pode preservar o espírito de sua tese
estabelecendo uma distinção semelhante àquela que os utilitaristas do ato algumas vezes estabelecem entre
ações subjetivamente corretas e ações objetivamente corretas. De acordo com essa última distinção, um ato é
objetivamente correto simplesmente quando, grosso modo, maximiza a felicidade humana; ele é
subjetivamente correto quando é realizado com a intenção de maximizar a felicidade. Kant sem dúvida
objetaria a que os termos objetivo e subjetivo sejam aplicados ao valor moral, mas ele poderia estabelecer
uma distinção correspondente entre, digamos, valor moral interno e valor moral externo. Ele poderia então
dizer que uma boa vontade é internamente boa sem qualificação, mas que ela pode ser externamente má.” (O
grifo é meu).
E eu acrescento, elaborando a lição de Aune: a boa vontade, ou seja, a vontade internamente boa, é
externamente má quando, tendo uma visão errônea do estado de coisas objetivamente bom ou valioso, visa
um fim objetivamente equivocado.
111
7
Cf. Korsgaard, C., Kant’s analysis of obligation; the argument of Groundwork I, op. cit., p.61: “O que a
análise revela é que a razão pela qual a pessoa de boa vontade pratica a ação não é simplesmente que a ação
serve a este ou àquele propósito, mas, sim, que é necessário – ou seja, é lei – praticar tal ação ou ter tal
propósito. A máxima da ação, ou a máxima do propósito, possui aquilo que vou chamar de ‘caráter legal’ (...)
Uma vez que o caráter legal da máxima é o que motiva a pessoa de boa vontade, é isso, e nenhuma outra
coisa, o que torna correto o ato ou o propósito. A análise de Kant identifica a correção da ação,
essencialmente, com o caráter legal da sua máxima. (...) O caráter legal da máxima deve ser intrínseco: a
máxima deve ter o que vou chamar de ‘forma legalitária (lawlike form)’. É por isso que o caráter legal, ou
universalidade, deve ser entendido como forma legalitária, ou seja, como uma exigência de possibilidade de
universalização (universalizability).” (O grifo é meu).
112
8
Nessa frase, a tradução de Delbos parece-me melhor do que a de Quintela, pois nesse momento da
argumentação, como demonstrarei a seguir, a noção de “lei” tem de ser entendida, não em termos de “uma lei
universal das ações”, o que sugere uma lei conteudisticamente determinada, mas em termos de “lei em geral”,
o que sugere, apenas, a forma da lei (de qualquer lei, da lei em geral, ou da lei como tal).
O texto em alemão é o seguinte: “(...) so bleibt nichts als die allgemeine Gesetzmässigkeit der
Handlungen überhaupt übrig, welche allein (...)”.
113
simples conformidade à lei em geral (sem tomar como base qualquer lei destinada a certas ações)
o que serve de princípio à vontade, e também o que tem de lhe servir de princípio, para que o
dever não seja por toda parte uma vã ilusão e um conceito quimérico.
***
Tal como exposto nas duas passagens acima transcritas, o argumento pelo qual Kant
introduz a fórmula da lei universal parece poder ser reconstruído mais ou menos da
seguinte maneira. É verdade que o agente ainda não sabe qual é, exatamente, a lei a que ele
deve obedecer ou conformar-se (quer dizer, “rigorosamente” obedecer ou “meramente”
conformar-se, segundo a distinção acima estabelecida entre os dois ângulos pelos quais
pode ser enfocada a noção de lei). Entretanto, em vez de dizer que se trata dessa ou daquela
lei, o que seria injustificado nesse momento, mantenhamos a indeterminação conteudística,
e digamos que, ainda que a lei esteja conteudisticamente indeterminada, e qualquer que seja
9
Em relação à tradução dessa frase, sigo o entendimento de Quintela e Lewis White Beck, contra Delbos.
Delbos entende que o que o imperativo contém, além da lei, é a necessidade, para a máxima “inferior”, de
conformar-se à lei, ao passo que Quintela e White Beck entendem que o que ele contém é a necessidade da
máxima quase-fundamental “Agir em conformidade com a lei”.
De qualquer modo, ao contrário do problema de tradução mencionado na última nota, esse ponto não
é decisivo, nem para o sentido do argumento kantiano, nem para o sentido geral da minha reconstrução.
O texto em alemão é o seguinte: “Denn da der Imperativ ausser dem Gesetze nur die Notwendigkeit
der Maxime enthält, diesem Gesetze gemäss zu sein, das Gesetz aber keine Bedingung (...)”.
115
o conteúdo que se venha a dar a ela, ela possui uma forma invariável, que é a forma da
universalidade. Na idéia de “Lei”, quer dizer, lei em geral, ou lei como tal, está contida a
forma da universalidade. Ora, o que podemos tentar fazer é, justamente, utilizar a forma da
universalidade para determinar o conteúdo da lei. Em outras palavras, podemos tentar
determinar o conteúdo da lei recorrendo apenas à forma da universalidade. O conteúdo da
lei seria então o seguinte: aja de acordo com a forma da universalidade, ou seja, aja de
forma universalizável.10 Mais precisamente, aja de maneira tal, que a regra que orienta sua
conduta possa ser universalizada, ou seja, possa ser transformada em regra universal de
conduta. O que também pode ser formulado da seguinte maneira: aja de maneira tal, que a
máxima que orienta sua conduta possa ser transformada em lei universal da conduta.
Será que essa formulação pode ser considerada um critério suficientemente
determinado para o discernimento de qual é a regra (ou ação) moralmente correta?
10
Nas páginas 28-34 de seu livro Kant’s Theory of Morals, Bruce Aune faz uma crítica a meu ver
injustificada do argumento pelo qual Kant introduz a fórmula da lei universal. Para ele, o máximo que Kant
poderia extrair da máxima do dever é a seguinte fórmula da lei moral: “Conforme suas ações à lei universal”.
Para Aune, há uma lacuna entre essa fórmula e a fórmula da lei universal, e Kant não preenche essa lacuna no
argumento que desenvolve. Parece-me, entretanto, que a crítica de Aune deriva do fato de ele não perceber
que o ponto de partida de Kant não é tanto a noção de “lei universal”, ou seja, não é tanto a máxima “sempre
conformar minhas ações à lei universal”, mas é, antes, a noção de “lei em geral”, ou seja, a máxima “sempre
conformar minhas ações à idéia de lei em geral”. Na noção de “lei universal”, com efeito, a universalidade
indica apenas o âmbito de aplicação da lei, e não pode ser entendida em termos de forma, ou seja, forma a que
as ações devem conformar-se. Na noção de “lei em geral”, em contrapartida, a universalidade expressa a
forma que caracteriza a lei em geral, ou seja, a idéia de lei em geral. Assim, da noção de “agir de acordo com
a idéia de lei em geral” pode-se extrair a noção de “agir de acordo com a forma que caracteriza a lei em
geral”, ou seja, “agir de acordo com a forma da universalidade” – ou ainda, “agir de forma universalizável”.
A meu ver, se há uma lacuna no argumento do qual Kant tira a fórmula da lei universal, ela reside,
não na introdução da forma da universalidade, mas na introdução do verbo querer. Comentarei essa lacuna um
pouco mais à frente.
116
Retomemos a fórmula introduzida por Kant: Age apenas segundo uma máxima tal
que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal. Considerando os
diferentes níveis de generalidade em que a noção de máxima pode se colocar e expressar, o
primeiro problema que temos de responder é o seguinte: qual é, exatamente, a máxima que
deve ser submetida ao teste (procedimento) de universalização? Trata-se da máxima que se
expressa do modo mais detalhado e circunstanciado (aquela que acima chamamos de
“máxima 1”)? Ou, ao contrário, trata-se da máxima fundamental (“máxima 3”), na qual se
expressa a decisão mais genérica e abrangente do sujeito? Ou trata-se de uma máxima
intermediária (a “máxima 2”)?
A primeira pista que parece se apresentar é a seguinte: no argumento pelo qual Kant
introduz a fórmula, aparecem, indiferentemente, as máximas fundamental e quase-
fundamental. (Com efeito, o cerne desse argumento consiste na seguinte reflexão: ao
contrário do que ocorre no agir por inclinação e/ou no imperativo hipotético, no agir por
dever e/ou no imperativo categórico não entra em cena nenhum interesse patológico dessa
ou daquela espécie, quer dizer, nenhum elemento empírico individual e variável; só entram
em cena as figuras puras da lei em geral e da máxima de sempre obedecer/conformar-se à
lei em geral. Ora, é justamente o fato de essas figuras não estarem misturadas a nenhum
elemento individual e variável que permite que, a partir delas apenas, se deduza um
conteúdo geral e uniforme, quer dizer, um conteúdo que está perfeitamente inscrito nas
figuras puras da lei e da máxima de sempre obedecer/conformar-se à lei – esse conteúdo é,
justamente, a forma da lei.) Ora, se a máxima fundamental (ou quase-fundamental) aparece
no argumento pelo qual se introduz a fórmula, isso parece sugerir que a máxima que
aparece na própria fórmula (“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne uma lei universal”), ou seja, a máxima que deve ser
imediatamente submetida ao teste de universalização, - parece estar sugerido que tal
máxima é, justamente, a máxima fundamental, ou a quase-fundamental, indiferentemente.
117
Mas será que isso é mesmo assim? Será que pode ser assim? Ou será que se trata
aqui da máxima de nível 1, aquela que expressa a estrutura completa e detalhada da própria
ação que se cogita praticar (“para atingir tal fim, praticar tal tipo de ação, em tal tipo de
circunstâncias”)? Ou será que se trata da máxima de nível 2, que expressa uma decisão um
pouco mais elevada e genérica, a decisão, a saber, de “em geral, buscar tal fim”?
A meu ver, para respondermos a essas questões, precisamos refletir sobre dois
pontos. O primeiro é o seguinte. Se a máxima que aparece na própria fórmula é uma
máxima que deve (precisa) ser submetida a um teste de universalização, então ela tem de
ser uma máxima em relação à qual o teste de universalização faça sentido. Isso significa
que ela tem de ser uma máxima da qual em princípio não sabemos se passa (ou não) no
teste de universalização. Ora, parece evidente que a máxima fundamental (ou a quase-
fundamental, indiferentemente) tem de ser tomada como uma máxima que já passou no
teste de universalização. Em outras palavras, parece evidente que não faz sentido perguntar
se a máxima “sempre obedecer/conformar-se à lei” pode ou não transformar-se em lei
universal. Na verdade, essa máxima já é a lei universal, enfocada, entretanto, não do ponto
de vista do conteúdo das ações, e sim do ponto de vista da motivação do sujeito. Desse
último ponto de vista, a “lei universal” se expressa, justamente, nos seguintes termos:
“Sempre obedeça/conforme-se à lei, quaisquer que sejam seus interesses patológicos
particulares”. O problema é que essa formulação “subjetivo/motivacional” ainda não diz o
que, exatamente, essa lei manda fazer. A função do teste de universalização prescrito pela
fórmula da lei universal é, justamente, responder a esse último problema.
Assim, para respondermos à questão sobre o modo pelo qual devemos expressar a
máxima a ser submetida ao teste de universalização, precisamos refletir mais detidamente
sobre a função que se deve atribuir a esse teste e à fórmula da lei universal. E em relação a
esse ponto, gostaria de me socorrer do seguinte ensinamento de C. Korsgaard:
Na Fundamentação, Kant afirma que, para tomar decisões morais, a melhor fórmula é a Fórmula
da Lei Universal (Fundamentação, p.436-437). Curiosamente, na Metafísica dos Costumes, não é
feito nenhum uso direto da Fórmula da Lei Universal: em vez dela, são usados o Princípio
Universal da Justiça e o Princípio Supremo da Virtude. Há duas razões possíveis para isso. Uma,
evidentemente, é que Kant mudou de idéia. Uma outra, melhor, é que os princípios morais da
Metafísica dos Costumes situam-se num nível genérico, e Kant pode ainda pretender que se deva
usar a formulação da lei universal no nível das decisões particulares. Essa segunda interpretação
tem certa plausibilidade, pois a Fórmula da Lei Universal é proposta como um método de decisão.
118
Ela não é uma regra, nem um método para produzir regras gerais, mas um método para tomar
11
decisões em situações concretas. (o grifo é meu).
De acordo com essa interpretação, portanto, a função que se deve atribuir à fórmula
da lei universal é a de permitir a tomada de decisões em situações concretas e específicas.
Entendida dessa maneira, a fórmula diz que, para tomar uma decisão numa situação
concreta e específica, deve-se submeter a máxima da ação a um teste de universalização.
Ora, se a função desse teste é gerar uma decisão concreta e específica, a máxima que deve
ser submetida a ele é aquela que incorpora todos os elementos que são relevantes para uma
decisão concreta e específica. Que espécie de máxima é essa? Aquela que, sem se perder
em detalhes irrelevantes, descreve a verdadeira natureza do ato que concretamente está em
questão. Ora, para descrever a verdadeira natureza do ato que concretamente está em
questão, a máxima tem de descer aos elementos que conferem especificidade e
determinação a tal ato. Em outras palavras, para descrever a verdadeira natureza do ato, a
11
Cf. An introduction to the ethical, political, and religious thought of Kant, nota 25, p. 39 (republicado em
Creating the Kingdom of Ends, p.3-42).
Em Moral Deliberation and the Derivation of Duties (in The Practice of Moral Judgment, p.132-
158), Barbara Herman revela sua “simpatia” por essa concepção do procedimento de universalização. Na
p.132, por exemplo, ela afirma o seguinte: “Duas funções são comumente atribuídas ao procedimento do
imperativo categórico. Pensa-se que ele ou sustenta uma derivação de deveres ou fornece um algoritmo para a
deliberação moral. O modelo da derivação de deveres foi o mais duradouro na história da interpretação do
procedimento do imperativo categórico, e é, provavelmente, a fonte da maioria das costumeiras críticas aos
resultados substantivos da ética kantiana. (...) A concepção mais recente da função do procedimento do
imperativo categórico, e aquela que eu julguei ser a mais interessante, atribui-lhe antes o papel de fornecer um
conjunto de instruções para a deliberação ou ajuizamento moral, através do qual um indivíduo, em
circunstâncias específicas e com intenções específicas, pode determinar a permissibilidade de uma ação ou
fim que ele se propõe.”
Nesse artigo, Herman acaba abandonando essa concepção “deliberativa” do teste de universalização,
mas por uma razão a meu ver equivocada. Ela com razão percebe que a concepção “deliberativa” implica que
a máxima a ser submetida ao procedimento deve incluir circunstâncias e intenções específicas, ou seja, as
circunstâncias e intenções que especificam a ação que o indivíduo está querendo testar. E a partir disso ela
afirma o seguinte: “Parece haver um obstáculo decisivo à concepção de que o procedimento do imperativo
categórico deve regular a deliberação moral: em qualquer das interpretações mais plausíveis dos dois testes do
procedimento do imperativo categórico, a introdução de máximas com circunstâncias específicas faz com que
o procedimento deixe de funcionar.” (p.136).
O problema é que Herman se atém à interpretação “formalística” do procedimento de
universalização, segundo a qual tal procedimento baseia-se, essencialmente, na noção de “contradição”. As
interpretações que ela considera só diferem no modo de entender que tipo de contradição está em jogo no
procedimento – ela simplesmente não considera a possibilidade de que o procedimento possa ser concebido e
aplicado sem o recurso à noção de contradição. Na verdade, ela chega a considerar essa possibilidade, numa
nota em que menciona os comentários de Scanlon sobre a Fundamentação. Mas ela descarta a interpretação
“não-formalística” de Scanlon com uma frase que revela o quanto lhe é importante o peso do texto e da
tradição kantianos: “A considerável vantagem é obtida, porém, ao custo de se abandonar a idéia de que a
noção de contradição desempenha um papel central no procedimento do imperativo categórico.” (p.141, nota
10). Ora, por que o abandono dessa idéia representa um “custo”? A razão só pode encontrar-se na fidelidade
ao texto e à tradição kantianos.
119
máxima tem de descer, do plano das intenções genéricas e globais para o plano do
propósito específico do ato, das circunstâncias em que esse propósito está sendo mantido,
das conseqüências que, nessas circunstâncias, vão provavelmente se produzir; com efeito,
propósito, circunstâncias e conseqüências prováveis são, justamente, os elementos que
conferem especificidade e determinação ao ato (ou ao tipo de ato) que concretamente está
em questão.12
O que eu estou querendo dizer é o seguinte. A fórmula da lei universal não deve ser
entendida como um método para justificar intenções genéricas e globais, como por
exemplo, a intenção de “não mentir”. Se ela fosse apenas isso, ela seria trivialmente pobre,
pois, no plano das intenções genéricas e globais, todas as concepções morais estão
praticamente de acordo. A fórmula da lei universal deve ser entendida, sim, como um
método para justificar decisões concretas e específicas, como, por exemplo, a decisão de,
nessa ou naquela situação específica, ater-se à intenção genérica, quer dizer, não mentir, ou,
ao contrário, desviar-se da intenção genérica, quer dizer, mentir. Afinal, o que caracteriza
uma intenção genérica e global é justamente o fato de que, em princípio, ela admite a
possibilidade de que, numa determinada situação específica, haja boas razões para desviar-
se dela. A função do teste de universalização prescrito pela fórmula da lei universal é
justamente descobrir, numa determinada situação específica, de que lado estão as boas
razões: se do lado da adesão à intenção genérica, ou, ao contrário, do lado do desvio
(exceção) da mesma. Ora, se essa é a função do teste, a máxima que se submete a ele deve
12
Ver, por exemplo, Barbara Herman, The Practice of Moral Judgment (1985), in The Practice of Moral
Judgment, p.73-93. Conferir p.75: “Para usar o imperativo categórico como princípio de ajuizamento ou
avaliação, o agente deve primeiro produzir sua máxima. Ou seja, ele deve formular um princípio (subjetivo)
que corretamente descreva o que ele está pretendendo fazer, e por que (para que fim e em resposta a que
motivo). Como a máxima é um princípio subjetivo da ação, ela contém tantos itens particulares, referidos às
pessoas e circunstâncias, quantos o agente julgar necessários para descrever e explicar a ação que ele se
propõe.”
Essa interpretação também foi anteriormente defendida por Marcus G. Singer. Conferir
Generalization in Ethics (Nova York, Atheneum, 1971), p.237: “O imperativo categórico é proposto como
um princípio para determinar se um ato qualquer é certo ou errado. Mas ele não pode ser aplicado a uma ação
considerada independentemente de um determinado contexto. Ele sempre deve ser aplicado a uma ação
considerada como ocorrendo em certas circunstâncias, ou para um certo propósito. A prova disso é que uma
referência às circunstâncias e propósitos da ação está necessariamente envolvida na ‘máxima’ da ação. E,
Kant insiste, é a máxima da ação o que deve ser querido como lei universal, não a ação tomada
independentemente de alguma determinada máxima, ou seja, independentemente de algum determinado
propósito ou circunstância”. Conferir também p.245: “Uma vez que especificar a máxima de uma ação é
especificar algo das suas circunstâncias e do seu propósito, especificar a máxima de uma ação é parte daquele
processo que num capítulo anterior eu descrevi como ‘preencher o contexto do ato’. Assim especificar a
máxima de uma ação é, na verdade, especificar mais claramente a natureza da ação”.
120
ser apresentada, não em termos vagos e genéricos, como, por exemplo, a máxima de “não
mentir”, mas, sim, em termos razoavelmente precisos e circunstanciados, como, por
exemplo, a máxima de “em tal tipo de situação, e diante dessa espécie de conseqüência, não
mentir” (Ou então: “Tendo em vista o propósito P, mentir nesse tipo de situação”). Com
efeito, a consideração das circunstâncias e conseqüências é essencial para o julgamento de
se há ou não boas razões para desviar-se da intenção genérica de “não mentir”.13
É claro que esse tipo de interpretação parece contrariar a definição kantiana de que a
máxima é um tipo de “princípio prático”, ou seja, uma proposição que expressa uma
“determinação geral da vontade, incluindo sob si diversas regras práticas”.14 Em relação a
essa definição, entretanto, é preciso fazer algumas considerações. Consideremos, por
exemplo, uma proposição do tipo “não fazer falsas promessas”. Será que uma proposição
como essa pode ser tomada como um princípio prático, quer dizer, como princípio de um
raciocínio prático? Em outras palavras, será que ela é capaz de funcionar como princípio de
um raciocínio prático, quer dizer, de um raciocínio cuja conclusão é uma decisão concreta e
específica? Ou será que ela, ao contrário, tem de ser tomada como expressão de uma
intenção absolutamente vaga e indeterminada, a qual, justamente por ser vaga e
indeterminada, não é capaz de funcionar como princípio de um raciocínio destinado a
produzir e justificar uma decisão concreta e específica? A meu ver, ela tem de ser tomada
nesse último sentido, ou seja, como expressão de uma intenção vaga e indeterminada. A
meu ver, para poder ser tomada como uma determinação geral da vontade, quer dizer, para
poder funcionar como princípio de um raciocínio prático, a proposição referente às falsas
promessas tem de incluir algum tipo de menção às circunstâncias nas quais se mantém e
justifica a decisão de ater-se (ou desviar-se) à intenção vaga e indeterminada de “não fazer
falsas promessas”. Em outras palavras, para poder funcionar como princípio de um
raciocínio prático, esse tipo de proposição tem de apresentar-se em termos minimamente
circunstanciados, como, por exemplo, “não fazer falsas promessas, quaisquer que sejam as
circunstâncias”, ou, ao contrário, “não fazer falsas promessas, exceto em circunstâncias
13
A mesma interpretação é defendida por J. Rawls no capítulo sobre Kant do livro Lectures on the History of
Moral Philosophy (editado por Barbara Herman, Harvard University Press, 2000). Com efeito, na p.168,
Rawls formula da seguinte maneira a máxima que, na sua interpretação da fórmula da lei universal, deve ser
submetida ao procedimento de universalização: “Fazer X nas circunstâncias C a fim de produzir Y, a não ser
que Z (onde X é uma ação e Y um fim, um estado de coisas).”
14
Cf. Crítica da Razão Prática, Livro I, Capítulo 1, parágrafo 1 - “Definição”, p.19 (edição da Academia).
121
efeito, capaz de servir como princípio de justificação da ação mesma que se pretende
praticar.15
Havíamos visto que o conteúdo da lei moral kantiana pode ser formulado da
seguinte maneira: aja de acordo com a forma da universalidade; vale dizer, aja de forma
universalizável; vale dizer, aja de maneira tal, que a máxima que tipifica sua conduta possa
ser universalizada. Ora, depois de se resolver o problema de saber qual é, exatamente, a
máxima que deve ser submetida ao teste de universalização, o problema que se coloca diz
respeito à introdução do verbo “querer” na fórmula da lei. Afinal, a fórmula diz: age apenas
segundo aquela máxima da qual tu possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei
universal. Ora, há uma diferença entre dizer, por um lado, que a máxima deve poder ser
universalizada, e dizer, por outro lado, que se deve poder querer que a máxima seja
universalizada. O fato de a máxima poder ser universalizada parece depender apenas de
características da própria máxima, ao passo que o fato de se poder querer a universalização
da máxima parece depender de características da vontade do sujeito. Aliás, o próprio Kant
reconhece essa diferença, ao afirmar que, em alguns casos, a universalização da máxima
gera uma contradição que é interna à própria máxima, ao passo que, em outros casos, a
universalização da máxima leva a uma contradição na vontade do sujeito.16
15
É interessante destacar que, na Crítica da Razão Prática, na seção que trata, justamente, da Típica da
Faculdade de Julgar Pura Prática, Kant aplica a fórmula da lei universal aos mesmos exemplos da Segunda
Seção da Fundamentação, mas apresenta esses exemplos não mais em termos de máximas, mas em termos de
ações, pura e simplesmente. Conferir p.69 (edição da Academia): “A regra da faculdade de julgar submetida
às leis da razão pura prática é a seguinte: pergunte a você mesmo se, caso a ação que você propõe devesse
ocorrer segundo uma lei da natureza da qual você mesmo fizesse parte, você poderia considerá-la como
possível por sua própria vontade. É segundo essa regra, de fato, que cada um julga se as ações são
moralmente boas ou más. Assim, a gente diz: Como! Se cada um tomasse a liberdade de enganar, quando
julgasse vantajoso, ou se considerasse autorizado a encurtar a própria vida, quando estivesse completamente
entediado dela, ou olhasse para a miséria dos outros com total indiferença, e se você pertencesse a uma tal
ordem de coisas, você estaria bem, com assentimento da sua vontade, nessa situação?” (O grifo é meu).
Ao comentar essa passagem em seu livro Generalization in Ethics (Nova York: Atheneum, 1971),
Marcus Singer afirma o seguinte: “O fato de o imperativo categórico ser aqui aplicado diretamente às ações, e
não às máximas das ações, não faz absolutamente nenhuma diferença.” (p.248).
16
Cf. Fundamentação, p.424: “Algumas ações são de tal ordem que sua máxima não pode sequer ser pensada,
sem contradição, como lei universal da natureza, e muito menos ainda se pode querer que ela devesse se
tornar uma tal lei. Em outras não se encontra, é verdade, essa impossibilidade interna, mas é contudo
impossível querer que a máxima viesse a ser erguida à universalidade de uma lei da natureza, pois que uma tal
vontade se contradiria a si mesma. Facilmente se vê que as do primeiro gênero contrariam o dever estrito ou
123
estreito (rigoroso), e as do segundo o dever largo (meritório)”. (O grifo é meu). Quanto à tradução do termo
unnachlasslich, optei por “rigoroso”, seguindo Delbos.
124
de uma e/ou de outra, indiferentemente. Só que, ao ser confrontada com os exemplos (1) e
(3), que dizem respeito aos deveres para consigo mesmo, essa interpretação enfrenta uma
dificuldade. Com efeito, nos exemplos (1) e (3) Kant recorre a considerações teleológicas
que parecem só fazer sentido na medida em que se introduz um elemento teleológico na
noção de lei, o que por sua vez só parece fazer sentido na medida em que se faz uma
distinção entre a “lei universal” e a “lei da natureza”, embutindo nessa última um elemento
teleológico que não estava contido na primeira, e interpretando-a, justamente, como lei
teleológica da natureza. É essa, por exemplo, a interpretação de Paton.17
A interpretação de Paton, entretanto, enfrenta dois obstáculos. Em primeiro lugar,
ela contraria a afirmação de Kant (na p.436 da Fundamentação) de que as formulações do
princípio da moralidade podem ser reduzidas a apenas três, na medida em que essa
afirmação, como tentamos demonstrar no capítulo anterior, só faz sentido caso se reduza a
fórmula da lei da natureza à fórmula da lei universal, tomando-a como uma variante que,
longe de introduzir qualquer aspecto novo, simplesmente facilita a percepção do modo
como se deve concretamente aplicar a fórmula da lei universal. Além disso, à interpretação
de Paton aplica-se o seguinte veredicto de Tugendhat, que me parece inteiramente
adequado e justificado: “Qualquer outra interpretação atribuiria a Kant o erro crasso de ter
infiltrado, na passagem da primeira para a segunda variante da 1ª fórmula, um fator
adicional (um fator teleológico - A.S.B.), que em parte alguma é mencionado”.18
O que parece se apresentar aqui, portanto, é a seguinte alternativa: ou bem (a)
estabelecemos uma diferença significativa entre a fórmula da lei universal e a fórmula da
lei da natureza, embutindo na segunda um elemento teleológico que não estava contido na
primeira, - e com isso tornamos perfeitamente viável a admissão dos exemplos (1) e (3) na
discussão do teste de universalização que está em jogo aqui; ou bem (b) adotamos a tese de
que a fórmula da lei universal e a fórmula da lei da natureza são essencialmente
17
Cf., por exemplo, The Categorical Imperative, p.149: “ (...) e, se não reconhecermos que as leis da natureza
que Kant tem em mente não são leis causais, mas leis teleológicas, não há possibilidade de sequer
começarmos a entender sua doutrina”.
18
Cf. Vorlesungen über Ethik, p.153, nota 11. A mesma tese é defendida por P. Stratton-Lake e Guido A. de
Almeida, embora num tom um pouco mais suave. Cf. Guido de Almeida, Sobre as “Fórmulas” do Imperativo
Categórico, Op. Cit., p.92: “Contra essa interpretação (a de Paton – A.S.B.), Stratton-Lake argumenta antes
de mais nada (e corretamente, a meu ver): primeiro, que não é claro que, ao propor a fórmula da lei da
natureza, Kant tinha em vista leis teleológicas, e não mecânicas, da natureza. Mas, além disso, que também é
falso que Kant a descreva como dando um conteúdo à fórmula da lei universal, pois, muito pelo contrário, ele
a apresenta como também descrevendo a forma das máximas. E, finalmente, que a primeira das fórmulas, a
fórmula da lei universal, já se refere a máximas e, por conseguinte, não é tão vazia assim como pensa Paton.”
126
19
Cf. Tugendhat, Vorlesungen über Ethik, p.153: “Além disso, pode-se por princípio deixar claro que, do
imperativo categórico, pelo menos na 1ª fórmula, não se deixam de modo algum derivar deveres para consigo
mesmo, pois o sentido do imperativo é, justamente, ordenar ações e omissões para com os outros, por meio da
reflexão de que não se poderia querer que os outros se comportassem assim para com a gente. (...) O terceiro
exemplo de Kant deve ser rejeitado, por ser igualmente sofístico. O resultado é que, do modo como Kant
entende o imperativo categórico, não podem existir deveres para consigo mesmo.” (O grifo é meu).
127
querê-la. Assim, “poder conceber a universalização da máxima” não inclui “poder querer a
universalização da máxima” (pois pode se dar o caso de ser possível concebê-la e não ser
possível querê-la), mas “poder querer a universalização da máxima” inclui “poder conceber
a universalização da máxima” (pois não pode se dar o caso de ser possível querê-la e não
ser possível concebê-la, e, quando se dá o caso de não ser possível concebê-la,
automaticamente também se dá o caso de não ser possível querê-la). Além disso, para que a
máxima passe no teste da universalização, tomado como um teste da sua correção moral,
não basta ser possível conceber sua universalização; também tem de ser possível querer sua
universalização. É por isso que, na fórmula da lei universal, Kant só menciona o “poder
querer” a universalização da máxima – com efeito, esse critério, além de ser necessário, já é
suficiente, na medida em que já inclui o outro critério, o de poder conceber a
universalização da máxima.
Essa análise parece sugerir que se pode menosprezar a diferença entre “poder
universalizar a máxima” e “poder querer a universalização da máxima”, tratando a primeira
como uma formulação que pode ser pura e simplesmente dissolvida na segunda. Entretanto,
antes de se adotar essa linha de interpretação, é preciso atentar para o fato de que, para
Kant, há uma diferença essencial entre, por um lado, os deveres ancorados na primeira
formulação, e, por outro lado, os deveres ancorados na segunda formulação. 21 Mais
precisamente, antes de se adotar a linha de interpretação que acaba de ser sugerida, é
preciso atentar para o fato de que, para Kant, os deveres ancorados no critério do “poder
conceber (a universalização da máxima)” são num certo sentido mais fortes do que os
deveres ancorados no critério do “poder querer (a universalização da máxima)”, o que
sugere que, para Kant, o primeiro critério tem uma força e um impacto todo especiais, que
não permitem que ele seja tomado como algo que pode ser pura e simplesmente dissolvido
no segundo critério (o do “poder querer”).
21
Cf. Fundamentação, p.424: “Algumas ações são de tal ordem que sua máxima não pode sequer ser pensada,
sem contradição, como lei universal da natureza, e muito menos ainda se pode querer que ela devesse se
tornar uma tal lei. Em outras não se encontra, é verdade, essa impossibilidade interna, mas é contudo
impossível querer que a máxima viesse a ser erguida à universalidade de uma lei da natureza, pois que uma tal
vontade se contradiria a si mesma. Facilmente se vê que as do primeiro gênero contrariam o dever estrito ou
estreito (rigoroso), e as do segundo o dever largo (meritório)”. (O grifo é meu). Numa passagem anterior,
p.421, Kant afirma que as ações do primeiro gênero contrariam o dever “perfeito”, e as do segundo o dever
“imperfeito”.
129
justamente nessa determinação que se abre um certo espaço para a consideração das
inclinações do agente. Já no caso dos deveres perfeitos ou estreitos, o que nós estamos
obrigados a fazer é, justamente, tomar uma decisão bem definida e específica, como a
decisão de “não fazer falsas promessas”; ora, na determinação de que essa é a única decisão
que pode ser tomada, não se abre nenhum espaço para a consideração das inclinações do
agente, na medida em que tal determinação é efetuada com base, apenas, na consideração
de que não se pode universalizar a máxima de “fazer falsas promessas”, ou seja, com base
apenas na consideração de que tal máxima, ao ser universalizada, “destrói-se a si mesma”.
Para completar esse breve comentário sobre o sentido geral da distinção entre
deveres perfeitos (estreitos) e deveres imperfeitos (largos), tal como apresentada na
Fundamentação, gostaria de dizer o seguinte. De um modo geral, os deveres perfeitos ou
estreitos constituem-se em deveres negativos; trata-se do dever de não praticar certos tipos
de ato. Assim, entram nessa categoria, por exemplo, os deveres de: não fazer falsas
promessas, não descumprir promessas feitas, não mentir, não roubar, não matar um
inocente. Já os deveres imperfeitos ou largos constituem-se, grosso modo, em deveres
positivos; trata-se do dever de seguir certas regras gerais de vida, com uma certa margem
de liberdade na determinação do modo exato como essas regras serão cumpridas nas
diferentes situações concretas. Entram nessa categoria, por exemplo, os deveres de: ajudar
os outros, ser amável para com os outros, demonstrar gratidão pelos favores recebidos.
Para termos uma visão mais clara do modo como Kant concebia os deveres perfeitos
ou estreitos, gostaria de retornar ao critério de “(não) poder conceber a universalização da
máxima”. Gostaria de fazer um comentário sobre o modo como esse critério pode chegar a
funcionar. Mais precisamente, gostaria de demonstrar que, para chegar a funcionar, esse
critério exige uma interpretação bem específica da noção de máxima, e que essa
interpretação (da noção de máxima) acaba por implicar uma concepção bastante peculiar
dos deveres que, segundo Kant, se ancoram no referido critério, ou seja, acaba por implicar
uma concepção bastante peculiar dos deveres perfeitos ou estreitos, quer dizer, dos deveres
negativos. Trata-se da concepção segundo a qual o dever perfeito (negativo) deve ser
131
percebido como um dever que nunca admite exceções, quaisquer que sejam as
circunstâncias do agente. Em outras palavras, nessa concepção o dever perfeito é percebido
como o dever de “Nunca praticar tal tipo de ato (quaisquer que sejam as circunstâncias)”.
Por representar uma concepção rígida e inflexível, impermeável à consideração das
circunstâncias do agente, tal concepção merece ser chamada de concepção “rigorista” dos
deveres perfeitos (negativos). Além disso, considerando o fato de que, na tradição moral
que Kant inaugura, que é, justamente, a tradição deontológica, os deveres perfeitos
(negativos) ocupam uma posição preeminente, 25 em função da qual eles ditam o tom à
moralidade em geral, a concepção rigorista dos deveres perfeitos (negativos) acaba por
equivaler a uma concepção igualmente rigorista da moralidade em geral.26
Reflitamos então sobre a lógica de funcionamento do critério “(não) poder conceber
a universalização da máxima”, para percebermos qual interpretação de máxima ele exige
para poder funcionar. Nesse momento, gostaria de desenvolver o seguinte argumento. O
critério “(não) poder conceber a universalização da máxima” só funciona na medida em que
não se incluem na máxima as circunstâncias do indivíduo, ou seja, na medida em que se
deixa a máxima num estado de relativa vagueza e indeterminação. E isso ocorre pela
seguinte razão: quando as circunstâncias do indivíduo são incluídas na máxima a ser
submetida ao teste de universalização, inviabiliza-se a tese de que, ao ser universalizada, a
25
Com efeito, na tradição deontológica que Kant inaugura, o dever negativo (que consiste na proibição de
praticar certos tipos de ato) tem muito mais peso e influência do que o dever positivo (que consiste na
obrigação de seguir uma regra geral de vida). Cf., por exemplo, Nancy Davis, Contemporary Deontology
[publicado em Singer, Peter (ed.), A Companion to Ethics, Blackwell, 1993], p.208: “As restrições
deontológicas são usualmente formuladas de modo negativo, como proibições”.
O mesmo ponto é destacado por André Berten no seu verbete Déontologisme: “As obrigações
deontológicas são habitualmente formuladas de modo negativo, sob a forma de proibições: ‘Tu não matarás’,
‘Tu não mentirás’. Essa característica lógica não é secundária. As formulações positivas não são equivalentes
nem implicadas pelas formulações negativas: assim, ‘tu não mentirás’ não implica ‘tu dirás a verdade; e ‘tu
não ferirás o inocente’ não implica ‘tu darás assistência àqueles que dela têm necessidade’, pois, do ponto de
vista da ação, é possível satisfazer a uma injunção negativa, mas não a uma injunção positiva, sempre
indeterminável.” (Dictionnaire d’Éthique et de Philosophie Morale, Tome 1, p.478 – O grifo é meu).
26
Como exemplo relativamente recente de concepção deontológica rigorista, temos a teoria de Charles Fried,
segundo a qual “o entendimento moral ordinário, assim como algumas das grandes tradições do pensamento
moral ocidental, reconhecem que há algumas coisas que um homem moral não fará, independentemente de
qualquer outra coisa (...) Faz parte da idéia de que a mentira e o assassinato são errados, e não simplesmente
maus, que essas são coisas que você está obrigado a não fazer – independentemente de qualquer outra coisa.
Eles não são simples aspectos negativos que entram em um cálculo, possivelmente contrabalançados pelo
bem que você poderia produzir ou pelo maior prejuízo que você poderia evitar. Assim, pode-se dizer que as
normas que expressam juízos deontológicos – por exemplo, Não cometa assassinato – são absolutas. Elas não
dizem ‘Evite a mentira, outras coisas sendo indiferentes’, mas dizem ‘Não minta, ponto’. Esse caráter
absoluto é uma expressão do modo como as normas ou juízos deontológicos diferem daqueles do
conseqüencialismo.” (Fried, C., Right and Wrong, Harvard University Press, 1978, p.7-9. O grifo é meu).
132
27
Cf. Singer, Generalization in Ethics, cap. VIII, p.231.
133
nenhum ato de prometer: o fato de só se aceitar uma promessa com cuidado e até
desconfiança é completamente diferente do fato de não se aceitar mais promessa alguma.
Em outras palavras, se a máxima a ser universalizada incluir as circunstâncias do
agente, a universalização da máxima não implica mais a autodestruição da mesma, mas
implica apenas uma relativização do modo e grau em que ela poderá ser com êxito adotada.
Trata-se de uma situação que pode perfeitamente ser concebida; mais ainda, trata-se de uma
situação que, na realidade, acontece com bastante freqüência. Em outras palavras ainda, se
a máxima a ser universalizada incluir as circunstâncias do agente, todas as máximas passam
a admitir universalização, na medida em que não ocorre mais nenhuma autodestruição. Isso
significa que todas as máximas passam a ser validadas pelo critério do “poder conceber a
universalização da máxima”; com isso, o referido critério deixa de funcionar como critério
de discriminação da correção ou incorreção das máximas. O que eu estou querendo dizer
pode ainda ser formulado da seguinte maneira. Se é verdade que o veredicto de que não se
pode conceber a universalização da máxima depende da tese de que, ao ser universalizada,
a máxima destrói-se a si mesma, e se é verdade que, se a máxima incluir as circunstâncias
do agente, nenhuma máxima vai mais destruir-se a si mesma ao ser universalizada, então
também é verdade que, se a máxima incluir as circunstâncias do agente, cai por terra a
própria função de discriminação do critério de “(não) poder conceber a universalização da
máxima”, ou seja, esse critério deixa de poder funcionar como critério da correção moral
das máximas. Fica assim demonstrada a tese que acima colocamos: o critério de “(não)
poder conceber a universalização da máxima” só funciona na medida em que não se
incluem na máxima as circunstâncias do indivíduo, ou seja, na medida em que se deixa a
máxima num estado de relativa vagueza e indeterminação.
Nesse ponto do argumento, a título de corroboração, vale a pena citar as palavras de
Tugendhat, referentes à máxima de “em circunstâncias de extrema necessidade (apuros),
fazer uma falsa promessa”, cuja universalização seria “em circunstâncias de extrema
necessidade (apuros), todos fazem falsas promessas”. Suas palavras são nesse caso as
seguintes28:
A instituição da promessa só não poderia mais existir se cada um, ao seu bel-prazer, ora
mantivesse sua promessa, ora a quebrasse. Se, ao contrário, sua máxima diz que ele só a quer
quebrar caso acredite encontrar-se em particular necessidade, cuja extensão o outro eventualmente
não conhece, a universalização dessa máxima não levaria a que não mais se acreditasse nas
28
Tugendhat, Vorlesungen über Ethik, p.151.
134
promessas em geral, mas tão-somente a que nelas só se acreditasse com cautela. Mas é
precisamente isso o que na realidade acontece, e não obstante a instituição da promessa funciona
mais ou menos bem. (O grifo é meu).
29
Republicado em Creating the Kingdom of Ends, páginas 77 a 105.
30
Republicado em Creating the Kingdom of Ends, páginas 133 a 158.
31
Conferir páginas 135-136.
135
seja, diante de uma pessoa em relação à qual a prática geral seja a de dizer a verdade.
Assim, mesmo que o assassino saiba que “todos mentem diante de um assassino”, ele
acredita que você vai lhe dizer a verdade, ou seja, ele vai acreditar em você, ele vai ser
iludido pela sua mentira, e a mentira continuaria sendo eficaz.
Como se vê, o argumento de Korsgaard é bastante semelhante ao argumento acima
desenvolvido em relação à máxima da falsa promessa. Observemos, aliás, que a máxima da
falsa promessa é um caso especial da máxima mais geral da mentira. O argumento de
Korsgaard, se for levado até o fim, demonstra o seguinte: se forem incluídas na máxima da
mentira as circunstâncias do agente, sempre se poderá conceber a universalização dessa
máxima, sem nenhuma autodestruição. Ora, isso significa que o critério de “(não) poder
conceber a universalização da máxima” deixará de funcionar como critério de
discriminação da correção ou incorreção das diferentes particularizações da máxima da
mentira. É claro que, no caso da máxima “diante de um assassino, mentir”, a máxima é
prima facie correta, o que significa que a possibilidade de se conceber a universalização da
mesma não implica nenhum erro moral. Entretanto, suponhamos que a máxima seja “diante
de uma pessoa ingênua, mentir”. Parece claro que essa máxima é prima facie incorreta.
Entretanto, o argumento de Korsgaard se aplicaria igualmente bem a ela: a pessoa ingênua
provavelmente não sabe que você sabe que ela é ingênua, e assim, mesmo que ela tenha em
mente a lei universal de que “diante de uma pessoa ingênua, todos mentem”, ela julga que
essa lei não se aplica ao seu caso específico; sendo assim, ela vai continuar acreditando em
você, ou seja, a mentira continuaria sendo eficaz. Isso significa, precisamente, que seria
perfeitamente possível conceber a universalização da referida máxima, sem nenhuma
autodestruição. E isso por sua vez significa que, se as circunstâncias do agente forem
incluídas na máxima a ser universalizada, o critério de “(não) poder conceber a
universalização da máxima” passa a validar todas as máximas, indiscriminadamente, o que
implica que ele deixa de funcionar como critério de discriminação da correção ou
incorreção das máximas – como queríamos demonstrar.
das máximas torna mais improvável que a universalização da ação expressa na máxima seja algo
de impossível (ou impossível de querer). (P.116. O grifo é meu).
demonstrar que não se deve adotar nem a concepção generalista de máxima nem a
concepção rigorista (do dever) que lhe anda associada. Demonstrar a lógica de
funcionamento do critério de “(não) poder conceber” ainda não é demonstrar que não se
devem adotar as concepções de máxima e de dever que estão associadas a esse critério.
Isso fica ainda mais claro se considerarmos uma outra limitação do critério de
“(não) poder conceber a universalização da máxima”. Com efeito, além de exigir uma
formulação generalista da máxima, o critério do “(não) poder conceber” só funciona para o
caso daquelas máximas cuja possibilidade e/ou eficácia dependem de certas instituições ou
práticas (da vida em sociedade) e, por conseguinte, da observância mais ou menos
generalizada das convenções nas quais se ancoram tais instituições ou práticas, como, por
exemplo, a convenção de dizer a verdade (na qual se ancora a prática da comunicação pela
linguagem), de ser sincero no ato de prometer (na qual se ancora a prática da promessa), de
respeitar o direito de propriedade (na qual se ancora a instituição da propriedade), de
pagar/devolver os empréstimos recebidos (na qual se ancora a instituição do empréstimo).
É só no caso dessas máximas que faz sentido afirmar que não se pode conceber a
universalização de uma máxima que se apóia na respectiva instituição ou prática e,
simultaneamente, viola a convenção na qual se ancora essa mesma instituição ou prática.
É o que ocorre, por exemplo, com a máxima da mentira tout court: trata-se de uma máxima
que, simultaneamente, apóia-se na prática da comunicação pela linguagem – pois a mentira
só faz sentido (só é possível e/ou eficaz) num contexto em que as pessoas se comunicam
pela linguagem – e, por outro lado, viola a convenção da qual depende a subsistência dessa
mesma prática, que é a convenção de dizer a verdade. Universalizar a máxima (genérica) de
“mentir” implica instituir uma violação generalizada da convenção na qual se ancora a
prática da comunicação pela linguagem, ou seja, implica suprimir essa prática; ora, como a
máxima por outro lado se apóia nessa mesma prática, a universalização da máxima implica
“autodestruição”.
Consideremos, agora, o caso da máxima (genérica) de “matar um inocente”. Ao
contrário da máxima (genérica) de “mentir”, a máxima de “matar um inocente” não está
vinculada a nenhuma instituição ou prática, quer dizer, a possibilidade e/ou eficácia dessa
139
32
Para uma boa discussão dessa diferença, conferir o já citado artigo Kant’s Formula of Universal Law, de C.
Korsgaard (republicado em Creating the Kingdom of Ends).
140
Para respondermos a essa pergunta, podemos começar com essa outra: qual a
vantagem de se adotar as concepções genérica de máxima e rigorista do dever? A vantagem
parece ser óbvia: evita-se a tentação de admitir exceções em proveito próprio. Com efeito,
levar em consideração circunstâncias excepcionais parece aproximar-se, perigosamente, de
uma tentativa de encontrar um pretexto para eximir-se do dever, em proveito próprio.
Assim, o fundamento último da defesa das concepções genérica de máxima e rigorista do
dever encontra-se na necessidade de preservar, em toda a sua pureza, o princípio de que o
dever moral não pode nem deve ser afetado por interesses patológicos eventualmente
vinculados às circunstâncias do agente e às conseqüências que, nessas circunstâncias, iriam
provavelmente advir dos diferentes atos possíveis.
Entretanto, como já foi sugerido, levar em consideração as circunstâncias do agente
e as conseqüências que, nessas circunstâncias, iriam provavelmente advir dos diferentes
atos possíveis, – fazer isso não precisa necessariamente equivaler a condescender a um
interesse patológico associado a tais circunstâncias e conseqüências. Os interesses
associados a tais circunstâncias e conseqüências podem perfeitamente ser interesses de
outras pessoas, em relação às quais o próprio agente não experimenta nenhum interesse
patológico, quer dizer, nenhum sentimento de agrado pessoal. Levar em consideração as
circunstâncias e conseqüências do ato implica, decerto, admitir a possibilidade de que tais
circunstâncias e conseqüências constituam-se em boas razões para desviar-se de um dever
genericamente formulado, mas não implica comprometer-se com a idéia de que um
interesse patológico (um sentimento de agrado pessoal) possa constituir-se numa boa razão
para esse tipo de desvio. Como já foi demonstrado, para um conseqüencialista, por
exemplo, o fato de que, em determinadas circunstâncias, o ato de mentir maximiza
conseqüências grosso modo boas no conjunto dos afetados, - tal fato pode perfeitamente
constituir-se numa boa razão para desviar-se do dever genérico de não mentir, sem que,
com isso, esse desvio esteja equivalendo a uma exceção em proveito próprio, quer dizer,
uma exceção fundada num interesse patológico. Ao contrário, o conseqüencialista decerto
diria que o interesse patológico não é uma boa razão para desviar-se do dever genérico de
não mentir. Para o conseqüencialista, a única boa razão para desviar-se de um dever
genericamente formulado reside no fato de que, para um olhar imparcial, quer dizer,
141
33
Cf., por exemplo, a seguinte passagem do primeiro capítulo do livro Ética Prática, de Peter Singer (São
Paulo, Martins Fontes, 1994 – tradução de Jefferson Luiz Camargo): “Às vezes, as pessoas acreditam que a
ética é inaplicável ao mundo real, pois imaginam que a ética seja um sistema de normas simples e breves, do
tipo ‘Não minta’, ‘Não roube’ e ‘Não mate’. Não surpreende que os que se atêm a esse modelo de ética
também acreditem que ela não se ajusta às complexidades da vida. Em situações insólitas, as normas simples
entram em conflito, e, mesmo quando isso não acontece, seguir uma norma pode terminar em desastre. Em
situações normais, pode ser errado mentir, mas, se você vivesse na Alemanha nazista e a Gestapo se
apresentasse à sua porta em busca de judeus, sem dúvida o correto seria negar a existência da família judia
escondida no seu sótão. A exemplo da falha de uma moral sexual restritiva, a falha de uma ética de normas
simples não deve ser vista como uma falha da ética como um todo. Trata-se apenas da falha de uma
concepção da ética, e nem chega a ser irremediável. Os que pensam que a ética é um sistema de normas – os
deontologistas – podem salvar seu ponto de vista encontrando normas mais complexas e específicas que não
144
sejam conflitantes, ou classificando as normas em alguma estrutura hierárquica que resolva os conflitos entre
elas. Além do mais, há uma abordagem sempre válida da ética que praticamente não é afetada pelas
complexidades que tornam as normas simples difíceis de serem aplicadas: a concepção conseqüencialista. (...)
As conseqüências de uma ação variam de acordo com as circunstâncias nas quais ela é praticada. Portanto, um
utilitarista nunca pode ser corretamente acusado de falta de realismo, nem de uma rígida adesão a ideais que
desprezem a experiência prática. Para o utilitarista, mentir será mau em algumas circunstâncias e bom em
outras, dependendo das conseqüências que o ato acarretar.” (páginas 10-11).
145
concepção rigorista do dever, mas também a concepção generalista da máxima que deve ser
submetida ao teste de universalização.
Em quinto lugar, sem a concepção generalista de máxima, o critério de “(não) poder
conceber a universalização da máxima” é incapaz de funcionar. Assim, ao perceber que é
preciso afastar a concepção generalista da máxima que deve ser submetida ao teste de
universalização, o partidário dos valores expressos na ética deontológica percebe,
simultaneamente, que o critério de “(não) poder conceber a universalização da máxima”
representa um método de decisão completamente inadequado à defesa e implementação
desses valores. Para implementar tais valores, é preciso encontrar um outro critério de
decisão. O partidário dos valores deontológicos pode tentar encontrá-lo no critério de
“(não) poder querer a universalização da máxima”.
Em sexto e último lugar, ao tentar verificar se o critério de “(não) poder querer a
universalização da máxima” pode constituir-se num método de decisão perfeitamente
adequado aos valores expressos na ética deontológica, o partidário desses valores tem de
enfrentar, antes de tudo, a seguinte questão: considerando que o afastamento da concepção
generalista de máxima implica a adoção de uma concepção “particularista” da mesma,
segundo a qual a máxima deve ser formulada de modo a incluir as circunstâncias do ato, -
considerando esse fato, que repercussão tal concepção particularista (da máxima que deve
ser submetida ao teste de universalização) tem sobre o modo como se deve entender e
aplicar o critério de “(não) poder querer a universalização da máxima”?
Em seu artigo Consistency in Action,34 Onora O’Neill distingue dois tipos de testes
de universalização: aqueles que são propostos nas éticas da “heteronomia” e, por outro
lado, aqueles que são propostos nas éticas da “autonomia”. Para ela, os que são propostos
nas éticas da heteronomia referem-se “ou àquilo que todo mundo deseja que seja feito ou
àquilo que uma certa pessoa (normalmente, o próprio agente; algumas vezes, um
34
Republicado em Constructions of Reason, Explorations of Kant’s Practical Philosophy. Cambridge
University Press, 1989.
147
observador moral anônimo) deseja que seja feito, ou por todo mundo ou para todo
mundo”.35 E ela continua:
Uma vez que todos os testes de universalidade desse tipo tornam a aceitabilidade moral de algum
modo dependente daquilo que é desejado (...), todos eles fazem parte de teorias morais que são
heterônomas, no sentido kantiano desse termo. Tais teorias apresentam a aceitabilidade moral
como dependente dos fenômenos naturais do desejo e inclinação, em vez de apresentá-la como
dependente de quaisquer características intrínsecas ou formais dos agentes ou de suas intenções.
Se nos apoiarmos nessa espécie de critério da aceitabilidade moral, não haverá nenhum tipo de ato
que não poderia ser tornado moralmente aceitável mediante alguma(s) mudança(s) nos desejos
humanos. (O grifo é meu).
37
Op. Cit., p.96.
149
objeções eram duas. A primeira consistia na constatação de que o critério do “(não) poder
conceber” só funciona na medida em que se adota uma formulação encurtada e genérica de
máxima. Ora, do modo como é analisado e aplicado por O’Neill, o critério do “(não) poder
querer a universalização da máxima” também parece só poder funcionar caso se adote uma
formulação encurtada e genérica de máxima. E a razão disso é a seguinte. A idéia de que a
universalização da máxima implica uma contradição, quer se trate de uma contradição na
própria máxima, quer se trate de uma contradição com os princípios formais do querer
racional em geral, - tal idéia pressupõe que a máxima (que está sendo universalizada) não
inclua as circunstâncias do agente. Com efeito, quando a máxima inclui as circunstâncias
do agente, a universalização da mesma não possui o alcance que é necessário para gerar o
tipo de contradição visado por O’Neill. Se a máxima é “em tal tipo de circunstâncias, tomar
tal tipo de decisão”, a universalização da mesma é “em tal tipo de circunstâncias, todos vão
tomar tal tipo de decisão”. Nesse caso, a lei universal não é, apenas, “todos vão tomar tal
tipo de decisão”, mas é, mais precisamente, “em tal tipo de circunstâncias (e somente
nelas), todos vão tomar tal tipo de decisão”. O alcance da lei fica aqui limitado, quer dizer,
limitado a tais circunstâncias. Ora, dizer que o alcance da lei é limitado a essas ou aquelas
circunstâncias equivale a dizer que ela (a lei) não tem força (alcance) suficiente para
aniquilar o estado geral de coisas que a adoção da máxima por outro lado pressupõe – quer
esse estado geral de coisas consista na subsistência de uma instituição ou prática da
sociedade, quer ele consista na possibilidade de contar com os meios que em geral são
necessários para se perseguir máximas e fins em geral. Para aniquilar um estado geral de
coisas, a lei tem de ter um alcance igualmente geral, em vez de um alcance limitado a essas
ou aquelas circunstâncias. E dizer que a universalização da máxima não tem força (alcance)
suficiente para aniquilar o estado geral de coisas que a adoção da máxima por outro lado
pressupõe, - dizer isso equivale a dizer que a universalização da máxima já não implica
mais nenhuma contradição. Ou, por outras palavras: para se poder afirmar que a
universalização da máxima implica uma contradição, quer essa contradição consista no
aniquilamento da instituição ou prática que a máxima por outro lado pressupõe, quer ela
consista no aniquilamento dos meios que em geral são pressupostos pela perseguição de
máximas (e fins) em geral, - para se poder afirmar isso, é preciso configurar a máxima de
152
modo a não incluir as circunstâncias do agente, ou seja, é preciso adotar uma formulação
encurtada e genérica de máxima.
Assim, na interpretação do teste de universalização que O’Neill classifica como
“autônoma”, o critério do “(não) poder querer a universalização da máxima” apresenta o
mesmo defeito que o critério do “(não) poder conceber”: tal como esse último, ele só
funciona na medida em que se adota uma formulação encurtada e genérica de máxima.
Entretanto, no caso do critério do “(não) poder conceber a universalização da
máxima”, nós vimos que o grande problema da configuração encurtada e genérica de
máxima residia no fato de que, ao se adotar tal configuração, obtinha-se como resultado
normas genéricas e triviais, do tipo “não mentir”, “não coagir os outros”, etc. Sendo
genéricas e triviais, tais normas são inadequadas para servir como princípios do raciocínio
prático, quer dizer, princípios que, em situações concretas e específicas, e, especialmente,
em situações complexas e embaraçosas, sejam efetivamente capazes de guiar o raciocínio e
a escolha.
É de se esperar que, no caso do critério do “(não) poder querer a universalização da
máxima”, a adoção da formulação encurtada e genérica de máxima tenha o mesmo efeito;
em outras palavras, é de se esperar que, também nesse caso, ao se adotar uma formulação
encurtada e genérica de máxima, obtenha-se como resultado normas genéricas e triviais, do
tipo “ajudar os outros”, “ser grato para com os outros”, etc. E, se olharmos para os
exemplos de aplicação que O’Neill apresenta para esse segundo critério, constataremos que
é isso o que de fato acontece. Ora, do mesmo modo que no caso anterior, também aqui se
pode afirmar que, sendo genéricas e triviais, tais normas são inadequadas para servir como
princípios do raciocínio prático.
Entretanto, se levarmos em consideração a distinção que Kant estabelece entre
deveres negativos (perfeitos) e deveres positivos (imperfeitos), teremos de reconhecer que,
no caso dos deveres que se ancoram no critério do “(não) poder querer”, que são,
justamente, os deveres positivos (imperfeitos), - teremos de reconhecer que, nesse caso, o
próprio Kant concede que a generalidade e indeterminação das normas representam de fato
um defeito (imperfeição), esclarecendo, entretanto, que esse defeito deve ser imputado à
natureza mesma dos deveres que essas normas expressam, em vez de ser imputado ao
método pelo qual elas são obtidas e justificadas. Em outras palavras, no caso dos deveres
153
ancorados no critério do “(não) poder querer”, o próprio Kant reconhece que as normas que
os expressam são demasiado genéricas para guiarem, sozinhas, a tomada de decisões em
situações concretas e específicas. Ele reconhece que, para a tomada de decisões em
situações concretas e específicas, tais normas exigem ser complementadas pela
consideração de outros fatores. Que outros fatores Kant menciona? Segundo a nota da
p.421 da Fundamentação, no caso dos deveres positivos (imperfeitos), a aplicação das
normas pode (e, diríamos nós, precisa) amparar-se numa consideração das “inclinações” do
agente.
Mas será que as inclinações do agente representam de fato um bom guia? Afinal de
contas, pode-se dizer que, de um modo geral, as inclinações representam princípios em
última instância egoísticos, quer dizer, princípios que predispõem o sujeito a desviar-se do
dever em relação aos outros. Assim, afirmar, pura e simplesmente, quer dizer, sem
nenhuma outra explicação, que a aplicação das normas dos deveres positivos pode e deve
amparar-se numa consideração das inclinações do agente, - afirmar esse tipo de coisa
parece envolver concessões excessivas à tendência (antiética) de desviar-se do dever em
relação aos outros.
O que eu estou querendo dizer é o seguinte: considerando a natureza em geral
egoística das inclinações, parece ser completamente inadequado o recurso que, sem
nenhuma outra explicação, é oferecido por Kant para, no caso das normas de dever positivo
(largo), suprir à generalidade (indeterminação) que resulta da adoção da configuração
encurtada e genérica de máxima. Enquanto no caso dos deveres negativos (estreitos) Kant é
demasiado rigoroso, suprindo a generalidade da norma “não fazer isso” com a cláusula
rigorista “quaisquer que sejam as circunstâncias”, no caso dos deveres positivos (largos) ele
é demasiado condescendente com as inclinações do agente, atribuindo-lhes o papel decisivo
de suprir à generalidade da norma “seguir tal regra de vida”.
Embora distintas (num caso, demasiado rigor; no outro caso, demasiada
condescendência), as falhas têm as mesmas causas; trata-se na verdade de uma série de três
causas sucessivas. Em primeiro lugar, a causa dessas falhas encontra-se na generalidade das
normas que têm de servir como princípios do raciocínio prático; em segundo lugar, a causa
encontra-se na formulação encurtada e genérica de máxima, na medida em que a
generalidade das normas é conseqüência, justamente, desse tipo de formulação da máxima;
154
Segunda Parte
Capítulo 4.
Os Bens do Indivíduo-Legislador.
ponto de vista, para determinar se uma máxima é ou não moralmente correta, o sujeito
racional deve avaliar se ele, considerando os conteúdos da sua vontade, pode ou não
querer a universalização dessa máxima. Quando o procedimento de universalização é
vinculado aos conteúdos do querer racional, o ponto ao qual ele essencialmente se refere
deixa de consistir na noção de contradição e passa a consistir na noção de reciprocidade.
A questão fundamental não é mais a de se, considerando as características e princípios
puramente formais do querer racional, a universalização da máxima gera (ou não) uma
contradição. A questão fundamental passa a ser a de se o sujeito racional, considerando
os conteúdos da sua vontade, pode (ou não) desejar, ou aceitar, que a máxima
(princípio) que tipifica sua conduta seja transformada em lei universal de conduta, quer
dizer, num princípio que passaria a determinar o modo como os outros se comportariam
em relação a ele mesmo. Para saber se um princípio é moralmente correto, o sujeito
racional deve avaliar se, considerando os conteúdos da sua vontade, ele desejaria, ou
aceitaria, ser tratado segundo esse mesmo princípio.
Essa interpretação é perfeitamente compatível com a configuração alongada e
particularista da máxima, quer dizer, é perfeitamente compatível com uma consideração
das circunstâncias e conseqüências do ato a ser moralmente avaliado. Com efeito, nesse
tipo de interpretação, como acaba de ser dito, o teste de universalização pode ser
descrito nos seguintes termos. Assumindo o papel de sujeito racional (indivíduo-
legislador), e considerando os conteúdos da sua vontade, você desejaria, ou aceitaria,
que a máxima da sua conduta fosse transformada num princípio que regeria o modo
como os outros se comportariam em relação a você mesmo? Ora, essa pergunta é
perfeitamente compatível com uma formulação alongada e particularista do princípio
em questão. Com efeito, nesse tipo de formulação, a máxima se expressaria mais ou
menos nos seguintes termos: “em tal tipo de circunstâncias, tal tipo de decisão ou ato”.
Correspondentemente, a universalização da máxima resultaria no seguinte princípio:
“em tal tipo de circunstâncias, todos adotam tal tipo de decisão ou ato”. A implicação
desse último princípio é óbvia: em tal tipo de circunstâncias, tal tipo de decisão ou ato
será adotado em relação a você mesmo. Assim, nessa linha de interpretação, o teste de
universalização se expressaria mais ou menos nos seguintes termos: sabendo que, em tal
tipo de circunstâncias, tal tipo de decisão ou ato tem tal tipo de conseqüências, e
considerando esse tipo de conseqüências, você desejaria ou aceitaria que, em tal tipo de
circunstâncias, esse tipo de decisão ou ato fosse adotado em relação a você mesmo?
Considerando os conteúdos da sua vontade, e as conseqüências que tal tipo de decisão
158
tem em tal tipo de circunstâncias, você desejaria, ou aceitaria, ou escolheria, ser tratado
desse modo? Ora, essa pergunta é perfeitamente compreensível e respondível.
Entretanto, embora a pergunta seja perfeitamente respondível, a resposta que
concretamente se vai dar a ela parece depender inteiramente das inclinações, desejos e
interesses da pessoa que vai responder a ela. Dependendo das inclinações e desejos da
pessoa que ocupa a posição de legislador, a resposta pode variar. É essa, justamente, a
crítica de O’Neill, como vimos no capítulo passado: “Se nos apoiarmos nessa espécie de
critério da aceitabilidade moral, não haverá nenhum tipo de ato que não poderia ser
tornado moralmente aceitável mediante alguma(s) mudança(s) nos desejos humanos.”
Ora, essa variabilidade das respostas ou resultados constitui um grave problema para um
procedimento que pretende constituir-se em critério da correção objetiva dos atos e
princípios. Assim, embora a interpretação não-formalística do procedimento de
universalização possua a vantagem de permitir a adoção da formulação alongada e
particularista do princípio que vai se submeter a ele, quer dizer, embora ela possua a
vantagem de permitir que a consideração das circunstâncias e conseqüências seja
incluída no teste de universalização, - embora essa interpretação possua essa vantagem,
ela por outro lado incorre na desvantagem de tornar o procedimento dependente dos
(variáveis) desejos e interesses dos indivíduos que, a cada vez, ocupam a posição do
legislador.
Essa dificuldade também é destacada por J. Rawls no capítulo sobre Kant do
livro Lectures on the History of Moral Philosophy. 1 Com efeito, na seção sobre a
“primeira formulação” do imperativo categórico, Rawls destaca que, para decidirmos se
um agente pode ou não querer (escolher) um determinado “mundo social equilibrado”
(ou seja, um mundo definido pelo fato de que a máxima em questão foi transformada
em lei que todos seguem), precisamos dar um conteúdo à vontade desse agente, ou seja,
precisamos saber o que, mais precisamente, esse agente quer, ou deseja. 2 E, dando
continuidade à questão na seção sobre “a prioridade do correto”, ele afirma o seguinte:3
Num primeiro momento, poderíamos pensar que a comparação (e escolha – A.S.B.) dos
mundos sociais equilibrados pode ser feita com base na concepção de felicidade do agente.
Mas mesmo que o agente saiba qual é sua concepção de felicidade, subsiste ainda uma séria
dificuldade, uma vez que Kant supõe que diferentes agentes têm diferentes concepções de
felicidade. (...) Conseqüentemente, se as concepções de felicidade forem usadas para julgar os
mundos sociais equilibrados, o fato de uma máxima passar ou não no procedimento do
imperativo categórico vai depender da pessoa particular que aplica tal procedimento. Ora, tal
dependência está destinada a pôr em xeque a concepção kantiana. Pois, se do fato de
1
Editado por Barbara Herman, Harvard University Press, 2000.
2
Op. Cit., p.173.
3
Idem, p.221.
159
4
Idem, p.174.
160
modo geral.”6. O segundo componente pode ser descrito como “uma teoria do correto”,
ou seja, “uma teoria, não sobre quais propriedades são valiosas, mas sobre o que os
indivíduos devem fazer a título de resposta às propriedades valiosas.” E na continuação
imediata: “Dependendo da visão adotada sobre essa questão (a da ação correta –
A.S.B.), as teorias morais são usualmente divididas em dois tipos, conseqüencialistas e
não-conseqüencialistas, ou, para usar uma terminologia mais antiga, teleológicas e não-
teleológicas: o não-teleológico é algumas vezes identificado ao deontológico, e algumas
vezes considerado como simplesmente incluindo-o.”. 7 Para simplificar as coisas,
adotemos duas medidas de caráter terminológico. Em primeiro lugar, evitemos os
termos “teleológico” e “não-teleológico”, e restrinjamo-nos aos termos
“conseqüencialista” e “não-conseqüencialista”; em segundo lugar, adotemos a
alternativa que identifica o não-conseqüencialismo ao deontologismo – lembrando que,
a partir de agora, estaremos visando o deontologismo não-rigorista, ou seja, o
deontologismo que admite uma certa consideração pelas conseqüências de atos e
normas.
Na concepção de Pettit, conseqüencialismo e deontologismo devem ser vistos
como teorias que dizem respeito apenas à ação correta, ou seja, à ação que se deve
praticar a título de resposta à visão do que é bom ou valioso. Para ele, tanto o
conseqüencialismo quanto o deontologismo, tomados como teorias sobre a ação correta,
são compatíveis com qualquer teoria sobre o bem, ou seja, sobre o que é bom ou
valioso; nem conseqüencialismo nem deontologismo precisam comprometer-se com
qualquer teoria do bem. Na concepção dele, em outras palavras, a distinção e o debate
entre conseqüencialismo e deontologismo não dependem de distinção e debate sobre o
que é bom ou valioso, mas referem-se apenas à questão sobre a ação que se deve
praticar a título de resposta à visão do que é bom, qualquer que ela seja.8
Para Pettit, portanto, a distinção entre deontologismo e conseqüencialismo pode
ser reduzida aos seguintes termos. Para o conseqüencialista, a relação entre o bem
(qualquer que ele seja) e a ação correta é uma relação instrumental:9 a ação correta é
aquela que “promove” o bem (qualquer que ele seja) no mundo em geral, mesmo que,
6
Pettit, Consequentialism, p. 230.
7
Idem, Ibidem, p.230.
8
Idem, Ibidem, p.237: “Um outro aspecto da nossa proposição fundamental é o de que com qualquer
valor, com qualquer propriedade considerada desejável, pode-se identificar uma resposta
conseqüencialista e uma resposta não-conseqüencialista. Pode-se dar sentido à noção de promover o valor
ou à noção de honrá-lo”. (O grifo é meu).
9
Idem, Ibidem, p.231.
165
tomada nela mesma, ela deixe de “honrar” (ou seja, respeitar) o bem em questão
(qualquer que ele seja). Para o deontólogo, em contrapartida, a relação entre o bem
(qualquer que ele seja) e a ação correta é uma relação não-instrumental:10 a ação correta
é aquela que, nela mesma, honra o bem em questão (qualquer que ele seja), mesmo que,
ao honrá-lo, deixe de promovê-lo no mundo em geral.
Ora, esse modo de apresentar a distinção parece-me apresentar dois defeitos. Em
primeiro lugar, é muito fácil associá-lo ao preconceito que identifica o deontologismo
ao deontologismo rigorista. Com efeito, é fácil associar a distinção entre “promover” e
“honrar” (um bem) à distinção entre “preocupar-se com as conseqüências da ação” e
“desconsiderar as conseqüências da ação, e considerar apenas a ação nela mesma”. O
segundo defeito de certa forma decorre desse primeiro, embora vá ocupar uma posição
muito mais importante na minha argumentação. Parece-me que, se configurarmos a
distinção que interessa como distinção entre conseqüencialismo e deontologismo não-
rigorista, o vocabulário de “honrar” e “promover” (um bem) remete, não tanto à
distinção entre essas duas posições, mas, antes, à distinção entre tipos de bens. Há bens
em relação aos quais a noção de honrar fica deslocada, tanto na boca do
conseqüencialista quanto na do deontólogo (não-rigorista) – trata-se de bens que pedem
a noção de promover, tanto ao deontólogo quanto ao conseqüencialista. Em relação a
outros tipos de bens, em contrapartida, a noção de promover fica deslocada – trata-se de
bens que pedem a noção de honrar, tanto ao deontólogo quanto ao conseqüencialista.
Assim, se quisermos usar a distinção entre promover e honrar para caracterizar a
distinção entre conseqüencialismo e deontologismo não-rigorista, teremos de dizer, não
que o deontólogo prefere o honrar ao promover, mas, sim, que ele em princípio concede
prioridade aos bens que pedem a noção de honrar, em relação aos bens que pedem a
noção de promover. De forma correspondente, teremos de dizer, não que o
conseqüencialista prefere o promover ao honrar, mas, sim, que ele em princípio concede
prioridade aos bens que pedem a noção de promover, em relação aos bens que pedem a
noção de honrar.
Tomemos, por exemplo, um bem como liberdade. Para Pettit, esse bem, como
qualquer outro, se encaixa tanto na noção de honrar quanto na de promover – o encaixe
depende apenas da opção do agente quanto à resposta correta aos bens em geral. Se o
agente é adepto do conseqüencialismo, ele escolhe promover a liberdade; se ele é adepto
10
Idem, Ibidem, p.231.
166
11
Idem, Ibidem, p.231. O grifo é meu.
12
Rawls, Political Liberalism, p.291-292. O grifo é meu.
167
13
Idem, Ibidem, p.295. O grifo é meu.
14
A mesma idéia é repetida em outras passagens dessa “Conferência VIII” de Political Liberalism. Ver,
por exemplo, as páginas 356-357: “É preciso enfatizar que as liberdades básicas constituem uma família,
e que é essa família que tem prioridade, e não uma liberdade isolada tomada por si só, ainda que, do ponto
de vista prático, uma ou outra dessas liberdades básicas possa ser absoluta sob certas condições”. (O grifo
é meu).
168
15
Pettit, Op.Cit., p.237.
172
configura o bem (o bom, o valioso) na esfera política. A questão depende de uma teoria
política do bem.
Resumindo o argumento. Se quisermos usar a distinção entre honrar e promover
para esclarecer o debate entre conseqüencialismo e deontologismo não-rigorista,
precisamos vincular essa distinção a uma teoria política dos bens. Ainda que se possa
atribuir ao conseqüencialismo uma certa priorização do promover sobre o honrar, essa
priorização só faz sentido quando se atribui ao conseqüencialismo uma certa teoria
sobre o que é bom ou valioso; de modo correspondente, ainda que se possa atribuir ao
deontologismo, mesmo ao deontologismo não-rigorista, uma certa priorização do honrar
sobre o promover, essa priorização só faz sentido quando se atribui ao deontologismo
não-rigorista uma certa teoria sobre o que é bom ou valioso. Isso significa o seguinte.
Ao contrário do que pensa Pettit, a distinção e o debate entre conseqüencialismo e
deontologismo dependem de distinção e debate sobre o que é bom ou valioso. Mais
precisamente, a distinção e o debate entre conseqüencialismo e deontologismo não-
rigorista só fazem sentido quando se atribuem a essas posições suas diferentes (e
respectivas) teorias políticas do bem.
16
Goodin, Robert: Utility and the good; publicado em Singer, P. (ed.), A Companion to Ethics, p.241/248.
Ver as páginas 241-242.
173
configurar esse processo a partir de um fim, o dever-ser. Isso significa que o dever-ser
representa, não uma idealização ingênua ou presunçosa, mas o fim que configura nossa
visão do real. Ver o real é ver o fim que ele pode vir a ser, e ver de que modo, nas
diferentes circunstâncias, ele pode aproximar-se desse fim. O teórico antiutilitarista
poderia dizer, portanto, que o verdadeiro realismo inclui a dimensão normativa, quer
dizer, inclui uma consideração (normativa) sobre o dever-ser e sobre os possíveis modos
de realização do dever-ser. Essas considerações normativas, longe de deverem ser vistas
como idealizações inteiramente descoladas dos interesses e valores reais das pessoas,
devem ser vistas, não só como possibilidades já inscritas na esfera prática das pessoas,
mas também, e principalmente, como fatores potencialmente formadores ou educativos,
capazes de se atualizarem na consciência e na existência da coletividade, por meio,
justamente, da reflexão e discussão éticas. A discussão ética referida ao dever-ser não
está descolada da esfera prática real; ao contrário, ela está plenamente inserida nessa
esfera, e tem capacidade de fecundar (atualizar) as melhores possibilidades (reais) de
desenvolvimento dessa esfera, que são, justamente, as possibilidades que “devem-ser”.
***
Passemos agora aos debates que, no âmbito do pensamento utilitarista,
desenvolveram-se em torno da noção de “utilidade”. Lembremos que os utilitaristas
visam aquilo que “de fato” é bom para as pessoas, e recusam as hipóteses “normativas”
sobre aquilo que (teoricamente) é bom para elas, na medida mesmo em que vêem tais
hipóteses como suposições presunçosas sobre aquilo que as pessoas deveriam valorizar.
Movidos por esse impulso antinormativo, a primeira definição que os utilitaristas
deram para a noção de utilidade consistiu em caracterizá-la em termos de prazer. O que
de fato é bom para as pessoas é ter prazer, e evitar a dor. Essa resposta suscitou (e
suscita) objeções no próprio campo utilitarista. Entretanto, como bem destaca Robert
Goodin 17 , essas objeções dizem respeito, não tanto à tese geral de que o bom é ter
prazer, mas, antes, à teoria por assim dizer psicológica que essa tese em princípio
sugere. Com efeito, dizer que o bom é ter prazer sugere uma teoria psicológica
hedonista, segundo a qual os móbiles que em última instância movem as pessoas
consistem, fundamentalmente, nos impulsos sensuais mais imediatos (e grosseiros).
Para evitar essa psicologia hedonista, os utilitaristas substituíram (e substituem) a noção
de prazer pela noção de “satisfação das preferências”: o que de fato é bom para as
pessoas é satisfazer suas preferências. Com efeito, é fácil desvincular a noção de
17
Idem, Ibidem, páginas 242-243.
175
É bom para elas ter suas preferências satisfeitas, quaisquer que sejam essas
preferências.”18
Mas essa imagem do utilitarismo de preferências não cobre todas as nuanças de
que essa posição pode se revestir. Tomemos, por exemplo, um teórico como John
Harsanyi. Em seu artigo Morality and the theory of rational behaviour, Harsanyi se
declara, explicitamente, um partidário do utilitarismo de preferências.19 E, ao defender
essa sua posição, ele afirma, de um modo que parece um tanto injusto com o
utilitarismo hedonista, que “O utilitarismo de preferências é a única forma de
utilitarismo que é compatível com o importante princípio filosófico da autonomia das
preferências. Por autonomia das preferências eu entendo o princípio de que, ao decidir o
que é bom e o que é ruim para um dado indivíduo, o critério último só pode consistir
nos seus próprios desejos e nas suas próprias preferências (ou seja, nos desejos e
preferências do próprio indivíduo – A.S.B.)”. 20 Ora, é óbvio que a “autonomia das
preferências” expressa, de forma muito clara, isso que venho chamando de impulso
antinormativo do utilitarismo. Para decidir o que de fato é bom para o indivíduo,
devemos consultar o que o próprio indivíduo acha bom, e não nossas suposições sobre o
que é bom para ele, ou sobre o que ele deveria achar bom.
Mas, logo depois de introduzir o princípio da autonomia das preferências,
Harsanyi faz as seguintes afirmações. (Op. Cit., p.55. O grifo é do próprio autor).
É verdade que uma pessoa pode irracionalmente desejar algo que é muito ‘ruim para ela’. (...)
Qualquer teoria ética razoável deve fazer uma distinção entre desejos racionais e desejos
irracionais, entre preferências racionais e preferências irracionais. (...) Mas é perfeitamente
possível manter essa distinção mesmo sem recorrer a qualquer outro critério que não as
preferências pessoais do próprio indivíduo. Tudo que temos de fazer é distinguir entre as
preferências manifestas de uma pessoa e suas verdadeiras preferências. Suas preferências
manifestas são suas preferências atuais, tal como se manifestam em seu comportamento
observado, incluindo preferências possivelmente baseadas em crenças factuais errôneas, ou
em análise lógica descuidada, ou em emoções fortes que num dado momento dificultam
enormemente a escolha racional. Em contrapartida, as verdadeiras preferências de uma pessoa
são as preferências que ela teria se possuísse toda a informação factual relevante, se sempre
raciocinasse com o maior cuidado possível, e se estivesse no estado mental mais propício à
escolha racional.
Ora, o que Harsanyi está reconhecendo aqui é aquilo que T. Scanlon chama de
“frágil conexão entre preferência e bem”.21 O Princípio da Autonomia das Preferências
18
Idem, Ibidem, p.243.
19
O artigo de Harsanyi foi republicado em Sen, Amartya e Williams, Bernard (eds.): Utilitarianism and
beyond. Cambridge, Cambridge University Press, 1982. Páginas 39 a 62. Conferir, especialmente, a seção
7, páginas 54-56.
20
Op. Cit., p.55. O grifo é do próprio autor.
21
Ver Scanlon, Thomas, The moral basis of interpersonal comparisons, in Elster, J. e Roemer, J. (eds.),
Interpersonal Comparisons of Well-Being. Cambridge, Cambridge University Press, 1991. Páginas 17 a
44. A citação é da página 38.
177
dita que, para decidir o que é bom para a pessoa, devemos consultar o que a própria
pessoa prefere, em vez de consultar suposições teóricas sobre o que ela deveria preferir.
Mas o próprio Harsanyi reconhece que a conexão entre o que a pessoa (manifestamente)
prefere e o que realmente é bom para ela não é tão sólida e imediata assim, pois as
pessoas podem ter preferências errôneas e equivocadas. Assim, para decidir o que é
bom para a pessoa, o que devemos consultar é, não tanto as preferências que a pessoa
(manifestamente) tem, mas as preferências que ela teria, “se possuísse toda a
informação factual relevante, se sempre raciocinasse com o maior cuidado possível, e se
estivesse no estado mental mais propício à escolha racional”. Ora, ao passar das
preferências manifestas para as verdadeiras preferências, o que o utilitarista Harsanyi
parece estar fazendo é, justamente, introduzir suposições teóricas sobre aquilo que a
pessoa deveria preferir – algo que o Princípio da Autonomia das Preferências proibia.
É óbvio, portanto, que há um conflito entre, por um lado, o princípio da
Autonomia das Preferências, e, por outro lado, o movimento das preferências manifestas
para as verdadeiras preferências. Na visão de Scanlon, esse conflito “reflete uma tensão
moral fundamental, e não apenas uma inconsistência na teoria de Harsanyi”. 22 Para
percebermos todo o alcance dessa tensão, é preciso atentarmos para um fato que
Scanlon, como sói acontecer, apresenta com grande clareza. Trata-se do seguinte.23 Ao
defender o Princípio da Autonomia das Preferências, Harsanyi na verdade está
respondendo a uma exigência que não é especificamente utilitarista, mas pertence ao
contexto da filosofia política moderna como um todo, incluindo posições deontológicas
e liberais. Trata-se da exigência de “neutralidade”: nas discussões e decisões sobre
justiça social, não devemos impor aos indivíduos nenhuma concepção acerca dos
elementos que transformam a vida numa boa vida, mas devemos, ao contrário, respeitar
as diferentes opiniões que eles empiricamente têm e manifestam a esse respeito. Para ser
justa, uma teoria política tem de respeitar essas diferenças, quer dizer, tem de ser neutra
em relação a elas. É óbvio que o Princípio da Autonomia das Preferências atende
perfeitamente à exigência de neutralidade. Por outro lado, ele incide no problema da
“frágil conexão entre preferência e bem” – que Scanlon também chama de “problema da
maleabilidade”. 24 Assim, a “tensão moral fundamental” para a qual Scanlon chama
atenção consiste na tensão entre, por um lado, a exigência de neutralidade, e, por outro
22
Op. Cit., p.29.
23
Op. Cit., p.30.
24
Op. Cit., p.29.
178
lado, o problema da frágil conexão entre preferência e bem. Tratando-se de uma tensão
fundamental, é de se esperar que, se uma teoria quiser evitar esse último problema
mediante exclusão da noção de preferência e concentração exclusiva na noção de bem,
ela corre o risco de, impondo uma certa concepção de bem, não atender de forma
satisfatória à exigência de neutralidade.
Na última seção de seu artigo, Scanlon sugere que a teoria dos bens primários de
J. Rawls representa uma resposta mais plausível a essa “tensão fundamental” do que o
utilitarismo de preferências de Harsanyi.25 Antes de passar para esse tópico, entretanto,
gostaria de voltar ao texto de R. Goodin anteriormente mencionado. Nesse texto, com
efeito, embora não fale de Harsanyi, nem do movimento que este realiza das
preferências manifestas para as verdadeiras preferências, Goodin apresenta uma terceira
variante do utilitarismo, distinta tanto do utilitarismo hedonista quanto do utilitarismo
das preferências. Goodin chama essa terceira variante de “utilitarismo do bem-estar”
(welfare utilitarianism)26. É importante destacar que se trata de uma variante que não é
considerada por Scanlon no texto que vimos discutindo. Sendo assim, é pertinente tentar
responder à seguinte pergunta: de que modo essa terceira variante responde à tensão
fundamental exposta por Scanlon?
O utilitarismo de bem-estar substitui a noção de preferência pela noção de
“interesse de bem-estar”, e define utilidade como “satisfação dos interesses de bem-
estar”. Mas o que são esses “interesses de bem-estar”? Nas palavras do próprio Goodin,
“Os interesses de bem-estar consistem simplesmente naquele conjunto de recursos
genéricos que as pessoas precisam possuir antes de perseguirem quaisquer das
preferências mais particulares que possam eventualmente ter. Saúde, dinheiro, moradia,
alimento e itens dessa espécie podem ser, todos eles, razoavelmente considerados
interesses de bem-estar, recursos úteis quaisquer que sejam os projetos e planos
particulares das pessoas.” 27 Podemos dizer, portanto, que “interesse de bem-estar” é
interesse na posse e fruição daqueles recursos que são sempre úteis, quer dizer, úteis
para todo e qualquer projeto de vida. Podemos dizer também que se trata do interesse na
posse e fruição de recursos que são objetivamente úteis, qualquer que seja o projeto de
vida do indivíduo. Dizer que “utilidade” consiste na satisfação dos interesses de bem-
estar equivale portanto a dizer que “utilidade”, aquilo que de fato é bom para as pessoas,
25
Op. Cit., p.39-44.
26
Goodin, Op. Cit., p.244-245.
27
Idem, Ibidem, p.244. O grifo é meu.
179
consiste na posse e fruição de recursos que são objetivamente úteis, qualquer que seja o
projeto de vida do indivíduo. Chamemos tais recursos de “recursos de bem-estar”.
Voltemos à pergunta: de que modo o utilitarismo de bem-estar responde à tensão
fundamental exposta por Scanlon? Ora, ao substituir a noção de preferências pela noção
de recursos que são objetivamente úteis, o utilitarismo de bem-estar supera o problema
da frágil conexão entre preferência e bem. É razoável admitir que recursos
objetivamente úteis são recursos objetivamente bons (para as pessoas). Por outro lado,
ao priorizar recursos que são úteis para todo e qualquer projeto de vida, o utilitarismo de
bem-estar parece atender de modo igualmente satisfatório à exigência de neutralidade.
Com efeito, se os recursos de bem-estar definem-se pelo fato de serem úteis para todo e
qualquer projeto de vida, é razoável admitir que eles são neutros em relação aos
diferentes projetos de vida que os indivíduos podem adotar. Assim, parece razoável
admitir que o utilitarismo de bem-estar responde de modo satisfatório à tensão
fundamental exposta por Scanlon.
Entretanto, para fazer justiça à posição de Harsanyi, devemos colocar a seguinte
pergunta. Será que, do ponto de vista da teoria sobre o que é bom, os interesses de bem-
estar não são no fim das contas equivalentes (pelo menos mais ou menos equivalentes)
às “verdadeiras preferências” de Harsanyi? Com efeito, poderíamos dizer que os
recursos de bem-estar constituem o objeto dessas preferências verdadeiras. Possuir e
aproveitar os recursos de bem-estar equivaleria a satisfazer as preferências verdadeiras.
É claro que os recursos de bem-estar podem em princípio ser apresentados numa lista
relativamente restrita, o que significa que eles representam uma restrição no leque das
preferências, mesmo das verdadeiras. Mas isso talvez não chegue a constituir-se numa
diferença decisiva. Há outra diferença, porém, essa mais significativa. Mesmo que os
recursos de bem-estar constituam o objeto das verdadeiras preferências, “satisfazer
preferências” aponta para a quantidade de satisfação que o sujeito experimenta ao
satisfazê-las, ao passo que “possuir recursos de bem-estar” aponta para a quantidade de
coisas (itens objetivos) que são possuídas. Dizer que “utilidade” consiste na satisfação
das preferências (verdadeiras) equivale a dizer, justamente, que utilidade consiste na
satisfação que o sujeito experimenta ao satisfazer suas preferências (verdadeiras). Por
outro lado, dizer que utilidade consiste na posse e fruição dos recursos de bem-estar
equivale a dizer, justamente, que utilidade consiste na posse e fruição de itens objetivos.
Essa diferença se expressa de forma decisiva no problema das comparações
interpessoais de utilidade. Comparações interpessoais de utilidade são comparações da
180
28
Idem, Ibidem, p. 245.
29
Idem, Ibidem, p.245.
30
Scanlon, Op. Cit., seção 5 (páginas 30-38). Esse ponto já havia sido agudamente discutido por Rawls
em seu artigo Social unity and primary goods (1982). Ver, especialmente, a seção IV, onde Rawls expõe
a tese de que os cidadãos devem ser considerados responsáveis pela formação e cultivo de suas
preferências, o que significa, justamente, que a insatisfação vinculada a preferências irresponsáveis não
deve ter relevância política.
O problema também é destacado e discutido por A. Sen, que enfatiza o quanto os critérios
utilitaristas da satisfação e insatisfação, tomados como critérios da justiça política, podem ser distorcidos
por atitudes de adaptação e condicionamento mental. Ver, por exemplo, o capítulo 3 (Liberdade e os
Fundamentos da Justiça) do livro Desenvolvimento como Liberdade (Companhia das Letras, 2000).
181
legítima para defender que é justo satisfazer uma preferência, mesmo uma preferência
“verdadeira”. Ainda que o movimento para as preferências verdadeiras resolva uma
parte do problema da “frágil conexão entre preferência e bem”, ele não resolve todo o
problema. 31 A parte que ele resolve refere-se ao fato de que, ao concentrar-se nas
preferências verdadeiras, o utilitarista ganha o direito de sustentar que a satisfação
dessas preferências é realmente boa para o indivíduo beneficiado. Mas ele ainda não
ganha o direito de afirmar que a satisfação dessas preferências é politicamente
(moralmente) relevante, legítima, boa. Ao vincular-se às noções de
satisfação/insatisfação, a noção de utilidade perde boa parte do seu apelo político (no
sentido normativo).
Ora, o utilitarismo de bem-estar parece contornar de forma relativamente
simples os dois problemas que o utilitarista das preferências (mesmo o das preferências
verdadeiras) enfrenta ao tratar da questão das comparações interpessoais de utilidade.
Para o utilitarista de bem-estar, como vimos acima, “utilidade” deve ser entendida como
posse e fruição de itens objetivos (recursos de bem-estar). Ora, para comparar níveis de
posse e fruição de itens objetivos, não é preciso entrar na mente das pessoas – basta uma
investigação empírica relativamente simples e “objetiva”. Assim, como destaca Goodin,
o utilitarista de bem-estar tem todo o direito de afirmar que “o problema (quer dizer, o
primeiro problema por nós destacado – A.S.B.) só constitui problema para o utilitarista
hedonista ou das preferências”32 E com relação ao segundo problema, o utilitarista de
bem-estar pode afirmar a mesma coisa. Com efeito, a característica essencial dos
recursos de bem-estar consiste justamente no fato de que eles são publicamente
reconhecidos como objetivamente necessários ou úteis; em outras palavras, a posse e
fruição desses recursos são publicamente reconhecidas como estados de coisas
politicamente bons. Isso significa que, ao contrário do que ocorre com a mera
“insatisfação”, a carência desses recursos é publicamente reconhecida como uma boa
justificativa para uma decisão que vise remediá-la. Ao substituir “insatisfação (ou
satisfação)” por “carência (ou fruição) de recursos objetivamente necessários ou úteis”,
o utilitarista de bem-estar devolve à noção de utilidade todo seu apelo moral (político).
Ao concentrar-se na noção de recursos publicamente reconhecidos como objetivamente
necessários ou úteis (para todo e qualquer projeto de vida), o utilitarista de bem-estar
31
Sobre as duas partes desse problema, ver Scanlon, Op. Cit., p.38.
32
Goodin, Op.Cit., p.246.
182
resolve as duas partes do problema da frágil conexão entre preferência e bem, sem, por
outro lado, contrariar a exigência de neutralidade.
Chegamos assim à seguinte conclusão. Além de resolver de forma plausível a
tensão fundamental exposta por Scanlon – a qual, como vimos acima, consiste na tensão
entre, por um lado, a exigência de neutralidade, e, por outro lado, o problema da frágil
conexão entre preferência e bem, - além de resolver essa tensão, o utilitarismo de bem-
estar resolve de forma igualmente plausível as duas partes do problema da frágil
conexão entre preferência e bem (a parte referente ao que é bom para o indivíduo e a
parte referente ao que deve ser reconhecido como politicamente bom). Isso nos autoriza
a afirmar que o utilitarismo de bem-estar constitui a forma mais plausível de
utilitarismo.
Ora, estamos tratando do debate entre utilitarismo e deontologismo. Afirmamos
acima que, para fazermos justiça ao deontologismo nesse debate, a posição que
devemos contrapor ao utilitarismo é a posição deontológica mais plausível, a do
deontologismo não-rigorista. De forma correspondente, podemos agora afirmar que,
para fazermos justiça ao utilitarismo nesse debate, a posição que devemos contrapor ao
deontologismo não-rigorista é a posição utilitarista mais plausível, a do utilitarismo de
bem-estar.
Devemos então apresentar nosso debate como uma discussão entre
deontologismo não-rigorista e utilitarismo de bem-estar. Para delinear de forma mais
precisa os contornos desse debate, devemos colocar as seguintes questões: qual a teoria
do bem do deontologismo não-rigorista? De que modo essa teoria resolve a tensão
fundamental exposta por Scanlon?
183
33
Ver, por exemplo, a “Conferência V” de Political Liberalism, intitulada A Prioridade do Justo (right) e
as Idéias do Bem.
34
A Theory of Justice, p.92-93. O grifo é meu.
184
podem, em geral, estar certos de maior sucesso na execução de suas intenções e na realização
de seus fins, quaisquer que sejam essas intenções e fins. (...) A suposição é a de que, embora
os planos racionais dos indivíduos tenham diferentes fins últimos, todos eles, não obstante,
exigem para sua execução certos bens primários, naturais e sociais. (...) Qualquer que seja o
sistema de fins de um indivíduo, os bens primários constituem meios necessários.
Ora, é óbvio que, caracterizados dessa maneira, os bens primários ficam bem
próximos dos “recursos de bem-estar”, tal como caracterizados por Goodin
(recordemos: para Goodin, os recursos de bem-estar “consistem simplesmente naquele
conjunto de recursos genéricos que as pessoas precisam possuir antes de perseguirem
quaisquer das preferências mais particulares que possam eventualmente ter. Saúde,
dinheiro, moradia, alimento e itens dessa espécie podem ser, todos eles, razoavelmente
considerados interesses de bem-estar, recursos úteis quaisquer que sejam os projetos e
planos particulares das pessoas”). Em outras palavras, se considerássemos apenas essa
caracterização inicial e genérica dos bens primários, teríamos de concluir que a teoria do
bem adotada por Rawls é bastante semelhante à do utilitarista de bem-estar: em ambos
os casos, o bem (quer dizer, o bem que deve ser considerado politicamente relevante) é
entendido em termos de posse/fruição de bens/recursos/meios que são polivalentes, ou
seja, úteis/necessários para a perseguição de qualquer projeto de vida/sistema de fins
mais específico.
Entretanto, já no artigo Kantian Constructivism in Moral Theory (1980), Rawls
efetua uma alteração importante na teoria dos bens primários. Na seção IV da Parte I
(Autonomia Racional e Autonomia Completa) desse artigo, Rawls afirma o seguinte: 35
É preciso notar que a concepção das pessoas morais como possuidoras de certos interesses
superiores bem precisos vincula a especificação dos bens primários ao quadro das concepções-
modelo36. Assim, esses bens não devem ser compreendidos como meios genéricos essenciais à
realização de quaisquer fins últimos que uma investigação empírica ou histórica permitiria
35
Kantian Constructivism in Moral Theory. The Journal of Philosophy, vol.77, n.9, 1980, p.515-572. A
citação é da p.526-527. O grifo é meu.
36
Em Kantian Constructivism, Rawls fala de duas concepções-modelo fundamentais, a de “pessoa moral”
e a de “sociedade bem ordenada” (cf. p.520). Entretanto, em dois outros artigos bastante próximos a este,
tanto temporalmente quanto pelo fato de estarem referidos à mesma reformulação na análise dos bens
primários – trata-se de Social unity and primary goods (1982) e The basic liberties and their priority
(1982), - nesses dois artigos, Rawls associa a concepção de pessoa, não tanto à concepção de “sociedade
bem ordenada”, mas, antes, à concepção de “cooperação social”. E na “Conferência I” de Political
Liberalism (Fundamental Ideas) a concepção de pessoa é explicitamente subordinada à concepção de
cooperação social. Não é preciso entrar em discussões interpretativas mais detalhadas para perceber que
as mudanças de ênfase na apresentação das concepções-modelo têm a ver com a coloração estritamente
política que Rawls precisa atribuir à concepção de pessoa. Com efeito, parece óbvio que, para adquirir
essa coloração estritamente política, a concepção de pessoa deve de fato ser entendida a partir da
concepção de cooperação social. Em Kantian Constructivism, a noção de cooperação social também
aparece, mas numa seção dedicada à discussão da “autonomia completa” dos cidadãos de uma sociedade
bem ordenada (seção V da Primeira Parte). Ora, por mais que Rawls tente evitar essa aproximação, a
noção de “autonomia completa” aproxima as “concepções-modelo” de uma concepção liberal (kantiana)
de boa vida, estendendo-as para além do plano estritamente político em que ele deseja manter-se.
185
atribuir de maneira habitual ou normal às pessoas, quaisquer que sejam as condições sociais.
Existem poucos fins desse tipo, se é que existem. Os que porventura existam não podem servir
à construção de uma concepção de justiça razoável para nós. (...) E aqui eu devo notar que, ao
fundar a análise dos bens primários sobre uma concepção particular da pessoa, eu opero uma
revisão nas sugestões de Uma Teoria da Justiça, uma vez que, nesse livro, podia parecer que a
lista dos bens primários era o resultado de uma pesquisa puramente psicológica, estatística ou
histórica.
Vale notar que a mesma reformulação pode ser encontrada em dois artigos de
1982: Social unity and primary goods (1982), publicado no livro Utilitarianism and
beyond (editado por A. Sen e B. Williams), e The basic liberties and their priority
(1982), reproduzido na “Conferência VIII” de Political Liberalism. Em ambos os
artigos, Rawls resume sua idéia central da seguinte maneira: “Embora a determinação
dos bens primários invoque um conhecimento das circunstâncias e exigências genéricas
da vida social, ela só faz isso à luz de uma concepção de pessoa previamente dada”.37
No artigo The basic liberties and their priority (1982), Rawls deixa claro que
essa reformulação foi (ao menos parcialmente) motivada pelas críticas que H. Hart fez à
teoria da liberdade apresentada em Uma Teoria da Justiça.38 Mais precisamente, Rawls
deixa claro que essa reformulação tem a ver, basicamente, com a prioridade daquele
subgrupo dos bens primários que ele classifica sob o título de “liberdades básicas”.
Podemos dizer algo de mais preciso ainda: a reformulação tem a ver com a prioridade
desses bens sobre aquele outro subgrupo que ele classifica sob o título de “renda e
riqueza”. (Lembremos que uma teoria política do bem deve incluir uma ordem ou
hierarquia dos diferentes bens que podem ser considerados politicamente relevantes, ou
então algum critério de decisão dos eventuais conflitos entre esses bens). Com efeito, na
mesma seção em que a reformulação é efetuada (tanto em Kantian Constructivism
quanto em Social Unity e The Basic Liberties), enquanto os bens “renda e riqueza”
continuam a ser apresentados nos moldes de Uma Teoria da Justiça, como “meios
polivalentes” (all-purpose means), quer dizer, meios que são proveitosos para nossos
fins em geral (quaisquer que eles sejam), - enquanto os bens “renda e riqueza”
continuam a ser apresentados como meios polivalentes para fins quaisquer e em geral,
os bens representados pelas liberdades básicas passam a estar vinculados, não a fins
quaisquer e em geral, mas a fins bem específicos, ainda que “de ordem superior”.39 Pois,
37
Social unity and primary goods, seção III, p.166/167; The basic liberties and their priority, § 4, p.308.
O grifo é meu.
38
As críticas de Hart foram expostas no artigo Rawls on Liberty and its Priority (1973), republicado em
Daniels, Norman (Ed.), Reading Rawls. New York, Basic Books, 1975.
39
Kantian Constructivism, p.526; Social unity and primary goods, p.165-166; The basic liberties and
their priority, p.308.
186
40
Utilitarianism and beyond, p.164-165. Ver a página 302 de Political Liberalism, onde a caracterização
das duas capacidades é praticamente idêntica.
41
Conferir, por exemplo, p.167 de Social unity and primary goods: “Aqui nós invocamos a natureza
prática dos bens primários. Com isso eu quero dizer que nós realmente podemos propiciar um esquema de
iguais liberdades básicas, o qual, quando tornado parte da constituição política e estabelecido na estrutura
básica da sociedade (como objeto primário da justiça), assegura a todos os cidadãos o desenvolvimento e
exercício dos seus interesses de ordem superior, desde que certos meios polivalentes sejam
equitativamente (fairly) assegurados para todos. (O grifo é meu).
187
Antes de discutir até que ponto a teoria do bem de Rawls consegue justificar a
prioridade das liberdades básicas, gostaria de destacar o seguinte. É óbvio que a
reformulação acima apresentada implica uma diferenciação significativa da teoria do
bem de Rawls em relação à do utilitarista de bem-estar. Para apreciarmos os contornos
dessa diferenciação, voltemos à noção dos recursos de bem-estar, tal como exposta por
R. Goodin. Lembremos que, na lista que Goodin apresenta a título de exemplo (“Saúde,
dinheiro, moradia, alimento e itens dessa espécie”), não aparecem as liberdades básicas.
Mas é óbvio que tais liberdades poderiam e deveriam ser incluídas na lista do
utilitarista, a título, justamente, de “recursos úteis, quaisquer que sejam os projetos e
planos particulares das pessoas”. Em outras palavras, o utilitarista de bem-estar tem de
reconhecer que, de um modo geral, e em princípio, as liberdades básicas constituem-se
de fato em recursos (objetivamente) úteis, na medida em que podem ser
proveitosamente utilizadas na perseguição dos mais variados projetos de vida.
Mas será que, em casos de conflito, o utilitarista de bem-estar concederia
prioridade às liberdades, em relação a bens de cunho mais concreto ou material, como,
por exemplo, renda (“dinheiro”)? A hipótese de um conflito desse tipo, que vou chamar
de conflito entre os recursos de bem-estar, - a hipótese de um tal conflito constitui a
meu ver um ponto extremamente importante, na medida em que permite vislumbrar o
fundamento último da posição utilitarista, inclusive da do utilitarista de bem-estar.
(Notemos a propósito que o conflito em questão não precisa ser restringido ao conflito
liberdade versus dinheiro; ele pode consistir também em educação versus dinheiro, ou
educação versus transporte, ou saúde versus transporte, e assim por diante).
Como vimos acima, ao definir utilidade como “posse/fruição de recursos
objetivamente úteis”, em vez de “satisfação de preferências”, o utilitarista de bem-estar
visava (e conseguiu) resolver o problema da frágil conexão entre preferência e bem, nas
suas duas dimensões: nem toda preferência é objetivamente boa para o indivíduo, mas a
posse (e fruição) de recursos objetivamente úteis sempre é objetivamente boa para o
indivíduo; nem toda “satisfação de preferência”, mesmo de uma preferência
“verdadeira”, é politicamente relevante (ou seja, boa), mas a posse (e fruição) de
recursos objetivamente úteis sempre é politicamente relevante e boa. Entretanto, como o
utilitarista de bem-estar resolveria conflitos entre recursos que pertencem, ambos (ou
todos), à sua lista (relativamente aberta) de recursos de bem-estar? Liberdade versus
188
dinheiro, educação versus dinheiro, educação versus transporte, ... - como o utilitarista
de bem-estar resolveria conflitos desse tipo?
É claro que ele poderia tentar asseverar, por conta própria, que um desses
recursos é, objetivamente, melhor do que o outro, quer dizer, mais útil para os
indivíduos concernidos; é claro que ele poderia tentar asseverar, por conta própria, que a
posse (e fruição) de um desses recursos é politicamente mais relevante (melhor) do que
a do outro. De um modo geral, entretanto, parece-me que o utilitarista de bem-estar
sentiria uma certa repulsa por esse caminho, na medida em que ele se afasta do impulso
antinormativo que caracteriza o utilitarismo em geral. Parece-me que, no caso desse tipo
de conflito, ele tenderia a consultar os próprios concernidos, para averiguar qual dos
recursos é o preferido pela maioria; parece-me que, no caso desse tipo de conflito, ele
tenderia a asseverar que, para decidir qual dos recursos deve ser considerado
politicamente mais relevante ou melhor, é preciso averiguar qual dos recursos é o
preferido pela maioria dos concernidos. Em outras palavras, parece-me que, no caso
desse tipo de conflito, o utilitarista de bem-estar voltaria ao princípio da autonomia das
preferências, expressão da exigência de neutralidade. Na tensão entre a exigência de
neutralidade e o problema da frágil conexão entre preferência e bem, e premido por um
conflito na distribuição de recursos que em princípio são igualmente bons (pelo menos
de forma aproximada), o utilitarista de bem-estar, movido por seu impulso
antinormativo, tende para o lado da exigência de neutralidade. Ele evita o juízo de que
um dos recursos é objetivamente melhor do que o outro, pois isso equivaleria a passar
por cima das opiniões que os próprios concernidos têm acerca daquilo que é bom para
suas vidas, e escolhe, ao contrário, o recurso que é preferido pela maioria. Com efeito,
em casos de conflito desse tipo, em que os recursos foram inicialmente colocados, todos
eles, na esfera do “(objetivamente/politicamente) bom”, e não das “preferências”, ser
neutro é, justamente, respeitar a opinião da maioria, quer dizer, atender à preferência da
maioria.
Ora, atender à preferência da maioria equivale a gerar a maior quantidade de
satisfação na sociedade. Mais precisamente, orientar-se pela preferência da maioria
equivale a buscar a maior quantidade de satisfação na sociedade. Podemos então
concluir que, desde que o papel da idéia de satisfação seja restringido ao de critério de
decisão dos conflitos entre os recursos de bem-estar, - nessas condições, o “bem” (o
bem que deve ser considerado politicamente relevante) do utilitarista de bem-estar
continua a ser entendido em termos de maior quantidade de satisfação na sociedade. Em
189
outro recurso de bem-estar, as liberdades devem ceder o passo a esse outro recurso. É
para evitar isso, justamente, que Rawls desenvolve uma teoria política do bem fundada
numa concepção-modelo da pessoa moral. Em outras palavras, é para garantir a
prioridade normativa das liberdades básicas que Rawls desenvolve uma teoria política
do bem na qual os bens primários ficam vinculados aos interesses superiores da pessoa
moral, que são os interesses no desenvolvimento e exercício dos dois poderes da
personalidade moral. Efetuando esse movimento, Rawls define o bem (quer dizer, o
bem que deve ser considerado politicamente relevante) como realização dos interesses
superiores da personalidade moral. E a prioridade das liberdades passa a poder ser
justificada, grosso modo, por meio das seguintes premissas. Premissa 1: o bem consiste
na realização dos interesses superiores da personalidade moral. Premissa 2: para a
realização desse bem, as liberdades básicas são requisitos indispensáveis; ou então: para
a realização desse bem, elas têm mais relevância e significação do que os recursos de
cunho mais concreto ou material, como renda e riqueza.
O problema que esse movimento acarreta para Rawls diz respeito, obviamente, à
possibilidade de violação da exigência de neutralidade. Ao ancorar sua teoria do bem
numa concepção “modelo” de pessoa moral, não estaria Rawls infringindo essa
exigência? Até que ponto uma teoria do bem ancorada numa concepção específica – e
fortemente normativa – da pessoa pode ser considerada neutra em relação aos diversos
projetos de vida que os diferentes indivíduos abraçam e preferem? Logo no início de
The basic liberties and their priority, Rawls afirma que “Essas correções revelam que as
liberdades básicas e sua prioridade baseiam-se em uma concepção de pessoa
reconhecidamente liberal e não, como pensava Hart, em considerações de interesse
racional apenas”.43 Ora, até que ponto uma concepção reconhecidamente liberal pode
ser considerada neutra em relação a projetos de vida que não concedem tanta
importância assim às liberdades básicas, nem às capacidades (interesses) morais para as
quais tais liberdades representam requisitos indispensáveis? Até que ponto ela pode ser
considerada neutra em relação a indivíduos que, às liberdades e capacidades “morais”,
preferem bens e capacidades de cunho mais concreto ou material, como a renda e a
capacidade de fruir de conforto e bem-estar material? E, caso se venha a admitir que ela
(essa concepção liberal) de fato tem de ser reconhecida como relativamente não-neutra,
seria possível justificar essa relativa não-neutralidade?
43
Political Liberalism, p.290.
191
A dificuldade interpretativa que esse trecho suscita diz respeito ao modo como
uma “capacidade moral” chega (ou não) a transformar-se numa capacidade deliberativa
192
44
Na p.300 de Political Liberalism, Rawls afirma, explicitamente, que o racional refere-se ao bem
individual: “o racional refere-se à vantagem racional de cada participante; àquilo que os participantes,
enquanto indivíduos, estão tentando promover”.
45
Political Liberalism, p.302.
193
conflito que revela de forma mais clara as limitações e falhas desse tipo de argumento.
Eu gostaria de antecipar o seguinte ponto. Em casos de conflito radical entre “liberdade”
e “renda”, esse tipo de argumento, se não for complementado por outras considerações
(as quais dizem respeito à justiça da esfera política), - em casos de conflito radical, esse
tipo de argumento só pode basear-se no postulado de que, para os partidários de projetos
de vida de cunho religioso ou metafísico, as liberdades apresentam uma significação
(relevância) maior do que a significação que renda e conforto apresentam para os
partidários de projetos de vida de cunho mais “materialista”. Ora, esse postulado é
inteiramente injustificado; ele na verdade parece mascarar uma preferência injustificada
pelas concepções de bem (individual) de cunho religioso ou metafísico, em detrimento
daquelas de cunho mais materialista. E uma tal preferência representa violação
inaceitável da exigência de neutralidade.
A mesma violação parece resultar dos outros argumentos que Rawls apresenta
no parágrafo 5 de The basic liberties. 49 Esses outros argumentos baseiam-se na
valorização da capacidade de examinar, reafirmar ou rever a concepção determinada de
bem (individual) que se tem num dado momento, uma capacidade para a qual as
liberdades básicas representam requisitos indispensáveis. Em outras palavras, esses
argumentos baseiam-se no “interesse superior” de desenvolver e exercer a capacidade
de ser racional, tomada como capacidade de examinar, reafirmar ou rever a concepção
determinada de bem (individual) que se tem num dado momento. No primeiro
argumento, essa capacidade é valorizada como meio para uma realização efetiva do que
é bom para o indivíduo; no segundo argumento ela é valorizada como parte essencial
desse bem individual. Ora, os dois argumentos parecem mascarar uma preferência
injustificada por projetos de vida ordenados pela reflexão crítica sobre o bem individual,
em detrimento de projetos menos reflexivos. E uma tal preferência, mais uma vez,
representa uma violação inaceitável da exigência de neutralidade. Até que ponto o
interesse “moral” de exercer a capacidade de refletir criticamente sobre o bem
(individual) pode ser atribuído ao homem comum e mediano? Até que ponto a
atribuição desse interesse moral pode ser considerada neutra em relação aos interesses
que esse homem de fato tem? Parece claro que essa capacidade não pode deixar de ser
vista como elemento de uma certa concepção de boa vida – trata-se de uma concepção
em que a reflexão crítica é vista ou como meio (para) ou como parte essencial do que é
bom na vida. Parece difícil negar que se trata de uma concepção de boa vida grosso
49
Ver páginas 312-314 de Political Liberalism.
198
50
É interessante destacar que esse parágrafo foi cortado, com a anuência do próprio Rawls, da tradução
francesa desse artigo, publicada pela primeira vez na revista Critique, e republicada na coletânea Justice e
Démocratie, organizada por C. Audard. Ao concordar com a supressão desse parágrafo, Rawls parecia
estar admitindo que, partindo-se da caracterização da posição original apresentada nas seções
precedentes, a capacidade para o senso de justiça só pode desempenhar papel muito fraco – se é que pode
desempenhar algum papel – nos argumentos de justificação da prioridade das liberdades básicas, na
medida em que tais argumentos têm de ser articulados no contexto da posição original.
51
Ver, por exemplo, p.315 de Political Liberalism: “Os participantes estão restritos a argumentos
fundados em considerar a capacidade para o senso de justiça apenas como meio para o bem individual de
uma pessoa”. E também na p.316: “Mas quando os participantes admitem, como uma consideração em
favor de certos princípios de justiça, o fato de que os cidadãos na sociedade vão efetiva e regularmente
agir a partir deles, os participantes só podem fazer isso por acreditarem que agir a partir dos princípios de
justiça serve como meio efetivo para as concepções determinadas de bem das pessoas que eles
representam”.
199
assimilados (internalizados) do que princípios que não admitem tal prioridade – ao ser
subordinada à bússola deliberativa do bem individual, tal tese suscita questionamentos,
na medida em que ela só parece ser plausível caso se atribua às pessoas na sociedade
uma concepção de bem (individual) que já incorpora a relevância e significação das
liberdades básicas. Ora, concepções do bem individual que incorporam a relevância e
significação das liberdades básicas têm de entrar na categoria das concepções
metafísicas da boa vida. Ainda que de forma apenas indireta, a violação da exigência de
neutralidade acaba novamente se revelando.
***
O resultado da minha argumentação pode ser resumido da seguinte maneira.
Para garantir a prioridade normativa das liberdades básicas, Rawls definiu politicamente
o bem como realização dos interesses superiores da personalidade moral, ou seja, como
desenvolvimento e exercício das duas capacidades da personalidade moral, a capacidade
para o senso de justiça e a capacidade para o bem individual. Mas a prioridade das
liberdades básicas tem de ser estabelecida no contexto da posição original, e no contexto
da posição original a capacidade para o senso de justiça só entra como meio para o bem
individual. Isso significa que, no contexto da posição original, a prioridade das
liberdades básicas só pode ser justificada com base na relevância e significação que tais
liberdades têm para o bem individual das pessoas, - ou então para sua capacidade de
examinar, reafirmar ou rever a concepção de bem individual que elas têm num dado
momento, na medida, justamente, em que o exercício dessa capacidade for considerado
relevante para seu bem individual. Ora, para que as liberdades básicas possam ter esse
tipo de relevância e significação para o bem individual das pessoas, é preciso que esse
bem seja configurado nos moldes de uma concepção metafísica (religiosa/filosófica, ou
metafisicamente liberal) de boa vida. Assim, a teoria política do bem apresentada em
The basic liberties acaba envolvendo uma concepção metafísica de boa vida. E isso
representa violação inaceitável da exigência de neutralidade.
Mas nós vimos também que The basic liberties sugere uma alternativa. Talvez a
prioridade das liberdades básicas possa ser justificada a partir da capacidade
deliberativa da razoabilidade, quer dizer, a partir do bem pelo qual essa capacidade
especificamente se orienta, que é a razoabilidade (justiça) da esfera política. Como
afirmamos acima, talvez a prioridade das liberdades básicas possa se fundamentar na
sua relevância/significação para a justiça da esfera política, entendida não só como um
bem específico e independente, mas também como o bem (o alvo) pelo qual
200
Capítulo 5.
Teorias da Decisão e Intuições do Resultado Justo.
felicidade privada, quer, por outro lado, em termos, apenas, de restrições e/ou
proibições que devem ser “externamente” impostas à busca da felicidade privada. Para
contrapor-se à tese utilitarista de que a justiça (ou seja, o bem político) deve ser definida
em termos de maximização do bem privado, o legislador deontológico não precisa
defini-la em termos, apenas, de restrições e/ou proibições que devem ser impostas à
busca do bem privado e da maximização do mesmo; ele pode tomá-la como um fim
propriamente dito, quer dizer, um bem propriamente dito, - só que um bem que não
pode ser reduzido ao bem privado e à maximização do mesmo.
1
Conforme deixarei claro logo a seguir, nesse estágio da minha argumentação estou me servindo,
decisivamente, das preciosas lições que T.M. Scanlon apresenta em seu artigo Contractualism and
utilitarianism, publicado em Sen, Amartya e Williams, Bernard (Eds.), Utilitarianism and beyond.
Cambridge, Cambridge University Press, 1982.
206
(quais são os – A.S.B.) princípios que ninguém que tem esse desejo (de entrar em
acordo quanto a princípios – A.S.B.) poderia razoavelmente rejeitar”.2
É verdade que, para Scanlon, o método do contratualismo deve servir-se, não da
pergunta “será que todo mundo poderia, razoavelmente, aceitar esse princípio?”, mas,
sim, da pergunta “será que alguém poderia, razoavelmente, rejeitar esse princípio?”.
Entretanto, para estabelecer essa diferença entre, por um lado, “é razoável aceitar” e,
por outro lado, “é irrazoável rejeitar”, Scanlon se apóia no exemplo hipotético de uma
pessoa que, altruisticamente, abdica de uma certa demanda que em princípio parece
inteiramente legítima, em favor das demandas dos demais. Diz Scanlon que,
considerando o caráter altruísta dessa pessoa, nós teríamos de admitir que, no caso dela,
é razoável aceitar um princípio que lhe imponha sacrifícios aparentemente excessivos,
embora, por outro lado, se nós a imaginássemos rejeitando tal princípio, nós não
taxaríamos essa rejeição de “irrazoável”.3 Como o princípio parece ilegítimo, conclui
Scanlon que, ao refletir sobre a legitimidade dos princípios, o contratualista deve
preferir a pergunta “seria irrazoável rejeitar?” à pergunta “seria razoável aceitar?”
A meu ver, entretanto, a introdução desse caráter altruísta representa um desvio
em relação ao tipo de pessoa que, por definição, se coloca na base do procedimento
contratualista. Com efeito, como vimos acima, esse procedimento só faz sentido caso a
pessoa que se coloca em sua base seja definida como alguém que, em princípio, nem
abdica das suas demandas nem desconsidera as demandas dos demais, mas, antes,
procura avaliar, de forma razoável, a relevância que respectivamente se deve atribuir a
cada uma das demandas em conflito, para determinar quais devem ter prioridade. Em
termos que se tornaram famosos, essa pessoa não é nem altruísta nem egoísta, mas,
antes, razoável. (Do ponto de vista do procedimento contratualista, fundado no caráter
por assim dizer anônimo e impessoal da pessoa que se coloca em sua base, não é só o
egoísmo que deve ser taxado de irrazoável; também o altruísmo deve receber essa
qualificação). Ora, para esse tipo de pessoa, o veredicto de que “é razoável aceitar esse
princípio” se torna perfeitamente equivalente ao veredicto de “seria irrazoável rejeitar
esse princípio”, e vice-versa. A conclusão que podemos tirar é então a seguinte: não é
necessário nem conveniente estabelecer qualquer distinção entre “é razoável aceitar” e
“é irrazoável rejeitar”, e a pergunta que acima apresentamos, seguindo as lições do
próprio Scanlon, pode ser mantida em seus termos originais.
2
Scanlon, Ibidem, p.111.
3
Idem, Ibidem, p. 111/112.
208
***
Gostaria de concluir essa seção com um breve comentário sobre as alterações
envolvidas na passagem do procedimento de universalização para o procedimento do
contrato. Vimos que a interpretação não-formalística do procedimento de
universalização gerou um problema que pode ser chamado de “problema da variação”:
trata-se das variações no resultado do procedimento, decorrentes das variações nos
conteúdos da vontade do indivíduo legislador. Num primeiro momento, que ainda pode
ser situado na esfera do procedimento de universalização, esse problema é enfrentado
por meio de uma teoria do bem: trata-se de um esforço de produzir (e justificar) uma
certa uniformidade no conteúdo das vontades, atribuindo-lhes desejos e interesses que
possam ser considerados, por um lado, suficientemente gerais e neutros, e, por outro
lado, politicamente legítimos e relevantes. Ora, na transição para o procedimento do
contrato, a resposta ao problema da variação adquire feição ligeiramente distinta. Não se
trata tanto de produzir e justificar uma certa uniformidade no conteúdo das vontades,
mas trata-se, antes, de atribuir aos legisladores a capacidade da razoabilidade, ou seja, a
capacidade de reconhecer o que é razoável pedir/exigir dos outros, e o que é razoável
conceder aos outros. Mesmo que haja variações nos desejos e interesses dos indivíduos-
legisladores, isso não impede que haja uniformidade nos resultados do procedimento:
basta que os legisladores sejam razoáveis, quer dizer, reconheçam até que ponto,
respectivamente, eles devem abrir mão de seus próprios interesses, diante dos interesses
dos outros, e até que ponto eles podem pedir/exigir dos outros que abram mão de seus
próprios interesses, para produzir um acordo justo (razoável).
Por outro lado, mesmo que se insista na conveniência de se produzir uma certa
uniformidade no conteúdo das vontades, nem por disso diminui a exigência de
razoabilidade por parte dos indivíduos-legisladores. Com efeito, mesmo que uma
“teoria do bem” tenha êxito na produção de uma vontade genérica, uniforme e neutra, e
mesmo que, com isso, ela consiga restringir o âmbito dos conflitos que devem ser
considerados politicamente relevantes, nem por isso ela consegue eliminar todos os
conflitos: sempre haverá conflitos em relação aos bens que foram admitidos como
politicamente relevantes – sempre haverá conflitos, não só entre os bens (liberdade e
renda, por exemplo), mas também entre os indivíduos que demandam os bens. É para
resolver esses conflitos, justamente, que se exige a razoabilidade; mais precisamente, a
razoabilidade constitui a capacidade que vai ser usada para se determinar qual o
princípio razoável (justo) para a resolução desses conflitos.
209
4
Publicado originalmente em Philosophy and Public Affairs, vol.17, n.4, 1988, p.251-276, e republicado,
com algumas modificações, na “Conferência V” de Political Liberalism.
213
das duas terá, inevitavelmente, de ser abandonada. “Nenhuma sociedade pode incluir
em seu seio todas as formas de vida. (...) Como afirmou I. Berlin (é um dos seus temas
fundamentais), não há mundo social sem perdas, quer dizer, não há mundo social que
não exclua certas formas de vida que realizam, de modo especial, certos valores
fundamentais.” (Political Liberalism, p. 197). Segunda premissa: Além de ser
incompatível com uma ordem liberal, uma ordem verdadeiramente comunitarista é
incompatível com outras espécies do mesmo gênero, ou seja, ela implica oposição e
repressão a concepções que entendem de outra forma o “verdadeiro” bem e o modo
como o verdadeiro bem deve moldar a ordem política. Terceira premissa: Nossa
sociedade, empiricamente, caracteriza-se por um pluralismo de concepções do
verdadeiro bem, o que significa que uma ordem verdadeiramente comunitarista
implicaria, inevitavelmente, oposição e repressão a concepções do verdadeiro bem que
empiricamente se apresentam em nossa cultura. Quarta premissa: Embora seja
incompatível com uma ordem política verdadeiramente comunitarista, e embora seja
relativamente desfavorável aos valores e projetos de cunho comunitarista, uma ordem
política liberal é perfeitamente compatível com a fidelidade não-política aos (diferentes,
plurais) valores e projetos de cunho comunitarista – desde que essa fidelidade respeite
certos limites da ordem política. Conclusão: a ordem política liberal é a mais justa com
as (diversas) concepções de verdadeiro bem associadas a projetos de vida de cunho
comunitarista.
Embora Political Liberalism se nutra, em boa parte, das objeções comunitaristas
ao ideal de neutralidade do liberalismo contratualista, não me parece ser esse (o
comunitarista) o questionamento com que os rawlsianos deveriam essencialmente se
preocupar. O desafio comunitarista, como acabamos de ver, parte e vem “de fora”, quer
dizer, seu ponto de partida é externo às noções contratualistas que o liberalismo
rawlsiano assume e elabora. Em outras palavras, o que o desafio comunitarista visa e
ataca é a visão grosso modo “individualista” que acaba sendo reconhecida como
inerente ao procedimento contratualista do liberalismo rawlsiano. Mas o problema da
neutralidade também pode ser colocado “dentro” do contratualismo, quer dizer, no
próprio seio do procedimento individualista delineado pelas noções de escolha,
aceitação e acordo de indivíduos razoáveis.
Para entendermos essa segunda manifestação do problema da neutralidade,
gostaria de retomar um resultado a que chegamos no capítulo passado. Vimos que, no
primeiro momento da estruturação do procedimento contratualista, ao se elaborar a
214
noção das demandas e bens pelos quais se orienta a deliberação dos indivíduos-
legisladores, as demandas referidas ao “verdadeiro bem”, quer dizer, aos fins últimos da
existência individual, – tais demandas ficam desde o início excluídas; elas são desde o
início consideradas como politicamente irrelevantes (demandas com que o Estado não
precisa nem deve se preocupar). No contexto do procedimento contratualista, as únicas
demandas que interessam são as demandas por bens “primários”, ou recursos básicos –
entendidos como recursos polivalentes, qualquer que seja a concepção de boa vida
assumida pelo indivíduo. Na medida mesmo em que são tomados como recursos
polivalentes, qualquer que seja a concepção de boa vida, tais recursos são considerados
neutros em relação às diferentes (e controvertidas) concepções de boa vida.
Como tentarei mostrar na próxima seção (5.3.1), entretanto, mesmo que as
demandas politicamente relevantes sejam desse modo restringidas, ainda surgirão
conflitos, não só entre indivíduos que demandam um (mesmo) bem escasso, mas
também entre demandas por diferentes espécies de bem; conflitos, por exemplo, entre as
demandas por “liberdade” e “renda” – tomadas, em princípio, como recursos que os
diferentes indivíduos podem considerar “polivalentes”, quer dizer, como recursos de
que eles podem proveitosamente se servir para perseguirem seus respectivos projetos de
vida. No contexto do procedimento contratualista, princípios de justiça consistem,
essencialmente, em princípios para a resolução desse tipo de conflito. A questão que se
coloca aqui é a seguinte: ainda que, em princípio, os recursos básicos possam ser
considerados neutros em relação às controvertidas concepções de boa vida, será que,
nos casos de conflito entre eles, os princípios que precisam ser usados para a resolução
desse conflito podem, eles próprios, ser considerados neutros em relação às diferentes
concepções de boa vida?
A segunda manifestação do problema da neutralidade (a qual, como disse acima,
é “interna” ao procedimento contratualista, com seu viés individualista) consiste,
portanto, no seguinte questionamento. Ainda que, em princípio, “liberdade” e “renda”
possam ser consideradas neutras em relação às diferentes concepções de boa vida, (no
sentido de que é razoável afirmar que, qualquer que seja a concepção de boa vida do
indivíduo, ele sempre pode ver “liberdade” e “renda” como recursos que podem ser
proveitosamente utilizados), no caso de um conflito radical entre liberdade e renda,
talvez esses recursos não possam mais ser considerados neutros em relação aos
diferentes projetos de vida; no caso de conflito radical, esses recursos talvez acabem se
associando, como itens mais favoráveis, a esse ou àquele projeto de vida, o que significa
215
neutralidade em relação a concepções de boa vida que devem ser escolhidas (e/ou
revisadas) pelos indivíduos, e não mais em relação às concepções de boa vida
verdadeiramente comunitaristas.5
***
Retornemos agora ao argumento principal da presente seção. Para retomar o fio
condutor, gostaria de repetir as questões que havíamos previamente colocado, a partir de
uma primeira elaboração das noções envolvidas no procedimento contratualista: será
possível encontrar princípios que atendam ao requisito (exigência) de neutralidade? O
que fazer se não for possível encontrá-los?
Gostaria de afirmar agora o seguinte. Essas questões permitem-nos vislumbrar
três momentos da lógica contratualista, quer dizer, três momentos do processo de
desdobramento do potencial conceitual do contratualismo. Para apresentar esses
momentos, gostaria de explorar um pouco mais os contornos das questões acima
referidas. Num primeiro momento do seu processo argumentativo, um contratualista
poderia expressar as idéias acima apresentadas da seguinte maneira. Partindo do
pressuposto da razoabilidade de todos os concernidos, todos os concernidos deveriam
concordar que, se um determinado princípio implica proteção ou favorecimento de um
determinado projeto de vida em detrimento de outro, qualquer eventual prejudicado
poderia razoavelmente recusar tal princípio, quer dizer, poderia razoavelmente taxá-lo
de injusto. Partindo do pressuposto da razoabilidade, todos os concernidos deveriam
concordar que, para ser justo, um princípio precisa ser neutro em relação aos diversos
projetos de vida eventualmente conflitantes – ou seja, deveriam concordar que a justiça
dos princípios equivale à neutralidade dos mesmos.
Assim, ainda que, partindo do lado mais afetivo da sua personalidade, os
concernidos possam atribuir grande peso às suas respectivas concepções do que seja
uma boa vida, eles ao mesmo tempo reconhecem, partindo do lado mais razoável da sua
personalidade, que, no contexto da especificação dos princípios da interação social, as
considerações de razoabilidade devem ter prioridade sobre suas concepções do que seja
uma boa vida. Além disso, num primeiro momento da lógica contratualista, essa
5
Em The Priority of Right and Ideas of the Good, ao estabelecer uma distinção entre “neutralidade de
objetivo” e “neutralidade de influência”, Rawls está pensando, evidentemente, na influência desfavorável
que uma ordem liberal tem sobre concepções de boa vida verdadeiramente comunitaristas. A questão que
estou colocando agora é outra. Trata-se de perguntar se, mesmo em relação às concepções de boa vida
inseridas no contexto grosso modo individualista do procedimento contratualista, os princípios resultantes
(do procedimento) podem ser considerados neutros. No caso dessas concepções “individualizadas” de boa
vida, a distinção acima referida talvez não faça mais sentido. Mas esse é um ponto que não vou abordar
aqui.
217
6
No artigo de Rawls The Priority of Right and Ideas of the Good, fica muito clara essa associação entre,
por um lado, a idéia da prioridade do justo e, por outro lado, a idéia de neutralidade em relação às
concepções de boa vida. Com efeito, Rawls começa o artigo com uma referência às objeções suscitadas
pela idéia da prioridade do justo; na seção V do artigo, ele retoma essas mesmas objeções, vinculando-as
agora à idéia de neutralidade (em relação a esse tópico, a versão original, publicada em Philosophy and
Public Affairs, é mais clara, na medida em que Rawls não demonstra tanto medo em usar o termo
“neutralidade”).
218
concepções de boa vida possivelmente adotadas pelos indivíduos, mas pode ser
entendido como um princípio que pode envolver um relativo favorecimento de uma
certa concepção de boa vida, em detrimento de outras – desde que esse favorecimento
possa ser razoavelmente justificado, ou seja, desde que ele atenda às condições ditadas
pela razoabilidade, ou pelo senso de justiça.
Nessa situação, o que acontece com a tese da prioridade do justo sobre o bom? É
óbvio que ela perde o primeiro significado acima discriminado: se os princípios justos
não precisam mais ser neutros, a prioridade do justo sobre o bom não pode mais ser
entendida no sentido de que a justiça dos princípios equivale à neutralidade dos mesmos
(em relação às diferentes concepções do bem individual). Além disso, se essa tese
conservasse o segundo significado acima discriminado, a saber, o significado de que os
princípios justos devem ter prioridade (normativa) sobre as concepções de boa vida,
teríamos a seguinte implicação: um princípio que implica relativo favorecimento de
uma dessas concepções, em detrimento de outras, deve ter prioridade sobre essas outras
concepções. Ora, sozinha, sem nenhum outro argumento explicativo, essa conclusão
estaria em flagrante conflito com as considerações da razoabilidade, quer dizer, com o
senso de justiça. Isso demonstra que, num segundo momento da lógica contratualista, a
tese da prioridade do justo sobre o bom não pode mais ser entendida, pura e
simplesmente, no sentido de que princípios justos têm prioridade sobre as concepções
de boa vida. Falta aqui um esclarecimento complementar.
Para entendermos que sentido essa tese adquire no segundo momento da lógica
contratualista, temos de estabelecer e destacar uma distinção entre, por um lado, o
procedimento contratualista, e, por outro lado, os princípios que resultam desse
procedimento – ou seja, os princípios que são escolhidos como resultado do
procedimento. O “segundo momento” nasceu da percepção de que os princípios que
resultam do procedimento não podem ser considerados rigorosamente neutros em
relação às diferentes concepções de bem individual. Ora, se a justiça está vinculada à
neutralidade, e se a neutralidade não pode mais ser localizada nos princípios que
resultam do procedimento, resta a saída de localizar a neutralidade no próprio
procedimento – trata-se de estruturar e aplicar um procedimento neutro, definido como
um procedimento que pode ser reconhecido como “intrinsecamente” justo,
independentemente de qualquer preferência pré-procedimental por essa ou aquela
concepção de boa vida. Assim, ainda que os princípios que resultam do procedimento
tenham de ser reconhecidos como relativamente não-neutros em relação às diferentes
219
7
Nesse segundo momento da lógica contratualista, portanto, a tese da prioridade do justo vincula-se ao
ideal de uma justiça procedimental pura. Não vou discutir esse tópico aqui, mas gostaria de mencionar as
mudanças no posicionamento de Rawls em relação à possibilidade de se usar a noção de justiça
procedimental para esclarecer o artifício da posição original (que representa a configuração rawlsiana do
procedimento contratualista). Tal mudança se manifesta de forma muito clara em Political Liberalism,
especialmente se tomarmos a edição paperback, que inclui o artigo Resposta a Habermas, de 1995.
A esse respeito, gostaria de destacar as seguintes passagens. No §5 da conferência “As
Capacidades dos Cidadãos e sua Representação” (Conferência II), Rawls repete a tese apresentada no
artigo O Construtivismo Kantiano na Teoria Moral, de 1980; trata-se da tese de que a posição original
pode e deve ser vista como um caso de justiça procedimental pura (Political Liberalism, p.72-73). Já
no §5 da conferência “A Prioridade do Justo e Idéias do Bem” (Conferência V), Rawls afirma que a
teoria da “justiça como eqüidade” não é procedimentalmente neutra – a noção de “procedimento neutro” é
aqui substituída pela noção de “terreno comum” [e na “conferência” publicada em Political Liberalism
Rawls introduziu uma frase que não aparecia no artigo original, publicado em 1988. Trata-se da
afirmação de que “terreno comum, definido dessa forma (como o foco de um overlapping consensus –
A.S.B.), não é terreno procedimentalmente neutro”. (Political Liberalism, p.192)].
Ora, é óbvio que a noção de justiça procedimental pura envolve a noção de um procedimento
neutro – pois o que define a justiça procedimental é a tese de que a justiça do procedimento não só é
anterior à justiça dos resultados, mas transfere-se para os resultados, como o elemento que, unicamente,
os torna justos, independentemente de qualquer preferência “pré-procedimental” por esse ou aquele
resultado; isso significa, precisamente, que a justiça do procedimento envolve neutralidade em relação a
qualquer resultado possivelmente preferido “antes” do procedimento. Assim, ao dizer que a teoria da
“justiça como eqüidade” não é procedimentalmente neutra, Rawls parece estar dizendo que a justiça dos
seus princípios não pode fundar-se no ideal de um procedimento neutro, mas precisa recorrer a certos
“pré-juízos” (juízos pré-procedimentais) a respeito da justiça dos possíveis resultados do procedimento –
que são, justamente, os princípios da interação social.
Por fim, no §5 do artigo Resposta a Habermas, de 1995 (Conferência IX da edição paperback de
Political Liberalism), Rawls explicitamente afirma que a justiça procedimental, quer dizer, a justiça do
procedimento, “sempre depende” da justiça substantiva, quer dizer, da justiça dos resultados do
procedimento (Political Liberalism, p.421). Em outras palavras, um procedimento justo não pode mais ser
definido pela neutralidade em relação aos “pré-juízos” acerca da justiça dos possíveis resultados.
Endossar um procedimento como justo implica endossar certos juízos pré-procedimentais a respeito de
quais são os resultados justos (quais são os princípios justos).
220
procedimento. Para estabelecer uma diferença entre, por um lado, essas condições (quer
dizer, as condições para a justiça do procedimento e dos princípios que dele vão
resultar), e, por outro lado, a justiça do conteúdo dos princípios (quer dizer, a justiça
conteudística dos princípios), - para estabelecer essa diferença, o contratualista pode
chamar essas condições de condições formais da justiça. Trata-se de condições que
precisam ser consideradas e respeitadas no procedimento em que os indivíduos-
legisladores avaliam e discriminam a justiça conteudística dos princípios. Mais
precisamente, trata-se de condições que precisam ser cumpridas para que o
procedimento contratualista possa ser considerado neutro e, por conseguinte, justo.
Trata-se de condições que, ao garantirem a neutralidade do próprio procedimento,
garantem sua justiça – e que, ao garantirem a justiça do próprio procedimento, garantem
também, por intermédio deste, a justiça dos princípios que resultam do procedimento.
Ora, pode-se falar de, pelo menos, três condições formais: 8 coerência (para
avaliar a justiça conteudística dos princípios, os participantes do procedimento
contratualista devem atentar para o fato de que os princípios deverão ser aplicados de
forma coerente); igualdade e simetria entre os indivíduos-legisladores (a determinação
de quais são os princípios conteudisticamente justos não pode ser minimamente
influenciada por desigualdades de poder entre os participantes do procedimento);
imparcialidade dos indivíduos-legisladores (ao avaliarem a justiça conteudística dos
princípios, os participantes não devem ser influenciados por considerações de ordem
afetiva, quer dizer, considerações ditadas pelo peso afetivo de interesses estritamente
particulares ou pessoais).
Como resultado do que vem sido dito, podemos afirmar que a idéia básica do
contratualismo pode agora ser expressa da seguinte maneira. Ainda que, partindo do
lado mais afetivo da sua personalidade, os concernidos possam atribuir grande peso às
suas respectivas concepções do que seja uma boa vida, eles ao mesmo tempo
reconhecem, partindo do lado mais razoável da sua personalidade, que as considerações
ditadas pelas condições formais de justiça devem ter prioridade sobre tais concepções.
No segundo momento da lógica contratualista, em outras palavras, a tese da prioridade
do justo sobre o bom muda de significado: não se trata mais de afirmar que princípios
8
Nesse momento da argumentação, estou recorrendo à apresentação que Rawls faz de um possível
procedimento neutro, no mencionado artigo The Priority of Right and Ideas of the Good. Ver Political
Liberalism, p.191/192. A apresentação feita por Rawls nesse artigo, com efeito, parece-me bem
representativa, não só da sua própria posição a respeito do que seria um procedimento neutro, mas, de
modo mais abrangente, da própria idéia geral de um procedimento neutro.
221
formais da justiça, mas, muito mais, aos elementos decisórios que são necessários para
dar “enchimento” a essas condições, os quais estão referidos a valores
conteudisticamente determinados. É aqui, justamente, que se estabelece a diferença
entre o senso de justiça do legislador deontológico e o senso de justiça do legislador
utilitarista.
O que acontece agora com a tese da prioridade do justo sobre o bom? Antes de
mais nada, pintemos em cores fortes as dificuldades que essa tese enfrenta a partir de
agora – que estão por sua vez relacionadas a dificuldades de ordem mais geral. Se os
princípios de justiça acabam inevitavelmente envolvendo um certo favorecimento de
uma dada concepção de boa vida, em detrimento de outras, e se esse favorecimento não
pode mais ser razoavelmente justificado com base, apenas, em considerações referidas a
condições formais (de razoabilidade ou justiça) compartilhadas por todos os
concernidos, então parece ser preciso concluir que é a preferência por essa concepção
(de boa vida), e não um senso de justiça supostamente comum e compartilhado, que
representa o verdadeiro ponto de partida da escolha dos princípios justos. Isso parece
significar duas coisas: em primeiro lugar, que essa preferência (por uma concepção de
boa vida) é por assim dizer anterior aos próprios princípios de justiça; em segundo
lugar, que ela dá o tom ao próprio senso de justiça a que cada indivíduo ou grupo
recorre na escolha dos “seus” princípios de justiça.
Dessas considerações, por sua vez, parecem resultar duas conclusões. Em
primeiro lugar, parece que, nesse caso, é preciso abandonar a tese da prioridade do justo
sobre o bom, e admitir que, afinal de contas, o bom tem prioridade sobre o justo. Em
segundo lugar – e esse é o ponto mais grave -, considerando que a tese da prioridade do
justo sobre o bom representa a resposta contratualista ao problema de justificação
gerado pelo irredutível pluralismo das concepções de boa vida, o abandono dessa tese
parece implicar que, num cenário de conflito irredutível entre as concepções de boa
vida, não se pode mais ter a pretensão de justificar um determinado princípio de justiça
– o máximo que se pode fazer é apregoar seus méritos, quer dizer, apregoar os méritos
da concepção de boa vida a que ele está vinculado.
A questão pode ainda ser exposta em cores menos fortes, da seguinte maneira.
Uma vez que a tese da prioridade do justo sobre o bom está intimamente associada à
tese de que, mesmo na eventualidade de que os princípios de justiça envolvam
favorecimento de uma dada concepção de boa vida, esse favorecimento pode ser
razoavelmente justificado com base em considerações de razoabilidade que podem ser
224
privadas caso se refiram, não àquilo que é bom para o indivíduo (quer dizer, não à boa
vida individual), mas, sim, àquilo que é justo. É claro que “o justo” não está mais
apontando aqui para condições, restrições e limites de caráter meramente formal; em
outras palavras, ele não está mais apontando para condições e restrições que devem ser
impostas à busca do alvo (fim) propriamente dito. Ao contrário, ele representa aqui,
precisamente, o alvo (fim) propriamente dito. E é justamente pelo fato de “o justo” estar
representando aqui o fim propriamente dito que ele também pode ser chamado de
“bom”, “valioso” – quer dizer, o politicamente bom e valioso. Em outras palavras, o
fundamento a que os contratualistas têm agora de recorrer só pode vincular-se às
intuições sobre o que é politicamente bom ou valioso – quer dizer, “substancialmente
justo”. Para recorrer a esse fundamento, entretanto, eles têm de conseguir separar tais
intuições das opiniões pessoais e privadas a respeito do que é “bom para o indivíduo”.
Caso eles consigam efetuar essa separação, eles conseguirão, também, manter a tese da
prioridade do justo sobre o bom – entendendo-a como prioridade das intuições a
respeito do “substancialmente justo” (ou seja, a respeito do “politicamente
bom/valioso”) sobre, por outro lado, as opiniões a respeito do “bom para o indivíduo”
(ou seja, a respeito da “felicidade privada”).
***
Recapitulemos e concluamos.
No terceiro momento de sua Lógica, os contratualistas têm de admitir duas
coisas. Primeiro, que a única possibilidade que lhes resta consiste em descrever sua base
de justificação em termos de “intuição”; segundo, que há diferentes bases de
justificação, correspondendo a diferentes intuições. Entretanto, para salvar a tese da
prioridade do justo sobre o bom, os contratualistas podem tentar estabelecer a seguinte
distinção. Uma coisa é a intuição sobre qual é a boa vida, ou seja, a vida que os
indivíduos devem buscar na dimensão não-política da sua existência; outra coisa é a
intuição sobre quem é o cidadão justo e qual é a polis (esfera política) justa. Uma coisa
é a intuição acerca daquilo que é valioso na vida (não-política) dos indivíduos; outra
coisa é a intuição acerca daquilo que é valioso na esfera política ocupada pelos
cidadãos. É essa última (intuição) que configura o senso de justiça a que cada cidadão
recorre para robustecer as prioridades e razões que estão na base da sua escolha dos
princípios de justiça. E é no terreno dessa intuição que os indivíduos-legisladores
podem dialogar, e nesse sentido se aproximar – ainda que inevitavelmente subsistam
diferenças entre eles.
227
diferentes projetos. Mas ao propor que os princípios de justiça digam respeito, apenas, a
tais recursos, o contratualista está sugerindo, obviamente, que eles digam respeito,
apenas, à distribuição de tais recursos entre os diversos concernidos. Assim, para que os
princípios de justiça atendam ao requisito de neutralidade, não basta que os recursos
básicos sejam neutros em relação aos diferentes projetos de vida; é preciso, também,
que se possa pensar numa distribuição desses recursos que seja igualmente neutra, quer
dizer, neutra em relação à capacidade e oportunidade dos indivíduos de perseguirem e
realizarem diferentes projetos de vida.
Ora, em situações de escassez e conflito, esses dois requisitos são
manifestamente problemáticos. E aqui, com efeito, é preciso enfatizar a distinção entre,
por um lado, uma situação ideal de escolha, na qual a escolha dos concernidos não é
premida por dilemas e conflitos mais urgentes, e, por outro lado, situações de escassez e
conflito, que se caracterizam, justamente, pela forte pressão desses dilemas e conflitos.9
É óbvio que, partindo-se de uma situação ideal, quer dizer, de uma situação
artificialmente depurada de certos conflitos mais prementes, é perfeitamente plausível
afirmar que há certos recursos que todos os indivíduos querem igualmente possuir,
independentemente dos variados projetos de vida que eles, por outro lado, querem
perseguir. É igualmente óbvio que, partindo-se de uma situação desse tipo, é
perfeitamente possível imaginar uma distribuição desses recursos que seja neutra em
relação a esses projetos, quer dizer, que não implique proteção ou favorecimento de um
desses projetos, em detrimento de outros.
9
As implicações dessa distinção são muito bem apresentadas por David Lyons, num artigo de crítica a
Rawls intitulado Nature and Soundness of the Contract and Coherence Arguments, publicado em
Daniels, Norman (ed.), Reading Rawls, New York, Basic Books, 1975, p.141-167. Mais precisamente,
Lyons expõe as implicações dessa distinção para o debate entre deontologismo e utilitarismo, destacando
que os deontólogos muitas vezes cometem a injustiça de apresentar certas escolhas que os utilitaristas (só)
sugerem em situações de escassez e conflito como se elas estivessem sendo sugeridas numa situação
ideal. Com isso, obviamente, tais escolhas tornam-se presa fácil, e os deontólogos demolem tais escolhas
como se estivessem demolindo os próprios princípios utilitaristas.
A idéia que o artigo de Lyons sugere é a seguinte. Numa situação ideal de escolha, as escolhas
dos deontólogos e dos utilitaristas resultam muito semelhantes, a despeito das diferenças nos critérios
fundamentais. Só que, numa situação desse tipo, tais escolhas parecem muito melhor justificadas a partir
dos critérios deontológicos, e esse fato se explica da seguinte maneira: enquanto os critérios
deontológicos estão predominantemente voltados para as escolhas numa situação ideal, os critérios
utilitaristas estão predominantemente voltados para escolhas em situações de conflito. Mas o fato de,
numa situação ideal, as escolhas fundamentais, apesar de igualmente feitas por deontólogos e utilitaristas,
parecerem melhor justificadas a partir dos critérios deontológicos, – tal fato não implica que, em situações
de conflito, nas quais as escolhas vão realmente se diferençar, os critérios deontológicos vão funcionar
igualmente bem, ou seja, não implica que, numa avaliação despida de preconceitos anti-utilitaristas
oriundos do fato acima referido, as escolhas baseadas nos critérios deontológicos vão parecer mais
plausíveis do que as baseadas nos critérios utilitaristas. Assim, para sermos justos com o utilitarismo,
temos de comparar o modo como seus critérios funcionam em situações de conflito com o modo como
funcionam, em situações desse mesmo tipo, os critérios deontológicos.
231
palavras, ele poderia dizer que, diante desses dois pacotes alternativos, ou 10 moedas
com mais liberdade ou 15 moedas com menos liberdade, os concernidos, se forem
razoáveis, vão unanimemente preferir o segundo pacote, pois é ele que melhor atende às
condições que definem a noção de “recursos básicos” (a saber, recursos que são
igualmente desejados por todos os concernidos, independentemente do projeto de vida
que possam por outro lado preferir). Em resposta a essas afirmações, o partidário da
renda de 10 moedas poderia dizer várias coisas. Em primeiro lugar, ele poderia dizer
que não aceita trocar a restrição da liberdade por um aumento de 5 moedas, uma vez
que a renda de 10 moedas é razoavelmente adequada, ou seja, atende perfeitamente às
condições que definem a noção de “recursos básicos”, ao passo que o aumento de 5
moedas deve ser visto como um recurso “extra”. A essa primeira afirmação ele
imediatamente acrescentaria, a título de conseqüência, a afirmação de que, mesmo com
uma renda de 10 moedas, a liberdade continua a valer como um recurso básico, ou seja,
um recurso que todos, se forem razoáveis, querem igualmente possuir, por verem nela
algo de que podem proveitosamente se servir para perseguirem seus respectivos (e
variados) projetos de vida. Em terceiro lugar, ele poderia afirmar que o partidário das 15
moedas só julga as 10 moedas insuficientes, e só aceita trocar a liberdade por um
aumento de 5 moedas, - só faz isso em virtude de certos desejos extravagantes e
irrazoáveis, oriundos de um projeto de vida desmedidamente materialista (e é
justamente por isso que o aumento de 5 moedas deve ser visto como um recurso extra).
A isso o partidário das 15 moedas poderia responder o seguinte: quem abraça interesses
extravagantes e irrazoáveis é o defensor das 10 moedas; ele só julga que, mesmo com
uma renda de 10 moedas, a liberdade continua a valer como um recurso básico, quer
dizer, ele só não aceita trocar uma restrição da liberdade por um aumento de 5 moedas, -
ele só faz isso em virtude, justamente, desses seus interesses extravagantes e
irrazoáveis, vinculados a um projeto de vida abusivamente metafísico. Sendo assim, é a
liberdade, e não o aumento de 5 moedas, que deve ser vista como um recurso extra.
O que estou querendo sugerir é o seguinte. Numa situação em que surge um
conflito quanto a quais recursos são “básicos” e quais são “extras”, quer dizer, numa
situação em que é preciso escolher quais recursos devem ser considerados “básicos” e
quais devem ser considerados “extras”, não se pode mais encarar os recursos em
questão desde a perspectiva de sua suposta neutralidade, mas é preciso encará-los desde
o ponto de vista de sua maior ou menor adequação (serventia) a este ou àquele projeto
de vida. Nesse tipo de situação, um esquema distributivo (ou seja, um princípio de
234
10
Gostaria de fazer duas observações sobre o passo que estou dando nesse momento da minha
argumentação. Em primeiro lugar, gostaria de destacar que estou usando o “véu da ignorância” como um
recurso conceitual que pode ser considerado representativo do contratualismo em geral, e não apenas do
contratualismo deontológico de Rawls. Para justificar esse uso, gostaria de repetir uma afirmação de
Harsanyi que já citei em meu primeiro capítulo – lembrando que Harsanyi representa um dos expoentes
mais importantes e influentes do utilitarismo. Trata-se de uma afirmação em que Harsanyi reconhece a
grande semelhança entre o “véu da ignorância” de Rawls e, por outro lado, o recurso conceitual que ele
próprio usou para satisfazer à condição formal da imparcialidade, a saber, o princípio da
“eqüiprobabilidade”. A passagem de Harsanyi é a seguinte (Morality and the Theory of Rational
Behaviour, p.47): “Meu modelo da eqüiprobabilidade foi inicialmente publicado em 1953, e desenvolvido
em 1955. Vickrey (outro utilitarista – A.S.B.) havia sugerido uma idéia semelhante, mas meu trabalho foi
independente do seu. Mais tarde, John Rawls, de novo de forma independente, propôs um modelo muito
semelhante, que ele chamou de ‘posição original’, baseada no ‘véu de ignorância’. Porém, enquanto meu
modelo serviu de base para uma teoria utilitarista, Rawls derivou conclusões fortemente não-utilitaristas
do seu próprio modelo. Mas a diferença não reside na natureza dos dois modelos, que são baseados em
suposições qualitativas praticamente idênticas. A diferença reside, sim, na análise de teoria da decisão que
é aplicada aos dois modelos.”
A segunda observação que gostaria de fazer é a seguinte. Nesse momento da argumentação,
passo por cima do fato de que, ao propor o véu da ignorância em Uma Teoria da Justiça, Rawls o
encaixou, não tanto no contexto das noções de razoabilidade e senso de justiça, mas, antes, no contexto da
noção de escolha racional, orientada pelo interesse próprio. Parece óbvio, com efeito, que o véu da
ignorância pode ser transferido, sem alterações significativas (nem perdas substantivas), do contexto da
deliberação/escolha racional para o contexto da deliberação/escolha razoável (ou seja,
deliberação/escolha guiada pelo senso de justiça, ou pela capacidade deliberativa da razoabilidade). Em
ambos os casos, trata-se, do mesmo modo e na mesma medida, de garantir a imparcialidade, quer dizer, a
impossibilidade de se transferirem para a escolha do legislador critérios avaliativos que expressem
interesse ou preferência por uma dada concepção de boa vida.
Nas próximas seções do presente capítulo, tentarei mostrar que, ao contrário do que pensa
Scanlon em Contractualism and utilitarianism, a distinção entre escolha “racional” e escolha
“razoável/justa” não é tão relevante assim – desde que a escolha racional esteja submetida à condição da
imparcialidade. Mais precisamente, tentarei mostrar que essa distinção não tem relevância, nem para a
compatibilidade do utilitarismo com o contratualismo, nem para a avaliação dos méritos desse
contratualismo utilitarista (ela na verdade tem muito mais relevância para a avaliação dos méritos do
contratualismo deontológico). Mesmo que o contratualismo recorra, como deve recorrer, à noção de
“razoabilidade”, em vez de à noção de “escolha racional”, isso ainda não decide a disputa entre
utilitarismo e deontologismo, uma vez que, ainda que as críticas de Harsanyi ao deontologismo de Rawls
tenham visado a “escolha racional” feita pelo deontólogo rawlsiano, quer dizer, ainda que Harsanyi tenha
vinculado a defesa do utilitarismo à crítica da “escolha racional” feita pelo deontólogo rawlsiano, - ainda
assim a posição utilitarista não é dependente da noção de escolha racional (orientada pelo interesse
próprio), mas pode, perfeitamente, recorrer à noção de decisão razoável/justa, tal como embutida no
procedimento contratualista proposto por Scanlon.
236
seguinte: num contexto de conflito irredutível entre duas concepções de boa vida, e
supondo-se que não é possível afirmar que uma dessas concepções é mais (ou menos)
legítima do que a outra, ser imparcial consiste em escolher a concepção preferida pela
maioria – ser imparcial é orientar-se pelo valor substantivo “maior satisfação global
possível”. A implicação desse primeiro critério é a seguinte. Se a minha concepção de
boa vida é minoritária em relação à outra, eu (qualquer um) tenho de admitir que é
razoável (justo) que a concepção majoritária goze de prioridade, e eu tenho de aceitar –
seria irrazoável rejeitar – princípios de justiça que expressem essa prioridade.
Suponhamos que a minha concepção de boa vida – a minoritária – seja aquela que
prefere o pacote “10 moedas com mais liberdade”, e que a concepção majoritária seja
aquela que prefere o pacote “15 moedas com menos liberdade” (É óbvio que
poderíamos também supor o contrário com relação a qual seria a concepção
minoritária). Nesse caso, meu senso de razoabilidade e justiça manda que eu aceite um
princípio de justiça que implique uma escolha pelo segundo pacote, - mesmo que esse
princípio envolva prejuízo para o meu projeto de vida (ou seja, diminua minha
capacidade e oportunidade de perseguir meu projeto).11
Como foi sugerido acima, o critério do maior número está associado ao valor
substantivo da maior quantidade de satisfação (ou de frustração) na sociedade. Trata-se
do critério de decisão adotado pelo contratualismo utilitarista. O argumento que
embasa esse critério é o seguinte. Suponhamos que se tenha chegado a admitir que, do
ponto de vista político (normativo), não é possível determinar que um primeiro projeto
de vida seja mais (ou menos) legítimo do que um segundo, nem que o interesse no
primeiro projeto seja mais (ou menos) relevante do que o interesse no segundo – nem,
conseqüentemente, que a satisfação vinculada ao atendimento do primeiro interesse seja
mais (ou menos) relevante do que a satisfação vinculada ao atendimento do segundo.
11
No capítulo 4 de seu livro Political Equality (Princeton University Press, 1989), mais precisamente nas
páginas 84-91, Charles Beitz também apresenta um argumento de derivação da regra da maioria a partir
do critério formal da imparcialidade – é importante mencionar que Beitz não deseja endossar o
argumento, ao contrário, ele o apresenta para criticá-lo. No argumento apresentado por Beitz, entretanto, a
noção de imparcialidade é embutida, não no contexto do “senso de justiça”, mas no contexto da “escolha
racional” (orientada pelo interesse próprio). A regra da maioria é apresentada como a “escolha ótima” de
indivíduos racionais submetidos à condição restritiva da ignorância quanto a seus interesses e preferências
(p.88). Parece-me óbvio, entretanto, que a regra da maioria pode igualmente ser apresentada como a
“escolha justa” de indivíduos que, sendo razoáveis, não desejam dar peso indevido (ilegítimo), nem a seus
próprios interesses e preferências, nem aos de qualquer outro indivíduo. O próprio Beitz aponta para essa
última possibilidade, ao afirmar, um pouco antes de desenvolver sua própria crítica à pretensão de uma
justiça puramente procedimental, que “Muitas vezes se pensa que a imparcialidade exige que se dê igual
peso aos interesses de todos os envolvidos, e é possível que haja um sentido em que a teoria da
imparcialidade que nós esboçamos (aquela que desemboca na regra da maioria – A.S.B.) incorpora essa
idéia.” (P.89).
238
Nesse contexto de igual relevância, o único critério de escolha que pode ser considerado
imparcial (razoável e justo) é o critério numérico e quantitativo – nesse contexto, ser
imparcial só pode consistir em orientar-se pelo critério substantivo da maior satisfação
global possível. Se é inevitável que, em relação aos respectivos projetos de vida, alguns
cidadãos sejam favorecidos e outros desfavorecidos pelos princípios de justiça
escolhidos pela sociedade, e se todos previamente concordaram que não há um meio
razoável para decidir que um determinado projeto é melhor ou pior do que outro, a
razoabilidade (imparcialidade) manda que se escolha aquele princípio de justiça que
satisfaça ao maior número de cidadãos, ou seja, que produza a maior quantidade de
satisfação na sociedade (ou a menor quantidade de frustração). Dizer que eu “caí” no
grupo minoritário equivale a dizer que uma escolha que favoreça o meu grupo produz
menos satisfação do que uma escolha que favoreça o outro grupo. Ora, que justificativa
se poderia razoavelmente apresentar para escolher o princípio que produz a menor
quantidade de satisfação? – supondo-se que nós previamente concordamos que, nesse
caso, não há um meio razoável para determinar que a satisfação de uns seja
politicamente (no sentido normativo) mais (ou menos) relevante ou legítima do que a
satisfação de outros. Se eu (qualquer um) caí no grupo minoritário, é razoável (justo)
que nós sejamos desfavorecidos e frustrados. Se os outros, mesmo sendo em maior
número, fossem desfavorecidos e frustrados, e não nós, manifestar-se-ia aí uma
preferência irrazoável (injusta) pelo nosso projeto de vida e pela nossa satisfação.
Manifestar-se-ia aí, justamente, “falta de imparcialidade”.
A segunda possibilidade de se interpretar o critério formal da imparcialidade
consiste no seguinte argumento. Para você ser imparcial, você deve avaliar, não o peso
do maior número e da maior quantidade de satisfação, mas a significação por assim
dizer qualitativa das eventuais perdas, quando comparadas a possíveis não-perdas. 12
Desse segundo ponto de vista, o critério formal deve ser complementado pelo critério
substantivo da “consideração pelo perdedor”; pode-se dizer, por paradoxal que possa a
princípio soar, que “ser imparcial” consiste em impedir certos tipos de perda, ou, pelo
menos, impedir que certos tipos de perda se tornem mais profundas – trata-se das perdas
que têm origem na parcialidade dos deuses. Ser imparcial é ter consideração por esse
12
Ao apresentar essa segunda maneira de se interpretar o critério formal da imparcialidade, estou me
servindo, mais uma vez, das preciosas lições que T. Scanlon desenvolve em seu artigo Contractualism
and utilitarianism. Nas próximas seções (5.3.2 e 5.3.3), apresentarei a posição de Scanlon de forma mais
minuciosa.
239
tipo de perda, é ter consideração pelo indivíduo que foi (ou está sendo) prejudicado pela
parcialidade da Fortuna.
Nas próximas seções (5.3.2 e 5.3.3), tentarei expor essa posição de forma mais
precisa e detalhada – trata-se do critério de decisão adotado pelo contratualismo
deontológico. Gostaria, entretanto, de adiantar o seguinte. Na perspectiva desse
segundo critério (quer dizer, dessa segunda maneira de se dar conteúdo ao critério da
imparcialidade), o partidário do primeiro critério peca ao apresentar a questão em
termos de “inevitavelmente, uns perdem e outros ganham, e o problema reduz-se a
escolher quem deve perder e quem deve ganhar”. Na perspectiva desse segundo critério,
além disso, o partidário do primeiro critério peca ao argumentar que, para escolher
quem deve perder e quem deve ganhar, o cenário em que uns indivíduos (chamemo-los
de “A”) perdem e outros (chamemo-los de “B”) ganham deve ser comparado ao cenário
contrário, em que os primeiros indivíduos (“A”) ganham e os segundos (“B”) perdem,
para que se possa determinar qual dos dois cenários produz maior quantidade de
satisfação. Na perspectiva dessa segunda maneira de se interpretar a imparcialidade, a
maneira correta de apresentar a questão é: até que ponto/limite uns devem perder para
permitir o ganho de outros, e até que ponto/limite esses outros devem deixar de ganhar
para permitir a não-perda dos primeiros? Na perspectiva desse segundo critério,
conseqüentemente, o cenário a ser comparado ao cenário em que uns indivíduos perdem
e outros ganham deve ser descrito, não como um cenário em que os primeiros
indivíduos ganham e os segundos (os outros) perdem, mas, sim, como um cenário em
que os primeiros indivíduos deixam de perder e os segundos (os outros) deixam de
ganhar.
Assim, a tese de que a perda de um está vinculada ao ganho de um outro precisa
ser complementada pela tese de que a não-perda de um está vinculada ao não-ganho de
um outro. A partir disso, é preciso perceber a significação qualitativa de que se reveste o
cenário em que um perde e outro ganha, quando comparado ao cenário em que um não
perde e o outro não ganha (ou seja, deixa de ganhar). Dependendo do significado
qualitativo da sua perda, vinculado ao significado qualitativo daquilo que o outro
deixaria de ganhar para permitir sua possível não-perda, a perda que um indivíduo
sofreria para permitir o ganho do outro pode e deve ser considerada como “irrazoável,
injusta”. Assim, mesmo que a perda de um único indivíduo esteja vinculada aos ganhos
de muitos outros, isso não basta para justificar a afirmação de que seria irrazoável esse
indivíduo recusar essa perda (quer dizer, taxá-la de injusta). É preciso avaliar a
240
13
Esse ponto é importante, a fim de evitar certas críticas a meu ver equivocadas ao ideal de uma justiça
puramente procedimental. Charles Beitz, por exemplo, ataca esse ideal com a afirmação de que um
procedimento “formalmente” justo não consegue (não é capaz de) levar em consideração diferenças
significativas “na importância ou urgência dos interesses que estão em jogo na política” (Political
Equality, cap.4, p.90). A meu ver, a falha de uma justiça puramente procedimental reside, não no fato de
ela ser incapaz de levar em consideração as diferenças entre os indivíduos, e as diferenças entre suas
demandas, mas no fato de que, sem juízos “extra-procedimentais” a respeito de quais são os resultados
justos, ela não é capaz de determinar que valor se deve respectivamente atribuir àquelas demandas que ela
admite e reconhece como significativamente diferentes.
241
trazem consigo é, não o poder que contingentemente têm na sociedade concreta, mas as
razões que podem ser apresentadas (e reconhecidas) em favor de suas demandas.
Assim, se supusermos que um (cada) indivíduo-legislador representa uma
demanda presente na sociedade, concluiremos que, ao entrarem no procedimento, todas
as demandas são, num certo sentido, iguais; no sentido, mais precisamente, de que elas
entram no procedimento com o mesmo peso, quer dizer, elas não entram carregando
consigo o peso que respectivamente (e contingentemente) apresentam na sociedade
concreta – na medida, justamente, em que esse peso “social” está inevitavelmente
vinculado às desigualdades de poder que se manifestam na sociedade concreta. Em
outras palavras, se o peso de uma demanda expressa o poder do indivíduo (ou grupo)
que a apresenta, todas as demandas entram no procedimento com o mesmo peso – o que
não significa, mais uma vez, que o procedimento deva lhes atribuir a mesma relevância
ou valor. Uma das características do procedimento normativo do contratualismo é,
justamente, a necessidade de se estabelecer uma distinção entre, por um lado, o peso
que uma demanda empiricamente apresenta (que está ligado ao poder, em sentido
amplo, que seus proponentes empiricamente têm), e, por outro lado, a relevância ou
valor que se deve atribuir a ela (que está ligada às razões que podem ser apresentadas
em seu favor).
Assim, a demanda de um indivíduo talentoso decerto entra no procedimento
como uma demanda vinculada à figura do indivíduo talentoso, - quer dizer, ao entrar no
procedimento ela carrega consigo as razões que especificamente podem ser
apresentadas em seu favor; mas ela não carrega o peso que a sociedade concreta
contingentemente concede às demandas do indivíduo talentoso – na medida, justamente,
em que esse peso é determinado, não por razões propriamente ditas, mas pela simples
satisfação que os indivíduos talentosos empiricamente propiciam (ou tendem a
propiciar) à sociedade em geral. Isso não significa, evidentemente, que a provável
satisfação “concreta” não possa ser tomada como uma razão propriamente dita; é claro
que ela pode – mas não pode se tratar de uma identificação imediata, é preciso que haja
uma “assunção argumentativa”: a satisfação precisa, por assim dizer, ser “elevada” ao
plano das razões propriamente ditas.
O problema da condição formal da igualdade é, justamente, sua indeterminação
e insuficiência. A condição formal da igualdade diz o seguinte: ao entrarem no
procedimento, todas as demandas entram com o mesmo peso. Ora, isso significa que, ao
entrarem no procedimento, as demandas devem ser encaradas e discutidas com igual
242
14
Em seu artigo Resposta a Habermas (Conferência IX de Political Liberalism), ao defender a tese de
que se deve abandonar o ideal de uma justiça puramente procedimental, Rawls faz a seguinte afirmação:
“A descrição de Habermas do procedimento de raciocínio e argumentação nos discursos ideais é
incompleta. Não fica claro que formas de argumentação podem ser usadas, mas essas têm grande
importância na determinação do resultado. Deveríamos pensar, como ele parece sugerir, que se deve dar,
no discurso ideal, igual consideração aos interesses de cada pessoa? Quais são os interesses relevantes?
Ou todos os interesses devem ser contados, como algumas vezes se faz ao se aplicar o princípio da igual
consideração? Isso poderia resultar no princípio utilitarista de satisfazer o maior saldo de
interesses.” (Political Liberalism, p.430 – o grifo é meu).
Sem entrar na procedência da crítica a Habermas, é óbvio que Rawls está enfatizando aqui o fato
de que o princípio (formal, procedimental) da igual consideração pode perfeitamente ser interpretado em
termos utilitaristas. É óbvio, por outro lado, que ele dá por certo que esse princípio também pode ser
interpretado em termos deontológicos. Isso significa, precisamente, que a condição da igualdade formal,
243
por “procedimentalmente” justa que seja, não é capaz de determinar um resultado preciso, e pode levar a
um resultado que nós tenderíamos a considerar “injusto” – o que nos levaria a afirmar que o próprio
procedimento, na medida em que levou a um resultado injusto, é injusto. É por isso que se deve
abandonar a idéia de uma justiça puramente procedimental, e abraçar a idéia de que a justiça do
procedimento está inextricavelmente ligada à justiça dos resultados a que o procedimento leva.
Sobre o tema das relações entre justiça do procedimento e justiça dos resultados, ver também
Cohen, Joshua: Pluralism and Proceduralism, in Chicago-Kent Law Review, vol.69, 1994, p.589-618.
244
óbvio que, para ocupar a posição de legislador, esse indivíduo precisa atender, de modo
perfeito, não apenas às condições da racionalidade, mas também às condições da justiça,
entendidas como condições que restringem, externamente, a busca racional do interesse
próprio. Dentre essas condições “externas” da justiça, avulta, precisamente, a condição
da imparcialidade. Assim, o indivíduo-legislador precisa poder ser visto como
expressão perfeita da racionalidade e da imparcialidade.
Suponhamos que um determinado princípio se apresente como candidato à
posição de lei universal. Enquadrado nas condições da racionalidade e da
imparcialidade, de que modo o indivíduo legislador deveria raciocinar, para avaliar se
deveria escolher esse princípio como lei universal – lembrando que ele se orienta pelo
interesse próprio? Consideremos o indivíduo-legislador retratado em Uma Teoria da
Justiça. Lembremos em primeiro lugar que, para enquadrar-se nas condições da
imparcialidade, esse indivíduo está submetido ao véu da ignorância – ele não conhece
nem seu projeto de vida, nem sua posição na estrutura social, nem seus dotes físicos,
mentais e psicológicos.
Partindo dessa questão, quer dizer, da questão assim formulada, e passando por
cima de dificuldades interpretativas mais específicas16, não parece incorreto atribuir a
Uma Teoria da Justiça a tese de que esse indivíduo deve raciocinar como se estivesse
no lugar do indivíduo que, tendo sido o mais prejudicado pelas casualidades naturais e
sociais, pode ser classificado como “o perdedor”. A posição de perdedor pode ser
preenchida de diversas formas, dependendo da casualidade que se focalize. Para
16
Essas dificuldades dizem respeito ao lugar, função e significado que se pode atribuir ao critério
maximin em Uma Teoria da Justiça. Em princípio, ao ser tomado como critério da escolha racional, o
critério maximin fica restrito ao âmbito da questão sobre a distribuição da renda, ou seja, fica restrito à
escolha do “princípio da diferença”, e não desempenha nenhuma função na escolha do princípio da
prioridade das liberdades. Entretanto, o primeiro argumento que Rawls apresenta para a prioridade das
liberdades em The basic liberties and their priority representa uma clara aplicação do critério maximin,
onde o lugar do perdedor é ocupado pelas concepções de boa vida socialmente minoritárias (Conferir
Political Liberalism, p.311-312).
O ponto que estou tentando defender é o seguinte: partindo das críticas que Scanlon faz ao procedimento
contratualista baseado na noção de escolha racional, é possível “alargar” o critério maximin, de modo a
poder traduzir seu sentido fundamental, do contexto dos critérios de racionalidade para o contexto dos
critérios de razoabilidade. A meu ver, com efeito, as críticas de Harsanyi ao critério maximin como
critério de escolha racional são irrefutáveis, e tanto Rawls quanto Scanlon acabam admitindo isso.
Entretanto, mesmo que o critério maximin deva ser abandonado como critério de escolha racional, talvez
seu sentido último possa ser preservado, e transplantado para o contexto da noção de razoabilidade. Para
isso, entretanto, é preciso interpretá-lo de uma maneira um tanto alargada, a saber: já em Uma Teoria da
Justiça, o sentido último do critério maximin reside na recomendação de que é preciso considerar o
significado qualitativo das perdas do perdedor. E essa consideração pelo perdedor está referida à ênfase
na dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos, ao passo que as considerações
predominantemente quantitativas vinculadas aos critérios de racionalidade e razoabilidade defendidos
pelos utilitaristas referem-se à dimensão “realista” da competição dos cidadãos por recursos escassos.
Discutirei esse argumento na próxima nota, e também no corpo principal do trabalho.
246
17
Como disse na nota anterior, para encaixar o critério maximin no contexto da minha discussão nesse
momento, quer dizer, para encaixá-lo no contexto do critério de razoabilidade que Scanlon defende
mediante reflexão sobre as falhas que Harsanyi apontou no critério de racionalidade envolvido em Uma
Teoria da Justiça, - para fazer isso, estou efetuando um alargamento do critério maximin, tal como
exposto no primeiro livro de Rawls. Ao ser desse modo alargado, o critério maximin passa a ficar
envolvido, não apenas na defesa do “princípio da diferença” (referido, grosso modo, à distribuição de
renda), mas também na defesa do princípio da prioridade das liberdades, prescrevendo que é preciso levar
em consideração o interesse dos grupos minoritários – dos “perdedores numéricos” – nas liberdades, e
que tal interesse não pode ser suplantado, apenas, pelo peso quantitativo da satisfação dos “ganhadores
numéricos” (os grupos socialmente majoritários).
Mas, e se o grupo minoritário (o dos perdedores numéricos) for aquele que prefere o pacote “menos
liberdade e renda de 15 moedas”? Ao recomendar consideração pelos perdedores, o critério maximin
implicaria nesse caso restrição da liberdade, para permitir um aumento de 5 moedas na renda? Ora, se
interpretarmos o critério maximin em termos de oposição às considerações predominantemente
quantitativas dos critérios de racionalidade e razoabilidade defendidos pelos utilitaristas, veremos que a
coisa não é bem assim. Antecipando um argumento que será exposto no corpo principal do trabalho,
poderíamos defender a seguinte interpretação do critério maximin. Contra as considerações quantitativas
do utilitarismo, é preciso considerar o significado qualitativo das perdas do perdedor. E considerar o
significado qualitativo das perdas do perdedor vincula-se à ênfase na dimensão normativa da cooperação
entre os cidadãos, ao passo que as considerações predominantemente quantitativas vinculam-se à ênfase
na dimensão “realista” da competição dos cidadãos por recursos escassos. No conflito entre “liberdade” e
“renda”, a questão fundamental não é quantos preferem mais liberdade e quantos preferem mais renda. A
questão é que, em princípio, a preferência por “liberdade” vincula-se mais à dimensão normativa da
cooperação entre os cidadãos, ao passo que a preferência por “renda”, em princípio, vincula-se mais à
dimensão realista da competição dos cidadãos por recursos escassos. Se o sentido último do critério
maximin reside na ênfase na dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos (contra a ênfase na
dimensão realisticamente competitiva associada às considerações quantitativas do utilitarismo), então,
mesmo que os partidários da renda sejam numericamente inferiores, sua posição de “perdedores
numéricos” não tem relevância política – na medida, justamente, em que a relevância política da
consideração pelo perdedor está vinculada à ênfase na dimensão normativa da cooperação entre os
cidadãos, a qual sugere que a preferência por renda deve ceder o passo à preferência por liberdade.
247
18
Conferir Harsanyi, Can The Maximin Principle Serve as a Basis for Morality? A Critique of John
Rawls’s Theory (1975), in Harsanyi, John: Essays in Ethics, Social Behaviour, and Scientific
Explanation. Dordrecht, Reidel Pub. Co., 1976, p.37-63.
É verdade que Rawls havia tentado argumentar que o indivíduo racional não deveria usar
probabilidades na escolha efetuada na posição original. Mas Harsanyi demole esse argumento com
críticas a meu ver irrefutáveis – desde que se tome a escolha racional como uma escolha orientada pelo
interesse próprio. Ver, a esse respeito, a seção 6 do referido artigo de Harsanyi (p.46-48). Tendo em vista
os propósitos da minha argumentação nesse momento, posso passar por cima dos detalhes desse último
debate, que envolveu diversos comentadores da obra de Rawls.
19
Tendo em vista os propósitos da minha argumentação nesse momento, posso passar por cima dos
detalhes do raciocínio de Harsanyi para essa conclusão.
248
A partir desse novo eixo, a idéia básica de Uma Teoria da Justiça assume um
sentido completamente diferente. Em outras palavras, embora os candidatos a “lei
universal” continuem a ser avaliados desde o ponto de vista do perdedor, essa forma de
avaliá-los assume um significado completamente diferente. Não se trata mais de dizer
que, para escolher qual o princípio correto, o indivíduo imparcial e racional (movido
pelo interesse próprio) deve raciocinar a partir da eventualidade de cair na posição do
perdedor “casual”, de modo a aliviar e melhorar sua sorte. Trata-se sim de dizer que,
para decidir se um determinado princípio poderia ser razoavelmente aceito por todos os
concernidos, o indivíduo razoável deve avaliá-lo desde o ponto de vista dos que
perderiam com sua escolha, para avaliar se suas perdas são irrazoáveis (injustas) ou não.
Com isso, a posição de “perdedor” se torna muito mais complexa. Em primeiro
lugar, o perdedor passa a consistir numa mistura balanceada do “perdedor/ganhador
casual” (ou seja, aquele que foi des/-favorecido pelas contingências da natureza,
sociedade e história) e do “perdedor escolhido” (ou seja, aquele que perde com a
escolha de um determinado princípio político). Chamemos essa figura de “perdedor
combinado”. Mais precisamente, o “perdedor combinado” sempre é o “perdedor
escolhido”, mas o significado qualitativo da sua perda depende do fato de se ele é,
também, um “perdedor casual”, ou se, ao contrário, ele é um “ganhador casual”, alguém
que foi favorecido pelas contingências da vida. Assim, se o perdedor combinado é uma
mistura de perdedor escolhido com ganhador casual, ele é menos perdedor do que
aquele que consiste numa mistura de perdedor escolhido com perdedor casual. Para
avaliar se as perdas dos perdedores (escolhidos) são injustas ou não, é preciso verificar
se elas são compensadas ou, ao contrário, agravadas pelas contingências da história.
Continua a valer a tese de que, em princípio, a melhor escolha (que agora é definida
como a escolha mais razoável) é aquela que alivia a sorte dos perdedores casuais; - só
que, agora, essa tese entra, não no contexto da escolha de um único indivíduo, mas no
contexto de um acordo entre diversos indivíduos, o que significa que, caso sejam
perdedores escolhidos, os ganhadores casuais também podem apresentar suas demandas
de perdedores, temperando-as, de forma razoável, com o fato de serem ganhadores
casuais.
Em segundo lugar – e essa é a conseqüência mais importante da substituição da
noção de escolha racional pela noção de acordo razoável, - o significado qualitativo das
perdas do perdedor escolhido (ou seja, o significado político da posição do perdedor)
associa-se à ênfase na dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos, contra a
249
política ser em princípio menor, a perda de “renda” deve em princípio ser classificada,
não como uma perda propriamente dita, mas, antes, como um “não-ganho”.
20
Ver, por exemplo, Scanlon, Op. Cit., p.123.
251
encaixar um deles na descrição “um não perde e o outro não ganha” – afinal de contas,
faz parte da razoabilidade e do senso de justiça o reconhecimento de que a justiça
política está (e sempre esteve) associada a uma exigência normativa de igualdade,
equilíbrio e harmonia, que representam o sentido fundamental da cooperação entre as
pessoas.
Diante desse movimento do contratualista deontológico, o contratualista
utilitarista poderia lançar o seguinte desafio: o que você quer dizer com “um não perde e
o outro não ganha”? De que modo você aplicaria essa fórmula ao exemplo de dois
grupos que preferem, respectivamente, “(mais) liberdade e renda de 10 moedas” e
“(menos) liberdade e renda de 15 moedas”? E o utilitarista continuaria com seu desafio:
você poderia tentar dizer que “um não perde e o outro não ganha” tem o significado de
“um não perde um bem mais precioso (uma liberdade, por exemplo), e o outro não
ganha um bem menos precioso (um aumento de 5 moedas na renda, por exemplo)”. E
você, deontólogo, poderia tentar explicar essa última fórmula dizendo o seguinte: se os
eventuais ganhadores (os partidários da renda) olharem a questão do ponto de vista
daqueles que sairão perdendo (o grupo da liberdade), eles (os próprios ganhadores)
reconhecerão que, comparando-se o significado qualitativo que o bem perdido (a
liberdade) tem para os perdedores com, por outro lado, o significado qualitativo que o
bem não-ganho (a renda) tem para os que deixariam de ganhá-lo, o primeiro significado
revela-se “mais significativo”.
Se você disser isso, continua o utilitarista, eu pelo meu lado digo: ao
eliminarmos a possibilidade de determinar que um projeto de vida é mais (ou menos)
relevante ou legítimo do que outro, nós simultaneamente eliminamos a possibilidade
desse tipo de comparação dos “significados qualitativos” que os bens têm para os
respectivos interessados. A única comparação possível é quantitativa: qual a medida dos
respectivos interesses? E isso implica: qual a quantidade de satisfação que o
atendimento dos respectivos interesses geraria? Se acatarmos o “fato do pluralismo”,
torna-se impossível dizer que o significado qualitativo que o bem perdido tem para os
perdedores é “mais significativo” do que o significado qualitativo que o bem não-ganho
tem para os que deixariam de ganhá-lo. No contexto do respeito ao “fato do
pluralismo”, não existe uma perspectiva interpessoal que permita esse tipo de
comparação qualitativa – as únicas comparações interpessoais possíveis são as de
natureza quantitativa. Assim, ao dizer que o significado qualitativo que o bem perdido
tem para os perdedores é “mais significativo” do que o significado qualitativo que o
254
bem não-ganho tem para os que deixariam de ganhá-lo, você no fundo está expressando
sua preferência qualitativa pelos perdedores, quer dizer, pela concepção de boa vida dos
perdedores – algo que você mesmo tinha concordado que não podia ser feito.
Em resposta a esse movimento do contratualista utilitarista, o contratualista
deontológico poderia dizer o seguinte. Talvez seja verdade que minha posição implica
preferência por uma certa concepção de boa vida. Mas trata-se de uma preferência
indireta, que expressa uma preferência anterior, essa sim fundamental. E essa
preferência fundamental refere-se, não à concepção de boa vida que os indivíduos
devem perseguir em sua existência não-política, mas à visão de justiça que os cidadãos
e a polis devem adotar e perseguir. Essa preferência fundamental expressa, não minha
opinião a respeito da boa vida individual, mas minha convicção a respeito do fim que os
cidadãos e a polis devem perseguir. Admitindo-se que a justiça representa,
precisamente, o fim (resultado) a ser buscado pela polis, o que está em jogo aqui é
minha crença a respeito de quais são os resultados da interação social que devem ser
considerados (mais) justos. Admitindo-se além disso que, ao ser tomada como o fim da
interação social, a “justiça” também pode ser chamada de “bem” (bem político), o que
está em jogo aqui é minha intuição a respeito de quais são os resultados da interação
social que devem ser considerados politicamente bons ou valiosos.
Embora eu (o deontólogo) admita que haja uma outra visão de justiça, afirmo
que a que deve ser adotada pelos cidadãos e pela polis é aquela que enfatiza a dimensão
normativa da cooperação entre os cidadãos. Em outras palavras, admito que se possa
preferir uma visão de justiça que enfatize não apenas a dimensão da competição dos
cidadãos por recursos e benefícios escassos, mas também a maximização da satisfação
que normalmente se associa a essa dimensão; mas não é essa a visão que eu, pelo meu
lado, prefiro. Prefiro a visão de justiça que enfatiza não apenas a dimensão da
cooperação entre os cidadãos, mas também os fins que logicamente se associam a tal
dimensão, que são a igualdade, equilíbrio e harmonia entre as pessoas. Como disse
acima, admito que minha preferência por essa visão de justiça implica, ao menos em
certos casos, preferência por uma certa concepção de boa vida. Trata-se da concepção
de boa vida que, num eventual conflito (radical) entre, por um lado, os bens (recursos)
mais associados à dimensão da competição dos cidadãos por vantagens (e satisfações)
escassas, como, por exemplo, o bem “renda”, e, por outro lado, os bens mais associados
à dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos, como, por exemplo, o bem
255
“liberdade”, - trata-se da concepção de boa vida que, num conflito desse tipo, escolhe
esses últimos bens.
E o contratualista deontológico continuaria sua resposta ao contratualista
utilitarista da seguinte maneira. O cerne da nossa discussão consiste em diferentes
intuições sobre os resultados justos da interação social. A sua intuição (do utilitarista)
tem por ponto de partida uma ênfase não apenas na dimensão realista da competição dos
cidadãos por vantagens escassas, mas também na maximização da satisfação que
normalmente se associa a essa dimensão. Ao enfatizar esses elementos, você
(utilitarista) é levado a conceber a justiça (o bem da polis) em termos de “é inevitável
que uns percam e outros ganhem”. De acordo com essa visão, justiça e senso de justiça
ordenam que, para decidir quem deve perder e quem deve ganhar, deve proceder-se a
uma avaliação essencialmente quantitativa. De acordo com essa visão, em outras
palavras, a deliberação e a decisão dos indivíduos legisladores devem orientar-se pelos
critérios quantitativos da preferência da maioria e da maximização da satisfação no
conjunto dos cidadãos. E a conseqüência disso é uma teoria da justiça segundo a qual o
bem, no sentido político, deve ser definido, precisamente, em termos de maximização
da satisfação que pode ser obtida no contexto (competitivo) da posse e fruição dos
recursos de bem-estar. De acordo com essas intuições, além disso, o cidadão
razoável/justo é aquele que admite esses fatos, e que se conforma a eles. “Ser
razoável/justo” implica admitir e assumir os riscos e ônus da competição pelos escassos
recursos de bem-estar, e pelas vantagens (satisfações) escassas que esses recursos
podem propiciar.
E o contratualista deontológico continuaria. A minha (do deontólogo) intuição,
em contrapartida, tem por ponto de partida uma ênfase na dimensão normativa da
cooperação entre os cidadãos. Ao enfatizar essa dimensão, eu (deontólogo) sou levado a
entender a justiça da esfera política em termos de igualdade, equilíbrio e harmonia entre
os cidadãos, quer dizer, em termos de preservação e fortalecimento da rede de
cooperação. De acordo com essa minha intuição, às demandas cujas razões associam-se,
predominantemente, à dimensão realista da competição por vantagens e satisfações
escassas, deve-se preferir as demandas cujas razões associam-se, predominantemente, à
dimensão normativa da cooperação entre os cidadãos. Em relação às demandas cujas
razões associam-se, predominantemente, à dimensão normativa da cooperação, pode-se
dizer que o não atendimento dessas demandas deve ser descrito como “perda”; em
relação às demandas cujas razões associam-se, predominantemente, à dimensão realista
256
da competição, pode-se dizer que o não atendimento dessas demandas deve ser descrito
como “não-ganho”. De acordo com essa intuição, por conseguinte, sou levado a afirmar
que a deliberação e a decisão dos indivíduos legisladores devem orientar-se,
basicamente, pelo seguinte critério: para que uns não percam bens cujas razões
associam-se à dimensão da cooperação e da preservação da igualdade, outros não
devem ganhar bens cujas razões associam-se à dimensão da competição e da
maximização das vantagens e satisfações privadas. Em correspondência com isso, eu
(deontólogo) adoto uma visão da justiça segundo a qual o bem, em sentido político,
deve ser definido em termos de preservação e fortalecimento da rede da cooperação
social. Para mim, “ser razoável/justo” implica admitir e assumir os ônus (os não-
ganhos) associados à necessidade de integrar e manter os perdedores na rede e nos
ganhos da cooperação social, - associados, em outras palavras, à necessidade de impedir
ou corrigir desigualdades que acabariam por expulsar os perdedores da rede básica da
cooperação. E o bem, em sentido político, equivale, justamente, à justiça da esfera
política, entendida em termos de integração e preservação dos perdedores na rede da
cooperação social.
Acredito que o contratualista utilitarista poderia concordar com esse modo de
pôr o problema – embora talvez desejasse dar um colorido um pouco diferente às
respectivas posições. Ele poderia apresentar argumentos para taxar a posição do
deontólogo de “utópica”. Ou ainda de “autoritária”, por querer impor à força uma
harmonia que não encontra respaldo nas disposições fundamentais dos concernidos –
nem mesmo dos desfavorecidos. Ou ainda de “ingênua”: na tentativa de agradar a todos,
acaba desagradando a todos. Ou ainda de “ingenuamente autoritária”, ao tentar inculcar
nos concernidos a convicção sobre os pretensos benefícios de uma harmonia que, por
não encontrar respaldo em suas disposições fundamentais, acaba sendo, no fundo,
insatisfatória para todos. Ele poderia dizer que a posição do deontólogo esvazia as
forças do progresso social. E assim por diante. Não precisamos entrar nos meandros
desse debate.
Podemos nos fixar no seguinte ponto. Se nossos dois debatedores concordassem
com esse modo de pôr o problema, eles poderiam concordar também com o seguinte.
Não há um senso de justiça comum e compartilhado. Mas isso não significa que o
debate se reduza a intuições sobre a boa vida, quer dizer, a intuições sobre os fins que o
indivíduo deve adotar na sua existência não-política. Significa que o debate incide sobre
o próprio senso de justiça, tomado como uma noção a ser adotada, não pelo indivíduo,
257
mas pelo cidadão. As concepções de pessoa e vida em sociedade que estão em jogo aqui
pertencem, não tanto à noção de boa vida a ser adotada pelo indivíduo, mas, antes, à
noção de razoabilidade (senso de justiça), entendida como capacidade deliberativa que
deve ser usada pelos cidadãos na esfera da polis. O que está em jogo aqui são diferentes
intuições a respeito dos resultados (mais) justos da interação social; são essas intuições
que configuram o senso de justiça preconizado, respectivamente, por deontólogos e
utilitaristas.
Para o utilitarista, a justiça pode e deve ser reduzida à maximização do bem
privado – para o utilitarista, não há um bem político independente do bem privado, o
que significa que o bem político só pode ser definido em termos de maximização do
bem privado. Para o utilitarista, postular um bem político independente do bem privado
equivaleria a desrespeitar o pluralismo razoável das concepções de bem. Para o
deontólogo, em contrapartida, a igualdade e harmonia na rede da cooperação
representam um bem especificamente político, independente dos bens privados dos
indivíduos, quer dizer, irredutível a estes. Para evitar uma politização indevida da noção
de bem privado, o que equivaleria a um desrespeito ao “fato do pluralismo”, o
deontólogo abandona essa noção ao campo da competição dos indivíduos por vantagens
e satisfações escassas; por outro lado, ele não admite que a esfera do “valioso” seja
reduzida a essa dimensão competitiva, maximizadora e privatista, mas afirma que há um
valor especificamente político, constituído pela igualdade e harmonia na rede da
cooperação social.
258
Conclusão.
No artigo Social Unity and Primary Goods,1 ao destacar que a ordem política
liberal, ao lidar com o fato do pluralismo, precisa enfrentar o problema das comparações
interpessoais, Rawls introduz esse problema da seguinte maneira (p.161).
Uma outra característica de uma sociedade bem-ordenada é que existe um entendimento
público acerca dos tipos de reivindicação que são apropriadas, quer dizer, que os cidadãos
podem apropriadamente fazer quando surgem questões de justiça, e esse entendimento
envolve um entendimento adicional, a respeito dos elementos capazes de apoiar tais
reivindicações. Esses entendimentos são necessários para se alcançar um acordo a respeito do
modo como as reivindicações dos cidadãos devem ser avaliadas e seu peso relativo
determinado. (...) Assim, na teoria da justiça como eqüidade, o problema das comparações
interpessoais é o seguinte: dadas as diferentes e opostas, e até incomensuráveis, concepções de
bem que se manifestam numa sociedade bem-ordenada, como é possível um tal entendimento
público?
1
In Sen, Amartya e Williams, Bernard (Eds.), Utilitarianism and Beyond, 1982, p.159-185.
2
Ver, por exemplo, Social Unity, p.160: “Vou indicar de que modo tanto o utilitarismo clássico quanto
uma versão contemporânea do utilitarismo implicam uma concepção de pessoa que torna essa doutrina
incompatível com a pressuposição de que existem diversas concepções racionais do bem.”
3
Em Social Unity, Rawls não chega ao ponto de identificar o utilitarismo às concepções perfeccionistas e
religiosas; nesse artigo, ele parece admitir que, ainda que envolva o conceito de um bem uno e único, o
utilitarismo, ao entender esse bem em termos meramente subjetivos, diferencia-se das doutrinas
perfeccionistas e religiosas, que o entendem em termos de uma meta objetivamente delineada e
determinada. Ver, por exemplo, a seção VII, especialmente a p.182.
4
É importante destacar que a concepção do utilitarismo como uma doutrina abrangente aparece em outras
passagens de Political Liberalism. Ver, por exemplo, as páginas 37 e 170-171.
259
fato teria para a distinção entre o utilitarismo e, por outro lado, o deontologismo
rawlsiano? Mais precisamente, que implicações esse fato teria para a inserção e
compreensão dessa distinção no contexto do pluralismo razoável das concepções de
bem?
A razão que Rawls tem em vista ao caracterizar o utilitarismo hedonista como
uma doutrina abrangente parece ser a seguinte. O utilitarismo hedonista funda-se na tese
de que o significado e propósito da vida humana consistem, fundamentalmente, no
“prazer”; ora, ao fundar-se numa tese sobre o significado e propósito da vida humana, o
utilitarismo hedonista assume o caráter de doutrina abrangente. Mais precisamente, ao
fundar-se numa tese sobre o conteúdo em que uniformemente consistem o significado e
o propósito da vida humana, - tal conteúdo seria, no caso, o prazer, - ao fundar-se nesse
tipo de tese, o utilitarismo hedonista merece o rótulo de doutrina abrangente.
No capítulo 4, vimos que, de fato, o utilitarismo hedonista sugere uma teoria
psicológica e moral de tipo hedonista, segundo a qual os móbiles básicos, o significado
e o propósito da vida humana consistem, em última instância, no prazer. Vimos também
que essa é, justamente, a razão pela qual, no seio mesmo da tradição utilitarista, o
utilitarismo hedonista foi substituído pelo utilitarismo das preferências, o qual recusa
qualquer tese sobre o conteúdo uniforme e universal do significado e propósito da vida
humana, e assume em seu lugar a tese da autonomia do sujeito (indivíduo) quanto às
preferências que ele vai seguir em sua vida pessoal. Mas nós vimos também duas outras
coisas. Em primeiro lugar, a noção de prazer pode ser mantida no utilitarismo das
preferências – desde que ela deixe de apontar para o conteúdo uniforme e universal do
significado da vida humana, e passe a apontar para o estado subjetivo a que se pode
recorrer para oferecer uma descrição genérica e abstrata de um valor que se pode
uniformemente descobrir (e medir) nos diferentes projetos, esforços e reivindicações
dos diferentes indivíduos. Nesse último caso, a noção de prazer se torna equivalente à
de “satisfação” – tomada, justamente, como estado subjetivo, ou estado mental.
Tomemos, por exemplo, os seguintes indivíduos: um primeiro inclui em seu
projeto de vida o esforço de abdicar de pratos gordurosos que lhe agradam
imensamente, em nome da promoção de sua saúde – ele prefere “saúde” a “prazer
sensual imediato”; já o segundo, ao contrário, inclui em seu projeto de vida uma
desistência de qualquer esforço de abdicar de prazeres imediatos em nome de
prescrições prudenciais ou éticas – ele prefere “prazer sensual imediato” a, por exemplo,
“saúde”. É claro que, se viesse a ser utilizada como descrição do conteúdo uniforme e
261
ainda, aquilo que ele deve(ria) considerar politicamente bom, o utilitarismo subjetivista
deseja manter uma postura de absoluto respeito – e nesse sentido de absoluta
neutralidade – em relação às variadas (e muitas vezes conflitantes) opiniões que os
diferentes indivíduos empiricamente revelam a esse respeito.
Ora, se é verdade que o utilitarismo subjetivista mantém uma postura de respeito
e neutralidade com relação às diferentes opiniões a respeito do bem individual, então é
preciso reconhecer que essa forma de utilitarismo não merece o rótulo de “doutrina
abrangente” – na medida em que esse rótulo cabe, justamente, às teorias que pretendem
indicar o conteúdo objetivo e universal do significado que se deve igualmente
reconhecer e impor, para todos os seres humanos. E se é verdade, além disso, que a
categoria “utilitarismo subjetivista” expressa a proximidade e até identidade entre o
utilitarismo hedonista e o utilitarismo das preferências, então é preciso concluir que não
é correto caracterizar essas espécies de utilitarismo como doutrinas abrangentes. Ao
contrário, trata-se de doutrinas que se encaixam perfeitamente no contexto definido pelo
“fato do pluralismo”.
Vimos acima que, para Rawls, o fato do pluralismo gera o problema das
comparações interpessoais. Dadas as conflitantes e incomensuráveis concepções de
bem, quer dizer, dada a impossibilidade de avaliar e pesar as reivindicações conflitantes
com base numa concepção de bem supra-individual, só se pode avaliar e pesar tais
reivindicações com base em comparações interpessoais do bem especificamente
individual – o que exige o recurso a um metro normativo comum e uniforme, quer dizer,
exige o recurso a um valor que possa adequadamente funcionar como metro comum e
uniforme. Respondendo à exigência de neutralidade em relação às diferentes opiniões
sobre o que é bom, o utilitarismo subjetivista assume uma postura essencialmente
antinormativa, modelando da seguinte maneira o processo político: em princípio, todas
as reivindicações são igualmente apropriadas; o cidadão apóia sua reivindicação
remetendo-a à satisfação que seu atendimento acarretaria; e o governo avalia e pesa as
reivindicações conflitantes por meio de uma comparação da satisfação que seu
respectivo atendimento geraria, a longo prazo, na sociedade como um todo. Assim, ao
assumir a postura antinormativa que lhe é própria, o utilitarismo subjetivista apresenta o
seguinte argumento: se é verdade que as comparações interpessoais do bem individual
exigem o recurso a um valor comum e uniforme, então, para respeitar o pluralismo das
concepções de bem, esse valor só pode ser o da satisfação individual – trata-se do único
valor que não prejulga o mérito das diferentes preferências individuais. As comparações
263
grosso modo maximizador, segundo o qual a melhor distribuição é aquela que gera
maior quantidade de bem-estar na sociedade como um todo, mesmo que isso implique
que alguns indivíduos, comparativamente, fiquem em níveis de bem-estar
significativamente baixos.
No capítulo 5, tentei mostrar de que forma essas diferenças podem ser reduzidas
a diferenças no modo como as duas teorias abordam e elaboram o tópico da justiça. O
deontologismo rawlsiano aborda o tema da justiça a partir de uma ênfase na dimensão
da cooperação social, o que o leva a entender a justiça em termos de preservação do
equilíbrio, igualdade e harmonia na rede da cooperação. Ora, ao conceber a justiça em
termos de igualdade e harmonia na rede da cooperação, o deontologismo rawlsiano é
levado a apresentá-la como um bem especificamente político, quer dizer, um bem
político independente: trata-se de um bem que não pode ser reduzido ao bem privado
dos indivíduos, ou, mais precisamente, de um bem que pertence a uma esfera, a esfera
política, que não pode ser reduzida à esfera do bem privado dos indivíduos.
Já o utilitarismo de bem-estar aborda o tema da justiça a partir de uma ênfase na
dimensão da escassez dos recursos do bem-estar, e da conseqüente competição por tais
recursos. Por partir de uma ênfase na dimensão da escassez e da competição, o
utilitarismo de bem-estar não só encara a justiça como uma norma destinada a
determinar quem deve perder e quem deve ganhar, mas sustenta que essa norma só pode
ser a da maximização da quantidade de bem-estar na sociedade como um todo. É justo
que ganhem os interesses da maioria, pois é dessa forma que se produz a maior
quantidade de bem-estar na sociedade como um todo; é justo que ganhem os indivíduos
mais capazes, quer dizer, mais capazes de alavancar o processo de produção e difusão
dos recursos de bem-estar; e é justo que os outros percam, e fiquem reduzidos a níveis
significativamente baixos de bem-estar. Ora, dizer que a justiça consiste na
maximização do bem-estar dos indivíduos equivale a dizer que a justiça pode (e deve)
ser reduzida à esfera do bem privado dos indivíduos; em vez de se apresentar como um
bem específico e independente, próprio da esfera especificamente política, a justiça se
apresenta como um bem coextensivo à esfera do bem privado – trata-se apenas de
maximizar esse bem privado.
No §7 da Conferência A Prioridade do Justo e Idéias do Bem, Rawls discute a
quinta idéia de bem admitida e utilizada pela teoria da justiça como eqüidade, a qual
consiste, justamente, no bem da sociedade política. Ao afirmar que a teoria da justiça
como eqüidade admite e valoriza essa idéia de bem, Rawls pretende responder à crítica
266
de que, ao recusar a tese de que a sociedade deve unir-se em torno de uma doutrina
abrangente sobre o verdadeiro bem, essa teoria fica obrigada a ver a sociedade como um
mero agregado de indivíduos e associações, que só cooperam para perseguir suas
respectivas vantagens privadas, sem terem qualquer fim em comum. Em outras
palavras, trata-se da crítica de que o deontologismo rawlsiano estaria obrigado a
conceber a sociedade como mera “sociedade privada”.8
Antes de mostrar de que forma Rawls rejeita essa crítica, quer dizer, antes de
mostrar de que modo Rawls rejeita a concepção “privatista” da sociedade, gostaria de
destacar que, nesse tipo de concepção, as relações e interações sociais são encaradas
como meros meios para o bem privado de indivíduos e associações. Ora, isso implica,
evidentemente, que a qualidade positiva dessas relações e interações, quer dizer, a
justiça das mesmas, só pode ser entendida em termos de eficácia para a geração da
maior quantidade possível de bem-estar privado. Ora, é essa, justamente, a essência da
posição utilitarista. Isso significa que o utilitarismo, longe de dever ser visto como uma
doutrina abrangente, deve ser visto, ao contrário, como uma doutrina “privatista”, quer
dizer, uma doutrina que reduz os valores políticos a valores da mera “sociedade
privada”.
A sociedade visada pelo deontologismo rawlsiano, em contrapartida, não é uma
sociedade privada, uma vez que, nas palavras do próprio Rawls, “(...) os cidadãos têm
fins em comum. Embora seja verdade que eles não afirmam a mesma doutrina
abrangente, eles afirmam a mesma concepção política de justiça; e isso significa que
eles compartilham um fim político básico, e um fim que tem alta prioridade: a saber, o
fim de sustentar instituições justas e de, desta forma, fornecer justiça uns aos outros”.9
Assim, o deontologismo rawlsiano eleva as noções de “justiça” e “fornecer justiça uns
aos outros” ao posto de fim comum e compartilhado, categorialmente distinto dos fins
privados perseguidos por indivíduos e associações. Ora, o deontologismo rawlsiano só
pode fazer isso na medida em que, opondo-se à ênfase na dimensão da escassez e da
competição, aborda a justiça a partir de uma ênfase na dimensão da cooperação,
entendendo-a, correspondentemente, em termos de preservação da harmonia e equilíbrio
na rede da cooperação, ou seja, em termos de preservação da igualdade de status
político e moral, que representa a característica pela qual se define todo participante da
rede da cooperação.
8
Political Liberalism, p.201.
9
Political Liberalism, p.202.
267
Bibliografia