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O trabalho nas diferentes sociedades Em nossa sociedade, a produgio de cada objeto envolve uma complexa rede de trabalho e de trabalhadores. Vamos tomar como exemplo um produto que faz parte do dia a dia de grande mimero de pessoas: o pozinho de égua e sal. (Os ingredientes bdsicos para fazer um paozinho sio o trigo, a Agua, osal €0 fermento, Para que haja trigo & necessério que alguém o plante eo colhas ¢ preciso ‘que haja moinhos para moé-lo e comercializago para que chegue até a padaria, Esse mesmo processo serve para o sal, que deve ser retirado do mar, processado ¢ ‘embalado. O fermento é produzido em outras empresas por outros trabalhadores, com outras matérias-primas. A égua precisa ser captada, tratada e distribufda, 0 que exige uma complexa infraestrutura com grande nimero de trabalhadores. Séo necessirios equipamentos, como a méquina para preparar a massa ¢ 0 forno para assar 0 po, fabricados em indtstrias que, por sua vez, empregam outras marérias-primas ¢ trabalhadores. E necessdrio algum tipo de energia proporcionada pelo fogo (e isso exige ‘madeira ou carvlo) ou energia elétrica (que é gerada em hidroelétricas ou termo- clécricas). As usinas de energia, por sua vez, precisam de equipamentos, linhas de transmissio ¢ trabalhadores para fazer tudo isso acontecer. ‘Na ponta de todo esse trabalho, estéo as padarias, mercadinhos ¢ super- mercados, onde o piozinho finalmente chega ’s maos do consumidor. Se para comet um simples pio hd tanta gente envolvida, direta eindireta- ‘mente, vocé pode imaginar quanto trabalho é necessério para a fabricagio do énibus, da bicicleta ou do automével, para a construcéo da casa em que voce vive ou da escola onde estuda. Essa complexidade das tarefas relacionadas & produgao é uma caracteris- tica da nossa sociedade. Outros tipas de sociedade, do presente ¢ do passado, apresentam caracteristicas bem diversas. Lie Coos Muesheaone tage Campo de cltvo em Rejesthan naa (1995), e panificadora em ‘Sa Paulo, Breil (2001). Do tiga 30 po, do tiolo ao prédio, cada produto em nossa sociedade resulta do trabalho de uma ifinidade «de pessoas, cada qua especiaizada em determinadas tres. Capitulo 4 # O trabalho nas diferentes sociedades | 37 Je MapabseSerbe Photo Jovem yawalepty prepara folhas de bu para fazer artesanato (Xingu, MT, 1995). Nas sociedades tribals, todos compartiham os conhecimentos, necessios para a obtencGo de matérias-primas ea claboragio de objets. ‘Apenas a idade e 0 sexo definem a civisdo das tarefas. A producao nas sociedades tribais As sociedades tribais diferenciam-se umas das outras em muitos aspectos, mas pode-se dizer, em termos gerais, que no sao estruturadas pela atividade que em nossa sociedade denominamos trabalho. Nelas todos fazem quase tudo, eas atividades relacionadas 4 obtengao do que as pessoas necessitam para se manter — caga, coleta, agricultura e criagio — esto associadas aos titos € mitos, ao sistema de parentesco, as festas ¢ &s artes, integrando-se, portanto, a todas as esferas da vida social. A organizagio dessas atividades caracteriza-se pela divisio das tarefas por sexo e por idade, Os equipamentos e instrumentos utilizados, comumente vistos, pelo olhar estrangeiro como muito simples ¢ rudimentares, so eficazes para realizar tais tarefas. Guiados por esse olhar, varios analistas, durante muito tempo, classificaram as sociedades tribais como de economia de subsisténcia e de técnica rudimentar, passando a ideia de que elas viveriam em estado de pobreza, o que é um preconceito. Se hoje muitas delas dispoem de dreas res- tritas, enfrentando dificeis condigdes de vida, em geral, antes do contato com 0 chamado “mundo civilizado”, a maioria vivia em éreas abundantes em caga, pesca ¢ alimentos de varios tipos. Marshall Sahlins, antropdlogo estadunidense, chama essas sociedades de “sociedades da abundancia” ou “sociedades do lazer”, destacando que seus membros nao sé tinhaim todas as suas necessidades materiais e sociais plena- mente satisfeitas, como dedicavam um m{nimo de horas diétias ao que nés chamamos de trabalho. Os ianomamis, da Amazénia, dedicavam pouco mais de trés horas didrias as tarefas relacionadas & produgao; os guayakis, do Paraguai, cerca de cinco horas, mas nao todos os dias; ¢ os kungs, do deserto do Kalahari, no sul da Africa, em média quatro horas por dia. O ato de dedicar menos tempo a essas tarefas nao significava, no entanto, ter uma vida de privagées. Ao contratio, as sociedades tribais viviam muito bem alimentadas, ¢ isso fica comprovado em relatos que sempre demonstram a vitalidade de todos os seus membros. E claro que tais relatos referem-se & experiéncia de povos que viviam antes do contato com 0 “munds civilizado”. A cxplicagao para 0 fato de os povos tribais trabalharem muito menos do que nés esté no modo como se relacionam com a na- tureza, também diferente do nosso. Por um lado, para eles, a terra € 0 espago em que vivem e tem valor cultural, pois dé aos humanos seus frutos: a floresta presenteia os cagadores com os animais de que necessitam para a sobrevivéncia © 08 rios oferecem os peixes que ajudam na alimentacao. Tudo isso é um pre- sente da “mae natureza”. Por outro lado, os povos tribais tém uma profunda intimidade com 0 meio em que vivem. Conhecem os animais ¢ as plantas, a forma como crescem e se reproduzem ¢ quais podem set utilizados para a alimentagao, para a cura de seus males ou para seus ritos. Integradas ao meio ambiente ¢ a todas as demais atividades, as tarefas relacionadas & producao nao compéem, assim, uma esfera especifica da vida, ‘ou seja, nao hd um “mundo do trabalho” nas sociedades tribais. 38 | Unidade 2 ¢ Trabalho e sociedade Escravidao e servidao termo trabalho pode ter nascido do vocdbulo latino sripallium, que sig- nifica “instrumento de tortura’, e por muito tempo esteve associado A ideia de atividade penosa e torturante. Nas sociedades grega ¢ romana era a mao de obra escrava que garantia a producto suficiente para suprir as necessidades da populagio. Existiam outros trabalhadores além dos escravos, como os meeitos, 08 artestios € os camponeses. No entanto, mesmo os trabalhadores livres eram explorados e oprimidos pelos senhores e proprietarios. Estes eram desobrigados de qualquer atividade, exceto a de discutir os assuntos da cidade e 0 bem-estar dos cidadios. Para que nio dependessem do prdprio trabalho pudessem se dedicar exclusivamente a essa atividade, o trabalho escravo era fundamental. Mazo de Sania Cost, Pra, Ra Representacio do trabalho na Roma antiga: um trbalhador, possivelmente escravo, ‘ransporta a uve em catro dé boi, enquanto outros pisam o fruto no aga oficina na qual se espremem frutos). Detalhe de mural da grea Santa Costanza, em Roma (s8culo IV), Labor, poiesis e praxis Os gregos distinguiam claramente a atividade bragal de quem cultiva a terra, a atividade manual do artesio ¢ a atividade do cidadao que discute ¢ procura solugdes para os problemas da cidade. De acordo com a filésofa alema Hanna Arendt (1906-1975), os gregos utilizavam os termos Labor, poiesis e praxis pata expressar suas trés concepgbes para a ideia de trabalho. O labor 0 esforco fisico voltado para a sobrevivéncia do corpo, sendo, portanto, uma atividade passiva ¢ submissa ao ritmo da natureza. O exemplo mais claro dessa atividade é o cultivo da terra, pois depende de forsas que o ser humano nao pode controlar, como o clima e as estag6es. Poiesis corresponde ao fazer, a0 ato de fabricar, de criar algum produto mediante o uso de um instrumento ou mesmo das préprias maos. O produto desse trabalho muitas vezes subsiste & vida de quem o fabrica, tem um tempo de permanéncia maior que o de seu produtor. O trabalho do artesio ou do escultor se enquadraria nessa concep¢a0. A praxis €a atividade que tem a palavra como principal instrumento, isto ¢, utiliza o discurso como um meio para encontrar solugées voltadas para o bem-estar dos cidadaos. E 0 espago da po- Iitica, da vida publica. Capitulo 4 # O trabalho nas diferentes sociedades | 39

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