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O Estado e a Ciência Política

ou Como nos Convertemos


Naquilo que Estudamos*

Theodore J. L o w i

A ciência política americana é um pro­ D o alto de sua experiência pioneira, os


duto do Estado americano. Razões políticas peregrinos quakers proclamavam: “Fale a
explicam a hegemonia alcançada por deter­ verdade ao poder.” Eu, partindo de minha
minadas subáreas ao longo do processo de própria peregrinação, retruquei: “E quem
emergência da “Segunda República” depois quer ouvir?”, “Q ue verdades devem ser
da II G uerra Mundial. Essas três subáreas compartilhadas?” Ao longo de minha jorna­
são opinião pública, política pública e esco­ da, mantive-me atento ao diálogo entre a
lha pública. Cada um a representa um caso ciência política e o poder, e é meu dever co­
típico de consonância com os modos de pen­ municar que os termos do discurso têm sido
sar e os métodos de ação de um governo bu­ determinados pelo poder. Efetivamente não
rocrático moderno com prom etido com a to­ somos os mestres que pensávamos ser.
mada de decisões em bases científicas. A Minha jornada permitiu-me tomar
proximidade excessiva com o Leviatã deu consciência de três fatos: 1) a ciência política
origem a três conseqüências principais: 1) o americana é ela mesma um fenômeno políti­
fracasso na compreensão do alcance da subs­ co e, sendo assim, é produto do Estado; 2)
tituição do direito pela economia como lin­ não há uma única ciência da política, mas vá­
guagem do Estado; 2) a perda da paixão no rias, cada uma delas representando uma de­
discurso da ciência política; e 3) o fracasso da terminada solução de adaptação àquilo que
ciência política na avaliação do significado estuda; 3) mesmo admitindo que estamos
das marés ideológicas que acompanham as todos sinceramente empenhados na busca
mudanças de regime. da verdade (um suposto sempre mais esti­
Agora que minha peregrinação presi­ mulante), outras razões, além da busca da
dencial chegou ao fim, posso declarar que a verdade, explicam os tipos de ciência política
Associação Americana de Ciência Política que praticamos e por que certas subdiscipli-
sobrevive e passa bem. Mas um a peregrina­ nas se tornaram hegemônicas. Em poucas
ção não é uma experiência nos caminhos da palavras, quero dizer que todo regime tende
felicidade. E antes um movimento de busca a gerar uma forma de política consoante
que só se completa quando o peregrino consigo mesmo; portanto, todo regime tende
regressa e divide com os demais as angústias a criar uma ciência política compatível com
da descoberta. ele próprio. A consonância entre Estado e

* Agradeço aos professores M auro Calise, Raymond Seidelman, David Collier, W alter M ebane, R i­
chard Bensel e Michal Goldfield pela assistência ao longo da jornada. [A tradução do original inglês,
“The State in Political Science: How we Become W hat we Study”, é de Vera Pereira.]

BIB, Rio de Janeiro, n. 38, 2.° sem estre 1994, pp. 3-14 3
ciência política 6 um problema que merece chamaria de dados empíricos” (p. 69), os
ser pensado pelos cientistas políticos. fundadores da Associação mantinham um
A fim de examinar essas relações, sele­ compromisso com o realismo político, quer
cionei casos típicos das três subdisciplinas h e­ dizer com os fatos, o aqui e agora, e com a
gemônicas de nossa época — opinião públi­ demonstração da discrepância entre as insti­
ca, política pública e escolha pública. A ap re­ tuições formais e a realidade social. Em seu
sentação desses casos é precedida por uma discurso de posse como quarto presidente da
breve descrição do processo de transform a­ APSA, James Bryce exortava da seguinte
ção do antigo para o novo Estado e da antiga maneira os cientistas políticos: “Atenham-se
para a nova ciência política. Concluindo, faço aos fatos. Nunca se percam em abstrações...
uma rápida avaliação das conseqüências pa­ O Fato é o elemento primordial. Verifiquem
ra a ciência política de ter-se tornado uma os fatos, esclareçam seus contornos, dêem-
“variável dependente”. lhes polimento até que tomem o lustre e o
É desnecessário dem onstrar para cien­ brilho de uma pedra preciosa” (citado por
tistas políticos a natureza aparentem ente Somit e Tannenhaus, 1967, p. 70). O título
contraditória do Estado americano até a d é­ do discurso presidencial de Woodrow Wilson
cada de 30. O nível da atividade governa­ no sétimo encontro anual da APSA foi “A
mental era quase tão baixo em 1932 quanto Lei e os Fatos”. Logo no início de sua fala,
fora um século antes. Contudo, se grandes Woodrow Wilson afirmou: “Considero a
movimentos sociais não conseguiram expan­ ciência da política como a observação cuida­
dir o governo central após a G uerra Civil, dosa e detalhada dos processos pelos quais
eles lograram nacionalizar o foco do interes­ as lições da experiência se tornam conscien­
se da atividade política norte-americana. A tes, se transformam em propósitos ativos,
Guerra Civil e a industrialização tornaram passam pelo escrutínio do debate, são exami­
este país uma nação de fato. Wabash, St. nadas minuciosamente e, finalmente, tomam
Louis, and Pacific Railway v. Illinois, de uma forma definida na lei” (1911, p. 2). Mas
1886 (118 U.S. 557) foi em parte responsá­ esses fatos não eram apenas para uso pró­
vel pela doutrina de que os governos esta­ prio. Alguns cientistas políticos pioneiros fo­
duais eram constitucionalmente incompeten­ ram ativos reformadores sociais; outros, ra­
tes para fazer face a uma economia em dicais opositores da corrupção política e ad­
processo de nacionalização. Os meios de co­ ministrativa; apenas uns poucos puderam
municação de massa transferiram sua depen­ manter-se totalmente à parte. Mas os fatos
dência dos partidos políticos fortem ente lo­ tinham de ser postos a serviço do julgamen­
cais para as grandes em presas ávidas por to: Será que uma determinada instituição
criar um consumo de massa por intermédio política atingiu seus objetivos? Segundo Wil­
da publicidade. son, os cientistas políticos deveriam compor
Como um a profissão, a ciência política uma espécie de “comissão autônom a ... com
foi um resultado dessa nacionalização do fo­ a finalidade de desvendar, por entre o caos
co de interesse político. Historiadores das atual de nossa economia, um interesse co­
idéias como Somit e Tannenhaus (1967) e mum, de modo que se possa legislar em be­
Seidelman (1985) afirmam que a APS A fez nefício de todo o país e não deste ou daquele
parte do movimento progressista de refor­ interesse, em separado” (pp. 6-7).
mas. Somit/Tannenhaus contam que apenas Não temos bases concretas para afirmar
20% dos membros da Associação durante que a geração dos fundadores estava tentan­
seus primeiros dez anos eram “professores” do constituir uma intelligentzia, ou seja, uma
(p. 55). Desde o início da década de 90 do organização de intelectuais para fazer oposi­
século passado, quando os estudos tinham ção ao Estado. Na realidade não havia E sta­
um caráter “legalista, formalista, eram con- do contra o qual organizar-se. No máximo,
ceitualmente vagos e carentes do que hoje se havia resquícios dos dois Estados que trava^
ram a mais devastadora guerra da história do tração européia” (1985, p. 44). Wilson, por­
país até 1865. Mas esses dois Estados ruíram tanto, ratificava a premissa básica da ciência
logo após o térm ino da G uerra Civil e poste­ política, se bem que não explícita, de que o
riormente voltaram a unir-se em uma “orga­ sistema americano era duradouro e que a
nização política sem E stado” que constituiu ciência da política implicava o estudo e a ava­
a União restaurada (Bensel, 1990). É pos­ liação das coisas políticas no interior de um
sível afirmar, porém, que a APSA, em seu contexto singular e permanente. Nós consti­
início, foi uma espécie de contra-wtelligent- tuíamos uma república, para todo o sempre.
zia, formada para defender um Estado que Os cientistas políticos permaneceriam como
ainda não existia. A ciência política praticada uma contra-intelligentzia não porque todos
por toda a primeira geração da APSA estru­ compartilhassem do consenso liberal de Loc-
turou-se em torno da política — dos fatos ke, mas porque se tratava de cientistas envol­
observáveis, imediatos e dos objetivos de vidos com a tarefa de construção do Estado,
curto prazo a serem atendidos. Mas a políti­ ainda que, na tradição de Bentley, com bates­
ca não era apenas um fenômeno, era tam ­ sem o próprio conceito de Estado como
bém um problema. Para Goodnow, por “matéria do espírito” (ibid, pp. 70-71). Por
exemplo, a finalidade da ciência política era essa mesma razão, a ciência política era aves­
mostrar, “levando em conta o modo particu­ sa à teoria. Os estudos elaborados pela gera­
lar como se apresentavam as condições polí­ ção dos fundadores mantêm-se válidos até
ticas nos Estados Unidos, que o sistema for­ mesmo pelos padrões atuais de ciência e são
mal de governo estabelecido pela lei não é melhores do que a maioria dos nossos traba­
sempre equivalente ao sistema real” (citado lhos, do ponto de vista da qualidade do co­
por Ross, 1991, p. 274). Para muitos inte­ nhecimento produzido e do manejo da lín­
grantes dessa primeira geração havia uma gua inglesa. Mas eram essencialmente empí­
solução de fácil manejo para o problema da ricos e se tornaram quase tecnocráticos em
política — o governo, apropriadam ente ca­ sua participação no movimento de reformas,
racterizado como “a construção de um novo basicamente por não contarem com ne­
Estado am ericano” (Skowronek, 1982). Essa nhuma concepção de regime alternativo para
meta de construir um novo Estado, por sua os Estados Unidos.
vez, pode ser definida como a construção de Deve ter sido absolutamente evidente
um governo sem Estado ou um a adm inistra­ para qualquer cientista político de 1887, ou
ção esclarecida. W oodrow Wilson, enquanto até mais tarde, que o sistema americano
ainda era um obscuro professor de ciência constituía um novo regime, depois da G uer­
política da Universidade Johns Hopkins, fez ra Civil, e por isso mereceria receber uma
campanha em prol do estudo da administra­ nova denominação. Por que não a de Segun­
ção, em 1887. Esse estudo deveria ser enten­ da República? A resposta foi que essa deno­
dido, porém, no contexto de sua declaração minação sugeria uma impermanência do re­
mais geral de que o tem po da elaboração gime. Se podia haver uma Segunda Repúbli­
constitucional já term inara “do ponto de vis­ ca, por que não uma Terceira ou Q uarta?
ta do estabelecimento dos princípios es­ Minha mulher às vezes me apresenta aos
senciais” (citado por Ross, 1991, p. 275). A seus amigos como seu primeiro marido, o
administração poderia ser um a solução para que não deixa de ser uma designação razoá­
a política porque, nas palavras de Wilson, vel. A ciência política era avessa à teoria por­
poderíamos fazer o Estado prussiano respi­ que não tinha uma concepção de Segunda
rar um pouco do ar livre reinante na A m éri­ República ou de qualquer outro regime al­
ca (Wilson, 1887). Como observou Seidel- ternativo. Em último caso, os cientistas polí­
man, “o estudo da política, para Wilson, te­ ticos tinham de praticamente reescrever a
ria, então, de evoluir para o estudo da singu­ teoria da democracia a fim dé dar espaço aos
laridade da cultura americana e da adminis­ partidos políticos, igualmente como faziam

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com a teoria republicana para dar conta da a economia e ã repartição de poder entre as
transferência de poderes constitucionais do esferas no interior do governo federal foram
Congresso para a Presidência da República. rapidamente sepultados; 3) muitos aspectos
Mas essa não era um a atitude envergonhada da atividade política tradicionalmente reali­
por parte da ciência política; ao contrário, fa­ zados na órbita do privado (por exemplo, o
zia parte do “estudo das condições políticas registro de candidaturas, a apuração de vo­
do modo como realm ente se apresentavam ”. tos, a administração eleitoral, a escolha de
No interior da organização política sem E sta­ candidatos, a nomeação para cargos, as pes­
do da época dos fundadores, a ciência da po­ quisas eleitorais e o financiamento de cam­
lítica era o estudo dos fatos políticos e das panhas) passaram a ser controlados pelo go­
instituições políticas num a estrutura atem po­ verno — ou seja, o governo tem assumido
ral e especificamente americana. responsabilidades por seus próprios atos po­
Penso que a idade de ouro da ciência líticos; 4) os partidos políticos, assim como as
política americana durou até o térm ino dessa famílias nucleares, perderam influência por
época de fundação, que corresponde, natu­ falta do que fazer; 5) houve uma ampliação
ralmente, ao final da ordem política sem E s­ do tamanho e da escala da burocracia inde­
tado. Os trabalhos de ciência política dos pendente do partido e do Congresso, levan­
anos 30 e 40 eram admiráveis por sua capa­ do-a a deter uma autonomia que a aproxi­
cidade de descrever uma totalidade política ma de uma força social; 6) em estreita vincu-
complexa; cabais e minuciosos, verazes e lação com este último aspecto, o governo
imaginativos no uso de estatísticas para des­ tem-se envolvido de modo intensivo com a
crever uma realidade dinâmica; eficientes e ciência. Esse envolvimento não é produto do
convincentes na indicação de falhas e desvios acaso ou mera estratégia política. A ciência é
em relação aos ideais americanos. Mas essas parte integrante do novo Estado burocrati­
observações fazem parte do lado sentimental zado em pelo menos duas dimensões. A pri­
de minha peregrinação. Sonhar com aquele meira destaca um compromisso com a cons­
tipo de pesquisas sobre eleições, almejar por trução da ciência como instituição, isto é,
aqueles estudos específicos de grupos de uma obrigação do governo para com a ciên­
interesse e tom ada de decisões, pelas análi­ cia. A segunda implica uma obrigação com o
ses históricas de sistemas partidários e governo por parte da ciência — ou seja, um
processos de representação é também ansiar compromisso com a tomada de decisões em
pela riqueza da Primeira República, agora bases científicas. Esse aspecto tem sido bem
que nos encontram os irreversivelmente definido como uma tendência para a tecno-
imersos na Segunda e dispomos pelo menos cratização, o que para mim significa “prever
de um esboço de concepção da possibilidade para controlar” (veja-se Mills, 1959, p. 113).
de uma mudança de regime nos Estados Mas um outro aspecto dessa expansão da
Unidos. ciência que me parece mais interessante, em ­
Não há dúvida de que, hoje em dia, já bora tenha sido menos observado, é que a
se processou realm ente um a mudança de re­ economia substituiu o direito como lingua­
gime, que denom ino de Segunda República, gem do Estado.
na falta de um a ordenação oficialmente Podemos repetir em relação à Segunda
reconhecida. N ão se trata do Estado francês República o que Tocqueville disse a respeito
ou prussiano, mas, pelo menos, é possível di­ da Primeira: “H á necessidade de uma nova
zer que o Estado am ericano já não é um pa­ ciência da política para dar conta de um no­
radoxo. Seus pontos altos, em linhas gerais, vo mundo” (citado por Wood, 11969, p. V).
são os seguintes: 1) é um Estado positivo, Só que a vida não é tão simples assim. Se os
não reativo, que se concentrou desde o início Estados modernos são diferentes, é quase
na órbita do executivo; 2) os limites constitu­ certo que há diversas ciências da política, não
cionais à influência do governo federal sobre apenas uma. Essas diferentes ciências ten­
dem a ser consideradas subâreas, mas, a des­ grandes números originam-se das peque­
peito de continuidades e sobreposições, elas nas unidades e se comportam de acordo
são bastante distintas entre si. Cada uma de­ com as regularidades da probabilidade
las pode ser vista como produto dos fenôme­ matemática. (Neste sentido, é fácil com­
nos que estuda. M eu interesse aqui, no en­ preender a razão pela qual o pedido de
tanto, não é explicá-las ou situâ-las, umas em A rthur Bentley para que se isolasse o
relação às outras, e sim com preender o grupo como a menor unidade de análise,
processo de “hegemonia” das disciplinas — formulado, pela primeira vez, em 1907,
em outras palavras, saber por que e quando somente tenha sido realmente ouvido, ou
as áreas de opinião pública, política pública e atendido, cerca de quarenta anos mais
escolha pública se tornaram temas de forte tarde (Seidelman, 1985, pp. 72-74).
interesse na ciência política. 4. A ciência, como a administração, precisa
H á quem considere a opinião pública seguir um método previamente definido.
como ciência do com portamento. Eu acredi­ Conforme observou Robert Wiebe, “o
to ser mais exato chamando-a diretam ente pensamento burocrático ... praticamente
de opinião pública. U m observador recém- fez da ‘ciência’ um sinônimo de ‘método
chegado de outro planeta acharia muito científico’. A ciência tornara-se um proce­
estranho que o estudo das opiniões e atitu­ dimento ... mais do que um conjunto de
des das pessoas, pudesse ser cham ado de resultados” (1967, p. 147).
ciência do com portam ento — isso até que 5. A própria linguagem tem de ser micros­
ele chegasse à desconstrução analítica do cópica, isto é, a ciência deve ser traduzível
diálogo entre o novo Estado burocrático e a na linguagem das variáveis.
nova ciência política. A minha maneira de
desconstruir essa discussão é a seguinte: Os fenômenos e a metodologia dos es­
tudos de opinião pública evidentemente
1. Para que a ciência seja pública ela deve preenchem todos os requisitos de uma ciên­
ser neutra. cia compatível com o pensamento burocráti­
2. Ela também deve ser racional e, portanto, co. Tomemos agora o ângulo das unidades
tem de ocupar-se dos fenômenos racio­ de análise utilizadas nas pesquisas por amos­
nais, isto é, regulares, repetíveis e previsí­ tragem e que estabelecem os vínculos entre
veis. É exatamente isto que torna a ciên­ o estudo da opinião pública e o com porta­
cia e a burocracia tão compatíveis entre mento político: o voto e a participação. Essas
si. Karl M annheim escreveu em 1929, unidades revelam uma consonância ainda
cerca de vinte anos antes da revolução mais evidente com o Estado por serem com­
comportamentalista, que “o pensamento portam entos políticos aceitos e reconhecidos
burocrático está impregnado pela mensu- (isto é, patrocinados pelo Estado e neces­
ração, formalização e sistematização na sários à sustentação da legitimidade dos regi­
base de axiomas fixos ... (de tal modo mes e das elites).
que) as únicas formas de conhecimento H á quem considere a ciência do com­
legítimas são as que tocam e atingem o portam ento como representando um passo
que há de comum entre todos os seres decisivo em direção à hard science e, por is­
humanos” (1936, p. 167). so, um progresso, no sentido de permitir
3. A ciência deve tam bém ser microscópica um a melhor compreensão da sociedade e da
até a raiz da menor unidade irredutível. política. Eu não discordo dessa opinião, mas
Não me parece paradoxal observar que, à minha análise política também me leva a crer
medida que o Estado foi se tornando ca­ que a hegemonia da subdisciplina da ciência
da vez maior, as unidades de análise em do comportamento, ou opinião pública, foi
nossa ciência tenham-se tornado cada vez em grande medida uma decprrência de sua
menores. Este é um aspecto profunda­ compatibilidade com o estilo de pensamento
mente relevante da racionalidade: os burocrático em vez de um resultado do êxito

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do intercâmbio de idéias no interior da ciên­ emergir como hegemônica. I1 certo que os
cia política. estudos sobre política públic.i iniciaram-se
É im portante ressaltar, porém, que a pelo estudo da legislação, cuju história geral­
hegemonia da subárea da opinião pública é m ente é reconstituída a partir do direito divi­
um caso de seleção natural, não de uma m a­ no, passando pelo direito comum, até chegar
nipulação política ou do oportunismo inte­ ao que se denominou de direilo positivo, su­
lectual. Quem conhece pessoalmente os in­ gerindo uma desmitificação da lei e o caráter
trodutores da revolução comportamentalista de deliberação que caracterizaria a legislação
na ciência política certam ente concordaria moderna. A isso sucede uma etapa posterior,
com o argum ento de que se fosse necessário chamada de política pública, que revela a in­
habilidade política para vencer, não haveria tervenção da administração no espaço entre
necessidade de centros de pesquisa assim co­ o poder legislativo e os cidadãos. A expres­
mo provavelmente não haveria um a ciência são política pública é um termo engenhoso
do com portamento. Sua própria desatenção que reflete a interpenetração entre o gover­
ao jogo político é que torna tão interessante no liberal e a sociedade, insinuando a exis­
a análise do êxito desse campo de estudos. A tência de uma flexibilidade e um a reciproci­
explicação deve ser procurada não na ativi­ dade maiores do que permitem alguns sinô­
dade política no sentido vulgar do termo, nimos unilaterais tais como lei, estatuto, orde­
mas na política em sua acepção mais alta — nação, édito e semelhantes. A área de políti­
a construção do Estado. ca pública começou a ganhar populariadade
Atribuindo um a nova ênfase à ciência, a na administração pública durante os anos 30.
Segunda República também determinou o A administração pública tinha sido uma das
que ela deveria ser. A ciência política já tinha subdisciplinas hegemônicas no campo da
capacidade para realizar pesquisas de opi­ ciência política daquela ordem política sem
nião pública desde o final do século XIX, pe­ Estado a que me refiro pela expressão Pri­
lo menos. A estatística, cujo nome, por sinal, meira República. O declínio e a transfigura­
deriva de estado e estatista, alcançou m aturi­ ção da administração pública fornecem-nos a
dade ainda mais cedo no século passado; sua chave para a explicação da ênfase na política
importância cresceu à medida que os E sta­ pública. A administração pública tradicional
dos se democratizavam e os indivíduos pas­ foi praticamente eliminada da APSA por
savam a ter alguma relevância. A am ostra­ obra e graça de uma única e diabólica in­
gem já era também bastante avançada e ex­ fluência, a de H erbert Simon, que transfor­
tensamente praticada, especialmente nas mou o campo de estudos pelo rebaixamento
ciências agrárias (Porter, 1986, pp. 23-25). Já de seu discurso. Simon reduziu o fenômeno
se faziam experiências com pesquisas de opi­ burocrático à menor unidade possível, a de­
nião pública para campanhas eleitorais desde cisão, e introduziu a racionalidade para vin­
1892, a despeito das objeções de muitos de­ cular as decisões ao sistema — não a um sis­
fensores da santidade das eleições (Jensen, tema qualquer, mas ao sistema econômico.
1969, pp. 228-229). Logo depois, essas pes­ Seu doutorado foi obtido em ciência política,
quisas foram adotadas pelas em presas de pu­ mas o prêmio Nobel foi ganho em economia.
blicidade e pelos jornais. Contudo, o estudo Mas Simon não fez tudo isso sozinho.
da opinião pública só veio a tornar-se uma Sua façanha intelectual beneficiou-se com as
subdisciplina hegemônica no interior da ciên­ mudanças efetivamente ocorridas nas insti­
cia política com o advento da Segunda R e­ tuições administrativas da Segunda Repúbli­
pública. ca. D urante a Primeira República, a autori­
A genealogia da política pública, como dade administrativa continha um pouco da
subdisciplina, é ainda mais longa do que a da sólida tradição de separação entre o público
área de opinião pública, em bora a primeira e o privado por intermédio de uma multipli­
tenha dem orado mais de um a década para cidade de regras e procedimentos legais reu­

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nidos no que Joseph Vining denomina de que toda hipótese que vai além do ator ra­
“magistral mito do império da lei”. N a Se­ cional leva ao misticismo e à irracionalidade
gunda República, essas regras e mitos caí­ (Goldfield e Gilbert, 1990, pp 14-15). Esses
ram por terra — não por si mesmos, mas em comentários já nos indicam uma pista para a
virtude da ascensão do pensam ento econô­ explicação política das razões pelas quais a
mico tanto no m undo dos negócios quanto escolha pública veio a se tornar a área mais
no governo (Vining, 1978, p. 27). quente da ciência política atual.
A hegemonia da área de política pública A despeito dos méritos que a análise da
desenvolveu-se nesse contexto, ofuscando o escolha pública possa ter como método e in­
próprio comportamentalismo. Os estudos de dependentem ente da fidedignidade das ver­
política pública no âm bito da ciência política dades que afirma, a hegemonia dessa sub-
ao longo da Primeira República basearam-se área hoje em dia decorreu de causas políticas
no direito público e na economia institucio­ ou, para usarmos uma expressão mais nobre,
nal. Alguns desses trabalhos, hoje fora de de razões de Estado. Permitam-me ilustrar
moda, ainda se encontram disponíveis, mas a esse argumento nos termos bem tangíveis do
abordagem m oderna deve ser definida com ator racional: a maioria dos luminares dessa
mais precisão como um campo de análises subárea da ciência política tiveram origem,
de políticas públicas, que se inspira nos m é­ exerceram cargos ou estão efetivamente
todos da macroeconomia e nos sistemas de trabalhando nas mesmas jovens universida­
pensamento econômico. A melhor maneira des que mantiveram acesa a chama da ideo­
de dem onstrar a extensão e o caráter dessa logia do livre-mercado: Chicago, Rochester,
nova subdisciplina é chamar a atenção para a Washington University of Saint Louis (e
presença de cursos de análise de políticas também não se deve esquecer dos assessores
nos departam entos de ciência política e para do Federal Reserve em Saint Louis) (John­
o extraordinário crescimento dos programas son, 1991). Vale notar que, mais uma vez,
isolados de análise de políticas, ao lado dos não se trata de oportunismo político, mas de
requisitos de conhecimento de economia, vi­ consonância institucional — uma relação
gentes nas escolas de administração pública simbólica entre Estado e ciência política.
e política pública, além das faculdades de di­ As afinidades entre o moderno governo
reito. Em todos esses centros de formação burocrático e a economia — já bastante for­
profissional os estudantes estão aprendendo tes — foram ainda consolidadas pelo renasci­
a nova linguagem do Estado. m ento da popularidade política da ideologia
Não há desserviço para a área de esco­ do laissez-faire no interior do Partido R epu­
lha pública em associá-la a um outro com en­ blicano. D urante a maior parte deste século,
tário de Mannheim, datado de 1929, de que, o liberalismo do tipo laissez-faire (er­
na ciência política de um Estado burocrático, roneam ente chamado de conservador) havia
“um homem da economia, um homem da constituído o eixo de gravitação do Partido
política etc., independentem ente de época e Republicano. Mas, depois da Depressão, es­
raça, pode ser form ado a partir de umas sa ideologia surtiu pouco efeito entre os elei­
poucas características axiomáticas” (M an­ tores e ainda perdeu espaço no meio dos in­
nheim, 1936, pp. 167-68). E prossegue ainda telectuais das ciências sociais. Poucos dentre
Mannheim dizendo: “Apenas o que se podia estes intelectuais participavam dos círculos
saber por meio da aplicação desses axiomas partidários republicanos. A expressão inte­
era considerado digno de ser conhecido. T o ­ lectual conservador não passava de mais um
do o resto derivava da contum az ‘diversidade paradoxo. É claro que, hoje, as administra­
do real’, de que não era necessário ocupar-se ções republicanas estão tão abarrotadas de
a teoria ‘pura” (p. 168). Vale com parar essa intelectuais quanto os institutos de pesquisa
idéia com a arrogante declaração de Ken- filiados ao partido e as seções especializadas
neth Arrow, quase quarenta anos depois, de da grande imprensa. Não vejo ainda sinais de

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um assalto republicano à APSA, mas posso representativa tão pública quanto o Con­
distinguir um beneficiário da era do Partido gresso. A ascensão da economia como lin­
Republicano na ciência política: a disciplina guagem de Estado encontra paralelo no de­
da escolha pública. O campo de estudos está clínio do Congresso como instância criadora
repleto de pessoas de valor, mas a hegemo­ do poder legislativo. (Esse argumento está
nia da área não tem quase nada a ver com desenvolvido com mais profundidade em
seus méritos. Seu êxito, como grupo, é intei­ Lowi, 1991.) A capacidade de formular polí­
ramente eventual. ticas é menos delegada ao órgão do que a
Nós, cientistas políticos, tam bém temos fórmulas decisórias inerentes ao órgão. A
um pouco da sabedoria primitiva de um Mr. utilização da análise econômica para blo­
Dooley, cuja proposição científica mais fa­ quear o debate fortaleceu-se à medida que
mosa era a de que “tanto faz se a Constitui­ os republicanos descobriram que esse tipo
ção acompanha a nação ou não; a Suprema de análise podia ser empregado com igual
Corte segue de perto os resultados das elei­ eficácia tanto a seu favor quanto a favor dos
ções”. Com um a certa fidalguia poderíamos democratas — por meio da manipulação do
dizer “a APSA acompanha de perto o Le- aspecto dos custos, em lugar do dos benefí­
viatã”. cios, numa análise de custos-benefícios. R e­
Concluo m eu raciocínio expondo as três comendo que se ouça a crítica de John
conseqüências dessa proximidade excessiva Schwarz â escandalosa manipulação pratica­
com o Leviatã que m e parecem mais impor­ da por Murray Weidenbaum dos “custos de
tantes. Em primeiro lugar, deixamos de per­ regulação” que sustentou o compromisso da
ceber e avaliar o significado da ascensão da administração Reagan com a desregulamen-
economia como linguagem do Estado. Em taçâo da economia (Schwarz, 1988, pp. 90-
segundo lugar, não conseguimos identificar 99). Devo confessar, porém, que democratas
até que ponto essa linguagem nos transfor­ e republicanos foram mais inteligentes do
mou num a ciência tão pobre quanto a eco­ que os cientistas políticos, pois os primeiros
nomia. Em terceiro lugar, por term os estado encararam o assunto como arm a estratégica,
tão perto do Leviatã, fracassamos na com ­ enquanto que nós o tomamos como ciência.
preensão, caracterização e avaliação das A verdade é que nós acreditamos piamente
grandes marés ideológicas que acompanham na economia antes de submetê-la a uma aná­
as mudanças de regime. lise política.
Q uanto ao primeiro ponto, pergunto: e Deveríamos ter prestado atenção para o
por que logo a economia? Q ue vantagem a fato de que a economia quase nunca preten­
economia traz para a política? Se a economia de falar a verdade ao poder. Se verdades
sempre foi um a ciência preditiva cheia de fa­ substantivas fossem anunciadas, seria aberto
lhas, por que exerceu tam anha atração sobre um espaço para a contestação. Mas a econo­
os dirigentes e burocratas do novo Estado? mia, principalmente se a consideramos como
Por que ela sem pre pareceu tão sedutora pa­ uma ciência que formula políticas, ressalta
ra os cientistas políticos? acima de tudo o método. E a chave para o
Meu diagnóstico levou em consideração m étodo está no seu vocabulário, que é o do
um comentário feito trinta anos atrás pela índice. U m índice não é uma verdade, mas
renomada economista Joan Robinson: “A um acordo ou convenção entre os usuários a
economia ... sem pre foi em parte um instru­ respeito da melhor alternativa para a verda­
mento da ideologia dom inante de cada pe­ de. Mi, a média Dow-Jones, o IPC, a taxa de
ríodo histórico, em parte um m étodo de in­ desemprego, o PNB: este é o novo governo
vestigação científica” (Robinson, 1962, p. 1). representativo, um índice que representa
A conclusão a que chego é que a análise eco­ uma verdade. Os índices são dotados de ca­
nômica é politicamente útil porque bloqueia pacidade analítica porque se enquadram em
o debate, principalmente num a assembléia sistemas definidos e, certamente, os sistemas

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também não são verdades, mas ficções úteis. Por último, volto-me para a questão do
(Diga-se de passagem que não estou refu­ nosso fracasso na identificação ou diagnósti­
tando os índices ou os sistemas. Faço apenas co das marés ideológicas que se seguem às
uma avaliação política de ambos.) mudanças de regime. O tempo de que dispo­
Passemos, pois, à segunda conseqüên­ nho permite-me apenas fazer um breve in­
cia, a de que o Estado burocrático moderno ventário das oportunidades perdidas, mas
fez da ciência política mais um a disciplina acredito que elas falem por si mesmas.
pobre. O adjetivo não conota apenas a pro­ A distância de quase cinquenta anos fa­
dução de previsões sombrias, segundo a tra­ vorece a percepção do que nos escapou a
dição malthusiana — refiro-me à ausência de respeito do New Deal como um novo regi­
paixão. me. Em bora os cientistas políticos tenham
Ao longo de minha peregrinação, tive captado no ar o significado do novo liberalis­
ocasião de ouvir freqüentes reclamações a mo, eles não conseguiram distinguir se todos
respeito da American Political Science R e­ os elementos dessa ideologia eram coerentes
view. Concordo com pelo menos um a delas, com o liberalismo ou com o constitucionalis­
mas não a tom o como exclusividade da mo. Deixaram, por exemplo, de entender e
APSR. Pouquíssimos artigos procuram avaliar o significado do “direito administrati­
transcender a análise no sentido de alcançar vo”. Foram capazes de observar, mas limita-
um nível de discussão mais abrangente. Em ram-se a saudar, a transferência de poder do
conseqüência, há pouco estímulo para a con­ Congresso para a órbita do executivo. Na­
trovérsia substantiva. Pode-se alegar que quele momento, essa transferência de poder
uma revista científica deve ser dedicada à ré­ significava apenas o cumprimento do progra­
plica e à refutação. Mas a verdade é que ma do New Deal. Mesmo com o passar do
poucos artigos refutam alguma coisa com in­ tempo, a tendência foi de explicar as m udan­
dependência; e ainda que o fizessem, a refu­ ças segundo sua coerência com os nossos
tação pura e simples é muito pobre. A ciên­ modelos de sistema político. Não houve pra­
cia política é ainda mais hard do que as as- ticamente nenhum a pesquisa séria que se
sim-chamadas ciências hard porque lida com dedicasse a verificar se as modificações na
um universo não-natural, que exige julga­ doutrina constitucional, na estrutura do go­
mento e avaliação. Sem isto, não pode haver verno e nas políticas praticadas constituíam
amor ao assunto, apenas um compromisso uma mudança de regime. Alguns republica­
profissional com o m étodo e o processo de nos sugeriram que os Estados Unidos ha­
análise. O Estado m oderno transformou-nos viam aderido ao regime socialista, mas a
numa ciência pobre e nós a tornam os mais ciência política não deu resposta a essa pro­
miserável ainda por conta da prática científi­ vocação. Deveria ter sido um assunto de
ca de nos retirarm os para bem longe da ex­ interesse primordial, assim como de grande
periência dos sentidos. Os cientistas políticos satisfação, lançar-se com gosto na disputa
sempre quantificaram tudo o que puderam, pela definição dos critérios de determinação
sempre que puderam; a maioria procurou do momento em que uma mudança política
ser rigorosa, mas eles permaneciam muito é suficiente para constituir uma mudança de
perto da experiência sensorial. Até mesmo regime. O New Deal ajudou-nos a ter uma
com o auxílio de nosso instrum ento mecâni­ nova ciência política, mas não nos forneceu o
co originário, o separador-classificador de estímulo necessário para o diagnóstico do
cartões, era possível m anter um a relação novo.
sensorial com os dados. Q uanto prazer havia Encontramo-nos, neste momento, dian­
em ficar olhando os cartões caírem em seus te de mais um fracasso, o de não termos
escaninhos! E como é lamentável que os em- compreendido a natureza e o alcance da m u­
piristas de hoje som ente contem com seus dança ideológica que vem acompanhando a
printouts'. era republicana atual. A incapacidade da ad­

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ministração Reagan para concluir qualquer tade no âmbito de relações puram ente de
programa im portante do New Deal deveria, mercado e nunca defenderam o ideal do in­
no mínimo, levar-nos a refletir sobre a natu ­ dividualismo racional, menos ainda sua me­
reza do próprio New Deal como um novo re­ todologia. (Muitos intelectuais conservado­
gime. Até mesmo um a avaliação a posteriori res, de origem católica, tentaram, sem suces­
seria valiosa. E nquanto isso, a era republica­ so, encontrar uma forma confortadora de
na tem introduzido profundas modificações harmonização entre suas idéias e o liberalis­
ideológicas que a ciência política está deixan­ mo do mercado livre.) Intelectuais conserva­
do de ver, em bora nossas próprias pesquisas dores vêm trabalhando como redatores para
de opinião pública estejam mostrando seus o poder executivo e são responsáveis pela
sinais. A ciência política não conseguiu per­ maior parte da literatura que ataca violenta­
ceber e avaliar os dois elementos distintos mente o Congresso e o governo repre­
que compõem a coalizão republicana: o ve­ sentativo. Assim como os cientistas políticos
lho liberalismo do livre m ercado e o autênti­ não se deram conta do significado ideológico
co e puro conservadorismo. A ciência políti­ da literatura que defendia o poder presiden­
ca tem permanecido impassível e tem permi­ cial dos partidários do New Deal nos anos 50
tido que os candidatos republicanos e seus e início dos 60, estamos deixando passar o
assessores intelectuais considerem o núcleo significado do fato de que a maioria dos es­
tradicional do liberalismo republicano do livre tudos que ora defendem o presidencialismo
mercado como conservador para depois origina-se da extrema-direita. Os intelectuais
ocultar o delito estigmatizando o liberalismo de extrema-direita assinam também boa par­
como uma crença alienígena afim ao socialis­ te dos novos trabalhos acerca da fundação
mo. Esse abuso extremado praticado contra do Estado, com o objetivo não só de contri­
uma terminologia rica vem literalmente en ­ buir para a erudição histórica, como para re­
venenando o discurso político nos Estados construir sua constituição de forma a situar a
Unidos, e grande parte da culpa por essa si­ Presidência acima da lei e a ação positiva
tuação cabe à ciência política. abaixo desta.
Da mesma maneira, também deixamos Não procurei de modo algum disfarçar
de atentar para a ascensão de um autêntico meu antagonismo frente à ideologia da era
conservadorismo. A pesar de nossas pesqui­ republicana. Mas considero minha posição
sas terem revelado significativos movimentos pessoal irrelevante. Cientistas políticos de es­
reacionários, continuamos a considerar m e­ querda, direita ou de centro igualmente fa­
ras aberrações o fenôm eno de Falwell e seus lharam na tarefa de sustentar uma visão crí­
antecedentes como a Cruzada Cristã Antico­ tica e nítida da consciência política. Análises
munista. Assistimos passivamente à reunião causais e formais de feixes de variáveis não
do liberalismo com a ala francamente direi­ serão suficientes, assim como também não o
tista do conservadorismo, como se entre eles serão as tentativas meticulosas de realizar
houvesse uma oposição coerente ao governo pesquisas originais. Já é tempo de nos tor­
central. Os republicanos defensores do lais- narmos intelectuais.
sez-faire, com o apoio de seus economistas, Ao término de minha peregrinação,
defendem um ideal de individualismo radical chego à conclusão de que, entre os maiores
e consideram todo tipo de governo como pecados por omissão da ciência política mo­
uma ameaça à liberdade. Ao contrário, os derna, está o de ter preterido a paixão. Não
conservadores autênticos não são individua­ existem exames de qualificação para ingres­
listas, mas estatistas. Eles desejam um con­ sar na APSA. Mas se me fosse dado o poder
trole policial rígido e restrito por parte do de estabelecer padrões, eles incluiriam o de
Estado e dos governos locais, mas não dei­ que um associado deveria ter amor pela polí­
xam de ser partidários do Estado. Os conser­ tica, deveria am ar uma boa Constituição,
vadores autênticos jamais se sentiram à von­ sentir uma grande alegria na investigação das

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relações entre am bas e estar preparado para manda pela transferência de insights a res­
perder algumas batalhas no front doméstico peito dos padrões de funcionamento das ins­
e internacional a fim de m anter viva um a re­ tituições nas democracias liberais, particular­
lação positiva entre os dois. Não defendo a mente nos Estados Unidos. Quem dera que
paixão da ideologia, em bora não a descarte. essa dem anda consiga deslocar os cientistas
Refiro-me ao prazer de descobrir um pa­
políticos americanos da sombra do Leviatâ e
drão, ao estímulo espiritual que se obtém
os transporte a níveis mais elevados e mais
com a elaboração de um argum ento sólido, à
satisfação de ter tido um a boa idéia acerca amplos de discussão que façam jus à impor­
do funcionamento da democracia e de ter tância do problema. Não é hora para brin­
dado um belo em purrão em direção ao carmos de rei-fílósofo. Esta é uma oportuni­
avanço das perspectivas da racionalidade no dade para irmos ao encontro de nossas pró­
com portamento humano. prias necessidades intelectuais sem abando­
As mudanças de regime que vêm se narmos o serviço do interesse público. Não
processando em todo o mundo desde 1989 precisamos nos preocupar em falar a verda­
deveriam fornecer-nos um horizonte mais de para o poder. Basta que falemos a verda­
claro a respeito de algumas das novas ciên­ de para nós mesmos.
cias da política. Em bora poucos dentre os
novos regimes recém-estabelecidos venham
a ser democracias liberais, eles estão provo­ (Recebido para publicação
cando um extraordinário crescimento da de­ em maio de 1994)

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