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e
seu
contexto
Módulo 01
O AT e o papel da tradição oral
MÓDULO 1
O ANTIGO TESTAMENTO
E O PAPEL DA TRADIÇÃO ORAL1
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Sempre que encontrar algum termo negritado em azul, consulte seu significado no glossário da
unidade.
Eagle Gestão de Ensino
A Bíblia e seu contexto
MÓDULO INTRODUTÓRIO – ESPECIALIZAÇÃO EM EXEGESE BÍBLICA
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Sempre que encontrar algum termo negritado em azul, consulte seu significado no glossário da
unidade.
Eagle Gestão de Ensino
A Bíblia e seu contexto
MÓDULO INTRODUTÓRIO – ESPECIALIZAÇÃO EM EXEGESE BÍBLICA
4.1.6. Teologia
4.2. Perguntas da investigação exegética
4.2.1. Tema central e o fio-condutor
4.2.2. Gênero e estilo literário
4.2.3. Código
4.2.4. Intentio Auctoris
4.2.5. Destinatário
4.2.6. Intentio Lectoris
4.2.7. Recepção
4.2.8. Metodologia
UNIDADE 5 - AS TRÊS CRONOLOGIAS
5.1. A Cronologia do Evento
5.2. A Cronologia da História
5.3. A Cronologia do Texto
5.5. Ver e entender para não esquecer : A arte de Hudson Silva
5.6. Referências Bibliográficas deste Módulo
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UNIDADE 1
APROXIMAÇÕES E BARREIRAS CONCEITUAIS
A Bíblia é o livro que alimenta a fé cristã, mas teve sua origem na mais antiga tradição
judaica e ambos os segmentos religiosos sempre exerceram muito controle sobre a leitu-
ra e interpretação do texto bíblico. No caso do judaísmo o rabinismo ortodoxo consti-
tuiu grandes escolas de interpretação bíblica. No caso do cristianismo, a igreja católica
sempre dominou o processo de leitura e interpretação, principalmente pelo uso persis-
tente do latim nas liturgias. A Reforma Protestante causou uma grande ruptura neste
acesso exclusivo das lideranças da igreja ao texto bíblico.
Este desprendimento do controle da Igreja permitiu que o texto bíblico fosse questionado
pelo ceticismo racionalista. Todavia as grandes angústias humanas continuavam sem
resposta, e mesmo sem crédito científico a mensagem do texto bíblico nunca deixou de
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ser fonte de esperança para a humanidade e alimentadora das grandes reflexões teológi-
cas.
Grande parte dos problemas que enfrentamos na interpretação do texto bíblico é resulta-
do modo restritivo que nos obriga a interpretá-lo dentro dos paradigmas dogmáticos cris-
tãos. A Bíblia não está restrita ao cristianismo muito menos aos dogmas do catolicismo
romano. Inúmeros são os seus intérpretes até mesmo entre os segmentos cristãos pois a
pluralidade de cristianismos que não ficou sob domínio católico romano é bem variada.
Com isto uma diversidade de aproximações ao texto bíblico e, muitas vezes, a mescla
delas, costuma causar conflitos interpretativos. Vamos tratar dos mais frequentes, a se-
guir.
A Bíblia é um livro que conta muitas histórias. Ela não contém apenas os ditos de Yahweh
ou palavras de Jesus. Cada história tem seu contador. Por muito tempo não houve escri-
ta. Para que os relatos bíblicos fossem escritos os contadores de histórias tiveram que
ser ouvidos, cada qual contando do seu jeito, deixando na narrativa um pouco do seu
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próprio “tom de voz”. Quando lemos narrativas nas quais aparecem vozes de demônios e
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do diabo, a única forma na qual é possível continuar chamando aquele texto bíblico de
Palavra de Deus é percebendo que nem tudo que na Bíblia está escrito é, literalmente, a
Palavra de Deus.
Como esta é uma questão que sempre vem à tona quando iniciamos um curso como es-
te, quando um acadêmico diz: a Bíblia contém a Palavra de Deus não está nem men-
tindo e nem afrontando o texto bíblico. E quando um intérprete conservador diz: A Bí-
blia é palavra de Deus ele está, igualmente, correto.
Bíblia ser Palavra de Deus não limita-se ao registro das palavras que saíram da boca do
próprio Deus e que ficaram literalmente registradas. Admite-se a instrumentalidade hu-
mana no processo narrativo e com ela todas as suas implicações. Deus falou e aconte-
ceu, foi assim na criação do mundo. A Palavra de Deus é esta palavra criadora e criativa
que traz à existência eventos sobrenaturais e também à sua manifestação mais comum
coisas naturais e cotidianas. Uma pessoa que se aproxima do texto bíblico para ter um
encontro transformador com a Bíblia, como um espelho capaz de refletir o interior da
pessoa e apontar-lhe caminhos éticos mais excelentes passa por uma grande transfor-
mação. Independente do agente humano que escreveu aquela narrativa, a Bíblia criou
algo novo naquela pessoa, por isso ela é Palavra de Deus enquanto mensagem; e en-
quanto literatura, ela contém a Palavra de Deus.
Um segundo erro é a prática de uma leitura bíblica aleatória, sem método e sem persis-
tência investigativa. Muitos leitores se aproximam do texto bíblico apenas com intenção
devocional. Interessa-lhes serem consolados pelas esperanças ali contidas. Desta forma,
restringem-se a ler apenas aquilo que não lhes tira da “zona de conforto”. Separa-se um
“cânon favorito” e dedica-se apenas à leitura dos Salmos, Cântico dos Cânticos, Provér-
bios, os Evangelhos e algumas Cartas Paulinas porque estes textos nos fazem bem.
Os livros mais áridos, como Levítico, Números, Crônicas; as exortações dos tantos livros
proféticos e o Apocalipse, são evitados. O apelo ético e social destes textos nos deixa
desconfortáveis com nossa inércia existencial no que diz respeito ao bem-estar do próxi-
mo. Privilegiamos no AT os textos que mais refletem o amor de Deus e deixamos a face
da justa ira divina fora de nossas vistas. Esta
leitura seletiva vicia nossa interpretação.
Dizemos que muitos mandamentos do AT
não se aplicam mais aos nossos dias e en-
contramos a justificativa no fato de não es-
tarmos mais “no tempo da lei” e sim “da
graça”. Entender o propósito destes livros no
cânon requer pesquisa, e entender as suas
mensagens requer algo mais: persistência
investigativa. Acomodação não ajuda nestes
casos.
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A Bíblia é um livro teológico, seu texto foi escrito para atender às diversas necessidades
de um contexto religioso específico. Sua composição canônica tem o intuito de ensinar
seus leitores a viverem de um jeito que deixa o Deus revelado na Bíblia satisfeito. Os
“fiascos” humanos ali presentes pretendem denunciar aquilo que desagrada esse Deus.
Ignorar o fenômeno sagrado por trás e através do texto bíblico é reduzi-lo a um livro de
contos fantásticos que dificilmente teriam alguma utilidade para nossa realidade. No en-
tanto, quando entendemos a mensagem do texto no seu contexto original e seu propósi-
to teológico e didático, fica muito fácil atualizar seu conteúdo proporcionando sentido nos
nossos dias.
A Bíblia não surgiu como um livro de bases éticas e morais exclusivo do cristianismo, por
isso sua interpretação não está e nem pode ficar restrita ao sistema cristão de interpre-
tação bíblica. Ela foi escrita dentro da tradição judaica e se tornou o livro sagrado para o
cristianismo porque o Jesus histórico era um judeu e a igreja cristã surgiu a partir do
segmento judaico. Jesus leu a Bíblia como judeu, aprendeu a interpretá-la como judeu e
passou a ensiná-la como judeu. Muito do simbolismo da linguagem bíblica fica mal en-
tendido por ignorarmos a mística e a semiótica da interpretação rabínica que sustentava
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as tradições do Antigo Israel. O Novo Testamento é uma variante continuada dos precei-
tos contidos no AT, nunca uma contraposição.
As 95 teses de Lutero são um exemplo perfeito daquilo que uma leitura investigativa do
texto bíblico faz com os dogmas: confronta-os. Qualquer leitor atento das Escrituras per-
ceberá que o teor ético do texto bíblico legitima o poder religioso, mas questionará pro-
fundamente sua ética e os abusos de poder cometidos em nome de Deus. Um pesquisa-
dor bíblico adquire, bem cedo, a capacidade de libertar o texto bíblico das amarras dog-
máticas do institucionalismo religioso.
Vale ressaltar que uma leitura libertadora não é exatamente, uma leitura liberal. Muitas
vezes a leitura libertadora será bastante conservadora em sua forma de firmar paradig-
mas, enquanto uma leitura liberal pode deslegitimar a mensagem do texto bíblico.
Os escritores bíblicos escreveram carregados de impressões teológicas que, por sua vez,
eram fruto de suas experiências com o sagrado. Esta experiência teológica do redator do
texto e do povo onde ele está inserido é que inspira a pessoa a escrevê-la. A inspiração
é, portanto, a motivação que gera iniciativa redacional a respeito dos eventos onde os
redatores perceberam a intervenção de Deus na história de seu povo.
festação de Deus não está restrita aos livros canônicos na Bíblia porque Deus transcende
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o texto bíblico e nunca esteve limitado a manifestar-se apenas na cultura israelita. Israel
é apenas um exemplo das inúmeras manifestações de Deus da história, seu povo esco-
lhido, mas de forma alguma o único povo a quem Ele se revelou.
A melhor forma de solucionar esta tensão é separar estes três conceitos: A (i) revelação
de Deus é superior à (ii) inspiração e à (iii) canonização. O texto bíblico não foi “psico-
grafado”; ele foi revelado, processado, discernido, interpretado, redigido e colecionado.
Ter em mente esta sequência ajuda bastante o trabalho da exegese e da interpretação
bíblica. Não se deve lançar sobre o texto inspirado e sobre o cânon uma mística sagrada
como se eles fossem o próprio Transcendente. Deus é o único transcendente nesta reali-
dade. A inspiração, o texto e sua canonização estão humanamente sujeitos a este Trans-
cendente.
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UNIDADE 2
INTERFERÊNCIA DAS CORRENTES TEOLÓGICAS
O texto bíblico nos apresenta uma teologia do cuidado, que é chamada de Teologia Pas-
toral. Esta teologia ensina as pessoas a cuidarem umas das outras a partir do princípio
do amor ao próximo, ética relacional preponderante na mensagem bíblica. A teologia que
estuda o texto bíblico e que o interpreta é a Teologia Bíblica e é ela que alimenta a
Teologia Pastoral e por fim a Teologia Sistemática. A Teologia Bíblica é, portanto, a
mãe das outras teologias. Jesus lia, estudava e interpretava o texto bíblico antes
mesmo que houvesse cristianismo. A teologia do cuidado e a teologia sistemática foram
elaboradas em função do conteúdo bíblico e não o contrário. Por isso não é correto sub-
meter à Bíblia a uma teologia dogmática, ao contrário, a teologia dogmática deve ser
submetida à Bíblia.
Na Teologia Bíblica, se analisa o discurso sobre Deus apresentado no texto bíblico e sobre
sua revelação. A teologia bíblica conta com algumas ferra-
mentas de investigação bíblica, as principais são a (i) her-
menêutica e a (ii) exegese.
É impossível interpretarmos um texto com neutralidade, sem que nós mesmos estejamos
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fluenciada pela forma como enxergamos o mundo e esta cosmovisão tem tudo a ver
com as experiências que fizeram sentido na nossa existência. Se a hermenêutica é a óti-
quando o texto foi traduzido para a língua do seu leitor. O tradutor bíblico só pôde esco-
Um exercício exegético jamais pode sequestrar a vida de um texto bíblico. Este foi o
grande problema dos Métodos Histórico-Críticos usados na exegese influenciada pelo Es-
truturalismo no séc. XIX. Estes são métodos persistentes no estudo da forma do texto,
dos gêneros e de suas estruturas. São primorosos na crítica textual, na comparação das
diferentes versões originais, na investigação da forma do texto, na descoberta de erros
de redação e de cópia. Conseguem arrumar o texto bíblico em estruturas concêntricas
e quiásticas e encontram paralelismos mais variados possíveis entre os versos da po-
esia. São métodos dedicados a exaurir todas as possibilidades da arrumação na estrutura
de redação do texto bíblico.
ram a ter angústias mais profundas que o interessante jogo de formas e arrumações do
texto bíblico não preenchiam. Estávamos entrando na cultura pós-estruturalista onde
se perdia o centro de referência em quase tudo.
2.3.2. Fundamentalismo
2.3.3. Neo-ortodoxia
lheu usar a Bíblia para falar à humanidade e à igreja através dos tempos. [...] As
Escrituras não podem ser confundidas com a palavra de Deus. Ela não é diretamen-
te a revelação, mas testemunha da revelação de Deus. E, pelo testemunho do Espí-
rito Santo, ela recebe autoridade. As palavras dos testemunhos bíblicos são huma-
nas e, portanto, limitadas no tempo e no espaço. Seus escritores estavam sujeitos
a erros. No entanto, Deus pode usar qualquer parte das Escrituras, falha ou não,
para comunicar sua palavra de novo ao ser humano. (BAILÃO: 2013)
2.3.4. Evangelicalismo
Bailão ressalta que não é tarefa simples estabelecer o início do movimento evangelical,
todavia ele o situa nos avivamentos do Séc. XIX nos Estados Unidos e seus movimentos
missionários, mas com fortes raízes nos movimentos puritanos e pietistas que ocor-
reram nos EUA após a Reforma Protestante. Um dos marcos do Evangelicalismo é o
Congresso Missionário de Lausanne em 1974. Os evangelicais crêem que a Bíblia é a pa-
lavra de Deus e sua autoridade é dada pelo Espírito Santo. Acreditam que a Bíblia é iner-
rante em relação à sua mensagem, mas preferem o uso do termo “infalibilidade da men-
sagem” ao invés de “inerrância das Escrituras”, como fazem os fundamentalistas. O con-
ceito de “inerrância das Escrituras”
sofre relativizações consideráveis em
alguns aspectos da análise interpreta-
tiva dos evangelicais. Eles defendem
que a Bíblia interpreta a si mesma a
partir da mensagem central de salva-
ção. O método histórico-gramatical,
com ênfase nas questões textuais,
praticamente ignorando o contexto
histórico e social, é o mais frequente-
mente usado por exegetas evangeli-
cais.
bíblico. A leitura libertadora é ”política, social, econômica, popular, etc; uma diversida-
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de de leituras que têm em comum o fato de, junto com o povo, buscarem a prática de
superação de todas as opressões do mundo concreto.” (BAILÃO: 2013)
A linha orientadora da interpretação bíblica produzida nas disciplinas de nossa Pós Gra-
duação em Literatura Bíblica é mais semelhante à Teologia Dialética, todavia haverá
abordagens liberais, evangelicais, libertadoras e neo-ortodoxas. A abordagem, na medida
do possível será identificada, mas não será utilizada uma abordagem fundamentalista
porque ela não abre portas para a investigação exegética e, em geral, reputa as demais
abordagens a interpretações como heréticas pois considera perigosa e nociva a exegese
realizada com ferramentas mais científicas que “espirituais” (YOFRE:1994)
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UNIDADE 3
A TRAJETÓRIA DA TRADIÇÃO ORAL
A Bíblia é um livro que relata muitas histórias, mas seus livros não foram escritos com o
propósito de se tornarem historiografia. Para muitos eventos da história universal a Bíblia
ainda é o único testemunho escrito, seus escritores sempre foram muito variados e não
escreveram com o propósito de colocar nas narrativas princípio, meio e fim pleno em si
mesmo. Os compiladores dos grupos de livros tiveram mais noção cronológica e sistêmi-
ca do conjunto do que seus escritores. A intenção do texto é sempre pedagógica, é de
ensino e o texto deixa o sentido moral em aberto para que seus leitores de todas as eras
o completem.
A autoria dos livros bíblicos não esteve na mão de apenas 40 autores. Outras centenas
de pessoas escreveram sobre Samuel, Rute, Ester, Josué e todos os livros proféticos que
recebem nomes de pessoas. São outros os que contam suas histórias. Basta ver a quan-
tidade de vezes que estes personagens, em seus pró-
prios livros, são referidos como um “ele” ou um “ela”
da narrativa (citados na 3ª pessoa do singular), inclu-
indo eventos posteriores à morte deles.
Se você é uma pessoa que domina alguns conteúdos essenciais do idioma Inglês ou do
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notar uma grande diferença na construção da tradução de frases quando assistiu uma
versão dublada do mesmo filme.
Quando várias pessoas lêem um mesmo livro ou assistem a um mesmo filme, alguns
aspectos são vistos ou entendidos de formas diferentes por cada uma delas. Mas a es-
sência é a mesma. Todos são capazes de discorrer sobre o livro ou sobre o filme, man-
tendo umas ideias-chaves em comum, mas cada qual conta sua versão. O mesmo acon-
tece na tradição oral.
Tornou a ira do SENHOR a acender-se contra os israelitas, e ele incitou a Davi con-
tra eles, dizendo: Vai, levanta o censo de Israel e de Judá. (2 Samuel 24:1)
A pesquisa mais recente considera que os livros de Crônicas também passaram por longo
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processo de redação e que esta obra ficou completa por volta do II século AEC, quando
os judeus foram duramente testados em sua identidade religiosa pela opressão dos gre-
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gos. O relato de Crônicas se refere ao mesmo evento, porém registrou da seguinte for-
ma:
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A Bíblia e seu contexto
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Então, Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo de Is-
rael. (1 Crônicas 21,1).
Como pode haver tamanha contradição histórica na mesma Bíblia? Quem incitou quem?
Davi, Deus ou o Diabo? Quem está falando a verdade, Crônicas ou Samuel?
A resposta a estas perguntas será encontrada em três palavras básicas que orientam
todo o trabalho do exegeta: autor, data, ideologia.
Sobre Davi:
• Autor do evento: Quem praticou o recenseamento? Davi;
• Quando recenseou? Entre os séculos XI e X AEC (DONNER:528);
• Com que intenção praticou? Há um extenso debate teológico que não conse-
guiremos esgotar, nem é nossa finalidade neste momento, mas já podemos
saltar para o período seguinte...
Dos dias de Davi até os dias em que 2 Samuel foi escrito (aproximadamente 400 anos) a
história foi contada de boca em boca. Cada contador da história contou do seu jeito. De-
pendendo da região onde estava este contador e do círculo social ao qual pertencia, ele
dá mais ou menos ênfase a certos aspectos da narrativa de acordo com a finalidade com
a qual ele conta a história.
Um mesmo contador poderá enfatizar nuances diferentes dependendo de (i) qual seja o
seu público e (ii) qual a moral da história que deseja aplicar. As tradições representadas
neste texto evoluem de acordo com seus contadores ou cantadores, enfim, daquelas
pessoas que a transmitem sem o uso da leitura.
Chega um momento na história da tradição oral no qual é possível reproduzir aquele con-
teúdo narrativo de forma que tenham comum acesso e compreendam sua finalidade mo-
ral de modo geral e regulador. É neste momento que se sente necessidade de transfor-
mar a narrativa oral em narrativa escrita. Quando isto acontece a oralidade vira texto.
Vejamos o gráfico a seguir:
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Podemos nos perguntar: mas se o relato já estava documentado em Samuel porque foi
necessário escrevê-lo novamente em Crônicas? A resposta a esta pergunta se dá por
outras três palavras importantes: contexto cultural – identidade – teologia.
Os livros de Crônicas foram escritos num período da história de Israel no qual a identida-
de nacional estava muito ameaçada pela cultura helênica e pelo poder opressor dos se-
lêucidas, que marcaram o Império Grego com uma dominação muito cruel. No momento
em que Crônicas foi escrito (praticamente 800 anos depois de Davi e 300 anos depois de
Samuel), o povo tinha necessidades diferentes. Os eventos do passado precisavam ser
contados para ensinar novas lições, com novos propósitos morais e reguladores. A ten-
são sobre (i) os judaítas no séc. II AEC é muito diferente das tensões sobre (ii) os
israelitas da época da redação de Samuel e principalmente do período em que o
evento aconteceu, durante (iii) o reinado de Davi.
já escrito a fim de extrair dele lições não aprendidas no primeiro momento da redação
textual.
Quando o novo texto surge, ele precisa atualizar as diferentes tradições orais após a ela-
boração do primeiro texto mantendo sua essência para torná-lo normativo e regulador.
Se o evento precisa passar por uma releitura, isto é, um novo processo interpretativo,
ele pode contar a mesma história que o texto mais antigo com nova ênfase e finalidade,
isto é, com novo processo hermenêutico.
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A tradição oral não precisa alocar o evento numa data estabelecida no calendário, no
tempo e no espaço. Na oralidade o evento narrado tem vida própria, ensina suas lições e
comunica suas próprias intenções. A Tradição Oral conta o evento como se conta uma
história: “era uma vez”, ninguém sabe exatamente quando, mas sabe que aconteceu.
Considerando esta trajetória fica muito simples entender por que certos textos dentro da
Bíblia nos parecem tão contraditórios (como o exemplo utilizado e outros inúmeros con-
trastes que a literatura bíblica nos oferece). O estudo da linguística aplicada nos permite
identificar expressões que não eram usadas em determinada época, mas passaram a ser
utilizadas depois de certo período.
Por esta razão, nosso diálogo com o texto bíblico deve sempre buscar a origem deste
texto, tentar entendê-lo no contexto do seu surgimento, entender os processos econômi-
cos, sociais, políticos e religiosos pelos quais passou o grupo redator e o grupo receptor
original do texto. Compreender a história da tradição oral é tão importante quan-
to compreender a história da recepção do texto, e isto será feito numa disciplina
mais adiante em nosso curso.
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teriais da tradição oral. Na verdade estes momentos iniciais e finais não estavam
sempre e necessariamente distanciados no tempo. Os dois processos aconteciam
necessariamente juntos. (BARRERA:125)
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UNIDADE 4
PERGUNTAS FEITAS AO TEXTO
Nesta unidade veremos quais perguntas devem ser feitas ao texto bíblico para situar o
texto em sua base histórica e social. Também veremos quais perguntas são feitas ao
texto para especificar o roteiro exegético de investigação. Fazer as perguntas certas ao
texto bíblico é uma feliz aventura de descoberta de centenas de detalhes que nos passam
imperceptiveis numa uma leitura superficial.
Em que época e em que região foi escrito o texto? Há que se considerar que quando fa-
lamos da região onde nasce um texto não estamos falando de um livro inteiro estamos
falando de um trecho pequeno que está sob investigação exegética. No interior de um
único livro bíblico há vários pedaços menores que chamamos blocos de textos e os peda-
ços ainda menores dentro dos blocos chamamos de perícopes e este conceito vai nos
acompanhar até o final desta pós-graduação. A perícope é uma unidade de sentido
dentro do texto bíblico, que se extraída do mesmo consegue ser entendida por
si só.
Um livro bíblico é composto de muitos pedaços autônomos de narrativa que foram escri-
tos em diferentes épocas e lugares e depois foram colecionados, ordenados e enfim com-
pilados numa coletânea ordenada com uma lógica teológica, mas ele não nasceu desta
forma.
4.1.2. Autoria
4.1.3. Ideologia
Ideologia é um conceito denso e extenso quando se fala de narrativas bíblicas. Isto por-
que, teoricamente, nos ensinaram que todo escritor bíblico foi divinamente inspirado pa-
ra escrever do jeito que Deus desejava. Na verdade os escritores bíblicos viveram em
situações históricas complexas, com interferência de países estrangeiros dominando seu
território. Sua ideologia e sua teologia foram impregnadas de influência estrangeira e de
tentativas de definição teológica do próprio Israel tentando encontrar seu caminho de
obedecer a Deus e funcionar como um povo eleito.
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Qual é a ideologia presente no momento em que o texto está sendo escrito? Qual é o
sistema que regula o imaginário teológico dos autores do texto sob análise? Este imagi-
nário é transferido para o texto, mesmo que não corresponda ao imaginário dos perso-
nagens que protagonizam a narrativa, porque se fala de personagens de outro momento
da história, diferente do momento em que o texto está sendo escrito.
Que eventos históricos estão acontecendo quando este texto surge? Sabemos que os
eventos da história provocam mudança na forma como a tradição oral se comporta.
Quais são os eventos que estão sendo narrados no texto? O autor conta estas histórias
sob que tipo de influência do seu momento histórico? O que está acontecendo na política,
na economia, na história e na sociedade do momento em que o texto está nascendo?
Quais são os grupos sociais ali representados, tanto no mundo narrado no texto escrito
quanto no mundo do escritor do texto?
4.1.5. Identidade
Como Israel se percebe enquanto nação no momento em que o texto está sendo escrito?
Os episódios da história modificam a imagem que Israel tem de si mesmo: (i) Num mo-
mento o povo se proclama herança do Senhor e em (ii) outro momento histórico se diz
abandonado por Yahweh. O escritor bíblico também possui uma identidade enquanto is-
raelita e enquanto indivíduo. Como este escritor se percebe? Qual é sua identidade soci-
al? A que círculos sociais ele pertence?
4.1.6. Teologia
A forma como Israel compreende a identidade do seu Deus se reflete no texto. Como se
fala de Deus no grupo de pessoas que supostamente redigiu este texto ou ao qual per-
tence seu autor ou autores? Como Israel percebe Deus? Sabemos que os profetas tinham
uma percepção de Yahweh tão diferente da percepção que o povo e seus governantes
possuíam que muitas vezes eles ficavam contra o povo e seus governantes para conse-
guirem se posicionar ao lado de Yahweh. Como se fala de Deus neste texto? 27
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Qual é o tema central do texto? Toda perícope é escrita sobre um tema e a forma como
as ideias vão sendo construídas no entorno deste tema dão o enredo da narrativa, da
profecia ou do poema. Qual é o fio condutor que dá sentido à perícope?
Por se tratar de uma coleção de textos escritos em muitas épocas diferentes e por inú-
meras mãos, ele passou por diferentes processos redacionais algumas vezes mantendo-
se com acabamento literário rudimentar e outras de maior refinamento literário.
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Existem no texto bíblico tradições históricas, jurídicas, proféticas, sapienciais, dos cantos,
dos evangelhos, das epístolas e do apocalipse. Em cada uma destas tradições encontra-
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mos desdobramentos de estilos literários menores. Por exemplo, nas tradições históricas
4.2.3. Código
Como as palavras se articulam no texto? Da mesma forma que os gêneros e estilos são
usados com arte no texto bíblico, a forma como as palavras são escolhidas ou as frases
são construídas também possui um propósito na comunicação da mensagem. Aqui entra
um dos estudos mais ricos e fascinantes sobre o texto bíblico: a semiótica. A simbologia
das palavras dentro da cultura original e o propósito do uso desta simbologia quase ge-
ram uma pós-graduação à parte de tão rico que é o assunto. A forma de arrumar estas
palavras com carga simbólica também fornece uma lógica estrutural no texto que enri-
quecem a mensagem e chamam a atenção para seus aspectos viscerais.
O termo vem do latim para definir a intenção original do escritor do texto. Qual deve ter
sido a intenção original do autor do texto ao escrevê-lo? Quando estudamos um pouco da
tradição oral no módulo anterior, percebemos que todo nascimento de texto tem um ob-
jetivo pedagógico. O que o autor do texto tinha intenção de ensinar aos seus leitores
quando deixou o texto com sua composição final como chegou em nossas mãos?
4.2.5. Destinatário
Para qual grupo o texto foi originalmente redigido? Esta é uma pergunta de suma impor-
tância para o exegeta e que dificilmente passa pela mente do intérprete intuitivo da Bí-
blia. O texto foi escrito para um público original de leitores. Quem são estas pessoas? O
que elas faziam? Por que elas precisavam deste conteúdo?
Da mesma forma que o autor original tinha uma intenção ao escrever o texto, o leitor
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a qual o texto foi lido pelo seu público original? Se o redator deixou um texto escrito com
uma intenção, os seus leitores tiveram igual intenção ao lê-lo ou tiveram outras inten-
ções?
4.2.7. Recepção
Igualmente complexa é a história da recepção deste texto. Como o texto foi sendo rece-
bido e propagado pelos seus leitores dos tempos posteriores? O que os leitores do texto
faziam quando compreendiam e reproduziam tal conteúdo? Uma história da recepção do
texto analisa os elementos integrantes dos processos interpretativos dos textos gerados
pelas diferentes culturas que o interpretam. Por conta disso, dá especial valor aos mitos,
ritos, símbolos presentes, tanto nos textos sagrados quanto na cultura que o interpreta.
4.2.8. Metodologia
A metodologia utilizada para respondermos a cada pergunta que se faz ao texto será
estudada sistematicamente nas disciplinas Método Exegético, Exercícios Exegéticos
sobre o Primeiro Testamento e Exercícios Exegéticos sobre o Segundo Testa-
mentos. Esse é o objetivo principal deste curso, ensinar o pesquisador a fazer perguntas
ao texto bíblico e obter dele o maior leque possível de possibilidades de respostas.
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UNIDADE 5
AS TRÊS CRONOLOGIAS
Quando lemos o texto bíblico fluentemente, não nos damos conta que a história nele nar-
rada não está registrada numa perspectiva linear. Ela foi arrumada linearmente, na me-
dida em que as repetições de conteúdo foram permitindo. Mas a tradição oral por trás do
texto não tem compromisso com o tempo. A lição aplicada pela oralidade é permanente,
o importante é entendermos a “moral da história” que o contador de histórias quer que
reflitamos.
Um princípio fundamental para nos relacionarmos bem com as datações e períodos das
narrativas bíblicas é imaginarmos uma estrada grande, larga, com três pistas num mes-
mo sentido. Elas começam numa mesma origem e terminam num mesmo destino, mas
as pistas desta estrada não foram construídas ao mesmo tempo e nem com a mesma
função.
Imagine que a primeira pista, a mais lenta, a do canto direito é a linha do tempo que
estabelece a Conologia do Evento.
nos os períodos da história humana que os episódios aconteceram, mas não há uma pre-
ocupação em fixar datas. O evento fala por si próprio, ensina suas lições e comunica suas
próprias intenções. O evento narrado é fato consumado, e dali se começa a contar a his-
tória, que vai sendo repetida ao longo dos anos.
Quando o ser humano aprende a fixar períodos do tempo ele mesmo começa a contar as
histórias de sua existência. Histórias das quais ele tem
consciência. Não histórias que estão presas à lingua-
gem mítica que não se preocupa com datas. À crono-
logia da história interessa os eventos humanos com
períodos bem estabelecidos numa linha do tempo.
Esta linha do tempo é a Cronologia da História Uni-
versal.
Esta é a cronologia que usa elementos da pista da direita e da pista central, mas na ver-
dade, pelo seu poder de síntese histórica embutida no relato escrito, a pista da esquerda
é a que leva mais rápido ao destino. No texto estão contidos eventos da tradição oral,
eventos humanos da história universal e os eventos geradores do próprio texto que nas-
ce. O texto conta histórias do passado e do presente, e conta para atender necessidades
de um determinado momento na história deste grupo específico. Este direcionamento
cultural não pode se perder de vista.
A pista da direita é a linha do tempo mais antiga e mais longa. A pista central é bastante
longa, mas teve início em algum lugar da linha do tempo, a pista da esquerda é a mais
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recente, mas ela conta aquilo que foi vivenciado tanto na narrativa mítica quanto na his-
tória universal. O texto só pode ser produzido a partir do momento em que há escrita e
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Ilustração: Calendário de Gezer. Documento arqueológico mais antigo do mundo em
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BAILÃO, Marcos Paulo Monteiro da Cruz. O lugar da Bíblia na Igreja e no Mundo: uma
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