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artigos por Peter Drucker

E assim
começa o milênio…
Um resumo da realidade que está por vir, desde o
comércio eletrônico até as empresas do futuro,
passando por questões geopolíticas

Encontramo-nos no maior período de transição que já houve na história da humani-


dade desde a Revolução Industrial. Há vários indícios desse fato, e eu destacaria
especialmente dois:
Em primeiro lugar, é inegável que o social predomina em relação ao econômico, o
que é demonstrado pelas sucessivas crises nos sistemas de previdência social
–na maioria dos casos foi preciso mudar de modelo.
O outro, alarmante, é a proliferação de partidos políticos que incluem em sua
plataforma a resistência aos estrangeiros e barreiras contra a imigração. Movimentos
contra estrangeiros generalizam-se rapidamente.
A pergunta que está no ar é: para onde vamos daqui para a frente?

A mudança demográfica e os blocos regionais


Uma das principais explicações para os dois fenômenos citados é a mudança da
estrutura demográfica mundial. Na Europa, por exemplo, há um número cada vez
menor de jovens e, consequentemente, maior pressão imigratória. A convivência entre
as diferentes culturas não é fácil e as políticas muitas vezes não respondem como
deveriam a uma realidade social tão turbulenta.
Bem, o fato é que o número de pessoas jovens continuará sendo reduzido enquanto
a quantidade de representantes da terceira idade crescerá ininterruptamente. Essa
questão não resultará em aumento de protecionismo –segundo acreditam alguns– ou
no fortalecimento do livre comércio –na opinião de outros. Alimentará, isto sim, outro
fenômeno, que já surgiu no horizonte: o regionalismo.
A União Econômica Européia, o NAFTA e o Mercosul são grandes uniões regionais
que procuram ser auto-suficientes em seu abastecimento e constroem barreiras contra
o ingresso de empresas do exterior, enquanto liberalizam o comércio interno. Essa
nova realidade não tem precedentes. Por essa razão, ninguém sabe muito bem como
lidar com ela.
Não obstante, o tempo e o exercício dos mandatos farão com que políticos e líderes
empresariais encontrem o caminho apropriado. Qualquer que seja a evolução, sem
dúvida será um fator determinante em relação aos problemas políticos e econômicos
nos próximos 20 anos. Apesar de o problema demográfico ser uma realidade inegável,
não atinge da mesma forma todos os países (veja quadro).

O comércio eletrônico, o conhecimento das pessoas e o formato das empresas


Outro dado da realidade impossível de ignorar é o impacto da Internet na vida
cotidiana e o avanço do comércio eletrônico. Ninguém mais discute que as grandes
empresas não poderão sobreviver com sua atual configuração depois da conjunção
desses dois fatores. As razões são múltiplas, mas basicamente as empresas deverão
reformular-se porque, no comércio eletrônico, o centro de gravidade da cadeia de valor
desloca-se para o distribuidor, onde quer que se encontre.
Se somarmos as alterações demográficas já mencionadas a essa reconstrução da
cadeia de valor, com a consequente mudança do peso relativo de seus componentes, é
de esperar que os relacionamentos entre estes também sejam alterados.
Os especialistas e os profissionais que não se integrarem a uma organização formarão

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grupos de profissionais liberais ou consultores. Isso quer dizer que serão ao mesmo
tempo empregadores ou sócios de outros consultores, formando assim a base de uma
espécie de agência de trabalho temporário. Essa imensa rede terá uma força intrínseca
poderosa e uma assombrosa capacidade para expandir-se. Em outras palavras, pode-se
afirmar, sem dúvida alguma, que a empresa tradicional nunca mais será a mesma. E,
dentro de 25 anos, certamente estará extinta.
Entretanto, não parece lógico fazer essa afirmação quando as compras do controle de
empresas estão no auge, em todos os setores de atividade. Inegavelmente fusões e
aquisições têm impacto devido à envergadura de seus protagonistas ou das quantias
bilionárias que estão em jogo. Mas esse não é o único lado da moeda.
Não estamos dando atenção a outro processo igualmente agudo e coerente, mas que
não aparece nas primeiras páginas dos jornais: os inúmeros casos de desintegração,
de venda de divisões ou de separação de áreas e linhas de negócio, mesmo nas
grandes empresas. Na verdade, pode-se afirmar que estamos em um período de
“desconsolidação”.
Por exemplo, uma das maiores companhias fabricantes de produtos químicos do
mundo, a ICI, ou Imperial Chemical Industries, do Reino Unido, com mais de 70 anos
de existência, transformou 11 de suas linhas de negócio em companhias independentes
na última década. Além disso, decidiu concentrar-se somente em três linhas de
produtos e desligou-se das empresas autônomas de tamanho médio.
Estamos vendo a mesma coisa acontecer em empresas financeiras e, praticamente, em
todos os setores. Como nada é preto ou branco, em outro caso famoso realizou-se
a combinação das duas tendências –fusão e desconsolidação. Trata-se da recente
fusão entre a Mercedes-Benz e a Chrysler e que gerou a segunda maior empresa
automobilística do mundo, perdendo apenas para a General Motors. Agora tanto a
Daimler-Benz como a Chrysler estão enfrentando o processo complementar. Ambas
estão se desligando de seus negócios relacionados com defesa e com fabricação de
veículos pesados.
Até as instituições educacionais estão escolhendo modelos de crescimento diferentes:
não recorrem mais a aquisições ou fusões, e sim a alianças, associações e acordos.
Segundo os resultados de uma investigação privada sobre um grupo de 30 empresas
manufatureiras, realizada há dez anos, a grande maioria fazia parte de seis ou sete
alianças em média. Hoje são integrantes de mais de 200. Essa nova situação exige
novas habilidades dos executivos.
Boa parte da responsabilidade por essa evolução cabe ao comércio eletrônico,
cujo impacto nos diferentes setores não pode ser totalmente previsto. Ao integrar
e reintegrar cadeias de abastecimento e empresas, o comércio eletrônico tornou
a dar as cartas e convidou novos jogadores. Resta ver de que forma essas
mudanças vão ser acomodadas na mesa de jogo. Entretanto, o que não deixa
dúvidas é que o comércio eletrônico, no contexto da Revolução da Informação

Os países de língua inglesa

De como eles terão vantagem nos primeiros anos do século XXI há uma diferença
considerável na evolução demográfica dos países de língua inglesa e na dos
demais países do mundo desenvolvido. Nos Estados Unidos, no Reino Unido e na
Austrália o crescimento da população tem um ritmo muito diferente, em grande
parte porque durante muitos anos o ingresso de imigrantes, na maioria muito
jovens, foi permitido, quando não estimulado. Daí resultaram padrões migratórios
diferentes e uma estrutura etária mais uniforme, com menor preponderância de
pessoas na terceira idade.
O certo é que nesses países, sem a ajuda desses imigrantes, as taxas de natalidade
estariam muito abaixo do índice de produção, o que significa que essas sociedades
tenderiam a repetir o padrão europeu. Essa diferença nas políticas adotadas ao
longo do século XX garante que sua vantagem perdure ainda nos primeiros 20 anos
do século XXI, aproximadamente, antes que o perfil demográfico mude para um
quadro em que preponderará a população de terceira idade.

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mais ampla, terá um peso semelhante ao do surgimento das estradas de ferro


durante a Revolução Industrial.
Entre as múltiplas mudanças impostas ao conceito atual de organização pela nova
realidade interconectada, há uma que tem duplo perfil: por um lado exige um
sistema totalmente centralizado na alta administração; por outro requer uma estrutura
totalmente descentralizada de fornecimento de produtos e serviços.
As empresas que há poucos anos foram globalizadas por linha de produto agora são
divididas em unidades de negócio paralelas, ao redor de um eixo que também é o
centro da estratégia e do comércio eletrônico: a cadeia de distribuição. Esse tema é
vital, visto que há muita coisa a ser elucidada em relação aos melhores processos, além
da entrega física de objetos pelo correio tradicional, como acontecia com os livros.
No entanto, não se pode negar que, mesmo quando comprados pela Internet, os
automóveis ainda precisam ser retirados nas concessionárias. Apesar do avanço dos
processos eletrônicos, ainda há detalhes físicos que exigem atenção.

Os consumidores
A estrutura demográfica, o comércio eletrônico e a produtividade do trabalhador do
conhecimento –que permanecerá ativo durante cada vez mais anos– são fatores que
modificam a visão das empresas. Por outro lado, é preciso observar igualmente os
consumidores, que influem na determinação da realidade corporativa tanto quanto
os outros fatores. Quais serão as características dos consumidores em relação a
expectativas, demanda, hábitos e comportamento de compras? Por que escolherão uma
empresa e rejeitarão ou ignorarão outras?
Essas são perguntas difíceis de responder, mesmo diante da configuração tradicional
do mercado. Muito mais complexo será prever qual o impacto da nova realidade nos
consumidores e, temporariamente, qual será a influência do novo comportamento sobre
as empresas grandes e pequenas que procuram satisfazer suas necessidades. A única
coisa certa, como já se demonstrou neste mundo vertiginoso, é que haverá mudanças.
Em primeiro lugar, ninguém há de se preocupar com distâncias. O primeiro comprador
de meu último livro, publicado nos Estados Unidos, foi um argentino, meu amigo
pessoal, que o comprou pela Internet e, mais especificamente, na <amazon.com>. Foi
nesse site que ficou sabendo que era a primeira pessoa interessada em comprar o
livro. Ele não tem idéia de onde está a <amazon.com>. A Amazon não está preocupada
com o lugar onde mora meu amigo. No fundo, ninguém se importa.
A eliminação das distâncias é um avanço fenomenal na direção da universalização de
bens e serviços. É sinônimo de competição realmente mundial. Todas as empresas do
mundo concorrem com todas as outras empresas do mundo. Além disso, a qualquer
momento e em qualquer lugar. E concorrem para conquistar o mesmo consumidor.
À medida que a globalização apodera-se de uma parte da realidade, os valores locais
são paralelamente fortalecidos. Ambas as forças se complementam. Consequentemente,
embora os fornecedores vejam-se forçados a se globalizar para chegar ao mundo todo
com seus bens e serviços, não poderão abandonar sua cor local. Não têm outras
alternativas. Os fornecedores deverão saber muito mais a respeito do consumidor em
seu próprio mercado que o que a grande maioria sabe hoje.
As empresas domésticas geralmente dão pouca atenção ao consumidor. Não é o caso
de marcas como a Coca-Cola, cuja competência mundial e única justamente faz toda
a diferença. Mas será assim no caso da maioria dos produtos de consumo menos
associados a uma marca genérica. Nenhum empresário poderá ignorar qualquer dado
relativo a seus clientes mais próximos, e a tecnologia torna isso possível. Ao mesmo
tempo, apesar da explosão da Internet no mercado de massa, é muito provável
que a área de maior crescimento do comércio eletrônico seja o business-to-business,
entre empresas.

A mudança das prioridades


Uma das principais características do século XX foi a redução contínua do preço dos
produtos da terra: agropecuários, florestais, metais e minerais. Seu valor econômico,
comparado com o dos produtos manufaturados, diminuiu ao longo dos últimos anos

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mais de 50%. O principal beneficiário desse processo que afetou os países produtores
foi o Japão, visto que proporcionalmente importa mais produtos da terra que qualquer
outro país do mundo. Se o Japão precisasse pagar suas importações primárias hoje aos
preços de 1900, teria um déficit comercial impossível de ser administrado.
O mesmo processo está começando a afetar os produtos manufaturados. Isso significa
que os países que administraram melhor sua política econômica depois da Segunda
Guerra Mundial, isto é, a Alemanha e o Japão, são atualmente os países em maior
risco, pois dependem muito da indústria. Mostra ainda que os países subdesenvolvi-
dos não podem basear suas expectativas de desenvolvimento na mão-de-obra barata.
A produtividade da mão-de-obra nos países industrializados cresceu tanto que no caso
da maior parte dos produtos ela já não é mais um custo relevante.
Essa nova realidade mudará o equilíbrio da economia em todo o mundo e
dará cada vez mais ênfase à produtividade do conhecimento, que hoje ainda é
absurdamente baixa. O objetivo é aumentá-la a uma taxa de pelo menos 5% ou
6% (compostos) por ano.
É muito fácil conseguir esse objetivo quando se trata de habilidades técnicas, como,
por exemplo, a operação de equipamentos ou máquinas, porém é mais difícil no caso
de professores, um dos setores com a menor taxa de produtividade entre as profissões
baseadas no conhecimento.
Os engenheiros que fazem trabalhos rotineiros podem eliminar tarefas desnecessárias,
como escrever relatórios ou participar de reuniões, e assim ganhar mais tempo para
dedicar a sua atividade específica. Mas no trabalho dos arquitetos ou projetistas as
mudanças na atividade cotidiana que gera os aumentos de produtividade não são
tão claras. Apesar de tudo, a simples indagação sobre qual a tarefa, ou seja, a
contribuição de valor pela qual uma pessoa é paga, já bastaria para separar o principal
das interferências inúteis. Somente assim seria possível triplicar a produtividade, por
exemplo, dos enfermeiros dos hospitais.
Isso não implica eliminar completamente certas atividades administrativas ou burocrá-
ticas que não podem nem devem ser suprimidas. O importante é que não sejam
incumbidas delas pessoas com um nível maior de capacitação e conhecimento. Trata-se
simplesmente de redistribuir as pessoas com a capacidade necessária e suficiente de
realizar determinadas tarefas, e nada mais que isso.
Do mesmo modo, aplicar o empowerment não significa desfazer a cadeia de comando,
ou seja, eliminar todos os chefes. É preciso haver alguém na organização que tome
a decisão final. Caso contrário, a empresa entrará em crise mais cedo ou mais tarde,
frequentemente mais cedo do que tarde, porque é difícil assumir a responsabilidade de
uma decisão crítica em um ambiente onde prevalecem as deliberações coletivas. Por
essa razão a função do chefe, do líder, deve ser mantida.
Para cumprir a missão de chefe, essa pessoa, por sua vez, deve ser membro de uma
equipe que, resistências à parte, deve aceitá-la mesmo quando se tratar de um jovem
de 24 anos que não conhece ou domina todas as áreas do negócio. Ser líder hoje
não é uma tarefa simples; ela vai além da função de controle da cadeia de comando
típica e inclui uma alta porcentagem de marketing. É preciso saber como manter a
equipe unida e concentrada e, ao mesmo tempo, disposta a trabalhar em alianças.
Aptidões desse tipo serão exigidas de todo gerente ou profissional de administração
que queira exercer uma liderança eficaz. Geralmente nada disso é ensinado nas escolas
de administração.

Os novos emergentes
Embora não se possa negar que nos próximos anos veremos uma explosão do
comércio eletrônico, seremos também testemunhas de inúmeros fracassos. Para cada
empresa ferroviária que teve sucesso no século XIX houve duas que quebraram
ruidosamente. E outros padrões devem se repetir.
Honoré de Balzac, grande escritor francês, era apaixonado por uma condessa polonesa
que vivia na Ucrânia. Durante duas décadas ele a visitou, ano após ano. Em 1827,
quando foi vê-la pela primeira vez, a viagem foi feita em diligência, com cavalos.
Vinte anos depois, na despedida, Balzac inaugurou o trem. Com isso, quero dizer que,
quando as estradas de ferro apareceram, tal como o comércio eletrônico, eram uma
novidade absoluta. Elas cresceram rapidamente e isso também deve repetir-se no caso

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do comércio eletrônico. E, tal como aconteceu com o advento da locomotiva a vapor,


setores de atividade paralelos ao comércio eletrônico estão florescendo:
Os serviços financeiros estão crescendo em grande parte por causa de sua relação
com fenômenos demográficos. Em todos os países, desenvolvidos ou não, há um
número crescente de pessoas que chegam aos 50 anos e preocupam-se em ter uma
renda capaz de garantir sua tranquilidade futura.
Outro setor promissor é o da biogenética. Há pouco tempo a Stanford University
recebeu a maior doação já feita a uma universidade: US$ 50 milhões para criar
uma nova faculdade de biomecânica. Na Claremont University também abrimos uma
faculdade de bioengenharia, que oferece seis programas diferentes e está crescendo
rapidamente. Inúmeros casos iguais a esses vêm se repetindo.
Se alguém me perguntasse qual será o maior setor na primeira parte do século
XXI, eu me inclinaria para a pesca, para a piscicultura. Ao contrário de outras
épocas, o consumo de peixe vem aumentando. O salmão é um bom exemplo: 80%
de sua produção é feita em fazendas de criação, tal como acontece com outros
tipos de peixe.
Por outro lado, se a pergunta fosse em que lugar do mundo o desenvolvimento
econômico será mais notável na próxima década, sem dúvida eu diria que a China é
o país mais promissor e, ao mesmo tempo, mais perigoso. A partir de 1650 a China
teve uma revolução camponesa a cada 50 anos. A de Mao Tsé-tung foi a primeira a ter
sucesso e já é cinquentenária. A tensão social é tão grande que se pode senti-la no
ar. Em um extremo está o pequeno grupo de habitantes da zona costeira, atualmente
mais próxima do mundo desenvolvido; e no outro está a grande massa de camponeses
espalhados por todo o território. A China, consequentemente, pode ser considerada um
país até certo ponto imprevisível.
Por último, se a pergunta fosse no sentido de identificar a área de desenvolvimento
com maior produtividade, a resposta seria o conhecimento. Conceito esse que não se
limita à capacidade pessoal. Significa, em primeiro lugar, assistência educacional e,
depois, a promoção da tecnologia da informação, ferramenta fundamental sobretudo
para países como o Brasil, cuja maior fraqueza é o analfabetismo. Se o sistema
educacional não for reforçado, será quase impossível aumentar a produtividade do
conhecimento.

© Peter Drucker

O vienense Peter Drucker é o mais notável autor, filósofo, consultor e professor de administração
de empresas do século XX. Escreveu mais de 30 obras, a maioria clássicos indiscutíveis, como
Sociedade Pós-Capitalista (ed. Pioneira). Em agosto deste ano, a HSM Cultura & Desenvolvimento
organizará no Brasil um seminário com Drucker por teleconferência e Tom Peters ao vivo.

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