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Aula 04: Introdução à Teoria

Tridimensional do Direito de
Miguel Reale
Rodrigo Costa Ferreira∗
rodrigouepb@yahoo.com.br
rodrigoufrn@yahoo.com.br
CCJ – UEPB – UFRN

Texto em Construção

12/04/2018

Para os meus alunos.

Resumo

Para a Teoria Tridimensional do Direito (TTD) de Miguel Reale, grosso modo,


a experiência jurı́dica possui uma estrutura tridimensional constituı́da pelas
dimensões fato, valor e norma, as quais formam uma unidade ao se implicarem
mutuamente (dialética de complementariedade). Esta aula tem por objetivo
introduzir o leitor no estudo da TTD como delineada pelo filósofo do direito
Miguel Reale. Para tanto, discutimos uma a uma as dimensões fato, valor e
norma, bem como a noção de dialética de complementariedade.

Palavras-chave: Tridimensionalidade Jurı́dica; Fato Jurı́dico; Valor; Norma


Jurı́dica; Dialética de Complementariedade.

Sumário: 1. Considerações Iniciais – 2. Por que Estudar a Teoria Tridimensional


do Direito de Miguel Reale? – 3. A Estrutura Tridimensional do Direito Segundo
Miguel Reale – 3.1. Para Entender a Dimensão Valor – 3.2. Para Entender a
Dimensão Fato – 3.3. Para Entender a Dimensão Norma – 3.4. Dialética de Com-
plementaridade – 4. A Tridimensionalidade Especı́fica de Reale: Vigência, Eficácia
e Fundamento.


Doutor em Filosofia Analı́tica pela UFPB–UFRN–UFPE; Mestre em Lógica Matemática pela
UFPB; Professor Adjunto de Filosofia e Teoria do Direito na Universidade Estadual da Paraı́ba
(UEPB – CCJ) e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN – DA – CERES).

1
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 2

1 Considerações Iniciais
A Teoria Tridimensional do Direito (TTD) de Miguel Reale é o resultado
de décadas de pesquisa. A sua TTD é a princı́pio enunciada, ainda que de modo
embrionário, na obra Teoria do Direito e do Estado de 1940, tendo ela recebido um
“burilamento final” tão somente com a publicação dos livro Experiência e Cultura
nos anos de 1977 e 2000.
Observemos que a TTD de Miguel Reale é elaborada ao longo de várias
obras: Fundamentos do Direito (Ed. 1o , 1940); Teoria do Direito e do Estado (Ed.
1o ., 1940); Fundamentos do Direito (Ed. 1o ., 1940); Filosofia do Direito (Ed. 1o .,
1953), Teoria Tridimensional do Direito (Ed. 1o ., 1968), Experiência e Cultura
(Ed. 1o , 1977), O Direito como Experiência (Ed. 1o ,1968; Ed. 2o , 1992), Fontes e
Modelos do Direito (Ed. 1o , 1994) e Lições Preliminares de Direito (Ed. 1o , 1999).
Em alguns dos diversos textos que produziu sobre a sua TTD, Reale propõe
investigações minuciosas sobre cada uma das dimensões fato, valor, norma e a
dialética de complementariedade (ou dialética de implicação–polaridade). Enten-
demos que estas investigações se desenrolam como a seguir: (1) Reale parece ter
dedicado uma atenção especial à pesquisa da dimensão valor na sua Filosofia do
Direito (Ed. 1o ., 1953); (2) já a dimensão fato parece ter sido melhor estudada no
Direito como Experiência (Ed. 1o ,1968; Ed. 2o , 1992) e nas Lições Preliminares
de Direito (Ed. 1o ,1999); (3) a dimensão norma, por sua vez, é exposta com mais
detalhes na Teoria Tridimensional do Direito (Ed. 1o ., 1968), Fontes e Modelos do
Direito (Ed. 1o , 1994) e O Direito como Experiência (Ed. 1o ,1968; Ed. 2o , 1992);
e, por fim, (4) a dialética de complementariedade é tratada concisamente na Ex-
periência e Cultura (Ed. 1o , 1977; Ed. 2o , 2000). Pretendemos nas seções a seguir
percorrer esse roteiro, além de abordarmos na sequência os modelos de validade da
norma jurı́dica sugeridos por este autor: fundamento, eficácia e vigência.

2 Por que Estudar a Teoria Tridimensional do Di-


reito de Miguel Reale?
Já na Teoria do Direito e do Estado, publicada inicialmente em 1940, Mi-
guel Reale compreende o direito como “uma integração normativa de fatos segundo
valores”(REALE, 2010a, p. 91). Todavia, nessa obra inicial a sua teoria tridimen-
sional do direito ainda se revela incipiente. Uma versão mais elaborada dessa teoria
só surgirá em estudos desenvolvidos por Reale em meados da década de 50 e final da
década de 60. Será apenas a partir da sua Filosofia do Direito, escrita em 1953, e na
sua posterior Teoria Tridimensional do Direito, cuja primeira edição é de 1968, que
este filósofo do direito apresenta de modo mais elaborado a sua tridimensionalidade
jurı́dica.
Em sua Filosofia do Direito (Tı́tulo X) e sua Teoria Tridimensional do
Direito (Capı́tulo 2), Reale afirma em alto e bom tom não ter sido o pioneiro na
formulação da tridimensionalidade jurı́dica, ao menos num dado sentido, mostrando
que já a partir do inı́cio do século XX podemos encontrar na teoria do direito ociden-
tal o entendimento, hoje bastante difundido e aceito, de que a estrutura do direito é
tridimensional. Segundo Reale (2002, p. 23–52), isso pode ser aferido, por exemplo,
no pensamento jurı́dico de Emil Lask (Rechtsphilosophie, 1913), Gustav Radbruch
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 3

(Rechtsphilosophie, 1932), Santi Romano (L’ Ordinamento Giuridico, 1945), Nor-


berto Bobbio (Teoria della Scienza Giuridica, 1950), Dino Pasini (Vita e Forma
nella Realtà de Diritto, 1964), Michel Virally (La Penseé Juridique, 1960), Julius
Stone (The province and Function of Law, 1946), Carlos Cossio (Teorı́a Egológica
del Derecho y el Concepto Jurı́dico de la Libertad, 1944), Luı́s Recanséns Siches
(Tratado Geral de Filosofı́a del Derecho, 1959), entre outros.
A tridimensionalidade do direito, como sugere Reale (2010, p. 511–538), é
percebida na tradição acima, inicialmente, em função da possibilidade de se compre-
ender melhor o direito a partir de três abordagens teóricas: “sociologismo jurı́dico”,
“moralismo jurı́dico” e “normativismo abstrato”. Essa espécie de tridimensionali-
dade Reale denota de “tridimensionalidade genérica”. Em seguida, para parte dessa
tradição a tridimensionalidade jurı́dica se justifica segundo o entendimento de que as
categorias fato, valor e norma são percebidas em separado, em especial, no âmbito
do estudo dos modelos de validade da norma jurı́dica (segundo a nomenclatura de
Reale, são eles: a eficácia, o fundamento e a vigência). Reale denomina este último
tipo de leitura do tridimensionalismo jurı́dico como “tridimensionalidade especı́fica”.
Apesar de existir conexões importantes entre a TTD de Reale e as demais
tridimensionalidades jurı́dicas, aquela não se confunde com estas. A TTD de Reale
goza de certa originalidade, na medida em que nela: (1) expõe de forma clara e
explı́cita a discussão da tridimensionalidade jurı́dica; (2) correlaciona a tridimensi-
onalidade genérica com a tridimensionalidade especı́fica; (3) elucida que subjaz a
estes tipos de tridimensionalidades e aos modelos de validade da norma jurı́dica as
dimensões fato, valor e norma, as quais defini; e (4) mostra que tais dimensões (fato,
valor e norma) formam uma unidade ao implicarem-se sem se anularem (dialética
da implicação-polaridade ou dialética de complementariedade).

3 A Estrutura Tridimensional do Direito Segundo


Miguel Reale
A TTD de Miguel Reale, em linhas gerais, estipula de forma audaciosa
que onde quer que haja o fenômeno jurı́dico, há, necessariamente, a interação de
um fato subjacente; um valor, que confere determinada significação a esse fato,
inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar
certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma norma, que representa a relação
ou medida que integra o fato ao valor. Ainda segundo Reale (1999, p. 65), tais
dimensões constitutivas não existem separadas uma das outras, mas coexistem numa
unidade concreta; mais ainda, essas se exigem reciprocamente, atuando como elos de
um processo histórico-cultural de tal modo que a vida do direito resulta da interação
dinâmica e dialética do fato, valor e norma que a integram. Ou seja, por outras
palavras, para Reale o fenômeno jurı́dico pode ser compreendido à luz da interação
dialética (dialética de complementariedade) das suas dimensões constitutivas: valor,
fato e norma.
Para entendermos melhor o que foi dito, por ora, pensemos no seguinte
exemplo. Tomemos o artigo 121 do nosso Código Penal que atribui uma pena
restritiva de liberdade para aquele que mata outrem. O artigo 121 é a norma jurı́dica,
já a morte de João provocada por José ao golpeá-lo com uma faca é um “estado
de coisas”, ou seja, um fato, fato este que gera consequências jurı́dicas (portanto,
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 4

é um “fato jurı́dico”!). Ao menosprezarmos tal prática marcamos a com um “valor


negativo”, como indicam frases do tipo “O homicı́dio é imoral.”; “O homicı́dio é
errado” ou “O homicı́dio é injusto”, sugerindo que o vetor da ação seja oposto
aquele tomado por José (o assassino). Uma vez menosprezado o homicı́dio, neste
caso, segue a fomentação de uma norma jurı́dica que tem por objetivo, primeiro,
descrever a conduta em questão como ilı́cita e, segundo, inibir a referida conduta
por intermédio da sanção (pena restritiva de liberdade). Existe assim uma dialética
entre o fato, o valor atribuı́do ao fato e, por fim, o produto desta tensão: a norma.
Contudo, esta definição inicial da TTD de Reale não nos permite intender
a complexidade das categorias fato, valor, norma e dialética de complementariedade
em toda a sua extensão. Analisamos nas subseções a seguir com detalhes cada uma
destas dimensões, bem como investigamos com mais precisão a noção de dialética de
complementariedade, tais como articulados no tridimensionalismo jurı́dico de Miguel
Reale.

3.1 Para Entender a Dimensão Valor


Não vivemos no mundo de maneira indiferente, sem rumos, sem fins, ou
em meio a um vazio intelectual: interpretamos e valoramos. A cultura que nos é
inerente representa justamente este processo de passagem do dado ao construı́do,
do cru ao cozido, dos meios aos fins. Assim, mais do que ser, cremos que devemos
ser. Viver outra coisa não é senão uma constante tomada de decisão segundo fins.
Portanto, o fenômeno jurı́dico enquanto fenômeno cultural existe porque o homem
se propõe fins. “Não é possı́vel que se realize, por exemplo, um contrato, sem que
algo mova os homens à ação. Quem contrata é impelido pela satisfação de um valor
ou de um interesse, por um objetivo a atingir, por um fim qualquer que constitui o
ato, dando-lhe vida e significado como razão de seu dever ser” (REALE, 2002a, p.
544).
Conclui o filósofo do direito que “um fim outra coisa não é senão um valor
posto e reconhecido como motivo de conduta. Quando reputamos algo valioso e
nos orientamos em seu sentido, o valioso apresenta-se como fim que determina como
deve ser o nosso comportamento” (REALE, 2002a, p. 544). Também neste sentido
Reale, em sua obra Direito como Experiência, afirma que “o fim não é senão a veste
racional do valor, isto é, o valor enquanto reconhecido como motivo determinante
da ação” (REALE, 1992, p.164)
Esta compreensão inicial, evidentemente, não explica toda a complexa na-
tureza do valor e nem tão pouco deixa claro quais devem ser o seu fundamento, mas
aponta para uma direção. Ciente disto, Reale revela melhor esta direção na sua
Filosofia do Direito ao aprofundar a investigação sobre a noção de valor. Discute
nesta obra algumas das importantes questões a seguir: (1) O valor tem existência
objetiva?; (2) O valor tem existência subjetiva? (3) É este uma qualidade do ser?;
(4) É o valor uma intenção oriundo de um “processo dialógico histórico-cultural”?
Para Miguel Reale (2002a, p. 204 - 207) a explicação mais plausı́vel da ex-
periência dos valores é dada pelas “doutrinas histórico-culturais”. Ao fazer tal esco-
lha, Reale abandona as teorias dos valores de fundamento: (1) psicológico (Epicuro,
Aristóteles, Bentham, Meinong, Ribot, Ehrenfelds, Freud etc.); (2) idealista (Lotze,
Windelband, Scheler, Hartmann etc.) e (3) fenomenológico (De Finance, Hammer
etc.). Para a primeira, valores são sentimentos, prazeres ou desejos que existem
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 5

como disposições psı́quicas subjetivas. Para a segunda, os valores são entidades ob-
jetivas, existentes em si mesmas. Já para a Terceira, valores são propriedades do
ser: a qualidade de ser bom (o Bem)1 .
As correntes histórico-culturais partem da ideia de que os homens são seres
capazes de instaurar algo de novo no processo dos fenômenos naturais, dando nasci-
mento a um mundo que é, de certo modo, a imagem da totalidade do tempo vivido
(REALE, 2002a, p. 204). O valor, neste sentido, não é mera projeção abstrata
da consciência individual, mas do espı́rito mesmo, em sua universalidade, enquanto
se realiza e se projeta para fora, como consciência histórica, no processo dialógico
da história que traduz a intenção das consciências individuais, em um todo de su-
perações sucessivas (REALE, 2002a, p. 206).
Esta “intenção das consciências” ou “intencionalidade consciente”, a qual
Reale toma em parte emprestada de Husserl, é “a propriedade das vivências de
ser consciente de algo”. A consciência é consciente de algo quando se dispõe (1)
a compreender, compreendendo algo no mundo das nossas vivências; (2) julgar,
julgando uma situação; (3) valorizar, valorando um conteúdo valioso das coisas do
mundo e no âmbito das nossas ações nesta vida, e assim por diante. A história,
nestes termos, nada mais é do que uma intenção (modo particular de atenção ou ato
cognitivo que visa conhecer algo) dirigida às experiências vividas no espaço-tempo.
Portanto, para Reale (2002a, p. 208-209) os valores não têm uma existência
em si, ontológica, mas se manifestam nas coisas valiosas (finalidades), tratando-se
estes de algo que se revelam na intenção da experiência humana, retratada através
da história (processo da experiência que todos os seres humanos participam de forma
consciente ou inconsciente). E mais, entende Reale que “há bens ou formas de atu-
alização de valores que, uma vez adquiridos, não sofrem mais a erosão compromete-
dora do tempo, podendo ser considerados invariantes axiológicas” (REALE, 2002a,
p. 590). Talvez a dignidade da pessoa humana, por exemplo, pode ser pensada neste
sentido: como uma invariante axiológica.
Dito isto, podemos entender um pouco melhor em que sentido Reale em-
prega o termo “valor” na sua obra Teoria Tridimensional do Direito de 1968: “inten-
cionalidade histórica objetivada no processo da cultura, implicando sempre o sentido
vetorial de uma ação” (REALE, 2010b, p. 94).

3.2 Para Entender a Dimensão Fato


Em O Direito como Experiência, Reale dedica uma atenção especial ao
conceito de fato no direito (ou “fato jurı́dico”), mostrando que ele envolve tanto
aquilo que acontece, independentemente da iniciativa humana, como o que adquire
significado “inter honines”.
Para Reale “todo fato já implica um ângulo de captação, certa coloração
teórica que torna possı́vel a sua compreensão intelectiva” (REALE, 2010b, p. 95).
Isto significa dizer que os fatos dos quais se origina o direito (processo nomogenético)
e aqueles com os quais se relaciona posteriormente não podem ser concebidos como
fatos brutos, livres de qualquer interpretação, mas apenas como “fatos humanos ou
fatos naturais objetos de valorações humanas” (REALE, 1999, p. 200). Observa
Reale, portanto, que a interpretação dos fatos é, em especial, de caráter jurı́dica:
1
Para mais detalhes acerca da tradição da teoria dos valores consultar: Heinemann (1993. p.
422-430) e Reale (2002b, p. 154 ss).
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(...) a tensão fático-axiológica, que se percebe na raiz do pro-


cesso nomogenético, reflete-se, como não podia deixar de ser,
no plano da aferição normativa dos fatos, isto é, de todo evento
suscetı́vel de qualificação jurı́dica e, por conseguinte, de gerar
efeitos de direito (REALE, 1992, p. 204).

Por outras palavras, entendendo os “fatos jurı́dicos” como “fatos juridica-


mente qualificados”, Reale concebe este como um “evento ao qual as normas jurı́dicas
já atribuı́ram determinadas consequências, configurando-o e tipificando-o objetiva-
mente. (...) Entendemos por fato jurı́dico todo e qualquer fato, de ordem fı́sica ou
social, inserido em uma estrutura normativa” (REALE, 1999, p. 200). E concluı́,
“fato jurı́dico é todo e qualquer fato que, na vida social, venha a corresponder ao
modelo de comportamento ou de organização configurado por uma ou mais normas
de direito” (REALE, 1999, p. 200). Entretanto, é conveniente esclarecermos ainda
nestas passagens o significado da expressão “estrutura normativa” e da ideia de
“modelo” no direito.

3.3 Para Entender a Dimensão da Norma


Autores como Bobbio (2007) e Hans Kelsen (2011) identificam o direito
como um fenômeno normativo, cuja unidade básica é a norma jurı́dica, a qual in-
vestigam sob um ponto de vista formal. Entretanto, entende Reale (1999, 2010) que
por meio desta estratégia parece ser impossı́vel alcançar um conceito mais geral de
norma jurı́dica. Na sua opinião devemos, por outro lado, abandoná-la para situar
as normas jurı́dicas sob outro prisma: o do tridimensionalismo jurı́dico.
A norma jurı́dica para Reale é uma “indicação obrigatória de um caminho”,
porém, para percorrermos um caminho, devemos partir de determinado ponto e
sermos guiado por certa direção: o ponto de partida da norma jurı́dica é o fato,
rumo a determinado valor. Deste modo, “toda norma jurı́dica assinala uma tomada
de posição perante os fatos em função tensional de valores” (REALE, 2010b, p. 96).
Todavia, se a norma jurı́dica é uma “tomada de posição perante os fatos
em função tensional de valores”, como então segundo esta definição geral podemos
diferenciá-la, por exemplo, de uma norma moral? Por exemplo, a prescrição moral
que ordena que “não devemos mentir, ainda que em benefı́cio próprio” pode ser
considera uma norma que, observado certo contexto, integra um fato segundo um
valor. Seria plausı́vel, mediante este entendimento, considerarmos esta norma, de
antemão, também uma norma jurı́dica? Não há dúvidas que esta norma comporta
um tridimensionalismo, mas certamente este não é um tridimensionalismo jurı́dico.
Reale chama a nossa atenção para certas condições técnicas que devemos
observar ao identificarmos a norma jurı́dica, as quais particularmente lhe fixam um
enlace deôntico e institucional sem igual nas normas morais. Frisa Reale (1999, 2010)
que as regras de vigência (testes de validade ou testes de pertinência) são exemplos
de tais condições técnicas (formais ou burocráticas) propostas pelo ordenamento
jurı́dico, exclusivamente, às normas jurı́dicas. Por exemplo, toda norma jurı́dica
deve passar por um “devido processo legislativo” que é um teste técnico de validade.
Algo semelhante não existe nas normas morais.
Os critérios normativos de vigência, entre outros modelos de validade, bem
como os fatos e valores essenciais à criação e à aplicação da norma jurı́dica serão
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 7

reconhecidos por um ou mais “modelos jurı́dicos”.


Em seu “normativismo concreto”, exposto em especial no livro O Direito
como Experiência (Ed. 1o , 1968; Ed. 2o , 1992) e em sua obra Fontes e Modelos
do Direito (Ed. 1o , 1994), Reale defende as afirmações de que “direito é norma e
situação normada” e de que “a norma jurı́dica é a sua interpretação”. Para Reale a
norma jurı́dica como resultado da interpretação se associa a um ou mais “ modelos
jurı́dicos”:
se, em suma, a norma jurı́dica é posta, sendo declarada objeti-
vamente válida, realizada uma integração de fatos segundo va-
lores, no momento de interpretá-la e aplicá-la devemos percor-
rer esse caminho, ou seja, compreendê-la como uma estrutura
[modelo] cujo significado é dado pelos fatos que a condicionam
e pelos valores que a legitimam (REALE, 1992, p. 33).
O conceito de modelo, segundo Reale (1992, p. 40; 1999, p. 184), em todas
as espécies de ciências, não obstante as suas variações, está sempre ligado à ideia de
planificação lógica e à representação simbólica e antecipada dos resultados a serem
alcançados por meio de uma sequência ordenada de medidas ou prescrições. Cada
modelo expressa, pois, uma ordenação lógica de meios e fins. O modelo jurı́dico além
de possuir as já referidas condições gerais de um modelo (citadas neste parágrafo),
caracteriza-se também por ser prescritivo, obrigatório e “concreto”2 .
Os modelos jurı́dicos se estruturam graças à “integração de fatos e valores
segundo normas postas em virtude de um ato concomitante de escolha e de pres-
crição (ato decisório), o qual pode ser tanto do legislador ou do juiz, como resulta
das operações costumeiras, ou de estipulações fundadas na autonomia da vontade”
(REALE, 1992, p. 163). Isto significa dizer que os modelos jurı́dicos criados pelos
agentes (juı́zes, legisladores, servidores públicos etc.) indicam, por intermédio da
ordenação lógica dos meios e fins, uma prescrição de conduta ou uma prescrição
de competência, ambas obrigatórias, já que visam vincular a conduta do agente de
modo forte (mas não inexorável), correspondente a um dado complexo de normas
jurı́dicas que se associam e interagem com valores e fatos presentes nas práticas
sociais.
A ideia de modelo jurı́dico, dado o exposto, tem como consequência a tese
de que “o direito é norma e situação normada”, no sentido de que a norma de
direito não pode ser compreendida tão somente em razão de seus enlaces formais.
Estamos, assim, perante o entendimento que concebe a norma jurı́dica sem dissociá-
la da “concreção da experiência jurı́dica”. Este entendimento, por sua vez, na
opinião de Reale (1994) só pode ser delineado por meio de modelos jurı́dicos, os
quais indicam prescrições obrigatórias (normas de dever-ser), talhados na concretude
da experiência jurı́dica, cuja a sua fomentação, transformação e extinção ocorre em
função dos fatos e valores que operam na vida social.
Seguindo essa linha de raciocı́nio, se a “norma jurı́dica é sua interpretação”
e o produto da interpretação é um modelo jurı́dico, havendo o fluxo perene de
transformações dos valores e dos fatos na vida social, podemos inferir disto que há
uma constante mudança da norma jurı́dica. Assim, com frequência, ocorre uma
2
Nestes termos, Reale afirma que o “modelo jurı́dico não indica um fim primordial e abstrato a
ser atingido, mas sim o fim ou os fins concretos que se inserem no dever-ser do direito correspondente
a um dado complexo de regras objetivizadas ou formalizadas segundo os requisitos exigidos pelo
ordenamento jurı́dico para cada modalidade de fontes do direito” (REALE, 1994, p. 38).
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 8

“adequação da norma às infra-estruturas fático-axiológicas”. Reale (2010b, p. 100)


representa esse “processo axiológico-factual normativo” como a seguir:
V1 > V2 > V3 : Vn

$ !
> N1 > N2 N3: . . . = Nn

$
F1 F2 F3 Fn
Segundo este gráfico, uma norma jurı́dica, uma vez emanada, sofre al-
terações semânticas, pela superveniência de mudanças nos planos dos fatos e dos
valores, até se tornar necessária a sua total revogação.
Como afirmava Pontes de Miranda, a norma jurı́dica tem certa elastici-
dade. Chega um certo momento em que a elasticidade não resiste e a norma se
rompe. Quando isto acontece, é chegada a hora de iniciar o processo. Isto tanto
pode ocorrer, por exemplo, com a norma promulgada pelo legislador, como com
a norma reconhecida pelo juiz em sua sentença (jurisprudência). Falemos, deste
modo, também de diferentes modelos jurı́dicos (M): M1 , M2 , M3 . . . Mn . Cada in-
teração acima, traduzida por um modelo jurı́dico, entre N , V e F corresponde a um
momento de elasticidade ou de criação/aplicação da norma jurı́dica (ou da situação
normada) – por exemplo, M1 : V1 (F1 (N1 )).
Outro ponto importante a ser observado com relação a criação da norma
jurı́dica é o do poder. A norma jurı́dica, segundo Reale (1992, p. 53), surge pela
influência do poder num complexo factual-axiológico. No mundo jurı́dico há uma
contı́nua interação de valores (V1 , V2 , V3 , . . . Vn ) que incidem sobre um conjunto de
fatos ({F }), implicado em várias proposições prescritivas ou modelos normativas
(M1 , M2 , M3 ), um dos quais se converte em norma jurı́dica (NJ) em virtude da
interferência do poder (P):
V1

V2 < M1

& 
V3 / {F } / M2 / (P) / NJ
A

..
. M3

Vn
Reale ao falar de poder, não pensa apenas no “poder governamental, pois,
através de sucessivas decisões homogêneas, o poder judiciário edita normas juris-
prudenciais (exemplo: súmulas do Supremo Tribunal Federal), assim como o poder
social anônimo consagra normas costumeiras ou consuetudinárias. Há ainda o Poder
negocial que dá vida aos contratos” (REALE, 2010b, p.124). Cada poder elabora
um modelo de dever-ser. O modelo que desempenha uma maior influencia nos agen-
tes competentes, detentores de P, acabam por conseguir fixar o seu modelo na forma
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 9

de uma norma jurı́dica.


É bem verdade que a norma jurı́dica nasce graças ao poder, entretanto,
é necessário observarmos que há uma absorção do poder por parte desta. Dele a
norma jurı́dica não depende, de tal modo que o poder “querer” se converte num
poder “querer da norma”. Por conseguinte, segundo Reale (1992, p. 55), o poder
somente subsiste se o seu dever-ser se incorpora na estrutura normativa, o que
demonstra a razão de não ser do decisionismo que só dá valor ao ato de decidir,
erradicando-o no processo em que a decisão é tomada.

3.4 Dialética de Complementaridade


Como já observamos, Miguel Reale concebe a estrutura do direito como
tridimensional, sendo as suas dimensões constitutivas o fato, o valor e a norma.
Estas dimensões, sugere Reale (1992 1994, 1999, 2000, 2010), devem ser pensadas
como uma unidade, na qual sejamos capazes de perceber a correlação de implicação–
polaridade (ou a dialética de complementaridade) existente entre elas. Este tipo de
dialética é discutida com detalhes por este filósofo do direito no seu livro Experiência
e Cultura (Ed. 1o , 1977; Ed. 2o , 2000) e Teoria Tridimensional do Direito (Ed. 1o ,
1968).
O termo “dialética” tem uso variado na filosofia ocidental, ou seja, este

di‚légeai
comporta uma série de diferentes significados (há uma polissemia, a saber). A
etimologia da palavra “dialética” nos remete ao verbo (dialégestai) que
significa “discutir”. Aquele que discute por via da dialética evoca uma “premissa
dialética” para fim de argumentação.
Para Aristóteles a dialética é uma “arte do diálogo ordenado” que se dá
apenas segundo “opiniões geralmente aceitas”3 . No diálogo há dois logoi que se con-
trapõem entre si, isto é, duas “razões” ou “posições” entre as quais se estabelece um
confronto. Neste confronto se busca estabelecer uma espécie de acordo no desacordo.
Esclarece Aristóteles que “a premissa dialética é para a pessoa que faz a pergunta
uma questão de saber qual das duas proposições contraditórias é a verdade e para
a pessoa que raciocina a aceitação de uma proposição plausı́vel ou geralmente tida
como verdadeira”4 .
Os diálogos de Platão fornecem exemplos numerosos da dialética como re-
ductio ad impossibile (redução ao impossı́vel ou redução ao absurdo). Tomemos
como exemplo o diálogo Ménon. No Ménon, por exemplo, Sócrates conjectura que
se a virtude pudesse ser ensinada, então os homens virtuosos ensinariam aos seus
filhos; mas, por outro lado, é um fato bem conhecido que Péricles, Temı́stocles e
Aristides não conseguiram fazer dos seus filhos homens virtuosos5 . Aqui, a hipótese
“a virtude pode ser ensinada” é refutada derivando-se dela uma conclusão empı́rica
que se sabe ser falsa. Neste sentido, podemos entender a dialética como exame de
proposições chamadas hipóteses, das quais se tiram conclusões. Se uma conclusão
é inaceitável, a hipótese da qual a conclusão foi derivada deve ser rejeitada. Este
argumento se conforma com o esquema lógico que denotamos hoje de modus tollendo
tollens (se p, então q. Ora não–q; ora não–p).
Parece, pois, que o primeiro sentido preciso da palavra dialética foi o de
3
Aristóteles, Tópicos, 100a30 – 31.
4
Aristóteles, Primeiros Analı́ticos, 24a22–24b12.
5
Platão, Ménon, 93ss.
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 10

reductio ad impossibile, como é possı́vel percebermos já antes com Parmênides6


e com Zenão7 . Um sentido pouco diverso a este já aparece em Platão, na sua
República. Nesta obra o termo dialética ganha um sentido filosófico peculiar: método
de argumentação que envolve refutação das hipóteses, as quais como “pontos de
partida e trampolins” elevam os resultados ao nı́vel dos “princı́pios universais”, isto
é, verdades de grande generalidade8 . Temos, assim, a dialética como um método de
dedução racional das Formas, Conceitos ou Ideias ( eÚdos
) ou de “subida do sensı́vel
ao inteligı́vel”. Em outro momento, Platão passa designar a dialética também como
método que permite discriminar as Formas entre si e não confundi-las, como ilustra
no Polı́tico (258e ss).
Na idade média, a dialética foi objeto de interpretações muito variadas. Por
um lado, ela chegou a formar, ao lado da gramática e da retórica, o Trivium das artes
liberais. Enquanto tal, era corrente designá-la como lógica ou arte das contradições,
do exercı́cio escolar da palavra e do confronto das opiniões. Por outro lado, constituiu
uma das partes da chamada logica dissertiva que se propõe a elaborar demonstração
probatória. Por fim, constituiu o modo próprio de acesso intelectual ao que podia
ser conhecido do reino das coisas crı́veis9 .
Outro sentido importante da dialética aparece na modernidade, em par-
ticular, com a fenomenologia de Hegel e o materialismo histórico de Marx e dos
pensadores marxistas.
Hegel rompe com Platão ao conceber o “ser” como uma realidade que é
sujeito e processo, e por isso lhe confere uma estrutura dinâmica. Como para este
filósofo alemão a realidade é devir, é movimento; é evidente que a dialética, para ser
instrumento adequado do espı́rito, deve ser reformulada nestes termos. É, portanto,
necessário imprimir movimento às Formas, ao pensamento e a experiência em geral.
Assim, a dialética na fenomenologia de Hegel, comumente referida no contexto de
disputas teóricas, no qual o que é afirmado num momento (tese) é negado em outro
(antı́tese), passa a expressar toda a mediação sujeito-objeto do ato de conhecer e
da própria realidade, como um movimento que, além da afirmação e da negação,
supera os termos antagônicos pela sı́ntese 10 .
O movimento na filosofia de Hegel, matriz do seu modelo de dialética, é
concebido como a natureza do espı́rito e de tudo aquilo que nos circunda. Este
“movimento dialético” para Hegel é circular em espiral e de ritmo triádico, sendo
este último geralmente reconhecido de modo simplificado segundo os termos tese,
antı́tese e sı́ntese. A partir da negação de certo termo (dado p; não–p) é possı́vel,
por superação, o surgimento de um novo termo, que poderá cair também em uma
contradição, até a realização da identidade pertencente a um conhecimento abso-
luto. Nesta fenomenologia, por fim, a dialética passa a ser considerada o processo
espiritual do ser e do pensar mediante o qual o concreto pode ser absorvido pela
razão.
Já Marx e os marxistas não pretendem fazer da dialética um “processo do
pensamento que, sob o nome de ideia, transforma-se em sujeito autônomo, demiurgo
do real, que representa apenas o seu fenômeno exterior”, como fez Hegel, mas bus-
6
Simplı́cio, Comentários à Fı́sica de Aristóteles, fr. 8, 5-21.
7
Vide Aristóteles, Fı́sica, Z 9, 239b 30-3, 5-9 (Paradoxo do Movimento).
8
República, 511 b–c.
9
Para mais detalhes consultar: Mora (2000, p. 720.
10
Para um exemplo deste tipo de dialética consultar: Hegel (1988, p. 04).
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 11

cam modelar a dialética como um método da realidade enquanto realidade empı́rica,


cujo “ideal não é mais nada que o material transposto e traduzido na cabeça do ho-
mem”. O uso deste tipo de dialética permite compreender a transformação perma-
nente da produção concreta de bens e serviços necessários à existência do humana,
pela revolução incessante dos meios e formas de trabalho (materialismo histórico).
Nestes termos, a dialética é sempre uma oposição entre circunstâncias concretas que
implicam numa sı́ntese real (materialismo dialético).
É comum encontramos na literatura a identificação simplista entre “Dialética”
e “Dialética hegeliano–marxista”, e até mesmo “marxista–leninista”. Entretanto,
apesar de serem bastante expressivas as concepções de dialética de Marx e Hegel,
não devem ser tomadas como sentidos acabados do termo dialética, isto certamente
caracterizaria um grande engodo. Em seu tempo, Reale (2000, p. 153) explica que
assistia a um poderoso florescer de doutrinas que vinheram a colocar o assunto so-
bre novas bases, superando tanto a fenomenologia de Hegel quanto o materialismo
histórico de Marx e Engels.
É nesse quadro renovado, esclarece Reale (2000, p. 155), que se situam
novas compreensões dialéticas, desde a Dialética dos Distintos de Benedetto Croce
à Dialética da Ambiguidade de Merleau-Ponty, e, em especial, a Dialética da Im-
plicação- polaridade ou Dialética Complementaridade, a qual este filósofo pensa ser a
que mais se aproxima do estado da investigação cientı́fica das ciências da sua época:
orientam-se por este tipo de dialética pesquisas fı́sico-matemáticas e sociológicas de-
senvolvidos por cientistas e filósofos da ciência como Niels Bohr, Louis de Broglie,
Phillip Frank, Gaston Bachelard e Georges Gurviteh, para citarmos apenas estes.
No âmbito da fı́sica, por exemplo, segundo Reale (2000, p. 162), Niels
Bohr faz uso do “princı́pio de complementaridade” para descrever as “aparentes
(note-se: aparentes) contradições que surgem na discussão sobre a natureza da luz
e das partı́culas materiais”, frisando ele que foi exatamente por “não se tratar de
contradições reais” que empregou os termos “complementaridade” ou “reciproci-
dade”, este talvez mais adequado do que aquele. Na tentativa de esclarecer o uso da
ideia de complementaridade, apresenta Niels Bohr diversos exemplos de fenômenos
que podem ser “vistos em correlação”, quando antes podiam parecer contraditórios,
tendo sido possı́vel apresentar como complementar o comportamento de um sistema
atômico sob certas condições experimentais. O caráter complementar, na opinião de
Bohr, possibilita explicar satisfatoriamente, por exemplo, os efeitos de certas pro-
priedades aparentemente misteriosas da luz e a aparente contradição existente entre
a propriedade dos modelos mecânicos ordinários e as leis peculiares que governam
as estruturas atômicas.
Em sentido geral, para Reale a dialética de complementaridade (ou im-
plicação-polaridade) é a “totalidade como expressão global de elementos que entre
si se implicam e se correlacionam, mantendo-se cada um deles distinto no âmbito de
uma sı́ntese que não se fecha em si mesma, mas se mantém aberta, por ser sı́ntese de
sentido, e, por conseguinte, dotada da polaridade imanente ao mundo dos valores”
(REALE, 2000, p. 155). Já no contexto especı́fico da TTD, Reale (2010b, p.73) en-
tende que este tipo de dialética possibilita estabelecer uma correlação permanente e
progressiva entre as dimensões de fato e de valor, as quais não se podem compreen-
der separadas uma da outra, sendo ao mesmo tempo irredutı́veis uma a outra; tais
dimensões distintas só têm plenitude de significado na unidade concreta da norma
jurı́dica que constituem, enquanto se correlacionam e dessa participam.
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 12

Para Miguel Reale cabe a dialética, enquanto um saber filosófico, e não a


dialela, estudar “a gênese das normas jurı́dicas e modelos jurı́dicos e sua evolução
ou involução, em função de mutações operadas nos planos factual, normativo e
axiológico” (REALE, 2010a, p. 78). Por outras palavras, ela deve investigar o
“direito como experiência, tanto em sua validade formal (vigência) como na sua
efetividade (situação factual) e em seu fundamento (em razão do valor a realizar), o
que tudo compõe o processo jurı́dico como um todo (REALE, 2010a, p.78). Reale
entende de forma restrita que as regras da dialela orientam tão somente “o discurso
persuasivo na interpretação das regras jurı́dicas e sua aplicação, notadamente nos
atos processuais que têm por fim a deslinde de uma causa” (REALE, 2010a, p. 77-
78). E mais, afirma que “nesta hipótese – tão significativa no âmbito da Dogmática
Jurı́dica ou Ciência Positiva do Direito Positivo – o raciocı́nio versa sobre algo já
posto (o Direito Positivo), quer para interpretá-lo (Hermenêutica Jurı́dica) quer
para dele inferir as suas consequências no sentido de lograr a persuasão do julgador”
(REALE, 2010b, p. 78).

4 A Tridimensionalidade Especı́fica de Reale: Vi-


gência, Eficácia e Fundamento
Miguel Reale (1999, p. 109 ss; 2010, p. 15–22) identifica na tradição jurı́dica
e no âmbito dos ordenamentos jurı́dicos, em geral, três “modelos jurı́dicos de vali-
dade das norma jurı́dicas”: vigência (validade formal ou técnico–jurı́dica); eficácia
(validade social ou efetividade) e fundamento (validade ética ou validade segundo
valores).
De inı́cio, Reale (2010b, p. 15) afirma o quão complexa é a questão da
validade do direito, pois esta suscita uma série de perguntas: em primeiro lugar,
sobre a competência do órgão que elaborou o modelo jurı́dico, a sua estrutura e o
seu alcance. Além deste grupo de caráter formal, surge um outro quanto à conversão
efetiva da regra de direito no âmbito da vida social, isto é, no tocante às condições
do real cumprimento dos preceitos legais por parte dos agentes; e, finalmente, há
uma terceira ordem de dificuldades, que consiste na indagação dos valores éticos
das prescrições jurı́dicas, na justiça ou injustiça do comportamento exigido, ou seja,
de sua legitimidade. Eis aı́, numa percepção sumária, os três modelos de validade
do direito, em termos de vigência ou de obrigatoriedade formal dos seus preceitos
jurı́dicos; de eficácia ou da efetiva correspondência social ao seu conteúdo; e de
fundamento, ou dos valores capazes de de legitimá-lo numa sociedade de homens
livres.
A vigência para Reale pode ser entendida como a “executoriedade com-
pulsória de uma regra de direito, por haver preenchido os requisitos essenciais à
sua feitura ou elaboração” (REALE, 1999, p. 108). Segundo Reale (1999, p. 110),
estes requisitos são de três tipos: (1) quanto à legitimidade do órgão; (2) quanto à
competência ratione materiae; (3) quanto à legitimidade do procedimento11 .
11
Reale parece sugerir que além destes requisitos, possamos também falar de outros como o
critério de solução de antinomias por hierarquia, quando explica que “numa concepção puramente
normativista, o problema da vigência confunde-se com o dos requisitos formais indispensáveis a
que uma regra de direito adquira ou perca vigor (legitimidade do órgão emanador da lei; sua
compatibilidade com outros de maior hierarquia; respeito à distribuição das competências; sanção,
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 13

A norma jurı́dica deve ser elaborada por órgão ou agente competente. Goza
de competência ou de legitimidade aquele o órgão ou o agente público que está au-
torizado por “norma jurı́dica de competência” a exercer o poder de produção de um
ato jurı́dico, neste caso o ato de promulgar a norma jurı́dica. Estas, além de tra-
tarem da estrutura dos órgãos competentes, especificam as matérias que os agentes
legı́timos podem regulamentar (competência ratione materiae). É fácil observarmos
que um Governador de Estado, conjuntamente com a Assembleia Legislativa, pode
promulgar leis, ou seja, tem legitimidade para promulgar leis, mas daı́ não se segue
que este pode tratar em suas leis de qualquer tema, ainda que este seja relevante
para o bom funcionamento do Estado. Por exemplo, não pode ele tratar de matéria
de direito civil, por exemplo, como indica os artigos 22, I e 48 da nossa Constituição
Federal. Não há, assim, uma competência em razão da matéria.
Por fim, cabe a norma jurı́dica válida cumprir a legitimidade do procedi-
mento. Este requisito diz respeito (1) à maneira pela qual o órgão e seus agentes
executam aquilo que lhe compete ou (2) aos atos (ou fases) que compõe o processo de
elaboração da norma jurı́dica. Por exemplo: após a Câmara dos Deputados finalizar
a fase de discussão de projeto lei de lei ordinária, inicia-se a sua votação. Para esta
espécie de lei o artigo 47 da nossa Constituição Federal prescreve que a aprovação do
seu projeto lei condiciona-se à maioria simples dos membros da Câmara dos Depu-
tados, a qual corresponde justamente ao primeiro número inteiro superior à metade
dos membros da respectiva Casa Legislativa. Assim, por exemplo, se estiverem pre-
sente do total de 513 deputados federais 300 deles, há quorum para a instalação de
sessão, e a aprovação do projeto lei de lei ordinária dar-se-ia com 151 votos.
Entretanto, Reale observa que a vigência é um problema bem mais complexo
e profundo do que o ligado ao seu sentido técnico-jurı́dico, que reclama a satisfação
de requisitos formais, pois é necessário examinar, primeiro, o que a exigência de
“estrutura formal” representa por si mesma e, segundo, o seu fundamento. Para este
filósofo do direito, ao contrário, a vigência implica, necessariamente, uma referência
aos valores (fundamento) que determinaram o aparecimento da regra jurı́dica, assim
como às condições fáticas capazes de assegurar a sua eficácia social. Por outras
palavras, uma norma jurı́dica vigente é aquela que também goza ao mesmo tempo
de um mı́nimo de eficácia e de um mı́nimo de fundamento. Por conseguinte, no
âmbito da TTD cabe estudar duas correlações: a do fundamento com a vigência; e
a da vigência com a eficácia.
Para Reale (1999, p. 112-114) a eficácia se refere à aplicação ou execução
da norma jurı́dica. A sociedade deve viver o direito, e o faz quando o incorporado,
quando este já não se trata de um direito consuetudinário, à maneira de ser e de
agir da coletividade. Diferentemente da vigência (ou validade formal) a eficácia tem
um caráter experimental, porquanto se refere ao cumprimento efetivo do direito por
parte de uma sociedade. Não faltam exemplos de leis que, embora em vigor, não se
convertem em comportamentos concretos, permanecendo no “limbo da normativi-
dade”. Vejamos alguns deles.
A lei n ◦ 11.023/2005 que determina que em estabelecimentos bancários o
cliente deve ser atendido em um prazo máximo de 15 minutos, nem sempre é respei-
tada. Por isto, possui um baixo grau de eficácia. Talvez, por um lado, isto ocorra
por se tratar de uma “lei utópica”, observada a complexidade de certas operações
promulgação e publicação, para nos atermos ao exemplo mais comum das normas legais)” REALE
(2002, p. 597).
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 14

bancárias e a grande demanda de clientes. Já o nosso Código Penal (Decreto-lei


n◦ 2.848/1940), em vigor até o presente momento, no seu artigo 234, por exemplo,
prescreve detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, para aquele que adquiri
ou tem sob sua guarda para fim de comércio qualquer objeto obsceno, ignorando
completamente, por exemplo, as lojas “sex shop” espalhadas em nossas cidades e as
revistas pornográficas hoje comercializadas em qualquer banca de revista. Por fim,
citemos mais um exemplo. Existem vários artigos na nossa Consolidação das Leis
Trabalhistas (Decreto-lei n◦ 5.452/1943) que caı́ram em desuso como o seu artigo
372, parágrafo único, por exemplo, a mulher não precisa de proteção legais caso seja
empregada do seu pai, mãe ou esposo. O certo é que Reale entende, com razão, que
não há norma jurı́dica sem um mı́nimo de eficácia, de execução ou aplicação no seio
do grupo.
Toda norma jurı́dica, além de eficácia e validade, deve ter um fundamento.
O fundamento, segundo Reale (1999, p. 115), é o valor ou fim objetivado pela norma
jurı́dica. Entretanto, não devemos supor que do fato do “valor ser objetivado pela
norma jurı́dica” o problema do fundamento se perde na abstração formal de um
tipo ideal (a norma jurı́dica em sentido técnico) que idealiza uma “sociedade justa”.
Reale (2002a), ao contrário, ataca o problema no plano histórico, entendendo os
valores como formas possı́veis de convivência segundo os seus conteúdo axiológicos
ou finalisticos, os quais se revelam, se distribuem, se escalonam e se atualizam por
meio da experiência histórica (processo dialógico histórico-cultural ).
——— Introdução à Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ———– 15

Referências

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São Paulo: Nova Cultura, 1987.

2. HEGEL, G. W. F. Phänimenologie des Geiste. Hamburg: F. Meiner, 1988.

3. HEINEMANN, Fritz. A Filosofia no Século XX. Tradução Alexandre F.


Morujão. Lisboa: Gulbenkian, 1993.

4. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. Cretella Jr e Agnes Cre-


tella. São Paulo: RT, 2011.

5. MORA, Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo 1. São Paulo: Loyola,


2000.

6. PLATÃO. Menon. Tradução Maura Iglésias. Rio de Janeiro: PUC-Rio;


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7. REALE, M. Experiência e Cultura São Paulo: Saraiva, 2000.

8. —————. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002a.

9. —————. Fontes e Modelos do Direito. São Paulo: Saraiva, 2010a.

10. —————. Fundamentos do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,


1998.

11. —————. Introdução à Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2002b.

12. —————. Lições Preliminares ao Estudo do Direito. São Paulo:


Saraiva, 1999.

13. —————. O Direito como Experiência. São Paulo: Saraiva, 1992.

14. —————. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva,


2010b.

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