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Matéria da Editoria:

Arte & Cultura


08/07/2012

ARTE & EDUCAÇÃO


Entrevista – Ana Mae Barbosa
Ana Mae Barbosa é a principal referência no Brasil para o ensino da arte nas escolas. Professora aposentada da USP,
acredita que a arte estimula a construção e a cognição das crianças e adolescentes, ajudando a desenvolver outras
áreas de conhecimento. Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Ana Mae Barbosa falou sobre a importância do
ensino da arte nas escolas e sobre as dificuldades de implantar essas idéias.
Carlos Gustavo Yoda e Eduardo Carvalho – Carta Maior
Data: 22/ 06/2006

“Estou cansada dessa conversa de que Arte na escola custa caro”.

Ana Mae Barbosa é a principal referência no Brasil para o ensino da arte nas escolas. Professora aposentada
da Universidade de São Paulo, acredita que a arte estimula a construção e a cognição das crianças e
adolescentes, ajudando a desenvolver outras áreas de conhecimento.

Filha de uma família tradicional, Ana nasceu no Rio de Janeiro, mas foi criada com os avós em Pernambuco.
Sonhava em estudar Medicina, mas isso era um absurdo para toda a família. “Como uma mocinha vai ficar
com um monte de homens vendo corpos nus?”, questionava a avó.

Acabou caindo na “vala comum” da época e foi estudar Direito. Para pagar os estudos, teve que partir para o
ensino. “As únicas profissões aceitáveis eram ser professora ou casar”, disse. Odiava aquilo. Odiava o
ambiente repressor das salas de aula. Por ironia, foi em um cursinho para concurso de professora primária
que conheceu Paulo Freire. Na primeira aula, o tema da redação era “por que eu quero ser professora?”. Ana
Mae escreveu o que sentia, que odiava educação. No entanto, apenas quatro horas de conversa com o mestre
foram suficientes para destruir todos os seus preconceitos. “Só então compreendi que educação não era aquilo
que eu tive. Eu passei por um processo de abafamento e moldagem. Mas ele me ensinou que a Educação
poderia ser libertadora”.

E Ana Mae transferiu aquele sentimento o para a arte-educação, na Escolinha de Artes de Recife. Mudou-se
para São Paulo para fugir da ditadura militar. Foi para os Estados Unidos, fazer mestrado e voltou como a
primeira doutora brasileira em arte-educação e comandou as pesquisas sobre o tema na Escola de
Comunicações e Artes da USP.

Criadora da teoria da “abordagem triangular”, a arte-educadora entende a necessidade da existência de


educadores atualizados, artistas e acesso aos trabalhos contemporâneos para que os estudantes consigam
atingir o máximo do desenvolvimento do conhecimento. Em entrevista exclusiva à Carta Maior, Ana Mae
Barbosa falou sobre a importância do ensino da arte nas escolas e sobre as dificuldades de implantar essas
idéias.

CARTA MAIOR – Existe um debate hoje sobre a obrigatoriedade da existência de artistas práticos especialistas
nas escolas. Esse seria um grande passo para a Arte-Educação?
ANA MAE BARBOSA- O artista não necessariamente é um bom professor. Existe um estudo que defende ter ao
lado de um artista um arte-educador trabalhando junto. Um profissional que conheça as fases de
desenvolvimento da criança. Um arte-educador tem o preparo, conhece as fases de desenvolvimento e
construção plástica da criança. É necessário que entenda as fases de recepção da obra de arte; entenda como
articula o desenvolvimento social e cognitivo da criança. Por isso, eu defendo a presença dos dois profissionais

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ao lado das crianças. Os melhores projetos de arte-educação do mundo atuam dessa forma. Teve um projeto
fantástico na Bahia, chamado Quietude da Terra. Uma curadora canadense veio ao Brasil e convidou vários
artistas internacionais importantes. Eles trabalharam juntos com arte-educadores juntamente com crianças de
rua de Salvador e atingiram um resultado excelente.

CM - Mas isso é factível para a realidade estrutural da educação?


AMB - Eu estou cansada dessa conversa de que custa caro. Custa caro colocar os menores na Febem. Um país
que gasta mais dinheiro com prisão do que com educação tem que mudar. É factível. Acontece que, em países
como a Inglaterra, Portugal e Canadá eles estão atentos a isso e defendem a Arte na Educação. Eles fazem o
trabalho em conjunto do professor com o artista. É preciso aliar esse trabalho. O contato do artista é
importante para provocar e trazer os debates contemporâneos para as salas de aula, abrindo os olhos para
diferentes codificações.

Eu organizei recentemente um livro (“Arte-Educação Contemporânea” – Editora Cortês) que tem um artigo
que trata de um colégio no Canadá com artistas e arte-educadores. Já temos os arte-educadores nas escolas,
agora é preciso criar projetos para que coloquemos artistas, das diversas áreas, nas instituições de ensino. O
grande problema é que no Canadá eles têm um grande respeito à multiculturalidade. Eles fazem questão de
mostrar os diversos códigos, como o dos africanos, o indígena. Isso é magnífico. No livro, eles colocaram
também umas fotos que mostram a variedade de expressões.

CM - Mas a falta de investimentos no Brasil reflete-se apenas na ausência dos artistas dentro das escolas ou
estende-se também à questão da capacitação?
AMB - Não é capacitação, o problema é a atualização. Qualquer professor precisa estar atualizado. Eu não
concebo um professor que não procure, em um ano inteiro, um curso, uma conferência, ao menos para trocar
idéias. A atualização deve, então, ser permanente e não algo esporádico como esta tal capacitação!

Há uma coisa meio perversa nos que chamam isso de capacitação. O professor é capaz. Atualização significa
que o professor é capaz, está formado, e se ele não se atualiza constantemente será apenas um repetidor de
formas e apostilas que nenhuma capacitação vai resolver. Eu acho que o investimento primeiro deve ser
destinado à atualização constante. Uma coisa perversa que a Secretaria de Educação do Estado (de São Paulo)
fez foi achar que o que eles chamam de capacitação fosse feito apenas nas escolas. Eles pensam que os
professores que saem para cursos tendem a voltar decepcionados para a escola, por não conseguirem depois
programar aquilo que aprenderam. Então os professores ficariam desmotivados. Essa não é a minha
experiência. Em todos os casos que conheço, os professores vão e voltam com um empenho tremendo.

Fizemos uma pesquisa recente do Centro Cultural Banco do Brasil que ilustra o que estou dizendo. Em 2004,
eles me chamaram e disseram que queriam fazer uma pesquisa para saber como o professor usa, em sala de
aula, o material que eles preparavam para acompanharem as exposições, com slides, fotos e um livreto com
os conceitos de arte-educação. Eles contrataram uma empresa para fazer a pesquisa. Rejane Coutinho
(doutora em Artes pela ECA-USP) e eu para dialogar, desenhando a pesquisa e depois para avaliá-la. Foram
quatro exposições em um ano: “África”; “Nuno Ramos, um artista homem, brasileiro e contemporâneo”;
“Rosana Palazyan, uma artista mulher, brasileira e contemporânea”; e “Antoni Tàpies, da galeria de Paris”.
Cada professor recebia um kit. Primeiro, queríamos fazer um CD, mas depois descobrimos que nem todos têm
acesso a computador. Então, fizemos transparências.

Desenhamos a pesquisa em quatro grupos. Os professores comprometiam-se a comparecer a um encontro


mensal de relato e experiência, com uma professora de português que trabalha com essa questão de memória
e relato. Eles mandavam um relato depois de cada aula e, a cada 15 dias, recebiam visitas de um agente de
campo, só para observar. No grupo um, tinha ônibus, lanche e horário reservado para as exposições. O outro
não tinha nada, eles que tinham que dar um jeito. O primeiro trabalhou muito melhor. O segundo começou a
se sentir preterido. No primeiro, todos foram até o final. No segundo, três desistiram no meio do caminho.
Para os outros grupos só mandávamos o material. Percebemos que apenas o material é insuficiente. Faltava o
diálogo. Muitos iam ver a exposição antes, mas não tinha aquela discussão. Não só acho que o contato com a

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instituição de arte seja importante, como o contato com o artista. O museu é uma espécie de laboratório.

CM - E um trabalho como esse, supre a necessidade da presença do artista na escola?


AMB - Não. Para mim, o ideal é ter os três: o arte-educador atualizado, o artista e o trabalho com as
instituições. “Estuda, vê, conversa”. É o que chamamos de teoria da abordagem triangular. O que percebemos
foi que muitos professores utilizaram o material que preparamos para o currículo do ano inteiro. E foram
excepcionais. Por exemplo, a reprodução da capa do livro “Artes Visuais – da exposição à sala de aula”, que
traz o resultado da pesquisa, veio do CEU Butantã, onde há muitas crianças com problemas de
comportamento. E a professora conseguiu um resultado magnífico.

Tem uma outra professora, a Elza, que, se fosse para eu identificar uma heroína, eu a escolheria. Ela já tem
sessenta anos, dá aula em três turnos na Cidade Tiradentes, um lugar onde não tem nenhum espaço cultural,
cinema, nada. Há, sim, classes de cinqüenta crianças em uma escola paupérrima. A escola em que ela
trabalhou na pesquisa tinha apenas cinco turmas. Ela conseguiu dinheiro para levar todos os alunos. Ela era
uma professora correta, mas "careta", que deu um salto enorme em seu trabalho. Neste trabalho, escolhemos
a quinta série, pois ela é a exemplar fase na qual a criança deixa o professor generalista e passa para o
especialista. É quando ela terá que fazer a junção das diferentes disciplinas.

CM – Então, explique para nós e para o leitor: por que é importante ter isso tudo na escola?
AMB - Para trabalhar construção e cognição. Na construção da Arte utilizamos todos os processos mentais
envolvidos na cognição. Existem pesquisas que apontam que a Arte desenvolve a capacidade cognitiva da
criança e do adolescente de maneira que ele possa ser melhor aluno em outras disciplinas. A música
desenvolve diversos processos cognitivos, comparando, organizando, selecionando. Em Arte, opera-se com
todos os processos da atividade de conhecer. Não só com os níveis racionais, mas com os afetivos e
emocionais. As outras áreas também não afastam isso, mas a Arte salienta ou dá mais espaço. Para
desenvolver a criatividade em ciência, a criança tem que ter certo QI racional. Para desenvolver através da
Arte, a necessidade de QI é muito menor. Significa que ele procura outros caminhos cognitivos. Eu acho que,
em primeiro lugar, a função da Arte na Educação é essa, desenvolver as diferentes inteligências.

Isso fica patente com o exemplo dos Estados Unidos, onde existe um teste equivalente ao Enem - aliás, o
Enem é cópia do deles. Eles pesquisaram quais os currículos dos alunos que mais se destacaram no teste, nos
anos 90. Todos eles haviam tido no mínimo dois cursos de artes. Lembre-se de que, lá, eles escolhem o
currículo. Só aqui que currículo é igual à receita médica. Mas isso não era suficiente. Além disso, é preciso
desenvolver o país culturalmente. Arte é uma fatia enorme da produção humana. E com uma vantagem
imensa de rever cada época. Diferente do fato, o objeto arte permanece para ser revisto, relido ou
reconcebido. Isso é essencial: operar no mundo com conhecimento.

CM - E quais são as políticas públicas que existem para garantir isso?


AMB - Não há políticas públicas. Uma das minhas grandes decepções com o atual Ministério da Educação é o
silêncio absoluto sobre Arte-Educação, sobre a função da Arte. E, no ministério anterior, só se pensou em
normatizar, parâmetros mínimos. O que é a mesma coisa. Não serve para nada, não funciona.

CM - Por que não funciona?


AMB - Se formos analisar o que aconteceu em outros países, percebe-se que eles voltaram para trás. Não deu
certo na Espanha, e eles importaram um espanhol para desenhar o currículo que temos hoje. No lado que
conhecemos e que chamamos de Ocidente, o melhor exemplo é o do Canadá. Eles se recusaram
completamente a ter um currículo nacional. É puro desejo de controle das instituições. O interessante é que,
quando surgiu essa reforma, eu me posicionei contra, fizemos todo um movimento. Aí eu fui até a Argentina e
lá tinha um movimento imenso. Pois lá também estava acontecendo a mesma coisa. E o espanhol que
elaborou o currículo nada mais fez do que oferecer desenho para colorir: ele tinha o contorno de tudo e
chamava as universidades hegemônicas para colorir em cada país. Aqui eles escolheram a Universidade de
São Paulo. No Chile, foi a Católica. Na Argentina, foi a de Buenos Aires. Mas lá tinha um grande problema. A
Universidade de Buenos Aires não tinha cursos de Educação. Estava um movimento muito forte. Foi até bom.

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Eu gritava contra e eles aplaudiam. Criei alguns inimigos. Mas, no fim, aconteceu o que prevíamos, não deu
certo. Depois sobrou um vácuo...

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