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O mito da beleza e as
representações do feminino em Um Página |
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Resumo
O livro Um Útero é do Tamanho de um Punho, de Angélica Freitas, foi lançado em 2012 e
permanece sendo uma das obras de poesia contemporânea de autoria feminina mais relevantes
dos últimos anos, principalmente por ter antecipado a difusão de temas associados à terceira
onda feminista que estamos vivendo. A partir de poemas selecionados do livro, o presente
artigo se propõe a explorar as nuances dos estereótipos femininos e desenvolver reflexões
acerca da maneira como os valores patriarcais da ditadura da beleza impostos ao corpo-
mulher — nomenclatura designada por Paul B. Preciado—influenciam na autonomia deste,
seja por estipular critérios de uma ordem estética, seja pela adoção de uma moral reguladora
de condutas. Para tanto,o suporte teórico desta análise contará particularmente com as
ponderações de Simone de Beauvoir e Naomi Wolf na tentativa de estabelecer um diálogo
entre as temporalidades específicas dos estudos de cada uma delas convergindo sobre a atual
situação da mulher na sociedade.
Palavras-chave
Angélica Freitas.Crítica Literária Feminista.
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Graduada em Letras Português/Literaturas na UFRJ e atualmente cursa o Mestrado em Literatura Brasileira
pelo Programa de Letras Vernáculas da UFRJ
Angélica Freitas é uma poeta e tradutora brasileira natural do Rio Grande do Sul,
nascida na cidade de Pelotas. O contato da autora com a literatura começou ainda na infância,
quando ganhou de sua tia uma enciclopédia que destinava um de seus tomos à apresentação
do gênero lírico para crianças. A aproximação mais lúdica e despretensiosa despertou em
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Angélica a aspiração de ensaiar alguns versos próprios sobre assuntos do seu cotidiano a partir 103
de uma veia cômica, característica esta que continua sendo uma marca do seu estilo literário.
No entanto, antes de consolidar sua dedicação profissional à literatura, escrevendo e/ou
traduzindo, Angélica concluiu a graduação em Jornalismo e atuou como redatora do jornal
Estado de São Paulo durante 4 anos. Nessa época, a união do acaso com a incerteza de
permanecer investindo na carreira jornalística foi a combinação necessária para uma mudança
de rumos: a futura autora inadvertidamente toma ciência de um anúncio divulgando uma
oficina de poesia organizada por Carlito Azevedo; era a oportunidade que faltava para
reacender a motivação poética que carregava consigo desde o início. Com o encorajamento do
próprio Carlito, na época também responsável pela coleção “Ás de Colete” (projeto em
parceria das editoras Cosac Naify e 7 Letras), Angélica encontra, pela primeira vez, a chance
de publicação após compartilhar com o novo tutor os poemas do seu acervo particular
acumulados ao longo de sete anos. Depois de um processo de seleção e arranjo dessas
produções prévias, seu primeiro livro como poeta é consolidado no lançamento de Rilke Shake
(Cosac Naify, 2007).
Os poemas que aqui serão analisados são de seu segundo livro, Um Útero é do
Tamanho de um Punho (Cosac Naify, 2012). Diferentemente de sua obra de estreia, a
composição deste foi um projeto integralmente pré-elaborado a partir de inquietações
suscitadas em dois momentos profundamente significativos de sua vida e que influenciaram o
teor e a temática do livro, sendo eles: o período em que morou na Argentina, quando teve a
oportunidade de se aproximar de um grupo de mulheres que se reuniam para discutir sobre
questões relativas ao feminismo, o que até então era uma pauta inédita de se ver exposta de
maneira casual, próxima, sem eufemismos em torno do termo feminista; e quando decide
acompanhar uma amiga que iria realizar um aborto na Cidade do México, se deparando com a
hostilidade daqueles que não aceitam que a mulher tenha direito sobre seu próprio corpo e que
se acham no dever de proferir palavras condenatórias nos arredores da clínica, agravando uma
experiência por definição já tão penosa, mesmo a prática sendo legalizada desde 2007 nesta
capital.
Por conta dessas vivências acerca de mulheres e do que é ser mulher no mundo
que Angélica se vê impelida a escrever um livro sobre nós, o segundo sexo. A fim de se
De fato, o que Angélica descobre são apenas rastros sutis na produção literária
brasileira e contemporânea de autoras esquecidas ou com obras de pouca repercussão que
partissem da experiência do ser feminino na sociedade como ferramenta para suscitar uma
escrita poética. A poeta mesma relata na entrevista concedida à Adelaide Ivánova para a
revista Suplemento Pernambuco o que sentiu ao concluir a investigação: “queria escrever um
livro que pensasse o que é ser mulher. Não havia esse livro. Eu queria ler um poema sobre
aborto. Não havia esse poema”.
Portanto, a proposta desta análise será a de refletir sobre a maneira que a poeta
evoca e reconstrói alguns arquétipos do feminino, partindo principalmente de perspectivas da
crítica feminista que abordam o mito da beleza, a fim de criar um pequeno panorama que
demonstra como os poemas desse livro conseguem destrinchar as sublimações da lógica
machista a que somos submetidas diariamente.
Em primeiro lugar, se faz necessário pontuar que os enquadramentos do feminino
só se tornam possíveis a partir do momento em que o nosso corpo passa a ser um “corpo-
mulher”, ou seja, um corpo que está submetido a uma “tecnologia social heteronormativa”
que depende da invocação binária dos entes sociais para sustentar e perpetuar os códigos de
um padrão ideal do feminino e do masculino. (PRECIADO, 2017, p. 28) Em termos da
própria fisicalidade do corpo-mulher e das características que dele são esperadas, as
categorias da “mulher boa”, “mulher limpa”, “mulher bonita”, “mulher feia”, “mulher gorda”,
“mulher sóbria”, “mulher ébria” que aparecem ao longo dos poemas iniciais do livro, sempre
precedidas pelo artigo indefinido “uma”, parecem identificar a cristalização desses perfis
genéricos ao mesmo tempo em que demonstram como todos eles são apenas índices de uma
regra primordial: a beleza.
O poema que inaugura a seção “uma mulher limpa” expõe essa suposta fórmula
ideal evocando uma espécie de efeito sofismático:
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porque uma mulher boa 105
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa
Estamos em meio a uma violenta reação contra o feminismo que emprega imagens
da beleza feminina como uma arma política contra a evolução da mulher. [...] A
ideologia da beleza [...] se fortaleceu para assumir a função de coerção social que os
mitos da maternidade, domesticidade, castidade e passividade não conseguem mais
realizar. (1992, p. 12, 13)
A partir disso, podemos compreender “porque uma mulher braba/ não é uma
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mulher boa”, afinal, o jogo de oposição que se instaura não é entre bondade e maldade, mas 106
sim entre mansidão e “brabura”, isto é, entre aquela que se subordina aos ditames do discurso
patriarcal e aquela que se demonstra como uma autonomia em potencial, recusando o papel
histórico-cultural que lhe foi imposto. Interessante notar também o paralelismo contrastivo
causado pela rispidez das alveolares no verso “braba e suja e ladrava” e da suavidade das
bilabiais nos adjetivos “é mansa e boa e limpa”, consumando foneticamente o efeito
semântico descrito. Sendo assim, ao se representar de forma altiva, subvertendo os parâmetros
previstos, a mulher se torna uma ameaça às normas sociais, um perigo para a manutenção dos
privilégios do homem. Em síntese: “O mito da beleza não tem absolutamente nada a ver com
as mulheres. Ele diz respeito às instituições masculinas e ao poder institucional dos homens.”
(WOLF, 1992, p. 16, 17).
A filiação entre aparência e comportamento também é explorada no seguinte
poema:
uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja
as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos (FREITAS, 2012, p. 13)
“alterada”, “louca”, por exacerbar suas emoções e postura sem filtros ou pudores morais. O
outro exemplo demonstra, da mesma forma, uma mulher às avessas do estereótipo
condescendente posto que é resoluta, determinada a perscrutar seus desejos e suas vontades.
Em ambos os casos, ser considerada suja é a marca da reprovação moral, pois uma mulher de
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presença ou personalidade proeminentes só pode ser encarada como uma transviada, libertina, 107
merecendo, assim, uma resposta corretiva às suas condutas extravagantes. Daí ser da “mulher
ébria e suja/ que tudo se aproveita”. É por não se adequar e não conter sua individualidade que
a mulher personifica a imoralidade do excesso, tornando-se passível de ser explorada
fisicamente. Inclusive, na situação da mulher embriagada, há o estigma de que ao agir de
forma extrovertida, abre-se a prerrogativa de que seu corpo também está disponível ao outro,
interpretando o que é da ordem do comportamento como uma provocação velada para se
chegar a fins corpóreos. Naomi Wolf atesta essa realidade com base nos resultados de uma
pesquisa norte-americana:
De acordo com The SexualityofOrganization, cinco estudos concluíram que o
comportamento de uma mulher "é percebido e rotulado de sexual mesmo quando a
intenção não é esta". Atos amigáveis por parte de uma mulher são muitas vezes
interpretados como de natureza sexual, especialmente quando ‘sugestões não-verbais
são ambíguas…” (1992, p. 55, 56)
esfera real se torna tão sinuoso na metáfora que colocar o corpo-mulher em equivalência com
a carne suína permite um desdobramento no âmbito da biologia. Se na cadeia alimentar o
porco é um animal que ocupa uma posição inferior, e o Homem, por sua vez, é o predador no
topo dessa hierarquia, é o humano que detém o direito de eleger quem deve ou não ser
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consumido como presa em termos da sobrevivência e da lei selvagem do mais forte. 108
Analogamente, o mesmo fundamento biológico pode ser aplicado dentro da nossa espécie
para naturalizar o macho como predador da fêmea, numa tentativa fajuta de justificar uma
primazia entre os sexos, respaldando o aproveitamento carnal desta por aquele. Sobre essa
discussão, Beauvoir é implacável:
Finalmente, uma sociedade não é uma espécie: nela, a espécie realiza-se como
existência; transcende-se para o mundo e para o futuro; seus costumes não se
deduzem da biologia; os indivíduos nunca são abandonados à sua natureza;
obedecem a essa segunda natureza que é o costume e na qual se refletem os desejos
e os temores que traduzem sua atitude ontológica. Não é enquanto corpo, é enquanto
corpos submetidos a tabus, a leis, que o sujeito toma consciência de si mesmo e se
realiza: é em nome de certos valores que ele se valoriza. E, diga-se mais uma vez,
não é a fisiologia que pode criar valores. (2016, vol. I, p. 64)
Desse modo, fica subentendido que a ditadura da beleza estabelece uma dinâmica
causal entre a maneira como uma mulher se conduz e a forma responsiva com que a sociedade
irá se relacionar com ela, a depender da visão moral adotada. Na teoria, a mulher limpa e
sóbria tem a chance de ser poupada da exploração alheia por se apresentar adequadamente,
isto é, contida e recatada, sendo certificada com alguma validação moral. Entretanto, se se
demonstra efusiva e comunicável, é maior a probabilidade dos seus atos serem reprovados,
afinal, estar ébria é ser suja, é ser vista como uma fêmea que merece uma reação penalizadora,
repreensão esta que a mulher sentirá na pele, na violação do seu corpo objetificado em carne.
Em resumo:
As qualidades que um determinado período considera belas nas mulheres são apenas
símbolos do comportamento feminino que aquele período julga ser desejável. O mito
da beleza na realidade sempre determina o comportamento, não a aparência.
(WOLF, 1992, p. 17)
e muitas flores
quantas forem necessárias
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mais que as feias, as doentes
e as secretárias juntas 109
um carro, em um momento futuro ela pode não ter mais com quem contar, restando apenas a
oportunidade de converter as abundâncias em fomento para itens mais essenciais.
Os arquétipos da beleza que aqui foram analisados revelam como “a mulher se
conhece e se escolhe, não tal como existe para si, mas tal qual o homem a define”
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(BEAUVOIR, 2016, vol. I, p. 196) e tentam sinalizar o fato de que 111
sua reivindicação não consiste em serem exaltadas em sua feminilidade: elas querem
que em si próprias, como no resto da humanidade, a transcendência supere a
imanência; elas querem que lhes sejam concedidos, enfim, os direitos abstratos e as
possibilidades concretas, sem a conjugação dos quais a liberdade não passa de
mistificação. (BEAUVOIR, 2016, vol. I, p. 191)
Referências
BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos, volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016.
WOLF, N. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio
de Janeiro: Editora Rocco, 1992.
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Abstract 112
The book called “A uterus is the size of a fist” by Angélica Freitas was released in 2012 and
still is one of the most relevant contemporary poetry work by a female author, mainly because
it anticipated the diffusion of subjects related to the third wave of feminism in which we live
now. From a selected group of poems in this book, the present article explores the feminine
stereotypes in its nuances and develops reflections on how patriarchy values imposed on the
“woman-body” — a termcoined by Paul B. Preciado — influence on its autonomy, whether
by specifying beauty standards or by adopting a moral that regulates women behavior. For
this purpose, the analysis’ theoretical support relies on Simone de Beauvoir and Naomi
Wolf’s considerations in attempt to establish a dialogue between its specific temporalities
converging onto the situation of women in today's society.
Keywords
Angélica Freitas. Feminist Literary Criticism.
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Recebido em: 22/06/2018
Aprovado em: 02/09/2018