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RESENHA
A Capital do Capital
Agosto de 2012
A CAPITAL DO CAPITAL
RESENHA
Na tentativa de descrever Walter Benedix Schönflies Benjamin, talvez seja mais prático
se apropriar da definição que Charles Baudelaire escreveu a respeito de Honoré de
Balzac: “Observador, errante, filósofo, chamem-no como quiserem [...]. Ele é o pintor
da circunstância e de tudo o que ela sugere de eterno”.
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No limiar da década de 1920 a Alemanha experimenta o turbilhão político e cultural da
República de Weimar, período em que Walter Benjamin se aproxima de jovens
intelectuais e professores como Horkheimer, Marcuse e Theodor Adorno, que se
encontravam envoltos à crítica da cultura e da razão capitalistas. Deste último, torna-
se amigo e aproxima-se da filosofia de Georg Lukács e do pensamento marxista. Essa
aproximação não facilitou sua aceitação no meio acadêmico, mas nem por isso o
impediu de elaborar um pensamento original. Do Instituto para Pesquisas Sociais,
conhecida como escola de Frankfurt, fora mais um inspirador do que membro.
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visitantes, aguçando, nos mais inquietos, o desejo de leitura e interpretação do
fenômeno da modernização urbana que se evidenciava.
− Logo após temos duas versões resumidas do projeto – uma de 1935 e outro de
1939, intituladas “Paris, capital do século XIX”, únicos textos das “Passagens”
considerados concluídos – que não se destinavam a publicação, elel foram
redigidos com vistas à captação de recursos para o projeto, como um “plano de
trabalho”. O primeiro foi exitoso, escrito em alemão conseguiu financiamento
do Instituto de e squisa Social . O segundo, redigido em francês a pedido de
Max Horkheimer, desejava atrair um mecenas norte americano, porém sem
sucesso;
Uma obra tão extensa como densa considerada inacabada pode apresentar
dificuldades para leitura e interpretação, no entanto os organizadores da edição
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brasileira sugerem como ordem de leitura iniciar – além da introdução de Rolf
Tiedemann e do duplo posfácio, de Olgária Chaim Féres Matos e de Willi Bolle – pelo
primeiro esboço; depois, os exposés de 1935 e 1939; e, finalmente, as ‘Notas e
Materiais’, com destaque para o arquivo ‘N – Teoria do conhecimento, teoria do
progresso’. Contudo, como Passagens não é um texto linear, mas espacial, a leitura por
links associativos e por roteiros de pesquisa pode ser igualmente proveitosa1.
Em uma análise geral da estrutura metodológica talvez nos seja permitido arriscar
dizer que o autor tenta estabelecer conexões entre passado e futuro para auxiliar a
interpretação, especialmente, do mundo urbano e das circunstâncias de sua época. No
entanto, a incompletude da obra nos põe diante de um texto sempre incerto, uma vez
que não saberíamos responder se as inferências que realizamos seriam a justa
intenção do autor. O trabalho editorial foi, sem nenhuma sombra de dúvidas,
primoroso e hercúleo não podendo ser creditado aos editores as repetições, a
superposição de temas, a fragmentação da escrita, enfim todos os elementos que nos
remetem à ideia de obra incompleta. Quisera a história do autor, de vida ceifada
prematuramente, que assim fosse, então, que assim permaneça.
Em sua pesquisa, Benjamin afirma que a concepção que no século XIX se fazia da
história era o curso do mundo como uma série ilimitada de fatos congelados em forma
de coisas2, ou seja, uma representação coisificada da civilização, procurando assim,
mostrar como o padrão moderno de vida e as novas criações de base econômica e
técnica entraram no imaginário coletivo. Como o próprio autor descreve, tais criações
sofrem uma forma de “iluminação” que se manifesta enquanto fantasmagoria. Nada
escapa ao seu olhar: as passagens, que inauguram o uso do ferro na arquitetura e
precedem as lojas de departamentos; as exposições universais, com suas íntimas
relações com as novas tecnologias e com a indústria de entretenimento; o flâneur, que
se entrega às ilusões do mercado; e a Paris de Haussmann, com as transformações
urbanas modernizadoras e seu novo ideário de cidade. No entanto, o deslumbramento
1 BOLLE, W. Um painel com milhares de lâmpadas. M Mrópole & megacidade. In: BENJAMIN, W. Passagens. Belo
horirinte: editora UFMG; São Paulo: imprensa oficial do estado de São Paulo, 2006, p. 1166-1167.
2 BENJAMIN, Walter. Paris, , pital do Século XIX: exposé de 1939. In: BENJAMIN, W. Passagens. Op. cit., p. 53.
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e a falsa sensação de segurança que envolvem a sociedade produtora de mercadorias
não estarão a salvo de ameaças enquanto a fantasmagoria ocupar um lugar.
3 HARVEY, David. Urbanismo possível. 1989. Disponível em: <http://www.miradaglobal.com>. Acesso em: 11 de
julho de 2012.
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lojas mais elegantes, de modo que tal passagem é uma cidade, um mundo em
miniatura4.
Corroboramos com Sandra Jatahy Pesavento5 quando diz que Benjamin pensa o século
XX valendo-se do espetáculo oferecido por Paris naquilo que a modernização tem de
mais concreto – as passagens, os panoramas, as exposições, as remodelações urbanas,
as exposições universais, as novas técnicas e inventos –, mas também daquilo que se
encontrava encoberto, não dito: a dominação do capital sobre o trabalho, os silêncios
produzidos na história pela ordem burguesa, as relações sociais subjacentes ao sistema
de fábrica, a expulsão dos pobres dos centros das cidades, a defesa da propriedade em
nome da ordem, o progresso do capital entendido como progresso do social, etc.
Confirmando, assim, a perspectiva polifônica de sua obra que transita tanto pelas
manifestações artísticas e culturais evidentes – arquitetura, moda, fotografia,
exposições, publicidade – como também por categorias mais latentes e complexas –
teoria do conhecimento, movimento social, materialismo antropológico, dentre
outros.
4 BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX: exposé de 1939. In: BENJAMIN, W. Passagens. Op. cit., p. 54-55.
5 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais: espetáculos da modernidade do século XIX. São Paulo: Editora
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também ocorrendo em outras cidades europeias de porte. No entanto, Pesavento6
entende que Paris se constituiu como paradigma da cidade moderna, metonímia da
modernidade urbana, em função da força das representações construídas sobre a
cidade, seja sob a forma de uma vasta produção literária, seja pela projeção
urbanística dos seus projetos, personificados no que se chamaria haussmanismo.
6PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário da Cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto
Alegre. 2ª Edição. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002, p. 31.
7 BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX: exposé de 1939. In: BENJAMIN, W. Passagens. Op. cit., p. 64.
8 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlo Felipe
Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1986, p. 147.
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Esta afetação que a cidade moderna causou à esfera individual talvez seja uma
dimensão essencial à compreensão da universalidade do modelo haussmanniano, que
referenciava o método científico e as teorias econômicas e urbanísticas, de certo tudo
ainda em formação, mas já retratadas pela literatura da época, tendo em Baudelaire
seu mais elevado expoente e no Flâneur o personagem que mais incorporou os
deleites e as agruras da metrópole moderna.
Para Benjamin9 é em Baudelaire que, pela primeira vez, Paris torna-se objeto de poesia
lírica e o olhar que o engenho alegórico lança sobre a cidade expressa bem mais o
sentimento de uma profunda alienação. É o olhar do flâneur, cujo gênero de vida
dissimula, por trás de uma miragem benfazeja, a miséria dos futuros habitantes de
nossas metrópoles. O flâneur procura refúgio na multidão. A multidão é o véu através
do qual a cidade familiar se transforma, para o flâneur, em fantasmagoria. Essa
fantasmagoria, em que a cidade aparece como paisagem, ora como aposento, parece
ter inspirado a decoração das lojas de departamentos que põem, assim, a própria
flânerie a serviço dos seus negócios. De qualquer forma, as lojas de departamentos são
a última paragem da flânerie.
Para João do Rio10, atento observador da cidade do Rio de Janeiro no limiar do século
XX, a figura do flâneur também mistura lirismo, intelectualidade e mercado. É um ser
que vaga pelas ruas apenas a contemplar a vida, encanta-se com ela, mas não a vive,
pelo menos na produtividade do fazer definido pelo mundo capitalista. Ser flâneur é
ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado
ao da vadiagem. Flanar é ir, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da
população. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil
para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas
necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas.
Provavelmente não era difícil, na prática do flâneur, se perder na pela cidade que se
modernizava, no meio do turbilhão de novidades. Tratada por Baudelaire11 como um
9 BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX: exposé de 1939. In: BENJAMIN, W. Passagens. Op. cit., p. 61.
10 RIO, João do. A Alma Encantadora das Ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 51.
11 BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 327-328.
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estado de transitoriedade, de celebração do novo, de negação da tradição, de criação
e recriação de vínculos e desencaixes, Paris, palco do drama da modernidade, se
transformava na velocidade de suas luzes: [...] Foi-se a velha Paris (de uma cidade a
história / Depressa muda mais que um coração infiel); / Paris muda! Mas nada em
minha nostalgia / Mudou! Novos palácios, andaimes, lajeados, / Velhos subúrbios,
tudo em mim é alegoria. / E essas lembranças pesam mais do que rochedos [...].
12 BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX: exposé de 1939. In: BENJAMIN, W. Passagens. Op. cit., p. 57.
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– através da engenharia, da medicina, da antropologia, da criminologia, da
arqueologia, entre outras ciências – permitia uma nova avaliação do passado e a
prospecção do futuro. A exibição do exótico – sob a forma de produtos, costumes e
até de indivíduos naturais das colônias – atestava o poderio e o expansionismo das
nações centrais e confirmava sua hegemonia cultural. Organizadas como expressão do
progresso supranacional, as exposições estiveram conectadas com festas e calendários
nacionais. Programadas como momento de reconciliação entre nações, acabaram
fornecendo material simbólico para o culto da nação e para a construção dos
nacionalismos que cresceram significativamente após a Primeira Guerra Mundial.
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riqueza de detalhes, a possibilidade de leitura do atual universo urbano por r io de
suas fendas e dos intervalos da sociedade contemporânea.
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