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PASSAGENS

Obra de Walter Benjamin

RESENHA
A Capital do Capital

Gilton Luís Ferreira

Agosto de 2012
A CAPITAL DO CAPITAL
RESENHA

BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização da edição brasileira: Willi Bolle.


Colaboração na organização da edição brasileira: Olgária Chain Féres Matos. Tradução
do Alemão: Irene Aron. Tradução do francês: Cleonice Paes Barreto Mourão. Revisão
técnica: Patrícia de Freitas Camargo. Belo horizonte: editora UFMG; São Paulo:
imprensa oficial do estado de São Paulo, 2006.

MSc. Gilton Luís Ferreira


Doutorando - Universidade Federal do Espírito Santo – UFES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DAS RELAÇÕES POLÍTICAS
gilton87@hotmail.com
Dr. Geraldo Antônio Soares
Professor do Departamento de História – UFES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DAS RELAÇÕES POLÍTICAS

Na tentativa de descrever Walter Benedix Schönflies Benjamin, talvez seja mais prático
se apropriar da definição que Charles Baudelaire escreveu a respeito de Honoré de
Balzac: “Observador, errante, filósofo, chamem-no como quiserem [...]. Ele é o pintor
da circunstância e de tudo o que ela sugere de eterno”.

Nasceu em Berlim, no dia 15 de julho de 1892, filho de Emil Benjamin e Paula


Schönflies Benjamin, família judaica comerciante de produtos franceses. Entre os anos
de 1934 e 1935 refugia-se na Itália. Com uma morte envolta em mistério no ano de
1940, na cidade espanhola de Portbou, teria cometido suicídio durante a fuga, através
dos montes Pirenéus, temendo ser entregue à Gestapo.

Na adolescência partilhava de ideias socialistas colaborando na revista do Movimento


da Juventude Livre Alemã, onde já se fazia notar em suas leituras a influência de
Friedrich Nietzsche. Graduado em filosofia pela Universidade de Friburgo, defendeu
tese de doutorado em 1919, na Universidade de Berna, Suíça sob o título “A Critica de
Arte no Romantismo Alemão”, obra que viera a ser publicada em 1920. No entanto, a
sua tese de livre docência, “Origem do Drama Barroco Alemão”, foi rejeitada pelo
Departamento de Estética da Universidade de Frankfurt, quando viu as portas da vida
acadêmica se fecharem.

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No limiar da década de 1920 a Alemanha experimenta o turbilhão político e cultural da
República de Weimar, período em que Walter Benjamin se aproxima de jovens
intelectuais e professores como Horkheimer, Marcuse e Theodor Adorno, que se
encontravam envoltos à crítica da cultura e da razão capitalistas. Deste último, torna-
se amigo e aproxima-se da filosofia de Georg Lukács e do pensamento marxista. Essa
aproximação não facilitou sua aceitação no meio acadêmico, mas nem por isso o
impediu de elaborar um pensamento original. Do Instituto para Pesquisas Sociais,
conhecida como escola de Frankfurt, fora mais um inspirador do que membro.

Profundo conhecedor da cultura e da língua francesa trabalhou como tradutor para o


alemão em obras de Charles Baudelaire e Marcel Proust, o que lhe rendeu o
reconhecimento como crítico literário. Contribuiu para a teoria estética e os estudos
literários tentando combinar ideias a princípio antagônicas do materialismo dialético,
do idealismo alemão e do misticismo judaico, que estudava desde 1915, quando
conheceu Gershom Gerhard Scholem de quem se tornara muito próximo. Ao longo da
década de 1930 trocaram ampla correspondência sobre assuntos diversos, o que deu
origem aos livros: Correspondência: 1933-1940; Walter Benjamin: a história de uma
amizade; e A mística judaica. Os dois últimos de autoria de Scholem.

O ensaio “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica” foi consisirado a


primeira grande teoria materialista da arte. Já “As Teses Sobre o Conceito de História”,
escrititano da sua morte, teve repercussão polêmica, considerada por alguns o mais
importante texto revolucionário desde Marx, ao mesmo tempo em que outros a viam
como um retrocesso no pensamento benjaminiano.

A obra Passagens, considerera um livro-projeto, teve início no ano de 1927 e fora


publicada apenas em 1982, na Alemanha, após 13 anos de trabalho. Benjamin não
chegou a concluí-la em virtude de sua morte. Concebida por meio de um conjunto de
esboços, a inacabada obra apresenta notas e vários elementos agregados em blocos
temáticos que foram detalhadamente organizados em ordem alfabética. Este conjunto
de textos sobre Paris faz a leitura de uma cidade bem definida como “Capital do Século
XIX” e das suas galerias comerciais – passagens –, precursoras das lojas de
departamentos. Benjamin apresenta uma cidade capital em processo de vertiginosas
transformações a causar perplexidades e estranhamentos em seus moradores e

2
visitantes, aguçando, nos mais inquietos, o desejo de leitura e interpretação do
fenômeno da modernização urbana que se evidenciava.

Em termos estruturais a edição brasileira segue a edição original:

− Inicia com uma introdução de Rolf Tiedemann;

− Logo após temos duas versões resumidas do projeto – uma de 1935 e outro de
1939, intituladas “Paris, capital do século XIX”, únicos textos das “Passagens”
considerados concluídos – que não se destinavam a publicação, elel foram
redigidos com vistas à captação de recursos para o projeto, como um “plano de
trabalho”. O primeiro foi exitoso, escrito em alemão conseguiu financiamento
do Instituto de e squisa Social . O segundo, redigido em francês a pedido de
Max Horkheimer, desejava atrair um mecenas norte americano, porém sem
sucesso;

− Em seguida é apresentado um grande cononnto denominado “Notas e


Materiais”, que foi se avolumando ao longo dos 13 anos de trabalho,
subdividido em 36 arquivos temáticos, num total de 4.234 fragmentos, com
palavras-chave e referências cruzadas, que foram organizados em ordem
alfabética com letras maiúsculas e minúsculas de “A” até “Z” e de “a” até “r”.
Os arquivos temáticos das Passagens evidenciam temas de muitos textos
elaborados por Benjamin entre 1927 e 1940, fundamentais à interpretação
desta obra;

− Depois são apresentados quatro textos em ordem cronológica: “Passagens”,


“Passagens parisienses” I e II e eO anel de Saturno” e os “Paralipômenos”;

− A edição brasileiei traz um denso aparato editorial apresentado no formato de


“Anexos” composto por: “Primeira versão e materiais do expopo de 1935”,
“Materiais para o livro-modelo das Passagens (o Baudelaire)”, “Bibliografia
utilizada por Walter Benjamin”, “Léxico de nomes, conceitos, instituições” e
“Glossário da terminologia benjaminiana” (português–alemão) com base no
“G“Gde to names and terms” da edição norte-americana.

Uma obra tão extensa como densa considerada inacabada pode apresentar
dificuldades para leitura e interpretação, no entanto os organizadores da edição

3
brasileira sugerem como ordem de leitura iniciar – além da introdução de Rolf
Tiedemann e do duplo posfácio, de Olgária Chaim Féres Matos e de Willi Bolle – pelo
primeiro esboço; depois, os exposés de 1935 e 1939; e, finalmente, as ‘Notas e
Materiais’, com destaque para o arquivo ‘N – Teoria do conhecimento, teoria do
progresso’. Contudo, como Passagens não é um texto linear, mas espacial, a leitura por
links associativos e por roteiros de pesquisa pode ser igualmente proveitosa1.

Em uma análise geral da estrutura metodológica talvez nos seja permitido arriscar
dizer que o autor tenta estabelecer conexões entre passado e futuro para auxiliar a
interpretação, especialmente, do mundo urbano e das circunstâncias de sua época. No
entanto, a incompletude da obra nos põe diante de um texto sempre incerto, uma vez
que não saberíamos responder se as inferências que realizamos seriam a justa
intenção do autor. O trabalho editorial foi, sem nenhuma sombra de dúvidas,
primoroso e hercúleo não podendo ser creditado aos editores as repetições, a
superposição de temas, a fragmentação da escrita, enfim todos os elementos que nos
remetem à ideia de obra incompleta. Quisera a história do autor, de vida ceifada
prematuramente, que assim fosse, então, que assim permaneça.

Em sua pesquisa, Benjamin afirma que a concepção que no século XIX se fazia da
história era o curso do mundo como uma série ilimitada de fatos congelados em forma
de coisas2, ou seja, uma representação coisificada da civilização, procurando assim,
mostrar como o padrão moderno de vida e as novas criações de base econômica e
técnica entraram no imaginário coletivo. Como o próprio autor descreve, tais criações
sofrem uma forma de “iluminação” que se manifesta enquanto fantasmagoria. Nada
escapa ao seu olhar: as passagens, que inauguram o uso do ferro na arquitetura e
precedem as lojas de departamentos; as exposições universais, com suas íntimas
relações com as novas tecnologias e com a indústria de entretenimento; o flâneur, que
se entrega às ilusões do mercado; e a Paris de Haussmann, com as transformações
urbanas modernizadoras e seu novo ideário de cidade. No entanto, o deslumbramento

1 BOLLE, W. Um painel com milhares de lâmpadas. M Mrópole & megacidade. In: BENJAMIN, W. Passagens. Belo
horirinte: editora UFMG; São Paulo: imprensa oficial do estado de São Paulo, 2006, p. 1166-1167.
2 BENJAMIN, Walter. Paris, , pital do Século XIX: exposé de 1939. In: BENJAMIN, W. Passagens. Op. cit., p. 53.

4
e a falsa sensação de segurança que envolvem a sociedade produtora de mercadorias
não estarão a salvo de ameaças enquanto a fantasmagoria ocupar um lugar.

Segundo Benjamin, a primeira condição para o aparecimento das passagens é a


conjuntura favorável do comércio têxtil, quando aparecem os primeiros
estabelecimentos a manter grandes estoques de mercadorias. A segunda deve-se ao
início do emprego de materiais metálicos na construção civil. Mesmo que o trilho de
ferro, precursor da viga, não seja inicialmente empregado em edificações residenciais,
seu uso é encorajado nos pavilhões de exposições, nas estações de trem e nas
passagens, todos com fins provisórios.

No entanto, não se pode esquecer que este é um período de grande transformação


das sociedades europeias e, consequentemente, das relações sociais e dos costumes
nestas cidades. Conforme menção de David Harvey3, já no século XVIII Paris
manifestava traços que indicariam sua futura condição de protagonismo convertendo-
se, no século seguinte, como a segunda maior cidade da Europa. Há bastante tempo a
capital francesa crescia envolta por uma onda de especulação financeira, em boa parte
proveniente dos investimentos em infraestrutura urbana. A forte presença do capital
imobiliário renovando os edifícios privados, juntamente com o Estado francês
intervindo nos espaços e prédios públicos, com recursos provenientes das colônias,
possibilitou a organização espacial adaptada ao processo de acumulação do capital.

Assim, as passagens derivam desse conjunto de circunstâncias. São estabelecimentos


edificados entre 1822 e 1837, em sua maioria comercializam mercadorias de luxo e por
muito tempo permaneceram como atração turística. Benjamin relata uma descrição
que faz o Guia Ilustrado de Paris: Estas passagens, uma recente invenção do luxo
industrial, são galerias cobertas de vidro e com paredes revestidas de mármore, que
atravessam quarteirões inteiros, cujos proprietários se uniram para este tipo de
especulação. Em ambos os lados dessas galerias, que recebem a luz do alto, alinham-se

3 HARVEY, David. Urbanismo possível. 1989. Disponível em: <http://www.miradaglobal.com>. Acesso em: 11 de
julho de 2012.

5
lojas mais elegantes, de modo que tal passagem é uma cidade, um mundo em
miniatura4.

Neste período a cidade de Paris constituiu-se como o principal ícone da modernização


urbana sob um turbilhão de contrastes onde foram desvendados o processo de
construção do mundo material moderno e o espírito do século XIX. A cidade luz mais
parecia a capital do capital. Os métodos produtivos em constante aperfeiçoamento,
exigência de uma indústria crescente, põe ao alcance do também crescente mercado
consumidor uma quase infindável quantidade de produtos. Tudo se torna novo e logo
é superado numa avalanche de consumo que tudo transforma em mercadoria gerando
novo significado à sua verdadeira essência. Produzindo, em outros termos, o que Marx
definiu e Benjamin reforçou: um fetiche alienante.

Corroboramos com Sandra Jatahy Pesavento5 quando diz que Benjamin pensa o século
XX valendo-se do espetáculo oferecido por Paris naquilo que a modernização tem de
mais concreto – as passagens, os panoramas, as exposições, as remodelações urbanas,
as exposições universais, as novas técnicas e inventos –, mas também daquilo que se
encontrava encoberto, não dito: a dominação do capital sobre o trabalho, os silêncios
produzidos na história pela ordem burguesa, as relações sociais subjacentes ao sistema
de fábrica, a expulsão dos pobres dos centros das cidades, a defesa da propriedade em
nome da ordem, o progresso do capital entendido como progresso do social, etc.
Confirmando, assim, a perspectiva polifônica de sua obra que transita tanto pelas
manifestações artísticas e culturais evidentes – arquitetura, moda, fotografia,
exposições, publicidade – como também por categorias mais latentes e complexas –
teoria do conhecimento, movimento social, materialismo antropológico, dentre
outros.

Uma voz dissonante poderia, contudo, contra-argumentar dizendo que, da mesma


forma que Paris no século XIX, Londres também já tinha se constituído em metrópole e
que os contrastes e transformações do espaço e das sociabilidades urbanas estavam

4 BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX: exposé de 1939. In: BENJAMIN, W. Passagens. Op. cit., p. 54-55.
5 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais: espetáculos da modernidade do século XIX. São Paulo: Editora

HUCITEC, 1997, p. 35.

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também ocorrendo em outras cidades europeias de porte. No entanto, Pesavento6
entende que Paris se constituiu como paradigma da cidade moderna, metonímia da
modernidade urbana, em função da força das representações construídas sobre a
cidade, seja sob a forma de uma vasta produção literária, seja pela projeção
urbanística dos seus projetos, personificados no que se chamaria haussmanismo.

Sobre as transformações urbanas promovidas, entre 1853 e 1870, pelo prefeito do


antigo departamento do Sena – Georges-Eugène Haussmann, mais conhecido
como Barão Haussmann, o "artista demolidor" – Benjamin, nas Passagens7, dizia
incorporar-se ao imperialismo napoleônico e favorecer ao capitalismo financeiro.
Classificando-o como ditatar por colocar Paris em regime de exceção por causa da sua
a ria demolidora, Benjamin denuncia o ódio do prefeito pela a pulação instável, que só
fazia aumentar em virtude dos novos empreendimentos públicos e privados; a alta dos
aluguéis; a expulsão do proletariado para os subúrbios; a perda da identidade dos
bairros parisienses, fazendo com que os moradores não se sentissem mais em casa
experimentando o caráter desumano da grande cidade. Paris seria, assim, um grande
monumento ao despotismo napoleônico, tendo as reformas urbanas por finalidade
proteger-se das constantes barricadas, ou seja, a construção de um “embelezamento
estratégico”.

O projeto posto em prática adotou um partido urbanístico que não permitia


referências à tradição e à memória da comunidade, mas visceralmente ligado ao
impacto deslumbrante que a técnica moderna era capaz de produzir no indivíduo. Essa
experiência conseguiu, através do poder das técnicas modernas, destruir e recriar a
própria cidade. A sociedade foi submetida à sensação única e intransferível de
deslumbramento que a monumentalidade e os demais atributos da cidade-espetáculo
poderiam proporcionar ao indivíduo moderno. Ou como disse Marshall Berman8, Paris
fora transformada em um espetáculo particularmente sedutor, uma festa para os
olhos e para os sentidos.

6PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário da Cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto
Alegre. 2ª Edição. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002, p. 31.
7 BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX: exposé de 1939. In: BENJAMIN, W. Passagens. Op. cit., p. 64.
8 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlo Felipe

Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1986, p. 147.

7
Esta afetação que a cidade moderna causou à esfera individual talvez seja uma
dimensão essencial à compreensão da universalidade do modelo haussmanniano, que
referenciava o método científico e as teorias econômicas e urbanísticas, de certo tudo
ainda em formação, mas já retratadas pela literatura da época, tendo em Baudelaire
seu mais elevado expoente e no Flâneur o personagem que mais incorporou os
deleites e as agruras da metrópole moderna.

Para Benjamin9 é em Baudelaire que, pela primeira vez, Paris torna-se objeto de poesia
lírica e o olhar que o engenho alegórico lança sobre a cidade expressa bem mais o
sentimento de uma profunda alienação. É o olhar do flâneur, cujo gênero de vida
dissimula, por trás de uma miragem benfazeja, a miséria dos futuros habitantes de
nossas metrópoles. O flâneur procura refúgio na multidão. A multidão é o véu através
do qual a cidade familiar se transforma, para o flâneur, em fantasmagoria. Essa
fantasmagoria, em que a cidade aparece como paisagem, ora como aposento, parece
ter inspirado a decoração das lojas de departamentos que põem, assim, a própria
flânerie a serviço dos seus negócios. De qualquer forma, as lojas de departamentos são
a última paragem da flânerie.

Para João do Rio10, atento observador da cidade do Rio de Janeiro no limiar do século
XX, a figura do flâneur também mistura lirismo, intelectualidade e mercado. É um ser
que vaga pelas ruas apenas a contemplar a vida, encanta-se com ela, mas não a vive,
pelo menos na produtividade do fazer definido pelo mundo capitalista. Ser flâneur é
ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado
ao da vadiagem. Flanar é ir, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da
população. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil
para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas
necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas.

Provavelmente não era difícil, na prática do flâneur, se perder na pela cidade que se
modernizava, no meio do turbilhão de novidades. Tratada por Baudelaire11 como um

9 BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX: exposé de 1939. In: BENJAMIN, W. Passagens. Op. cit., p. 61.
10 RIO, João do. A Alma Encantadora das Ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 51.
11 BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 327-328.

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estado de transitoriedade, de celebração do novo, de negação da tradição, de criação
e recriação de vínculos e desencaixes, Paris, palco do drama da modernidade, se
transformava na velocidade de suas luzes: [...] Foi-se a velha Paris (de uma cidade a
história / Depressa muda mais que um coração infiel); / Paris muda! Mas nada em
minha nostalgia / Mudou! Novos palácios, andaimes, lajeados, / Velhos subúrbios,
tudo em mim é alegoria. / E essas lembranças pesam mais do que rochedos [...].

As Exposições Universais, provavelmente o mais importante mecanismo de


transmissão das concepções urbanísticas do Século das Luzes, também se
encontravam no caminho do flâneur. Ocorreram no formato de grandes feiras que
expunham produtos de diversos países e que buscavam condensar o que o século XIX
entendia como modernidade: o progresso advindo da ciência e da indústria; a
liberdade entendida como livre mercado; o cosmopolitismo baseado na ideia de que o
conhecimento humano e a produção seriam transnacionais e sem limites. Verdadeiro
retrato da sociedade burguesa que se formava e se consolidava por todo o mundo
como uma vitrine da modernidade.

Para Benjamin as exposições universais eram os centros de peregrinação ao fetiche


mercadoria. Tiveram como precursoras exposições nacionais da indústria, a primeira
delas aconteceu em 1798, no Campo de Marte. Nasceram do desejo de divertir as
classes laboriosas e tornar-se para estas uma festa de emancipação, bem como
idealizavam o valor de troca das mercadorias. A primeira versão das Exposições
Universais foi realizada na Inglaterra vitoriana no ano de 1851. Em Paris, em 1867. As
cidades onde as exposições foram montadas como Londres, Paris, Chicago, dentre
outras, eram os epicentros da modernidade.

As Exposições Universais propunham ser um retrato em miniatura do mundo moderno


avançado, composto de espetáculos nos campos da ciência, das artes, da arquitetura,
dos costumes e da tecnologia. A ideia era mostrar e ensinar as virtudes do tempo
presente e confirmar a previsão de um futuro excepcpcnal. A Torre Eiffel, o palácio de
cristal e a roda gigante eram os símbolos visíveis do avanço tecnológico exibido
nasaseiras mundiais. A construção da imagem da superioridade dodoresente ocidental

12 BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX: exposé de 1939. In: BENJAMIN, W. Passagens. Op. cit., p. 57.

9
– através da engenharia, da medicina, da antropologia, da criminologia, da
arqueologia, entre outras ciências – permitia uma nova avaliação do passado e a
prospecção do futuro. A exibição do exótico – sob a forma de produtos, costumes e
até de indivíduos naturais das colônias – atestava o poderio e o expansionismo das
nações centrais e confirmava sua hegemonia cultural. Organizadas como expressão do
progresso supranacional, as exposições estiveram conectadas com festas e calendários
nacionais. Programadas como momento de reconciliação entre nações, acabaram
fornecendo material simbólico para o culto da nação e para a construção dos
nacionalismos que cresceram significativamente após a Primeira Guerra Mundial.

A obra Passagens nos dá a conhecer a forte sensação, individual e coletiva, do mundo


em processo de rápidas transformações. Nos fala do advento do capitalismo
impulsionando o desenvolvimento de múltiplas áreas do conhecimento ao mesmo
tempo em que propagava a mercantilização da vida. Benjamin trabalhou um período
onde o espetáculo da modernização proporcionou a circunstância ideal para a
remodelação das mais expressivas cidades que beberam na fonte do ideário moderno.
O desejo de progresso se materializou em várias cidades capitais, numa dinâmica tão
intensa que reverberou até as mais longínquas localidades, sendo Paris expressão
máxima desse movimento.

Independente do juízo formado ou da avaliação, realizada por muitos, como trabalho


inconcluso, Passagens tornou-se uma obra de enorme significação e referência para
quem se dedica ao estudo da modernidade e suas consequências. Ela nos dá a
conhecer uma nova forma de ler a cidade e a cotidianidade modernas, bem como
interpretar os variados aspectos da nossa civilização ao tomarmos por base muitos dos
seus “fragmentos” (moda, catacumbas, galerias, exposições, prostituição, jogo,
fotografia, ócio, dentre outros) e os atores silenciados pelas vozes da oficialidade
histórica.

Como sugere o organizador da edição brasileira, Willi Bolle, o formato da obra


Passagens corresponde à respectiva inovação da mesma. A sua grandeza não reside
nas vastas 1.167 páginas, mas na singular organização estrutural, bem como na
reflexão que o autor conseguiu realizar sobre as profundas transformações pelas quais
passavam as grandes metrópoles. Uma metodologia que indica-nososambém, com

10
riqueza de detalhes, a possibilidade de leitura do atual universo urbano por r io de
suas fendas e dos intervalos da sociedade contemporânea.

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