You are on page 1of 4

Primeiro, gostaria que você se apresentasse, falasse sobre sua trajetória acadêmica, explicasse

um pouco sobre sua pesquisa e o que te levou a ela.

Olá, sou Ramon Fontes, comunicólogo, escritor, mestre em cultura e sociedade (UFBA),
especialista em Estudos culturais, História e Linguagens (UNIJORGE), atualmente estou me
doutorando em Literatura e Cultura, pelo Instituto de Letras da UFBA e sou integrante do
NuCus - Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (UFBA). Desde
o mestrado tenho investido energia numa produção de conhecimento que prioriza uma
narrativa autobiográfica, em diálogo com as teorias e os movimentos sócio-políticos no
tempo em que se dá a minha escrita, isto é, produzo saberes completamente implicados (a
partir de minhas vivências) e localizados no tempo e no espaço social em que vivo e reflito,
acompanhando o que nos diz Donna Haraway. Nesse sentido, minha pesquisa no doutorado
prioriza, igualmente, um movimento de usar a minha vivência enquanto uma pessoa vivendo
com hiv e produzir, a partir dessa minha experiência algum tipo de diálogo crítico em torno
do que tenho nomeado como dispositivo do hiv/aid$ (grafado em minúsculo para diminuir
seu peso social frente às "maiusculidades dos nomes" e, também, grafado com um cifrão
para fazer referência direta à industria farmacêutica que lucra bilhões tendo as nossas vidas
posithivas como produto e deslocam ou silenciam a narrativa da cura dessa infecção que
mata muita gente ao redor do globo) que tem muitas nuances e recortes bem distintos de
classe, raça, geração, território, gênero etc.

Você fala bastante sobre a existência de uma epidemia discursiva que é gerada quando
tratamos de assuntos que giram em torno do Hiv/Aids. O que seria essa epidemia?

O conceito de epidemia discursiva é cunhado por Marcelo Secron Bessa na sua dissertação
de mestrado que depois virou o livro chamado Histórias Positivas: a literatura
(des)construindo a aids (1997), esse conceito diz respeito a como se deu o movimento de
apresentação, informação e explicação da epidemia do hiv/aid$ em contexto brasileiro, no
início da década de 1990. Para ele a epidemia discursiva era justamente uma narrativa
paralela aos discursos frágeis, titubeantes e pouco esclarecedores que eram produzidos, ou
nem isso, por órgãos públicos de saude, como o Ministério da Saude (governo) e as
Universidades, por exemplo, na tentativa de explicar o que era aquela ameaça que estava
matando muitas pessoas. Essa narrativa paralela, segundo o autor, foi capitaneada pelos
meios de comunicação que, em sua maioria, produziam uma epidemia discursiva com tons
folhetinescos, amedrontadores, de horror, de apocalipse para tentar, de forma muito
enviesada, explicar ao público aquilo que nem os órgãos de saude conseguiam explicar com
absoluta certeza (as capas de revista com pessoas soropositivas sendo acompanhadas
diariamente no seu adoecimento público, as matérias jornalísticas que colavam a epidemia
exclusivamente às pessoas dissidentes de gênero, como os gays e as travestis, são alguns
exemplos dessa epidemia discursiva).

Para você, qual o papel da mídia na prevenção do Hiv/Aids? E Como você percebe o
enquadramento desses assuntos por ela, atualmente? Acredita que houve algum avanço?

Essa pergunta comporta duas respostas que necessitam dialogar, veja: a) os meios de
comunicação cumprem uma função muito importante na publicização das diretrizes
mundiais em torno da prevenção e do tratamento do hiv/aid$. b)acontece que os anos de
produção discursiva, derivados da epidemia discursiva a que se refere Bessa, parecem ter
cristalizado no imaginário das pessoas um modus operandi de produção textual que quase
sempre colocam a pessoa que vive com hiv numa narrativa de pessoa vitoriosa, por ter
sobrevivido, ou de perigosa, que precisa ser mantida em vigilância. Ambas as narrativas são
herança de um certo pensamento colonial e, sobretudo, cristão em torno das nossas
produções subjetivas, de nossas vivências sexo-afetivas e, por último, das nossas
construções corporais. Sacar essa reprodução reiterada desses discursos é justamente
produzir outras infinitas narrativas, inclusive muito mais acolhedoras e afetivas, em torno
não só da pessoa que vive com hiv (soropositiva), mas também das pessoas que convivem
com o hiv (familiares, amigues, companheirxs...). A epidemia do hiv/aid$ é de todes! Não diz
respeito apenas àquelxs que possuem cópias do vírus bailando pela sua corrente sanguínea,
mas diz respeito, também, aquelxs que são responsáveis por pensar as políticas públicas,
garantir acesso irrestrito ao tratamento, produzir discursos que combatam o estigma e os
anos infernais de dedos apontados sobre aquele que era nomeado como "aidéticx". Houve
avanços sim, principalmente no que tange às informações técnicas em torno da prevenção e
do tratamento: (camisinhas, PreP, PeP, como funcionam os medicamentos antiretrovirais
usados para combater o vírus do hiv e evitar o adoecimento do corpo até o estágio da
aids...), mas eu acredito e tenho tentado produzir/agir em torno de uma abordagem mais
humanizada e menos culpabilizante em torno da infecção crônica do hiv. Ao mesmo tempo
busco fazer uma crítica à industria farmacêutica que parece ter descartado a pauta da CURA
em detrimento de tecnologias que controlam parcialmente a infecção pelo vírus, isto é, é
mais fácil eu inventar fármacos que diminuam o vírus, mas não o matem, pois assim eu terei
sempre um "público consumidor fiel" e que depende desse meu produto para permanecer
vivx.

Existe distinção nos discursos das narrativas (tanto literárias, quanto midiáticas) de
soropositivos LGBTs para soropositivos héteros?

Há um recorte muito definido entre o que seria uma epidemia de hiv/aid$ para pessoas
LGBTs e uma epidemia de hiv/aid$ para pessoas heterossexuais e esse recorte diz respeito a
toda uma produção heteronormativa dos discursos que colocaram LGBTs como pessoas
agentes infecciosos, vetores de todo um horror biológico, alienígenas virulentos num mundo
habitado por ilibados e ilibadas pais e mães de família, que nunca ousaram ultrapassar as
regras criadas do que é ser homens e mulheres de bem (contém ironia!). Nesse sentido, os
discursos que tratam do hiv/aid$ implicitamente sempre se dirigem às pessoas LGBTs e
tratam as pessoas heterossexuais como um público colateral, tangente dessa epidemia. O
efeito disso é perceptível, por exemplo, no aumento dos índices de infecções entre
heterossexuais e pessoas idosas, isto é, na medida em que o foco está sempre sobre os
corpos LGBTs as pessoas cristalizam no imaginário social de que estão imunes, de que só
"viados e travecos" tem o vírus, daí o índice apresenta que esse imaginário é falso, tão
criado quanto o que coloca LGBTs como alvo. Como eu sempre tenho dito: o hiv/aid$ é uma
epidemia que diz respeito aos habitantes do planeta Terra, todes, sem nenhuma exceção!

Passamos por um período social e político em que pautas ligadas a gênero e sexulidade são
cada vez mais marginalizadas e tratadas como tabu. Como esse contexto pode afetar a vida de
pessoas soropositivas?

Esse contexto político apenas intensifica, num nível muito assustador, a subjetividade e as
vivências das pessoas que vivem com hiv. Se já vivemos com o peso social de ser taxado,
nomeado e marcado pelo discurso biomédico e pelo discurso estigmatizante do senso
comum como uma pessoa "doente", "infectada", não saudável", "aidética", só pra citar
alguns nomes, um regime político de exceção, como esse em que vivemos contribui de
maneira exponencial para produzir um apartheid entre puros e não puros, saudáveis e não
saudáveis, "belos, recatados e do lar" e "monstros, promíscuos e marginais". Nessa lógica
neofacista, fortemente influenciada e amalgamada com os discursos religiosos de caráter
conservador as pessoas que vivem múltiplas e distintas maneiras de sexualidade, de
construções de gênero e de modos de ser e estar no mundo que não coadunam com a norma
(heterossexual, cisgênera, branca, classe média, universitária...) será lida como desviante.
Todo esse cenário adicionado à vida de uma pessoa que vive com hiv contribui num nível
muito violento para a continuidade dessa vida, isto é, além dos efeitos colaterais, do
envelhecimento precoce, dos repetidos episódios de doenças colaterais ocasionadas pelo
antiretrovirais, aliado à dificuldade de relacionamento afetivo-sexual, de diálogo aberto
sobre sua condição sorológica (levando à um armário onde as pessoas se escondem
metaforicamente), além de tudo isso ver o presidente eleito do país que você vive dizer que
"não é obrigação do governo financiar promiscuidade ou tratamento para promíscuos"
(videos disponiveis na internet), atrelando o hiv/aid$ à comportamentos de risco, isso mina
diariamente a possibilidade de uma pessoa positiva acreditar que estar vivx é o melhor...
Mas no fim das contas a gente resiste, pois não somos um dado pra constar no boletim
epidemiológico, mas sim, pessoas que estão vivas e continuam lutando pelo seu direito de
viver, assim como as/os nossas/os mais velhas/os fizeram...

De que forma as pessoas soropositivas podem contribuir para reescrever essas histórias e
discursos já enraizados na sociedade?

Não existe um modelo, mas eu acho que a gente reescreve essa história diariamente,
decidindo continuar vivos e vivas, apesar do dispositivo biomédico e social querer nos
eliminar (com os fármacos tóxicos, com seus efeitos colaterais, com o estigma violento...), a
gente reescreve essa história quando nos colocamos como críticxs do dispositivo do
hiv/aid$, sendo pedagógicos até certo ponto, mas também mostrando que é
responsabilidade de quem não é soropositivo buscar informação, saber de que se trata o hiv
e a aids para não reproduzir e criar violências (muita gente ainda nem sabe que esses dois
nomes são diferentes entre si). A gente reescreve essas histórias a partir do acolhimento
daqueles e daquelas que souberam de sua sorologia há pouco tempo, dialogando com
aqueles e aquelas que vivem com o hiv há mais tempo... Reescreve essas histórias
assumindo posições de poder e falando abertamente sobre essa epidemia, seja na
universidade, na mídia, nas artes... A gente já está reescrevendo essa história há tempos,
cabe mais às pessoas soronegativas e sorointerrogativas se aliarem a nossa luta e ajudar a
reescrevê-la sem querer protagonismo!

You might also like