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IberografIas
NOVAS FRONTEIRAS, OUTROS DIÁLOGOS:
PaIsageNs, PaTrIMÓNIos, CULTUra

Coordenação de
Rui Jacinto

IberografIas

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Colecção Iberografias
Volume 35

Título: Novas Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Coordenação: Rui Jacinto


Autores: Ana Rosa Marques; Antonio Cordeiro Feitosa; Cleder Fontana; Cristiano Quaresma de Paula; Daniela
Maria Vaz Daniel; Dirce Maria Antunes Suertegaray; Fernando A. Baptista Pereira; Helena Santana; Jose
Geraldo Silva; Lorrana Jhulian Alves Batista; Luisa Fernanda Durán Montes; Luma Damon de Oliveira
Melo; Maíra Suertegaray Rossato; Márcia Manir Miguel Feitosa; Maria Amelia Reis; Maria do Rosário
Pinheiro; Messias Modesto dos Passos; Pedro C. Carvalho; Pedro Javier Cruz Sánchez; Pedro Manuel
Pereira da Silva Tavares; Rogério Batista dos Santos; Rosário Santana; Sofia Salema Guilherme; Tallita
Rayanne Santos Arouche; Thiago Romeu de Souza; Vera Lúcia de Almeida.

Pré-impressão: Âncora Editora

Capa: Sofia Travassos | Âncora Editora

Impressão e acabamento: LOCAPE - Artes Gráficas, Lda.

1.ª edição: abril 2019


Depósito legal n.º 423100/17

ISBN: 978 972 780 683 6


ISBN: 978-989-8676-19-1

Edição n.º 41035

Centro de Estudos Ibéricos


Rua Soeiro Viegas n.º 8
6300-758 Guarda
cei@cei.pt
www.cei.pt

Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
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Apoios:
Novas fronteiras, outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura 7
Rui Jacinto
PaIsageNs: (bIo)DIversIDaDe e IDeNTIDaDe

biodiversidade: o paradigma da complexidade 11


Messias Modesto dos Passos
Paisagem cafeeira e identidade cultural: práticas de territorialização a partir 23
da produção dos cafés especiais no eje Cafetero - Colômbia
Luisa Fernanda Durán Montes
Trilhando pela paisagem cultural de alcântara / brasil 35
Ana Rosa Marques; Tallita Rayanne Santos Arouche
Potiguaras da Paraíba: paisagem e gênero de vida 49
Thiago Romeu de Souza
educação no contexto da gestão da fLoNa de Tefé, amazonas, brasil 65
Maíra Suertegaray Rossato; Cristiano Quaresma de Paula; Cleder Fontana
o uso de embalagens Tetra Pak como alternativa sustentável no isolamento 89
térmico de residências de famílias de baixa renda em Porto velho – rondônia
Vera Lúcia de Almeida; Lorrana Jhulian Alves Batista; Rogério Batista dos Santos;
Luma Damon de Oliveira Melo; Jose Geraldo Silva
Desertificação e Arenização no Brasil 99
Dirce Maria Antunes Suertegaray

PaTrIMÓNIo e CULTUra: MúLTIPLos oLhares

Leituras históricas das paisagens do Império romano na área fronteiriça 127


entre Portugal (beira Interior) e espanha (extremadura/Castilla y León)
(valorização patrimonial e desenvolvimento territorial)
Pedro C. Carvalho
a família Turriano, arquitectura e branding na Casa de habsburgo 141
e na Casa de bragança
Pedro Manuel Pereira da Silva Tavares; Sofia Salema Guilherme;
Fernando A. Baptista Pereira
a dimensão simbólica do lugar e do patrimônio nos açores de Joel Neto: 157
uma leitura interdisciplinar entre literatura e geografia cultural
Márcia Manir Miguel Feitosa
viagens de Camilo Castelo branco 165
Daniela Maria Vaz Daniel
Do território e da paisagem – a máscara elemento de exteriorização 185
de um imaginário real
Helena Santana; Rosário Santana
espacios de devoción de la raya hispano-portuguesa. análisis 199
antropológico y turismo religioso de los paisajes sagrados de frontera
Pedro Javier Cruz Sánchez
Patrimônio Cultural, resistências e territorialidade quilombola: 217
desafios e avanços
Maria Amelia Reis; Maria do Rosário Pinheiro
o patrimônio cultural como fator de desenvolvimento territorial 231
no vale do rio Munim, estado do Maranhão-brasil
Antonio Cordeiro Feitosa
Novas Fronteiras, Outros Diálogos:
Paisagens, Patrimónios, Cultura

Rui Jacinto
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT)

A XVIIIª edição do Curso de Verão, promovida pelo Centro de Estudos Ibéricos


(CEI), entre 9 e 13 de julho de 2018, sob o lema “Novas fronteiras, outros diálogos: pa-
trimónio cultural, cooperação e desenvolvimento territorial”, ao honrar os compromissos
do CEI com os espaços fronteiriços, (re)afirmou o Centro como uma plataforma com
especial vocação para o diálogo com instituições e investigadores dos Países de Língua
Portuguesa. Quando atingiu a sua maioridade, o Curso de Verão granjeou um reconheci-
mento que é atestado pelo número crescente de participantes e pela adesão expressiva de
investigadores brasileiros.
A coincidência de se celebrar o VIIIº Centenário da Universidade de Salamanca e
ter sido proclamado Ano Europeu do Património Cultural motivou uma programação

// Novas Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


inovadora em termos organizativos e temáticos. O Curso foi concebido para ser itine-
rante, tendo acontecido a sua abertura na Universidade de Coimbra e o encerramento na
Universidade de Salamanca. O eixo científico e cultural que une as cidades de Coimbra,
Guarda e Salamanca, onde os debates tiveram lugar, estruturou a Rota Eduardo Lourenço
– Miguel de Unamuno, patronos cujas obras inspiraram o trabalho de campo e o respe-
tivo livro guia, então publicado, Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de
Unamuno – Eduardo Lourenço (Valentín Cabero, Rui Jacinto). A obra, que reúne reflexões
inspiradoras destes autores sobre os lugares visitados, dum lado e doutro da fronteira,
revela-se importante nas visitas às cidades (Coimbra, Viseu, Guarda e Salamanca), vilas
(Tondela, Penalva do Castelo, Vilar Formoso, Almeida) ou pequenas aldeias (Jarmelo,
S. Pedro do Rio Seco) da região.
7
Além das visitas de estudo, onde se apresentaram e debateram temas relacionados com
as diferentes formas que as paisagens e os patrimónios assumem na área fronteiriça entre
Portugal e Espanha (Beira Interior), tiveram lugar conferências, comunicações e mesas
redondas, que se organizaram nos seguintes temas gerais: (i) patrimónios, paisagens e de-
senvolvimento local; (ii) dinâmicas socioeconómicas em diferentes contextos territoriais;
(iii) cooperação e desenvolvimento: novas fronteiras, outros diálogos.
A edição que se dá à estampa, que reúne um primeiro conjunto de trabalhos apresen-
tados no Curso de Verão, ajuda-nos a compreender a profunda diversidade do território
e a importância dos recursos, naturais e humanos, materiais e intangíveis, como fatores
críticos que importa considerar em qualquer estratégia de desenvolvimento territorial.
O precioso contributo dos autores, a quem é devido um merecido agradecimento por tão
generosa colaboração, enriquece o património da região e do Centro de Estudos Ibéricos.
// Novas Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
8
Paisagens:
(bio)diversidade e identidade
Biodiversidade:
o paradigma da complexidade

Messias Modesto dos Passos1


Programa de Pós-Graduação em Geografia
da FCT-UNESP – campus de Presidente Prudente/SP – Brasil

Nesse artigo, nós vamos enfatizar o papel da geodiversidade e das mudanças climá-
ticas do Quaternário na explicação do paradigma da complexidade da biodiversidade.
A biodiversidade varia com as diferentes regiões ecológicas, sendo maior nas regiões tropicais
do que nos climas temperados. Um dos problemas centrais da Biologia é o da diferença
em diversidade entre os ecossistemas tropicais e temperados. Os estudos biogeográficos,
aliados à paleogeografia, paleoclimatologia, palinologia, pedologia etc., no que se refere ao
continente sul-americano, demonstram que os mecanismos básicos que deram origem à
complexa flora atual, não só são relativamente simples como recentes. Ao longo de todo o
Quaternário, até nossa época, um período de drásticas mudanças climáticas, alternando-se,
seguidamente, fases úmidas e fases secas com intensa atuação na distribuição da cobertura
vegetal, ou seja, retração das florestas nas fases secas, cedendo lugar para o crescimento de Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

formações vegetais abertas xerofíticas, e reexpansão das florestas nas fases úmidas. Durante
as fases secas, pequenas “ilhas de ambiente tropical” teriam subexistido onde condições
climáticas e topográficas eram favoráveis servindo de abrigo ou de “refúgio” para animais
de florestas. No estudo dos solos e na geomorfologia, são encontradas as evidências mais
confiáveis e incontrovertidas sobre as variações paleoclimáticas. A presença de linhas de
pedra (“stone lines”) interceptando horizontes de paleo-solos, principalmente em áreas de
interflúvio, terraços fluviais, pedimentos, crostas ferruginosos etc., indica períodos áridos
sob cobertura vegetal rala. Por outro lado, o espaço geográfico ocupado pelas formações
1
mmpassos86@gmail.com
11 // Novas
vegetais abertas, por ocasião do avanço das correntes frias e secas da última glaciação, pode
ser melhor compreendido, pelo menos no momento, pelos estudos da compartimentação
topográfica e pelos enclaves florísticos residuais.

A biodiversidade

Pode ser definida como a variedade e a variabilidade existente entre os organismos


vivos e as complexidades ecológicas nas quais elas ocorrem. Ela pode ser entendida como
uma associação de vários componentes hierárquicos: ecossistema, comunidade, espécies,
populações e genes em uma área definida. A biodiversidade varia com as diferentes regiões
ecológicas, sendo maior nas regiões tropicais do que nos climas temperados.
A Biodiversidade é uma das propriedades fundamentais da natureza, responsável pelo
equilíbrio e estabilidade dos ecossistemas, e fonte de imenso potencial de uso econômico.
A biodiversidade é a base das atividades agrícolas, pecuárias, pesqueiras e florestais e, tam-
bém, a base para a estratégica indústria da biotecnologia. As funções ecológicas desempe-
nhadas pela biodiversidade são ainda pouco compreendidas, muito embora considere-se
que ela seja responsável pelos processos naturais e produtos fornecidos pelos ecossistemas
e espécies que sustentam outras formas de vida e modificam a biosfera, tornando-a apro-
priada e segura para a vida. A diversidade biológica possui, além de seu valor intrínseco,
valor ecológico, genético, social, econômico, científico, educacional, cultural, recreativo e
estético. Com tamanha importância, é preciso evitar a perda da biodiversidade.
Três razões principais justificam a preocupação com a conservação da diversidade biológica:
Primeiro porque se acredita que a diversidade biológica seja uma das proprie-
dades fundamentais da natureza, responsável pelo equilíbrio e estabilidade dos
ecossistemas.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Segundo porque se acredita que a diversidade biológica representa um imenso


potencial de uso econômico, em especial pela biotecnologia.
Terceiro porque se acredita que a diversidade biológica esteja se deteriorando, inclu-
sive com aumento da taxa de extinção de espécies, devido ao impacto das atividades
antrópicas.

A diversidade tropical
Um dos problemas centrais da Biologia, problema já claramente formulado no come-
ço do século xix e hoje ainda nem perto de solução, é o da diferença em diversidade entre
os ecossistemas tropicais e temperados. Os números variam de grupo para grupo, mas os
ecossistemas tropicais são, em todos os grupos, mais diversificados que os temperados,
12 // Novas
embora a biomassa de alguns destes (por exemplo, a floresta de sequoia, ou as florestas de
coníferas) seja comparável ou até maior que a das florestas equatoriais.
A mais antiga das explicações propostas para esse fato é que as comunidades tropicais
são velhas e estáveis, e assim tiveram mais tempo para evoluir. Essa hipótese já está descartada
pela paleoclimatologia.
A pesquisa de sistemática evolutiva nas regiões tropicais é dificultada exatamente pela
natureza do seu problema central: a biodiversidade.
No Brasil, temos ao alcance das mãos um dos processos mais importantes e ainda não
totalmente explicado da teoria evolutiva: a origem das faunas tropicais complexas.
A fauna e a flora das regiões tropicais, e especialmente das grandes florestas equatoriais,
são muito mais diversificadas que as das regiões temperadas, isto é, abrigam um maior nú-
mero de espécies, cada qual representada, via de regra, por um menor número de indivíduos.
Nas regiões temperadas há um número distintamente menor de espécies, mas as densidades
de população são muito maiores (DARLINGTON, 1957; IN: VANZOLINI, 1970).

Quadro 1. Comparação entre Floresta Intertropical Climácica


e Bosque Temperado Climático

Floresta Intertropical Climácica Bosque Temperado Oceânico Climático


Caracterização Heterogeneidade da formação (muitas espécies). Homogeneidade da formação (poucas espécies).
da vegetação Semicaducifolia. Caducifolia.
Crescimento rápido (Idade: + / - 100 anos). Crescimento lento (Idade: > 200 anos).
Condições Clima quente e úmido. T > 18 ºC. Clima frio/sub-úmido. T<15 ºC. P < 1.500 mm;
Climáticas P > 1.800 mm. Estacionalidade: definida pelas pre- Estacionalidade definida pelas temperaturas; Inter-
cipitações. Atividade vegetal durante todo o ano. rupção da atividade vegetal no Inverno.
Decomposição Muito rápida Lenta
orgânica
Ação Antrópica Recente/Rápida/Ativa/Extensiva Antiga/Lenta/Ativa/Intensiva
Dinâmica atual Regressiva e com alto risco Estabilizada ou em lenta progressão

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


Organizado por Passos & Luengo

Teoria sintética da evolução


A teoria, dita “sintética”, da evolução, baseia-se em dois mecanismos básicos:
1. Variabilidade genética: (a) os indivíduos da mesma espécie diferem entre si quanto
ao seu patrimônio genético; (b) às diferenças genéticas correspondem diferenças
morfológicas, fisiológicas e de comportamento.
2. Seleção Natural: (a) os indivíduos portadores de certos caracteres, geneticamente
determinados, têm maior probabilidade de deixar descendentes; (b) isto tende, com
o correr do tempo, a aumentar a incidência desses caracteres da população.
13 // Novas
Especiação geográfica

A especiação geográfica é praticamente o único processo de especiação nos animais, e é


provável que seja o modo prevalecente nos vegetais. Apesar dessa tese ter atualmente uma
aceitação quase universal, a menos de 40 anos era contestada, e biólogos de renome, nunca
a aceitaram. A teoria da especiação geográfica é uma das teorias-chaves da biologia evolutiva.
A teoria da especiação geográfica, resultante do trabalho de numerosos taxonomistas,
afirma que, em animais com reprodução sexuada, uma espécie nova aparece, quando, du-
rante o período de isolamento, uma população, geograficamente isolada de outras populações de
sua espécie, adquire caracteres que promovem ou garantem o isolamento reprodutivo, depois de
eliminadas as barreiras externas (MAYR, 1977).
A especiação geográfica parte de três pressupostos básicos: (a) especialização ecológica
das espécies; (b) fragmentação do território de uma espécie; e (c) evolução de um mecanismo
de isolamento genético (VANZOLINI, 1970).

Especialização Ecológica
De modo geral (excetuados os casos de adaptação a ambientes muito especiais),
a distribuição dos animais terrestres nos continentes é correlacionada com as grandes
formações vegetais, ou com a temperatura, ou com uma combinação de ambos os fatores.
Cada espécie explora, de uma maneira que lhe é própria, os recursos ambientais de sua
área de distribuição: espaço para viver, alimento, energia solar, locais de reprodução etc.
Esse conjunto de especializações constitui o nicho ecológico da espécie. Toda vez que duas
ou mais espécies exploram da mesma maneira um mesmo recurso ambiental que não exis-
ta em quantidade suficiente para todas, diz-se que estão em concorrência ou competição.
O resultado da concorrência continuada pode ser a sobrevivência de uma única espécie,
com a extinção das demais concorrentes (princípio da “exclusão competitiva”).
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Fragmentação do Território
A área ecologicamente favorável a uma espécie não permanece imutável no tempo. Ela
pode aumentar ou diminuir como um todo, ou ainda, fragmentar-se. A fragmentação é
causada por mudanças climáticas (glaciações pleistocênicas), eventos geológicos (orogenia,
subsidência etc.), ação antrópica (desmatamentos, lagos artificiais etc.)..., que determinam
o aparecimento de faixas de território, onde a vida da espécie é impossível, separando áreas
ainda favoráveis, onde ela sobrevive.
À uma faixa desfavorável, separando duas áreas onde a espécie se mantém, chama-se
uma barreira ecológica. Quando as barreiras são muito amplas e, paralelamente, as áreas
de sobrevivência relativamente muito pequenas, estas se dizem refúgios.
14 // Novas
Vejamos o raciocínio e a ilustração gráfica (Figura 1) que se presta para explicar a
especiação geográfica:

Figura 1. Representação diagramática das possíveis sequências de eventos no modelo de especiação geográfica.
(Extraído de VANZOLINI, 1970, p.8)

Especiação Geográfica
A importância das barreiras ecológicas reside em que interrompem o fluxo gênico entre

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


as populações por elas separadas. Se considerarmos que cada indivíduo da espécie tem a
possibilidade de cruzar-se com qualquer outro dentro do seu raio de ação, fica claro que
todos os indivíduos da espécie participam potencialmente de todo o patrimônio genético.
Uma novidade genética surgida em um ponto do território pode propagar-se por ele todo.
Ao contrário, com o aparecimento de uma barreira ecológica, as novidades surgidas
de um lado não se propagam para o outro. Dado que essas novidades têm caráter in-
teiramente fortuito, e dado também que as condições ambientais com certeza diferirão
dos dois lados da barreira, ocasionando diferentes pressões da seleção natural, é fatal
que populações assim separadas venham a evoluir de forma divergente, acumulando
diferenças e atingindo eventualmente o estado de isolamento reprodutivo e portanto de
espécies distintas.
15 // Novas
Graus de isolamento reprodutivo
Até este ponto o modelo explica a multiplicação de espécies em áreas separadas, mas
não ainda a multiplicação de espécies aparentadas dentro de uma mesma área. Este fenô-
meno, porém, pode ser compreendido considerando-se que as barreiras ecológicas não são
necessariamente permanentes: seu eventual desaparecimento coloca de novo em contacto
as populações antes separadas.
O resultado do novo contacto vai depender do grau de diferenciação atingido duran-
te a fase de isolamento. Com efeito, o processo de divergência é gradual, cumulativo, e
pode ser surpreendido a qualquer momento pelo desaparecimento da barreira ecológica.
Na prática, as seguintes alternativas são as mais importantes:
1. A divergência entre as populações segregadas atingiu tal ponto que elas se tornaram inca-
pazes de se cruzarem normalmente em natureza, constituindo-se em espécies distintas.
1.1. se a divergência resultou em métodos diferentes de exploração do ambiente,
de maneira que as novas espécies não entram em concorrência ruinosa, elas
podem coexistir lado a lado (espécies simpátricas2);
1.2. se houver concorrência, pode haver extinção de uma ou mais espécies.
Frequentemente, as diferenças morfológicas se acentuam na área de simpatria
(deslocamento de caracteres).
1.3. ainda em caso de concorrência, cada espécie pode ser a vencedora dentro de
uma determinada área: resultam então espécies parapátricas, ocupando territó-
rios separados mas limítrofes; a parapatria é um caso particular de alopatria3
2. O grau de divergência alcançado durante a fase de isolamento não foi suficiente
para impedir que as populações se cruzem normalmente em natureza.
2.1. as espécies podem fundir-se amplamente, resultando de novo uma espécie
monotípica;
2.2. pode acontecer que as espécies segregadas atingiram um elevado grau de isola-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

mento genético e que, a competição entre elas levem ao fenômeno da parapatria:


cada população mantém sua individualidade na área em que se diferenciou; na
região de contacto, porém, estabelece-se uma faixa de franca hibridação (zona de
intergradação). Tem-se então uma espécie politípica, dividida em subespécies.
A título de exemplificação e, sobretudo, de demonstração do processo de especia-
ção geográfica, vejamos a análise que PASSOS (2003, p. 147-149) apresenta para a
Amazônia Brasileira. É bom lembrar, que a partir do mapeamento de fragmentos da
vegetação nativa, que ainda permanece em nível regional, é possível realizar interessantes

2
Do grego “syn” = junto; “patra”= pátria. Vivem juntas, tendo, portanto, a oportunidade de intercruzamento.
3
Do grego: “allos”= outro; “patra” = pátria. Espécies separadas geograficamaente.
16 // Novas
estudos com o objetivo de verificar as implicações do “isolamento geográfico” sobre
populações de determinada espécie subexistentes nessas “ilhas”.
É muito conhecido, de longa data, que a Amazônia comporta uma das biotas mais
diversificadas e mais complexas do mundo, porém, até o fim dos anos 1960, nada, ou
quase nada, se sabia sobre como se originou e de como é mantida essa complexidade.
Era considerado, até essa época, um paradoxo ecológico de difícil solução o fato de uma
imensa floresta, praticamente contínua e, aparentemente, homogênea e estável, comportar
espécies politípicas (ou seja, espécie subdividida em populações com peculiaridades taxo-
nômicas, habitando áreas geográficas distintas e exclusivas, mas que apresentam, entre si,
zonas de intergradação), espécies endêmicas, muitas espécies afins vivendo lado a lado etc.
Os estudos biogeográficos, aliados à paleogeografia, paleoclimatologia, palinologia,
pedologia etc., no que se refere ao continente sul-americano, que começaram a cristalizar-
-se há pouco mais de 40 anos, mostraram, por outro lado, que os mecanismos básicos que
deram origem à complexa fauna atual, não só são relativamente simples como recentes.
O geólogo e ornitologista J. HAFFER, em 1969, trabalhando com distribuição de
aves e lagartos, respectivamente, teceram um modelo geográfico para explicar essa diver-
sidade a nível de espécie (espécies politípicas, superespécies etc.), ou seja, o modelo de
refúgios climáticos durante o Quaternário, que nada mais é que o ortodoxo modelo de es-
peciação geográfica, usualmente aceito para explicar a maior parte dos casos de especiação,
ou multiplicação de espécies, em faunas terrestres.
Para entender o modelo, entretanto, é preciso conhecer um pouco da sua história e do
processo de sua elaboração.
HAFFER, em seus trabalhos de 1969, sugere que ao final do Terciário e início do
Quaternário (1-2 milhões de anos atrás), quando se deu a elevação final dos Andes e o
preenchimento da bacia sedimentar Amazônica, criaram-se condições úmidas propícias
para o crescimento da floresta, outrora, possivelmente restrita ao longo dos rios e às terras

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


marginas do escudo Norte (Craton Guianês) e do escudo Sul (Craton do Guaporé), que
confinam o atual vale Amazônico.
A fauna de florestas emergente do Terciário, consequentemente, teve seu habitat vigoro-
samente ampliado devido ao vasto crescimento da floresta. Instala-se, também, a partir daí, ao
longo de todo o Quaternário, até nossa época, um período de drásticas mudanças climáticas,
alternando-se, seguidamente, fases úmidas e fases secas com intensa atuação na distribuição
da cobertura vegetal, ou seja, retração das florestas nas fases secas, cedendo lugar para o cres-
cimento de formações vegetais abertas xerofíticas, e reexpansão das florestas nas fases úmidas.
Durante as fases secas, pequenas “ilhas de ambiente tropical” teriam subexistido onde condi-
ções climáticas e topográficas fossem favoráveis servindo de abrigo ou de “refúgio” para animais
de florestas (animais adaptados a alta umidade, pouca luz e temperatura relativamente estável).
17 // Novas
A fragmentação da área de distribuição dessas espécies animais, nas fases secas, levaria,
fatalmente, não só à extinção de muitas delas, como a evolução diferencial das populações
sobreviventes nesses refúgios. O retorno das condições úmidas e o crescimento e coalescên-
cia dos refúgios colocariam, novamente, as populações em contato. Esse contato, a nível de
espécie, dependendo do grau de diferenciação alcançado pelas populações sobreviventes
durante o período de isolamento geográfico, poderia resultar em uma multiplicidade de
situações, como formação de espécies politípicas (as populações mantém a identidade geo-
gráfica, porém estabelecem zonas de intergradação entre si), fusão entre todas ou algumas
das populações, formação de espécies novas, competição entre espécies, extinção, exclusão,
etc. Enfim, uma verdadeira revolução evolutiva.
Com isso em mente, restava agora o passo científico mais importante, ou seja, a com-
provação, a localização das possíveis áreas que abrigaram esses refúgios no decorrer do
Quaternário. Admitindo que o padrão básico de distribuição de chuvas (não índice plu-
viométrico), durante os vários ciclos climáticos, não tenha sofrido grandes alterações, uma
vez que as condições orográficas que determinam esse padrão estiveram presentes durante
a maior parte do Quaternário, HAFFER sugeriu que a localização dos refúgios de floresta,
durante os períodos áridos, deveriam coincidir com os atuais centros de alta pluviosidade.
Esse postulado, de grande impacto rejuvenesceu o interesse pelas ciências biogeográ-
ficas, de modo que muitos pesquisadores, especialmente os brasileiros (entre eles, alguns ocu-
pando posição de vanguarda como A. N. AB’SÁBER, J.J. BIGARELLA, K.S. BROWN
JR, P. E. VANZOLINI etc.), engajaram-se neste campo, acrescentando informações em
número já considerável que não só confirmaram como também permitiram um rápido
aprimoramento do postulado.
Já se sabe, com relativa certeza, que o último grande período seco (houve outros lo-
calizados e de pouca intensidade), cuja extensão pode ser inferida a partir da distribuição
da flora e fauna contemporâneas, ocorreu entre 13.000 e 18.000 anos atrás, correspon-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

dendo a etapa final da última grande era glacial, que começou há cerca de 100.000 anos
AP. Assim, ao contrário do que alguns autores supunham, os períodos de expansão da
aridez estão associados a condições glaciais e níveis de mares baixos, portanto frios e secos.
O rebaixamento do nível marinho condicionado pelos movimentos glácio-estáticos expôs
grande parte da plataforma continental (por exemplo, colocou as ilhas do litoral paulista
em contato com o continente). Os rios Amazônicos poderiam ser imaginados, em períodos
de extensa regressão marinha, como um grande “canyon”. Por outro lado, os períodos úmidos
correspondem aos períodos interglaciais com elevação do nível dos mares. As transgressões
marinhas interglaciais são particularmente importantes na calha do vale amazônico, cujo
leito (talvegue), em grande extensão, está abaixo do espelho marinho. O pico da última
transgressão marinha, que corresponde ao otimum climaticum da atual fase interglacial,
18 // Novas
ocorreu por volta de 4.000 - 6.000 anos atrás e atingiu entre 5 e 12 m, causando o afoga-
mento da foz de numerosas afluentes do rio Amazonas, como se vê ainda hoje (isso pode
ser muito bem estudado nos relatórios e mapas do projeto Radam).
No estudo dos solos e na geomorfologia, são encontradas as evidências mais confiáveis
e incontrovertidas sobre as variações paleoclimáticas. A presença de linhas de pedra (“stone
lines”) interceptando horizontes de páleo-solos, principalmente em áreas de interflúvio,
terraços fluviais, pedimentos, crostas ferruginosos etc., indica períodos áridos sob cober-
tura vegetal rala. Evidências dessa ordem foram encontradas em muitos lugares do espaço
geográfico sul-americano, desde a Amazônia central até os altiplanos do sul e na região
andina. Em vários trechos da rodovia Manaus-Itacoatiara encontram-se as “stone lines”.
Com a abertura de muitas estradas como a Transamazônica e a Perimetral Norte, entre
outras, estas evidências já se tornaram comuns.
Por outro lado, o espaço geográfico ocupado pelas formações vegetais abertas, por
ocasião do avanço das correntes frias e secas da última glaciação, pode ser melhor compre-
endido, pelo menos no momento, pelos estudos da compartimentação topográfica, pelos
enclaves florísticos residuais (p. ex., enclaves de cactáceas no Sul do Brasil, enclaves de
cerrados no interior da floresta amazônica, que indicam uma passada continuidade com
os cerrados do Brasil Central e os de Roraima e Venezuela etc.) e, de forma indireta, pelos
estudos biogeográficos.
Em 1977, AB’ SÁBER apresentou um mapa, como primeira tentativa, dos Domínios
Naturais da América do Sul há 13.000 - 18.000 anos, que foi, nesse mesmo ano, comple-
mentado, no que se refere às “ilhas de mata”, pelo trabalho de K. S. BROWN, JR.(Figura 2)
Tudo indica, de acordo com Ab’Sáber, que por ocasião dos períodos glaciais, especialmen-
te o último, a vegetação aberta xerofítica e não xerofítica predominava no vale amazônico.
As florestas úmidas mantiveram-se apenas nas galerias dos rios e em algumas encostas de
morros e pequenas serras e, em alguns lugares na periferia das terras altas que circundam o

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


vale (nas encostas andinas e ao longo da fachada do escudo das Guianas e do Brasil central).
As caatingas, com cactáceas, teriam tido uma enorme expansão, chegando aos maciços sulinos
e invadindo extensas áreas dos domínios dos cerrados no Brasil central até os Andes meridio-
nais. As florestas atlânticas ficaram restritas às fachadas de serras mais expostas à umidade, e as
araucárias teriam chegado bem mais ao norte, como se vê ainda hoje pelas formações residuais
no sul de Minas Gerais, Campos do Jordão etc. Examinando um mapa fitogeográfico atual,
pode-se ver, ainda, vestígios claros dessa complexa paisagem quaternária.
A presença de fauna amazônica nas ilhas de mata ou “brejos”, que ocorrem na serra
do Baturité e Ibiapaba no estado do Ceará e na mata Atlântica, indica uma passada con-
tinuidade entre estas formações vegetais e a amazônica, que pode ter ocorrido no otimum
climaticum do atual período interglacial ou nos anteriores”..
19 // Novas
Figura 2. Domínios Naturais da América do Sul há 13.000 - 18.000 anos. Segundo AZIZ AB’SÁBER, 1977.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Considerações Finais

Como se vê, embora já se conheçam os mecanismos básicos responsáveis pela grande


diversificação da biota amazônica, essa temática ainda carece de conhecimentos mais pro-
fundos. O que está claro, até então, é que, a floresta é muito biodiversificada, apresenta
áreas “enclaves” que evoluíram a partir de condições biogeográficas específicas e, ainda, é
mais recente do que se imaginava há alguns anos atrás.
Se de um lado a diversificada e, por isso mesmo, frágil biota amazônica, requer cuida-
dos muito especiais na sua ocupação, por outro, o mito de que “terra de mata é sinônimo
20 // Novas
de terra fértil” precisa ser revisto, pois, em muitas áreas a ocorrência de floresta se explica
pelo processo de coalescência da biota amazônica, a partir das “ilhas de ambiente tropical
úmido”, por ocasião do último otimum climático. Ou seja, em extensas áreas da Amazônia
Legal, a floresta está assentada sobre solos arenosos, permeáveis, quimicamente pobres...,
isto é, de pedogênese ainda incompleta – como pode-se observar, por exemplo, nas “dunas
continentais quartzíticas” das proximidades de Vilhena-RO. Ao lado de outras variáveis,
esta avaliação equivocada da potencialidade agrícola das áreas de floresta amazônica con-
tribuiu significativamente para o fracasso do programa POLONOROESTE, voltado para
uma ocupação da Amazônia Meridional a partir de pequenos proprietários e, mesmo, de
colonos sem terra, o que equivale dizer, sem recursos técnicos e financeiros para fazer frente
ao difícil processo de ocupação dessa parcela do território brasileiro.

Referências

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por ocasião dos períodos glaciais quaternários. Paleoclimas (3).São Paulo. 1977.
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IGEOG/USP, 1970.

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


21 // Novas
Paisagem Cafeeira e Identidade Cultural:
práticas de territorialização a partir da produção
dos cafés especiais no Eje Cafetero – Colômbia

Luisa Fernanda Durán Montes


Universidade Estadual Paulista, Campus Presidente Prudente/ Brasil

Introdução

O texto tem o intuito de apresentar as características principais da paisagem do


Eje Cafetero na Colômbia, sendo um dos recortes de análise da tese1 em andamento.
Atualmente, esta região conserva, em menor proporção, o plantio, a colheita e a exporta-
ção de café que no passado foi o setor mais relevante da economia no país, região que ainda
apresenta uma importância cafeeira, essencialmente pela incorporação de novos valores na
produção, ademais de atender uma demanda mais especializada, sendo uma alternativa a
participação no mercado dos cafés especiais.
A cafeicultura como polo agrícola de desenvolvimento econômico adotado em diferen-
tes países tropicais tem deixado importantes transformações na paisagem. Assim, estas trans-
formações não devem ser medidas somente pelas mudanças físicas, senão que é necessário Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

acrescentar, também, as mudanças culturais das sociedades que se assentaram nesses lugares.
Desta forma, o Eje Cafetero apresenta uma identificação cultural própria, que se man-
tem com a lavoura cafeeira, mesmo com as suas transformações e novas representações, a
partir de uma tradição familiar que se esperança de que a cada ano as condições possam
melhorar apesar das dificuldades no momento (DURÁN, 2017).

1
Transformações da paisagem e processos de territorialização no Norte Pioneiro Paranaense e no Eje Cafetero
Colombiano: o papel das organizações de pequenos cafeicultores na produção-comercialização de cafés
especiais e sua relação interescalar. Doutorado em Geografia, Unesp -Presidente Prudente, Brasil. Bolsa
FAPESP (Processo: 2017/ 03517-5).
23 // Novas
Destaca-se que a maior parte dos municípios da área em estudo conservam como ativi-
dade a produção cafeeira; assim, o habitat criado historicamente através de processos endó-
genos relacionados à construção social e cultural do território, o converteram pela UNESCO
em Paisagem Cultural Cafeeira. Assim, a declaratória da UNESCO permite estimular pro-
cessos de identidade coletiva e incluir novas funcionalidades nos espaços rurais, porém, isto
não deveria implicar uma visão idealizada da situação, sabendo que desde o começo esta
declaratória se alicerça sobre uma série de exigências difíceis de ser mantidas no tempo.
É importante lembrar que na década de 1990 começaram processos de produção de
cafés especiais na Colômbia, formação de organizações sociais e o fortalecimento do turismo
rural, porém, só na década de 2000 essas iniciativas apresentaram progressos significativos
por meio da consolidação das organizações e associações de cafeicultores.

Breves apontamentos teóricos: Paisagem e Território

Conforme Machado (2009) a paisagem exibe as mudanças e permanências definidas


em um território a longo do tempo, conformando um arranjo de objetos e formas concre-
tas (passadas e presentes). Adicionalmente, Luchiari (2001) define a paisagem como um
processo de construção a partir do imaginário social, pois não é somente um espaço onde
são desenvolvidas as práticas sociais, senão que estas mesmas práticas sociais dão um novo
conteúdo e, ao mesmo tempo, o transformam. Desta forma, a referida autora afirma que “as
representações de mundo são construídas na produção desses objetos culturais que, reuni-
dos no tempo e no espaço, transformam a paisagem em lugar” (LUCHIARI, 2001, p. 22).
Para Passos (2013) a paisagem é polissêmica, reúne características como qualidade de
vida, aspectos estéticos, dimensão patrimonial, valor no ordenamento territorial, além do
desenvolvimento das identidades no local de vida. Assim sendo,
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

uma realidade mutante e dinâmica, inscrita no tempo e no espaço. Ela porta


traços da combinação momentânea de heranças produzidas por processos físicos e
humanos. Mesmo que pareça instável, a paisagem é sempre trabalhada por dinâmi-
cas de evolução que não entram forçosamente em ação todos ao mesmo tempo e
segundo igual duração. Nesse sentido é importante as identificar como sendo marcas
suplementares da interação natureza/sociedade capazes de melhorar a compreensão
do jogo de forças com a origem de sua construção e de sua evolução. A consideração
dessas dinâmicas se efetua de muitas maneiras. Alguns componentes informam dire-
tamente sobre as dinâmicas temporais enquanto que as dinâmicas espaciais se devem
pela colocação em evidência de suas interrelações (PASSOS, 2011, p.45).
24 // Novas
Em suma, o conceito de paisagem é entendido como: “uma tradução do conteúdo
visível que se expressa na forma (padrões na configuração, estruturas na corporização), é
materialidade mediada pelas práticas sócio-espaciais” (ALZATE; DURÁN, 2015, p. 212).
Estas práticas que são influenciadas pela dimensão simbólica, manifestadas no trabalho
e operacionalizadas por meio da técnica, demonstram elementos da materialidade que
constrói o território e transforma a paisagem; estas transformações são influenciadas pelas
relações de poder, relação evidente entre os conceitos de paisagem e território.
Por outro lado, Zambrano (2010) explicita que no território confluem distintos es-
paços culturais, sociais e políticos, que geram formas específicas de identidade territorial.
Nessa mesma esteira, Ardila (2003) caracteriza o território como produto das relações cul-
turais e que é desvelado nas formas das paisagens, pois representa as relações ideológicas e
de poder concebidas em cada tempo, formando uma parte da cotidianidade.
Com relação ao anterior e segundo Raffestin (1993), o território é o espaço político
e o campo de ação, por isso é considerado multidimensional, já que sua atuação se en-
contra com outras dimensões do poder, incluindo as práticas e relações cotidianas sociais
(GALVÃO; FRANÇA; BRAGA, 2009, p. 34).
Os processos de apropriação e transformação da natureza, pelos quais se configura um
habitat, têm, desta forma, caráter produtivo. Por tanto, um processo produtivo do habitat
se materializa no conjunto de ações e retroações, materiais e simbólicas, realizadas numa
paisagem específica entre vários atores (sociais, empresarias, institucionais e até mesmo
individuais) na procura do desenvolvimento e utilização, quer dizer, apropriação de recur-
sos para a gestão, planejamento, produção, e transformação ou adequação da plataforma
natural (FIQUE, 2008).
Neste caso, a compreensão da tríade território-paisagem-habitat implica um olhar com-
plexo, o qual requer da caracterização contínua e permanente das mudanças, que são feitas
pela cultura sob o controle dos recursos e que, ao interagir com a natureza gera suas próprias

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


dinâmicas territoriais refletidas, sobretudo, na apropriação social, a geração de identidade e
significados, as ações espaciais e processos históricos. No contexto cafeeiro, a materialidade
apresenta um cenário com uma longa história, mais de 150 anos e diversos atores, que com
base nas suas relações econômicas, políticas e culturais produzem territorialidades que, um
modelo de desenvolvimento atrelado às mudanças globais, tem sabido usufruir, criando
assim novos mercados que procuram cafés diferenciados, pagando mais por uma melhor
qualidade do grão, tornando-se numa oportunidade para que os pequenos cafeicultores,
ainda marginalizados na cadeia de valor global, possam acreditar de novo em seu potencial,
valorem suas tradições, conformem organizações de base solidária, capacitem-se e assim
consigam vender por seus próprios meios, evitando os intermediários para obter maiores
lucros, mesmo que isto ainda seja a realidade de algumas poucas organizações.
25 // Novas
Principais características do Eje Cafetero Colombiano

O Eje Cafetero na Colômbia (Figura 1) tem se caracterizado por desenvolver uma intensa
produção cafeeira, porém tem passado por diferentes fases e processos de colonização e/ou as-
sentamentos. Primeiro, passou por um processo mais espontâneo, principalmente, a partir de
deslocamentos de pequenos produtores que procuravam novos lugares para morar. O nome
de Eje Cafetero foi dado a esta região pela forte presença dos cultivos de café, configurando
um processo cultural e histórico, especificamente, nos departamentos2 de Caldas, Quindío e
Risaralda3, localizados no centro-ocidente na cordilheira central e ocidental dos Andes que
antes de 19664, conformaram o departamento de El Gran Caldas, o qual se caracterizou pelos
sucessos obtidos na exportação do grão de café. A área que integra o Eje Cafetero compreende
12.906 km2, 48 municípios e, aproximadamente, 2.700.000 habitantes (DANE, 2010).

Figura 1. Mapa da região Eje Cafetero conformada pelos municípios de Caldas,


Risaralda e Quindío na Colômbia
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Fonte: ShadowxFox, 2014.


2
A Colômbia é uma república unitária de acordo com a Constituição Nacional de 1991. Não obstante, o país tem uma
descentralização administrativa, como parte das políticas de desenvolvimento levadas a cabo pelo governo nacional, através
da qual grande parte da administração do Estado é dividido entre as entidades administrativas-territoriais de nível inferior.
Essas entidades, do mais para o menos importante, são os departamentos, municípios e territórios indígenas que conformam
diferentes níveis de organização territorial da República (Departamento Administrativo Nacional de Estadística, 2000).
3
Os departamentos de Caldas, Quindío e Risaralda estão localizados numa zona designada como “Triángulo de Oro de
Colombia”, pois é ponto da passagem entre as três cidades principais do país, Bogotá, Medellín e Cali, que para o ano
2005 reunia o 49% da população total do país.
4
Em 1966, consolida-se a produção cafeeira e devido a gestas cívicas iniciadas em Armenia e Pereira (cidades do Grande Caldas a
existência de uma região no imaginário de seus habitantes (ROBLEDO, 2008, p.26, tradução nossa).
26 // Novas
Segundo Palacios (2009), a comercialização do grão foi iniciada no final do século xix, apro-
ximadamente, 150 anos na composição do ecossistema de acordo com as condições climáticas,
geológicas, ecológicas, culturais, políticas e econômicas que configuraram um habitat particular,
identificado como paisagem cafeeira.
A configuração desse habitat começa com o reconhecimento das práticas produtivas
do café, as quais foram classificadas por Guhl (2006) como cafeicultura tradicional e cafei-
cultura intensiva ou tecnificada (Quadro 1). A transformação da paisagem cafeeira, dada
na Cordilheira dos Andes, apresenta duas etapas, a primeira está relacionada à formação
e consolidação da economia cafeeira (1850-1970), e a segunda está relacionada com a
intensificação da produção do grão (1970-atualidade).
Porém, é importante ressalta que, nos dois sistemas produtivos acima mencionados, as
culturas de café têm permanecido rodeadas de outras culturas alimentares para o consumo
familiar, como milho, mandioca, feijão, legumes, frutas, pastagens e áreas de bambu ou
florestas de galeria, conformando culturas consorciadas. Destarte, a maior parte da paisa-
gem cafeeira (Foto 1) exibe uma mistura de culturas que é chamada de “colcha de retazos”,
e só é possível encontrar grandes extensões de hectares de café nos locais que mostram um
processo de intensificação na produção (GUHL, 2006).

Foto 1. Cultivos que conformam a Paisagem cafeeira

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Fonte: Autora, 2016.


27 // Novas
Quadro 1. Características dos sistemas produtivos cafeeiros na Colômbia

Fonte: Guhl, 2006, p. 194.

A expansão das plantações de café foi por meio da criação de Policultivos de la


Caficultura Tradicional, que levaram essas diversas associações agroflorestais a se tornarem
um processo cultural de várias gerações, as quais foram construindo uma herança “natural”
que transformou não só a estrutura da paisagem.
No ano de 2011, Risaralda, junto com os departamentos de Caldas e Quindío,
(Eje Cafetero), e o departamento do Valle Del Cauca foram declarados pela UNESCO
– Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Paisagem
Cultural Cafeeira (Figura 2) e foi inscrita na Lista do Patrimônio Mundial.

Figura 2. Área da Paisagem Cultural Cafeeira (inclui os departamentos de Caldas,


Risaralda, Quindío e Valle del Cauca)
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Fonte: Red Alma Mater, 2012.


28 // Novas
Destaca-se nesta paisagem a tradição da cafeicultura, refletida nas parcelas dos cultivos
que cobrem as montanhas, também no desenho urbano e na arquitetura das cidades. Como
consequência da adaptação dos primeiros migrantes que há mais de 150 anos plantam café
nas encostas e montanhas correspondente às condições topográficas da região. A expansão
das plantações de café ocorreu a partir da criação de Policultivos de la Caficultura Tradicional,
quer dizer, desenho de agroecossistemas que se tornaram patrimônio material e imaterial
da humanidade, que representam a relação da sociedade - natureza como adaptação do
homem às encostas do terreno montanhoso, levando essas associações agroflorestais a se
tornarem um processo cultural e, ao mesmo tempo, geracional. Construindo uma herança
“natural”, que modificou não só a estrutura da paisagem, senão a função dos policultivos
de acordo com as mudanças dos contextos econômicos, sociais e políticos tanto nacional
quanto internacional (DURÁN, 2017).
Por isso, é importante manter a cafeicultura tradicional para a preservação da paisagem
e a declaratória da UNESCO:

(...) A conservação da cafeicultura tradicional, entendida como a melhor opção


para conservar os recursos genéticos e a diversidade alimentar, assim como talvez a
única possibilidade de conservar aos agricultores tradicionais, os que fazem parte do
patrimônio natural, quer dizer, do patrimônio cultural (RODRÍGUEZ; DUQUE,
2009, p. 123, tradução nossa).

O elemento cultural neste tipo de agroecossistemas é visto por meio das expressões
locais de cada região, pois o café é produzido em várias partes do país, só que a sua confi-
guração está condicionada à estrutura de cada território e o grupo de pessoas que confor-
mam (produzem) o mesmo. E, como frisam os autores, Rodríguez e Duque (2009, p. 124,
tradução nossa): “[...] A cafeicultura de policultivo é uma expressão de formas engenhosas

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


tradicionais que configuram uma paisagem cultural”.
O setor turístico apresenta avanços relevantes e tem preparado estratégias para di-
vulgar a Paisagem Cultural Cafeeira no exterior, porém, esta figura é mostrada como um
produto turístico em relação ao agroturismo, que é desenvolvido a partir de atrativos, por
exemplo, avistamento de aves, feiras e festas tradicionais, patrimônio arquitetônico, per-
corridos em transportes locais como o yipao (Jeep) ou cavalo e hospedagem em fazendas
cafeeiras. Também, está sendo executando um projeto “Rutas del Paisaje Cultural Cafetero”
que soma a ideia anterior dos atrativos, turismo de luxo, aventura e atividades esportivas.
A complexidade desse aspecto turístico da Paisagem Cultural Cafeeira está centrada
na pouca abrangência do contexto dos camponeses, porque a maioria deles não tem como
participar deste setor, pois não existe uma contribuição direta para o melhoramento das
29 // Novas
suas condições de vida no campo. Aliás, este setor está integrado, principalmente por
empresas privadas e, em alguns casos, estrangeiras.
Em síntese, é pertinente e importante divulgar o patrimônio cultural e natural da
região com ajuda do turismo; de outra forma, pode significar um atraso torná-lo um
produto paisagístico “estático”, pois não possibilita enxergar a interrelação dos habitantes,
que neste caso são os cafeicultores com a sua paisagem, que tem sido modificada principal
e permanentemente por eles. Dessa forma, estas condições limitam as possibilidades da
declaração e podem levar a perder credibilidade e confiança no processo institucional.

Dinâmica entre produção e comercialização de cafés especiais

Na década de 1990 a partir da ruptura do Acordo Internacional do Café, o preço do grão


perdeu a estabilidade adquirida com os países compradores, e começou a variar de acordo
com a oferta do produto no mercado mundial. Esta crise cafeeira possibilitou outro tipo de
consumo do café, focado na elaboração de produtos baseados no café, ademais levou aos
consumidores pagarem mais pelos atributos simbólicos e os serviços personalizados.
No país, a política agrária é atribuída à Federación Nacional de Cafeteros5 , que depois
da crise estabeleceu o preço de compra do café pergaminho aos cafeicultores por meio das
cooperativas da mesma instituição. Ao principio esta política funcionou a través dos au-
xílios representados no pago a mais pela produção, porém o mercado internacional estava
passando por uma crise e o preço do grão na bolsa de Nova Iorque apresentou uma queda
brusca, pois ao ingressar o café na bolsa, obrigatoriamente, o torno uma commodity e au-
mentou o conflito de interesses sobre este produto, marcando aos cafeicultores só como
produtores de uma matéria-prima, que comercializam principalmente grão verde, já que
o café no setor primário tem poucas inovações tecnológicas após ser entregue às grandes
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

corporações e tradings6 (DAVIRON; PONTE, 2005).


Em consequência, os pequenos cafeicultores passaram por momentos de constantes cri-
ses, e que acompanhadas das mudanças nas políticas da Federación Nacional de Cafeteros,
focadas no aumento da produção de café, foi gerando um deterioração na terra e um déficit
na produção de alimentos de subsistência nas propriedades. Esta situação provocou que
alguns camponeses não aguantaram os baixos preços do grão, tendo que trocar o sistema de
5
A Federación Nacional de Cafeteros é uma organização semi-privada (fundada em 1927), tem sofrido menos
os impactos frente às reformas neoliberais e que depois do rompimento do Acordo Internacional do Café, man-
tem a compra direta dos produtores para proteger o mercado interno das oscilações do mercado internacional.
6
As tradings atuam na troca comercial das matérias-primas de pouco valor agregado (energia, metais, gado
e carnes e produtos agrícolas, através de transações em mercados de ações especializados e bolsas de valores
(DESTINO NEGÓCIO, 2018).
30 // Novas
cultivo por um mais rentável ou vender a propriedade para donos de fazendas ou empresas
de mineração. Outros camponeses migraram para as cidades principais, procurando melho-
res condições e estabilidade. Na década do ano 2000, novos mercados permitiram a venda
de um café diferenciado, pagando por uma melhor qualidade do grão. Segundo, Pendergrast
(2010), surgem movimentos de comércio justo e a “terceira onda” introduz um segmento
de consumidores com maior grau de conhecimento sobre a produção e qualidade do café.
Este tipo de comercialização e consumo permitiu que os pequenos cafeicultores (Foto 2)
formaram organizações, estudaram ou formaram-se e venderam a produção, principalmente
café pergaminho diretamente a um cliente estrangeiro. Sem embargo, as organizações que-
rem ir além, procurando novos canais de comercialização para vender também o café pronto
para consumo, já que sabem que nesta parte da cadeia global os ganhos são maiores.

Foto 2. Etapas da produção de café

Fonte: Autora, 2015/2018.

Conforme Reina, Silva e Samper (2007), a Colômbia conseguiu aproveitar a não


mecanização da colheita do café pela difíceis condições topográficas em uma vantagem
comparativa, que agrega qualidade ao produto no mercado mundial. Assim os dados de
2004-2005 mostram que os cafés especiais representam 5,1% da produção total de café no
país e 5,6% nas exportações (DNP, 2009).
Por último, Daviron e Ponte (2005, p. 120) consideram que o negócio do café no mundo

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


“[...] tem estado mais a disposição das grandes fazendas que dos pequenos produtores ca-
feicultores”, porém, na Colômbia, pelo menos no Eje Cafetero a cafeicultura tem estado nas
pequenas propriedades, e continua tendo maior participação neste mercado diferenciado.

Considerações

No contexto da Paisagem Cafeeira, podem ser evidenciadas as relações de poder entre


diferentes agentes e atores nacionais, assim como processos históricos de ocupação, que
permitiram o estabelecimento de uma cultura agrícola que transformou por mais de
100 anos aspectos físicos e sociais da região, construindo uma identidade territorial.
31 // Novas
As práticas sócio-espaciais no Eje Cafetero produziram uma identidade que através dos
seus imaginários, colocaram a cafeicultura como centro da sua existência, o que determinou
tanto as características naturais quanto os costumes, os quais são modificados constante-
mente através das gerações. Não obstante, são conservadas certas particularidades relaciona-
das com as técnicas na agricultura, o sistema de propriedade, a construção das moradias,
o trabalho familiar na lavoura e a forma de estruturar a institucionalidade cafeeira.
A despeito das transições do mercado internacional e os ganhos que possam ter os
cafeicultores neste novo espaço que está condicionado pelos selos e certificados, Talbot
(2004) argumenta que a comercialização dos cafés especiais, só pelo fato de serem especiais
ou diferenciados, não vão diminuir a instabilidade dos cafeicultores frente as oscilações
do mercado mundial, a pouca abrangência das políticas públicas e nem as condições de
desigualdade entre os produtores. Podemos acrescentar nesse aspecto, que a subordinação
Norte - Sul Global continua sendo uma constante difícil de ser superada, sobretudo, en-
quanto a divisão internacional do trabalho, seja em nosso hemisfério, ainda a de produção
de matérias primas, nesta esteira, os lucros na cadeia de valor global podem ser levemente
alterados, mas sua desproporção seguirá sendo uma estratégia de submetimento e apro-
priação de discursos que pensávamos brilhavam por próprios, diferenciados e alternativos.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP); ao programa


de Pós-graduação em Geografia da UNESP – Campus de Presidente Prudente e aos
cafeicultores que participaram da pesquisa.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

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33 // Novas
Trilhando pela paisagem cultural
de Alcântara/Brasil

Ana Rosa Marques


PPGEO / Universidade Estadual do Maranhão / FAPEMA1
Tallita Rayanne Santos Arouche
Graduanda Geografia / Universidade Estadual do Maranhão

“Alcântara resplandecia na claridade crespular. Por toda parte, a algazarra


de pássaros. O pesado arfar das ondas esboroando-se na nesga da praia. E uma
viração constante a correr as ruas, as praças, os caminhos, com uma poeira leve e
translúcida dançando no ar”.
Josué Montello
“Noite sobre Alcântara”,1978, p.307.

Um primeiro olhar

A primeira impressão sempre é que nos influencia a “gostar’ ou “não gostar”. Mas
quando nos lançamos à experiências novas, como é o caso de trilhar por um patrimônio
cultural, essas impressões ganham uma potencialidade ainda maior.
O momento inicial dessa nossa “viagem” pelo universo cultural de Alcântara ocorre
com o embarque no barco tradicional à vela, o mesmo que há muito tempo tem seu uso

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


para enfrentar a travessia da Baía de São Marcos, 22 km, que separa o continente: muni-
cípio de Alcântara da Ilha do Maranhão: composto pelos municípios de São Luís, Paço do
Lumiar, Raposa e São José de Ribamar, uma pequena distância em linha reta, porém por
via marítima se torna um pouco mais desafiador, com diversas singularidades.
Voltamos para o embarque, que em dias de chuvas torrenciais torna-se um pouco
complicado, este período de janeiro a junho é de seis meses de muitas águas aqui no
Maranhão. A embarcação tem uma parte para a acomodação dos passageiros sempre com
muito movimento de pessoas, possui as aberturas laterais que precisam ser cobertas por
uma lona impermeável, prejudicando assim a ventilação na área interna destinada aos
passageiros. Esse fato aqui descrito é considerado uma fragilidade em análises sobre o
1
anclaros@yahoo.com.br
35 // Novas
desenvolvimento do turismo para o município de Alcântara, e essas condições de deslo-
camento é um fator de diminuição de turistas, principalmente neste tempo das chuvas
muito intensas, segundo diversas conversas com gestores de pousadas e observações diretas
que tem ocorrido durante o tempo desta pesquisa em tela.
É destaque esse período de chuvas pois
[...]são marcadas por dois períodos bem distintos: um chuvoso, que se caracteri-
za por apresentar moderados a grandes excedentes hídricos, enchentes dos rios, baixa
evaporação, elevada umidade relativa do ar, solos úmidos e temperaturas baixas, que
se estende de janeiro a junho; e outro, seco, caracterizado por déficits de precipitações,
altas taxas de evapotranspiração, baixa umidade relativa do ar, solos secos, tempe-
raturas mais elevadas e vazantes dos rios, que vai de julho a dezembro. Os valores
médios anuais de precipitação, variam de 2.182mm em São Luís, 1.812mm em São
José de Ribamar, e 2.036mm em Rosário ( MARANHÃO, 1998, p.12)

O outro período, época seca, temos uma melhoria nessas condições de ventilação,
que também tem uma outra singularidade: os ventos alísios que sopram com muita força,
nos meses de agosto a novembro, justamente no tempo seco, que provoca intensas ondas,
conhecidas como “maresias” pela população local.
Essa paisagem do verão, período seco, e do inverno, período chuvoso, traz alterações
consideráveis para a frequência de turismo para o município de Alcântara e também in-
fluencia o cotidiano das pessoas do lugar. Outra questão que dificulta a travessia é que
o Cais da Praia Grande, local do transporte, quando a maré está baixa se torna inviável
acontecer o embarque no mesmo, sendo transferido para a Ponta de Areia, que provoca
muitos transtornos devido a deficiência da infraestrutura no local.
A travessia aqui relatada é a do período seco, onde o embarque segue sempre o horário
da maré, que também rege o tempo em Alcântara, pois tudo está interconectado com esse
movimento natural do oceano, neste caso, o Atlântico. Dependendo do vento e das condições
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

marítimas, após uma hora e meia começamos a vislumbrar Alcântara.


A paisagem cultural de Alcântara começa a se descortinar por entre a linha do horizonte, acima
do mar, pelos balanços que ainda insistem em nos “marear”, começamos a perceber o núcleo his-
tórico representado por um conjunto arquitetônico colonial, que faz um desenho delimitando o
tabuleiro costeiro, que decliva para a área do nível do mar, onde temos o ecossistema de manguezal,
com suas raízes aéreas e verde intenso preenchendo como uma moldura dessa paisagem.
Nosso olhar nos traduz a beleza dos casarões, com destaque para a Igreja do Carmo,
que majestosamente sinaliza que voltaremos no tempo, tempo este que traduz sutilmente
a consolidação do imaginário poético, potencializado por suas ruínas acenando para o pas-
sado com a materialidade do presente. Uma memória viva que está sempre em interação
formando um exuberante conjunto paisagístico.
36 // Novas
Começamos a avistar os pequenos barcos de pesca, pescadores passando a rede de ar-
rasto de camarão, os pulsás de espera, e outras formas de pescaria, um modo de vida que
ocorre no cotidiano desta área que abastece de peixes e mariscos uma grande parte da po-
pulação alcantarense com a pescaria tradicional (Foto 1). Essa forma de pescar possibilita
a segurança alimentar de muitas famílias e é praticada em sistema coletivo.

Foto 1. Sistema coletivo de pesca Foto 2. Embarcação tradicional ancorada


tradicional na Beirada de Alcântara no Porto do Jacaré/Alcântara/MA

Fonte: Arquivo pesquisa, 2018.

Navegamos pela desembocadura do Igarapé do Jacaré, e atracamos no Porto com o


mesmo nome: Jacaré ( Foto 2) devido a sua localização no referido Igarapé. “Há referências
sobre a existência de dois portos em Alcântara: o atual, denominado Porto do Jacaré,
localizado no Igarapé do Jacaré; e o antigo porto, denominado Porto da Laje, situado na
Praia dos Barcos” (PFLUEGER, 2002, p.94).
Ouvimos o apito do Barco indicando que chegou ao final a nossa travessia e assim
essa primeira impressão de nossa viagem, após uma hora e vinte minutos. Agora sigamos.

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


A imersão

Ao descer do barco avançamos passo a passo, vivenciando sensações de estar em um


lugar que tem a magnitude do tempo, a presença de muitas memórias, caminhando sobre
as pedras lapidadas à mão pelos negros escravizados, que uma a uma foram assentadas for-
mando um mosaico de desenhos como uma escultura em formatos de losangos, compondo
assim a subida da Ladeira do Jacaré, paulatinamente vamos nos integrando à paisagem
cultural e tudo que ela nos revela.
Uma simbiose entre o patrimônio material expresso pelo conjunto arquitetônico,
pelo desenho que cada uma dessas moradias expõe e o patrimônio imaterial que sentimos
37 // Novas
pairando no ar, diversos significados para os que ali passam e o sentem, pois a paisagem
como complementa Guimarães (2002, p.4),
[...]como o legado de um jogo de forças, testemunhando não somente a ação dos
elementos e processos naturais, mas também as interferências da presença humana. Esta,
de acordo com as circunstâncias experienciadas, atribui valores e significados às suas
paisagens, que passam então, a inserir a sua própria história de vida, uma territorialidade
marcada, determinada pela afeição, originando o espírito de um povo e de um lugar.

Ressaltamos assim a importância do conhecimento mais aprofundado sobre esta área


pois com esses estudos ampliamos a compreensão da paisagem alcantarense. Bertrand:
Bertrand (2007) nos auxilia nesta compreensão quando afirma que “todo estudo da pai-
sagem coloca, então, a priori, o problema da análise das defasagens no espaço e no tempo
entre os principais componentes do processo”.
Como em busca de um consenso conceitual onde o tempo influencia diretamente
nos processos paisagísticos, que é percebido na observação dos testemunhos deste tempo,
em formas de conjuntos de casarões coloniais, ruínas (Foto 3), objetos antigos, entre ou-
tros significados que se estabelecem como um dueto histórico-social e cultural dessas
transformações da sociedade, produzindo a paisagem cultural deste lugar.
Nessa convivência entre o passado e o presente percebemos que essas transformações
convivem cotidianamente no imaginário alcantarense, e se fortalecem nos momentos em
que suas manifestações religiosas acontecem e na forma de viver de acordo com o tempo
das marés, em consonância com o tempo do lugar.

Foto 3. Testemunho do tempo em forma de ruínas da Ladeira do Jacaré


Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Fonte: Arquivo pesquisa, 2018.


38 // Novas
Para uma melhor compreensão destas questões, buscamos agora uma contextualização
histórica cultural do município, que teve a sua fundação em 22 de dezembro de 1648,
tendo como primeiros habitantes os indígenas Tupinambás, com destaque para a Aldeia
de Tapuitapera, que significa terra ou residência de tapuios ou cabelos compridos, con-
siderada a mais importante aldeia desse povo indígena. Neste ano ocorreu a elevação da
Aldeia à categoria de Vila de Santo Antônio de Alcântara, elegeram como padroeiro da
cidade: São Matias.
A Vila se desenvolveu devido à produção significativa de algodão, arroz, milho, farinha
de mandioca, cana de açúcar e criação de gado (FÓRUM DLIS, 2003).
No ano de 1650, já contava com 300 moradores, surgiram assim os primeiros enge-
nhos de cana de açúcar que possibilitaram uma boa produção de açúcar e aguardente, com
geração de excedentes, havendo registro de venda e transporte por meio de embarcações
para São Luís. Alcântara experimentou tempos áureos dos anos de 1653 a 1860, com a
construção do Convento de Nossa Senhora dos Remédios, posteriormente Nossa Senhora
das Mercês. Em seguida os jesuítas construíram o Convento de Nossa Senhora do Carmo
da ordem Carmelitana e posteriormente criaram uma residência onde lecionavam latim e
leitura. Houve a intensificação do processo de ocupação territorial com aumento de fazendas
e infraestrutura (vias de acesso, núcleos de moradia).
A produção de Alcântara se baseava na mão de obra escrava voltada para atender o
mercado externo, com destaque para os seguintes produtos: sal e açúcar, além da produção
de cachaça, couro, carne, algodão, farinha, milho, tapioca e peixe seco. Com a criação da
Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, Alcântara tornou-se referência de
centro produtivo de arroz e algodão. E prosperou ainda mais, com a implantação da cultura
algodoeira para atender o mercado da Inglaterra. (FÓRUM DLIS, 2003).
Mas, com o fim da exportação de algodão, a abolição dos escravos em 1988 ocorreu a
estagnação do desenvolvimento econômico e social alcantarense. Esta decadência esvaziou

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


a sede da cidade de Alcântara, os senhores de engenho deixaram a cidade e seus ex-escravos
ficaram sujeitos a sua própria sorte. Instalou-se um longo período de esquecimento. Todo o
processo de degradação da ruínas da cidade segundo (PLFLUEGER, 2011), foi provocado
pelo desmonte do sistema, resultando na transferência dos negócios dos senhores das fazendas
para São Luís, assim, o desgaste das edificações foram bem mais aceleradas.
O tempo passou, e devido a necessidade de preservar o patrimônio construído durante
a época do apogeu, e 1948, para proteger o conjunto de casarios coloniais, ocorreu o reco-
nhecimento como Monumento Nacional. No entanto, só em 1990 houve a delimitação
do perímetro tombado, com a lei de número 244 de 10 de outubro de 1997 – elaborada
pelo IPHAN que foi estabelecido a proteção do conjunto arquitetônico e paisagístico de
Alcântara, definiu seus limites e regulamentou a ocupação.
39 // Novas
Um outro fator a ser destacado foi a implantação do CLA – Centro de Lançamento de
Alcântara e que provocou uma grande transformação sócio espacial no município, com o
deslocamento compulsório, onde:
Os oito mil e setecentos hectares já desocupados para instalação da primeira
fase do Programa Nacional de Atividades Espaciais, onde está o CLA, correspon-
dem a parte significativa das terras tradicionais das comunidades quilombolas do
município de Alcântara. Dali foram retiradas 32 comunidades, realocadas em sete
agrovilas, num formato que tem comprometido a lógica tradicional a partir da qual
estruturam suas relações sociais, produtivas e ambientais e, por conseqüência, as
relações entre as comunidades realocadas e as demais, com as quais mantêm laços de
parentesco e forte relação de interdependência. (ALMEIDA, 2006, p.07)

Uma parcela dessa população foi atraída para a sede municipal, ocuparam áreas sem ne-
nhuma infraestrutura, áreas de vales e fazendo construções com o quê tinham a disposição,
muitas áreas de declividades altas e formando assim uma espécie de favelização. Almeida
(2006) escreve que devido a essa movimentação populacional começou a ocorrer a retirada
de pedras das ruínas antigas como matérias primas para construir as novas moradias.
Havendo assim a necessidade da intervenção do IPHAN para reverter a situação e
proteger a área tombada, em 2004, que passou a considerar o patrimônio de Alcântara
como de valor cultural, histórico, artístico, paisagístico, urbano e arqueológico.
A importância desse patrimônio está entrelaçada aos seus traços culturais marcantes e di-
versos, graças a sua gente e sua história. Para facilitar a compreensão de cultura, recorre-se a
definição de Santos (2006), que retrata duas concepções de cultura:
A primeira diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a existência social de um povo
ou nação ou então de grupos no interior de uma sociedade. A segunda refere-se mais
especificamente ao conhecimento, às ideias e crenças, assim como às maneiras como
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

eles existem na vida social. A maneira de pensar a vida e a sociedade na qual a natureza
e a realização individual são enfatizadas, e que tem por temas principais a ecologia, a
alimentação, o corpo, as relações pessoais e a espiritualidade. (SANTOS, 2006, p.24-25).

Nesta perspectiva do modo de vida, da tradição de suas festas, da crença e do movimen-


to do povo Alcantarense, Pflueger (2002) registra algumas de suas potencialidades culturais.
As mais expressivas manifestações culturais são as duas festas religiosas do
Divino Espírito Santo e a de São Benedito. Na “Festa do Divino”, aspectos da for-
mação histórica são evidenciados, pois, ocorre a reprodução simbólica da visita da
corte portuguesa ao Brasil com todo o ritual que inclui o mastro, os cortejos percor-
rendo as ruas da cidade histórica, os personagens do Império vestidos à caráter nas
40 // Novas
visitas e formalidades religiosas das missas e ladainhas. Na festa de “São Benedito”
ocorre uma referência aos negros e sua cultura, evidenciando o sincretismo religioso
afro-brasileiro através do ritual profano e religioso da festa que resgata os elementos da
dança e do tambor de crioula juntamente com o ritual católico da missa e distribuição
de comida aos pobres (PFLUEGER 2002, p. 39).

As festividades de Alcântara caracterizam-se em momentos fortes da comunidade,


desde a organização até os atos celebrativos, são desenvolvidas atividades que movimentam
toda a cidade, com os cantos, vestimentas, interação uns com os outros; o que permite o
fortalecimento da religiosidade e da cultura local. E possibilita também, a geração de renda
com turistas das mais diversas localidades bem próximas ou distantes que se encantam com
as festividades alcantarenses e que corroboram com os traços socioeconômicos da cidade.
O Núcleo Histórico ou como também é conhecido por sede municipal, é o local onde estão
presentes as ruínas, os casarões, a igreja e o pelourinho, que era local de castigo dos escravos. Essa
utilização conhecida era o símbolo de poder instituído, tinha outras serventias sociais, como a
fixação de éditos reais, decisões das autoridades comunais a pleitos dos cidadãos ou informações
de interesse da comunidade, simbolizava um elemento de ligação entre o poder constituído e o
povo, e está localizado sempre em frente ao edifício da câmara ou na praça principal. (Foto 4).

Foto 4. Ruína da Igreja de São Matias e o conjunto arquitetônico tombado


e reconhecido como Monumento Nacional, em destaque o Pelourinho
a direita à frente e o mastro da festa do Divino à Esquerda.

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2018.


41 // Novas
É importante caracterizar as ruínas como marcos significativos na composição de uma
paisagem, de acordo com Amarante (2013, p.26):
As ruínas transformadas em monumentos sustentam signos e mitos de origem,
uma simbologia formulada e transmitida aos atuais observadores como maneira
de manutenção de uma memória social reconhecida pelo Estado. Analisando estes
exemplos de representações de ruínas e paisagens ruinosas ao longo do tempo artís-
tico, histórico e patrimonial como balizamento investigativo da imagética do objeto,
gostaria de ponderar outras relações, abrindo agora um caminho de observação e
compreensão da estética da ruína também como poética temporal. A ruína, inserida
ou não como patrimônio, manterá um diálogo íntimo com o tempo. Seja como tes-
temunha de um tempo passado, seja na compreensão do presente, ou na constatação
do devir, do futuro.

Atualmente, é possível notar determinadas características que foram alteradas pela


necessidade antrópica, como a criação de comércios, bancos, restaurantes e pousadas
principalmente por Alcântara estar no calendário turístico do estado do Maranhão, ter
momentos de um grande fluxo de turismo.
Todo o processo de mudança é resultado da adaptação de um determinado povo,
para Santos (1997, p.37) escreve:[...] “a cada vez que a sociedade passa por um processo
de mudança, a economia, as relações sociais e a política também mudam, em ritmos e
intensidades variados. A mesma coisa acontece em relação ao espaço e à paisagem”.
Observamos assim, que o potencial de Alcântara para o desenvolvimento sustentável
aliada a valorização de sua paisagem cultural, seguindo a perspectiva do desenvolvimento
com todos os agentes envolvidos: o social, ambiental, econômico, e cultural, traz uma
qualidade de vida para as pessoas e com o respeito à sua cultura e história, porém esse
patrimônio está passando por problemas de conservação, em toda a sua infraestrutura,
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

com vários casarios em estado de degradação (Foto 5), ruínas em acelerado processo de
desmoronamento, principalmente as que estão localizadas na rua da Amargura. Além
da presença de muitos resíduos sólidos em diversos pontos do roteiro histórico, e áreas
de erosão nas encostas que protegem o sítio histórico como um todo.
Destacamos que Alcântara possui inúmeros poços antigos no seu Núcleo Histórico,
com destaque para o Poço dos Frades que se encontra na área da Beirada. Além das Fontes
de Mirititiua e das Pedras. Esse potencial hídrico está sendo impactado por resíduos sólidos
e existe a necessidade de uma melhor atenção para esse recurso natural.
42 // Novas
Foto 5. Processo de degradação de casario do Núcleo Histórico

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2018.

Trilhando pela Paisagem cultural sob a abordagem da percepção

Vivenciando a problemática dos impactos ambientais e sociais que a área em estudo


tem enfrentado, nos apoiamos na percepção ambiental, onde por meio da sensibilização
para a conservação da paisagem cultural almejamos ampliar o nível de discernimento para
as necessidades urgentes que este patrimônio apresenta.
Partimos para o buscar o conhecimento de como a população de Alcântara percebe o po-
tencial paisagístico de seu lugar. Em um primeiro momento foram entrevistados 20 usuários

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


da área de pesca coletiva que fica na área da Beirada de Alcântara. Tivemos sempre o cuidado
em respeitar o tempo dos moradores para podermos “compreender” melhor os reais signifi-
cados e como serão as possibilidades de fazer uma pesquisa aplicada e com resultados efetivos
para contribuir com a conservação efetiva da paisagem cultural alcantarense.
A percepção nos auxiliou pois o entusiasmo de cada um são condições necessárias
para a participação e a desenvoltura de qualquer ação, e como se trata de um projeto que
propõe a participação efetiva dos moradores a sua percepção é valiosa para o desempenho
das atividades, como complementa Bassani (2001):
O contexto dos problemas ambientais implica o estudo das relações homem e
ambiente e qualquer análise que se faça sobre soluções possíveis deve considerar os
comportamentos do homem perante seu ambiente. (BASSANI, 2001, p.47).
43 // Novas
Esta percepção, concepção e motivação que fará o sujeito ativo ou passivo diante de
sua realidade, a partir do conhecimento que possui de si e do mundo, da compreensão das
fragilidades e potencialidades para garantir sua sobrevivência. Enxergar e valorizar os meios
existentes que corroboram para a edificação da qualidade de vida individual e coletiva no
aspecto socioambiental são imprescindíveis para a prática do cuidar. Sendo que o homem
percebe o mundo principalmente através da visão, com a imagem assumindo posição
especial (MANSANO, 2006).
A percepção são traços internos de cada pessoa, conforme sinaliza Faggionato (2007),
cada indivíduo percebe e responde diferentemente frente às ações sobre o meio, assim,
o estudo da percepção ambiental é de suma importância pra que se possa compreender as
inter-relações homem/ambiente, pois sabendo como os indivíduos percebem o ambiente
em que vivem, sua fonte de satisfação e insatisfação, será possível a realização de um
trabalho partindo da realidade do público alvo.
A carga subjetiva nos remete às peculiaridades individuais e sociais do ser humano na sua
complexidade integral, o que aponta Moser (1998), as dimensões culturais e sociais presentes,
mediadoras da percepção e avaliação das atitudes do indivíduo frente o ambiente.
A percepção ambiental foi definida por Faggionato (2007), como sendo uma tomada
de consciência do ambiente pelo homem, o que implica a maneira particular de cada ser
de se comunicar com o ambiente mediante suas dimensões biológicas, sociais, e culturais;
o modo de ver e se relacionar são traços intrínsecos e complexos de serem retratados de
forma simplificada no que tange resultados expressivos de atividades a serem alcançados
no projeto, mas, são instigantes e animadores ao mesmo tempo, pois corresponde a de-
finição feita por Amorim Filho (2007), a percepção ambiental como a última e decisiva
fronteira no processo de uma gestão mais eficiente e harmoniosa do meio, é a partir do
fator interno/motivação do sujeito que há possibilidade de atitude em favor do ambiente.
Neste processo de gestão equilibrada, conhecer a Percepção Ambiental dos moradores
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

de Alcântara foi parte fundamental para a compreensão dos passos necessários para se
alcançar a conservação do Patrimônio Cultural Alcantarense mediante o diagnóstico das
fragilidades e potencialidades a serem consideradas para o envolvimento da comunidade.
Foram discutidas a importância da paisagem com a comunidade local, por meio de en-
trevistas e rodas de conversas, buscando dialogar sobre os problemas relacionados à fragilida-
de do patrimônio histórico representado pelo conjunto arquitetônico e paisagístico tombado
e também sobre a biodiversidade existente nas áreas adjacentes deste conjunto, suas potencia-
lidades como entender essa relação de modo a sensibilizá-los da necessidade de conservação.
As potencialidades paisagísticas são imensas, com diversos atrativos, com destaque para
a área da Beirada de Alcântara, onde existe a predominância do ecossistema de Manguezal.
Onde ao trilhar conhecemos diversos pescadores artesanais que nos disseram:
44 // Novas
“Pra mim significa vida. Porque se esse mangue for tirado, aonde é que o camarão
vive, da lama, tudo isso vai se acabar. Se cortarem o mangue, se tirarem o mangue, ehh,
tirar ele todo, e ficar só o lago, onde o caranguejo vai ficar”. (Sr.Mariano, 22/01/2016).

“O que mais nós fazemos é preservar porque ninguém corta, se você olhar
a gente não deixa cortar, em todo caso nós estamos dando uma grande força
para que não destruam, vejam que só tem um caminho que a gente passa, vocês já
viram? É mangue desde lado é mangue do outro”. (Sr.Cildinho 29/05/2016)

A percepção de seu Cildinho está relacionada à trilha utilizada pelos pescadores no coti-
diano para ir ao lugar da pesca, um caminho estreito entre o manguezal, acessos espontâneos
no meio do manguezal, como ele frisa bem “sem destruir, primando pela conservação”. Para
ele, a paisagem de Alcântara é um lugar único e é um grande defensor da sua conservação.
É importante também destacar que as formas tradicionais de pesca como o Curral, de-
finida pelo CEPENE (2003) como “armadilha fixa construída em geral por estaqueamen-
to, com objetivo de reter peixes no seu interior, vulgarmente conhecida como armadilha
fixa, curral de pesca, zangaria, camboa, tapagem”. Os pescadores criam cerco de varas do
próprio mangue com uma rede em volta para apreender os peixes, nas últimas atividades
de campo verificou-se a desativação do curral onde é possível encontrar somente resquícios
da estrutura, sendo substituído pela puçá de escora em que varas de mangues são fincadas
e rede (puçá) é prendida na estaca com a finalidade de apreender peixe e camarão.
Em relação a puçá de escora, na Beirada de Alcântara funciona em sistema comuni-
tário, com um filão de estacas fincadas e as puçás prendidas nas estacas, de várias pessoas
(filhos e compadres), e quando um não pode ir naquela maré avisa aos demais e assim se
ajudam mutuamente. Conforme relata o senhor Moacildes Pereira Pinheiro conhecido
popularmente como senhor Cildinho.

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


“Não, cada qual tem uma parte, tem dos filhos, tem dois compadres meus aqui
da rua, não é exclusivo só de uma pessoa não, eu dividir com diversas pessoas”.
(Sr. Cildinho, 29/05/2016).

Os usuários desta área da Beirada de Alcântara possuem uma forma coletiva de pescar
para sua subsistência, para seu lazer, e esta questão é parte fundamental da elaboração de ações
voltadas para o turismo na área em questão, pois a população local precisa ter o seu modo
de vida respeitado e valorizado, é parte integrante desta paisagem cultural e a diferencia de
outros lugares. Reflete a singularidade do mesmo.
Esses são os mecanismos do sentir uma paisagem nem sempre estão postos à primeira visão,
ao olhar, e sim como destacam os autores, com um caráter subjetivo, invisível aos olhos, porém
45 // Novas
perceptíveis por meio de outros sentidos. Trata-se de compreender a paisagem que detém o
significado, tanto da abordagem física como humana, e que traz a percepção sobre as transfor-
mações que foram impressas neste ambiente, no decorrer dos tempos, e, ao serem analisadas,
pôde-se compreender os processos históricos culturais que se processaram em Alcântara.
O tempo vivenciado por essas pessoas, os passos que são repetidos por inúmeras gerações
(Foto 6), representam o sentir a força inerente a esse lugar, que antes de mais nada é o lugar
de suas relações, de suas memórias vivas. E em consideração à essas questões que estão além
do que se pode se ver, será proposto um roteiro ecocultural para a Beirada de Alcântara, sob
a ótica da paisagem cultural que envolve essa cidade Monumento em questão.

Foto 6. Caminho trilhado na área de pesca coletiva

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2018.


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Um breve encerramento

Apresentamos neste trabalho uma parcela das atividades desenvolvidas com a comu-
nidade alcantarense, que tem participado de diversas ações e reflexões conjuntas com a
equipe da pesquisa relatada. Se passaram três anos de envolvimento, com alguns resultados
já alcançados.
Foram realizados dois cursos de extensão em parceira com o Instituto Federal de
Educação (IFMA) campus Alcântara, e Sítio da Praia do Barco, que resultou na consolidação
do roteiro ecocultural da Trilha da Beirada de Alcântara a ser implantado no próximo ano.
46 // Novas
No decurso do trabalho foram sinalizadas algumas leis vigentes que servem para a pro-
teção desta paisagem cultural em sua integridade, mas se faz urgente e necessário a mobi-
lização da sociedade civil para assegurar o cumprimento da proteção ambiental interligado
com o desenvolvimento sustentável não somente da economia, mas de toda a conjuntura
existente em equilíbrio. Em busca de qualidade de vida dos moradores em sintonia com a
natureza, como já se verifica com a prática dos comunitários através da pesca artesanal de
subsistência, o caminho trilhado, o lazer vivenciado na Beirada de Alcântara.
Mas há fragilidades, pela falta de infraestrutura devido às descontinuidades do proces-
so de gestão pública local e do próprio distanciamento articulatório da comunidade em
se organizarem coletivamente para ampliar e consolidar as políticas públicas de melhorias
sociais, ambientais e culturais de outra esfera de gestão como apoio do CLA, Centro de
Lançamentos de Foguetes da Aeronáutica, e também da Secretaria Estadual de Turismo.
Neste trilhar, conhecer a percepção ambiental dos moradores e usuários da Beirada nos
ajudou a perceber as motivações existentes e interagir com as pessoas do lugar, em uma
proposição para a conservação do manguezal utilizando a Trilha Educativa como instru-
mento de sensibilização, valorizando as práticas cotidianas existentes no local e fomentando
novas formas de apropriação do meio ambiente e da paisagem cultural.
Uma grande parte desta trilha ocorre no Manguezal da Beirada de Alcântara, e essa
área toda encontra-se situado na APA das Reentrâncias Maranhenses, o que implica a
existência de mecanismos legais de proteção desse ecossistema, porém os instrumentos de
gestão ambiental no estado do Maranhão ainda são pouco efetivos e essas áreas naturais
necessitam de uma atenção maior tanto em nível de governo estadual como por parte do
municípios onde elas ocorrem.
Com a efetivação deste roteiro ecocultural, e a ampliação da gestão compartilhada
entre os poderes públicos, instituições privadas em parceria com as forças vivas da comu-
nidade, esperamos ampliar o cuidado e a conservação desse potencial paisagístico, cultural

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


e ambiental do estado do Maranhão e do Brasil como um todo.
As discussões aqui expostas vêm no sentido de ampliar os conhecimentos sobre o
Patrimônio Cultural, reconhecido como Monumento Nacional (IPHAN 1948) e sensibi-
lizar sobre a sua condição de conservação neste momento presente. Esta paisagem cultural
possui elementos ligados aos processos naturais: a área de manguezal, praias, lageiros, res-
tingas, apicuns, falésias aliadas ao patrimônio construído, uma parcela dele em processo
de arruinamento e outra grande parte preserva um importante conjunto arquitetônico do
período colonial, além de existir na área registros fósseis de pegadas de dinossauros.
Muito ainda a se pesquisar e a conservar, e esse trilhar iniciado significa mais um passo
no sentido de estimular outros para que juntos e em uma grande caminhada possamos
contribuir para a consolidação e valorização deste imenso patrimônio que é Alcântara.
47 // Novas
Referências

ALMEIDA, A. W. B. de. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara:


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48 // Novas
Potiguaras da Paraíba:
paisagem e gênero de vida

Thiago Romeu1
Universidade Federal de Campina Grande

Introdução

A proposta de ensaio que ora se desenrola é o resultado da observação e vivência gerada


por uma parceria, a que se estabeleceu entre mim e o povo indígena Potiguara, que habita
o litoral norte do estado da Paraíba, Brasil. Um povo que guarda as marcas de uma história
em construção há séculos. Uma história de resistência, de perdas enormes e recentes con-
quistas que trazem um pouco de restituição e justiça, além de servir de defesa de uma terra
que é cobiçada por muitos e dos seus modos de vida ancestrais. Outrora invadido e explorado
por colonizadores, fazendeiros, industriais e grileiros, foi somente nos anos 1980 que o
território original foi parcialmente restituído, mas ainda hoje é alvo permanente de ações
de distintas potestades que visam lograr as terras férteis, o acesso ao mar e, mais recente-

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


mente, suas paisagens para fins turísticos. Estas últimas são, portanto, patrimônio deste
povo cujos primeiros contatos com europeus remontam o início do século xvi.
Mais que um trabalho de caráter eminentemente acadêmico, o texto se desenrola tam-
bém com a intenção de fundamentar a necessidade de se constatar o valor que suas paisa-
gens têm enquanto características singulares e unívocas para este povo. Este pequeno ensaio
reivindica, portanto, o valor não só das paisagens para os Potiguara, mas a riqueza com a
qual estes indígenas as construíram, retratando-se nelas ao forjá-las com seu modo singular.
Para além de se buscar aqui o reforço à lógica da patrimonialização, enfatizar o valor destas
paisagens é suscitar a necessidade de se pensar a qualidade de vida indígena e, na medida
do possível, encontrar um nexo que aproxime os logros das percepções e cuidados com as
1
thiago_romeu2000@yahoo.com.br
49 // Novas
paisagens segundo critérios ocidentais, e a realidade potiguara que ensejou seu gênero de
vida e que, ao fim e ao cabo, é o que dá o caráter de patrimônio às suas paisagens.
Primeiramente apresentarei de maneira breve a questão indígena no Nordeste do Brasil,
inserindo nela este povo. Em seguida, trataremos criticamente da questão da paisagem e a
noção de patrimonilização, compreendendo, por fim, que sua paisagem é resultante da cons-
trução de um gênero de vida (noção emprestada de Vidal de Lablache), que requer proteção,
visto que é condicionante de cidadania e qualidade de vida do povo com ele identificado.
Tal perspectiva engendra a reflexão em torno de novas possibilidades de se pensar o escopo
no qual se insere a lógica de patrimonialização das paisagens, o que me sugere a necessidade
de uma nova abordagem, impossível para os fins desta rápida aproximação, por isso, a noção
de bem-viver proposta pelos indígenas andinos me pareceu bastante apropriada. Portanto,
proporei, ao fim, uma conexão do gênero de vida potiguara e a noção de bem-viver.

Paisagem e patrimônio: construindo resistências

É comum nas discussões que envolvem a noção de paisagem que sua apreensão seja
reduzida exclusivamente ao papel do olhar. Mesmo em abordagens mais complexas como
a clássica definição de Carl Sauer (2010) da paisagem enquanto morfologia, em que o
papel das formas espaciais é ressaltado, a dimensão do olhar ainda é predominante. Por seu
turno, Cosgrove (1993 apud CORREIA, 2014) enfatiza a importância do passado para
entendê-la, mas outra vez, o olhar é o caminho metodológico. Besse (2014, p. 240 - 241),
explicando conceitualmente a categoria, mostra que o olhar pode se dar por ângulos varia-
dos e diferentes pontos de vista. Também afirma que numa abordagem mais tradicional,
a paisagem é sempre uma “realidade territorial”, o que dá ao aspecto visual da paisagem
sua principal característica, induzindo-nos à crença que é inexorável o papel do olhar
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

como forma predominante para se acessar a paisagem. Todavia, o autor afirma que esta
abordagem da categoria ultrapassa a dimensão física do visível, assumindo sim, conotações
políticas. A percepção da paisagem envolveu, na verdade, desde sempre uma “naturaliza-
ção” sobre a dimensão desigual das relações sociais, ocultando os processos históricos e
conflituosos de sua formação(p. 243). A presença cada vez mais cidadã de cegos ocupando
papeis sociais relevantes e a valorização de sujeitos outrora invisibilizados, cujas matrizes de
construção das paisagens são de natureza distinta das europeias, como o caso dos indígenas
latino-americanos, confrontam a perspectiva mais tradicional e fazem necessário encontrar
novas formas de reconhecimento das paisagens.
É fato, porém, que as paisagens tem contribuído, enquanto parte integrante dos
modos de vida e da constituição dos sujeitos no mundo, para forjar os modos de vida e
50 // Novas
o “ser-no-mundo” dos sujeitos. Portanto, é um desdobramento desta relação com a pai-
sagem um certo desejo de perenizá-las e mantê-las imutáveis, ignorando sua realidade
dinâmica e conflituosa.
[...] a paisagem teria sido desenhada e construída como uma relação imaginá-
ria com a natureza, uma relação graças à qual a aristocracia e a burguesia puderam
representar-se elas mesmas e o seu papel na sociedade. Esta percepção da paisagem
do mundo, com efeito, acompanhou o aparecimento e o desenvolvimento do capi-
talismo europeu, ou seja, a transformação do território simultaneamente em mer-
cadoria e em espetáculo para contemplar visualmente do exterior. A paisagem, mais
precisamente, teria servido ideologicamente para “naturalizar” a dimensão desigual
das relações sociais, e para ocultar a realidade dos processos históricos e conflituosos.
As ciências sociais contemporâneas acrescentaram várias características suplementa-
res a esta instituição burguesa que seria a cultura paisagística europeia. Sintetizo-as
esquematicamente: (1) é uma cultura que põe o olho e a visão no centro do processo
de percepção da paisagem, em detrimento dos outros sentidos, (2) é uma cultura
principalmente europeia, ocidental, branca, em detrimento dos outros modelos cul-
turais de relação com a paisagem, (3) é uma cultura essencialmente masculina, (4) a
representação da paisagem corresponde à implementação de um espaço de controle
de tipo militar, (5) as imagens de paisagem desempenharam um papel fundamental
na constituição dos imaginários nacionais, ou mesmo, nacionalistas, (6) por último,
a imagerie paisagística, sob todas as formas, sejam artísticas ou midiáticas, desempe-
nhou um papel decisivo na “naturalização” das empresas coloniais (BESSE, 2014,
p. 243, grifo meu).

Mas é desta noção excludente em grande medida que se desenrola a ideia de que as
paisagens são patrimônio e, por isso, devem ser preservadas. Na concepção adotada por

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


Rita de Cássia Ariza da Cruz, o patrimônio está intimamente relacionado ao entendimen-
to do que seja cultura, que na visão da autora é “uma condição de produção e reprodução
da sociedade” (MENEZES, 1996 apud CRUZ, 2012, p. 95). Neste sentido, patrimônio
é então entendido necessariamente como “patrimônio cultural” e “‘patrimonialização do
patrimônio’ é a institucionalização de mecanismos de proteção do chamado patrimônio
cultural, material ou imaterial” (Ibid., p. 95).
A patrimonialização é um processo que vem se impondo à manutenção de modos de
vida e seus desdobramentos, entre os quais as paisagens culturais, há algum tempo. Forjada
no bojo da elaboração dos discurso nacionais, este processo é um dos resultados da cons-
trução das “comunidades imaginadas” (ANDERSON, 2008) que passa a fundamentar as
relações entre os territórios e os povos, no seio do processo de industrialização.
51 // Novas
A construção do discurso do patrimônio histórico, cultural ou natural, ocorrida
nos séculos xix e xx, estava associada ao discurso nacional. Em países como o Brasil,
ele esteve fortemente ligado a um projeto de construção do Estado nacional que, no
início do século xx, produziu algumas imagens sobre a nacionalidade que são fortes
ainda hoje [...] Embora seja organizada por uma instituição internacional, sua es-
trutura (a da lista do patrimônio) se baseia nos Estados nacionais, desde a indicação
para a candidatura até sua apresentação, dividida por países, reafirmando a lógica
nacionalista do discurso patrimonial e de construção da nação. O patrimônio tam-
bém se define em relação ao outro como aquilo que nos diferencia, nos representa e
nos identifica, merecendo, portanto, ser preservado [...] trata-se de um processo de
construção de imagens, do modo como cada país deseja ser visto por meio de uma
possível contribuição a um processo civilizador mundial [...] Nesse sentido, a atri-
buição de valor a patrimônio mundial se justifica pelo reconhecimento internacional
de um bem e pelas vantagens diretas e indiretas que disso advém, tais como apoio
financeiro e incremento do turismo, mas a inclusão na Lista do Patrimônio Mundial
também representa a produção de imagens do nacional para consumo interno e
externo [...] (RIBEIRO, 2017, p. 31-32).

É evidente, portanto, que a lógica da patrimonialização logra realçar as virtudes de um


sítio ou de uma elemento imaterial que contribua para construir o imaginário nacional.
Mas como esta lógica se coloca para a construção do imaginário local? À guisa de uma
resposta, notamos que a transformação de um dado sítio em patrimônio tende a torná-lo
inacessível aos que dele dependem. Diversos casos de patrimonialização no Brasil e no
mundo afora demonstram de maneira inconteste que este processo mais prejudica que
beneficia a dinâmica local dos que dependem dos usos tradicionais/dinâmicos cotidianos.
Neste sentido, porém, depreende-se que há um problema que até agora permanece insolú-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

vel: como manter a paisagem como um patrimônio garantindo a manutenção de gêneros


de vida que a construíram enquanto patrimônio?
A paisagem para os potiguara é a dimensão de sua prática cotidiana, em cuja vivência é
impossível realizar o processo de patrimonialização de suas paisagens tal como é concebido,
simplesmente porque trata-se de algo que em grande medida serviu a estruturação da colonia-
lidade (QUIJANO, 2003). Neste sentido, a manutenção das paisagens potiguara enquanto
um “não-patrimônio”, não é um gesto inconsequente e irreflexivo, mas sim uma resistência.
As práticas dos Potiguara parecem se inserir desde o início do período de colonização
numa constelação de práticas consideradas pré-modernas, arcaicas ou subdesenvolvidas
que os coloca no rol de grupos incapazes de lidar com o patrimônio constituinte de seus
territórios, tampouco com suas paisagens patrimoniais. Tal como com todos os povos
52 // Novas
indígenas, seus sítios sagrados e de práticas culturais foram sempre vilipendiados, quando
não saqueados, a pretexto de não saberem lidar com seu “patrimônio”. Entre os Potiguara,
o exemplo mais evidente é o próprio sítio da cidade da Baía da Traição, cujo topônimo
está também relacionado a relação sempre de desconfiança entre os colonizadores por-
tugueses e indígenas potiguara e hoje se tornou uma espécie de enclave não indígena na
terra indígena, que é contígua, sendo este o único trecho que está fora do seu território2
(CARDOSO et al., 2012), justamente o local em que se relatam os primeiros contatos
entre colonizadores e indígenas.
É neste contexto de construção da noção de paisagem que de um modo geral se insere
a questão indígena brasileira e a do povo Potiguara em particular. A noção de paisagem
parece ser estranha aos indígenas, posto que trata-se de uma construção moderna, euro-
peia, como apontou acima Jean-Marc Besse, consoante à lógica colonizadora. Logo, parece
difícil harmonizar uma noção tão distinta ao comportamento dos indígenas brasileiros.
Mas esta aparência é falsa, e para desfazer esta imagem é mister que se apresente quem são
os Potiguara e o como construíram um gênero de vida. Creio que o entendimento acerca
da relação deste povo com seu espaço pode construir uma perspectiva particular de paisa-
gem condizente aos povos tradicionais, o que pode ser relevante para a construção de uma
lógica cidadã, descolonizadora e tributária de um projeto de bem-viver.

Foto 1. Canhões do Forte

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Perspectiva do topo da falésia, na Aldeia do Forte, onde se encontram os remanescentes do antigo forte portu-
guês, que dá nome à aldeia. Este ângulo constitui a imagem símbolo da cidade da Baía da Traição, mas só pode
ser captada a partir do aldeamento indígena (foto do autor, agosto de 2016).

2
O mapa 2 (no apêndice), mostra a delimitação da área urbana do município da Baía da Traição fora das
Terras Indígenas.
53 // Novas
Quem são os Potiguara e como constróem suas paisagens

Não há consenso sobre o significado da palavra “potiguara”, porém o mais aceito é


que signifique “Comedores de Camarão”. É certo que este povo falava, desde seu primeiro
contato com europeus, a língua tupi. Possivelmente, é o único povo que habitam o mesmo
lugar desde a invasão portuguesa3 nos primórdios do século xvi, e um dos poucos que
possuem praias oceânicas entre seus domínios territoriais. Vivem em sua maioria em três
terras indígenas distribuídas continuamente entre três municípios do litoral norte paraibano:
Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto4.
Um dos aspectos particulares dos Potiguara é a histórica defesa de seus modos de ser/
estar no mundo. Constam em registros antigos do século xvi que os Potiguara defendiam
suas terras de maneira bravia e assustavam adversários com os ritos de antropofagia, sendo
classificados como “gentios bravos” contra quem portugueses, franceses e holandeses, en-
frentaram muita resistência5. A pecha de bravos, dada ainda no período colonial, provavel-
mente foi o que lhes assegurou certo isolamento até o início do século xx, ocasião marcada
pela chegada de Friederick Lundgren, sueco que fez fortuna no ramo da tecelagem no
litoral dos estados de Pernambuco e Paraíba. Neste último estado, os Potiguara o acusam
de escravidão e grilagem de suas terras ancestrais. Desde então, este povo tem lutado para
assegurar a posse de seus territórios e a autonomia na manutenção de seus modos de vida. A
luta dos Potiguara se insere, portanto, no quadro geral de luta dos indígenas brasileiros por
reconhecimento de seus territórios e territorialidades, tendo sido importantes articuladores
das conquistas de direitos indígenas presentes na constituição federal do Brasil de 1988.
A cosmologia e as práticas Potiguara são intrínsecas às suas paisagens. O rito do Toré, que
abre e fecha todas as cerimônias e encontros do povo, simboliza e sintetiza a importância dos
elementos naturais como mediadores de sua existência. Por isso, as paisagens constituintes do
seu território, que fazem com que os Potiguara transitem por diversos domínios ambientais
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

litorâneos, são parte fundante do universo cosmológico e existencial destes indígenas. Estes
ambientes têm no elemento água especial importância. As suas terras, banhadas por rios e
pelo oceano, abrangem áreas de tabuleiros costeiros cobertos por mata atlântica, chegando
até a restinga e o manguezal, nas praias e estuários, construindo verdadeiros gêneros de vida.
Além disso, há Potiguaras que se reúnem em aldeamentos fora da Paraíba, especialmente no
Rio Grande do Norte e Ceará. Neste último, os indígenas habitam caatingas e adotam um
modo de vida sertanejo. Todavia, a ênfase aqui será dada aos Potiguara da Paraíba.
3
Maura Campanili. No mesmo lugar, desde o descobrimento. Disponível em: <http://www.socioambiental.
org/ website/parabolicas/edicoes/edicao58/potiguara.html>. Acessado em 27/01/2017.
4
Mapa 1, no apêndice.
5
José Glebson Vieira. Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil: Potiguara. Disponível em: <https://pib.
socioambiental.org/pt/povo/potiguara/print>. Acessado em: 28/01/2018. 
54 // Novas
Até hoje a resistência parece um traço significativo, pois, a despeito de toda sorte de
dificuldades, entre as quais a miscigenação dos seus hábitos, valores e ritos às do sujeito
ocidental, mantiveram-se existindo e têm assegurado cotidianamente suas terras, suas prá-
ticas econômicas e suas tradições. Tudo isto torna ainda mais necessário o reconhecimento
do valor de suas paisagens culturais. A miscigenação dos hábitos ancestrais às da cultura
dos invasores foi uma estratégia necessária para se manterem existindo, o que lhes exigiu
muita resiliência frente aos poderes instituídos e impostos pelo Estado. No caso da religio-
sidade isto é bastante evidente. Muito de ritos ancestrais ainda são praticados e os(as) pajés
gozam de prestígio na sociedade potiguara, mas a prática do ritual do Toré é perceptível
a relevância de signos católicos nos cânticos, além do fato de muitos indígenas terem
um vínculo direto com comunidades eclesiásticas, tanto católicas quanto protestantes
(sobretudo pentecostais) que disputam influência religiosa nas aldeias.
Em meu entender, a isto se deve a força significativa dos valores ocidentais entre os
indígenas. No entanto, hoje há grande número de jovens líderes escolarizados e com sólida
base acadêmica (mestres e doutores) que têm valorizado sobremaneira os relatos dos idosos
(“troncos velhos”), têm formado associações e coletivos, retomado práticas e ritos ances-
trais, além da prática da língua tupi, valores que tem sido difundidos nas escolas indígenas.
Constato, no entanto, que o reconhecimento de suas paisagens parece não ter sido ainda
despertado de maneira ampla, embora hajam movimentos nesta direção.
Por isso, parece necessário, uma vez mais, enfatizar que paisagens não são apenas a
dimensão visual e ampla da espacialidade. O extenso e já antigo debate acerca do sentido
do termo nos legou um acúmulo que permite dizer que chama-se paisagem a percepção
espacial do resultado do trabalho humano (SANTOS, 1988), mas também o reflexo dos
sentidos captados espacialmente e vividos espiritualmente (BESSE, 2006). A paisagem,
portanto, também é resultado dos processos culturais que resultam de uma morfologia
particular (CORRÊA & ROSENDAHL, 1998) e este entendimento levou ao reconheci-

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


mento, mais recentemente, de que as paisagens possuem um valor, de modo que passou
a ser interpretada também como um patrimônio (SILVA et al., 2007; RIBEIRO, 2017).
Neste sentido, as paisagens potiguara são mais que importantes testemunhos do processo
histórico de ocupação colonial e da resistência dos Potiguara. Suas paisagens são também
elementos agregadores e demarcadores simbólicos da territorialidade potiguara.
Para o mundo europeu, a percepção das paisagens (que se dá no Renascimento), bem
como sua representação por meio da cartografia e da pintura, sempre esteve fundada na
construção de quadros visuais de harmonia entre os acidentes geográficos, sistemas flores-
tais, construções humanas e cenários atmosféricos, uma espécie de “paisagem de mundo”
(Weltlandschaft). Marcada por uma perspectiva cristianizada da realidade, a imagem do
espaço deve transparecer a “verdade”, expressando-se numa dimensão de integralidade,
55 // Novas
completude e totalidade reveladas e a espera de sua compreensão, e é esse atributo inato ao
sujeito que a observa que se espera, a contemplação.
De fato, no século xvi, a cartografia e a pintura de paisagem não se comunicam
apenas pela escala da corografia. Um dos eventos mais significativos desta história
é justamente a aparição e o desenvolvimento concomitante da noção de uma “pai-
sagem de mundo” e de uma nova representação cartográfica do ecúmeno [...] Na
paisagem de mundo [...] encontra-se a mesma tendência à enciclopédia e a mesma
preocupação de fazer desta enciclopédia uma experiência visual. Trata-se, na carto-
grafia e na pintura, de reunir, num pequeno espaço, nos limites de uma superfície
de inscrição, a totalidade dos caracteres do mundo terrestre [...] Subjacente ao olhar
cartográfico e paisagístico, e dando-lhe talvez alcance verdadeiro, encontra-se o pen-
samento dos Salmos (os de número 24, 33, 46, 104 são os mais frequentemente cita-
dos pelos cartógrafos [...]): “Ide e contemplai os grandes feitos de Deus, que encheu
a Terra de maravilhas” [...] (BESSE, 2006, p. 23 e 25).

Foi a sobreposição deste pensamento bíblico totalizante aos ensinos dos gregos clás-
sicos sobre tempo e História que levou ao sentido de multiplicidade dos lugares numa
lógica de espaço universal (ibid. p. 26). Um real ganho de percepção para certo avanço
na dimensão da espacialidade, porém, um modo de conceber a realidade sensível do
mundo bastante unilateral que assentou-se numa postura autocentrada (e eurocentra-
da) de percepção das experiências sensoriais que o espaço proporciona. A paisagem,
portanto, nas concepções vigentes, nem sempre dialoga com modos não hegemônicos
e tradicionais de perceber a realidade sensível. Entendemos que os modos indígenas de
conceber diversas dimensões da realidade guardam muitas diferenças em relação aos
modos fundados em lógicas eurocêntricas, entre estes modos diferenciados, creio que a
paisagem é um deles.
Isto significa que mais que meros reprodutores de uma paisagem natural, ou de uma
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

humanização inscipiente, os Potiguara devem ser vistos como autores de suas paisagens,
fundadores, juntamente com os demais povos indígenas latinoamericanos, de uma manei-
ra muito particular de perceberem suas paisagens, tomando por fundamento a ideia de que
as paisagens constituem uma noção fundantes de nosso ser-estar no mundo.

A paisagem Potiguara e seus gêneros de vida

A fisionomia das áreas pode ser um importantíssimo indicador do modo como as pai-
sagens são construídas, que derivam dos gêneros de vida que são desenvolvidos na constân-
cia da relação humanidade/natureza (LABLACHE, 2005, p. 114). Não seria estranho, mas
56 // Novas
consoante com nossa crítica de fundo à uma visão estritamente eurocentrada, enfatizar que
a noção de “gênero de vida” é demasiadamente fundada numa perspectiva pautada ainda
na ultrapassada geografia colonial, cujas análises se concentravam nas sociedades e regiões
“exóticas”, ainda a serem reveladas ao “mundo civilizado”, ou a serem niveladas segundo
a medida das “civilizações avançadas”, tendo na Europa sua mais elevado nível. Todavia,
genre de vie não pode ser uma elaboração descartada (mesmo porque os argumentos de
Lablache não foram superados), ao contrário, pode ser ainda muito útil ao se considerar as
espacialidades vivenciadas pelas populações tradicionais.
É assim, ao sabor dos acontecimentos sazonais ou dos movimentos que se
produzem no mundo animal, eles próprios condicionados pelas estações, que o
homem contrai hábitos de existência em vista dos quais ele se organiza, fabrica
instrumentos, cria estabelecimentos temporários ou fixos (Ibid., p. 117).

Lablache erige uma argumentação em que afirma haver grande interdependência


entre os fatores bióticos, abióticos dos ecossistemas (incluindo aí a presença dos animais)
e a presença das comunidades humanas em consonância com tais fatores. Ele propõe
que para que se constituam gêneros de vida, os homens tiveram que destruir certas as-
sociações de seres vivos, em benefício de outras. Tiveram que agrupar animais e plantas
de diversas proveniências, tornando-se assim destruidores e criadores ao mesmo tempo
(Ibid., p. 119).
Inegavelmente, os Potiguara da Paraíba constituíram gêneros de vida em seus lugares
de vivência. A Baía da Traição é, sem dúvida, um local marcado pela presença indígena
desde os relatos mais antigos, como dito anteriormente. No entanto, é importante ressaltar
que a marca na paisagem deste gênero de vida pode ser constatado em toda parte. Mas no
que consiste este gênero de vida?
É nítido a força que os rios e o mar tem no cotidiano dos Potiguara. Povo que detém

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


há muito as técnicas da pesca em águas marinhas. Todavia, esta atividade – que não se
restringe aos Potiguara – depende grande dedicação e atualmente de certo grau de inves-
timento financeiro. É preciso equipamentos específicos (barco, redes, combustível, gelo),
domínio técnico (savoir faire do pescador, preparação da equipe), confiança e coragem, além
de espírito aventureiro. Embora alguns pesquem em barcos individuais, nem todos domi-
nam este expertise. Contudo, há outras atividades que despertam o olhar para a importância
das águas em toda a sua diversidade no universo potiguara.
A região em que se situaram as aldeias potiguara e onde se estabeleceu o território
indígena é parte do litoral oriental nordestino que é marcado pela rede hídrica que corre
do planalto da Borborema, no sentido oeste-leste, para o Oceano Atlântico, a 7º ao sul da
linha do Equador. Todo este compartimento litorâneo é marcado por rios caudalosos em
57 // Novas
sua foz, prenhes de manguezais, em cujas nascentes, nos cimos do planalto ou dos tabulei-
ros costeiros, pouco se parecem com a abundância da foz, quase sempre em estuário, local
ideal reservado pela evolução ao habitat dos peixes-boi, mamíferos em risco avançado de
extinção. Devido a formação suave dos tabuleiros costeiros, a planície reúne rios que se
juntam antes da foz, ou, no caso específico do Mamanguape, os rios se encontram na foz,
abundando em vida marinha. Neste ambiente de marés, ao sabor das cheias e vazantes,
onde vicejam manguezais, os potiguara estabelecem seu ritmo de criação de camarões,
coleta de mariscos e grande variedade de crustáceos.
Além disso, a presença das atividades agrícolas no alto das falésias, denuncia o modo de
vida rural, marcado pela sazonalidade das estações chuvosa e seca. Aqui se notabiliza a “resiliên-
cia” em relação à presença colonial. O plantio de lavouras de mandioca se mistura às de milho
e feijão, bem como a de outros gêneros que enriquecem a mesa potiguara: inhame, quiabo,
beterraba entre outros. Segue-se a criação de animais de pequeno porte em pequenos rebanhos
de caprinos, mas há a presença de algum gado bovino, de porcos, perus, galinhas e patos.
É preciso considerar que o assédio das usinas de açúcar é muito sedutor à muitos po-
tiguara que vivem sobre os tabuleiros, num contexto de escassa renda financeira, cedendo
suas terras para a invasão das canas-de-açúcar e, mais recentemente, do eucalipto. Culturas
que fornecem um rendimento rápido, tornando a recusa praticamente impossível.

Foto 2. Coleta do Marisco


Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Indígenas coletando o marisco no maré vazante. Atividade que ocupa grande parte das famílias que residem nas
aldeias à beira do estuário (foto do autor, setembro de 2017).
58 // Novas
Apesar disso, a paisagem potiguara é marcada pela presença destes elementos que
conjugados na cotidianidade das 32 aldeias, acaba moldando um gênero de vida muito
específico e de relevância para a compreensão da dinâmica paisagística do litoral norte
paraibano. Em que pese o olhar do pesquisador de matriz científica eurocentrada, é pre-
ciso considerar que há sim uma singularidade na formação das paisagens com base neste
cotidiano específico. Tal cotidiano que molda o que, ao resgatar Lablache, evoco ser um
gênero de vida, serve de esteio da memória imaterial deste povo. Técnicas, hábitos, gostos
e pontos de vista passados oralmente de geração para geração, marcados pela sazonalidade
das marés, moldaram uma maneira única de viver, tal como a envergadura dos coqueiros
e das retorcidas árvores da restinga sobre as falésias foram moldadas segundo a direção dos
ventos raramente impetuosos.

Patrimonialização da paisagem e exotixação de gêneros de vida


(ou paisagem para o bem-viver?)

A patrimonialização no caso dos Potiguara é, antes de tudo, uma imposição de deter-


minada modernização à um povo que é historicamente subalternizado a quem se impõe
a visão eurocêntrica para o uso e consumo da paisagem. Para quem a paisagem do povo
Potiguara é um patrimônio? O questionamento permite refletir sobre a ideia de que a lógi-
ca posta não está associada à luta dos povos indígenas para a autonomia do seu território,
mas sim a uma lógica hegemônica presente nas práticas que favorecem a degradação das
suas próprias paisagens.
O discurso da patrimonialização parece se chocar com a degradação que a cana-de-
-açúcar e os grandes viveiros de camarão têm provocado em seus territórios. Mas este
discurso esconde dois problemas aos potiguara. O primeiro é que o uso da terra Potiguara

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


carrega a histórica degradação imposta pelos colonizadores que se mantém ainda hoje na
orientação velada das usinas de açúcar e álcool e da indústria carcinicultora, consumindo
a natureza e a paisagem de maneira utilitária e degradante, reforçando, assim, as repre-
sentações sobre o território indígena que sempre prevaleceram ao longo do tempo, qual
seja: a de que os indígenas não cuidam de seu território. O segundo é que a lógica da
patrimonialização desta paisagem impõe um consumo da paisagem por sujeitos estranhos
ao processo de produção delas. Isto é, a patrimonialização, nos termos que a regulamenta,
obriga aos lugares patrimonializados a busca pelo consumo turístico de suas paisagens,
retirando delas o conteúdo vivido e a autonomia do povo na sua produção nos dias atuais.
A realidade dos lugares patrimonializados, em cujas paisagens seus povos autóctones
perderam autonomia, permite refletir a partir de outra perspectiva. A ética que privilegia
59 // Novas
o desenvolvimento, que permeia o discurso da patrimonialização, não privilegia outros
significados espaciais que estejam mais ancorados à formas alternativas e não uniformes de
leituras e vivências da paisagem. Há, portanto, uma necessidade imperativa que é a desco-
lonização, inclusive do imaginário (CÂMARA, 2017) que molda a paisagem. Só reconhe-
cendo a colonialidade da produção da paisagem indígena é que seus sujeitos produtores
podem descolonizá-la, e isto significa imaginá-la num propósito voltado ao “Bem Viver”.
O Bem Viver, enquanto soma de práticas de resistências ao colonialismo e
às suas sequelas, é ainda um modo de vida de várias comunidades indígenas que
não foram totalmente absorvidas pela Modernidade capitalista ou que resolveram
manter-se à margem dela [...] A influência colonial e capitalista está presente no
mundo indígena de múltiplas formas, o que impede visões românticas de sua reali-
dade. Crescentes segmentos da população indígena foram absorvidos pela lógica da
monetarização própria do mercado capitalista [...] (ACOSTA, 2016, p. 70).

Mais que um estado de comodidade, o “bem-viver” é um processo assumido como


uma categoria em permanente mudança, construindo-se e reproduzindo-se dinamica-
mente. Conhecimento, códigos de conduta ética, valores espirituais, valores humanos,
perspectiva de futuro, entre outras dimensões devem ser consideradas quando se pensa
uma paisagem não com o propósito desenvolvimentista, herdeira do saber colonial, mas
sim como uma proposta autônoma (no caso potiguara estou propondo uma paisagem
para o bem-viver dos próprios indígenas). Logo, uma proposta de abordagem da paisagem
que pressupõe em algum nível, uma utopia6, mas que vai além. Mais que um topos a ser
atingido, o bem-viver pressupõe uma atividade viva, em transformação porque é antes um
diálogo entre existências práticas e não uma escatologia espacial.
Como o lócus de produção do saber é importante na compreensão dos projetos de
mundo que se pretende construir, parece necessário enfatizar que a noção de “bem viver”
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

não tem origem entre os Potiguara, tampouco entre os indígenas brasileiros. A questão do
bem viver tem sido defendida e proclamada há bastante tempo pelos indígenas andinos
Quéchuas e Aymaras, “tendo, apenas, clareza de que o ‘bem viver’ não se propõe a ser um
substituto do ‘desenvolvimento’ em sentido estrito. Não há nele a noção de progresso, de
etapas a serem vencidas, de parâmetros claros definidos” (CÂMARA, 2017, p. 256). É a
possibilidade de outros mundos que orienta esta noção, que atualmente

6
Utopia, segundo o dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa, é “qualquer descrição imaginativa de uma socie-
dade ideal, fundamentada em leis justas e [...] comprometida com o bem-estar da coletividade [...]” (HOUAISS,
p. 2817). O fato é que trata-se de um conceito historicamente resultante de um constructo intelectual europeu,
cuja episteme encontra fundamentos geográficos muito diferentes daqueles onde vem sendo aplicado.
60 // Novas
[...] sublinha que as fontes para identificar modos de vida alternativos vêm dos
povos indígenas originários: culturas nascidas com base na relação ancestral com os
ciclos da Natureza, por meio de práticas agropecuárias ou de coleta, de alguma ma-
neira agrocêntricas. Da vida rural desses povos são extraídas as fontes principais para
pensar concretamente o Bem Viver (IBAÑEZ, 2016, p. 322).

Diante desta posição, assumir o Bem Viver como um devir é algo que não parece
estranho aos modos de vida potiguara, convergindo para a hipótese aqui em realce que
é a de que atualmente suas paisagens requerem valorização não para as finalidades de des-
-envolvimento econômico, mas para o reconhecimento do pleno envolvimento do povo
com suas paisagens, assumindo autonomia sobre o próprio futuro.
Uma perspectiva de leitura da paisagem desta maneira, pressupõe a superação da cos-
movisão ocidental, que é, antes, capitalista, em benefício de uma visão comunitária. Esta
abordagem se contrapõe à lógica do desenvolvimento que, nas leituras da paisagem são
evidenciadas a partir dos pressupostos de sua patrimonialização, que, em última análise,
guardam as intenções de consumo da paisagem como artifício de manutenção da lógica
espacializada do mercado. Uma paisagem para o bem-viver valoriza o diálogo com senti-
dos de mundo dos Potiguara na espera da construção de uma realidade na qual a paisagem
sirva a autonomia e emancipação deste povo.

Referências

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Tadeu Breda. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016.
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


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Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
62 // Novas
MAPA 1
APÊNDICE

63 // Novas Fonte: CARDOSO et al. (2012, p. 109).


Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
64 // Novas Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

MAPA 2

Fonte: CARDOSO et al. (2012, p. 111).


Educação no contexto da gestão
da FLONA de Tefé, Amazonas, Brasil1

Maíra Suertegaray Rossato


Departamento de Humanidades do Colégio de Aplicação
Cristiano Quaresma de Paula
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Cleder Fontana
Instituto Federal de Santa Catarina

Introdução

Este texto apresenta o processo de elaboração de material pedagógico, para o ensino de


Geografia nas comunidades ribeirinhas inseridas na Floresta Nacional de Tefé – Amazonas
(FLONA de Tefé). Expõe o processo de construção de três livros, os quais fazem a trans-
posição didática dos resultados de pesquisas realizadas pelo Núcleo de Estudo Geografia
& Ambiente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NEGA/UFRGS) – para o
ensino de Geografia. Logo, contém parte de um processo maior que se iniciou na elabo-

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


ração de mapas participativos, em ocasião da elaboração do Plano de Manejo da referida
unidade de conservação (UC) – em 2012 (ROSSATO et al., 2017).
O locus desta ação foi a Floresta Nacional de Tefé – FLONA de Tefé-AM (Figura 1).
A denominação FLONA resulta da sistematização de Unidades de Conservação (UCs)
presentes na Lei No 9.985, de 18 de julho de 2000. Trata-se do SNUC - Sistema Nacional
de Unidades de Conservação –, elaborado pelo Estado brasileiro para fins de gestão das
unidades de conservação em território nacional.

1
Este trabalho é fruto do projeto intitulado “Saberes e Fazeres Geográficos da FLONA de Tefé/AM: condi-
cionantes para o fortalecimento territorial” em desenvolvimento pelo NEGA/UFRGS.
65 // Novas
Figura 1: Localização da Floresta Nacional de Tefé, Amazonas.

No SNUC – artigo 17 – uma Floresta Nacional é definida como: “uma área com cober-
tura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo
sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração
sustentável de florestas nativas”. (BRASIL. Lei no 9.985, 18 de julho de 2000).
As FLONAS são estabelecidas com o objetivo de promover um manejo múltiplo e sus-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

tentável dos recursos florestais, principalmente por meio do extrativismo. Na FLONA, é


possível desenvolver a pesquisa científica, ações de educação ambiental e atividades de lazer.
O manejo, além de prover a subsistência das famílias, deve ajudar a recuperar áreas degradadas
e a preservar a diversidade biológica, garantindo o controle ambiental (PIRES et al., 2016).
A Floresta Nacional de Tefé que foi criada em 10 de abril de 1989 através de um
Decreto da Presidência da República, localiza-se na região do Médio Solimões, área central
do estado do Amazonas. É uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável, portanto é
permitido moradores em seu interior.
Segundo Moraes (2016, p. 6),
de sua criação até o início dos anos 2000, poucas ações foram desenvolvidas na
Flona; somente a partir de 2001 que a equipe de gestão da Flona, sob a responsabilidade
66 // Novas
da Coordenação Geral de Florestas Nacionais iniciou-se um dos trabalhos mais importan-
tes: o Levantamento Sócio Econômico, que teve o objetivo de conhecer melhor a realidade
dos moradores e a situação da área como um todo.

Residem na FLONA, os povos da floresta ou “povos das águas”.


Os povos da Amazônia − “Povos das Águas” − integram em suas vidas a floresta e
os rios. Estabelecem trocas entre comunidades vizinhas e com centros urbanos próximos.
Sustentam a condição de um modo de viver designado como comunidades tradicionais,
mas que, na relação social, econômica, tecnológica, política e ambiental vivida pelo país,
não podem ser consideradas paradas no tempo. Muitas práticas associadas aos saberes
e fazeres dos povos da Amazônia estão sendo integradas em novas políticas territoriais.
Contudo, quando as políticas não reconhecem os saberes tradicionais, não são aceitas
pelas comunidades (FONTANA et al, 2017, p. 189).

Moraes (2016), em relação aos problemas levantados pelos ribeirinhos, destaca as con-
dições precárias de moradia, a elevada incidência de malária, as condições precárias em re-
lação à educação, à saúde e ao saneamento. Evidencia-se, também, uma baixa organização
social e comunitária com presença de conflitos entre pescadores e ribeirinhos por questões
relativas a pesca e áreas de pesqueiro.
Foi com o prosseguimento da gestão pelo ICMBio e devido à necessidade de elabora-
ção de um Plano de Manejo que foi desenvolvido, como um dos requisitos, o mapeamento
do uso da Terra, elaborado de forma participativa. É deste processo que deriva esta ativi-
dade, direcionada à educação e à produção de material didático, solicitação esta advinda
dos professores e ribeirinhos durante as oficinas de mapeamento e de elaboração do plano
de manejo iniciado em 2012.
Este texto, portanto, consiste numa sistematização do material produzido e se apoia em

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


publicações anteriores, em particular o texto denominado Produção de material pedagógico
em Geografia para comunidades ribeirinhas da FLONA de Tefé, Amazonas, encaminhado
ao EGAL - Encontro de Geógrafos da América Latina em 2017, com sede em La Paz, Bolívia
(ROSSATO et al., 2017).

O processo de construção da ação

Esta ação é resultado, inicialmente, do trabalho de mapeamento participativo


construído juntamente com a equipe do ICMBio-Tefé, durante a elaboração do plano de
manejo da Floresta Nacional de Tefé - FLONA de Tefé -, AM.
67 // Novas
A ação realizada pode ser sintetizada nas seguintes etapas:
1) Mapeamento do uso do solo da FLONA. O objetivo desta ação é apreender
sobre o lugar de vivência dos ribeirinhos em relação às suas atividades, convivência
comunitária e demandas para a melhoria de suas condições de vida.
2) Produção de material didático destinado ao ensino básico. Demanda esta obser-
vável ao longo do mapeamento, quando da necessidade de melhoria da educação,
uma de suas prioridades, das mais importantes.

A metodologia de ação

A metodologia de elaboração do material didático está associada à cartografia social e ao


diálogo de saberes. O resultado desta produção consistiu na organização de três textos com
características distintas, porém complementares. O primeiro volume é denominado O Lugar
Onde Moro – FLONA de Tefé contém quatro textos que serão detalhados mais adiante.
O segundo volume é um livro de literatura infantil que trabalha com a temática ambiental:
o desmatamento e a necessidade de preservação da floresta. O objetivo de incluir um livro de
literatura infantil neste projeto é estimular a leitura e apoiar o letramento das crianças da fase
inicial do Ensino Fundamental a partir de temas locais. O terceiro volume O Lugar Onde
Moro – FLONA de Tefé: práticas pedagógicas traz sugestões de atividades para serem desen-
volvidas pelo professor do Ensino Fundamental. Essas atividades estão centradas no conteúdo
relativo à FLONA de Tefé apresentados no Volume I e no livro infantil, acrescido de outras
que buscam explorar conteúdos como observação, orientação, escalas e representações.
Os textos foram avaliados em subgrupos cujos participantes foram ribeirinhos, técni-
cos do ICMBio e pesquisadores da UFRGS. Procedeu-se, em reuniões, a leitura integral
dos textos visando à compreensão da linguagem escrita, à correção das informações, à es-
trutura e à sequência a ser adotada nos textos, bem como à avaliação e à complementação
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

de imagens do lugar. O entendimento expresso pelos participantes ao realizar as atividades


de leitura e avaliação do material permite conceber a adequação da linguagem e a perti-
nência dos conteúdos e habilidades propostas. O resultado deste projeto foi a elaboração, a
editoração, a impressão, a divulgação e a doação de 250 exemplares de cada um dos mate-
riais produzidos para o acervo das bibliotecas das comunidades que compõem a FLONA.
Foi escolhido construir um conhecimento sobre Geografia da FLONA de Tefé, interesse
demonstrado pelos professores, tendo em vista a necessidade de uma compreensão mais efeti-
va da singularidade do lugar onde atuam profissionalmente. Diante disto, a ideia construída
de forma coletiva teve como
finalidade analisar o espaço geográfico da FLONA de Tefé com o intuito de compre-
ender os aspectos territoriais nas suas dimensões econômicas, políticas, culturais a partir
68 // Novas
de seus modos de vida. (...) O pressuposto foi de que o material trabalharia Geografia a
partir de conceitos operacionais do espaço geográfico (SUERTEGARAY, 2001) e com
conteúdo que expressasse o lugar em que os educandos moram. Decidiu-se, ainda, que o
ensino deveria ocorrer de forma que desenvolvesse a alfabetização cartográfica (PASSINI,
1994), para que aquele conjunto de mapas, os quais subsidiaram o Plano de Manejo,
fosse apreendido pelos educandos favorecendo a aprendizagem sobre o lugar onde moram.
(ROSSATO et al., 2017, p. 2-3)

O caminho percorrido para elaboração do material pedagógico está fundamentado em


Thiollent e Silva (2007) e trata-se de uma pesquisa participativa.
Para este autor ocorre a pesquisa participativa quando a mesma abrange técnicas de
ensino, pesquisa, extensão, avaliação, gestão, planejamento etc. que sejam sensíveis à par-
ticipação de todos os atores envolvidos no problema que se pretende solucionar. O proble-
ma da falta de materiais didáticos que dialoguem com a vida dos educandos foi assumido
pela equipe de pesquisadores que, inseridos no ambiente universitário, interviram por
meio de ensino, pesquisa e extensão, e priorizaram os comunitários como protagonistas do
processo. (ROSSATO et al., 2017, p. 3)

Esta ação está também referendada em Denzin et. al. (2006, p.102) para ele, “a pesquisa-
-ação concentra-se no contexto, seu objetivo é resolver problemas da vida real em seu contexto”.
O contexto no qual se trabalhou corresponde aos anseios da própria comunidade, ribeiri-
nhos e professores que solicitaram aos pesquisadores materiais didáticos para que melhor
pudessem exercer suas atividades uma vez que muitos deles são professores originários de
outros lugares, por vezes de áreas urbanas.

Os produtos didáticos pedagógicos.


Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Como já mencionado, ao longo desta atividade, foram produzidos três livros – sobre
a Geografia da Floresta Nacional, um caderno de atividades dirigidas aos professores e um
livro de literatura infantil. O conteúdo destes materiais será apresentado na sequência.

O LUGAR ONDE MORO: Geografia da FLONA de Tefé

Este livro texto sobre a geografia da FLONA foi produzido através de várias etapas.
Incialmente foi feita a organização do material e informações obtidos durante a fase de
mapeamento do uso da terra: mapas, entrevistas, imagens, depoimentos e vídeos.
69 // Novas
A partir disso, fez-se a avaliação do material, elencando-se quais seriam os temas para
compor os textos: a história, a natureza, o trabalho e a cultura dos ribeirinhos. A equipe
foi subdividida em grupos para proceder a escritura dos textos.
Num momento seguinte, após a elaboração dos textos, foi feita a apresentação e dis-
cussão coletiva dos mesmos. Esta produção tinha como seu objetivo central a construção
de um texto que permitisse ao professor e aos ribeirinhos ter acesso ao conhecimento sobre
a FLONA por meio de uma linguagem com a qual reconheciam seu mundo de vida.
Em reuniões com os comunitários, professores desta comunidade e de outras pró-
ximas, bem como gestores e pesquisadores foram feitas oficinas para avaliação, revisão e
complementação dos textos previamente elaborados.
Os textos foram avaliados em subgrupos, e depois se fez a leitura integral dos mesmos,
visando a possibilidade de compreensão da linguagem escrita por toda a comunidade en-
volvida, a correção das informações, a definição da estrutura e da sequência a ser adotada
no texto, bem como a avaliação e a complementação de imagens do lugar. (ROSSATO
et al., 2017, p. 4)

As sugestões de reformulação relativas à ordem dos textos e ao uso dos termos foram
fundamentais nessa etapa.
É costumeiro nos trabalhos de Geografia começar pelos aspectos da natureza, contudo
os ribeirinhos entendem que tudo começa com a história da ocupação da área pelas co-
munidades. Na sequência, deve ser apresentada a natureza que encontraram, a expressão
do trabalho como forma de relação e aprendizado das comunidades com a natureza e,
por fim, a manifestação do seu modo de viver, destacando aqueles momentos de encontro
e celebração. (ROSSATO et al., 2017, p. 5).

Com relação à escrita, contrário ao que o grupo estava pensando – ser feita em pri-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

meira pessoa dando voz aos ribeirinhos –, os comunitários, entendiam que, como foram
os pesquisadores que elaboraram os textos, isso deveria ser evidenciado na escrita e, por-
tanto, o texto seria escrito na terceira pessoa. Segundo eles, o fato de o livro ser escrito por
pessoas que se interessaram pela FLONA valoriza as comunidades, dá visibilidade à UC
e aos seus moradores.
Após as oficinas, os textos foram reformulados e, por meio de sucessivas leituras cole-
tivas, foram finalizados de maneira que refletissem a realidade local e respondessem pelo
objetivo de produção de conhecimento em diálogo com os ribeirinhos. Assim, o livro é
composto por quatro capítulos: I. Meu Lugar e Minhas Histórias; II. A Natureza que nos
Envolve; III. Os Ribeirinhos e suas Atividades; e IV. A Floresta é a Tua Casa. A figura 2
apresenta a capa do livro O lugar onde Moro – Geografia da FLONA de Tefé.
70 // Novas
Figura 2: Capa do Livro O lugar onde Moro – Geografia da FLONA de Tefé.

Meu Lugar e Minhas Histórias


No primeiro capítulo, é trabalhada a história das comunidades da FLONA de Tefé. É
abordada a origem dos primeiros moradores e a constituição das primeiras comunidades
a partir do Movimento de Educação de Base (MEB), cujo suporte se desencadeou através
da rádio local e da difusão através do rádio transistor (Figura 3). Em outro momento,
destaca a relação das comunidades com o processo de institucionalização da Unidade de
Conservação, destacando o papel do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA). No presente aborda o processo de construção do Plano de Manejo.

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Figura 3: Rádio de Educação Rural de Tefé. Fonte: Arquivos da Radio Rural, 2014.
Fonte: SUERTEGARAY et al, 2016, p. 30.
71 // Novas
A Natureza que nos Envolve
Este capítulo traz elementos que compõem os estudos da natureza nas aulas de
Geografia, contudo respeitando as toponímias e as lógicas de como os ribeirinhos enten-
dem os processos da dinâmica da natureza. Destaca a relação entre hidrografia e clima,
uma vez que a dinâmica hidrográfica é um importante elemento de influência na vida dos
comunitários. Apresenta as principais compartimentações de relevo, correlacionando-as
com flora e fauna. A título de exemplo, são trazidos aqui dois dos mapas elaborados: o
de cobertura vegetal e o mapa de relevo, que juntamente com a rede fluvial compõem os
elementos mais significativos da vida na floresta (Figuras 4 e 5).

Figura 4: mapa da Cobertura


Vegetal da FLONA de Tefé e
Entorno – AM.
Fonte: SUERTEGARAY et al,
2016, p. 68.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Figura 5: mapa das Unidades


do Relevo FLONA de Tefé e
Entorno.
Fonte: SUERTEGARAY et al,
2016, p. 69.
72 // Novas
Os Ribeirinhos e suas Atividades
O capítulo apresenta as atividades laborais dos ribeirinhos, por meio dos ciclos anual
da produção e de atividades diárias, com ênfase nas principais atividades desenvolvidas:
pesca, extrativismo e agricultura (roçado). Nestes gráficos é observável a diversidade dos
recursos que utilizam para sua sobrevivência, e os meses do ano em que esse recurso está
disponível ou é cultivado.

A Floresta é a Tua Casa


Neste último capítulo buscou-se enfatizar os modos de viver peculiares às comunidades
ribeirinhas – os povos da floresta e das águas. Desta vez, as atividades diárias extrativistas,
pesqueiras e agrícolas, são abordadas dentro daquilo que se compreende como práticas
tradicionais de uso. Também se destaca todo o processo artesanal de produção da farinha
de mandioca, realizado por muitas comunidades da FLONA. Por fim, são apresentadas as
principais atividades cotidianas que envolvem lazer e convívio social. E as práticas culturais
e festividades que ocorrem ao longo do ano.
As figuras 6 e 7 destacam a produção da farinha e a pesca. Peixe e farinha são a base
alimentar dos ribeirinhos.

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Figura 6: Produção da farinha: torra, Comunidade Deus é Pai.


Fonte: SUERTEGARAY et al, 2016, p. 80.
73 // Novas
Figura 7: pesca comercial com rede no Lago Tefé.
Fonte: SUERTEGARAY et al, 2016, p. 81.

Boyrá e o Menino

O segundo material é um livro de literatura infantil que trabalha com a temática


ambiental; aborda o desmatamento e a necessidade de preservação da floresta (Figura 8).
A narrativa apresentada no livro é ficcional, mas fruto de pesquisa e conhecimento
a respeito da realidade amazônica e de suas UCs. Foi pensado para compor o conjunto
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

de três produções planejadas para estimular o interesse e o conhecimento sobre a região.


Por isso, o material foi apresentado e discutido com os gestores da FLONA, que avalia-
ram o conteúdo em relação à UC, observando se estava adequado à realidade local e se
trazia questões pertinentes. Boyrá e o Menino parte da curiosidade sobre o peixe-boi,
animal importante no ambiente da floresta; do encantamento pelas escolas dentro das
comunidades ribeirinhas; e do desafio de viver na floresta sem degradá-la. O menino
representa todos os meninos e meninas que constroem a história destas comunidades,
preocupados com o futuro da floresta. Tanto o texto como as ilustrações passaram por
leitores críticos que fizeram contribuições de forma a torná-los mais próximos da reali-
dade dos ribeirinhos, fundamental para que os leitores se reconheçam se orgulhem dos
caminhos por eles construídos.
74 // Novas
Como já destacado, a inclusão de um livro de literatura infantil neste projeto é impor-
tante para formação de leitores, mas também como apoio ao letramento. Considerando que
o público das escolas da FLONA é constituído de crianças desde a educação infantil até os
anos finais do Ensino Fundamental, é importante que não apenas os adolescentes e adultos
desfrutem de material sobre o espaço onde vivem, mas também os leitores mais jovens.

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


Figura 8: livro Boyrá e o Menino, ed. Compasso Lugar-Cultura, 2016.

O Lugar Onde Moro – FLONA de Tefé: Práticas Pedagógicas em


Geografia
Após a elaboração dos livros “O Lugar onde Moro: Geografia da FLONA de Tefé” e
“Boyrá e o Menino”, iniciou-se a construção de propostas pedagógicas para serem desen-
volvidas pelos professores nas escolas da UC ou em outros espaços de educação popular.
Essas compuseram o terceiro volume “O Lugar onde Moro – FLONA de Tefé: práticas
pedagógicas em Geografia” (Figura 9).
75 // Novas
Figura 9: livro “O Lugar onde Moro – FLONA de Tefé:
práticas pedagógicas em Geografia”.

A cartografia como habilidade de representação do espaço geográfico


Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

No processo de mapeamento participativo elaborado em conjunto com os ribeirinhos


foram construídos diversos mapas representativos dos mais variados aspectos da FLONA
de Tefé, desde os constituintes naturais, aos de uso da terra. Considerando a importância
desse material e a necessidade de divulgação entre os ribeirinhos, o grupo definiu que as
habilidades de leitura do espaço e de mapas, de localização e de orientação eram impor-
tantes no contexto dos comunitários e, portanto, um dos conteúdos geográficos a serem
estimulados no livro seriam aqueles ligados à alfabetização cartográfica.
Como destaca Passini (1994), a alfabetização cartográfica pressupõe o domínio e apren-
dizagem da linguagem gráfica que se constitui de símbolos e significados. Contudo, a ênfase
não deve ser dada às convenções cartográficas, mas em criar condições para que o educando
76 // Novas
seja um leitor crítico de mapas e seja consciente ao mapear. Desta forma, a cartografia
torna-se um meio de tornar o educando um “mapeador ativo” e consciente das escolhas
subjetivas que foram tomadas no processo cartográfico (CASTROGIOVANNI, 2000).
Considerando a alfabetização cartográfica como um meio de construção da linguagem
cartográfica, a metodologia de ensino presente neste material didático segue a proposta de
Simielli (1996) apresentada na figura 10.

Figura 10: Proposta de Alfabetização Cartográfica adotada no material didático.


Fonte: Adaptado de Simielli, 1996.

Segundo Simielli (1994), no ensino de cartografia nas escolas pode-se trabalhar em dois
eixos, embora ocorram alguns procedimentos em paralelo. Um eixo se refere ao trabalho com

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


o produto cartográfico já elaborado, sendo o resultado do processo um “leitor crítico”, um
estudante que não usa o mapa simplesmente para localizar fenômenos. Já no segundo eixo, o
educando é um participante efetivo do processo, logo o resultado é o “mapeador consciente”.
Destaca-se que na proposta de Simielli (1996) essa constituição do “leitor crítico” e do
“mapeador consciente” por meio da alfabetização cartográfica decorre de um processo em
etapas que vai dos 6 aos 12 anos. Contudo, no contexto da FLONA de Tefé, onde a maioria
das escolas funciona com turmas multisseriadas, as atividades foram construídas em diferen-
tes graus de complexidade, e cabe ao professor decidir quais são mais adequadas aos alunos,
de acordo com sua faixa etária e nível de ensino. O livro se estrutura em uma sequência que
parte do mais simples e avança para o mais complexo, sendo que na mesma sala é possível
tanto trabalhar com símbolos elementares, quanto fazer leituras críticas dos mapas.
77 // Novas
Os conceitos geográficos como constituintes da análise geográfica

Sendo um material de Geografia, decidiu-se também que as unidades deveriam pro-


porcionar o estudo e a compreensão de conceitos que contemplam abordagens do espaço
geográfico, neste caso entendido como uno e múltiplo (SUERTEGARAY, 2001).
Para Suertegaray (2001), espaço geográfico constitui o conceito balizador da Geografia.
Este conceito apresenta ainda hoje variadas concepções. Na perspectiva do ensino de
Geografia, pode-se conceber que o espaço geográfico é o espaço construído pelas atividades
de homens e de mulheres ao longo da história. O trabalho humano imprime na superfície
natural do planeta Terra modificações importantíssimas, trabalho esse que sempre se utilizou
da natureza, daquilo que ela oferece para a existência humana e dos usos que a sociedade faz.
Para entender a análise geográfica, é importante compreender que os professores e
alunos, podem analisar o espaço geográfico através de diferentes conceitos, chamados ope-
racionais. Tais conceitos permitem focar o espaço geográfico sob diferentes perspectivas,
são eles: lugar, paisagem, natureza, ambiente, região e território.
O conceito de lugar é abordado na primeira unidade do livro “O lugar em que
vivemos”. Este expõe a construção de vínculos dos comunitários com o seu espaço
geográfico de vivência. Logo, o lugar é espaço de coexistência e expressa os significados
que os ribeirinhos atribuem a ele. Cabe complementar que na primeira unidade há o
trabalho com as primeiras noções de alfabetização cartográfica. Retoma-se a história de
ocupação do espaço da FLONA para, então, compreender os significados atribuídos
ao lugar de vida dos ribeirinhos e de suas comunidades. A título de exemplo de como
foi trabalhado, neste caso o conceito de lugar transcrevemos parte do sumário do livro
sobre as atividades pedagógicas.

Unidade I: O LUGAR EM QUE MORAMOS


Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

1. Eu e minha família
2. A nossa história
3. Todo mundo tem uma história
4. Objetos que representam a nossa história
5. Imagens e representações de objetos
6. A organização da nossa sala de aula
7. Orientando-se na sala de aula
8. Localização relativa e absoluta
9. Sistema de coordenadas geográficas
78 // Novas
O conceito de paisagem é central na segunda unidade de estudo “A paisagem que
construímos”. Este conceito permite compreender o conjunto de elementos que a compõe
– naturais ou sociais – e como esse conjunto se expressa na paisagem da floresta e das comu-
nidades. Como destaca Santos (1997), o mundo é um conjunto de possibilidades e a paisa-
gem, enquanto materialidade do espaço geográfico, é uma acumulação desigual de tempos.
Nesta unidade, se estudam os elementos que compõem a paisagem, bem como
os diversos tempos presentes na paisagem. Há um avanço no sentido de entender os
diversos elementos que estão presentes na paisagem das comunidades, enfatizando os
naturais e os construídos. A alfabetização cartográfica avança no sentido de compre-
ender as representações da paisagem através de imagens, mapas e maquetes, o que, na
perspectiva de Simielli (1996), é uma habilidade necessária para a constituição de um
“mapeador consciente”.
Como exemplo de atividades para o estudo da paisagem tem-se a seguinte proposição
(DE PAULA et al, 2016, p. 41-42):
Escolha uma fotografia da comunidade para trabalhar com a turma ou utilize as
imagens e desenhos produzidos pelos alunos nas atividades anteriores. A foto é uma re-
presentação da paisagem em um dado instante. As paisagens podem mudar com o tempo,
como vimos nas fotografias antigas ou do passado. Estas também, nos permitem entender
a comunidade no presente.
Conversa em roda
Solicite aos alunos, que apresentem para o grupo as fotos tiradas nas ultimas aulas, expli-
cando aos colegas oque quiseram representar. Mostre a fotografia escolhida por você e explore
os elementos ali presentes. Oriente este debate, fazendo aos estudantes as seguintes questões:
a) Quais são os elementos que aparecem nas fotografias?
b) Na análise de fotografias, podemos distinguir os elementos que estão na frente (pri-
meiro plano) daqueles que estão atrás (segundo plano). Quais estão no primeiro e no segundo

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


plano das suas fotografias?
Registro
Solicite aos alunos que escolham uma das fotografias trabalhadas anteriormente e realizem
as questões a seguir:
a) Faça uma descrição detalhada da paisagem da foto escolhida;
b) Informe os objetos que você observa nesta foto;
c) Classifique os elementos observados como naturais e construídos, de uso individual e
de uso coletivo;
d) Crie outras categorias para distinguir os objetos, como os usos que os comunitários
fazem, ou seja, para produzir alimentos, para abrigo, para deslocamento/transporte, para
lazer, etc;
79 // Novas
e) Você descreveu e analisou uma paisagem na fotografia. O que seria uma paisagem
na sua opinião?
f ) A sua casa e a sua escola fazem parte da paisagem da sua comunidade?
g) Como você explica a origem dessa paisagem?

Na unidade três “A natureza que nos envolve”, os elementos da natureza são estudados
com detalhe, uma vez que alguns já haviam sido identificados na análise da paisagem. São
enfatizados processos que independem da intencionalidade humana, como a dinâmica do
clima, do relevo, da hidrografia e da vegetação. Nesse momento, aprofundam-se as habi-
lidades da alfabetização cartográfica, pois as propostas vão além da construção de mapas,
incluem agora análises sobre mapas produzidos durante a elaboração do Plano de Manejo
da UC. A Figura 11 trazida como exemplo das atividades desta unidade corresponde a um
bloco diagrama elaborado para desenvolver a atividade indicada na sequência.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Figura 11: Bloco diagrama mostrando a vegetação da FLONA de Tefé. Fonte: De Paula et al, 2016, p. 69.

Possibilidades de Trabalho
Retomando
Retornar as atividades anteriores de clima, relevo, hidrografia e vegetação, para estabe-
lecer relações entre.
Desenho
Solicite um desenho da paisagem da FLONA em período de cheia. Para desenvolver essa
atividade, você precisará utilizar o bloco diagrama (Figura 12). Peça aos alunos que comparem
80 // Novas
esse desenho com o feito com o bloco diagrama e indiquem as diferenças consideradas impor-
tantes. Oriente-os, indagando: você observou que, num mesmo lugar, a paisagem muda de um
período para outro? Indique algumas diferenças entre o período de seca e o de cheia na FLONA
de Tefé. Antes de iniciar a descrição do bloco diagrama, retome os elementos da natureza que
compõem a paisagem da FLONA de Tefé, dialogando com os alunos de forma coletiva.
Registro
Após a descrição e comparação entre o bloco diagrama e o desenho elaborado pelos
estudantes, solicite que respondam no caderno:
a) Por que, durante o ano, existem dois períodos: um de cheia e outro de seca? Que
fenômeno produz essa diferença?
b) Os dias de cheia, e os dias de seca, na FLONA de Tefé, são diferentes para você?
Quais são essas diferenças?
c) Agora, com base na observação do bloco diagrama e de seu desenho, escreva um
texto sobre a FLONA de Tefé e sua paisagem.
d) Para concluir, escreva o que e uma paisagem.
Conversa em roda
Retome a discussão com os alunos ao final da atividade.
Faça uma síntese do conteúdo aprendido, complementando com as informações que
considerar relevante (DE PAULA et al., 2016, p. 67-68).

Na quarta unidade “O ambiente em que vivemos”, a ênfase está nas relações que os
ribeirinhos estabelecem com a natureza. Estas relações se expressam tanto no trabalho e em
atividades diárias (extrativismo, pesca, roçado, etc.), como nas normas a que estão sujeitos
por serem residentes de uma UC. Nesta unidade, também se faz uso do ciclo anual da
produção e do ciclo de atividades diárias para expressar os diversos usos que os comunitá-
rios fazem da natureza no espaço-tempo. Continua-se o processo de aprofundamento da

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


análise e da interpretação de mapas. A seguir, o registro de uma das atividades propostas
na unidade (DE PAULA et al, 2016, p. 78):
Registro
Solicite aos alunos a produção de uma narrativa ou de um poema sobre a produção
da farinha. Peça que leiam o texto para os colegas. Proponha a confecção de um varal
de poemas na sala de aula. Para isso, amarre uma corda, unindo dois cantos da sala e,
com fitas coloridas ou prendedores de roupa, prenda os textos na corda. Para o varal, as
folhas de papel podem ser recortadas em formas que se relacionem ao tema da poesia.

Na quinta unidade “A região norte e outros lugares”, o conceito de região é abordado


como espaço onde há uma certa homogeneidade de atividades econômicas, indicadores
81 // Novas
sociais, etc. Esta é uma abordagem que não está totalmente presente no primeiro livro,
mas a proposta dos pesquisadores é de que, com os conhecimentos acumulados sobre a
FLONA, os educandos ribeirinhos possam estabelecer relações da região onde estão inseri-
dos com outras regiões brasileiras. A compreensão das principais atividades da região norte
e a expressão destas na FLONA serve de tema problematizador sobre possíveis impactos
da vinda dessas atividades para a UC ou seu entorno. Dá-se seguimento à análise de mapas
que foram construídos durante a elaboração do Plano de Manejo, destacando, inclusive, o
zoneamento da unidade como uma concepção de regionalização interna. Como exemplo
de atividade tem-se um roteiro de entrevista (DE PAULA et al, 2016, p. 100):
Entrevista
Com o objetivo de conhecer a origem dos atuais moradores da FLONA, elabore, de ma-
neira coletiva, um roteiro de entrevista. Ele deverá ser dirigido, preferencialmente, as pessoas
mais idosas das comunidades e deve questionar as origens dos seus familiares (de onde vieram
e quando vieram), seus hábitos e trajetórias de vida até se estabelecerem na
FLONA. Todas as questões devem ser devidamente registradas no caderno. A reali-
zação da entrevista será indicada como tarefa de casa e retomada para a elaboração da
próxima atividade.

Na sexta unidade “Vivemos em um território”, analisa-se a constituição de espaços


onde prevalecem as relações de poder em diversas escalas. Destaca-se o território brasi-
leiro e sua forma de organização através de estados e de municípios. Aborda-se a noção
de limite como fundamental para designar territórios. Por fim, tratam-se de territórios e
territorialidades tradicionais, espaços de apropriação e uso pelos moradores locais. Esta
unidade, assim como a anterior, traz informações que vão além do livro “O Lugar onde
Moro: geografia da FLONA de Tefé”, mas parte dos conhecimentos da unidade para a
compreensão de conceitos mais amplos. Neste momento, os educandos já têm condições
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

de compreender mapas em diferentes escalas – do Brasil e da América Latina. Na sequên-


cia, apresenta-se uma das atividades propostas (DE PAULA et al, 2016, p. 135-136):
Entrevista
Convide um líder da comunidade para que os estudantes possam entrevistá-lo. Organize
previamente esta visita, fazendo o convite com antecedência e compondo, de forma coletiva,
o roteiro da entrevista. A seguir estão listadas algumas sugestões que podem orientar o roteiro.
a) Você, que vive na FLONA, poderia citar algumas normas ou sugestões de uso que
resultaram da criação da FLONA?
b) Quem criou essas normas?
c) Por que foram criadas?
d) Como funciona a gestão da FLONA? Qual o papel do Conselho?
82 // Novas
e) O Plano de Manejo e o documento que delimita e expõe as regras de uso do
território da FLONA. Como ele foi construído?
f ) Quais as principais regras do Plano de Manejo da FLONA de Tefé?
Registro
Retome as respostas das entrevistas e convide os estudantes a fazerem uma síntese
das respostas, através de frases, desenhos, colagens, etc. Esta produção poderá ser feita em
grupos de até 4 alunos.

Na sétima unidade “Boyrá e o Menino: leituras possíveis”, há proposições de atividades


para abordar o livro infantil. São apresentadas propostas de leitura e de interpretação do texto
e das imagens do livro para os educadores utilizarem em sala de aula. Destacam-se essas ativida-
des como fundamentais para a valorização dos modos de viver dos ribeirinhos pelos educandos
mais jovens. Como já mencionado, o menino de que trata o livro, poderia ser qualquer um
deles, e é o protagonista da história. A relação peculiar como a criança ribeirinha se relaciona
com a natureza é seu grande potencial para resolver a problemática apresentada no conto.
Para exemplificar esta sugestão, selecione uma imagem do livro, como a da página 7
(Figura 12).

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

Figura 12: Boyrá e o Menino de autoria de Maíra Suertegaray, ilustração de Carla Pilla,
editado pela Editora Compasso Lugar Cultura em 2015.

Auxilie os estudantes na observação, encaminhando algumas perguntas:


– O que e quem aparece nesta ilustração?
– Como vocês acham que ela foi feita?
– Que materiais foram utilizados para fazer esta ilustração?
83 // Novas
– Vocês perceberam que não aparecem os rostos das pessoas? Por quê?
Esses são apenas alguns exemplos de questões que podem ser formuladas para
explorar a observação da imagem. São perguntas que propiciam que sejam formuladas
inferências, permitindo uma leitura mais atenta e consciente, que possibilita o desenvol-
vimento de hipóteses explicativas. (DE PAULA et al, 2016, p. 141)

Por fim, a oitava unidade apresenta uma discussão sobre a avaliação das propostas con-
tidas no livro, destacando o conteúdo e as habilidades necessárias para o bom desempenho
na aprendizagem de Geografia.
Em cada unidade há uma série de temáticas que serão abordadas. Essas propostas de
“encontros” apresentam a temática específica a ser estudada e o objetivo desta. Na sequência
da proposta são expostas algumas questões norteadoras ou noções básicas.
O resultado deste projeto foi a elaboração, a editoração, a impressão, a divulgação e a
doação de 250 exemplares de cada um dos materiais produzidos para o acervo das biblio-
tecas das comunidades que compõem a FLONA. Os livros estão disponíveis para cópia no
endereço https://www.ufrgs.br/nega/producao/.

Algumas considerações sobre geografia o ensino e material didático

A produção desse conjunto de livros destinados ao ensino de Geografia na FLONA


de Tefé, permite uma reflexão sobre o que se propõe hoje no ensino da Geografia, em
particular no Brasil.
A Geografia como disciplina escolar oferece sua contribuição para que os alunos e
professores enriqueçam, na dimensão das espacialidades, suas representações sociais e seu
conhecimento sobre as múltiplas dimensões da realidade social, natural e histórica, enten-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

dendo melhor o mundo em seu processo ininterrupto de transformação (PONTUSCHKA


et al., 2009). Além disso, a valorização dos saberes dos estudantes e sua autoria são elementos
fundamentais nas prática pedagógicas mais atuais.
Antes, porém, cabe destacar que, no contexto das escolas da FLONA de Tefé, a maio-
ria das salas de aula são multisseriadas, o que dificulta a desenvolvimento de uma lógica
linear de conteúdo. As propostas apresentadas permitem ao professor selecionar e adaptar
os materiais e as práticas conforme as características da sua turma, incentivando a troca e
a colaboração entre estudantes em níveis cognitivos diferentes.
O material produzido abre espaço para a inserção de visões de mundo dos povos da flo-
resta, que até então não se reconheciam nos materiais didáticos de Geografia. Os educandos
ribeirinhos e suas comunidades verão no ensino de Geografia a expressão do lugar em que
84 // Novas
vivem, das suas vivências e das linguagens em diálogo com os conhecimentos geográficos
que são básicos e comuns em propostas elaboradas em território nacional.
Entre os conceitos abordados nos livros, há uma referência direta ao lugar, “O Lugar onde
Moro”. O livro de práticas pedagógicas de Geografia, expressa esta visão mais contemporâ-
nea da construção dos saberes geográficos, na medida em que enfatiza o contexto familiar,
comunitário, da escola e do trabalho como ponto de partida para as aprendizagens. Consiste
na valorização dos diferentes espaços geográficos vinculados às diferenças étnicas e sociais ao
propor uma análise a partir do conceito de lugar e do modo de viver dos povos da floresta. Isto
implica em reconhecer suas territorialidades e, assim, produzir conhecimentos e representa-
ções do espaço que servem como instrumento de lutas para a permanência em tais territórios.
Nos materiais produzidos, é revelado que as comunidades da FLONA, apesar de pare-
cerem isoladas, também estão sujeitas a grandes projetos econômicos e orientações interna-
cionais sob determinadas políticas, como as de proteção da natureza. Assim, reconhecendo
seu modo de viver e valorizando a cultura dos povos da floresta, os educandos ribeirinhos
se posicionam a partir do seu lugar no mundo. Valoriza-se nesse caso, uma das proposições
de ensino de Geografia que propõe a análise do espaço geográfico em diferentes escalas.
Estão presentes as escalas geográficas (local-regional-nacional-global), mas não há uma
hierarquização entre elas. As diversas escalas se manifestam na medida em que o lugar de
vida dos educandos é abordado. Assim, se compreende o município, o estado, a região e
o país, sempre em relação com a própria UC, onde estão as comunidades e suas diversas
territorialidades. A governança também é abordada em diversas escalas, havendo destaque
para os espaços de gestão comunitária e compartilhada no âmbito das comunidades.
Fotografias, mapas, esquemas, desenhos, imagens de satélites, gráficos ganham desta-
que, de modo que os educandos tenham contato com diversas formas de representação do
lugar onde moram. Esta forma de abordagem valoriza o uso de recursos didáticos diversos,
valorizando diferentes linguagens e gêneros textuais.

Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura


A cartografia é tomada como centro na análise das representações espaciais. Assim, no
material de práticas pedagógicas, as três primeiras unidades estão enfocadas no processo de
alfabetização cartográfica. Tendo desenvolvido essa habilidade, propõe-se a leitura crítica
de mapas e a produção consciente de mapas, maquetes, croquis etc.
Por fim, frisa-se o potencial desse material para uso em atividades interdisciplinares.
Os três volumes podem ser utilizados em conjunto com educadores de outras discipli-
nas. No caso do material de práticas pedagógicas em Geografia, cada encontro apresen-
ta, inclusive, a proposta de disciplinas que podem atuar conjuntamente na condução
das atividades.
85 // Novas
Conclusões

No caso desse projeto, percebe-se um importante passo do ponto de vista metodo-


lógico, com o desenvolvimento efetivo de uma pesquisa-ação. Houve uma demanda das
próprias comunidades da FLONA de Tefé, houve a coprodução dos materiais com os
comunitários, os resultados expressam uma Geografia científica feita com criatividade, e a
materialidade dos livros expressa a ação proposta.
Quanto aos materiais, cabe destacar o movimento em que os mesmos foram concebidos
e produzidos. Para refutar o convencional que não expressa os modos de viver dos ribeirinhos,
os pesquisadores tiveram que estar a todo o tempo abertos à possibilidade do novo. As ideias se
adequavam na medida em que o problema a ser enfrentado ficava mais claro. Inicialmente, a
ideia foi de produzir um atlas, mas os próprios professores expuseram a falta de conhecimento
e formação sobre a FLONA, então, o caminho se voltou para a produção do livro texto “O
lugar onde moro: Geografia da FLONA de Tefé”. Entendeu-se que esse livro texto atendia as
expectativas da Geografia do Ensino Fundamental II, então decidiu-se a produção do livro
conto “Boyrá e o Menino” para começar o trabalho de valorização do modo de viver ribeirinho
já com as crianças. Por fim, os próprios professores demandam sugestões de atividades que os
auxiliem na preparação das aulas, então, com base nos livros citados, foi produzido o livro de
atividades “O lugar onde moro – FLONA de Tefé: práticas pedagógicas em Geografia”.
Quanto ao ensino de Geografia, utilizando como base esses materiais, destaca-se a
consonância com debate atual no ensino de Geografia. A centralidade do estudo está no
lugar, valorizando as relações com a natureza, vivências e sociabilidades dos educandos
em suas comunidades. A proposta de análise é multiescalar, sempre correlacionando com
os conhecimentos construídos a partir do lugar de vida dos educandos. A proposta de
cartografia no ensino de Geografia dialoga com a proposição de alfabetização cartográfica,
presente nos materiais, para formar leitores críticos de mapas e mapeadores conscientes.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura

No presente o NEGA produz outro material que servirá de apoio às aulas, um atlas escolar.
Além disso, a pedido dos professores e gestores da FLONA, entre agosto e setembro
de 2017 foi realizado um curso de extensão para formação de professores que desenvolvem
suas atividades nas escolas da FLONA de Tefé e do seu entorno, nos municípios de Tefé
e de Alvarães. O curso, desenvolvido para propiciar a reflexão e a apropriação do material
produzido, foi ministrado por integrantes do NEGA-UFRGS e contou com apoio da
Secretaria de Educação dos municípios de Tefé e de Alvarães e do ICMBio. Foram mo-
mentos muito ricos, com troca de experiências, uma vez que vislumbrando os possíveis usos do
material, os docentes compartilhavam experiências práticas de sala de aula. Sobretudo, pode-
-se ver a dinâmica de abrir um horizonte para desenvolver atividades mais práticas e lúdicas.
(FONTANA et al., 2018, p. 173).
86 // Novas
A elaboração coletiva destes materiais e sua aplicação nos cursos de formação de pro-
fessores propiciam o que entendemos ser algo essencial no campo da educação: a criação
de espaços para valorização das comunidades, dando-lhes protagonismo e gerando espaços
críticos de reflexão sobre sua a realidade.

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