Explore Ebooks
Categories
Explore Audiobooks
Categories
Explore Magazines
Categories
Explore Documents
Categories
IberografIas
NOVAS FRONTEIRAS, OUTROS DIÁLOGOS:
PaIsageNs, PaTrIMÓNIos, CULTUra
Coordenação de
Rui Jacinto
IberografIas
35
Colecção Iberografias
Volume 35
Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
ancora.editora@ancora-editora.pt
www.ancora-editora.pt
www.facebook.com/ancoraeditora
O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e
opiniões neles expressas.
A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores.
Apoios:
Novas fronteiras, outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura 7
Rui Jacinto
PaIsageNs: (bIo)DIversIDaDe e IDeNTIDaDe
Rui Jacinto
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT)
Nesse artigo, nós vamos enfatizar o papel da geodiversidade e das mudanças climá-
ticas do Quaternário na explicação do paradigma da complexidade da biodiversidade.
A biodiversidade varia com as diferentes regiões ecológicas, sendo maior nas regiões tropicais
do que nos climas temperados. Um dos problemas centrais da Biologia é o da diferença
em diversidade entre os ecossistemas tropicais e temperados. Os estudos biogeográficos,
aliados à paleogeografia, paleoclimatologia, palinologia, pedologia etc., no que se refere ao
continente sul-americano, demonstram que os mecanismos básicos que deram origem à
complexa flora atual, não só são relativamente simples como recentes. Ao longo de todo o
Quaternário, até nossa época, um período de drásticas mudanças climáticas, alternando-se,
seguidamente, fases úmidas e fases secas com intensa atuação na distribuição da cobertura
vegetal, ou seja, retração das florestas nas fases secas, cedendo lugar para o crescimento de Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
formações vegetais abertas xerofíticas, e reexpansão das florestas nas fases úmidas. Durante
as fases secas, pequenas “ilhas de ambiente tropical” teriam subexistido onde condições
climáticas e topográficas eram favoráveis servindo de abrigo ou de “refúgio” para animais
de florestas. No estudo dos solos e na geomorfologia, são encontradas as evidências mais
confiáveis e incontrovertidas sobre as variações paleoclimáticas. A presença de linhas de
pedra (“stone lines”) interceptando horizontes de paleo-solos, principalmente em áreas de
interflúvio, terraços fluviais, pedimentos, crostas ferruginosos etc., indica períodos áridos
sob cobertura vegetal rala. Por outro lado, o espaço geográfico ocupado pelas formações
1
mmpassos86@gmail.com
11 // Novas
vegetais abertas, por ocasião do avanço das correntes frias e secas da última glaciação, pode
ser melhor compreendido, pelo menos no momento, pelos estudos da compartimentação
topográfica e pelos enclaves florísticos residuais.
A biodiversidade
A diversidade tropical
Um dos problemas centrais da Biologia, problema já claramente formulado no come-
ço do século xix e hoje ainda nem perto de solução, é o da diferença em diversidade entre
os ecossistemas tropicais e temperados. Os números variam de grupo para grupo, mas os
ecossistemas tropicais são, em todos os grupos, mais diversificados que os temperados,
12 // Novas
embora a biomassa de alguns destes (por exemplo, a floresta de sequoia, ou as florestas de
coníferas) seja comparável ou até maior que a das florestas equatoriais.
A mais antiga das explicações propostas para esse fato é que as comunidades tropicais
são velhas e estáveis, e assim tiveram mais tempo para evoluir. Essa hipótese já está descartada
pela paleoclimatologia.
A pesquisa de sistemática evolutiva nas regiões tropicais é dificultada exatamente pela
natureza do seu problema central: a biodiversidade.
No Brasil, temos ao alcance das mãos um dos processos mais importantes e ainda não
totalmente explicado da teoria evolutiva: a origem das faunas tropicais complexas.
A fauna e a flora das regiões tropicais, e especialmente das grandes florestas equatoriais,
são muito mais diversificadas que as das regiões temperadas, isto é, abrigam um maior nú-
mero de espécies, cada qual representada, via de regra, por um menor número de indivíduos.
Nas regiões temperadas há um número distintamente menor de espécies, mas as densidades
de população são muito maiores (DARLINGTON, 1957; IN: VANZOLINI, 1970).
Especialização Ecológica
De modo geral (excetuados os casos de adaptação a ambientes muito especiais),
a distribuição dos animais terrestres nos continentes é correlacionada com as grandes
formações vegetais, ou com a temperatura, ou com uma combinação de ambos os fatores.
Cada espécie explora, de uma maneira que lhe é própria, os recursos ambientais de sua
área de distribuição: espaço para viver, alimento, energia solar, locais de reprodução etc.
Esse conjunto de especializações constitui o nicho ecológico da espécie. Toda vez que duas
ou mais espécies exploram da mesma maneira um mesmo recurso ambiental que não exis-
ta em quantidade suficiente para todas, diz-se que estão em concorrência ou competição.
O resultado da concorrência continuada pode ser a sobrevivência de uma única espécie,
com a extinção das demais concorrentes (princípio da “exclusão competitiva”).
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Fragmentação do Território
A área ecologicamente favorável a uma espécie não permanece imutável no tempo. Ela
pode aumentar ou diminuir como um todo, ou ainda, fragmentar-se. A fragmentação é
causada por mudanças climáticas (glaciações pleistocênicas), eventos geológicos (orogenia,
subsidência etc.), ação antrópica (desmatamentos, lagos artificiais etc.)..., que determinam
o aparecimento de faixas de território, onde a vida da espécie é impossível, separando áreas
ainda favoráveis, onde ela sobrevive.
À uma faixa desfavorável, separando duas áreas onde a espécie se mantém, chama-se
uma barreira ecológica. Quando as barreiras são muito amplas e, paralelamente, as áreas
de sobrevivência relativamente muito pequenas, estas se dizem refúgios.
14 // Novas
Vejamos o raciocínio e a ilustração gráfica (Figura 1) que se presta para explicar a
especiação geográfica:
Figura 1. Representação diagramática das possíveis sequências de eventos no modelo de especiação geográfica.
(Extraído de VANZOLINI, 1970, p.8)
Especiação Geográfica
A importância das barreiras ecológicas reside em que interrompem o fluxo gênico entre
2
Do grego “syn” = junto; “patra”= pátria. Vivem juntas, tendo, portanto, a oportunidade de intercruzamento.
3
Do grego: “allos”= outro; “patra” = pátria. Espécies separadas geograficamaente.
16 // Novas
estudos com o objetivo de verificar as implicações do “isolamento geográfico” sobre
populações de determinada espécie subexistentes nessas “ilhas”.
É muito conhecido, de longa data, que a Amazônia comporta uma das biotas mais
diversificadas e mais complexas do mundo, porém, até o fim dos anos 1960, nada, ou
quase nada, se sabia sobre como se originou e de como é mantida essa complexidade.
Era considerado, até essa época, um paradoxo ecológico de difícil solução o fato de uma
imensa floresta, praticamente contínua e, aparentemente, homogênea e estável, comportar
espécies politípicas (ou seja, espécie subdividida em populações com peculiaridades taxo-
nômicas, habitando áreas geográficas distintas e exclusivas, mas que apresentam, entre si,
zonas de intergradação), espécies endêmicas, muitas espécies afins vivendo lado a lado etc.
Os estudos biogeográficos, aliados à paleogeografia, paleoclimatologia, palinologia,
pedologia etc., no que se refere ao continente sul-americano, que começaram a cristalizar-
-se há pouco mais de 40 anos, mostraram, por outro lado, que os mecanismos básicos que
deram origem à complexa fauna atual, não só são relativamente simples como recentes.
O geólogo e ornitologista J. HAFFER, em 1969, trabalhando com distribuição de
aves e lagartos, respectivamente, teceram um modelo geográfico para explicar essa diver-
sidade a nível de espécie (espécies politípicas, superespécies etc.), ou seja, o modelo de
refúgios climáticos durante o Quaternário, que nada mais é que o ortodoxo modelo de es-
peciação geográfica, usualmente aceito para explicar a maior parte dos casos de especiação,
ou multiplicação de espécies, em faunas terrestres.
Para entender o modelo, entretanto, é preciso conhecer um pouco da sua história e do
processo de sua elaboração.
HAFFER, em seus trabalhos de 1969, sugere que ao final do Terciário e início do
Quaternário (1-2 milhões de anos atrás), quando se deu a elevação final dos Andes e o
preenchimento da bacia sedimentar Amazônica, criaram-se condições úmidas propícias
para o crescimento da floresta, outrora, possivelmente restrita ao longo dos rios e às terras
dendo a etapa final da última grande era glacial, que começou há cerca de 100.000 anos
AP. Assim, ao contrário do que alguns autores supunham, os períodos de expansão da
aridez estão associados a condições glaciais e níveis de mares baixos, portanto frios e secos.
O rebaixamento do nível marinho condicionado pelos movimentos glácio-estáticos expôs
grande parte da plataforma continental (por exemplo, colocou as ilhas do litoral paulista
em contato com o continente). Os rios Amazônicos poderiam ser imaginados, em períodos
de extensa regressão marinha, como um grande “canyon”. Por outro lado, os períodos úmidos
correspondem aos períodos interglaciais com elevação do nível dos mares. As transgressões
marinhas interglaciais são particularmente importantes na calha do vale amazônico, cujo
leito (talvegue), em grande extensão, está abaixo do espelho marinho. O pico da última
transgressão marinha, que corresponde ao otimum climaticum da atual fase interglacial,
18 // Novas
ocorreu por volta de 4.000 - 6.000 anos atrás e atingiu entre 5 e 12 m, causando o afoga-
mento da foz de numerosas afluentes do rio Amazonas, como se vê ainda hoje (isso pode
ser muito bem estudado nos relatórios e mapas do projeto Radam).
No estudo dos solos e na geomorfologia, são encontradas as evidências mais confiáveis
e incontrovertidas sobre as variações paleoclimáticas. A presença de linhas de pedra (“stone
lines”) interceptando horizontes de páleo-solos, principalmente em áreas de interflúvio,
terraços fluviais, pedimentos, crostas ferruginosos etc., indica períodos áridos sob cober-
tura vegetal rala. Evidências dessa ordem foram encontradas em muitos lugares do espaço
geográfico sul-americano, desde a Amazônia central até os altiplanos do sul e na região
andina. Em vários trechos da rodovia Manaus-Itacoatiara encontram-se as “stone lines”.
Com a abertura de muitas estradas como a Transamazônica e a Perimetral Norte, entre
outras, estas evidências já se tornaram comuns.
Por outro lado, o espaço geográfico ocupado pelas formações vegetais abertas, por
ocasião do avanço das correntes frias e secas da última glaciação, pode ser melhor compre-
endido, pelo menos no momento, pelos estudos da compartimentação topográfica, pelos
enclaves florísticos residuais (p. ex., enclaves de cactáceas no Sul do Brasil, enclaves de
cerrados no interior da floresta amazônica, que indicam uma passada continuidade com
os cerrados do Brasil Central e os de Roraima e Venezuela etc.) e, de forma indireta, pelos
estudos biogeográficos.
Em 1977, AB’ SÁBER apresentou um mapa, como primeira tentativa, dos Domínios
Naturais da América do Sul há 13.000 - 18.000 anos, que foi, nesse mesmo ano, comple-
mentado, no que se refere às “ilhas de mata”, pelo trabalho de K. S. BROWN, JR.(Figura 2)
Tudo indica, de acordo com Ab’Sáber, que por ocasião dos períodos glaciais, especialmen-
te o último, a vegetação aberta xerofítica e não xerofítica predominava no vale amazônico.
As florestas úmidas mantiveram-se apenas nas galerias dos rios e em algumas encostas de
morros e pequenas serras e, em alguns lugares na periferia das terras altas que circundam o
Considerações Finais
Referências
AB, SÁBER. A. N; Espaços ocupados pela expansão dos climas secos na América do Sul,
por ocasião dos períodos glaciais quaternários. Paleoclimas (3).São Paulo. 1977.
HAFFER, J. Speciation in Amazonian Forest Birds – Science, nº 165, 1969
MAYR, E. Populações, Espécies e Evolução. EDUSP, 1977.
PASSOS, M.M. DOS – Biogeografia e Paisagem. Maringá: Edit. Massoni, 2003.
VANZOLINI, P.E. Zoologia Sistemática, Geografia e a Origem das Espécies. São Paulo:
IGEOG/USP, 1970.
Introdução
acrescentar, também, as mudanças culturais das sociedades que se assentaram nesses lugares.
Desta forma, o Eje Cafetero apresenta uma identificação cultural própria, que se man-
tem com a lavoura cafeeira, mesmo com as suas transformações e novas representações, a
partir de uma tradição familiar que se esperança de que a cada ano as condições possam
melhorar apesar das dificuldades no momento (DURÁN, 2017).
1
Transformações da paisagem e processos de territorialização no Norte Pioneiro Paranaense e no Eje Cafetero
Colombiano: o papel das organizações de pequenos cafeicultores na produção-comercialização de cafés
especiais e sua relação interescalar. Doutorado em Geografia, Unesp -Presidente Prudente, Brasil. Bolsa
FAPESP (Processo: 2017/ 03517-5).
23 // Novas
Destaca-se que a maior parte dos municípios da área em estudo conservam como ativi-
dade a produção cafeeira; assim, o habitat criado historicamente através de processos endó-
genos relacionados à construção social e cultural do território, o converteram pela UNESCO
em Paisagem Cultural Cafeeira. Assim, a declaratória da UNESCO permite estimular pro-
cessos de identidade coletiva e incluir novas funcionalidades nos espaços rurais, porém, isto
não deveria implicar uma visão idealizada da situação, sabendo que desde o começo esta
declaratória se alicerça sobre uma série de exigências difíceis de ser mantidas no tempo.
É importante lembrar que na década de 1990 começaram processos de produção de
cafés especiais na Colômbia, formação de organizações sociais e o fortalecimento do turismo
rural, porém, só na década de 2000 essas iniciativas apresentaram progressos significativos
por meio da consolidação das organizações e associações de cafeicultores.
O Eje Cafetero na Colômbia (Figura 1) tem se caracterizado por desenvolver uma intensa
produção cafeeira, porém tem passado por diferentes fases e processos de colonização e/ou as-
sentamentos. Primeiro, passou por um processo mais espontâneo, principalmente, a partir de
deslocamentos de pequenos produtores que procuravam novos lugares para morar. O nome
de Eje Cafetero foi dado a esta região pela forte presença dos cultivos de café, configurando
um processo cultural e histórico, especificamente, nos departamentos2 de Caldas, Quindío e
Risaralda3, localizados no centro-ocidente na cordilheira central e ocidental dos Andes que
antes de 19664, conformaram o departamento de El Gran Caldas, o qual se caracterizou pelos
sucessos obtidos na exportação do grão de café. A área que integra o Eje Cafetero compreende
12.906 km2, 48 municípios e, aproximadamente, 2.700.000 habitantes (DANE, 2010).
O elemento cultural neste tipo de agroecossistemas é visto por meio das expressões
locais de cada região, pois o café é produzido em várias partes do país, só que a sua confi-
guração está condicionada à estrutura de cada território e o grupo de pessoas que confor-
mam (produzem) o mesmo. E, como frisam os autores, Rodríguez e Duque (2009, p. 124,
tradução nossa): “[...] A cafeicultura de policultivo é uma expressão de formas engenhosas
Considerações
Agradecimentos
Referências bibliográficas
Um primeiro olhar
A primeira impressão sempre é que nos influencia a “gostar’ ou “não gostar”. Mas
quando nos lançamos à experiências novas, como é o caso de trilhar por um patrimônio
cultural, essas impressões ganham uma potencialidade ainda maior.
O momento inicial dessa nossa “viagem” pelo universo cultural de Alcântara ocorre
com o embarque no barco tradicional à vela, o mesmo que há muito tempo tem seu uso
O outro período, época seca, temos uma melhoria nessas condições de ventilação,
que também tem uma outra singularidade: os ventos alísios que sopram com muita força,
nos meses de agosto a novembro, justamente no tempo seco, que provoca intensas ondas,
conhecidas como “maresias” pela população local.
Essa paisagem do verão, período seco, e do inverno, período chuvoso, traz alterações
consideráveis para a frequência de turismo para o município de Alcântara e também in-
fluencia o cotidiano das pessoas do lugar. Outra questão que dificulta a travessia é que
o Cais da Praia Grande, local do transporte, quando a maré está baixa se torna inviável
acontecer o embarque no mesmo, sendo transferido para a Ponta de Areia, que provoca
muitos transtornos devido a deficiência da infraestrutura no local.
A travessia aqui relatada é a do período seco, onde o embarque segue sempre o horário
da maré, que também rege o tempo em Alcântara, pois tudo está interconectado com esse
movimento natural do oceano, neste caso, o Atlântico. Dependendo do vento e das condições
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Uma parcela dessa população foi atraída para a sede municipal, ocuparam áreas sem ne-
nhuma infraestrutura, áreas de vales e fazendo construções com o quê tinham a disposição,
muitas áreas de declividades altas e formando assim uma espécie de favelização. Almeida
(2006) escreve que devido a essa movimentação populacional começou a ocorrer a retirada
de pedras das ruínas antigas como matérias primas para construir as novas moradias.
Havendo assim a necessidade da intervenção do IPHAN para reverter a situação e
proteger a área tombada, em 2004, que passou a considerar o patrimônio de Alcântara
como de valor cultural, histórico, artístico, paisagístico, urbano e arqueológico.
A importância desse patrimônio está entrelaçada aos seus traços culturais marcantes e di-
versos, graças a sua gente e sua história. Para facilitar a compreensão de cultura, recorre-se a
definição de Santos (2006), que retrata duas concepções de cultura:
A primeira diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a existência social de um povo
ou nação ou então de grupos no interior de uma sociedade. A segunda refere-se mais
especificamente ao conhecimento, às ideias e crenças, assim como às maneiras como
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
eles existem na vida social. A maneira de pensar a vida e a sociedade na qual a natureza
e a realização individual são enfatizadas, e que tem por temas principais a ecologia, a
alimentação, o corpo, as relações pessoais e a espiritualidade. (SANTOS, 2006, p.24-25).
com vários casarios em estado de degradação (Foto 5), ruínas em acelerado processo de
desmoronamento, principalmente as que estão localizadas na rua da Amargura. Além
da presença de muitos resíduos sólidos em diversos pontos do roteiro histórico, e áreas
de erosão nas encostas que protegem o sítio histórico como um todo.
Destacamos que Alcântara possui inúmeros poços antigos no seu Núcleo Histórico,
com destaque para o Poço dos Frades que se encontra na área da Beirada. Além das Fontes
de Mirititiua e das Pedras. Esse potencial hídrico está sendo impactado por resíduos sólidos
e existe a necessidade de uma melhor atenção para esse recurso natural.
42 // Novas
Foto 5. Processo de degradação de casario do Núcleo Histórico
de Alcântara foi parte fundamental para a compreensão dos passos necessários para se
alcançar a conservação do Patrimônio Cultural Alcantarense mediante o diagnóstico das
fragilidades e potencialidades a serem consideradas para o envolvimento da comunidade.
Foram discutidas a importância da paisagem com a comunidade local, por meio de en-
trevistas e rodas de conversas, buscando dialogar sobre os problemas relacionados à fragilida-
de do patrimônio histórico representado pelo conjunto arquitetônico e paisagístico tombado
e também sobre a biodiversidade existente nas áreas adjacentes deste conjunto, suas potencia-
lidades como entender essa relação de modo a sensibilizá-los da necessidade de conservação.
As potencialidades paisagísticas são imensas, com diversos atrativos, com destaque para
a área da Beirada de Alcântara, onde existe a predominância do ecossistema de Manguezal.
Onde ao trilhar conhecemos diversos pescadores artesanais que nos disseram:
44 // Novas
“Pra mim significa vida. Porque se esse mangue for tirado, aonde é que o camarão
vive, da lama, tudo isso vai se acabar. Se cortarem o mangue, se tirarem o mangue, ehh,
tirar ele todo, e ficar só o lago, onde o caranguejo vai ficar”. (Sr.Mariano, 22/01/2016).
“O que mais nós fazemos é preservar porque ninguém corta, se você olhar
a gente não deixa cortar, em todo caso nós estamos dando uma grande força
para que não destruam, vejam que só tem um caminho que a gente passa, vocês já
viram? É mangue desde lado é mangue do outro”. (Sr.Cildinho 29/05/2016)
A percepção de seu Cildinho está relacionada à trilha utilizada pelos pescadores no coti-
diano para ir ao lugar da pesca, um caminho estreito entre o manguezal, acessos espontâneos
no meio do manguezal, como ele frisa bem “sem destruir, primando pela conservação”. Para
ele, a paisagem de Alcântara é um lugar único e é um grande defensor da sua conservação.
É importante também destacar que as formas tradicionais de pesca como o Curral, de-
finida pelo CEPENE (2003) como “armadilha fixa construída em geral por estaqueamen-
to, com objetivo de reter peixes no seu interior, vulgarmente conhecida como armadilha
fixa, curral de pesca, zangaria, camboa, tapagem”. Os pescadores criam cerco de varas do
próprio mangue com uma rede em volta para apreender os peixes, nas últimas atividades
de campo verificou-se a desativação do curral onde é possível encontrar somente resquícios
da estrutura, sendo substituído pela puçá de escora em que varas de mangues são fincadas
e rede (puçá) é prendida na estaca com a finalidade de apreender peixe e camarão.
Em relação a puçá de escora, na Beirada de Alcântara funciona em sistema comuni-
tário, com um filão de estacas fincadas e as puçás prendidas nas estacas, de várias pessoas
(filhos e compadres), e quando um não pode ir naquela maré avisa aos demais e assim se
ajudam mutuamente. Conforme relata o senhor Moacildes Pereira Pinheiro conhecido
popularmente como senhor Cildinho.
Os usuários desta área da Beirada de Alcântara possuem uma forma coletiva de pescar
para sua subsistência, para seu lazer, e esta questão é parte fundamental da elaboração de ações
voltadas para o turismo na área em questão, pois a população local precisa ter o seu modo
de vida respeitado e valorizado, é parte integrante desta paisagem cultural e a diferencia de
outros lugares. Reflete a singularidade do mesmo.
Esses são os mecanismos do sentir uma paisagem nem sempre estão postos à primeira visão,
ao olhar, e sim como destacam os autores, com um caráter subjetivo, invisível aos olhos, porém
45 // Novas
perceptíveis por meio de outros sentidos. Trata-se de compreender a paisagem que detém o
significado, tanto da abordagem física como humana, e que traz a percepção sobre as transfor-
mações que foram impressas neste ambiente, no decorrer dos tempos, e, ao serem analisadas,
pôde-se compreender os processos históricos culturais que se processaram em Alcântara.
O tempo vivenciado por essas pessoas, os passos que são repetidos por inúmeras gerações
(Foto 6), representam o sentir a força inerente a esse lugar, que antes de mais nada é o lugar
de suas relações, de suas memórias vivas. E em consideração à essas questões que estão além
do que se pode se ver, será proposto um roteiro ecocultural para a Beirada de Alcântara, sob
a ótica da paisagem cultural que envolve essa cidade Monumento em questão.
Um breve encerramento
Apresentamos neste trabalho uma parcela das atividades desenvolvidas com a comu-
nidade alcantarense, que tem participado de diversas ações e reflexões conjuntas com a
equipe da pesquisa relatada. Se passaram três anos de envolvimento, com alguns resultados
já alcançados.
Foram realizados dois cursos de extensão em parceira com o Instituto Federal de
Educação (IFMA) campus Alcântara, e Sítio da Praia do Barco, que resultou na consolidação
do roteiro ecocultural da Trilha da Beirada de Alcântara a ser implantado no próximo ano.
46 // Novas
No decurso do trabalho foram sinalizadas algumas leis vigentes que servem para a pro-
teção desta paisagem cultural em sua integridade, mas se faz urgente e necessário a mobi-
lização da sociedade civil para assegurar o cumprimento da proteção ambiental interligado
com o desenvolvimento sustentável não somente da economia, mas de toda a conjuntura
existente em equilíbrio. Em busca de qualidade de vida dos moradores em sintonia com a
natureza, como já se verifica com a prática dos comunitários através da pesca artesanal de
subsistência, o caminho trilhado, o lazer vivenciado na Beirada de Alcântara.
Mas há fragilidades, pela falta de infraestrutura devido às descontinuidades do proces-
so de gestão pública local e do próprio distanciamento articulatório da comunidade em
se organizarem coletivamente para ampliar e consolidar as políticas públicas de melhorias
sociais, ambientais e culturais de outra esfera de gestão como apoio do CLA, Centro de
Lançamentos de Foguetes da Aeronáutica, e também da Secretaria Estadual de Turismo.
Neste trilhar, conhecer a percepção ambiental dos moradores e usuários da Beirada nos
ajudou a perceber as motivações existentes e interagir com as pessoas do lugar, em uma
proposição para a conservação do manguezal utilizando a Trilha Educativa como instru-
mento de sensibilização, valorizando as práticas cotidianas existentes no local e fomentando
novas formas de apropriação do meio ambiente e da paisagem cultural.
Uma grande parte desta trilha ocorre no Manguezal da Beirada de Alcântara, e essa
área toda encontra-se situado na APA das Reentrâncias Maranhenses, o que implica a
existência de mecanismos legais de proteção desse ecossistema, porém os instrumentos de
gestão ambiental no estado do Maranhão ainda são pouco efetivos e essas áreas naturais
necessitam de uma atenção maior tanto em nível de governo estadual como por parte do
municípios onde elas ocorrem.
Com a efetivação deste roteiro ecocultural, e a ampliação da gestão compartilhada
entre os poderes públicos, instituições privadas em parceria com as forças vivas da comu-
nidade, esperamos ampliar o cuidado e a conservação desse potencial paisagístico, cultural
Thiago Romeu1
Universidade Federal de Campina Grande
Introdução
É comum nas discussões que envolvem a noção de paisagem que sua apreensão seja
reduzida exclusivamente ao papel do olhar. Mesmo em abordagens mais complexas como
a clássica definição de Carl Sauer (2010) da paisagem enquanto morfologia, em que o
papel das formas espaciais é ressaltado, a dimensão do olhar ainda é predominante. Por seu
turno, Cosgrove (1993 apud CORREIA, 2014) enfatiza a importância do passado para
entendê-la, mas outra vez, o olhar é o caminho metodológico. Besse (2014, p. 240 - 241),
explicando conceitualmente a categoria, mostra que o olhar pode se dar por ângulos varia-
dos e diferentes pontos de vista. Também afirma que numa abordagem mais tradicional,
a paisagem é sempre uma “realidade territorial”, o que dá ao aspecto visual da paisagem
sua principal característica, induzindo-nos à crença que é inexorável o papel do olhar
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
como forma predominante para se acessar a paisagem. Todavia, o autor afirma que esta
abordagem da categoria ultrapassa a dimensão física do visível, assumindo sim, conotações
políticas. A percepção da paisagem envolveu, na verdade, desde sempre uma “naturaliza-
ção” sobre a dimensão desigual das relações sociais, ocultando os processos históricos e
conflituosos de sua formação(p. 243). A presença cada vez mais cidadã de cegos ocupando
papeis sociais relevantes e a valorização de sujeitos outrora invisibilizados, cujas matrizes de
construção das paisagens são de natureza distinta das europeias, como o caso dos indígenas
latino-americanos, confrontam a perspectiva mais tradicional e fazem necessário encontrar
novas formas de reconhecimento das paisagens.
É fato, porém, que as paisagens tem contribuído, enquanto parte integrante dos
modos de vida e da constituição dos sujeitos no mundo, para forjar os modos de vida e
50 // Novas
o “ser-no-mundo” dos sujeitos. Portanto, é um desdobramento desta relação com a pai-
sagem um certo desejo de perenizá-las e mantê-las imutáveis, ignorando sua realidade
dinâmica e conflituosa.
[...] a paisagem teria sido desenhada e construída como uma relação imaginá-
ria com a natureza, uma relação graças à qual a aristocracia e a burguesia puderam
representar-se elas mesmas e o seu papel na sociedade. Esta percepção da paisagem
do mundo, com efeito, acompanhou o aparecimento e o desenvolvimento do capi-
talismo europeu, ou seja, a transformação do território simultaneamente em mer-
cadoria e em espetáculo para contemplar visualmente do exterior. A paisagem, mais
precisamente, teria servido ideologicamente para “naturalizar” a dimensão desigual
das relações sociais, e para ocultar a realidade dos processos históricos e conflituosos.
As ciências sociais contemporâneas acrescentaram várias características suplementa-
res a esta instituição burguesa que seria a cultura paisagística europeia. Sintetizo-as
esquematicamente: (1) é uma cultura que põe o olho e a visão no centro do processo
de percepção da paisagem, em detrimento dos outros sentidos, (2) é uma cultura
principalmente europeia, ocidental, branca, em detrimento dos outros modelos cul-
turais de relação com a paisagem, (3) é uma cultura essencialmente masculina, (4) a
representação da paisagem corresponde à implementação de um espaço de controle
de tipo militar, (5) as imagens de paisagem desempenharam um papel fundamental
na constituição dos imaginários nacionais, ou mesmo, nacionalistas, (6) por último,
a imagerie paisagística, sob todas as formas, sejam artísticas ou midiáticas, desempe-
nhou um papel decisivo na “naturalização” das empresas coloniais (BESSE, 2014,
p. 243, grifo meu).
Mas é desta noção excludente em grande medida que se desenrola a ideia de que as
paisagens são patrimônio e, por isso, devem ser preservadas. Na concepção adotada por
Perspectiva do topo da falésia, na Aldeia do Forte, onde se encontram os remanescentes do antigo forte portu-
guês, que dá nome à aldeia. Este ângulo constitui a imagem símbolo da cidade da Baía da Traição, mas só pode
ser captada a partir do aldeamento indígena (foto do autor, agosto de 2016).
2
O mapa 2 (no apêndice), mostra a delimitação da área urbana do município da Baía da Traição fora das
Terras Indígenas.
53 // Novas
Quem são os Potiguara e como constróem suas paisagens
litorâneos, são parte fundante do universo cosmológico e existencial destes indígenas. Estes
ambientes têm no elemento água especial importância. As suas terras, banhadas por rios e
pelo oceano, abrangem áreas de tabuleiros costeiros cobertos por mata atlântica, chegando
até a restinga e o manguezal, nas praias e estuários, construindo verdadeiros gêneros de vida.
Além disso, há Potiguaras que se reúnem em aldeamentos fora da Paraíba, especialmente no
Rio Grande do Norte e Ceará. Neste último, os indígenas habitam caatingas e adotam um
modo de vida sertanejo. Todavia, a ênfase aqui será dada aos Potiguara da Paraíba.
3
Maura Campanili. No mesmo lugar, desde o descobrimento. Disponível em: <http://www.socioambiental.
org/ website/parabolicas/edicoes/edicao58/potiguara.html>. Acessado em 27/01/2017.
4
Mapa 1, no apêndice.
5
José Glebson Vieira. Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil: Potiguara. Disponível em: <https://pib.
socioambiental.org/pt/povo/potiguara/print>. Acessado em: 28/01/2018.
54 // Novas
Até hoje a resistência parece um traço significativo, pois, a despeito de toda sorte de
dificuldades, entre as quais a miscigenação dos seus hábitos, valores e ritos às do sujeito
ocidental, mantiveram-se existindo e têm assegurado cotidianamente suas terras, suas prá-
ticas econômicas e suas tradições. Tudo isto torna ainda mais necessário o reconhecimento
do valor de suas paisagens culturais. A miscigenação dos hábitos ancestrais às da cultura
dos invasores foi uma estratégia necessária para se manterem existindo, o que lhes exigiu
muita resiliência frente aos poderes instituídos e impostos pelo Estado. No caso da religio-
sidade isto é bastante evidente. Muito de ritos ancestrais ainda são praticados e os(as) pajés
gozam de prestígio na sociedade potiguara, mas a prática do ritual do Toré é perceptível
a relevância de signos católicos nos cânticos, além do fato de muitos indígenas terem
um vínculo direto com comunidades eclesiásticas, tanto católicas quanto protestantes
(sobretudo pentecostais) que disputam influência religiosa nas aldeias.
Em meu entender, a isto se deve a força significativa dos valores ocidentais entre os
indígenas. No entanto, hoje há grande número de jovens líderes escolarizados e com sólida
base acadêmica (mestres e doutores) que têm valorizado sobremaneira os relatos dos idosos
(“troncos velhos”), têm formado associações e coletivos, retomado práticas e ritos ances-
trais, além da prática da língua tupi, valores que tem sido difundidos nas escolas indígenas.
Constato, no entanto, que o reconhecimento de suas paisagens parece não ter sido ainda
despertado de maneira ampla, embora hajam movimentos nesta direção.
Por isso, parece necessário, uma vez mais, enfatizar que paisagens não são apenas a
dimensão visual e ampla da espacialidade. O extenso e já antigo debate acerca do sentido
do termo nos legou um acúmulo que permite dizer que chama-se paisagem a percepção
espacial do resultado do trabalho humano (SANTOS, 1988), mas também o reflexo dos
sentidos captados espacialmente e vividos espiritualmente (BESSE, 2006). A paisagem,
portanto, também é resultado dos processos culturais que resultam de uma morfologia
particular (CORRÊA & ROSENDAHL, 1998) e este entendimento levou ao reconheci-
Foi a sobreposição deste pensamento bíblico totalizante aos ensinos dos gregos clás-
sicos sobre tempo e História que levou ao sentido de multiplicidade dos lugares numa
lógica de espaço universal (ibid. p. 26). Um real ganho de percepção para certo avanço
na dimensão da espacialidade, porém, um modo de conceber a realidade sensível do
mundo bastante unilateral que assentou-se numa postura autocentrada (e eurocentra-
da) de percepção das experiências sensoriais que o espaço proporciona. A paisagem,
portanto, nas concepções vigentes, nem sempre dialoga com modos não hegemônicos
e tradicionais de perceber a realidade sensível. Entendemos que os modos indígenas de
conceber diversas dimensões da realidade guardam muitas diferenças em relação aos
modos fundados em lógicas eurocêntricas, entre estes modos diferenciados, creio que a
paisagem é um deles.
Isto significa que mais que meros reprodutores de uma paisagem natural, ou de uma
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
humanização inscipiente, os Potiguara devem ser vistos como autores de suas paisagens,
fundadores, juntamente com os demais povos indígenas latinoamericanos, de uma manei-
ra muito particular de perceberem suas paisagens, tomando por fundamento a ideia de que
as paisagens constituem uma noção fundantes de nosso ser-estar no mundo.
A fisionomia das áreas pode ser um importantíssimo indicador do modo como as pai-
sagens são construídas, que derivam dos gêneros de vida que são desenvolvidos na constân-
cia da relação humanidade/natureza (LABLACHE, 2005, p. 114). Não seria estranho, mas
56 // Novas
consoante com nossa crítica de fundo à uma visão estritamente eurocentrada, enfatizar que
a noção de “gênero de vida” é demasiadamente fundada numa perspectiva pautada ainda
na ultrapassada geografia colonial, cujas análises se concentravam nas sociedades e regiões
“exóticas”, ainda a serem reveladas ao “mundo civilizado”, ou a serem niveladas segundo
a medida das “civilizações avançadas”, tendo na Europa sua mais elevado nível. Todavia,
genre de vie não pode ser uma elaboração descartada (mesmo porque os argumentos de
Lablache não foram superados), ao contrário, pode ser ainda muito útil ao se considerar as
espacialidades vivenciadas pelas populações tradicionais.
É assim, ao sabor dos acontecimentos sazonais ou dos movimentos que se
produzem no mundo animal, eles próprios condicionados pelas estações, que o
homem contrai hábitos de existência em vista dos quais ele se organiza, fabrica
instrumentos, cria estabelecimentos temporários ou fixos (Ibid., p. 117).
Indígenas coletando o marisco no maré vazante. Atividade que ocupa grande parte das famílias que residem nas
aldeias à beira do estuário (foto do autor, setembro de 2017).
58 // Novas
Apesar disso, a paisagem potiguara é marcada pela presença destes elementos que
conjugados na cotidianidade das 32 aldeias, acaba moldando um gênero de vida muito
específico e de relevância para a compreensão da dinâmica paisagística do litoral norte
paraibano. Em que pese o olhar do pesquisador de matriz científica eurocentrada, é pre-
ciso considerar que há sim uma singularidade na formação das paisagens com base neste
cotidiano específico. Tal cotidiano que molda o que, ao resgatar Lablache, evoco ser um
gênero de vida, serve de esteio da memória imaterial deste povo. Técnicas, hábitos, gostos
e pontos de vista passados oralmente de geração para geração, marcados pela sazonalidade
das marés, moldaram uma maneira única de viver, tal como a envergadura dos coqueiros
e das retorcidas árvores da restinga sobre as falésias foram moldadas segundo a direção dos
ventos raramente impetuosos.
não tem origem entre os Potiguara, tampouco entre os indígenas brasileiros. A questão do
bem viver tem sido defendida e proclamada há bastante tempo pelos indígenas andinos
Quéchuas e Aymaras, “tendo, apenas, clareza de que o ‘bem viver’ não se propõe a ser um
substituto do ‘desenvolvimento’ em sentido estrito. Não há nele a noção de progresso, de
etapas a serem vencidas, de parâmetros claros definidos” (CÂMARA, 2017, p. 256). É a
possibilidade de outros mundos que orienta esta noção, que atualmente
6
Utopia, segundo o dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa, é “qualquer descrição imaginativa de uma socie-
dade ideal, fundamentada em leis justas e [...] comprometida com o bem-estar da coletividade [...]” (HOUAISS,
p. 2817). O fato é que trata-se de um conceito historicamente resultante de um constructo intelectual europeu,
cuja episteme encontra fundamentos geográficos muito diferentes daqueles onde vem sendo aplicado.
60 // Novas
[...] sublinha que as fontes para identificar modos de vida alternativos vêm dos
povos indígenas originários: culturas nascidas com base na relação ancestral com os
ciclos da Natureza, por meio de práticas agropecuárias ou de coleta, de alguma ma-
neira agrocêntricas. Da vida rural desses povos são extraídas as fontes principais para
pensar concretamente o Bem Viver (IBAÑEZ, 2016, p. 322).
Diante desta posição, assumir o Bem Viver como um devir é algo que não parece
estranho aos modos de vida potiguara, convergindo para a hipótese aqui em realce que
é a de que atualmente suas paisagens requerem valorização não para as finalidades de des-
-envolvimento econômico, mas para o reconhecimento do pleno envolvimento do povo
com suas paisagens, assumindo autonomia sobre o próprio futuro.
Uma perspectiva de leitura da paisagem desta maneira, pressupõe a superação da cos-
movisão ocidental, que é, antes, capitalista, em benefício de uma visão comunitária. Esta
abordagem se contrapõe à lógica do desenvolvimento que, nas leituras da paisagem são
evidenciadas a partir dos pressupostos de sua patrimonialização, que, em última análise,
guardam as intenções de consumo da paisagem como artifício de manutenção da lógica
espacializada do mercado. Uma paisagem para o bem-viver valoriza o diálogo com senti-
dos de mundo dos Potiguara na espera da construção de uma realidade na qual a paisagem
sirva a autonomia e emancipação deste povo.
Referências
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: Uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de
Tadeu Breda. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016.
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
MAPA 2
Introdução
1
Este trabalho é fruto do projeto intitulado “Saberes e Fazeres Geográficos da FLONA de Tefé/AM: condi-
cionantes para o fortalecimento territorial” em desenvolvimento pelo NEGA/UFRGS.
65 // Novas
Figura 1: Localização da Floresta Nacional de Tefé, Amazonas.
No SNUC – artigo 17 – uma Floresta Nacional é definida como: “uma área com cober-
tura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo
sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração
sustentável de florestas nativas”. (BRASIL. Lei no 9.985, 18 de julho de 2000).
As FLONAS são estabelecidas com o objetivo de promover um manejo múltiplo e sus-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Moraes (2016), em relação aos problemas levantados pelos ribeirinhos, destaca as con-
dições precárias de moradia, a elevada incidência de malária, as condições precárias em re-
lação à educação, à saúde e ao saneamento. Evidencia-se, também, uma baixa organização
social e comunitária com presença de conflitos entre pescadores e ribeirinhos por questões
relativas a pesca e áreas de pesqueiro.
Foi com o prosseguimento da gestão pelo ICMBio e devido à necessidade de elabora-
ção de um Plano de Manejo que foi desenvolvido, como um dos requisitos, o mapeamento
do uso da Terra, elaborado de forma participativa. É deste processo que deriva esta ativi-
dade, direcionada à educação e à produção de material didático, solicitação esta advinda
dos professores e ribeirinhos durante as oficinas de mapeamento e de elaboração do plano
de manejo iniciado em 2012.
Este texto, portanto, consiste numa sistematização do material produzido e se apoia em
A metodologia de ação
Esta ação está também referendada em Denzin et. al. (2006, p.102) para ele, “a pesquisa-
-ação concentra-se no contexto, seu objetivo é resolver problemas da vida real em seu contexto”.
O contexto no qual se trabalhou corresponde aos anseios da própria comunidade, ribeiri-
nhos e professores que solicitaram aos pesquisadores materiais didáticos para que melhor
pudessem exercer suas atividades uma vez que muitos deles são professores originários de
outros lugares, por vezes de áreas urbanas.
Como já mencionado, ao longo desta atividade, foram produzidos três livros – sobre
a Geografia da Floresta Nacional, um caderno de atividades dirigidas aos professores e um
livro de literatura infantil. O conteúdo destes materiais será apresentado na sequência.
Este livro texto sobre a geografia da FLONA foi produzido através de várias etapas.
Incialmente foi feita a organização do material e informações obtidos durante a fase de
mapeamento do uso da terra: mapas, entrevistas, imagens, depoimentos e vídeos.
69 // Novas
A partir disso, fez-se a avaliação do material, elencando-se quais seriam os temas para
compor os textos: a história, a natureza, o trabalho e a cultura dos ribeirinhos. A equipe
foi subdividida em grupos para proceder a escritura dos textos.
Num momento seguinte, após a elaboração dos textos, foi feita a apresentação e dis-
cussão coletiva dos mesmos. Esta produção tinha como seu objetivo central a construção
de um texto que permitisse ao professor e aos ribeirinhos ter acesso ao conhecimento sobre
a FLONA por meio de uma linguagem com a qual reconheciam seu mundo de vida.
Em reuniões com os comunitários, professores desta comunidade e de outras pró-
ximas, bem como gestores e pesquisadores foram feitas oficinas para avaliação, revisão e
complementação dos textos previamente elaborados.
Os textos foram avaliados em subgrupos, e depois se fez a leitura integral dos mesmos,
visando a possibilidade de compreensão da linguagem escrita por toda a comunidade en-
volvida, a correção das informações, a definição da estrutura e da sequência a ser adotada
no texto, bem como a avaliação e a complementação de imagens do lugar. (ROSSATO
et al., 2017, p. 4)
As sugestões de reformulação relativas à ordem dos textos e ao uso dos termos foram
fundamentais nessa etapa.
É costumeiro nos trabalhos de Geografia começar pelos aspectos da natureza, contudo
os ribeirinhos entendem que tudo começa com a história da ocupação da área pelas co-
munidades. Na sequência, deve ser apresentada a natureza que encontraram, a expressão
do trabalho como forma de relação e aprendizado das comunidades com a natureza e,
por fim, a manifestação do seu modo de viver, destacando aqueles momentos de encontro
e celebração. (ROSSATO et al., 2017, p. 5).
Com relação à escrita, contrário ao que o grupo estava pensando – ser feita em pri-
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
meira pessoa dando voz aos ribeirinhos –, os comunitários, entendiam que, como foram
os pesquisadores que elaboraram os textos, isso deveria ser evidenciado na escrita e, por-
tanto, o texto seria escrito na terceira pessoa. Segundo eles, o fato de o livro ser escrito por
pessoas que se interessaram pela FLONA valoriza as comunidades, dá visibilidade à UC
e aos seus moradores.
Após as oficinas, os textos foram reformulados e, por meio de sucessivas leituras cole-
tivas, foram finalizados de maneira que refletissem a realidade local e respondessem pelo
objetivo de produção de conhecimento em diálogo com os ribeirinhos. Assim, o livro é
composto por quatro capítulos: I. Meu Lugar e Minhas Histórias; II. A Natureza que nos
Envolve; III. Os Ribeirinhos e suas Atividades; e IV. A Floresta é a Tua Casa. A figura 2
apresenta a capa do livro O lugar onde Moro – Geografia da FLONA de Tefé.
70 // Novas
Figura 2: Capa do Livro O lugar onde Moro – Geografia da FLONA de Tefé.
Figura 3: Rádio de Educação Rural de Tefé. Fonte: Arquivos da Radio Rural, 2014.
Fonte: SUERTEGARAY et al, 2016, p. 30.
71 // Novas
A Natureza que nos Envolve
Este capítulo traz elementos que compõem os estudos da natureza nas aulas de
Geografia, contudo respeitando as toponímias e as lógicas de como os ribeirinhos enten-
dem os processos da dinâmica da natureza. Destaca a relação entre hidrografia e clima,
uma vez que a dinâmica hidrográfica é um importante elemento de influência na vida dos
comunitários. Apresenta as principais compartimentações de relevo, correlacionando-as
com flora e fauna. A título de exemplo, são trazidos aqui dois dos mapas elaborados: o
de cobertura vegetal e o mapa de relevo, que juntamente com a rede fluvial compõem os
elementos mais significativos da vida na floresta (Figuras 4 e 5).
Boyrá e o Menino
Segundo Simielli (1994), no ensino de cartografia nas escolas pode-se trabalhar em dois
eixos, embora ocorram alguns procedimentos em paralelo. Um eixo se refere ao trabalho com
1. Eu e minha família
2. A nossa história
3. Todo mundo tem uma história
4. Objetos que representam a nossa história
5. Imagens e representações de objetos
6. A organização da nossa sala de aula
7. Orientando-se na sala de aula
8. Localização relativa e absoluta
9. Sistema de coordenadas geográficas
78 // Novas
O conceito de paisagem é central na segunda unidade de estudo “A paisagem que
construímos”. Este conceito permite compreender o conjunto de elementos que a compõe
– naturais ou sociais – e como esse conjunto se expressa na paisagem da floresta e das comu-
nidades. Como destaca Santos (1997), o mundo é um conjunto de possibilidades e a paisa-
gem, enquanto materialidade do espaço geográfico, é uma acumulação desigual de tempos.
Nesta unidade, se estudam os elementos que compõem a paisagem, bem como
os diversos tempos presentes na paisagem. Há um avanço no sentido de entender os
diversos elementos que estão presentes na paisagem das comunidades, enfatizando os
naturais e os construídos. A alfabetização cartográfica avança no sentido de compre-
ender as representações da paisagem através de imagens, mapas e maquetes, o que, na
perspectiva de Simielli (1996), é uma habilidade necessária para a constituição de um
“mapeador consciente”.
Como exemplo de atividades para o estudo da paisagem tem-se a seguinte proposição
(DE PAULA et al, 2016, p. 41-42):
Escolha uma fotografia da comunidade para trabalhar com a turma ou utilize as
imagens e desenhos produzidos pelos alunos nas atividades anteriores. A foto é uma re-
presentação da paisagem em um dado instante. As paisagens podem mudar com o tempo,
como vimos nas fotografias antigas ou do passado. Estas também, nos permitem entender
a comunidade no presente.
Conversa em roda
Solicite aos alunos, que apresentem para o grupo as fotos tiradas nas ultimas aulas, expli-
cando aos colegas oque quiseram representar. Mostre a fotografia escolhida por você e explore
os elementos ali presentes. Oriente este debate, fazendo aos estudantes as seguintes questões:
a) Quais são os elementos que aparecem nas fotografias?
b) Na análise de fotografias, podemos distinguir os elementos que estão na frente (pri-
meiro plano) daqueles que estão atrás (segundo plano). Quais estão no primeiro e no segundo
Na unidade três “A natureza que nos envolve”, os elementos da natureza são estudados
com detalhe, uma vez que alguns já haviam sido identificados na análise da paisagem. São
enfatizados processos que independem da intencionalidade humana, como a dinâmica do
clima, do relevo, da hidrografia e da vegetação. Nesse momento, aprofundam-se as habi-
lidades da alfabetização cartográfica, pois as propostas vão além da construção de mapas,
incluem agora análises sobre mapas produzidos durante a elaboração do Plano de Manejo
da UC. A Figura 11 trazida como exemplo das atividades desta unidade corresponde a um
bloco diagrama elaborado para desenvolver a atividade indicada na sequência.
Fronteiras, Outros Diálogos: Paisagens, Patrimónios, Cultura
Figura 11: Bloco diagrama mostrando a vegetação da FLONA de Tefé. Fonte: De Paula et al, 2016, p. 69.
Possibilidades de Trabalho
Retomando
Retornar as atividades anteriores de clima, relevo, hidrografia e vegetação, para estabe-
lecer relações entre.
Desenho
Solicite um desenho da paisagem da FLONA em período de cheia. Para desenvolver essa
atividade, você precisará utilizar o bloco diagrama (Figura 12). Peça aos alunos que comparem
80 // Novas
esse desenho com o feito com o bloco diagrama e indiquem as diferenças consideradas impor-
tantes. Oriente-os, indagando: você observou que, num mesmo lugar, a paisagem muda de um
período para outro? Indique algumas diferenças entre o período de seca e o de cheia na FLONA
de Tefé. Antes de iniciar a descrição do bloco diagrama, retome os elementos da natureza que
compõem a paisagem da FLONA de Tefé, dialogando com os alunos de forma coletiva.
Registro
Após a descrição e comparação entre o bloco diagrama e o desenho elaborado pelos
estudantes, solicite que respondam no caderno:
a) Por que, durante o ano, existem dois períodos: um de cheia e outro de seca? Que
fenômeno produz essa diferença?
b) Os dias de cheia, e os dias de seca, na FLONA de Tefé, são diferentes para você?
Quais são essas diferenças?
c) Agora, com base na observação do bloco diagrama e de seu desenho, escreva um
texto sobre a FLONA de Tefé e sua paisagem.
d) Para concluir, escreva o que e uma paisagem.
Conversa em roda
Retome a discussão com os alunos ao final da atividade.
Faça uma síntese do conteúdo aprendido, complementando com as informações que
considerar relevante (DE PAULA et al., 2016, p. 67-68).
Na quarta unidade “O ambiente em que vivemos”, a ênfase está nas relações que os
ribeirinhos estabelecem com a natureza. Estas relações se expressam tanto no trabalho e em
atividades diárias (extrativismo, pesca, roçado, etc.), como nas normas a que estão sujeitos
por serem residentes de uma UC. Nesta unidade, também se faz uso do ciclo anual da
produção e do ciclo de atividades diárias para expressar os diversos usos que os comunitá-
rios fazem da natureza no espaço-tempo. Continua-se o processo de aprofundamento da
Figura 12: Boyrá e o Menino de autoria de Maíra Suertegaray, ilustração de Carla Pilla,
editado pela Editora Compasso Lugar Cultura em 2015.
Por fim, a oitava unidade apresenta uma discussão sobre a avaliação das propostas con-
tidas no livro, destacando o conteúdo e as habilidades necessárias para o bom desempenho
na aprendizagem de Geografia.
Em cada unidade há uma série de temáticas que serão abordadas. Essas propostas de
“encontros” apresentam a temática específica a ser estudada e o objetivo desta. Na sequência
da proposta são expostas algumas questões norteadoras ou noções básicas.
O resultado deste projeto foi a elaboração, a editoração, a impressão, a divulgação e a
doação de 250 exemplares de cada um dos materiais produzidos para o acervo das biblio-
tecas das comunidades que compõem a FLONA. Os livros estão disponíveis para cópia no
endereço https://www.ufrgs.br/nega/producao/.
No presente o NEGA produz outro material que servirá de apoio às aulas, um atlas escolar.
Além disso, a pedido dos professores e gestores da FLONA, entre agosto e setembro
de 2017 foi realizado um curso de extensão para formação de professores que desenvolvem
suas atividades nas escolas da FLONA de Tefé e do seu entorno, nos municípios de Tefé
e de Alvarães. O curso, desenvolvido para propiciar a reflexão e a apropriação do material
produzido, foi ministrado por integrantes do NEGA-UFRGS e contou com apoio da
Secretaria de Educação dos municípios de Tefé e de Alvarães e do ICMBio. Foram mo-
mentos muito ricos, com troca de experiências, uma vez que vislumbrando os possíveis usos do
material, os docentes compartilhavam experiências práticas de sala de aula. Sobretudo, pode-
-se ver a dinâmica de abrir um horizonte para desenvolver atividades mais práticas e lúdicas.
(FONTANA et al., 2018, p. 173).
86 // Novas
A elaboração coletiva destes materiais e sua aplicação nos cursos de formação de pro-
fessores propiciam o que entendemos ser algo essencial no campo da educação: a criação
de espaços para valorização das comunidades, dando-lhes protagonismo e gerando espaços
críticos de reflexão sobre sua a realidade.
Referências