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Para Will, o resto daquela tarde não estava transcorrendo no mundo real, mas sim
nos confins da sua mente. Enquanto não chegava a noite, quando tinha marcado de
se reunir com o grupo da sala, ficou deitado vendo as fotos privadas do Idlegram de
Alice. Aquilo só piorou sua situação. Em um primeiro momento, confirmou o que já
sabia, que a menina era bonita de verdade, e ficou excitado ao ver certas fotos
provocativas, típicas dessas redes sociais que requeriam convites ou chaves. Mas,
quando a euforia passou, percebeu o quão baixo era o que estava fazendo e o quão
insignificante estava sendo sua vida desde que perdeu a companhia de seus pais.
O relógio marcava 18h, meia hora antes do combinado para a primeira reunião dos
grupos do trabalho de Física. Will vestiu-se como se aquela ocasião demandasse a
maior formalidade. Para ele, era mesmo um momento único. A ideia de sair com
pessoas que não são o seu tio, Chester, Hector ou Stanley o despertou muita
ansiedade e um embrulho no estômago, mas também a vontade de provar algo, de
tentar ser o que ele não era. Alguém que pudesse conversar sobre coisas normais com
pessoas normais. Saiu do quarto e passou um tempo admirando a sala deserta. Seu
tio havia ido trabalhar. Quando aproximou-se da porta de casa foi que se deu conta.
Mãe, pai… dessa vez eu vou ter que me arriscar. Vou sair à noite sozinho. O mundo
começou a cobrar que eu tome jeito. Sei que disseram para eu evitar fazer isso,
porque era perigoso. Não dar chance ao azar. Ficar seguro. Evitar conflitos.
Principalmente você, pai, depois daquilo.
Sempre que Will decidia fazer algo que fugisse da sua rotina de ir à escola de carro,
conversar com os mesmos amigos, comer o mesmo lanche, voltar pra casa, conversar
com seu tio, entrar no quarto, estudar, stalkear meninas online e ir dormir, ele se
lembrava da noite em que se despediu de sua mãe.
Fazia muito frio em toda a Londres de 15 de Abril de 2025. Will, seu pai e Elizabeth,
sua mãe, caminhavam entre grandes construções divertidas, luzes de todas as cores
refletiam nos óculos de Elizabeth. Estavam no parque de diversões Woo-Loop,
aproveitando a viagem que decidiram fazer durante os dias de folga de Albert. Will
não conseguia acompanhar o ritmo dos pais, sempre fazia umas pausas para olhar
cada nova atração, extasiado. Daquela vez, estava admirando o Uranus, uma
estrutura formada pela base e uma palheta que ficava rodando na horizontal, com
dois grandes círculos nas laterais que comportavam as cabines.
— Will, vamos, desse jeito não vai poder brincar em nada — disse Elizabeth, puxando
o menino de uma de suas paradinhas tradicionais pelo braço esquerdo.
Era uma mulher “de alta classe”, como consideravam os amigos de Albert. Os cabelos
alcançavam a cintura fina, confundindo-se com o vestido negro daquele dia. Quando
fora de casa, sempre usava os mais belos vestidos. “Você está de tirar o fôlego e o
resto do ar do planeta!”, Albert dizia pra ela sempre que estavam se arrumando para
alguma ocasião.
Will fez uma cara emburrada e Elizabeth encarou ele com seus olhos verdes e
brilhantes.
— Que foi?
— Você vai me deixar brincar só na mini-pista, no carrossel, nessas coisas que não
tem graça — disse, fazendo o bico de criança, mas mantendo o olhar firme — Então,
acho que é bom só olhar.
Elizabeth sorriu e se abaixou um pouco para falar cara a cara com o pequeno Will.
— Quando eu não precisar mais ficar nessa posição pra falar com você, aí, meu
amiguinho, você pode até pegar uma carona em um foguete e ir pro céu.
Will caiu no riso. Sempre achou sua mãe muito engraçada, e nunca conseguia ficar
emburrado de verdade por causa do jeito que ela brincava com ele. Correu em
direção ao pai, que estava um pouco a frente, mexendo no celular.
— Pai, pede pra mamãe brincar comigo na montanha-russa pequena — pediu Will,
sorrindo e com um olhar esperançoso.
Albert teve que inclinar a cabeça pra enxergar o garoto, de tão alto que era. Olhou
sorrindo para Will, com seus cabelos negros encaracolados e óculos circulares fora de
moda.
— Pede você, filho. Tá com vergonha? Ela não vai ficar com raiva — incentivou,
acariciando a cabeça de Will.
Will virou-se e encontrou os olhos de Elizabeth.
— Vamos, mãe? Não é dos brinquedos menores, mas eu já tenho 10 anos então posso
entrar com acompanhante — convidou, novamente com o olhar brilhante de
esperança e um sorriso meio envergonhado.
— Esse é um desafio e tanto. Seu pai sabe o quanto eu não me dou bem com essas
coisas.
— Eu insisto!! — exclamou Will, repetindo uma expressão que sempre ouvia no
desenho “A Fera e a Encrenqueira”.
— Ah, se você insiste… — respondeu ela, encarnando a “Fera”.
Os três caminharam a uma velocidade maior, já que Will estava agora ansioso e era o
condutor energético do casal. Logo chegaram ao outro lado do parque, onde podiam
vislumbrar a Midway Rollercoaster.
— É… maior do que eu pensei — murmurou Will, presenciando sua aparente
coragem ser esmagada pela realidade. Estava agora mordendo os lábios, com um
olhar receoso direcionado à mãe.
— Ué, não era o homenzão? — perguntou Elizabeth, sorrindo.
— Sou um homenzinho — corrigiu — Vamos!! — exclamou, fazendo desaparecer o
temor no seu rosto, mas mantendo ainda o medo latente.
A fila da montanha-russa estava pequena. Todas as outras atrações daquele parque
eram muito disputadas e requeriam uns bons minutos espera. Albert estranhou, mas,
pragmaticamente, ficou contente por não ter de esperar.
Era uma atração simples, de cor roxa, sem ser desesperadoramente alta e sem
looping, comportando o sistema de carrinhos para quatro pessoas. Um projeto com
apenas duas grandes decidas e três intermediárias. Começava em um formato quase
perfeito de V ao contrário, seguida por um caminho circular estacionado numa
mesma altura e concluindo com uma subida, pouco menor que a primeira, e uma
descida menos íngreme.
Um minuto depois, chegou a vez de Will e sua mãe. Os dois subiram na rampa
metálica e encontraram o preparador do passeio.
— Bom dia, o próximo carrinho é o de vocês. Os brinquedos de médio porte desse
lado do parque ainda funcionam com o sistema de cintos de segurança. Façam que
nem no carro de vocês. E moça, estique um pouco o braço pra proteger o garoto —
recomendou roboticamente o funcionário, de boné pra trás e com um cigarro na
boca, olhando para o espaço.
Elizabeth confirmou com o rosto e sentou nas cadeiras da frente, junto com o garoto.
Mais duas pessoas completaram a tripulação, em seguida. Sem muita demora,
puderam ouvir o barulho do ar pressurizado no dispositivo de comando e os
primeiros tremores nos bancos. O carrinho começara a operar e, cinco segundos
depois, eles já estavam em uma subida.
Elizabeth esticou o braço para a direita a fim de segurar-se na barra de ferro à frente
e, ao mesmo tempo, envolver o tronco de Will.
— É agora — disse o garoto, com um sorriso meio forçado, tentando esconder o medo
que seus olhos desvelavam.
— Agora já era, Will. Vamos ver quem é mais homem, eu ou você — disse sua mãe,
beijando-lhe a testa.
Da primeira volta, Will já não lembrava de nada. Parecia um borrão no registro das
memórias, naquele momento em específico. O que acontecera na vota subsequente
fora tão impactante, que, para ele, só aquela existia.
Na única volta, depois da primeira descida, enquanto se recompunham, Will
lembrava-se dos olhos fechados e do sorriso largo da sua mãe, como se ela estivesse
querendo mostrar para ele que estava se divertindo, apesar do sofrimento interno
com os frios na barriga, inéditos em sua vida adulta. Quando estavam fazendo a
última subida, Will pôde ver os olhos dela abrindo aos poucos e o sorriso ficando
mais verdadeiro.
— Mais uma, ai meu deus… — ela murmurou, olhando pra Will logo em seguida e
tampando o rosto com as duas mãos. Ele riu.
E esta era realmente a descida definitiva. Quando começaram a descer, naquele
milésimo de segundo, Will sentiu uma separação do plano físico. O braço da sua mãe,
que estava constantemente o protegendo, não tocava mais seu corpo. Não deu tempo
de pensar. Os dois foram arremessados para fora na mesma direção, Will tendo
conseguindo se segurar na cintura da mãe instintivamente, aproveitando um
intervalo de tempo crítico. A próxima coisa que ouviu foi o barulho de ossos se
espatifando no chão. Remexeu-se, atordoado, com a visão embaçada, os ouvidos
tampados e, depois de cinco segundos, pôde identificar a situação com seus olhos.
Um vermelho muito escuro. A poça de sangue sob a cabeça de sua mãe era de um
vermelho que mais parecia preto. Ainda fora de si, examinou o próprio corpo e viu
que lhe acometiam apenas alguns arranhões. O corpo de sua mãe amortecera a
queda, e o acaso do afrouxamento daquela barra de ferro amorteceria sua vida com
um todo, dali em diante. Sentia que o aprendizado de brincar com o acaso era quase
tão profundo quando o vazio que se apoderara de seu interior.
Will abriu a porta e aquele mundo façanhoso o recepcionou com uma brisa fria, que
parecia ter vindo das áreas montanhosas em volta de Leeds só para encontrar
guarida no seu rosto corado. Não havia mais cães vagando pelas ruas em busca de
comida, mas, dessa vez, um casal perambulava. Caminharam à sua frente durante
quase todo o trajeto até a escola, com os capuzes dos casacos negros cobrindo as
cabeças, que se encontravam vez ou outra em gestos de carinho. As mãos unidas o
tempo inteiro. Will se despediu deles silenciosamente quando virou na última
esquina.
— Pensou que iria fugir, obeso de merda?
Will ouviu aquela voz ameaçadora, amplificada pelo vazio da rua e do galpão
abandonado ao lado da escola, de onde ela parecia estar vindo. Atravessou a pista
estreita que o separava de seu destino e diminuiu radicalmente o ritmo, encolhendo-
se um pouco e dando passos cautelosos. Quando alcançou o galpão, esgueirou-se
pelas paredes, parando no final de sua extensão, ao lado da entrada, pois tinha
ouvido uma voz que conhecia muito bem.
— É-é bom vocês irem embora, meu grupo vai já chegar. Eles vão notar a gente aqui
— disse Stanley, encostado na parede e segurando uma cadeira de madeira com o
braço esquerdo, pronto para utilizá-la como uma arma, mesmo sabendo que nunca o
faria. Seu rosto denunciava que aceitaria tudo passivamente, como sempre. Um olhar
desesperado, a boca inquieta, sofrendo alguns espasmos.
— Acha que a gente tá com medo de um bando de vadias? — questionou Grandall,
com a expressão de quem sentira-se provocado, segurando um graveto afiado. Era
ele o responsável pelos arranhões na barriga de Stanley. Grandall tinha 16 anos, era
alto e musculoso. Seus cabelos eram loiros e rasteiros, da mesma cor das
sobrancelhas que quase se consubstanciavam numa taturana asquerosa.
— Michael, vamos tentar arte de verdade agora. Nada de arte abstrata — disse
Grandall, fitando o companheiro com um olhar malicioso.
Michael não parecia ser tão forte e intimidador quanto Grandall. Stanley sempre teve
a impressão de que ele poderia ser um bom amigo, mas havia sido compelido a agir
daquela forma. Sua aparência era, até, um pouco frágil. Tinha uma estatura média
para um garoto de 15 anos, era magricelo, possuía cabelos negros que iam até o fim
do pescoço e formavam uma franja a qual encerrava-se imediatamente no início dos
seus olhos.
— Eu acho que o gordo aí tem razão dessa vez, Grandall. Vai dar problema, elas não
vão ter receio de contar para a diretoria ou pior, chamar a polícia — disse, olhando
pra Stanley com uma certa compaixão e, logo depois, desviando para o rosto de
Grandall, sem encontrar ali uma pacificação de entendimento.
Grandall parecia enfurecido. Largou os braços que estavam antes cruzados,
segurando o graveto na mão direita com mais firmeza.
— Se tem medo de putinhas, é uma putinha também — disse, apontando o graveto
para a garganta de Michael — Agora, vamos. Me dê uma ideia legal de desenho pra
fazer.
O foco do olhar assustado de Michael permutava entre aquele pedaço de galho afiado
e o rosto pálido de Stanley à sua frente.
— Quer saber, você pensa na próxima. Hoje eu decido — disse, aproximando-se de
Stanley, batendo repetidas vezes com o graveto na palma da mão.
Ele encarou Stanley diabolicamente, pôs o graveto no bolso e arriou as calças do
garoto, com uma certa dificuldade.
— Essas mortadelas não deviam estar tão branquinhas — disse, beliscando
repetidamente as coxas de Stanley com as unhas.
— P-PARA, PARA!! AI! — gritou Stanley, gemendo de dor, apertando as pálpebras
com força, as lágrimas estacionadas nas saliências sobre suas bochechas.
A agonia era tanta que, instintivamente, com uma força que não sabia que tinha,
Stanley rodopiou segurando a cadeira com o braço esquerdo, tentando acertar
Grandall, que havia percebido o movimento desesperado e se afastado subitamente,
caindo de bunda no chão, ileso.
— Michael, segura esse merda pelos braços, agora ele vai sentir! — gritou como um
cão raivoso.
Michael, dessa vez sem hesitar, correu até Stanley, meteu as mãos em seus braços e
os pressionou contra a parede, como que pregando-lhes numa cruz.
Will viu quase tudo. Começou a observar latebrosamente quando Michael da
primeira vez beliscou as coxas de Stanley. Seu rosto estava inquieto, mas as pernas,
calmas, estacionadas.
Grandall partiu bruscamente para cima de Stanley e socou-lhe no estômago. O garoto
encheu as bochecas como se fosse vomitar, e os olhos por um momento pareciam
terem saltado das órbitas.
Will continuava calado e, daquela vez, com os olhos fechados, encostado na parede
com tanta força que parecia que ia derrubá-la a qualquer momento.
O bullie retirou o graveto do bolso e começou a riscar as coxas de Stanley.
— AH, AH, AIII! — gritou o garoto, com a cabeça esperneando. Sem poder mexer os
braços, balançava as pernas, mas quanto mais tentava resistir, mais profundos e
desvirtuados se tornavam os cortes do graveto de Grandall.
— Fica quieto, vai estragar minha obra de arte — murmurou Grandall, com um
sorriso
— Então, mecânica de fluidos… a gente tem que apresentar algo na prática pra todo
mundo entender, alguma ideia? — questionou Samya, a menina mais nerd da sala,
que não parecia ser do mesmo planeta que Horitz, e todos pensaram nisso ao mesmo
tempo. De semelhantes, apenas os cabelos que tinham algumas mechas roxas, mas
eram majoritariamente pretos. Era sua única característica visual que sugeria uma
personalidade descolada, todo o resto, desde o rosto cheio de espinhas e os grandes
óculos até o corpo esquelético sempre coberto — todos os centímetros de pele
possíveis — por roupas cafonas sob um macacão rosa, diziam o contrário.
— Não sou um homem de grandes ideias — respondeu Horitz, com os braços
cruzados, olhando pra Will — Mas esse carinha parece ser. Os mais calados são
sempre os que estão à frente nos pensamentos.
Will não conseguia pensar naquele trabalho, mas precisava. Depois do que vira,
ainda sentia algo corroer todo o bojo de seu sistema digestivo, ou só não sabia
identificar onde especificamente.
— É simples, um recipiente com água e qualquer outro fluido — respondeu, olhando
pro espaço que se formava entre suas pernas cruzadas.
— Olha só, resolvido a questão principal. Agora é só deixar os gênios aí fazerem as
cinco questões da lista. A gente dá apoio emocional — disse, rindo e encontrando
reação similar no rosto de Earl, um judeu ruivo de olhos azuis e cabelos crespos.
— Vão ser duas pra cada — disse Samya, com um olhar sério, diluindo o clima jocoso
que se estabelecera — Ao trabalho.
— Tá, mas antes… — Horitz se levantou e esticou os braços — Ouviram o que tava
rolando? Cheguei aqui pouco depois, mas o Stanley ainda estava chorando, fui falar
com ele e parece que o Grandall fudeu com ele de novo.
Ele disse aquilo com um sorriso no rosto, era algo pior do que indiferença, pensou
Will. Talvez complacência. Ou apenas admiração, diversão. Eu sou tão diferente dele
assim?
— Que coisa horrível… — murmurou Samya, em resposta ao que ela considerava uma
covardia sem tamanho — E você ri disso?
O punk alargou o sorriso de boca fechada e disparou.
— Ele não reage nunca. É só um monte de banha. Foi tratado como merece ser.
Will se levantou subitamente, derrubando a garrafa d’água a seu lado, que molhou
uma das cópias da lista de exercícios.
— Ei, qual foi?? — perguntou Earl, levantando-se também, mas pelo susto.
Will saiu da sala correndo, sem ter nem se tocado do momento em que girara a
maçaneta, pensava ter atravessado a porta como um fantasma.
Mantendo o ritmo desengonçado pelo corredor da escola, esbarrou com um dos
alunos da sala ao lado que conversava com um colega de dentro, derrubando-o e
despertando um xingamento selvagem em alto e bom som.
Saiu da escola mas não conseguiu sentir a brisa fria de antes, embora ela estivesse
presente. Atravessou a rua e correu no mesmo ritmo até chegar em casa novamente.
Nunca pensou que percorreria aquela distância em menos de três minutos. Assim
que abriu a porta lançou a vista ao sofá mais próximo, ajoelhou-se no chão e apoiou
as mãos e a cabeça sobre o ele.
Ficou naquela pose por quase um minuto, lidando com um turbilhão de pensamentos
que o assolavam. Não sabia nem se era culpa. Tinha convicção de que o certo a fazer,
segundo seu pai — não, segundo a verdade que aprendera — era deixar Stanley sofrer
na sua frente, ser humilhado, sem que ele movesse um dedo pra ajudar. Sem que ele
sequer procurasse por um adulto
A campainha tocou. Era seu tio. Ele demorou um pouco para se recompôr. Empurrou
o sofá para que conseguisse voltar a ficar em pé e andou cambaleando até a porta.
— Estava chorando? Will?
Lindel não reconheceu que aquele rosto exausto e úmido expressava mais do que
tristeza.
— Eu te entendo, não deve estar sendo fácil. Ainda é cedo, mas vá dormir. O ser
humano processa as coisas no escuro.
Não pensou que conseguiria, mas, mesmo o relógio ainda marcando 19h30,
despencou em um sono profundo pouco depois de se reconfortar na maciez do
colchão.
Os sonhos de Will foram turbulentos. Eles nunca faziam muito sentido, eram sempre
acontecimentos drásticos misturados, mas às vezes deixavam uma forte impressão
por dias. O infindável e largo tapete vermelho aparecera novamente, mas, dessa vez,
estava vazio. Podia sentir seus pés deslizando. O tapete estava se inclinando. Ouvia o
barulho de algo rolando. Olhou pra trás e avistou o corpo de Stanley descendo pelo
tapete, com um buraco na barriga, sujando tudo de vermelho. Will, no entanto, não
podia perceber a diferença entre um tapete sujo de sangue e um de tinta vermelha.
Uma grande luz branca cegou seu eu dos sonhos.
Saltou da cama com os olhos arregalados. Tateou em busca do celular para ver as
horas. Eram seis e meia da manhã. Finalmente, ele pensou. Depois de tanto tempo
consegui acordar por conta própria.
Will voltou ao quarto e se trocou. Vestiu uma camisa xadrez preta com roxo e uma
calça jeans. Penteou os cabelos cheios para o lado esquerdo e passou um pouco de
gel. Calçou os sapatos pretos de couro, aplicou o perfume Sartorial do seu tio e já
estava pronto para o dia mais importante de sua vida. Saiu do quarto.
— Vai me dar carona hoje, né? — perguntou Will, sorrindo.
— Com todo prazer — respondeu Lindel, sorrindo. Mas esse era um sorriso
verdadeiro.
Will não sabia o que tinha acontecido naquele curto trajeto de carro. Passaram
batido o sinal de trânsito, a estação de rádio, seu tio tentando puxar uma conversa
breve, a vista dos cachorros no meio da rua… seus olhos estavam em piloto
automático. E a mente trabalhando.
Vou ser atirado no inferno… vamos ver como eu me viro. Tenho certeza que isso
precisava acontecer pra eu criar jeito. Vou para um lugar muito seguro, mãe. Não
vou dar chance ao azar. Pai, não vou nem precisar me envolver em conflitos
desnecessários. E não me envolveria nem que precisasse. Onde quer que vocês
estejam, espero que consigam me ver, ou, pelo menos, saber quanta falta vocês
fazem.
As lágrimas que corriam levemente pelo seu rosto trouxeram-no de volta ao mundo
real. Ele enxugou-as rapidamente e piscou os olhos repetidas vezes para não parecer
um adolescente depressivo na frente do Dr. Phil, o homem que dilaceraria sua
sanidade, fagocitaria seu destino e confrontaria o seu ego com seu eu latente. Será
que alguém um dia vai entender como me sinto, vai enxergar lá dentro da minha
mente?