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A grandeza de Marx nos olhos de Konder

Aristóteles de Paula Berino*

Quando Marx escreveu, na 11ª das Teses sobre Feuerbach, que até então os filósofos
haviam se limitado a interpretar o mundo, mas que o problema fundamental era o da sua
transformação, deixava subentendido que nenhum pensamento deveria valer por si mesmo.
O que contaria para um pensamento ter a sua particularidade reconhecida estaria no virtual
efeito de envidar mundo e homens novos. Em outras palavras, uma filosofia é boa se é
capaz, ao meditar sobre a vida, de dedicar-se à apropriação dos seus elementos potentes e
constitutivos, conduzindo a própria existência a resultados mais edificantes. Portanto, trata-
se de uma representação da filosofia que pondera sobre o valor relativo da autonomia do
pensamento. A perenidade de um escrito depende da sua plasticidade, isto é, se é ainda
capaz de dar forma ao propósito humano de viver bem e melhor, diante da realidade
existente. Neste caso, como resultado deste ponto de vista, nem a obra de Marx deveria
deixar de ser submetida à crítica da vida.

Por isso minha curiosidade diante do anunciado livro de Deleuze. Como se sabe, o filósofo
francês pretendia escrever como última obra um escrito sobre Marx (ERIBON, 1996, p.
30). Deveria se chamar Grandeza de Marx. Depois gostaria apenas de pintar. Mas Deleuze
morreu sem realizar o intento declarado. Como alguém interessado na validez atual da obra
de Marx, é assim que me vejo perguntando sobre o que poderia ter sido este livro. Anormal
procura porque dedicada a um livro para sempre perdido. Livro desaparecido com a vida do
seu virtual autor, portanto, logicamente impossível de ser encontrado e um dia lido. Mas
existe nesta busca uma estranha possibilidade. É que contrariando uma aparente ordem
natural, uma vez comunicado, mesmo não escrito, um livro não deixará de ser procurado e
ter as suas páginas imaginadas, até poder ser lido. Suas páginas podem ser folhas avulsas,
fragmentos e textos recortados que vamos reunindo enquanto folheamos obras com outros
títulos. Portanto, uma obra no meio de tantas outras, extraída do que já foi escrito enquanto
procuramos o livro sonhado.

*
Doutor em Educação pela UFF e Professor do curso de Pedagogia do IM/UFRRJ/Nova Iguaçu.
Ocorre também desta obra, ao perder-se do seu pretérito autor, ser reconhecida como uma
criação plural, pertencente a mais de um indivíduo. Manuscrito para sempre incompleto,
continuamente reescrito, reunindo as contribuições de um gênio coletivo, pretendido como
capaz de interpelar as passagens já seguidas e seguramente indicar a necessidade de novas
paisagens para o caminhante. Lembrei-me do livro não escrito de Deleuze (já liberado da
sua autoria solitária) quando me deparei com o seguinte comentário de Konder (2002, p.
162): “Sou autor de numerosos textos publicados. Devo confessar que nenhum deles me
parece realmente essencial para a cultura brasileira”. Konder referia-se, é claro, ao fato de
ter escrito livros em bom número, embora nenhum deles pudesse ser reconhecido como um
clássico. Mas o que acredito encontrar quando leio Konder não é mesmo o livro que fica, a
obra exemplar, mas o texto contributivo, sempre por ser escrito a partir do legado de Marx.

Não tive a oportunidade de ser aluno do professor Leandro Konder quando fiz a minha
graduação em História na UFF (Universidade Federal Fluminense), em Niterói, no início
dos anos 80. Mas entre os alunos, é claro, corriam sempre as informações e a consideração
que se tinha em relação aos professores do curso. Foi assim que inicialmente soube da
importância de Konder. Admirado, reconhecidamente comunista, seu nome sempre esteve
associado à imagem de intelectual combativo e professor competente. Sempre influente
com as idéias que defendia, transformou-se em uma voz importante para a formação da
opinião entre aqueles que buscavam uma posição política mais conseqüente e coerente com
o ideal de uma sociedade boa, socialista. Na leitura dos livros que escrevia, para seus
leitores o pretendido era um conhecimento estimulante dos principais conceitos e
possibilidades do marxismo. Imagem de intelectual e professor que nunca sugeriu a
aprendizagem de um marxismo dogmático e envelhecido, mas sim de um materialismo
histórico exemplar, atualizado na capacidade de expor-se corajosamente aos debates mais
relevantes do seu tempo, avaliando sempre seus recursos e força como teoria e fundamento
da práxis.

Lembro-me perfeitamente da primeira vez que um colega do curso me apontou Leandro


Konder. Estava sentado nos degraus que davam entrada ao ICHF (Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia), quando este era localizado no Valonguinho. Para um jovem
estudante, fitar um professor já famoso em uma situação cotidiana do seu ofício –
conversava com uma aluna – não é apenas uma reverência que se faz, mas é também uma
manifesta vontade de assimilar o que acredita nele existir de mais significativo como
intelectual. No caso de Konder, não se tratava apenas de querer reunir os mesmos
conhecimentos, a mesma erudição como estudioso do marxismo. Havia então, como
estudante que se via escolhendo os caminhos e refletindo sobre as oportunidades já vividas,
também a confiança em outra realização: Demonstrar a mesma capacidade de remoção dos
embaraços espirituais que cobrem como uma névoa o que precisa ser reavaliado e refeito.
Este é um valor para ser admirado em Leandro Konder.

Veja-se, por exemplo, O futuro da filosofia da práxis, livro publicado, em 1992. Nele, diz
Konder logo no início (p. 13/14), enquanto explicava a natureza teórica e política do
escrito: “A sociedade está sempre mudando. Isso não significa que aqueles que lutam por
transformá-la saibam mudar adequadamente, acompanhando as modificações do campo de
batalha. Estamos todos, por mais resolutamente revolucionárias que sejam nossas
disposições subjetivas, vulneráveis a impregnações conservadoras sutis. Temos medo de
assumir os riscos inerentes à autotransformação”. Konder aqui aponta para uma questão
fundamental da práxis que se segue à admissão da 11ª das teses sobre Feurbach: o objetivo
de transformação das condições atuais da sociedade não pode deixar de considerar que, se
foram historicamente construídas, são processuais e não estáticas. Assim, a atividade do
pensamento precisa ser reflexiva, voltando-se sempre para a estreita relação entre a sua
formulação e o mundo na sua concreticidade, observando sua transitoriedade corrente.

A dificuldade apontada por Konder, dirigida à ação dos comunistas, está na perspectiva
freqüentemente reativa da militância revolucionária, quando se deixa embeber-se de
concepções que podem ser consideradas ultrapassadas diante do novo esculpido pela
história. Levando o conceito da práxis ao seu limite, os marxistas precisam de uma
educação teórica permanente, ensina. Quando Konder fala ainda da necessária assunção do
“risco”, há ainda uma questão estética pouco usual na pragmática política que vingou no
marxismo. Existe uma beleza na própria incerteza, contrastando com a esperança que se
deposita no que já foi prescrito e aceito como ação revolucionária. O risco faz parte da
“autotransformação”, esta abertura amorosa para modificar-se, querendo o valor da
mudança no existir, atitude então apresentada como inseparável de uma defesa lúcida do
ideal comunista de homem e sociedade.

Um dos primeiros textos que li de Konder foi o pequeno artigo intitulado Antropologia
política e marxismo, publicado em 1984 no volume O marxismo na batalha das idéias.
Neste texto e em muitos outros que escreveu, é possível perceber a existência de um
trabalho didático, de uma elaboração da escrita que se acerca também da transmissão de
uma conduta analítica. Não está ali apenas o intelectual que discute as idéias do seu tempo,
mas também o iniciador que propõe como as questões polêmicas podem ser enfrentadas,
orientando seu leitor a desenvolver uma propriedade crítica superior, voltada para o enlevo
do marxismo. A interlocução feita é com o antropólogo Pierre Clastres, crítico fervoroso do
pensamento de Marx e de seus seguidores. Diante desta declarada oposição, Konder não
busca, como é tão comum quando ocorre uma divergência de princípios, desqualificar seu
oponente para afastar a ameaça do contraditório. O que faz em seu texto é apontar para uma
determinada relevância presente nos questionamentos de Clastres, especialmente naqueles
que incidem sobre o entendimento que muitos marxistas têm a respeito do Estado. Diz
Konder (p. 188): “Espero sinceramente que esses marxistas não se deixem impressionar
excessivamente pelas diatribes de Clastres e continuem a explorar o rico filão indicado pelo
antropólogo”.

Ora, na batalha das idéias, para os marxistas a melhor perspectiva deve ser primariamente
a da curiosidade. Não existem razões elevadas para supor que nossos críticos são
principalmente equivocados ou medíocres, ainda que estes não demonstrem o mesmo
ânimo para a pesquisa da diferença. Quando diz que “há marxistas de orientações muito
mais diversificadas e contraditórias do que Pierre Clastres supõe” (ibidem, p. 187), faz uma
restauração que deve ser considerada com especial atenção pelos próprios marxistas.
Confiando que o nosso campo teórico é politicamente representativo dos interesses mais
progressistas da sociedade, desperta no leitor a aprendizagem de como uma visão de mundo
pode ser aperfeiçoada e torna-se mais influente se é capaz de ouvir discordâncias e
recuperar seus conceitos a partir de um ponto de vista continuamente atualizado pelo
conhecimento. Hoje, revendo este artigo, vejo como sua leitura teve um caráter formativo.
Não sem propósito. O que agora parece bastante claro, depois de alguns anos lendo seus
escritos, é que para Konder não há pensamento relacionado à ambição da práxis que não
seja também fundamentalmente pedagógico no exercício da crítica.

Quando me ocorreu a oportunidade de escrever algumas palavras dedicadas a esta


homenagem prestada ao professor Leandro Konder, pensei no que seria possível apresentar.
Mesmo sem ter sido seu aluno, procurei rememorar a presença que teve na minha
formação, através principalmente dos textos que escreveu. Lembrei-me em primeiro lugar
de um pensamento do autor que me deixou uma forte impressão quando li. Reproduzo aqui:
“Não devemos nos iludir: é muito complicada a passagem de aprendiz a mestre. Primeiro,
porque o mestre que não se embriaga com seu próprio saber volta periodicamente a ser
aprendiz. Depois, porque o aprendiz que se recusa a ser epígono vive, com certa freqüência,
momentos nos quais ele chega a enxergar mais longe do que o mestre”. Impacto que só
pode ser devidamente avaliado diante das seguintes circunstâncias. Este pensamento foi
produzido para ser publicado na Revista Arrabaldes, editada por graduandos e recém-
graduados em História, em 1988. Saía impresso na 2ª capa da revista e foi publicado nos
três números lançados. Neste período ainda cursava a minha graduação e a mensagem de
Konder mostrava-se adequada à perspectiva de quem era estudante, mas se deparava com a
condição próxima de professor formado e, quem sabe, de vir a ser intelectual também. Pelo
menos era o que sonhávamos.

Portanto, trata-se antes de tudo, de um pensamento partidário da ascensão do que ainda está
nascendo. Para isso, apontava para a eventual troca de posições aparentemente
consolidadas. O mestre não pode deixar de ser aprendiz, porque está (ou deveria estar)
sempre aprendendo. E também o aprendiz não deve seguir o constrangimento de ser apenas
o continuador da obra do mestre, um imitador do que aprendeu. É preciso, como mestre,
adquirir uma certa temperança, não deixando se intoxicar pelo saber que julgar possuir. Por
outro lado, para o aprendiz faz bem ser audacioso. A continuação do texto contém ainda
uma segura defesa e uma bela imagem da emergência do novo. “Creio que nós, professores,
precisamos não desperdiçar as ocasiões que os nossos alunos nos proporcionam para nos
renovarmos com eles. Esta revista é uma ocasião preciosa: ela se dispõe a fazer circular
com maior desenvoltura nas artérias da teoria o sangue da vida”. Seguindo o que diz
Konder, o que vamos encontrar na admiração pela original iniciativa de uma publicação
que procurar dar voz àqueles que estão procurando uma ocasião para expressar o resultado
das pesquisas e do estudo que realizam, é também o ensino de que a teoria precisa da
relevância da vida para ser construída. E mais, que a vida como tal é preciosamente a vida
que corre – o “sangue” – renovando as condições do próprio existir.

Neste trabalho de trazer a memória às leituras que fiz dos escritos Konder, são inúmeros
livros e textos lembrados. Tratando-se de um intelectual que venceu os muros da
universidade, foi possível também, ao longo dos anos, ler os artigos que escreveu para a
imprensa. Gostaria de lembrar um deles. Um texto que, acredito, Konder mostra como
abraçar questões aparentemente de menor importância política pode engrandecer a visão de
mundo que partilhamos, na esperança de revolucionar as práticas sociais a partir do
marxismo. Desempenho da arte de ensinar que Konder ainda nos leva ao riso com
freqüência. O texto em questão termina assim: “Esse coroa é taradão, você viu? Ele se
amarra numa ‘lézbeca’ ". Sim, para o sujeito que pronunciou essas palavras, o coroa tarado,
apaixonado por lésbicas, é Leandro Konder. Mas o que provocou essa inusitada
identificação do filósofo e professor? Neste texto Konder narra um episódio (verdadeiro ou
trata-se de uma narrativa imaginaria para fins didáticos?) que transcorreu em um elevador.
Durante a curta viajem, um dos passageiros viu nas mãos do ascensorista um jornal
contendo fotos da passeata do orgulho gay. Não se contendo, começou a desfilar seu
preconceito. Curiosamente, embora acreditasse em uma correção médica para os
homossexuais masculinos, achava que as lézbecas (é como pronunciava) eram
definitivamente criaturas demoníacas. Nesta altura, conta Konder, não conseguiu mais se
controlar e resolveu intervir, advertindo sobre as conseqüências da intolerância. Quando
chegou ao seu andar e desceu do elevador, seu interlocutor proferiu a sentença acusatória
relatada acima.
A narrativa de Konder relaciona-se, é claro, com a pertinência da discussão atual sobre o
respeito às diferenças. Mas existe um detalhe na história que gostaria de fazer sobressair. É
quando diz que depois de ter se controlado resolve interferir, expondo também seu
pensamento e argumentando, mesmo sujeito a uma reprovação como a que ocorreu. O
cenário da história é banal, um elevador. Mesmo assim, situa-se em um lugar público, onde
pessoas se encontram e eventualmente demonstram seus pensamentos a respeito do que
ocorre no país. O fato é que a situação corriqueira não provocou em Konder um
desinteresse absoluto. Não admitiu ser condescendente com um preconceito que ficava
mais à vontade diante do seu silêncio. Então resolveu falar. A história encerra a
oportunidade de pensar no político que também acontece no cotidiano e que não podemos
deixar de lado. Cotidiano onde os problemas do poder não podem ser expostos na fórmula
simplista que muitos marxistas imaginaram (alguns ainda imaginam) a luta de classes no
século que passou: classe proprietária x classe trabalhadora. A importância que Konder
atribuiu a exposição da sua divergência dirige-se à necessidade de assumir que o ideológico
stricto sensu inclui uma variedade de problemas (sociais, mas também caracteristicamente
culturais) que ainda precisamos, como marxistas, nos debruçar.

Não há nada de espetacular na afirmação que Leandro Konder tem a maior importância
para muitos dos seus alunos e leitores. As coisas que diz sempre encontram um público
interessado, especialmente nas esquerdas. Particularmente, sua voz faz um enorme sentido
para quem acredita no comunismo como um ideal de sociedade que se opõe ao capitalismo.
Ah, sim, não se concorda com tudo que escreveu! Mas parece que encontrar a verdade ou
recolher o melhor argumento não parece constituir o interesse principal dos seus leitores.
Estes aprendem com ele a função da crítica e a vantagem de entender as posições contrárias
como um princípio educativo da práxis. Pois bem, o que pretendi com este breve texto foi
relatar como sua obra pode ser vista, mas especialmente imaginada por um leitor que
reconhece em Konder uma significativa contribuição para revigorar o marxismo hoje. Em
muitas páginas que li, fui grato porque outras obras foram se afigurando. Entre elas, o
procurado livro sobre a grandeza de Marx.
Referências bibliográficas

ERIBON, Didier. Meu próximo livro vai chamar-se a grandeza de Marx. Depoimento de
Gilles Deleuze. Cadernos de Subjetividade. São Paulo, número especial, p. 26 – 30, jun.
1996.

KONDER, Leandro. Cenas de surrealismo tardio. In: PINASSI, Maria Orlanda (Org.).
Leandro Konder: a revanche da dialética. São Paulo: Ed. UNESP/Boitempo. 2002. p. 161
– 169).

______. Antropologia política e marxismo. In: O marxismo na batalha das idéias. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 183 – 188.

______. O futuro da filosofia da práxis: o pensamento de Marx no século XXI. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1992. 141p.

______. O ‘orgulho gay’ e as ‘lézbecas’. Jornal do Brasil. Rio de janeiro. 5 jul. 2003.
Caderno B, p. 8.

REVISTA ARRABALDES. Petrópolis. 1988 – 1989.

Publicação original:

BERINO, Aristóteles. A grandeza de Marx nos olhos de Konder. Chronos: Publicação


Cultural da UNIRIO, Rio de Janeiro, v. 2, p. 21-24. 2006.

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