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UNIFEV – Centro Universitário de Votuporanga

PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE CLÍNICA: O Sujeito Contemporâneo

DISCIPLINA: O Panorama da Psicanálise e as Escolas Psicanalíticas

PROFESSORA: Carol Godoi Hampariam

DISCENTES: Leandro Batista de Castro


Luísa do Nascimento Ortega Queiroz
A correspondência entre Freud e Fliess foi um meio essencial para criação da
psicanálise.

O presente trabalho ocupa-se de um recorte da história da psicanálise cujo fundador


Sigmund Freud (1856 – 1939), médico vienense, se relaciona com seu amigo e também
médico Wilhelm Fliess. Num período em que Freud estava se questionando e formulando
suas primeiras ideias do que se tornariam as teorias da psicanálise, “é provável que as cartas
de Sigmund Freud a seu amigo mais íntimo, Wilhelm Fliess, constituam, isoladamente, o
grupo de documentos mais importantes da história da psicanálise” (MASSON, 1986, p1).
Quando Freud iniciou a correspondência, tinha 31 anos, era professor de
neuropatologia na Universidade de Viena. Após estudar em Paris com o neurologista Jean
Martin Charcot e recém casado com Martha Bernays, monta seu consultório de clínica
neurológica. Como clínico, tratava basicamente de mulheres da burguesia vienense, que
sofriam de distúrbios histéricos e eram consideradas como “doentes dos nervos”. Na tentativa
de aliviar o sofrimento psíquico de seus pacientes começou a utilizar a hipnose, método este,
que abandonou progressivamente pela cartase, inventou o método da associação livre e
finalmente a psico-análise.
Fliess residia em Berlim, era médico especialista em nariz e garganta, dois anos mais
novo que Freud, manteve com este, uma correspondência por meio de cartas entre os anos de
1887 e 1902. As teorias desenvolvidas por Fliess nas áreas de biologia geral, na qual tinha
grandes interesses são atualmente consideradas excêntricas e indefensáveis, porém, foi
considerado um homem de grandes capacidades.

Adepto de uma teoria mística e organicista da sexualidade, Fliess era uma espécie de
duplo de Freud. Dominado por uma visão paranóica da ciência, misturava as teses
mais extravagantes (e também as mais inovadoras) sem conseguir organizá-las em
um sistema de pensamento adequado à realidade. Relacionando a mucosa nasal com
as atividades genitais, pensava que a vida estava condicionada por fenômenos
periódicos que dependiam da natureza bissexuada da constituição humana. Já
observava o Carter polimorfo da sexualidade infantil (ROUDINESCO, 1998, p.
240).

Na cidade de Viena, em outubro de 1887, ocorreu o primeiro encontro entre W. Fliess


e Freud, através de Josef Breuer seu médico e professor. Nesse período, os dois jovens
médicos encontravam-se sob a influência da escola alemã de Hermann Von Helmholtz,
tinham interesses em comum, como a sexualidade, e intencionavam construir uma nova teoria
biológica e darwiniana da vida psíquica do homem, buscando subsídios na medicina e na
ciência de seu tempo. Enquanto jovens, estavam à procura de uma identidade intelectual, e
nesse contexto construíram uma amizade que apesar de curta, foi intensa e acompanhada de
um grande número de correspondências, das quais apenas a parte de Freud ficou conhecida.
Poucos meses depois do primeiro encontro, Freud escreve a primeira carta endereçada
a Fliess, a partir de então, tornaram-se correspondentes de uma série de cartas que iriam
mapear a gênese e progressão da psicanálise. Em 1890 iniciaram seus congressos particulares,
denominação dada por eles a encontros que realizavam nas cidades de Viena, Berlim e em
outras cidades austríacas e alemãs. Assim, tornaram-se amigos íntimos, foi com Fliess que
Freud, mais do que com qualquer outra pessoa expressou seus sentimentos e pensamentos
particulares e profissionais. Ambos eram médicos e judeus, conversavam sobre realidades da
vida em família e era para Fliess que Freud relatava experiências sexuais primitivas de seus
pacientes que não era bem aceito por outros colegas médicos mais conservadores, o que
explica a assiduidade das cartas. Desse modo, Freud teve em Fliess seu único expectador por
muitos anos.
Dentre os contemporâneos de Freud, inicialmente Fliess era mais acessível às suas
idéias. Desse modo, Freud tinha liberdade em lhe comunicar seus pensamentos por meio de
suas cartas e documentos denominados Rascunhos, nos quais, continham relatos organizados
de suas idéias em evolução e primeiros esboços de suas primeiras obras. Dentre eles o mais
importante contendo umas 40 mil palavras é o denominado Projeto para uma Psicologia
Científica.

Em nenhuma época o criador de um campo totalmente novo do conhecimento


humano revelou tão abertamente e com tantos detalhes os processos de raciocínio
que conduziram a suas descobertas. Nenhum dos textos posteriores tem o
imediatismo e o impacto dessas primeiras cartas, nem tampouco revela tão
dramaticamente os pensamentos mais íntimos de Freud no decorrer do próprio ato
de criação (MASSON,1986. p.1).

Desse modo, as cartas relataram a gênese de A interpretação dos Sonhos e o abandono


da teoria da sedução, segundo a qual toda neurose se explicaria por um trauma real. A
renúncia a essa teoria se deu em 21 de setembro de 1897, quando Freud comunicou a Fliess
em uma carta que se tornaria notável, as palavras não acredito mais na minha neurótica. Na
evolução de sua teoria, Freud renuncia a hipótese do trauma para conduzir sua teoria numa
ciência capaz de esclarecer a realidade com a qual ele se confrontava. A correspondência foi
encerrada em setembro de 1902. Essa ruptura levou Fliess a se sentir perseguido e passou a
acusar Freud de plágio. Este destruiu as cartas do amigo para que sua relação com ele não
ficasse exposta futuramente.
Estes importantes documentos ficaram desconhecidos até a época da segunda guerra
mundial, período em que parte dessa correspondência se perdeu. A descoberta desse material
e seu salvamento devem-se a Princesa Marie Bonaparte. Esse material obtém uma conexão
significativa com a história da psicanálise e o progresso das ideias de Freud.

Preocupado em não desvelar para a posteridade sua relação com Fliess, Freud
destruiu as cartas do amigo. Mas em 1936, Charles Fliess (1899-1956), irmão mais
velho de Robert, vendeu a um comerciante as cartas de Freud, que seu pai guardara
até a morte. Foi então que Marie Bonaparte as comprou e as conservou, contra a
opinião do mestre, que se recusava obstinadamente a que fossem publicadas, nem
queria que elas fossem conhecidas. Em 1950, com a ajuda de Ernst Kris e de Anna
Freud, ela publicou algumas, sob o título O nascimento da psicanálise. Só em 1985
foi enfim publicada uma edição completa, depois de um escândalo nos Arquivos de
Freud (ROUDINESCO, 1998, p. 240).

Por meio das regulares correspondências, Freud descreveu o que chamou de sua
autoanálise, “ao longo das páginas, descobrimos como ele adotou as teses do amigo sobre a
sexualidade para transformá-las, e depois como elaborou suas primeiras hipóteses sobre a
histeria, a neurose e o Édipo” (ROUDINESCO, 1998, p. 240). Nesse sentido, Freud ao
construir suas teorias se desloca para o lugar inédito de analista.
A primeira análise que levaria a cabo de um sonho; e a morte do pai, pois no verão
seguinte a esta, a autoanálise ganharia impulso, sistematicidade e finalidade. Portanto, dois
acontecimentos cruciais, que levaram o fundador da psicanálise a se deparar com o enigma da
feminilidade, sob a forma da paciente Irma, e com a “perda mais pungente” da existência de
um homem: a morte do pai.
É uma análise cujo dispositivo inclui a correspondência, o endereçamento de uma
escrita (cartas, rascunhos de artigos) a um Outro, personificado pelo amigo e colega médico
W. Fliess, e ocasionais encontros entre os missivistas, ironicamente denominados por Freud
“congressos”. Preservados em Freud (1986), os restos dessa troca de cartas compreendem
entre outros assuntos anotações sobre pacientes, resultados e achados de pesquisas em
andamento (comunicados no corpo das cartas ou em manuscritos anexos), relatos de sonhos e
formações do inconsciente relacionados à chamada autoanálise e juízos de Freud relativos a si
mesmo e ao amigo.
É uma lógica da distribuição do dano entre os parceiros, cujo critério é a distinção
entre um gozo que leva em conta o Outro e um gozo que não o leva em conta, distinção que se
revela subjacente à oposição entre neurastenia e neurose de angústia. Para adequar o gozo à
relação entre os sexos, muito libertariamente para a época Freud advoga “as relações sexuais
livres entre rapazes e moças liberadas”, embora advertindo que “isso só poderia ser adotado se
houvesse métodos inócuos de evitar a gravidez” (Freud, 1986, p. 44), ou seja, métodos
diversos do prejudicial coito interrompido. De fato, a causalidade sexual das neuroses atuais
(neurastenia e neurose de angústia) é extrínseca e contingente, o que as torna permeáveis às
influências da reforma moral, da educação e do progresso técnico.
Em 15 de outubro de 1895, Freud escreve a Fliess e revela o que chama de “grande
segredo clínico” das neuroses de defesa: “a histeria é consequência de um pavor sexual pré-
sexual. A neurose obsessiva é consequência de um prazer sexual pré-sexual, que se
transforma posteriormente em autorrecriminação. ‘Pré-sexual’ significa, a rigor, anterior à
puberdade” (Freud, 1986, p. 145).
Se a histeria é consequência de um desprazer sexual enquanto a obsessão deriva de um
prazer sexual, o denominador comum de ambas é a experiência de uma sensação de
desprazer/prazer antes da puberdade: o grande segredo clínico de Freud é que há uma
experiência primária de gozo, um gozo primário. Tal gozo primário se divide em dois tipos
conforme a linha de fratura que observamos antes nas neuroses atuais. Na histeria, o gozo
primário, experimentado passivamente, é o gozo do Outro. Já na obsessão esse gozo é do
próprio sujeito, por isto dá lugar na puberdade a uma censura.
Na sequência de sua correspondência, Freud trata com Fliess sobre a teoria da
sedução, levantando a hipótese da teoria da sedução paterna, assunto que lhe causa
estranheza. Na carta de 28 de abril de 1897, ele narra um caso de uma moça que confessa que
o pai a levava regularmente para a cama.
Na carta de 06 de dezembro de 1896, o mau encontro com a sexualidade, com o gozo
do Outro – tomado no sentido subjetivo, do Outro que goza – é imputado explicitamente ao
pai, ao pai perverso sedutor: “Parece-me cada vez mais que o aspecto essencial da histeria é
que ela decorre da perversão por parte do sedutor, e parece cada vez mais que a
hereditariedade é a sedução pelo pai” (Freud, 1986, p. 213).
Ao redefinir em termos de sedução paterna a hereditariedade, Freud torce, subverte a
teoria de seu mestre Charcot, que faz da disposição neuropática– uma potencialidade
hereditária atualizada por agentes provocadores (o trauma por exemplo) – a causa necessária
da histeria.

A fantasia, fachada psíquica


Prosseguindo na sua tentativa de formular a “solução da histeria”, Freud avançará pela
primeira vez, a Fliess de 06 de abril de 1897, uma peça, uma “produção do inconsciente” cuja
eficácia na causalidade do sintoma até então lhe escapara e que o levará a reformular suas
teorias: as “fantasias histéricas” (Freud, 1986, p.235). Mas, em que consistem as fantasias?
Provenientes de “coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas”, as
fantasias são qualificadas, na carta de 02 de maio de 1897, de estruturas ou ficções
“protetoras” que sublimariam, embelezariam os fatos; ao mesmo tempo serviriam para o
“alívio pessoal”, possuindo talvez por origem acidental as “fantasias de masturbação” (Freud,
1986, p. 240).
Acompanha a carta o Rascunho L, A arquitetura da histeria, no qual as fantasias são
chamadas de “fachadas psíquicas” por impedirem o acesso direto à lembrança, impondo ao
trabalho analítico um desvio no caminho rumo às “Urszenen”, às “cenas originárias” (Freud,
1986, p. 243).
Depois de aprendermos que uma parte da lembrança jamais emergirá do
esquecimento, lemos já no Rascunho M que as fantasias substituem a parte faltante da
recordação, tornando impossível rememorar, na sua autenticidade, a lembrança: “combinação
inconsciente de coisas vivenciadas e ouvidas, de acordo com certas tendências”, as fantasias
tornam “inacessível a lembrança da qual provieramou podem provir os sintomas” (Freud,
1986, p. 248).
Para ilustrar o caráter compósito da fantasia, Freud toma por modelo a análise
química: a fantasia é formadapor um processo que decompõe, recombina e amalgama os
elementosda lembrança, negligenciando as relações cronológicas e combinando um
“fragmento da cena visual” com um “fragmento da cena auditiva”, o que tem por resultado
que “a conexão original torna-se impossívelde rastrear” (Freud, 1986, p. 248). A fantasia
combina assim “acontecimentos passados (da história dos pais e antepassados)” ouvidos pelo
sujeito – em outros termos, provenientes do Outro (do discurso parental que precede o sujeito
e no qual ele deve advir e se localizar) – com coisas que foram vistas “pela própria pessoa”
(Freud, 1986, p. 241).
Por conseguinte, a fantasia articula sujeito e objeto, termos implicados o primeiro,
pelo emprego da noção teatral de cena, o segundo, pela referência ao visto e ouvido. Ficção
protetora, a fantasiatambém se aproxima e aproxima Freud do ficcional, como evidencia o
manuscrito imediatamente posterior, o Rascunho N, no qual lemos que fantasia e ficção
recorrem a mecanismos idênticos.
À guisa de exemplo, Freud lembra as origens da criação por Goethedos Sofrimentos
do Jovem Werther, obra na qual o poeta haveria combinadoalgo que experimentara (a paixão
por Lotte Kastner) com algo que ouvira (o suicídio do jovem Jerusalém), lhe emprestando
uma motivação oriunda de seus próprios percalços amorosos. A conclusão de Freud é que,
“por intermédio dessa fantasia”, o escritor “protegeu-se das consequências da sua
experiência” (Freud, 1986, p. 252). A fantasia é uma maneira de lidar com o sexual
traumático.
Ao final, compreende-se que essa troca de correspondências entre os dois médicos foi
de suma importância para que Sigmund Freud prosseguisse em sua trajetória de elaborar a
teoria do aparelho psíquico e das estruturas que o compõe. O diálogo travado entre os dois
médicos possibilitou a Freud a compreensão de que os sintomas são mais complexos, pois
derivam do desejo reprimido, e que os atos falhos evidenciam o conteúdo inconsciente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, Sigmund, 1856 – 1939. Obras Completas, volume 2: estudos sobre a histeria (1893
– 1895) em coautoria com Josef Breuer / Sigmund Freud; tradução Laura Barreto; revisão da
tradução Paulo César de Souza – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

MASSON, Jeffrey Moussaieffy. A correspondência completa de Sigmund Freud para


Wilhelm Fliess — 1887-1904 / Jeffrey MoussaieffMasson; tradução de Vera Ribeiro. — Rio
de Janeiro: Imago, 1986.

ROUDINESCO, Elisabeth.Dicionário de psicanálise/Elisabeth Roudinesco,Michel Plon;


tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães;supervisão da edição brasileira Marco Antonio
CoutinhoJorge. — Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

VIDAL, Paulo Eduardo Viana. A invenção da psicanálise e a correspondência Freud/fliess.


In.: Estilos da Clínica, 2010, v. 15(2), p. 460-479.

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