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Adepto de uma teoria mística e organicista da sexualidade, Fliess era uma espécie de
duplo de Freud. Dominado por uma visão paranóica da ciência, misturava as teses
mais extravagantes (e também as mais inovadoras) sem conseguir organizá-las em
um sistema de pensamento adequado à realidade. Relacionando a mucosa nasal com
as atividades genitais, pensava que a vida estava condicionada por fenômenos
periódicos que dependiam da natureza bissexuada da constituição humana. Já
observava o Carter polimorfo da sexualidade infantil (ROUDINESCO, 1998, p.
240).
Preocupado em não desvelar para a posteridade sua relação com Fliess, Freud
destruiu as cartas do amigo. Mas em 1936, Charles Fliess (1899-1956), irmão mais
velho de Robert, vendeu a um comerciante as cartas de Freud, que seu pai guardara
até a morte. Foi então que Marie Bonaparte as comprou e as conservou, contra a
opinião do mestre, que se recusava obstinadamente a que fossem publicadas, nem
queria que elas fossem conhecidas. Em 1950, com a ajuda de Ernst Kris e de Anna
Freud, ela publicou algumas, sob o título O nascimento da psicanálise. Só em 1985
foi enfim publicada uma edição completa, depois de um escândalo nos Arquivos de
Freud (ROUDINESCO, 1998, p. 240).
Por meio das regulares correspondências, Freud descreveu o que chamou de sua
autoanálise, “ao longo das páginas, descobrimos como ele adotou as teses do amigo sobre a
sexualidade para transformá-las, e depois como elaborou suas primeiras hipóteses sobre a
histeria, a neurose e o Édipo” (ROUDINESCO, 1998, p. 240). Nesse sentido, Freud ao
construir suas teorias se desloca para o lugar inédito de analista.
A primeira análise que levaria a cabo de um sonho; e a morte do pai, pois no verão
seguinte a esta, a autoanálise ganharia impulso, sistematicidade e finalidade. Portanto, dois
acontecimentos cruciais, que levaram o fundador da psicanálise a se deparar com o enigma da
feminilidade, sob a forma da paciente Irma, e com a “perda mais pungente” da existência de
um homem: a morte do pai.
É uma análise cujo dispositivo inclui a correspondência, o endereçamento de uma
escrita (cartas, rascunhos de artigos) a um Outro, personificado pelo amigo e colega médico
W. Fliess, e ocasionais encontros entre os missivistas, ironicamente denominados por Freud
“congressos”. Preservados em Freud (1986), os restos dessa troca de cartas compreendem
entre outros assuntos anotações sobre pacientes, resultados e achados de pesquisas em
andamento (comunicados no corpo das cartas ou em manuscritos anexos), relatos de sonhos e
formações do inconsciente relacionados à chamada autoanálise e juízos de Freud relativos a si
mesmo e ao amigo.
É uma lógica da distribuição do dano entre os parceiros, cujo critério é a distinção
entre um gozo que leva em conta o Outro e um gozo que não o leva em conta, distinção que se
revela subjacente à oposição entre neurastenia e neurose de angústia. Para adequar o gozo à
relação entre os sexos, muito libertariamente para a época Freud advoga “as relações sexuais
livres entre rapazes e moças liberadas”, embora advertindo que “isso só poderia ser adotado se
houvesse métodos inócuos de evitar a gravidez” (Freud, 1986, p. 44), ou seja, métodos
diversos do prejudicial coito interrompido. De fato, a causalidade sexual das neuroses atuais
(neurastenia e neurose de angústia) é extrínseca e contingente, o que as torna permeáveis às
influências da reforma moral, da educação e do progresso técnico.
Em 15 de outubro de 1895, Freud escreve a Fliess e revela o que chama de “grande
segredo clínico” das neuroses de defesa: “a histeria é consequência de um pavor sexual pré-
sexual. A neurose obsessiva é consequência de um prazer sexual pré-sexual, que se
transforma posteriormente em autorrecriminação. ‘Pré-sexual’ significa, a rigor, anterior à
puberdade” (Freud, 1986, p. 145).
Se a histeria é consequência de um desprazer sexual enquanto a obsessão deriva de um
prazer sexual, o denominador comum de ambas é a experiência de uma sensação de
desprazer/prazer antes da puberdade: o grande segredo clínico de Freud é que há uma
experiência primária de gozo, um gozo primário. Tal gozo primário se divide em dois tipos
conforme a linha de fratura que observamos antes nas neuroses atuais. Na histeria, o gozo
primário, experimentado passivamente, é o gozo do Outro. Já na obsessão esse gozo é do
próprio sujeito, por isto dá lugar na puberdade a uma censura.
Na sequência de sua correspondência, Freud trata com Fliess sobre a teoria da
sedução, levantando a hipótese da teoria da sedução paterna, assunto que lhe causa
estranheza. Na carta de 28 de abril de 1897, ele narra um caso de uma moça que confessa que
o pai a levava regularmente para a cama.
Na carta de 06 de dezembro de 1896, o mau encontro com a sexualidade, com o gozo
do Outro – tomado no sentido subjetivo, do Outro que goza – é imputado explicitamente ao
pai, ao pai perverso sedutor: “Parece-me cada vez mais que o aspecto essencial da histeria é
que ela decorre da perversão por parte do sedutor, e parece cada vez mais que a
hereditariedade é a sedução pelo pai” (Freud, 1986, p. 213).
Ao redefinir em termos de sedução paterna a hereditariedade, Freud torce, subverte a
teoria de seu mestre Charcot, que faz da disposição neuropática– uma potencialidade
hereditária atualizada por agentes provocadores (o trauma por exemplo) – a causa necessária
da histeria.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund, 1856 – 1939. Obras Completas, volume 2: estudos sobre a histeria (1893
– 1895) em coautoria com Josef Breuer / Sigmund Freud; tradução Laura Barreto; revisão da
tradução Paulo César de Souza – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2016.